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Como Viver Ou Uma Biografia de Montaigne e - Sarah Bakewell
Como Viver Ou Uma Biografia de Montaigne e - Sarah Bakewell
Sobre a obra:
a
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SARAH BAKEWELL
Tradução
Clóvis Marques
Copyright © Sarah Bakewell, 2010
Título original
How to Live or A Life of Montaigne in One Question and Twenty Attempts at an Answer
Capa
Sabine Dowek
Revisão
Tamara Sender
Lilia Zanetti
Ana Julia Cury
Coordenação de e-book
Marcelo Xavier
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B142c
Bakewell, Sarah
Como viver ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta
[recurso eletrônico] / Sarah Bakewell ; tradução Clóvis Marques. - Rio de Janeiro : Objetiva,
2013.
recurso digital
Tradução de: How to live or A life of Montaigne in one question and twenty attempts at an
answer
Formato: ePub
Requisitos de acesso: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
384p. ISBN 978-85-390-0442-3 (recurso eletrônico)
1. Montaigne, Michel de, 1533-1592. 2. Montaigne, Michel de, 1533-1592 - Filosofia. 3.
Escritores franceses - Séc. XVI - Biografia 4. Livros eletrônicos. I. Título.
Capa
Folha de rosto
Créditos
P. Como viver?
Michel de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de
resposta
1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte
Por um fio
2. P. Como viver? R. Preste atenção
Começando a escrever
O fluxo da consciência
3. P. Como viver? R. Trate de nascer
Micheau
A experiência
4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine
com lentidão
Lendo
Montaigne, lento e esquecido
O jovem Montaigne em tempos conturbados
5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas
La Boétie: amor e tirania
La Boétie: morte e luto
6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques
Os pequenos truques e a arte de viver
Montaigne escravizado
7. P. Como viver? R. Questione tudo
Só sei que nada sei, e nem disto estou certo
Animais e demônios
Uma prodigiosa máquina de sedução
8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da
loja
Entregar-se com metade do traseiro
Responsabilidades práticas
9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros
Uma sabedoria alegre e comunicativa
Abertura, compaixão e crueldade
10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito
Tudo depende do ponto de vista
Selvagens nobres
11. P. Como viver? R. Viva com temperança
Elevando e baixando a temperatura
12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade
Terror
Herói
13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito
Best-seller Barroco
14. P. Como viver? R. Conheça o mundo
Viagens
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim
Prefeito
Objeções morais
Missões e assassinatos
16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso
Quinze ingleses e um irlandês
17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada
Je ne regrette rien
18. P. Como viver? R. Abra mão do controle
Filha e discípula
Guerras editoriais
Montaigne remixado e embabuinado
19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito
Seja comum
Seja imperfeito
20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma
Não é o fim
Cronologia
Agradecimentos
Notas
Fontes
Para Simo
P. Como viver?
O
século XXI está cheio de pessoas cheias de si. Meia hora de
percurso pelo oceano on-line de blogs, tweets, tubes, spaces,
faces, páginas e pods nos defronta com milhares de indivíduos
fascinados pela própria personalidade e clamando por atenção. Eles falam
de si mesmos, escrevem diários, conversam e postam fotografias de tudo
que fazem. Desinibidamente extrovertidos, também olham para dentro de si
mesmos como nunca antes. À medida que mergulham em sua experiência
pessoal, blogueiros e internautas se comunicam com os outros seres
humanos, num verdadeiro festival do ego.
Alguns otimistas tentaram transformar esse encontro global de mentes na
base para uma nova abordagem das relações internacionais. O historiador
Theodore Zeldin criou um site chamado “The Oxford Muse” (A Musa de
Oxford), estimulando as pessoas a montar pequenos autorretratos em
palavras que descrevessem sua vida cotidiana e as coisas que aprenderam.
O resultado é posto on-line, à disposição da leitura e das reações dos outros.
Para Zeldin, a autorrevelação compartilhada é a melhor maneira de
desenvolver a confiança e a cooperação no planeta, substituindo os
estereótipos nacionais por pessoas de carne e osso. A grande aventura da
nossa época, diz ele, é “descobrir quem habita o mundo, um indivíduo de
cada vez”. Assim, “Oxford Muse” está cheio de relatos ou entrevistas
pessoais, com títulos tais como estes:
Da amizade
Dos canibais
Do hábito de usar roupas
Como choramos e rimos pela mesma coisa
Dos nomes
Dos cheiros
Da crueldade
Dos polegares
Como nossa mente cria obstáculos para si mesma
Da diversão
Das carruagens
Da experiência
POR UM FIO
M
ONTAIGNE NEM SEMPRE se sentiu tão à vontade em reuniões
sociais. De vez em quando, na juventude, enquanto os amigos
dançavam, riam e bebiam, ele se sentava à parte, com uma
nuvenzinha em cima da cabeça. Os amigos mal o reconheciam nessas
ocasiões: estavam mais acostumados a vê-lo flertando com as mulheres ou
debatendo animadamente uma nova ideia que lhe tivesse ocorrido. Ficavam
se perguntando se ele havia se ofendido com alguma coisa que tivessem
dito. Na verdade, como confessaria mais tarde em seu Os ensaios, quando
mergulhava nesse estado de espírito ele mal se dava conta do que acontecia
ao redor. Em meio a toda aquela alegria, ele estava pensando em alguma
assustadora história real que ouvira recentemente — talvez a história de um
rapaz que, queixando-se de uma leve febre depois de deixar uma festa
semelhante dias atrás, morrera antes até de os demais festeiros terem se
recuperado da ressaca. Se a morte podia pregar peças assim, então ele
próprio, Montaigne, estaria a qualquer momento a um passo do vazio
absoluto. Ele passou a ter tanto medo de perder a vida que já não era mais
capaz de desfrutá-la.
Na faixa dos 20 anos, Montaigne foi acometido dessa obsessão mórbida
porque passara muito tempo lendo os filósofos clássicos. A morte era um
tema de que os antigos nunca se cansavam. Cícero resumiu primorosamente
seu ponto de vista: “Filosofar é aprender a morrer.” O próprio Montaigne
usaria um dia esse pensamento calamitoso como título de um capítulo.
Mas, se começaram com um excesso de filosofia numa idade
impressionável, seus problemas não acabaram com a idade. Na faixa dos
30, quando se poderia esperar que Montaigne evoluísse para uma
perspectiva mais equilibrada, seus sentimentos com relação à opressiva
proximidade da morte tornaram-se mais fortes do que nunca, e ainda mais
pessoais. Deixando de ser uma abstração, a morte transformou-se em
realidade e começou a ceifar as vidas de praticamente todos que ele amava,
chegando mais perto dele próprio. Quando tinha 30 anos, em 1563, seu
melhor amigo, Étienne de La Boétie, morreu vitimado pela praga. Em 1568,
seu pai morreu, provavelmente por complicações de uma crise de pedra nos
rins. Na primavera do ano seguinte, Montaigne perdeu o irmão menor,
Arnaud de Saint-Martin, num estranho acidente desportivo. Nessa época,
ele próprio acabara de se casar, e o primeiro filho desse casamento viveria
apenas dois meses, morrendo em agosto de 1570. Montaigne perderia
quatro outros filhos: num total de seis, um único sobreviveu até a idade
adulta. Esta série de lutos tornou menos nebulosa a ameaça da morte, mas
ela ainda não era propriamente tranquilizadora. Seus temores continuavam
fortes como nunca.
A perda mais dolorosa foi aparentemente a de La Boétie: Montaigne o
amava mais que a qualquer outra pessoa. Mas a mais chocante deve ter sido
a do irmão Arnaud. Com apenas 27 anos, Arnaud foi atingido na cabeça por
uma bola quando jogava uma espécie de tênis da época, o jeu de paume. O
golpe não pode ter sido tão forte, e não se evidenciou nenhum efeito
imediato, mas cinco ou seis horas depois ele perdeu a consciência e morreu,
presumivelmente de um coágulo ou hemorragia. Ninguém poderia esperar
que uma simples pancada na cabeça extirpasse a vida de um homem
saudável. Não fazia o menor sentido, e a história parecia ainda mais
ameaçadora, de um ponto de vista pessoal, que a do rapaz que morrera de
febre. “Com exemplos tão frequentes e comuns passando diante de nossos
olhos”, escreveu Montaigne a respeito de Arnaud, “como poderíamos nos
livrar da ideia da morte e do pensamento de que a qualquer momento ela
pode nos agarrar pela garganta?”
Livrar-se desse pensamento não era possível, e ele sequer o desejava. Ele
ainda estava sob a influência dos seus filósofos. “Tenhamos a morte em
mente com mais frequência que qualquer outra coisa”, escreveu, num dos
primeiros ensaios sobre o tema:
Parecia que a vida pendia dos meus lábios por um fio; fechei os olhos,
querendo, ao que me parecia, ajudar a soltá-la, e senti prazer em ficar
cada vez mais lânguido e me entregar. Essa ideia apenas flutuava na
superfície da minha alma, delicada e frágil como todo o resto, mas na
verdade não só livre de qualquer aflição como misturada àquela doce
sensação que experimentamos ao nos deixar deslizar para o sono.
COMEÇANDO A ESCREVER
O
acidente de equitação, que alterou significativamente a perspectiva
de Montaigne, durou apenas alguns momentos em si mesmo, mas
é possível desdobrá-lo em três partes e espraiá-lo ao longo de
vários anos. Temos, inicialmente, Montaigne estirado no solo, agarrando a
barriga com uma sensação de euforia. Passamos então ao Montaigne das
semanas e dos meses que se seguiram, refletindo sobre a experiência e
tentando conciliá-la com suas leituras filosóficas. Finalmente, vemos
Montaigne alguns anos depois, sentando-se para escrever sobre o incidente
— e também sobre uma infinidade de outras coisas. A primeira cena
poderia ter acontecido a qualquer um; a segunda, a qualquer jovem sensível
e instruído do Renascimento. A última delas é que torna Montaigne único.
A ligação não é simples: ele não se sentou na cama e imediatamente
começou a escrever sobre o acidente. Deu início a Os ensaios um par de
anos depois, por volta de 1572, e ainda assim escreveu outros capítulos
antes de abordar o que trata da perda de consciência. Quando efetivamente
chegou a ele, contudo, a experiência o levou a tentar um novo tipo de
escrita, que praticamente não havia sido explorada por outros escritores: a
recriação de uma sequência de sensações tal como de fato experimentadas
internamente, seguindo-as momento a momento. E parece haver uma
ligação cronológica entre o acidente e outra virada importante em sua vida,
que lhe abriu caminho para a literatura: a decisão de deixar o emprego de
magistrado em Bordeaux.
Até então, Montaigne mantinha duas vidas paralelas: uma urbana e
política, a outra rural e gerencial. Embora viesse administrando a
propriedade rural desde a morte do pai, em 1568, ele continuara a trabalhar
em Bordeaux. No início de 1570, todavia, pôs à venda sua magistratura.
Havia outras razões, além do acidente: sua candidatura a um cargo na
câmara alta do tribunal acabara de ser rejeitada, provavelmente por
interferência de inimigos políticos. Teria sido mais natural recorrer da
decisão ou lutar contra ela; em vez disso, ele preferiu aposentar-se. Talvez o
tenha feito por raiva ou desilusão. Ou quem sabe seu encontro com a morte,
associado à perda do irmão, o fez pensar de maneira diferente sobre o jeito
como gostaria de viver sua vida.
Antes de tomar esta decisão, Montaigne dedicara 13 anos de trabalho ao
parlement de Bordeaux. Estava com 37 anos — talvez na meia-idade,
segundo os padrões da época, mas ainda não estava velho. Mesmo assim se
considerava em processo de aposentadoria, deixando o movimento central
da vida para dar início a uma nova existência, mais reflexiva. Ao completar
38 anos, marcou essa decisão — quase um ano depois de efetivamente
tomá-la — mandando pintar uma inscrição latina na parede de uma
antecâmara de sua biblioteca:
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
Na verdade, por mais que se tente, não é possível resgatar plenamente uma
experiência. Como dizia o antigo filósofo Heráclito em frase que ficou
famosa, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Ainda que voltemos
ao mesmo ponto à margem, as águas que passam a cada momento são
sempre diferentes. Da mesma forma, é impossível ver o mundo exatamente
como há meia hora, assim como é impossível vê-lo do ponto de vista de
outra pessoa ao seu lado. A mente está sempre fluindo, num incessante
“fluxo da consciência” — expressão cunhada pelo psicólogo William James
em 1890, embora se tornasse mais conhecida graças a alguns romancistas.
Montaigne estava entre os muitos autores que citavam Heráclito e
refletia sobre a maneira como somos levados por nossos pensamentos, “ora
suavemente, ora violentamente, segundo estejam as águas agitadas ou
calmas (...) a cada dia uma nova fantasia, e os nossos humores mudam com
as alterações do tempo”. Não surpreende que a mente seja assim, já que até
mesmo no mundo físico, aparentemente sólido, impera incessantemente
uma suave agitação. Contemplando a paisagem ao redor de sua casa,
Montaigne era capaz de imaginá-la fervendo e arfando como um mingau na
panela. O rio que por ali passava, o Dordonha, esculpia as margens como
um carpinteiro cinzelando sulcos na madeira. Ele ficara maravilhado com a
mobilidade das dunas de Médoc, perto das quais vivia um dos seus irmãos:
elas perambulavam pelo território, devorando-o. Se pudéssemos ver o
mundo a uma velocidade diferente, pensava ele, assim é que veríamos tudo,
como “uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas”. A matéria
existia numa incessante branloire, palavra derivada da quinhentista dança
camponesa branle, significando algo parecido com agitação ou sacudidela.
O mundo era uma grande oscilação cósmica, uma trepidação.
Outros escritores do século XVI compartilhavam esse fascínio de
Montaigne pelo instável. O que o distinguia era o instinto de que o
observador é tão pouco digno de confiança quanto o observado. Os dois
tipos de movimento interagem como variáveis numa complexa equação
matemática, resultando disso que não podemos encontrar um ponto seguro a
partir do qual medir as coisas. Tentar entender o mundo é como tentar
agarrar uma nuvem de gás ou um líquido, usando mãos que são por sua vez
feitas de gás ou água, de tal maneira que se dissolvem quando os
enfeixamos.
É por isto que o livro de Montaigne flui: ele acompanha o fluxo de
consciência do autor sem tentar interrompê-lo ou contê-lo. Uma página de
Os ensaios costuma ser uma sucessão de meandros, reviravoltas e
divergências. Precisamos deixar-nos levar, torcendo para não capotar toda
vez que uma mudança de direção nos tirar o equilíbrio. No capítulo “Dos
aleijados”, por exemplo, Montaigne começa de maneira bastante
convencional, repetindo uma suposição sobre as mulheres mancas: seria
mais prazeroso fazer sexo com elas. Por que seria?, pergunta-se ele. Será
que é pelo fato de seus movimentos serem irregulares? Talvez, mas ele
acrescenta: “Acabo de saber que, de todas as filosofias, a antiga resolveu a
questão.” Aristóteles afirma que suas vaginas são mais musculosas por
receberem a nutrição de que as pernas são privadas. Montaigne registra esta
ideia mas volta atrás e introduz uma dúvida: “A essa altura, o que não
podemos transformar em objeto da razão?” Essas teorias não costumam
merecer crédito. Na verdade, ele acaba revelando que fez a experiência
pessoalmente, acessando uma perspectiva muito diferente: a pergunta pouco
significa, pois a imaginação pode nos levar a acreditar que estamos
vivenciando um prazer maior, estejamos “realmente” ou não. No fim das
contas, a estranheza da mente humana é a única certeza que podemos ter —
uma conclusão extraordinária, aparentemente sem qualquer relação com o
tema de que ele originalmente tratava.
Outro ensaio, “Que nossa felicidade não deve ser julgada até depois da
nossa morte”, começa citando um chavão encontrado numa obra de Sólon:
Nenhum homem pode ser considerado feliz até morrer. Montaigne
imediatamente se desvia para um pensamento mais interessante: talvez
nossa opinião sobre o fato de um homem ter sido feliz ou não tenha mais a
ver com a forma como ele morre. Um homem que morre bem tende a ser
lembrado como alguém que também viveu bem. Depois de dar exemplos
neste sentido, Montaigne volta mais uma vez a mudar de direção. Na
verdade, uma pessoa que tenha tido uma boa vida pode morrer de maneira
muito ruim, e vice-versa. Na própria época de Montaigne, três dos mais
infames indivíduos do seu conhecimento tinham desfrutado de lindas
mortes, “compostas à perfeição”. A essa altura, o capítulo já se transformou
numa longa perambulação com três guinadas, e Montaigne parece preparar-
se para concluir dizendo que, de qualquer forma, espera que sua morte
transcorra bem. Mas bem no fim ele observa que, com o desejo de que
“transcorra bem”, espera que ela seja “tranquila e insensível” — o que não
seria propriamente a ideia mais habitual de uma morte admirável. E com
isto o texto chega abruptamente ao fim, no exato momento em que o leitor
começa a se perguntar se isto significa que Montaigne viveu bem ou não.
Desse modo, o pensamento de Montaigne consiste essencialmente numa
série de percepções de que a vida não é tão simples quanto ele imaginava.
Em momentos assim, ele parecia alcançar uma disciplina quase zen, uma
capacidade de simplesmente ser.
Quando eu danço, danço; quando eu durmo, durmo.
Parece tão simples, dito assim, mas nada poderia ser mais difícil. Por isto
é que os mestres zen passam uma vida inteira, ou várias vidas, aprendendo.
E mesmo assim, a dar crédito aos relatos da tradição, eles só o conseguem
depois de serem golpeados pelo mestre com uma vara — a keisaku, usada
para lembrar aos que meditam que devem manter a atenção plenamente
concentrada. Montaigne o conseguiu depois de uma única vida,
relativamente breve, em parte porque passou boa parcela dessa vida fazendo
anotações no papel, com uma vara minúscula.
Ao escrever sobre sua experiência como se ele próprio fosse um rio,
Montaigne deu início a uma tradição literária de atenta observação íntima,
hoje tão familiar que fica difícil lembrar que se trata mesmo de uma
tradição. A vida simplesmente parece ser assim, e observar o jogo dos
estados íntimos é a missão do escritor. Mas essa não era uma ideia
disseminada antes de Montaigne, e sua maneira particularmente inquieta e
formalmente livre de fazê-lo era desconhecida. Ao inventá-la, arriscando
uma segunda resposta à pergunta sobre como viver — “prestar atenção” —,
Montaigne transcendeu sua crise e conseguiu inclusive revertê-la em
benefício próprio.
Tanto “Não se preocupe com a morte” quanto “Preste atenção” eram
respostas para uma perda de rumo que pode acontecer no meio da vida:
surgiam da experiência de um homem que já vivera o suficiente para ter
cometido erros e conhecido frustrações. Mas também assinalavam um
início, propiciando o nascimento de um novo eu voltado para a redação de
ensaios.
3. P. Como viver? R. Trate de nascer
MICHEAU
O
eu anterior de Montaigne, o que não escrevia ensaios e
simplesmente vivia e respirava como todo mundo, começara de
maneira mais simples. Chegou a este mundo no dia 28 de
fevereiro de 1533 — o mesmo ano em que a futura rainha Elizabeth I da
Inglaterra nasceu. Seu nascimento ocorreu entre onze horas e meio-dia, no
mesmo castelo da família que seria sua residência por toda a vida. Ele foi
batizado de Michel, mas, pelo menos para o pai, seria sempre Micheau. O
apelido aparece até em documentos formais, como o testamento do pai,
quando o menino já se havia transformado num homem.
Em seu Os ensaios, Montaigne escreveu ter sido carregado no ventre da
mãe durante onze meses. Era uma afirmação estranha, pois se sabia
perfeitamente que semelhante prodígio não seria possível na natureza. Uma
mente mais perversa certamente tiraria sem hesitar conclusões indelicadas.
Em Gargântua, de Rabelais, o gigante que dá título ao livro também passa
onze meses no útero da mãe. “Parece estranho?”, pergunta Rabelais,
respondendo ele próprio com uma série de relatos sarcásticos, segundo os
quais advogados espertos conseguem comprovar até a legitimidade de uma
criança cujo suposto pai tinha morrido onze meses antes do nascimento.
“Graças a essas sábias leis, nossas virtuosas viúvas podem, durante dois
meses após a morte do marido, entregar-se livremente às brincadeiras mais
ousadas no escuro, com os tornozelos acima da cabeça e o coração feliz.”
Montaigne lera Rabelais e provavelmente pensara nas piadas óbvias, mas
não pareceu se preocupar com elas.
Nenhuma outra dúvida sobre paternidade é lançada nas demais páginas
de Os ensaios. Montaigne chega a refletir sobre a força das características
genéticas em sua família, descrevendo traços que havia recebido do bisavô,
do avô e do pai, incluindo uma serena honestidade e uma propensão a
pedras nos rins. Aparentemente se considerava muito parecido com o pai.
Montaigne sentia-se à vontade para falar de honestidade e problemas de
saúde hereditários. No entanto, mostrava-se mais discreto quanto a outros
aspectos da herança genética, pois não descendia da velha aristocracia, e
sim, em ambos os lados da família, de várias gerações de comerciantes que
haviam ascendido socialmente. Chegou até a inventar que na propriedade
dos Montaigne havia nascido “a maioria” de seus antepassados, o que era
uma redonda mentira: seu pai fora o primeiro a nascer ali.
É bem verdade que a propriedade já era da família havia mais tempo.
Fora comprada em 1477 por seu bisavô Ramon Eyquem, ao fim de uma
longa e bem-sucedida vida de busca por sucesso material, negociando
vinhos, peixes e pastéis-dos-tintureiros — a planta da qual é extraída a
tintura de anil, produto de grande importância econômica na região.
Grimon, o filho de Ramon, pouco contribuiu com melhorias para a
propriedade, à parte abrir um caminho margeado por cedros e carvalhos até
a igreja local. Mas aumentou ainda mais a riqueza dos Eyquem e deu início
a outra tradição familiar, envolvendo-se na política de Bordeaux. A certa
altura, deixou de comerciar e passou a viver “nobremente”, o que
representava um passo importante. Ser nobre não era um je ne sais quoi em
matéria de classe e estilo: era uma questão técnica, consistindo a regra
principal em que você e seus descendentes não se envolvessem com
práticas comerciais nem pagassem impostos por pelo menos três gerações.
Pierre, o filho de Grimon, também passou ao largo do comércio, de modo
que a nobreza foi conferida pela primeira vez à geração número três: do
próprio Michel Eyquem de Montaigne. A essa altura, ironicamente, seu pai,
Pierre, transformara a propriedade, que deixou de ser a mera extensão de
terras que era até então para se tornar um bem-sucedido empreendimento
comercial. O castelo tornou-se sede de um grande negócio viticultor,
fabricando dezenas de milhares de litros de vinho por ano. E continua a
fazê-lo até hoje. A prática era perfeitamente permitida: era possível ganhar
quanto dinheiro quisesse vendendo produtos da própria terra, sem que isto
fosse considerado comércio.
A história dos Eyquem exemplifica o grau de mobilidade que então era
possível, pelo menos em direção à parte mais alta da escala social. Os novos
nobres às vezes tinham dificuldade de granjear pleno respeito, mas isto se
aplicava sobretudo à chamada “nobreza togada”, elevada a essa posição
pela prestação de serviços políticos e civis, e não à “nobreza da espada”,
designada com base nas propriedades, como acontecera com a família de
Montaigne, e orgulhosa do papel militar que consequentemente teria
de desempenhar. Os camponeses, enquanto isto, ficavam basicamente onde
sempre haviam estado: na base. Sua vida ainda era dominada pelo seigneur
local — no caso, o chefe da família Eyquem. Ele era proprietário de suas
casas, dava-lhes emprego e cobrava aluguel pelo uso do espremedor de
vinhas e do forno de pão. Ao chegar sua vez, Montaigne provavelmente
continuou sendo para eles um típico seigneur, por mais que louvasse a
sabedoria dos camponeses em seu Os ensaios — livro que dificilmente
algum trabalhador agrícola de suas propriedades terá um dia lido.
O registro sobre o nascimento de Montaigne no livro da família informa
que ele nasceu “in confiniis Burdigalensium et Petragorensium”: na região
entre Bordeaux e o Périgord. O que era significativo, pois Bordeaux era
predominantemente católica, ao passo que o Périgord era dominado por
seguidores da nova religião, reformada ou protestante. A família Eyquem
precisava manter boas relações com ambos os lados de uma divergência que
haveria de dividir a Europa em duas ao longo da vida de Montaigne, e
também muito além dela.
A Reforma ainda era notícia recente: seu início costuma ser datado de
1517, ano em que Martinho Lutero escreveu um tratado condenando a
tradição católica das vendas de absolvições terrenas, ou “indulgências”,
tendo supostamente afixado o texto à porta da igreja de Wittenberg em
atitude desafiadora. Alcançando ampla circulação, o tratado desencadeou
uma grande rebelião contra a Igreja. O papa reagiu inicialmente descartando
Lutero como um “alemão bêbado”, para em seguida excomungá-lo. Os
poderes seculares do Sacro Império Romano declararam Lutero um fora da
lei com a cabeça a prêmio, transformando-o, assim, num herói popular.
Com o passar do tempo, quase toda a Europa ficaria dividida em dois
campos: os que se mantinham leais à Igreja e os que apoiavam a rebelião de
Lutero. Essa divisão nunca teve contornos geográficos ou ideológicos
claros. A Europa se desintegrou como um bolo esfarelado, e não como uma
maçã cortada ao meio por uma faca. Praticamente todos os países foram
afetados, mas poucos foram os que tomaram decididamente um caminho ou
outro. Em muitos lugares, especialmente na França, as linhas de cisão
passavam por aldeias e até famílias, e não entre diferentes territórios.
Na região onde vivia Montaigne, a Guyenne (também conhecida como
Aquitânia), era efetivamente possível constatar um padrão: grosso modo, o
campo ia numa direção e a capital, na outra. A tensão era agravada pela
impressão geral, já disseminada na região antes da Reforma, de que a
Aquitânia não fazia parte da França. Tinha sua língua própria e poucos
vínculos históricos com o norte do país. Durante muito tempo, fora
território inglês. Os ingleses só foram expulsos em 1451, por invasores
franceses vistos como raptores estrangeiros que não mereciam confiança. A
população se sentia nostálgica dos velhos tempos, não porque sentisse falta
dos ingleses, mas por detestar os franceses do norte. Eram frequentes as
rebeliões. As autoridades ergueram três enormes fortalezas para guardar a
cidade: o Château Trompette, o Fort du Hâ e o Fort Louis. Todas eram
detestadas, e todas deixaram de existir.
Sempre que possível, Bordeaux estabelecia relações diplomáticas com
qualquer um que não fizesse parte de seus conquistadores. Na época de
Montaigne, a região foi muito influenciada pela corte protestante de
Navarra, sediada em Béarn, na fronteira meridional com a Espanha.
Também mantinha vínculos com a Inglaterra, que importou o gosto de
Bordeaux pelos vinhos. Uma frota comercial inglesa regularmente aportava
ali para se abastecer — o que era excelente para os fornecedores locais,
entre eles os Eyquem, a família de Montaigne.
À medida que a propriedade adquiria maior importância, “Montaigne”
veio a sobrepujar o nome mais antigo de Eyquem, que tinha e continua
tendo uma conotação nitidamente regional. Uma parte da família ainda hoje
é lembrada por sua lendária propriedade vinícola: o Château d’Yquem.
Apesar de uma preferência pelo local e o particular na maioria das coisas,
Montaigne tornou-se o primeiro a passar por cima disto, ficando conhecido
pelo nome francês mais genérico de suas origens. Tal atitude tem sido
motivo de críticas de seus biógrafos, mas ele apenas dava continuidade a
uma iniciativa já tomada por seu pai, que se identificava como “de
Montaigne” ao assinar documentos. Enquanto o pai deixava de fora essa
parte extra quando queria ser breve, Montaigne tendia a extirpar o
“Eyquem”.
Se Michel Eyquem de Montaigne, produto de uma meteórica ascensão
social, abordou rapidamente a procedência mercantil do pai em Os ensaios,
pode ter sido para se assegurar de que o livro tivesse penetração nas esferas
nobres ociosas; ou talvez, simplesmente, por não se preocupar muito com a
questão. O pai provavelmente evitava entretê-lo com histórias sobre as
origens da família; é possível que Montaigne mal tivesse consciência delas
ao crescer. E não resta dúvida de que havia também uma ponta de vaidade:
era um dos muitos pecadilhos alegremente reconhecidos por Montaigne,
que acrescentava:
Esse remate final — “embora não dê para ter certeza” — é puro Montaigne.
Podemos imaginar que era acrescentado, em pensamento, a praticamente
tudo que ele escreveu. Toda a sua filosofia está contida nesse parágrafo.
Sim, diz ele, somos todos uns tolos, mas não podemos ser de outra maneira,
de modo que é melhor relaxar e aceitar tal condição.
Se as atividades do pai pareciam nebulosas, um segredo mais grave
aparentemente pairava sobre a família da mãe, Antoinette de Louppes de
Villeneuve. Seus antepassados eram comerciantes; eram também imigrantes
espanhóis, o que, no contexto da época, parece indicar que fossem
refugiados judeus. Como tantos outros, converteram-se ao cristianismo sob
pressão, emigrando em consequência da perseguição aos judeus na
península no fim do século XV.
Montaigne talvez não se tenha dado conta de que tinha origem judaica,
se é que efetivamente a tinha. Demonstrava escasso interesse pelo tema,
mencionando os judeus só ocasionalmente em Os ensaios, em geral de
maneira neutra ou solidária, mas nunca de uma forma indicativa de que se
sentisse pessoalmente envolvido. Viajando mais tarde pela Itália, ele visitou
sinagogas e presenciou uma circuncisão, mas o fez com a mesma
curiosidade que evidenciava por tudo mais que cruzava seu caminho:
serviços religiosos protestantes, execuções, bordéis, fontes com efeitos
especiais, jardins de pedras e mobília exótica.
Também demonstrava um sardônico ceticismo frente à “conversão” de
certos refugiados recentes — o que fazia sentido, considerando-se que não
era uma escolha voluntária. Se, como especulam alguns, isto representava
uma sutil cutucada na família da mãe, não seria de estranhar. Em sua vida
política, ele enfrentou constantes dificuldades da parte de certos parentes
dela em Bordeaux. Parece até ter tido problemas para se entender com a
própria Antoinette.
A mãe de Montaigne tinha indubitavelmente um temperamento forte,
mas as convenções a reduziam à impotência e à frustração. Casou-se jovem,
como costumavam fazer as mulheres, e provavelmente não teve muita
escolha na questão. Pierre Eyquem era bem mais velho que ela: na certidão
de casamento, datada de 15 de janeiro de 1529, sua idade consta como 33
anos, ao passo que ela é apenas “maior de idade”. Isto podia significar
qualquer coisa entre 12 e 25 anos; como ela viria a ter o derradeiro filho do
casal mais de trinta anos depois do casamento, devia estar mais perto dos 12
que dos 25. Dois filhos nasceram antes de Michel, mas nenhum dos dois
sobreviveu. É muito provável que ela ainda fosse uma adolescente ao trazê-
lo ao mundo, mas a essa altura já estava casada havia quatro anos.
Se ainda havia na noiva algo de infantil ou recatado, logo isto mudaria.
Documentos remanescentes de variados períodos de sua vida pintam o
retrato de uma pessoa voluntariosa, obstinada e capaz. Em seu primeiro
testamento, de 1561, seu marido confiava a ela a missão de gerir a casa, e
não ao filho mais velho, embora mais tarde tal indicação fosse alterada. Em
1561, ou Pierre Eyquem não depositava muita fé em Micheau (então com
quase 28 anos) ou tinha a mulher em conta excepcionalmente alta — o que
não deixa de causar espécie, numa época em que as mulheres mal eram
consideradas capazes de pensamento racional.
O segundo testamento, de 22 de setembro de 1567, evidenciava maior
confiança no filho, mas a essa altura Pierre sentia necessidade de se valer
do documento para ordenar à mulher que amasse os filhos e dizer a eles que
a honrassem e respeitassem. Aparentemente ele temia que ela e o filho mais
velho não convivessem de forma amistosa, pois ordenou a Montaigne que
encontrasse acomodações para ela em outro lugar, se o convívio na
propriedade da família se revelasse inviável. Antoinette acabou vivendo
com ele e sua família durante muito tempo após a morte do marido — até
aproximadamente 1587 —, mas sem muita convivência. Outro documento
legal firmado por mãe e filho em 31 de agosto de 1568 estabelecia o direito
de Antoinette a “todo respeito, honra e serviço filiais”, além de criados para
atendê-la e a uma centena de livres tournois por ano para os gastos
correntes. Ela, por sua vez, teve de reconhecer que cabiam a ele “o domínio
e o governo” do castelo e da propriedade. O contrato dava a entender que
Antoinette não se considerava bem-assistida, ao passo que Montaigne
queria acabar com suas intromissões.
As coisas se agravaram. Em seu próprio testamento, redigido a 19 de
abril de 1597 — cinco anos após a morte do filho, já que sobreviveu a ele
—, Antoinette declarava não desejar ser enterrada na propriedade, e
praticamente excluiu da herança a filha única de Montaigne, Léonor.
Queixou-se de que seu dote de casamento devia ter sido usado para a
aquisição de mais propriedades, o que não fora feito, e acrescentou:
“Trabalhei durante um período de quarenta anos na casa de Montaigne com
meu marido, de tal maneira que, com meu trabalho, cuidados e gestão, a
dita casa foi muito valorizada, melhorada e ampliada.” Seu filho Montaigne
desfrutou durante toda a vida desses benefícios, assim como Léonor, que já
estava “rica e opulenta” o suficiente, de nada mais precisando. Finalmente,
Antoinette observava estar “numa idade fácil de despistar”; tinha
provavelmente em torno de 80 anos, e ao que parece temia que o testamento
fosse contestado sob alegação de senilidade.
Lendo-se as frequentes confissões de indolência e inépcia encontradas
no livro de Montaigne, é fácil entender por que Antoinette considerava que
a propriedade não fora devidamente cuidada quando estava sob o comando
dele. Ele achava as questões práticas um tédio e as evitava tanto quanto
possível. É mais surpreendente que ela fizesse a mesma queixa na direção
do marido, Pierre, pois não é dessa forma, em absoluto, que ele é retratado
em Os ensaios. Montaigne faz com que o pai pareça um verdadeiro dínamo,
dedicado aos deveres e sempre trabalhando em melhoras na propriedade —
incansável e intervencionista até demais.
Pierre Eyquem de Montaigne era um homem do século XV — mas por
pouco, já que nasceu a 29 de setembro de 1495. Tudo nele proclamava sua
distância do mundo do filho. Seguindo uma tradição da nobreza, ele se
tornou soldado profissional, tendo sido o primeiro da família a fazê-lo.
Michel não o seguiu nisto: como membro da nobreza, era obrigado a
carregar uma espada, mas não há indicações em Os ensaios de que a
desembainhasse com frequência. Um contemporâneo seu, Brantôme,
deixou registrado que Montaigne “arrastava” a espada pela cidade e lhe
sugeriu que se limitasse a carregar uma pena. Sarcasmos assim não
caberiam no caso de Pierre, que agarrou a primeira oportunidade de se
alistar nas guerras francesas na Itália.
Tropas francesas vinham regularmente atacando e conquistando estados
na península desde 1494, e continuariam a fazê-lo até 1559, quando o
Tratado de Paz de Câteau Cambrésis pôs fim às invasões francesas, abrindo
caminho para a verdadeira catástrofe do país no século XVI: as guerras
civis. As aventuras italianas eram menos danosas, mas dispendiosas e quase
sempre sem sentido, além de traumáticas para os envolvidos. Pierre entrou
em combate por volta de 1518. À parte um breve intervalo no ano seguinte,
permaneceu longe de casa até o início de 1529, quando retornou para se
casar.
A guerra no século XVI era um circo de horrores, menos uma questão de
glamour no campo de batalha do que de hipotermia, febre, fome, doenças e
infecções por cortes de espada ou feridas de armas de fogo, para as quais
não havia tratamentos muito eficazes. Acima de tudo, havia cercos, pelos
quais se impunha a fome indiferentemente a civis e soldados, até a
rendição. Pierre pode ter participado dos cercos de Milão e Pavia em 1522,
e talvez também do desastroso assédio de Pavia em 1525, que terminou
com o massacre de uma grande quantidade de soldados franceses e o
aprisionamento do rei da França. Anos mais tarde, Pierre contemplaria a
família com relatos apavorantes de suas experiências na guerra, com direito
a histórias de populações de aldeias inteiras que, famintas e sem chance de
escapar, cometiam suicídio em massa. Pode estar aí a explicação do fato de
Montaigne, crescendo, ter dado preferência à pena em vez da espada.
As guerras italianas podem não ter sido nada edificantes sob certos
aspectos, mas, no sentido literal de oferecer educação, foram altamente
benéficas para os franceses. Entre um cerco e outro, os franceses tomavam
contato com ideias estimulantes nos terrenos da ciência, da política, da
filosofia, da pedagogia e das últimas tendências da moda. A essa altura, já
se passara o tempo do alto Renascimento italiano, mas a Itália continuava
sendo, de longe, a civilização mais avançada da Europa. Os soldados
franceses aprendiam novas maneiras de pensar sobre praticamente tudo, e
quando voltavam para casa levavam suas descobertas. Pierre certamente
fazia parte dessa geração de nobres franceses italianizados, influenciados
pelas viagens e por seu próprio rei carismático e modernizador, Francisco I.
Sucessores de Francisco deixaram de lado seu ideal renascentista, e durante
as guerras civis praticamente todo mundo perdeu a fé no futuro — mas na
juventude de Pierre essa desilusão ainda estava muito distante. Os ideais
ainda eram novos o bastante para empolgar.
À parte talvez o porte mais militar, Pierre tinha o mesmo aspecto físico
do filho. Montaigne o descreve como “um homem baixo, cheio de vigor e
de estatura ereta e bem-proporcionada”, com “um rosto atraente, tendendo
para o moreno”. Ostentava boa condição física e tratava de preservá-la.
Gostava de exercitar os bíceps valendo-se de canos cheios de chumbo, e
usava sapatos de solado chumbado para treinar a corrida e o salto. Este
último era um de seus especiais talentos. “Com seus saltos, ele deixou
alguns pequenos milagres na memória das pessoas”, escreveu Montaigne.
“Pude vê-lo já depois dos sessenta anos deixando-nos envergonhados em
matéria de agilidade, saltando para a sela do cavalo com sua túnica de pele,
fazendo um rodopio sobre a mesa com o polegar, praticamente nunca
subindo para seu quarto sem pular dois ou três degraus de cada vez.”
Pierre apresentava ainda outras belas qualidades, todas elas mais
características da sua geração que da geração de Montaigne. Era um homem
sério; preocupava-se com a própria aparência e o modo como se vestia e se
mostrava “consciencioso e escrupuloso” em tudo que fazia. Por seus
talentos esportivos e maneiras galantes, fazia sucesso entre as mulheres:
Montaigne o considerava “muito bem-dotado para as atenções com as
damas, tanto por natureza quanto por arte”. Era provavelmente para divertir
companhias femininas que ele saltava sobre as mesas. Quanto às escapadas
sexuais, Pierre não era claro com o filho. Por um lado, relatava histórias “de
notáveis intimidades, especialmente de sua parte, com mulheres
respeitáveis, isentas de qualquer suspeita”. Por outro, “jurava solenemente
que casara virgem”. Montaigne não parecia muito convencido da alegação
de virgindade, observando apenas que “no entanto, ele participara por muito
tempo das guerras italianas”.
Depois de retornar da Itália e se casar, Pierre iniciou uma carreira
política em Bordeaux. Foi eleito juiz e preboste em 1530, subprefeito em
1537 e finalmente prefeito em 1554. Foi um período de dificuldades na
cidade: a criação de um imposto local sobre o sal levou a um motim em
1548, e como punição a “França” suspendeu muitos direitos legais de
Bordeaux. Como prefeito, Pierre fez o que estava ao seu alcance para
recuperar a prosperidade da cidade, mas os privilégios só voltaram aos
poucos. A tensão acabou comprometendo sua saúde. Assim como suas
histórias sobre as atrocidades da guerra podem ter contribuído para afastar
Montaigne da vida militar, assim também a visão do cansaço de Pierre o
estimularia a manter certa distância da função quando ele, por sua vez,
também foi feito prefeito de Bordeaux, cerca de trinta anos depois.
Pierre tinha ideias brilhantes, entre elas a de uma espécie de eBay do
século XVI, com a proposta de que cada cidade e aldeia tivesse um lugar
onde qualquer um pudesse anunciar o que quisesse: “Quero vender pérolas;
quero comprar pérolas. Fulano de Tal precisa de companhia para ir a Paris;
Sicrano procura criado com tais especificações; Beltrano quer um mestre;
alguém mais, um trabalhador; este homem, isso, aquele outro, aquilo.”
Parece interessante, mas, não se sabe por quê, o plano não deu certo.
Outra boa ideia de Pierre foi manter um diário em que registrava tudo
que acontecia na propriedade: idas e vindas dos criados, dados financeiros e
agrícolas de toda espécie. Ele estimulou o filho a fazer o mesmo.
Montaigne começou, movido por boas intenções após a morte de Pierre,
mas não persistiu: existe apenas um fragmento remanescente. “Sou mesmo
um tolo por tê-lo negligenciado”, escreveu em Os ensaios. Mas ele
conseguiu dar continuidade a outro registro iniciado pelo pai, usando um
calendário impresso intitulado Ephemeris, do escritor alemão Michel
Beuther. Deste dispomos praticamente na íntegra, à parte algumas folhas,
estando cheio de anotações de Montaigne e outros membros da família.
Cada data do ano tem sua própria página, associando um resumo impresso
de acontecimentos históricos a uma área em branco para os comentários a
serem adicionados ano a ano. Montaigne usou o seu Beuther para registrar
nascimentos, viagens e visitas notáveis ao longo da vida. Manteve-se fiel ao
registro, mas com certa tendência a errar nas datas, nas idades e em outras
informações carentes de precisão.
Não obstante as queixas da mulher, Pierre aparentemente adorava o
trabalho duro, particularmente o que dedicava às melhorias da propriedade.
Talvez o que a irritasse fosse sua preferência por investir nesses
aperfeiçoamentos e não na compra de novas propriedades, além do hábito
de não levar as coisas até o fim. O fato de Pierre ter abandonado a ideia do
balcão de anúncios pode ter sido mais característico do seu comportamento
do que parece. À morte de Pierre, Montaigne herdou muitas tarefas
deixadas pela metade na propriedade, sentindo-se no dever de levá-las a
termo, o que no fim nunca chegou a fazer. Trabalho que está parado ainda
na organização do canteiro de obras é bem irritante: talvez a inércia fosse a
maneira encontrada por Montaigne para lidar com isto, assim como a
exasperação era a de Antoinette.
Certas iniciativas sem conclusão podem ter sido um indício de que a
energia de Pierre estava em declínio, pois a partir dos 66 anos ele foi
acometido de debilitantes ataques de pedras nos rins. Nos últimos anos de
vida, Montaigne com frequência o viu se contorcendo de dores. Ele jamais
esqueceria o choque que foi presenciar o primeiro desses ataques, que
atingiu Pierre inesperadamente, deixando-o inconsciente de tanta dor. Ao
desmaiar, ele caiu nos braços do filho. Foi provavelmente um episódio
semelhante, ou complicações decorrentes de um deles, que finalmente o
levou à morte. Ele morreu em 18 de junho de 1568, aos 74 anos.
A essa altura, Pierre tinha substituído seu primeiro testamento, tão
implicitamente crítico da capacidade do filho, por outro, que atribuía a
Montaigne a missão de cuidar dos irmãos menores e fazer para eles as vezes
do pai. “Ele deve tomar o meu lugar e me representar diante deles”,
escreveu. Montaigne efetivamente tomou o lugar do pai, e nem sempre
achou fácil ocupá-lo.
Em Os ensaios, ele aparece como uma espécie de negativo de Pierre. Um
elogio ao pai muitas vezes vem seguido da afirmação de que ele próprio
seria completamente diferente. Depois de relatar como Pierre gostava de
promover melhorias na propriedade, Montaigne nos apresenta uma imagem
quase comicamente exagerada de sua própria falta de habilidade ou mesmo
interesse nesse tipo de coisa. Qualquer trabalho que fizesse, “rematando
algum canto numa velha parede e consertando uma edificação malfeita”,
seria antes em homenagem a Pierre do que para sua própria satisfação,
explicava. Como viria a advertir o filósofo novecentista Friedrich
Nietzsche, “não se deve tentar superar o próprio pai em matéria de
diligência, para não ficar doente”. De maneira geral, Montaigne
efetivamente não tentou, preservando assim a própria sanidade.
Por mais inadequado que se sentisse nas habilidades práticas da vida, ele
sabia da vantagem que levava em matéria de literatura e cultura. A
limitação do conhecimento livresco de Pierre se contrapunha a seu amor
pelos livros. Na visão de Montaigne, o fato de o pai transformar os livros
em objeto de culto era bem característico de sua geração: ele se empenhava
em fazer contato com os autores, “recebendo-os em casa como seres
sagrados” e “bebendo seus ditos e sentenças como se fossem oráculos”.
Mas não demonstrava grande compreensão crítica. Tudo bem, parece dizer
Montaigne, Pierre podia ser capaz de rodopiar sobre uma mesa com seu
másculo polegar, mas em questões intelectuais era uma negação. Adorava
os livros sem entendê-los. Seu filho tentaria sempre fazer o contrário.
Montaigne estava certo ao considerar que se tratava de uma
característica dos contemporâneos de Pierre. Os nobres franceses do início
do século XVI apreciavam tudo que fosse brilhante e italianizante,
procurando se distanciar da atitude ostentada por seus antecessores de
desafiadora repulsa à erudição. O que Montaigne se esqueceu de observar
foi que ele próprio não era menos típico da sua época ao rejeitar o fetiche
dos livros. Os pais cobriam os filhos de literatura e história, faziam-nos
desenvolver o pensamento crítico e os ensinavam a girar em torno das
filosofias clássicas como bolas de malabarismo. E os filhos só sabiam
agradecer descartando tudo isso como coisas sem valor e assumindo uma
atitude de superioridade. Alguns chegaram a tentar reviver a antiga tradição
anti-intelectual, como se fosse uma radicalização nunca antes imaginada.
Havia desencanto e amargura na geração de Montaigne, assim como uma
nova e rebelde criatividade. Se eles se mostravam descrentes, não é difícil
entender por quê: tinham de assistir aos ideais que guiaram sua educação
serem transformados em uma piada de mau gosto. A Reforma, exaltada
inicialmente por certos pensadores como uma lufada de ar fresco benéfica
até para a própria Igreja, transformou-se numa guerra, ameaçando levar a
sociedade civilizada à ruína. Os princípios renascentistas da beleza, do
equilíbrio, da clareza e da inteligência dissolveram-se em violência,
crueldade e em uma teologia extremista. O meio século em que viveu
Montaigne foi tão desastroso para a França que ela precisaria de outro meio
século para se recuperar — e sob certos aspectos nunca se recuperou, pois a
turbulência do fim do século XVI impediu a França de construir um grande
império no Novo Mundo, como os da Inglaterra e da Espanha, e fez com
que se mantivesse voltada sobre si mesma. Na época da morte de
Montaigne, a França estava em situação economicamente frágil, devastada
pelas doenças, a fome e a desordem. Não surpreende, assim, que os jovens
nobres da sua geração se tornassem misantropos de requintada cultura.
Montaigne trazia em si um pouco dessa tendência anti-intelectual. Ele
cresceu acreditando que a única esperança para a humanidade estava na
simplicidade e na ignorância dos camponeses. Eram eles os verdadeiros
filósofos do mundo moderno, herdeiros de sábios clássicos como Sêneca e
Sócrates. Só eles sabiam viver, precisamente porque não sabiam muito a
respeito de mais nada. Foi a esse ponto que ele retornou ao culto da
ignorância: uma verdadeira bofetada no rosto de Pierre.
Mas nada pode acontecer exatamente da mesma forma uma segunda vez.
E ninguém podia ser menos parecido com os nobres medievais do que
Montaigne, com seus ensaios e experimentações, e o remate de tudo
que escrevia com codas ambivalentes. Seu jeito de acrescentar “embora não
tenha certeza”, implícita ou explicitamente, a quase todos os pensamentos
que lhe ocorriam o distancia, e muito, da maneira antiga. No fim das contas,
os ideais do pai sobreviveram nele, mas em forma mutante: abrandados,
ensombrecidos e totalmente desprovidos de qualquer certeza.
A EXPERIÊNCIA
Assim foi que meu pai e minha mãe aprenderam latim o suficiente
para entendê-lo, capacitando-se a usá-lo quando necessário, da
mesma forma que os criados mais ligados ao meu atendimento. De
maneira geral, de tal modo nos latinizamos que a coisa se espraiou em
todas as direções pelas aldeias, onde subsistem vários nomes latinos
de artesãos e ferramentas, que se firmaram pelo uso constante.
Quanto a mim, só depois dos seis anos o francês ou o dialeto do
Périgord deixaria de ser algo tão ininteligível quanto o árabe.
Desse modo, “sem meios artificiais, sem um livro, sem gramática nem
regras, sem chicote nem lágrimas”, Montaigne aprendeu um latim tão bom
quanto o falado pelo tutor, e com uma fluência mais natural que a que
estaria ao alcance de Horst. Em posteriores contatos com outros
professores, eles haveriam de elogiá-lo por um latim ao mesmo tempo
tecnicamente perfeito e pragmático.
Por que o teria feito Pierre? Este é um daqueles momentos em que a
defasagem de meio milênio entre nós e o nosso tema subitamente se abre
num precipício aos nossos pés. Quase todo mundo hoje em dia acharia um
absurdo separar os pais de um filho por causa de uma língua morta. No
Renascimento, todavia, considerava-se que o objetivo a alcançar justificava
o sacrifício. O domínio de um latim belo e gramaticamente correto era a
meta mais alta de uma educação humanista: ele abria as portas do mundo
antigo — considerado a fonte de toda a sabedoria humana — e também de
boa parte da cultura moderna, já que a maioria dos eruditos continuava
escrevendo em latim. Representava também o início de uma bela carreira: o
latim era essencial no direito e no serviço público. A língua representava
um atributo de valor quase mágico para qualquer um que a falasse. Quem
falava bem devia ser capaz de pensar bem. Pierre queria atribuir ao filho a
maior vantagem possível: um elo ao mesmo tempo com o paraíso perdido
da antiguidade e com o sucesso pessoal no futuro.
A maneira como Pierre quis que Montaigne aprendesse o latim também
exemplificava os ideais da época. Em sua maioria, os meninos aprendiam
latim com muito esforço na escola, mas não era o que acontecia entre os
romanos: eles falavam latim com a mesma naturalidade com que
respiravam. Por precisarem aprender a língua artificialmente é que os
modernos não podiam se equiparar aos antigos em sabedoria ou grandeza
d’alma — ou pelo menos era o que rezava a teoria.
A experiência estava longe de ser cruel, pelo menos sob os aspectos mais
óbvios. As novas teorias educacionais enfatizavam não só a necessidade de
que o ensino fosse prazeroso, mas também que a única motivação
necessária para as crianças era seu desejo inato de aprender. Quando já
estava um pouco mais crescido, Montaigne também aprenderia grego nesse
mesmo espírito de diversão. “Nós jogávamos nossas conjugações para lá e
para cá”, recordaria, “como quem aprende aritmética e geometria com jogos
como de damas e de xadrez”. Seu grego não se fixou: ele reconheceria mais
tarde que tinha pouco conhecimento da língua. De maneira geral, todavia,
essa abordagem hedonista da educação efetivamente funcionou para ele.
Tendo-se orientado no início da vida apenas por sua própria curiosidade, ele
se tornou um adulto de espírito independente, seguindo em tudo o próprio
caminho, em vez de se curvar ao dever e à disciplina — um resultado de
alcance talvez ainda maior que o buscado pelo pai.
Esse princípio da naturalidade também regulava outros aspectos do
início da vida de Montaigne. Considerava-se que “o tenro cérebro das
crianças pode ser perturbado se elas forem acordadas de manhã com um
susto”, de modo que Pierre todo dia tratava de tirar o filho da cama como
quem encantasse uma cobra, ao som plangente de um alaúde ou algum
outro instrumento musical. Os castigos corporais eram praticamente
desconhecidos para ele; em toda a infância, só duas vezes foi golpeado com
uma vara e, ainda assim, com grande moderação. Era uma educação de
“sabedoria e tato”.
Pierre tirava suas ideias de seus queridos amigos eruditos, e talvez
também de pessoas que encontrara na Itália, embora o principal ideólogo ao
qual possamos atribuir essa abordagem fosse um holandês, Erasmo de
Roterdã, que escrevera sobre temas educacionais durante sua permanência
na Itália, duas décadas antes. Montaigne escreveu que o esquema se
originara no empenho do pai de proceder a “todas as investigações de que
um homem é capaz, entre homens de saber e entendimento”. De forma bem
característica, tratando-se de Pierre, era uma concepção ao mesmo tempo
erudita e caprichosa. Ela certamente trazia a marca do pai, e não de
Antoinette, e seria muito interessante saber o que ela pensava do projeto. Se
o período de amamentação de Montaigne entre os camponeses já o havia
afastado dela, essa etapa de sua educação aumentava ainda mais a distância.
Eles agora viviam sob o mesmo teto, mas do ponto de vista linguístico e
cultural era como se estivessem em planetas diferentes. É improvável
que ela se tenha tornado fluente em latim, embora Montaigne afirme que ela
aprendeu um pouco por causa dele. Segundo ele, o preparo de Pierre
tampouco passou de um nível rudimentar. Se a experiência foi efetivamente
tão rigorosa quanto dá a entender o seu relato (o que é uma grande
incógnita), os pais só podiam se comunicar com o filho de maneira
pomposa e distante. Nem mesmo Horst seria capaz de lhe falar de forma
plenamente espontânea, por mais profundo que fosse o seu conhecimento.
A tal “naturalidade” ia por água abaixo. Cabe suspeitar — e esperar — que
as regras fossem desrespeitadas de vez em quando. Mas Montaigne não faz
qualquer menção nesse sentido. E aparentemente considera que a
experiência foi um grande êxito.
Em termos de transformá-lo num autêntico latinista, o empreendimento
deu frutos nesses primeiros anos, mas as sementes não germinaram muito
além. No fim das contas, com a falta de prática, ele acabou num nível
equivalente ao de qualquer outro jovem nobre de boa formação. Mas a
língua latina estava profundamente assentada nele. Décadas depois, quando
o pai desmaiou de dor numa crise de pedra nos rins, Montaigne soltou uma
exclamação em latim ao ampará-lo nos braços.
Mais duradouros foram os efeitos da educação de Montaigne em sua
personalidade. Como costuma acontecer com tantas experiências dos
primeiros anos de vida, ela o beneficiou exatamente nas mesmas áreas em
que o prejudicou, destacando-o do ambiente doméstico e do mundo
contemporâneo. Isto lhe proporcionou um espírito independente, mas pode
tê-lo inclinado a certo desapego nos relacionamentos. Direcionou-o para
grandes expectativas, já que ele cresceu na companhia dos maiores
escritores da antiguidade, e não apenas dos franceses provincianos da
vizinhança. Mas ao mesmo tempo lhe tirou certas ambições mais
convencionais, levando-o a questionar tudo a que os outros aspiravam. O
jovem Montaigne era diferente. Não precisava competir; mal precisava se
esforçar. Cresceu tolhido por alguns dos mais estranhos limites jamais
impostos a uma criança, e ao mesmo tempo desfrutava de liberdade quase
ilimitada. Era um mundo em si mesmo.
No fim, ele desenvolveu bom domínio do francês, mas não no estilo
contido e imaculado que os séculos posteriores gostavam de ver cultivado
por seus escritores. Escrevia de maneira idiossincrática, e houve quem o
acusasse de parecer um rústico indisciplinado. Seja como for, escolheu
como sua língua o francês, e não o latim. Em Os ensaios, explica este fato
de maneira estranha. Não se podia esperar que o francês perdurasse tanto
quanto as línguas clássicas, dizia; seus escritos, assim, estavam condenados
à efemeridade, e ele poderia escrever da maneira como bem quisesse, sem
se preocupar com sua reputação. O fato de a língua francesa não estar
congelada numa rígida perfeição parecia-lhe atraente, em princípio: se ela
tinha defeitos, haveria menos pressão para que fosse usada de maneira
impecável.
Montaigne não costumava gostar de esquemas idealistas, mas neste caso
aprovou a experiência do pai. Quando veio por sua vez a escrever sobre
temas de educação, suas ideias pareciam uma versão mais moderada das
ideias de Pierre — que eram radicais demais para efetivamente interessar a
outra pessoa. O escritor montaignesco contemporâneo Tabourot des
Accords chegou a sugerir que um grupo de cavalheiros juntasse recursos
para criar os filhos numa espécie de comuna latina, já que era muito difícil
fazê-lo isoladamente, mas não temos notícia de que isto se tenha
concretizado.
Aspectos menos estranhos dessa educação quinhentista “centrada na
criança” foram surgindo ao longo dos anos, até o momento presente. No
século XVIII, Jean-Jacques Rousseau transformou num verdadeiro culto a
educação infantil em ambiente natural, tomando algumas de suas ideias de
empréstimo a Montaigne, especialmente do ensaio atipicamente prescritivo
que ele escreveu sobre educação.
Ele não podia deixar de ser prescritivo, pois o ensaio “Da educação” foi
de certa maneira encomendado por uma vizinha, Diane de Foix, condessa
de Gurson, que estava grávida e queria que Montaigne opinasse sobre a
melhor forma de introduzir seu filho à vida (presumindo que fosse um
menino). As recomendações de Montaigne demonstram o quanto estava
satisfeito com suas experiências de infância. Para começar, dizia, ela teria
de conter seus instintos maternos e convidar um estranho a desempenhar o
papel de mentor do filho: os pais estão por demais presos às emoções. Não
conseguem se eximir da preocupação com a possibilidade de que o filho
apanhe um resfriado na chuva, caia do cavalo ou se corte na esgrima. Um
tutor pode ser mais firme. Por outro lado, não deve haver espaço para a
crueldade. O aprendizado deve ser prazeroso, e as crianças precisam crescer
imaginando a sabedoria com um sorriso, não com expressão assustadora ou
carrancuda.
Montaigne critica duramente os métodos brutais da maioria das escolas.
“Fora com a violência e a coação!” Se alguém entra numa escola durante as
aulas, diz ele, “ouve apenas gritos, seja das crianças torturadas ou dos
professores transidos de raiva”. Tudo isto serve apenas para alienar as
crianças do aprendizado pelo resto de suas vidas.
Muitas vezes, nem é preciso usar livros. Qualquer um aprende a dançar,
dançando; a tocar alaúde, tocando alaúde. O mesmo se aplica ao
pensamento e até à vida. Toda experiência pode ser uma oportunidade de
aprender: “a travessura de um pajem, o comentário errôneo de um criado,
uma observação à mesa”. A criança deve aprender a questionar tudo, a
“passar tudo por um crivo, sem nada alojar na mente por simples autoridade
e confiança”. Viajar é útil, assim como socializar, pois desse modo a criança
aprende a ser aberta aos outros e a se adaptar a qualquer um com quem
venha a conviver. As excentricidades devem ser descartadas desde cedo,
pois dificultam o convívio com os outros. “Vi homens fugirem com mais
horror do cheiro das maçãs que do fogo de arcabuzes, outros se assustarem
com um camundongo, e outros ainda vomitarem à simples visão de um
creme ou à queda de um colchão de plumas.” Tudo isto impede bons
relacionamentos e o bem viver. E pode ser evitado, pois os jovens são
maleáveis.
Ou pelo menos o são até certo ponto. Montaigne logo muda de discurso.
O que quer que façamos, diz, não podemos realmente mudar as disposições
inatas. Podemos orientá-las ou treiná-las, mas não nos livrar delas. Em
outro ensaio, escreveu ele: “Não existe ninguém que, se ouvir a si mesmo,
deixe de descobrir em si um padrão que lhe é próprio, um padrão
dominante, que milita contra a educação.”
Pierre, até onde se imagina, tinha uma visão menos fatalista da natureza
humana, pois considerava que o pequeno Micheau efetivamente podia ser
moldado, e que valia a pena fazer a experiência. Com sua habitual atitude
confiante, ele tratou de moldar e desenvolver o filho exatamente como
moldava e desenvolvia sua propriedade.
Infelizmente, tal como acontecera com outros projetos, Pierre deixou a
tarefa por concluir, ou pelo menos era o que acreditava Montaigne. Por
volta dos 6 anos de idade, o menino foi repentinamente removido de sua
estufa nada convencional e mandado para a escola, como qualquer outra
criança. Pelo resto da vida, ele permaneceu convencido de que isso
acontecera por culpa sua, de que sua teimosia — seu “padrão dominante”
— houvesse levado o pai a desistir. Ou quem sabe Pierre tivesse apenas
cedido às convenções, agora que seus conselheiros iniciais já não estavam
por perto. Parece mais provável que Pierre desde sempre tivesse pretendido
enviar Micheau à escola a certa altura. Sem compreender o plano,
Montaigne via nisso uma crítica a si mesmo que provavelmente não existia.
Toda essa progressão em diferentes etapas, da família camponesa à escola,
passando pelos estudos de latim, configurava uma espécie de receita para
produzir o perfeito cavalheiro, de espírito independente mas capaz de se
adaptar à sociedade quando necessário. Assim foi que, em 1539, Montaigne
juntou-se a outros meninos de sua idade no Collège de Guyenne, em
Bordeaux.
Lá ele estudaria durante uma década, até pelo menos 1548, e em certa
medida se adaptaria, mas inicialmente foi um severo choque para o seu
sistema pessoal. Para começar, ele tinha de se habituar à vida urbana, depois
da liberdade da vida de menino no campo. Bordeaux ficava a mais de 60
quilômetros de sua casa, num percurso de várias horas, mesmo em montaria
rápida. A viagem era tornada ainda mais demorada pela necessidade de
atravessar o Dordonha: uma barca recolhia passageiros em vinhedos e
suaves colinas verdejantes, deixando-os no coração do bairro comercial de
Bordeaux — um mundo muito diferente.
Murada e claustrofóbica, amontoada ao redor do rio, a Bordeaux do
século XVI nada tinha a ver com a cidade de hoje. Suas velhas ruas foram
varridas do mapa nos séculos XVIII e XIX, sendo substituídas por
bulevares e grandes prédios de contornos suaves que hoje lhe conferem um
ar ligeiramente abstrato. Na época de Montaigne, ela não tinha nada de
suave. Era uma cidade populosa, com cerca de 25 mil habitantes, e muito
agitada. Pelo rio passava intensa navegação. Às suas margens havia
equipamentos para descarga, sobretudo de vinho, além de uma forte mistura
aromática de peixe em conserva, sal e madeira.
O clima mudava ao se chegar ao Collège de Guyenne, fundado numa
região tranquila da cidade, distante do centro comercial, e cercado de
olmos. Era um excelente colégio, embora Montaigne falasse mal a respeito.
Seu currículo e seus métodos parecem formidáveis à sensibilidade moderna.
Tudo girava em torno do estudo maquinal do latim, a única matéria em que
Montaigne desfrutava de vantagem tão grande que os professores
provavelmente ficaram encantados. Tanto os professores quanto os alunos
deviam conversar em latim. Tal como na casa de Montaigne, a comunicação
verbal na escola era canhestra e pomposa — mas a semelhança parava por
aí. Nela não havia música suave; tampouco havia qualquer ênfase no prazer
e, o que era mais chocante, ninguém partia do princípio de que o pequeno
Micheau era o centro do universo.
Pelo contrário, ele agora tinha de se adaptar aos demais. As aulas
começavam bem cedo pela manhã, com a minuciosa análise de exemplos
literários, geralmente de escritores como Cícero, com muito poucas chances
de atender ao gosto de leitores jovens. À tarde, eles tinham aulas de
gramática, sem a utilização de exemplos. À noite, havia leitura coletiva de
textos, com análises ditadas pelo professor, devendo ser decoradas pelos
meninos e recitadas caso fossem solicitados a fazê-lo.
Inicialmente, o domínio do latim rapidamente fez com que Montaigne
fosse promovido a classes adiantadas para sua faixa etária. Mas a má
influência de seus colegas menos privilegiados foi aos poucos minando seu
fácil domínio da língua, de tal maneira que — segundo afirmaria — deixou
a escola sabendo menos que ao chegar.
Na verdade, a filosofia do Collège era relativamente ousada e aberta, e
Montaigne se divertia mais com certos aspectos da vida escolar do que
estaria disposto a admitir. Nas turmas de alunos mais velhos, havia
competições em matéria de oratória e argumentação, tudo, naturalmente, em
latim, dando-se menos importância ao que era dito do que à maneira de
dizê-lo. A partir delas, Montaigne desenvolveu habilidades retóricas e uma
capacidade de pensamento crítico de que se valeria por toda a vida.
Também foi provavelmente nelas que ele entrou em contato pela primeira
vez com a ideia de recorrer a “cadernos de lugares-comuns”, para a
anotação de trechos escolhidos na leitura, estabelecendo entre eles uma
justaposição criativa. Mais tarde, na adolescência, Montaigne estudou
matérias mais interessantes, entre elas filosofia — infelizmente, não do tipo
de que gostava, tratando da questão de como viver, mas sobretudo lógica e
metafísica aristotélicas. Também havia momentos mais leves. Um novo
professor, Marc-Antoine Muret, escrevia e dirigia peças; Montaigne foi o
protagonista de uma delas. Revelou então um talento natural para o palco,
evidenciando (segundo escreveu) uma inesperada “segurança da expressão
e flexibilidade da voz e do gesto”.
Tudo isto ocorreu num período difícil para o Collège. Em 1547, o
diretor, o progressista André Gouvéa, foi obrigado a se afastar pelas facções
políticas conservadoras. Partiu para Portugal, levando os melhores
professores. No ano seguinte, revoltas se sucederam até mesmo em
Bordeaux: eram as rebeliões contra o imposto do sal, que tanto trabalho
dariam ao pai de Montaigne durante seu mandato como prefeito. O sudoeste
do país era tradicionalmente isento desse imposto. Agora, de uma hora para
outra, o novo rei, Henrique II, tentava impô-lo, com resultados incendiários.
Multidões de revoltosos se formaram para protestar, e durante cinco dias,
de 17 a 22 de agosto de 1548, percorreram as ruas tocando fogo nas
residências de cobradores de impostos. Havia quem atacasse as casas de
qualquer um que parecesse rico, até que a desordem ameaçou se
transformar numa generalizada revolta camponesa. Alguns cobradores de
impostos foram mortos, tendo seus corpos arrastados pelas ruas e cobertos
de sal, para deixar bem clara a mensagem. Num dos incidentes mais graves,
Tristan de Moneins, comandante da cidade — e portanto representante do
rei —, foi linchado. Ele havia se fechado na sólida fortaleza real da cidade,
o Château Trompette, mas uma multidão se formou em frente, desafiando-o
a sair. Talvez pensando que fosse conquistar o respeito da turba ao enfrentá-
la, ele se arriscou, mas equivocadamente. Foi espancado até a morte.
Na época com 15 anos, Montaigne estava nas ruas, pois o Collège
suspendera as aulas nesse período de violência. Ele assistiu ao linchamento
de Moneins, cena de que nunca se esqueceria. Ela suscitou em seu espírito,
talvez pela primeira vez, uma questão que permearia seu Os ensaios sob
diferentes formas: a de saber se seria melhor conquistar o respeito de um
inimigo com uma atitude de aberto desafio ou colocar-se à sua mercê, na
esperança de conquistá-lo pela submissão ou por um apelo ao que houvesse
de melhor nele.
Nesse caso, Montaigne considerou que Moneins fracassou por não saber
ao certo o que estava fazendo. Tendo decidido enfrentar a turba, ele perdeu
a autoconfiança e se comportou com deferência, mandando uma mensagem
ambígua. Também subestimou a psicologia distorcida da multidão. Uma
vez mergulhada no frenesi, ela só pode ser aplacada ou reprimida; não se
pode esperar que mostre sentimentos humanos comuns de empatia.
Moneins aparentemente não o sabia, esperando encontrar os mesmos
sentimentos de camaradagem que poderia esperar de um indivíduo.
Não se pode negar que demonstrou coragem ao enfrentar desarmado um
“mar de furiosos”. Mas sua única esperança então seria manter até o fim a
atitude de desafio. Ele
devia ter bebido da taça até o fim, sem abandonar seu papel; ao passo
que o que lhe aconteceu foi que, tendo visto o perigo de perto, perdeu
o sangue-frio e mais uma vez mudou a atitude aplacada e de lisonja
que havia assumido, mostrando-se assustado e deixando transparecer
surpresa e arrependimento na voz e no olhar. Tentando esconder-se,
ele inflamou a multidão, que se abateu sobre ele.
LENDO
O
atento estudo gramatical de Cícero e Horácio quase matou no
nascedouro o interesse de Montaigne pela literatura. Mas alguns
dos professores da escola ajudaram a mantê-lo vivo, sobretudo
eximindo-se de confiscar livros mais interessantes das mãos do menino,
quando o apanhavam lendo-os, e talvez até tratando de lhe encaminhar
alguns outros — fazendo-o com a devida discrição, para que ele pudesse
desfrutar dessas leituras sem deixar de se sentir um rebelde.
Um texto não recomendado que Montaigne descobriu por conta própria
aos 7 ou 8 anos, e que mudou sua vida, foi Metamorfoses de Ovídio. Essa
caótica cornucópia de histórias sobre transformações milagrosas entre
antigos deuses e mortais era o que havia no Renascimento de mais próximo
de uma coletânea de contos de fada. Cheia de horrores e maravilhas, como
os contos de Grimm ou Andersen, e muito diferente dos textos escolares,
era o tipo de leitura capaz de capturar a imaginação de um menino no
século XVI, deixando-o de olhos arregalados e agarrando com avidez o seu
volume.
Em Ovídio, as pessoas mudam. Transformam-se em árvores, animais,
estrelas, corpos aquáticos ou vozes desencarnadas. Trocam de sexo, tornam-
se lobisomens. Uma mulher chamada Scylla entra num lago envenenado e
vê seus próprios membros se transformarem em monstros de formas
caninas dos quais não pode se livrar, pois os monstros são ela mesma. O
caçador Actéon transforma-se num veado, sendo caçado por seus próprios
cães de caça. Ícaro voa tão alto que é queimado pelo sol. Um rei e uma
rainha são transformados em duas montanhas. A ninfa Sálmacis mergulha
num lago em que o belo Hermafroditos se banha e o envolve como uma lula
agarrando sua presa, até que sua carne se dissolve na dele e os dois se
tornam uma só pessoa, metade macho, metade fêmea. Uma vez despertado
o gosto por esse tipo de coisa, Montaigne passou a percorrer outros livros
igualmente cheios de boas histórias: a Eneida, de Virgílio, e depois
Terêncio, Plauto e várias comédias italianas modernas. Desafiando as
práticas escolares, ele aprendeu a associar a leitura ao prazer. Foi a única
coisa positiva que extraiu do período lá passado. (“Mas apesar de tudo
isso”, acrescenta Montaigne, “ainda era a escola”.)
Muitas de suas primeiras descobertas haveriam de acompanhá-lo pelo
resto da vida. Embora o impacto inicial de Metamorfoses acabasse por
ceder, ele encheu Os ensaios de histórias tiradas delas e viria a emular o
estilo de Ovídio, passando de um tema a outro sem qualquer introdução
nem ordem aparente. Virgílio também continuou sendo um de seus autores
favoritos, embora o Montaigne da maturidade se sentisse no direito de
considerar que certos trechos da Eneida poderiam ser “um pouco
melhorados”.
Como gostava de saber o que as pessoas realmente faziam, e não o que
alguém imaginasse que elas podiam fazer, a preferência de Montaigne logo
se transferiu dos poetas para os historiadores e biógrafos. Era nas histórias
da vida real, dizia, que se podia encontrar a natureza humana em toda a sua
complexidade. Tomava-se conhecimento, assim, da “diversidade e verdade”
de um homem, bem como da “variedade das maneiras como ele se forma e
dos acidentes que o ameaçam”. Entre os historiadores, gostava sobretudo de
Tácito, comentando certa vez que acabara de ler sua História de cabo a
rabo, sem interrupção. Ele apreciava a maneira como Tácito tratava dos
acontecimentos da vida pública do ponto de vista dos “comportamentos e
tendências particulares”, tendo-o marcado em especial o fato de o
historiador ter vivido um período “estranho e extremo”, exatamente como
ele. Na verdade, escreveu, referindo-se a Tácito, “muitas vezes se poderia
dizer que somos nós que ele descreve”.
No caso dos biógrafos, Montaigne gostava dos que iam além dos
acontecimentos exteriores de uma vida, tentando reconstituir o mundo
interior de uma pessoa com base nesses dados. Nesse sentido, ninguém
superava seu escritor favorito: o biógrafo grego Plutarco, que viveu
aproximadamente entre 46 e 120 d.C. e que, em seu vasto volume Vidas,
apresentava narrativas sobre gregos e romanos notáveis em pares temáticos.
Plutarco representava para Montaigne o que Montaigne representaria para
muitos leitores de épocas posteriores: um modelo a ser seguido, um
verdadeiro baú de tesouro repleto de ideias, citações e anedotas a serem
saqueadas. “Ele é tão universal e tão pleno que a todo momento, por mais
excêntrico que seja o tema escolhido, consegue se imiscuir no nosso
trabalho.” A verdade desta última afirmação é inegável: várias seções de Os
ensaios são decalques de Plutarco, praticamente inalterados. Ninguém
considerava que se tratasse de plágio: esse tipo de imitação dos grandes
autores era na época considerado uma excelente prática. Além disso,
Montaigne cuidava de alterar sutilmente o que tomava de empréstimo, no
mínimo estabelecendo um contexto diferente e tratando de cercá-lo de
ambivalências.
Ele gostava da maneira como Plutarco compunha seus textos salpicando-
os de imagens, conversas, pessoas, animais e objetos de todos os tipos, em
vez de tentar dispor friamente abstrações e argumentos. Sua escrita está
cheia de coisas, assinalava Montaigne. Quando quer nos dizer que o
segredo de viver bem consiste em extrair o melhor de qualquer situação,
Plutarco conta a história de um homem que atirou uma pedra em seu cão,
errou o alvo, atingiu a sogra e exclamou: “Pensando bem, isso não é nada
mau!” Ou então, querendo nos mostrar que tendemos a esquecer as boas
coisas da vida, obcecados com as ruins, escreve sobre as moscas que
pousam num espelho e deslizam na superfície lisa, incapazes de se fixar até
que deparam com uma área mais áspera. Plutarco não se preocupa com
conclusões, mas lança sementes das quais podem brotar mundos inteiros de
investigação. Aponta as direções que podemos tomar, se quisermos; mas
não nos conduz, cabendo a nós segui-lo ou não.
Montaigne também gostava da forte emanação da personalidade de
Plutarco que podia ser sentida em sua obra: “Creio conhecê-lo até na
própria alma.” Era isto que Montaigne buscava num livro, exatamente o que
seus leitores mais tarde buscariam nos seus: a sensação de fazer contato
com alguém através dos séculos. Lendo Plutarco, ele se esquecia da
defasagem cronológica que os separava — muito maior que a defasagem
entre Montaigne e nós. Não importa, escreveu, se uma pessoa que amamos
está morta há 1.500 anos ou, como seu pai na época, há 18. Ambas estão
igualmente distantes; ambas estão igualmente próximas.
Essa aproximação entre os autores favoritos e o próprio pai diz muito da
maneira como Montaigne lia: ele encarava os livros como se fossem
pessoas, recebendo-os em sua família. O menino rebelde que lia Ovídio
chegaria um dia a reunir uma biblioteca de aproximadamente mil volumes:
um bom tamanho, mas não uma acumulação sem critério. Alguns livros
foram herdados de seu amigo La Boétie; outros foram adquiridos por ele
mesmo. Montaigne colecionava sem se preocupar com qualquer
sistematização nem levar em conta a beleza das encadernações ou a
raridade dos volumes. Jamais seria capaz de repetir o erro do pai, que tinha
os livros ou seus autores como objetos de fetiche. Não poderíamos imaginá-
lo beijando os volumes como se fossem relíquias sagradas, como
costumavam fazer, segundo se diz, Erasmo e o poeta Petrarca, ou vestindo
suas melhores roupas para lê-los, como Maquiavel, que escreveu: “Dispo-
me de minhas roupas sujas e suadas do dia a dia de trabalho e visto túnicas
cortesãs e palacianas, e nessa indumentária mais compenetrada entro nos
palácios dos antigos e sou por eles recebido.” Montaigne teria achado isto
ridículo. Preferia entender-se com os antigos em tom de camaradagem,
chegando às vezes a provocá-los, como nos trechos em que zomba de
Cícero por sua pretensão ou dá a entender que Virgílio podia ter-se
esforçado mais.
Esforço era precisamente o que ele alegava nunca precisar fazer, fosse
lendo ou escrevendo. “Vou percorrendo um livro aqui, outro ali”, escreveu,
“sem ordem nem plano, a partir de fragmentos desconexos”. Podia mostrar-
se decididamente contrariado se achasse que alguém podia suspeitá-lo de
diligente erudição. Certa vez, percebendo-se escrever que os livros
oferecem consolo, tratou rapidamente de acrescentar: “Na verdade,
praticamente não faço deles mais uso do que aqueles que nem os
conhecem.” E foi capaz de começar assim uma frase: “Nós, que pouco
contato temos com os livros...” Sua regra básica em matéria de leitura foi
sempre aquela que aprendera com Ovídio: buscar o prazer. “Se encontro
dificuldades na leitura”, escreveu, “não as fico remoendo; simplesmente as
deixo estar. Nada faço sem alegria”.
Na verdade, ele às vezes trabalhava duro, mas só quando achava que o
trabalho valia a pena. Chegaram até nós anotações manuscritas de
Montaigne em alguns livros de sua coleção, particularmente um exemplar
de Da natureza das coisas, de Lucrécio — com toda a evidência, um texto
que mereceu sua detida atenção. Idiossincrático e intelectualmente ousado,
é precisamente o tipo de livro que poderíamos imaginar absorvendo tanto
Montaigne.
Definir-se como um preguiçoso, percorrendo algumas páginas para em
seguida descartar o livro com um bocejo, era algo que convinha a
Montaigne. Estava de acordo com o clima de diletantismo que queria
evocar em seus textos. Como evidencia o exemplar de Lucrécio, contudo, a
verdade devia ser mais complexa. Mas não resta dúvida de que
efetivamente deixava de lado o que lhe causasse tédio: afinal, assim é que
havia sido educado. Pierre ensinou-lhe que tudo devia ser tratado com
“delicadeza e liberdade, sem pressão nem rigorismo”. Montaigne
transformou a recomendação num princípio de vida.
M
ontaigne tinha vinte e poucos anos quando conheceu Étienne de
La Boétie. Ambos trabalhavam no parlement de Bordeaux e já
haviam ouvido falar bastante um do outro. La Boétie teria de
Montaigne a imagem de um jovem precoce e articulado. Montaigne ouvira
falar de La Boétie como o promissor autor de um polêmico manuscrito que
circulava na região, intitulado De la Servitude volontaire (“Da servidão
voluntária”). Leu-o pela primeira vez no fim da década de 1550, e mais
tarde escreveria sobre sua gratidão a ele, já que o texto o levou a conhecer o
autor. Começava então uma grande amizade, “tão inteira e perfeita que você
dificilmente lerá sobre outra semelhante (...) São tantas as coincidências
necessárias para construir uma amizade assim que se pode considerar muito
se o destino consegue fazê-lo uma vez em espaço de três séculos”.
Embora os dois jovens se sentissem curiosos a respeito um do outro, por
algum motivo demoraram muito tempo para se conhecer. No fim das
contas, o encontro se deu por acaso. Os dois participavam de um banquete
na cidade; começaram a conversar e se viram “tão interessados um pelo
outro, se entendendo tão bem, tão próximos” que imediatamente se
tornaram grandes amigos. Tiveram apenas seis anos, sendo que ficaram
separados cerca de um terço deles, pois às vezes ambos iam trabalhar em
outras cidades. Mas esse curto período foi suficiente para mantê-los tão
unidos como se tivessem uma vida inteira de experiências compartilhadas.
Lendo a respeito de Montaigne e La Boétie, muitas vezes ficamos com a
impressão de que o segundo era muito mais velho e sábio. Na realidade, La
Boétie tinha apenas alguns anos mais que Montaigne. Não era
particularmente vivaz nem bonito, mas ficamos com a impressão de que era
um homem inteligente e afetuoso, com certo ar de seriedade. Ao contrário
de Montaigne, já estava casado quando se conheceram, ocupando uma
posição mais alta no parlement. Já era conhecido pelos colegas como
escritor e funcionário público, ao passo que Montaigne até então escrevera
apenas relatórios jurídicos. La Boétie atraía atenção e inspirava respeito. Se
disséssemos aos conhecidos de ambos em Bordeaux no início da década de
1560 que hoje ele é lembrado sobretudo por ser amigo de Montaigne, e não
o contrário, eles provavelmente não acreditariam.
O ar de maturidade de La Boétie podia decorrer em parte do fato de ter
ficado órfão em tenra idade. Ele nasceu em 1º de novembro de 1530 na
cidade comercial de Sarlat, a cerca de 120 quilômetros da propriedade de
Montaigne, numa bela e alta construção ricamente ornamentada que ainda
hoje está de pé. A casa fora construída cinco anos antes pelo pai de La
Boétie, outro pai hiperativo, que viria a morrer quando o filho tinha 10
anos. Sua mãe também morreu, e assim La Boétie ficou sozinho. Um tio
com o mesmo nome de Étienne de La Boétie tomou-o aos seus cuidados e
aparentemente deu ao menino uma educação segundo as tendências
humanistas da época, ainda que fosse menos radical que a de Montaigne.
Como Montaigne, La Boétie estudou Direito. Por volta de 1554, casou-
se com Marguerite de Carle, uma viúva com duas crianças (uma das quais
viria a se casar com o irmão menor de Montaigne, Thomas de Beauregard).
Em maio do mesmo ano — dois anos antes de Montaigne se transferir para
Périgueux —, La Boétie assumiu um cargo no parlement de Bordeaux. Ele
era provavelmente um dos funcionários de Bordeaux que, ao verem os
colegas de Périgueux chegarem e receberem um salário melhor, os fixaram
com um olhar de reprovação.
La Boétie fez uma excelente carreira no parlement de Bordeaux. À parte
as estranhas acusações de 1563, era de maneira geral o tipo do sujeito que
inspira confiança. Recebia missões delicadas e com frequência era
destacado como negociador — como aconteceria mais tarde com
Montaigne. A essa altura, La Boétie provavelmente era considerado mais
confiável. Tinha o necessário ar de sobriedade e uma melhor atitude em
matéria de trabalho duro e cumprimento do dever. As diferenças eram
significativas, mas os dois se encaixaram como peças de um quebra-cabeça.
Eles compartilhavam coisas importantes: pensamento sutil, paixão por
literatura e filosofia e determinação de levar uma boa vida, como os
escritores clássicos e os heróis militares que admiravam desde a infância.
Tudo isto os aproximava, destacando-os dos colegas de criação menos
imaginosa.
La Boétie é conhecido hoje sobretudo através do olhar de Montaigne, o
Montaigne das décadas de 1570 e 1580, lembrando-se do amigo perdido
com saudade e pesar. Com isto, criou-se uma espécie de bruma nostálgica
através da qual podemos apenas tentar discernir o verdadeiro La Boétie. No
que diz respeito ao Montaigne visto por La Boétie, dispomos de uma
imagem mais clara, pois La Boétie escreveu um soneto deixando bem claro
o que considerava ser necessário a Montaigne para que se aperfeiçoasse.
Em vez de um Montaigne perfeito congelado na memória, o soneto captura
um Montaigne vivo, em processo de transição. E de modo algum parece
claro que esse personagem cheio de falhas conseguirá um dia vencer na
vida, especialmente se continuar desperdiçando sua energia em festas e
flertes com belas mulheres.
Embora La Boétie se dirija a Montaigne como um tio em atitude de
afetuosa desaprovação, seu poema vem permeado de emoções menos
familiares: “Você se ligou a mim, Montaigne, ao mesmo tempo pela força
da natureza e pela virtude, que é o doce atrativo do amor.” Montaigne
escreve no mesmo diapasão em Os ensaios, dizendo que a amizade
apoderou-se de sua vontade e “a levou a mergulhar e se perder na dele”, da
mesma forma como se apoderou da vontade de La Boétie e “a levou a
mergulhar e se perder na minha”. Esse tipo de linguagem não era incomum.
O Renascimento foi um período em que, embora qualquer ideia de
homossexualidade fosse encarada com horror, os homens normalmente se
escreviam como adolescentes apaixonados. Geralmente, estavam menos
apaixonados uns pelos outros do que por um elevado ideal de amizade,
absorvido da literatura grega e da latina. Esse tipo de ligação entre dois
jovens bem-nascidos era o auge da filosofia: eles estudavam juntos,
estavam constantemente na atenção um do outro e se apoiavam no
aperfeiçoamento da arte de viver. Tanto Montaigne quanto La Boétie eram
fascinados por esse modelo, e provavelmente estavam à espreita de uma
oportunidade quando se conheceram. O pouco tempo que passaram juntos
poupou-os de desilusões. Em seu soneto, La Boétie manifestava a esperança
de que seus nomes ficassem lado a lado por toda a eternidade, como os de
outros “amigos famosos” ao longo da história. E foi atendido.
Aparentemente eles encaravam sua amizade em analogia com um
modelo clássico específico: o do filósofo Sócrates e seu bem-apessoado
jovem amigo Alcebíades — ao qual La Boétie abertamente comparava
Montaigne em seu soneto. Montaigne, por sua vez, identificava elementos
socráticos em La Boétie: sua sabedoria, mas também uma qualidade mais
surpreendente, sua feiura. Sócrates ficou famoso pela falta de atributos
físicos, e Montaigne refere significativamente, em La Boétie, uma “feiura
que vestia uma alma muito bonita”. Isso faz eco à comparação feita por
Alcebíades no Simpósio, de Platão, entre Sócrates e as figurinhas “Silenus”
popularmente usadas como caixas para guardar joias e outros objetos
preciosos. Como Sócrates, elas apresentavam exteriormente faces e
imagens grotescas, mas por dentro guardavam tesouros. Montaigne e La
Boétie aparentemente gostavam desses papéis, divertindo-se em
desempenhá-los. Montaigne, pelo menos, se divertia. Imbuído da própria
dignidade filosófica, La Boétie provavelmente teria evitado dar sinais nesse
sentido se o achasse ofensivo.
O feio Sócrates rechaçou os avanços do belo Alcebíades, segundo
Platão, mas não resta dúvida de que sua relação era sensual, com um
componente de flerte. Caberia dizer o mesmo de Montaigne e La Boétie?
Poucos hoje acreditam que eles tivessem uma relação declaradamente
sexual, embora a ideia tenha tido seus adeptos. Mas a intensidade da
linguagem por eles usada causa impressão, não apenas no soneto de La
Boétie, mas nos trechos em que Montaigne descreve sua amizade como um
mistério transcendente, ou um grande roldão de amor que os arrebatou. Seu
apego à moderação em todas as coisas não o socorre quando se trata de La
Boétie, como tampouco seu amor à independência. Escreve ele: “Nossas
almas se misturam e combinam tão completamente que apagam a costura
que as une, e não mais podem encontrá-la.” As próprias palavras parecem
recusar-se a obedecer, como escreveria ele numa anotação à margem:
Se me obrigarem a dizer por que o amava, sinto que é algo que não
pode ser expresso, exceto pela resposta: Porque era ele, porque era eu.
Ele começou a me pedir repetidas vezes, com extremo afeto, que lhe
desse um lugar, de tal maneira que temi estivesse abalado o seu
discernimento. Mesmo quando protestei com toda a delicadeza que
ele estava se deixando levar pela doença e que não eram aquelas as
palavras de um homem em seu perfeito juízo, ele não cedeu,
inicialmente, repetindo com ênfase ainda maior: “Meu irmão, meu
irmão, você está me recusando um lugar?” Isto até que me forçasse a
convencê-lo pela razão e dizer-lhe que, como estava respirando e
falando e tinha um corpo, também tinha consequentemente o seu
lugar. “É verdade, é verdade”, respondeu-me ele, “eu tenho, mas não
é aquele de que preciso; e, no fim, não me resta um ser”.
Nenhum prazer tem sabor para mim sem comunicação. Nem uma só
ideia alegre me ocorre sem que eu fique aborrecido por tê-la
produzido sozinho, sem ter para quem oferecê-la.
Não é uma tolice da minha parte sentir-me fora de sintonia com mil
pessoas das quais me aproxima o acaso, sem as quais não posso viver,
para no entanto aferrar-me a (...) um fantástico desejo de algo que não
posso recapturar?
M
ontaigne costumava demonstrar desdém pelos filósofos
acadêmicos, sendo avesso a seu pedantismo e a suas abstrações.
Mas evidenciava perene fascínio por outra tradição filosófica, a
das grandes escolas pragmáticas que exploravam questões como a maneira
de enfrentar a morte de um amigo, desenvolver a coragem, agir com
correção em situações moralmente delicadas ou aproveitar o melhor
possível a vida. Eram as filosofias para as quais se voltava em épocas de
dor ou medo, e também para orientação no lidar com problemas menores do
dia a dia.
Os três sistemas de pensamento mais conhecidos dessa tendência eram o
estoicismo, o epicurismo e o ceticismo: as filosofias conhecidas como
helenísticas, por terem sua origem na era em que o pensamento e a cultura
gregos se espraiaram até Roma e outras regiões mediterrâneas, a partir do
terceiro século a.C. Havia diferenças de detalhe, mas elas estavam tão
próximas no essencial que quase sempre parecia difícil distingui-las. Como
todo mundo, Montaigne as misturava e combinava de acordo com suas
necessidades.
Todas essas escolas tinham o mesmo objetivo: alcançar um modo de
vida conhecido na língua grega como eudaimonia, termo que costuma ser
traduzido como “felicidade”, “alegria” ou “desabrochar humano”. Isto
queria dizer viver bem em todos os sentidos: desenvolver-se, desfrutar a
vida, ser uma boa pessoa. Elas também consideravam que o melhor
caminho para a eudaimonia era a ataraxia, que poderia ser traduzida como
“imperturbabilidade” ou “estar livre de ansiedade”. Ataraxia significa
equilíbrio: a arte de manter o prumo, sem exultar quando as coisas vão bem
nem mergulhar no desespero quando vão mal. Alcançar esse estado é
exercer controle sobre as emoções, para não ser golpeado e arrastado por
elas como um osso disputado por uma matilha de cães.
Foi sobre a questão de como alcançar essa tranquilidade que os filósofos
começaram a discordar. Cada um deles tinha uma concepção diferente, por
exemplo, do quanto deveríamos ceder ao mundo real. A comunidade
epicurista original, fundada por Epicuro no século IV a.C., pregava o
afastamento da família, para que os seguidores vivessem como membros de
um culto num “jardim” particular. Os céticos preferiam continuar
mergulhados no alvoroço da vida comum, mas assumindo uma atitude
mental radicalmente diferente. Os estoicos se posicionavam mais ou menos
entre as duas opiniões. Os dois autores estoicos mais conhecidos, Sêneca e
Epíteto, escreviam para leitores da elite romana profundamente envolvidos
nas questões de seu tempo e sem possibilidade de se isolar em jardins, mas
desejosos de encontrar oásis de tranquilidade e autodomínio onde quer que
fosse possível.
Os estoicos e os epicuristas também compartilhavam boa parte de suas
respectivas teorias. Consideravam que a capacidade de desfrutar a vida
pode ser comprometida por duas grandes fraquezas: falta de controle das
emoções e tendência a dar muito pouca atenção ao presente. Se essas duas
questões fossem resolvidas — controlar e prestar atenção —, a maioria dos
problemas se resolveria sozinho. O fator de complicação é que as duas
coisas são quase impossíveis de se fazer. Revelam-se tão difíceis que não
podem ser enfrentadas diretamente. É necessário abordá-las de ângulos
laterais, tratando de se induzir habilmente a alcançá-las.
Em função disso, os pensadores estoicos e epicuristas dedicavam-se com
afinco a conceber técnicas e experiências mentais. Por exemplo: imagine
que hoje seja o último dia da sua vida. Você está preparado para enfrentar a
morte? Imagine até que este exato momento – agora! — é o último
momento da sua existência. Como você se sente? Tem arrependimentos?
Existem coisas que gostaria de ter feito de outra forma? Está realmente vivo
neste momento ou se vê consumido pelo pânico, a recusa, o remorso? Esta
experiência abre seus olhos para aquilo que é importante para você,
lembrando que o tempo está constantemente escorrendo pelos seus dedos.
Certos estoicos chegavam a interpretar este “último momento” com
cenário e participação de um elenco de apoio. Sêneca escreveu sobre um
homem saudável chamado Pacúvio, que diariamente promovia para si
mesmo um funeral com todos os detalhes, terminando com um banquete
após o qual era levado da mesa para a cama num esquife, enquanto
convidados e criados cantavam “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida”.
Você pode obter o mesmo efeito de maneira mais simples e barata, apenas
mantendo no espírito a ideia do próprio fim e prestando-lhe toda a atenção.
O autor epicurista Lucrécio sugeria que nos imaginássemos no momento da
morte, contemplando duas possibilidades. Ou vivemos bem, e neste caso
podemos prosseguir satisfeitos, como um convidado que deixa a festa bem-
alimentado. Ou não foi este o caso, e então não faz diferença que estejamos
perdendo a vida, já que não sabíamos o que fazer com ela de qualquer
forma. Pode não ser de grande reconforto no leito de morte, mas se
pensarmos a respeito no meio da vida, teremos ajuda para mudar de
perspectiva.
Essas mudanças de atitude são o objetivo de muitas dessas experiências
mentais. Se você perdeu alguém ou algo precioso, pode tentar atribuir-lhe
um valor diferente imaginando que não chegou a conhecer essa pessoa ou a
ter o objeto. Como poderia sentir falta de algo que nunca teve? Um ponto
de vista diferente gera uma emoção diferente. Plutarco sugeriu essa tática
em uma carta à mulher após a morte da filha de dois anos, aconselhando-a a
pensar na época em que a menina ainda não nascera e fingir que voltavam a
viver esses dias. Não sabemos se lhe serviu de consolo, mas pelo menos
proporcionou-lhe algo em que se concentrar, em vez de ficar nadando num
oceano uniforme de dor. Montaigne e La Boétie conheciam bem essa carta,
pois La Boétie a traduzira para o francês e Montaigne editou a tradução
para publicação. É possível que ela viesse ao espírito de Montaigne toda
vez que morria um de seus filhos, assim como no momento da perda de La
Boétie. A amizade tivera duração tão breve que não seria difícil recordar
um período anterior a ela e resgatar a despreocupação dos tempos pré-La
Boétie.
Esses truques da imaginação podem ser usados tanto em situações
mundanas quando nas mais extremas; funcionam até frente a sentimentos
mais brandos de tédio ou depressão. Se você se sente cansado de tudo que
possui, sugere Plutarco, finja que perdeu todas essas coisas e sente
desesperadamente a sua falta. Seja o objeto um prato predileto, um amigo,
uma amante ou a sorte de viver numa época de paz com boa saúde, o
exercício faz com que magicamente o valorizemos. O princípio é o mesmo
quando ficamos pensando na morte: defrontando-nos com a ideia de perder
algo agora, damo-nos conta do seu valor.
A chave disso tudo é cultivar a plena atenção: prosoche, outra expressão
grega fundamental. A atenção plena é o truque por trás de muitos outros
truques. É um chamado a cuidar do mundo interior – e com isto também do
mundo exterior, pois as emoções descontroladas toldam a realidade assim
como as lágrimas obstruem a vista. Aquele que clareia a visão e vive
plenamente consciente do mundo tal como se apresenta, diz Sêneca, nunca
se sentirá entediado com a vida.
Além disso, a pessoa que não passa pelo mundo sonambulicamente tem
liberdade para reagir adequadamente às situações, sem hesitação — como
se respondessem a perguntas feitas à queima-roupa, na formulação de
Epíteto. Um ataque violento, uma briga, a perda de um amigo: são
exigências com que a vida nos defronta, semelhante a um professor
tentando nos apanhar distraídos na aula. Até mesmo um momento de tédio
representa uma pergunta desse tipo. O que quer que aconteça, por mais
imprevisto que seja, devemos estar em condições de reagir de maneira
precisa e adequada. Por isto é que, para Montaigne, aprender a viver
“adequadamente” (à propos) é a “grande e gloriosa obra-prima” da vida
humana.
Os estoicos e os epicuristas tratavam de alcançar essa meta sobretudo
pelo treino e a meditação. Como um jogador de tênis praticando gestos e
jogadas durante horas, eles se valiam do treinamento para talhar fulcros de
hábito, pelos quais a mente poderia correr com a naturalidade da água no
leito do rio. É uma forma de auto-hipnose. O grande imperador romano
Marco Aurélio, adepto do estoicismo, mantinha cadernos de anotações para
articular as mudanças de perspectiva que quisesse inculcar em si mesmo:
Como é bom, quando temos carne assada ou alimentos assim diante
de nós, trazer à mente que se trata do corpo morto de um peixe, ou o
corpo morto de um pássaro ou porco; e também que o vinho de
Falerno não passa de sumo de uvas, e que a sua túnica de debrum
vermelho é simplesmente pelo de carneiro embebido em sangue de
moluscos! E nas relações sexuais, que não passam de fricção de uma
membrana e emissão de um jorro de fluido.
Em outras ocasiões, ele se imaginava alçando voo até o céu, para olhar
para baixo e constatar a insignificância das preocupações humanas vistas
dessa distância. Sêneca também o fazia: “Contemple mentalmente a vasta
extensão do abismo do tempo e aprecie o universo; em seguida, contraste
nossa assim chamada vida humana com o infinito.”
Outra prática dos estoicos consistia em visualizar o tempo dando voltas
sobre si mesmo, pela eternidade. Sócrates assim nasceria de novo e
ensinaria em Atenas, exatamente como da primeira vez; cada borboleta
bateria as asas da mesma maneira; cada nuvem passaria na mesma
velocidade. Você mesmo voltaria a viver, tendo os mesmos pensamentos e
emoções que antes, sempre e sempre, sem fim. Esta ideia aparentemente
aterrorizante trazia conforto, pois — exatamente como outras ideias —
reduzia a menores proporções os problemas passageiros do indivíduo. Ao
mesmo tempo, como tudo que ele tivesse feito voltaria para assombrá-lo,
tudo importava. Nada era descartado, nada podia ser esquecido. Meditar a
respeito nos obrigava a prestar mais atenção à maneira como conduzíamos a
vida cotidiana. Apresentava um desafio, mas também levava a uma espécie
de aceitação, que os estoicos chamavam de amor fati, ou amor ao destino.
Escrevia o estoico Epíteto:
Não queira que tudo que acontece aconteça da maneira como deseja,
mas deseje que tudo aconteça como efetivamente acontece, e terá uma
vida serena.
Devemos ser capazes de aceitar tudo tal como é, de bom grado, sem
ceder ao vão desejo de alterar as coisas. Montaigne aparentemente achava
fácil este truque, que lhe era natural. “Se eu tivesse de viver de novo”,
escreveu, animadamente, “voltaria a viver como vivi”. Mas a maioria das
pessoas precisava treinar, e aí é que entravam os exercícios mentais.
Sêneca tinha um truque radical para o exercício do amor fati. Ele sofria
de asma, quase chegando a sufocar durante os ataques. Muitas vezes achava
que podia estar para morrer, mas aprendeu a se valer de cada um desses
ataques como uma oportunidade filosófica. Embora a garganta se cerrasse e
os pulmões arfassem em busca de ar, ele tentava acolher o que lhe
acontecia, dizendo “sim”. Eu quero isto, pensava; e, se necessário, aceito
morrer disto. Quando o ataque cedia, ele se sentia mais forte, pois
enfrentara e derrotara o medo.
Os estoicos gostavam particularmente desses impiedosos treinos mentais
das coisas mais temidas. Os epicuristas tendiam mais a desviar a vista das
coisas terríveis, para se concentrar no que fosse positivo. Um estoico
comporta-se como alguém que tencione os músculos da barriga,
convidando um oponente a esmurrá-los. Um epicurista prefere abster-se de
tal convite, simplesmente saindo do caminho quando acontecem coisas
adversas. Se os estoicos são boxeadores, os epicuristas estão mais próximos
dos praticantes das artes marciais orientais.
Na maioria das situações, Montaigne se identificava mais com a
abordagem dos epicuristas e levava suas ideias ainda mais longe. Ele dizia
invejar os malucos, pois sempre estavam mentalmente em algum outro
lugar — numa forma extremada desse desvio de foco epicurista. Que
importava se a visão do mundo de um maluco fosse distorcida, desde que
ele fosse feliz? Montaigne contava à sua maneira relatos clássicos como o
de Licas, que levava normalmente a vida e mantinha um trabalho de forma
bem-sucedida apesar de acreditar que tudo que via e presenciava acontecia
num palco, como uma montagem teatral. Curado dessa ilusão por um
médico, Licas ficou tão infeliz que o processou por privá-lo do prazer de
viver. Da mesma forma, um homem chamado Trasilau alimentava a crença
de que todo navio que entrava ou saía do porto de Pireu, onde morava,
transportava cargas maravilhosas exclusivamente para ele. Sentia-se
permanentemente feliz, pois se rejubilava a cada chegada de um navio ao
porto com segurança, sem se preocupar com o fato de as cargas nunca
aparecerem em sua casa. Infelizmente, seu irmão Crito tratou da ilusão e
tudo se acabou.
Nem todo mundo pode se valer da insanidade, mas todos podem facilitar
a própria vida abaixando um pouco o feixe de luz da razão. No caso da
mágoa, em particular, Montaigne descobriu que não tinha como se
recuperar simplesmente tentando se convencer de que deveria. Até tentou
recorrer a certos truques estoicos, e não tinha medo de centrar a atenção na
morte de La Boétie para escrever seu relato a respeito. Mas na maioria dos
casos achava melhor desviar a atenção para algo completamente diferente:
Ele se valia da mesma técnica para ajudar os outros. Certa vez, tentando
consolar uma mulher que efetivamente sofria (ao contrário de outras viúvas,
dá ele a entender) pela morte do marido, ele contemplou inicialmente os
métodos filosóficos mais habituais: lembrando-lhe que nada se pode ganhar
com lamentações ou tentando convencê-la de que ela podia até nem ter
conhecido o marido. Mas acabou optando por um truque diferente, “muito
suavemente tratando de desviar, pouco a pouco, nossa conversa para temas
próximos, e em seguida mais remotos”. Inicialmente, a viúva não parecia
prestar muita atenção, mas os outros temas acabaram por capturar seu
interesse. Desse modo, sem que ela se desse conta do que acontecia,
escreveu ele, “eu imperceptivelmente a afastei desse pensamento doloroso,
mantendo-a de bom ânimo e perfeitamente apaziguada enquanto me
mantive a seu lado”. Ele reconhecia que o procedimento não permitira ir às
raízes da dor, mas lhe facultara superar uma crise imediata,
presumivelmente dando tempo para o início de uma recuperação natural.
Parte disso derivava das leituras epicuristas de Montaigne, parte, de uma
experiência pessoal acumulada a duras penas. “Fui certa vez atingido por
uma dor assoberbante”, escreveu ele, com toda a evidência pensando em La
Boétie. Ela poderia tê-lo destruído, se se tivesse escorado apenas em sua
força racional para superá-la. Em vez disso, entendendo que precisava de
“um violento esforço para desviar a atenção”, ele conseguiu desenvolver
uma atração por alguém. Montaigne não identifica a pessoa, e o episódio
parece não ter tido maior significado, mas serviu para dar um destino a suas
emoções.
Truques semelhantes podiam funcionar com outra emoção indesejável, a
raiva: Montaigne conseguiu certa vez curar um “jovem príncipe”,
provavelmente Henrique de Navarra (o futuro Henrique IV), de uma
perigosa paixão pela vingança. Ele não convenceu o príncipe em sentido
contrário nem o aconselhou a dar a outra face ou lembrou as trágicas
consequências que poderiam decorrer. Nem sequer mencionou os objetos da
raiva ou da vingança:
MONTAIGNE ESCRAVIZADO
A
o lado do estoicismo e do epicurismo, o ceticismo parece um
elemento discrepante. Os outros dois parecem caminhos óbvios
em direção à tranquilidade e ao “desabrochar humano”, ensinando
a cada um como se preparar para as dificuldades da vida, a prestar atenção,
desenvolver bons hábitos de pensamento e praticar truques terapêuticos em
si mesmo. O ceticismo já parece algo mais limitado. Um cético é
considerado alguém que está sempre em busca de provas, duvidando de
tudo em que as outras pessoas acreditam à primeira vista. Parece que estão
envolvidas apenas questões ligadas ao conhecimento, e não a questão de
saber como viver. No Renascimento, contudo, e no mundo clássico em que
o ceticismo surgiu, juntamente com as outras filosofias pragmáticas, ele era
encarado de maneira diferente.
Como as outras, o ceticismo redundava numa forma de terapia. Era, pelo
menos, o que se poderia dizer do ceticismo pirrônico, originado pelo
filósofo grego Pirro, que morreu aproximadamente em 275 a.C., e
posteriormente desenvolvido com maior rigor por Sexto Empírico no
segundo século da nossa era. (O ceticismo “dogmático” ou “acadêmico”, o
outro tipo dessa filosofia, teve menor alcance.) Podemos ter uma ideia do
estranho efeito do pirronismo sobre as pessoas pela reação de Henri
Estienne, quase contemporâneo de Montaigne e primeiro tradutor francês
de Sexto Empírico, ao ter contato com as Hypotyposes de Sexto.
Trabalhando certo dia em sua biblioteca, mas sentindo-se doente e cansado
para levar adiante as tarefas habituais, ele encontrou um exemplar ao
remexer numa velha caixa de manuscritos. Mal começou a ler e se viu rindo
tão desabridamente que esqueceu o cansaço e recobrou a energia
intelectual. Outro estudioso da época, Gentian Hervet, teve uma experiência
semelhante. Também deparou com Sexto por acaso, na biblioteca de seu
patrão, e viu abrir-se a sua frente todo um mundo de leveza e prazer. A obra
não servia tanto para instruir ou convencer os leitores, mas para fazê-los
sorrir.
Um leitor moderno que percorresse as Hypotyposes talvez se perguntasse
o que havia ali de tão divertido. O livro realmente contém alguns exemplos
curiosos, como tantas vezes acontece em livros de filosofia, mas não parece
assim tão engraçado. Não fica claro por que teria curado Estienne e Hervet
de seu tédio — ou por que teve tanto impacto em Montaigne, que o
consideraria o perfeito antídoto para Raymond Sebond e suas ideias solenes
e pomposas sobre a importância humana.
A chave do truque é a revelação de que nada na vida precisa ser levado a
sério. O pirronismo nem sequer se leva a sério. O ceticismo dogmático
comum declara a impossibilidade do conhecimento, resumindo-se na
observação de Sócrates: “Só sei que nada sei.” O ceticismo pirrônico
começa deste ponto, mas então acrescenta: “E nem mesmo disto estou
certo.” Tendo afirmado seu único princípio filosófico, ele dá a volta num
círculo e se autodevora, deixando para trás apenas uma baforada de
absurdo.
Assim é que os pirrônicos encaram os problemas que a vida lhes venha a
apresentar recorrendo a uma única palavra que resume esta manobra: em
grego, epokhe, que significa “suspensão do julgamento”. Ou, numa versão
diferente exposta em francês pelo próprio Montaigne, je soutiens: “Eu
retenho.” Essa frase vence qualquer inimigo, desmonta-o de tal maneira que
ele se desintegra em átomos diante de nossos olhos.
Isto parece tão pouco animador quanto o conceito estoico ou epicurista
de “indiferença”. Mas, assim como as outras ideias helenísticas, funciona, e
é o que importa. A epokhe funciona quase como os intrigantes koans do
zen-budismo: conceitos lacônicos e enigmáticos ou perguntas sem resposta
como “Qual é o som de uma mão aplaudindo?”. Inicialmente, esses
enunciados causam apenas perplexidade. Mais adiante, abrem caminho para
uma sabedoria que tudo abarca. Esta semelhança entre o pirronismo e o
zen-budismo talvez não seja acidental: Pirro visitou a Pérsia e a Índia com
Alexandre, o Grande, interessando-se pela filosofia oriental — não pelo
zen-budismo, que ainda não existia, mas por certos precursores.
O truque da epokhe nos faz rir e nos sentir melhor porque nos liberta da
necessidade de encontrar uma resposta clara para tudo. Para usar um
exemplo de Alan Bailey, historiador do ceticismo, se alguém afirma que o
número de grãos de areia no Saara é par, exigindo sua opinião a respeito,
sua resposta mais natural poderia ser: “Não tenho uma resposta” ou “Como
poderia saber?”. Ou então, se quiser parecer mais filosófico: “Mantenho
meu julgamento em suspenso” – epokhe. Se outra pessoa disser: “Besteira!
É claro que o número de grãos de areia no Saara é ímpar”, você ainda assim
diria epokhe, no mesmo tom inalterável. Na verdade, você responde com a
afirmação impassível que o próprio Sexto citou como definição de epokhe:
Ou então:
Ou ainda:
Tão imenso era esse sossego que podia apartar totalmente os céticos das
pessoas comuns — muito embora, ao contrário dos epicuristas em seu
Jardim, eles preferissem continuar envolvidos no mundo real. Corriam
histórias extraordinárias sobre o próprio Pirro. Ele era considerado tão
indiferente e tranquilo que não reagia a nada. Caminhando, não mudava de
rumo nem mesmo diante de precipícios ou carroças que se aproximavam,
de modo que os amigos tinham de estar constantemente intervindo para
salvá-lo. E, como recordaria Montaigne, “quando começava a dizer algo,
nunca deixava de ir até o fim, ainda que aquele com quem falava se tivesse
afastado”, pois não queria deixar-se apartar da realidade interna pelas
alterações externas.
Mas outros relatos deixam transparecer que nem mesmo Pirro era capaz
de se manter todo o tempo em perfeita indiferença. Um amigo o
surpreendeu “em exaltada altercação” com a irmã, acusando-o de trair os
próprios princípios. “Mas como? Acaso deve esta tola servir também de
prova das minhas próprias regras?”, retrucou Pirro. Em outra ocasião, sendo
visto a se defender de um cão enfurecido, ele reconheceu: “É muito difícil
despir completamente o homem.”
Montaigne adorava os dois tipos de histórias: as que mostravam Pirro
radicalmente distante dos comportamentos normais e também aquelas em
que parecia simplesmente humano. E, como autêntico cético, ele tentava
suspender o julgamento a respeito de todas elas. Considerava mais
provável, todavia, que Pirro fosse um homem comum como ele mesmo,
apenas tentando enxergar com clareza e não deixar de dar às coisas seu
devido valor.
Ele não queria se transformar numa pedra ou num pedaço de tronco;
queria tornar-se um homem vivo, pensante, dotado de razão,
desfrutando dos prazeres e confortos da natureza, valendo-se de todas
as suas faculdades corporais e espirituais.
ANIMAIS E DEMÔNIOS
Montaigne não é capaz de olhar para sua gata sem vê-la devolvendo o
olhar e imaginar-se enquanto olha para ela. É esse tipo de interação entre
indivíduos que têm defeitos e são mutuamente conscientes de espécies
diferentes que jamais aconteceria com Descartes, que ficava incomodado
com essa noção, assim como outros tantos em seu século.
No caso de Descartes, o problema estava no fato de toda a sua estrutura
filosófica exigir um ponto de absoluta certeza, por ele encontrado numa
consciência clara e sem qualquer comprometimento. Não poderia haver
lugar, aqui, para as ambiguidades com que Montaigne costumava tornar
vagas as fronteiras das coisas, como em suas reflexões sobre um Sócrates
enlouquecido ou furioso ou os sentidos superiores de um cão. As
complicações que deleitavam Montaigne alarmavam Descartes.
Ironicamente, entretanto, sua busca desse ponto de absoluta certeza decorria
em grande medida de sua compreensão da dúvida pirrônica, tal como
transmitida basicamente por Montaigne, o mais eminente pensador
pirrônico do mundo moderno.
A solução de Descartes ocorreu-lhe em novembro de 1619, quando,
passado um período de viagens e observação da diversidade dos costumes
humanos, ele se fechou num gabinete na Alemanha e, aquecido pelo lenho
de um fogão, passou um dia inteiro pensando. Começou com o pressuposto
cético de que nada é real e todas as suas convicções anteriores eram falsas.
Avançou então lentamente, em passos cautelosos, “como um homem que
caminha sozinho no escuro”, substituindo essas falsas crenças por outras,
logicamente justificáveis. Era um progresso puramente mental: enquanto
ele dava um passo após o outro, seu corpo permanecia junto ao fogo, onde
podemos imaginá-lo contemplando as brasas durante horas a fio. A imagem
de Descartes diante do fogão, quem sabe na posição recurvada do
“Pensador” de Rodin, contrasta flagrantemente com a de Montaigne
caminhando para cima e para baixo, apanhando livros nas prateleiras,
distraindo-se, expondo ideias esquisitas aos criados para puxá-las pela
própria memória e tendo suas melhores ideias em animadas discussões em
jantares com vizinhos ou lendo no bosque. Mesmo em seu “retiro”,
Montaigne costumava pensar num ambiente de grande vibração, povoado
de objetos, livros, animais e pessoas. Descartes precisava da imobilidade do
retraimento.
Ao pé do fogão, Descartes gradualmente desfiava os elos de seu
raciocínio, considerando cada um deles firmemente preso ao anterior. Sua
primeira descoberta foi sua própria existência:
Essa epifania mudou sua vida. Ele costurou à roupa o pedaço de papel,
para levá-lo consigo a toda parte, e a partir de então dedicou todo o seu
tempo a escritos teológicos e às anotações que se tornariam seu Pensées.
Mas não dispôs de muito tempo para esse trabalho. Aos 39 anos, morreu de
uma hemorragia cerebral.
Pascal quase nada tinha em comum com Descartes, à parte a obsessão
com o ceticismo. Arrebatadoramente místico, não apreciava a confiança
depositada por Descartes na razão, lastimando a ascendência do que
chamava de “espírito de geometria” sobre a filosofia. Essa aversão à
racionalidade deveria no mínimo conduzi-lo, isto sim, na direção de
Montaigne — e foi o que aconteceu, pois ele estava constantemente lendo
Os ensaios. Mas ele também ficava tão perturbado com a tradição pirrônica,
tal como transmitida por Montaigne, que mal conseguia percorrer uma
página da “Apologia” sem correr ao seu caderno de anotações para verter
violentas ideias a respeito. Pascal elegeu em Montaigne “o grande
adversário”, para tomar de empréstimo uma frase empregada pelo poeta T.
S. Eliot para se referir à relação entre os dois. É um tipo de linguagem
habitualmente reservada ao próprio Satã, mas a alusão procede, pois
Montaigne era para Pascal tormento, sedução e tentação.
Pascal temia o ceticismo pirrônico por estar convencido, ao contrário dos
leitores do século XVI, de que representava uma ameaça à fé religiosa. A
essa altura, a dúvida já não era considerada amiga da Igreja; era coisa do
Diabo, devendo ser combatida. E aí residia o problema, pois, como todos
sempre souberam, era praticamente impossível combater o ceticismo
pirrônico. Qualquer tentativa de enfrentá-lo servia apenas para reforçar sua
tese de que tudo estava sujeito a discussão, ao passo que a atitude de
neutralidade confirmava o ponto de vista de que valia a pena manter em
suspenso os julgamentos.
Num texto breve geralmente integrado a Pensées, dando conta de uma
conversa com Isaac Le Maître de Sacy, diretor da abadia de Port-Royal,
Pascal assim resume o argumento pirrônico de Montaigne, ou a falta dele:
Como não tinha como lutar contra Montaigne, Pascal não conseguia
parar de lê-lo — ou de escrever a seu respeito. Combatia Os ensaios tão de
perto que não conseguia encontrar ângulo para um golpe certeiro. Se La
Boétie pairava sobre as páginas de Montaigne como seu amigo invisível,
Montaigne pairava sobre os textos de Pascal como seu inimigo e coautor
sempre presente. Ao mesmo tempo, Pascal sabia que o verdadeiro drama
transcorria em sua própria alma. Reconhecia ele: “Não é em Montaigne,
mas em mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo.”
Ele também poderia ter lançado um olhar a seu caderno de anotações e
dito “Não foi em mim mesmo, mas em Montaigne, que encontrei tudo que
aqui vejo”, pois costumava transcrever uma grande quantidade de material
quase palavra por palavra.
quando vejo Paris ou Londres, não encontro motivo para cair nesse
desespero de que fala Pascal. Vejo uma cidade que nem de longe se
parece com uma ilha deserta, mas populosa, rica, policiada, onde os
homens se mostram tão felizes quanto permite a natureza. Que
homem sensato se disporia a se enforcar por não saber como encarar
Deus frente a frente? (...) Por que nos fazer sentir enojados de nosso
próprio ser? Nossa existência não é tão miserável quanto somos
levados a crer. Encarar o mundo como uma cela de prisão e todos os
homens como criminosos é uma ideia de fanático.
Aceito de todo coração e com gratidão o que a natureza fez por mim,
e estou satisfeito comigo mesmo e orgulhoso disto. Ofendemos o
grande Doador ao recusar sua dádiva, anulando-a e desfigurando-a.
D
e volta à década de 1560, o Montaigne de carne e osso ainda
enfrentava a mesma pergunta. Valia-se das três tradições
filosóficas helenísticas para levar a vida e se recuperar da perda de
La Boétie. Conseguiu fundir seu ceticismo com a lealdade aos dogmas
católicos — uma combinação que ninguém questionava. Concluiu seu
primeiro grande projeto literário, a tradução de Raymond Sebond, e
trabalhou nas dedicatórias do livro de La Boétie e na carta que publicou
relatando a morte do amigo. Outra mudança ocorreria nesse período: ele se
casou, tornando-se um chefe de família.
Montaigne parece ter exercido atração sobre as mulheres. Pelo menos
em parte ela seria de natureza física: ele faz comentários irônicos sobre as
mulheres que dizem amar os homens apenas pelo intelecto. “Nunca pude
constatar que por nossa beleza intelectual, por mais sábia e madura que
fosse, as mulheres se dispusessem a conceder favores a um corpo
resvalando ainda que só um pouco para o declínio.” Mas é provável que sua
inteligência, seu senso de humor, sua personalidade afável e até sua
tendência a se deixar arrebatar pelas ideias e a falar alto contribuíssem para
o encanto pessoal. E talvez também o ar de inacessibilidade emocional em
que banhava depois da morte de La Boétie, e que configurava um desafio.
Na realidade, quando ele gostava de alguém, essa indiferença desaparecia:
“Eu faço investidas e me atiro com tanta avidez que dificilmente deixo de
me agarrar a algo e de causar impressão onde quer que eu pouse.”
Montaigne gostava de sexo e o praticou muito ao longo da vida. Só na
meia-idade mais avançada é que seu desempenho e seu desejo declinaram,
assim como a atração que exercia — fatos todos eles lastimados em seu
derradeiro Os ensaios. É deprimente ser rejeitado, dizia ele, mas pior ainda
é ser aceito por piedade. E ele detestava sentir-se importuno para alguém
que não o quisesse. “Abomino a ideia de um corpo sendo meu sem afeto.”
Seria como fazer amor com um cadáver, como na história do “egípcio
frenético todo fogoso com a carcaça de uma mulher morta que ele cuidava
de embalsamar e cobrir com a mortalha”. Uma relação sexual deve ter
reciprocidade. “Na verdade, nesse deleite, o prazer que dou estimula mais
docemente minha imaginação que aquele que sinto.”
Mas ele era realista no que dizia respeito ao entusiasmo provocado em
suas amantes. Às vezes a mulher não está realmente presente de coração:
“Às vezes elas se entregam só com metade do traseiro.” Ou quem sabe não
está fantasiando sobre alguém mais: “E se ela comer o seu pão com o
molho de uma imaginação mais agradável?”
Montaigne sabia que as mulheres geralmente sabem mais de sexo do que
supõem os homens, e que na verdade sua imaginação as leva a esperar mais
do que recebem. “No lugar das partes reais, elas colocam, pelo desejo e a
expectativa, outras três vezes maiores.” Ele reprovava a irresponsabilidade
dos grafites: “Os danos que não são causados por essas enormes imagens
espalhadas pelos meninos nos corredores e escadas dos palácios! Por causa
delas, as mulheres adquirem um cruel desprezo por nossa capacidade
natural.” Poderíamos concluir que Montaigne tivesse um pênis pequeno?
Sim, de fato, pois ele confessaria mais adiante no mesmo ensaio que a
natureza o tratara “cruel e injustamente”, acrescentando uma citação
clássica:
Eu advirto (...) minha família a não ficar com raiva à toa e cuidar para
que suas reprimendas cheguem à pessoa de que se queixam, pois
geralmente já estão gritando antes de estar em sua presença e
continuam a gritar por muito tempo depois que ela se foi (...)
Ninguém é assim punido ou afetado, exceto aqueles que tiverem de
suportar o alarido de suas vozes.
Muitas vezes ouvi o autor dizer que, embora se tivesse casado cheio
de amor, ardor e juventude com sua belíssima e adorável mulher,
jamais se relacionara com ela senão com o respeito à honra requerido
no leito conjugal, nada vendo além de suas mãos e o rosto
descobertos, nem sequer seu seio, embora no convívio com outras
mulheres fosse extremamente travesso e imoral.
Montaigne escreveu ter perdido a maioria dos filhos “sem dor, ou pelo
menos sem aflição”, pois eram muito pequenos. As pessoas realmente
tentavam não se apegar demais aos filhos na primeira idade, pois era grande
a probabilidade de que morressem, mas Montaigne parecia
excepcionalmente habilidoso para esse distanciamento. Ele reconhecia
tratar-se de um desgosto que não o atingia profundamente. Chegou a
escrever, em meado da década de 1570, que perdera “dois ou três filhos”,
como se não tivesse certeza do número, embora pudesse tratar-se na
verdade de seu hábito de se mostrar vago em matéria numérica. É bem
parecido com seu jeito de estabelecer o momento de seu acidente de
equitação, que segundo ele ocorreu “durante nossa terceira guerra civil, ou
na segunda (não lembro exatamente qual)”. Na dedicatória à esposa na
tradução de Plutarco, ele se equivoca ainda mais espetacularmente nos
detalhes, escrevendo que sua primeira filha morrera “no segundo ano de
vida”, embora tivesse morrido com dois meses. Provavelmente se tratava
antes de um ato falho no momento da redação que de um erro de memória.
Mas será mesmo? Com Montaigne, ficamos com a sensação de que tudo é
possível.
Havia na vida outras desgraças que ele sabia incapazes de incomodá-lo
tanto quanto deveriam:
Não sei calcular, seja com contadores ou com uma pena; a maioria de
nossas moedas, não conheço; nem sei a diferença entre um grão e
outro, seja no solo ou no celeiro, a menos que seja óbvia, e mal posso
distinguir entre repolhos e alfaces em minha horta. Sequer identifico
os nomes dos principais utensílios domésticos ou os mais elementares
princípios da agricultura, bem conhecidos das crianças. Sei ainda
menos das artes mecânicas, do comércio e das mercadorias, da
diversidade e natureza dos frutos, vinhos e alimentos, ou sobre como
treinar um pássaro ou tratar de um cavalo ou de um cão. E, para
tornar completa minha vergonha, não faz um mês fui surpreendido na
ignorância de que se usa fermento para fazer o pão.
Adquiri um ódio mortal a ser obrigado por outra ou para outra pessoa
que não eu mesmo.
Ele não tinha em mente a gestão da casa ao escrever isso: o tema são
seus compromissos, mais tarde, com o novo rei da França, Henrique IV, que
aparentemente o queria às suas ordens. Montaigne haveria de resistir com
uma determinação beirando a insolência — exatamente sua atitude em
relação a exigências mais domésticas. A preguiça respondia por apenas
metade de sua autoimagem, sendo a outra a liberdade. Ele chegava a ter
fantasias em que se transformava em Hípias de Élis, filósofo sofista grego
do século V a.C., que desenvolveu a capacidade da autossuficiência,
aprendendo a cozinhar, barbear-se e fazer os próprios sapatos e roupas —
tudo de que precisava. Era uma boa ideia. Mas ainda assim: um Montaigne
autossuficiente, costurando o próprio gibão com agulha e linha, cultivando
o jardim, assando o pão, curtindo o couro de suas botas? Até ele mesmo
acharia difícil imaginar cenas do tipo.
Como sempre, ele deixou o tema banhar em contradições e num espírito
de negociação. Se seus protestos de incompetência não bastavam para
eximi-lo de determinada responsabilidade, ele botava a mão na massa, e
talvez mais conscienciosamente do que gostaria de admitir.
Nietzsche escreveu sobre certas “pessoas de espírito livre” que ficam
perfeitamente satisfeitas “com uma posição acanhada ou uma situação
material que atenda estritamente a suas necessidades; pois tratam de viver
de tal maneira que uma grande alteração nas condições econômicas ou
mesmo uma revolução nas estruturas políticas não arruíne simultaneamente
sua vida”. Acrescenta que uma pessoa assim tende a ter “relações
cautelosas e efêmeras”. Isto se parece tanto com o esquema doméstico de
Montaigne que quase nos perguntamos se Nietzsche não o tinha em mente,
especialmente por acrescentar que essa pessoa “deve confiar em que o
gênio da justiça diga algo em favor de seu discípulo e protegido, caso seja
acusado de carência amorosa”.
No caso de Montaigne, a acusação era pronunciada antes de tudo por ele
mesmo. Outros o tomaram como estímulo a repeti-la desde então, em tom
duro, sem o senso de ironia do próprio Montaigne ou de Nietzsche. Mas
nada nos escritos ou no temperamento de Montaigne era tão direto assim.
Por mais que ele nos tente convencer de que é frio e distante, outras
imagens se nos afiguram: Montaigne levantando-se de um salto no
parlement para mergulhar no debate, Montaigne em profunda e apaixonada
conversa com La Boétie, até mesmo Montaigne apostando centavos no jogo
com a mulher e a filha ao pé da lareira. Certas respostas suas à questão de
como viver são de fato gélidas: cuide do que é seu, preserve sua identidade,
afaste-se dos problemas e mantenha um compartimento nos fundos da loja.
Mas outra quase poderia ser considerada o exato oposto. Estamos falando
de...
9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros
A
arte de enxergar as coisas da perspectiva de outra pessoa ou de um
animal pode ser instintiva em alguns, mas também pode ser
cultivada. É o que os romancistas fazem o tempo todo. Enquanto
Leonard Woolf elaborava sua filosofia política, sua mulher, Virginia,
escrevia em seu diário:
Trata-se de uma nação (...) em que não existe qualquer tráfico, nem
conhecimento das letras, nem ciência dos números, nem nome para
designar um magistrado ou a superioridade política, nem hábito de
servidão, riqueza ou pobreza, contratos, heranças, partilhas,
ocupações que não sejam tranquilas, preocupação com relações que
não sejam comuns, nem roupas, agricultura, metais, uso do vinho ou
do trigo. Até palavras que signifiquem mentira, traição, dissimulação,
avareza, inveja, desdém, perdão — nunca ouviram falar.
SELVAGENS NOBRES
Eu conheço os homens. Não sou feito como nenhum que até hoje
tenha conhecido; arrisco-me a crer que não fui feito como qualquer
outro que exista (...) Quanto a saber se a Natureza acertou ou errou ao
quebrar o molde em que fui feito, é algo que ninguém poderá avaliar
antes de me ler.
S
ob muitos aspectos, os leitores do fim do século XVIII e início do
século XIX tinham facilidade de gostar do Montaigne que
inventavam para uso próprio. Além de apreciar seu enaltecimento
dos americanos, eles se identificavam com o espírito aberto que tinha a seu
próprio respeito, sua disposição de explorar as contradições de seu
temperamento, sua indiferença às convenções e o desejo de romper com
hábitos fossilizados. Gostavam do interesse que demonstrava pela
psicologia, especialmente a percepção da coexistência de diferentes
impulsos numa mesma mente. Além disso — e representavam a primeira
geração de leitores a se sentir dessa maneira em número expressivo —,
gostavam do seu estilo, em toda a sua exuberante desordem. Eles
aprovavam a maneira como aparentemente liberava o que quer que lhe
viesse ao espírito a qualquer momento, sem se preocupar em arranjar as
ideias de forma ordeira.
Os leitores da era romântica apreciavam particularmente os sentimentos
intensos de Montaigne a respeito de La Boétie, por se tratar de sua única
manifestação de emoções fortes. O fim trágico da história de amor, com a
morte de La Boétie, a tornava ainda mais bela. A resposta simples de
Montaigne à pergunta sobre por que se amavam — “Porque era ele, porque
era eu” — transformou-se em frase feita, denotando o mistério
transcendente contido em toda forma de atração humana.
Em sua autobiografia, a escritora romântica George Sand conta que na
juventude ficou obcecada com Montaigne e La Boétie, representando um
autêntico protótipo da ligação espiritual que ela ansiava encontrar — e de
fato encontraria, mais tarde, com amigos escritores como Flaubert e Balzac.
O poeta Alphonse de Lamartine tinha um sentimento parecido. Escreveu ele
a respeito de Montaigne, numa carta: “Tudo que nele admiro é a amizade
por La Boétie.” Ele já se valera da frase de Montaigne para descrever seus
próprios sentimentos numa carta anterior ao mesmo amigo: “Porque é você,
porque sou eu.” E adotou o próprio Montaigne como companheiro,
escrevendo sobre “o amigo Montaigne: sim, amigo”.
O teor intenso ou ardoroso dessas novas reações a Montaigne também se
reflete no aumento, nessa época, das peregrinações à sua torre. Os visitantes
eram atraídos à propriedade de Montaigne pela curiosidade, mas uma vez lá
pareciam perder o controle sobre as emoções, entrando em transes
meditativos, sentindo a presença de Montaigne ao seu redor. Não raro
sentiam como se tivessem se transformado nele por alguns momentos.
Muito pouco disso se havia manifestado nos séculos anteriores. Os
descendentes de Montaigne viveram na propriedade até 1811, e durante
quase todo esse tempo ninguém interferiu em suas vidas, fosse quando
transformavam o andar térreo da torre em depósito de batatas ou o quarto
do primeiro andar ora em canil, ora em galinheiro. Isto só mudaria quando o
filete dos primeiros visitantes românticos se transformou num fluxo regular,
até que as batatas e galinhas finalmente deram lugar a uma recriação
organizada do ambiente de trabalho de Montaigne.
Tudo isto parecia óbvio aos românticos. Naturalmente, se alguém se
interessava pelos escritos de Montaigne, apreciaria estar lá pessoalmente,
contemplando de sua janela a paisagem que ele via diariamente ou se
aproximando do lugar onde se sentava para escrever, e quase chegando a
ver suas palavras aparecerem fantasmagoricamente. Ignorando a algazarra
que certamente teria lugar no pátio lá embaixo, e provavelmente também no
quarto dele, o visitante podia imaginar a torre como uma cela monástica
habitada por um Montaigne ermitão. “Apressemo-nos a atravessar a
soleira”, escreveu um dos primeiros visitantes, Charles Compan, referindo-
se à biblioteca da torre:
Não há nada tão belo e legítimo quanto ser um homem de forma boa e
adequada, nem conhecimento tão difícil de adquirir quanto o
conhecimento de como viver esta vida bem e com naturalidade; e a
mais bárbara de nossas doenças é desprezar o nosso ser.
Mas ele sabia, apesar de tudo, que a natureza humana nem sempre se
amolda a essa sabedoria. Ao lado do desejo de ser feliz, de alcançar a paz
emocional e estar no pleno domínio das próprias faculdades, alguma coisa
compele periodicamente as pessoas a destruir as próprias conquistas. É o
que Freud chamava de princípio de thanatos: a pulsão para a morte e o
caos. Ela foi descrita assim, no século XX, pela escritora Rebecca West:
TERROR
C
omo acontecera com acordos de paz anteriores, o Tratado de Saint-
Germain firmado em 1570 desagradou a todos. Os protestantes,
sempre querendo mais, achavam que os termos não iam longe o
suficiente, pois lhes concediam liberdade limitada de culto. Os católicos
consideravam que iam longe demais: estavam preocupados com a
possibilidade de que os protestantes tomassem qualquer concessão como
um estímulo. Eles temiam que os protestantes pressionassem por uma
revolução contra o monarca católico legítimo e dessem início a uma nova
guerra. Estavam certos quanto à ocorrência de outra guerra, mas errados
quanto aos responsáveis por ela.
As tensões continuaram aumentando e atingiram o auge durante as
comemorações organizadas em Paris, em agosto de 1572, para o casamento
dinástico da católica Marguerite de Valois com o protestante Henrique de
Navarra. Os líderes das três principais facções chegaram à cerimônia em
disposição sombria: o rei católico moderado Carlos IX, o almirante Gaspard
de Coligny, chefe protestante radical, e o duque de Guise, extremista
católico. Cada uma das facções temia a outra. Pregadores inflamados
elevavam ainda mais a temperatura emocional entre os parisienses,
exortando-os a se rebelar para impedir o casamento e varrer do mapa os
dirigentes heréticos enquanto era tempo.
O casamento foi celebrado a 18 de agosto, seguindo-se quatro dias de
comemorações oficiais. Muitos certamente deram um suspiro de alívio
quando elas terminaram. Mas no fim da última noite, a 22 de agosto de
1572, alguém deu um tiro de arcabuz no dirigente protestante Coligny, que
deixava a pé o palácio do Louvre de volta a sua casa, e feriu-o num braço.
A notícia do incidente espalhou-se pela cidade. Na manhã seguinte,
hordas de huguenotes acorreram à casa de Coligny, jurando vingança.
Muitos acreditavam (como ainda acredita a maioria dos historiadores) que o
próprio rei estava por trás da tentativa de assassinato, com a cumplicidade
de sua mãe, Catarina de Médici — com o objetivo de sufocar no
nascedouro qualquer possível rebelião protestante, eliminando seu líder. Se
a conclusão for verdadeira, então Carlos cometeu um erro de cálculo. O
atentado enfureceu os protestantes. E o mais arriscado era o fato de deixar
os católicos temerosos. Esperando que os protestantes se rebelassem em
reação ao acontecido, eles uniram forças pela cidade e se prepararam para
se defender. O rei também se sentiu intimidado e deve ter raciocinado que
um líder rebelde morto seria menos perigoso que ferido. Aparentemente
seguindo ordens suas, uma guarda real invadiu a casa de Coligny e concluiu
o trabalho malfeito, matando o ferido em sua cama. Era o início da manhã
de domingo, 24 de agosto: Dia de São Bartolomeu.
Os assassinos decapitaram Coligny e despacharam a cabeça para o
palácio real; ela viria a ser embalsamada e enviada a Roma, para ser
admirada pelo papa. O resto do corpo foi atirado pela janela e desabou na
rua, onde uma multidão de católicos o incendiou e arrastou pelo bairro. O
corpo se desmembrou enquanto pegava fogo, mas partes foram ostentadas e
ainda mais mutiladas por dias seguidos.
A comoção na casa de Coligny causou pânico ainda maior entre os
católicos como também entre os protestantes de Paris. Bandos de católicos
acorreram às ruas, capturando e matando qualquer um que fosse
identificado como protestante e invadindo residências de protestantes —
nas quais muitos dormiam tranquilamente, sem a menor ideia do que
ocorria pela cidade. A multidão os arrastava para fora, cortava-lhes a
garganta ou os esquartejava, para em seguida queimar os corpos ou atirá-los
no rio. A violência atraía multidões cada vez maiores, insuflando novas
atrocidades. Para mencionar apenas um dos incidentes registrados, um
homem chamado Mathurin Lussault foi morto ao cometer o erro de atender
à porta de sua casa; seu filho desceu, atraído pelo barulho, e também foi
esfaqueado. A mulher de Lussault, Françoise, tentou fugir pulando da janela
do primeiro andar para o pátio do vizinho, mas quebrou ambas as pernas. O
vizinho a ajudou, mas os atacantes irromperam no lugar e a arrastaram para
a rua pelos cabelos. Cortaram-lhe as mãos para roubar os braceletes e a
empalaram; mais tarde, jogariam o corpo no rio. Mastigadas por cães, as
mãos ainda podiam ser vistas em frente ao prédio vários dias depois. Cenas
semelhantes ocorriam por toda a cidade, e tantos corpos foram atirados no
Sena que se dizia que suas águas ficaram vermelhas de sangue.
O que quer que Carlos pretendesse com a tentativa inicial de assassinato
— se é que realmente foi o mandante —, dificilmente era essa sua intenção.
Resolveu então ordenar aos soldados que reprimissem a violência, mas era
tarde demais. A matança prosseguiu por quase uma semana em diferentes
bairros de Paris, disseminando-se pelo resto da França. Só em Paris, o
massacre, que ficaria para sempre conhecido pelo nome de São Bartolomeu,
causou a morte de pelo menos 5 mil pessoas. No fim, cerca de 10 mil
haviam sido mortas em todo o país. As cidades eram engolfadas na
violência como barcos de pesca num tornado: Orléans, Lyon, Rouen,
Toulouse, Bordeaux e incontáveis cidades menores.
Foi um furor do tipo que Montaigne detestava até mesmo num campo de
batalha tradicional, só que nesse caso as vítimas eram civis. De modo geral,
eram civis também os assassinos; só em poucos lugares houve
envolvimento de soldados ou oficiais. Bordeaux foi um deles. Nada
aconteceu na cidade até 3 de outubro, mas, quando os incidentes de
violência tiveram início, foram aparentemente organizados e aprovados
pelo prefeito, o fanático católico Charles de Montferrand, que fez uma lista
formal de alvos a serem atacados. Na maioria dos casos, o derramamento de
sangue ocorria de maneira mais caótica, pelas mãos de pessoas que
normalmente se comportariam como cidadãos pacatos. Em Orléans, a
multidão fazia paradas nas tabernas entre uma matança e outra para
comemorar, “acompanhada de cantos, alaúdes e violões”, segundo um
historiador. Certos grupos eram formados sobretudo por mulheres ou
crianças. Os católicos interpretavam a presença destas como sinal de que o
próprio Deus era favorável aos massacres, pois levara até mesmo inocentes
a se envolver. De maneira geral, muitos achavam que, pelo fato de
extrapolarem qualquer escala humana habitual, as matanças deviam ter
aprovação divina. Não resultavam de decisões humanas, sendo mensagens
de Deus para a humanidade, presságios de caos cósmico assim como uma
colheita destruída ou a passagem de um cometa pelo céu. Uma medalha
cunhada em Roma para comemorar os massacres mostrava os huguenotes
sendo abatidos, não por outros mortais, mas por um anjo armado e
irradiando ira sagrada. O novo papa, Gregório XIII, parece ter ficado
satisfeito com os acontecimentos na França. Além da medalha, encomendou
a Giorgio Vasari a pintura de afrescos comemorativos na Sala Regia do
Vaticano. O rei da França também participou de procissões de ação de
graças e mandou cunhar duas medalhas, uma delas representando-o como
Hércules em combate contra a Hidra; na outra, ele aparecia em seu trono
cercado de cadáveres despidos e segurando uma folha de palmeira, para
simbolizar a vitória.
Tendo os huguenotes recobrado forças e mobilizado exércitos para
reagir, a guerra estourou de novo. Ela teria prosseguimento ao longo da
década de 1570, com pausas apenas eventuais. Os acontecimentos de São
Bartolomeu representavam uma linha divisória: depois deles, as guerras
tornaram-se mais anárquicas e de fundo mais fanático. Além das batalhas
habituais, muito sofrimento seria causado por bandos descontrolados de
soldados, mesmo em supostos interlúdios de paz, quando não tinham
comando nem salário. Os camponeses às vezes fugiam, preferindo levar
uma vida selvagem na floresta a esperar nas cidades para serem atacados e
às vezes até torturados pelo simples prazer de torturar. Era o estado natural
a todo vapor. Em 1579, um advogado do interior, Jean La Rouvière,
escreveu ao rei implorando ajuda para os pobres camponeses de sua região
— “homens miseráveis, martirizados e abandonados” que extraíam da terra
o sustento que conseguiam, depois de perder tudo que tinham. Entre os
horrores a que tinha assistido ou de que ouvira falar estavam relatos sobre
homens
HERÓI
Só alguém que tenha vivido numa época que ameace sua vida e essa
substância valiosa, a liberdade individual, por meio de guerra, poder e
ideologias tirânicas — só essa pessoa sabe quanta coragem, quanta
honestidade e determinação são necessárias para preservar o eu
interior numa tal época de insanidade em massa.
Ele teria concordado com Leonard Woolf, quando dizia que a visão de
“eus” interligados sustentada por Montaigne era a essência da civilização.
Era a base sobre a qual um futuro poderia ser construído, uma vez superado
o terror e terminada a guerra — embora Zweig não conseguisse esperar até
lá.
Caberia perguntar se a visão de integridade individual e esperança
política adotada por Montaigne teria hoje a mesma autoridade moral.
Certamente há quem pense assim. Livros foram escritos para apresentar
Montaigne como um herói para o século XXI: o jornalista francês Joseph
Macé-Scaron sustenta, especificamente, que Montaigne deveria ser adotado
como antídoto às novas guerras religiosas. Outros podem considerar que a
última coisa de que precisamos hoje é alguém que nos estimule a relaxar e
nos retirar em nossos mundos privados. As pessoas já passam tempo o
bastante isoladas, em detrimento das responsabilidades cívicas.
Os que tomam Montaigne como herói ou como um companheiro
compassivo argumentariam que ele não preconizava uma abordagem “faça-
o-que-lhe-aprouver” em matéria de deveres sociais. Pelo contrário,
sustentava que a solução para um mundo completamente fora dos eixos era
que cada um tratasse de se colocar nos eixos: aprender “como viver”,
começando pela arte de manter os pés no chão. Pode-se realmente encontrar
uma mensagem de inatividade, indolência e desmotivação em Montaigne, e
provavelmente também uma justificação para nada fazer quando a tirania
assume as rédeas, em vez de resistir a ela. Mas muitas passagens de Os
ensaios parecem sugerir, pelo contrário, que devemos nos comprometer
com o futuro; especificamente, que não devemos dar as costas ao mundo
histórico concreto para ficar sonhando com o paraíso e a transcendência
religiosa. Montaigne fornece todos os estímulos de que poderíamos precisar
para respeitar os outros, para nos eximir de matar a pretexto de agradar a
Deus e resistir à compulsão que periodicamente leva os seres humanos a
destruir tudo ao seu redor e “mandar a vida de volta ao começo”. Como
dizia Flaubert a seus amigos, “Leiam Montaigne (...) Ele os acalmará.”
Mas, como também acrescentava: “Leiam-no para viver.”
13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha
feito
BEST-SELLER BARROCO
A
o longo da década de 1570, com seus episódios alternados de
guerra e paz, Montaigne foi tocando sua vida, assim como seu
livro. Passou boa parte da década escrevendo e retrabalhando os
primeiros ensaios, até que os publicou em 1580 pela gráfica do editor
Simon Millanges, de Bordeaux.
A escolha de Millanges era interessante. Ele se estabelecera na cidade
havia poucos anos — mais ou menos na mesma época em que Montaigne
começara a escrever. Montaigne não teria dificuldade de aceitação entre os
editores parisienses: já tratara com eles antes e o valor de uma obra como
Os ensaios não lhes teria passado despercebido. Mesmo em sua primeira
edição, era uma obra ímpar, que no entanto se encaixava facilmente nos
gêneros já consagrados das miscelâneas clássicas e dos livros de lugares-
comuns. Ele apresentava essa perfeita combinação comercial:
impressionante originalidade e fácil classificação. Mas Montaigne fez
questão de optar pelo editor local, fosse por um relacionamento pessoal ou
por fidelidade à Gasconha.
Esta primeira versão do livro de Montaigne era muito diferente daquela
que hoje conhecemos. Enchia apenas dois volumes razoavelmente
pequenos, e, embora a “Apologia” já parecesse desproporcional, a maioria
dos capítulos era relativamente simples. Não raro oscilavam entre dois
pontos de vista opostos, mas não se espraiavam como turbulentos rios
caudalosos nem se abriam em deltas, como posteriores ensaios. Alguns até
se prendiam à defesa de um aparente ponto de vista. Mas já vinham
permeados da personalidade curiosa, questionadora e inquieta de
Montaigne, com frequência explorando enigmas e idiossincrasias do
comportamento humano. Os leitores da época sabiam reconhecer qualidade
quando a viam, e a obra logo encontrou um público entusiástico.
A primeira edição de Millanges provavelmente era pequena, talvez em
torno de quinhentos ou seiscentos exemplares, e logo se esgotou. Dois anos
depois ele lançou uma nova edição com algumas modificações. Cinco anos
mais tarde, em 1587, esta edição foi revista e novamente publicada, em
Paris, por Jean Richer. Mas desde o início da década de 1580 o livro havia
se transformado na leitura da moda da nobreza francesa. Em 1584, o
bibliógrafo La Croix du Maine considerou Montaigne o único autor
contemporâneo digno de se ombrear com os antigos — apenas quatro anos
depois de sua publicação por uma modesta gráfica de Bordeaux. O próprio
Montaigne escreveu que Os ensaios havia tido um desempenho melhor do
que ele esperava, transformando-se numa espécie de livro de salão, popular
entre as damas: “Uma peça do mobiliário, um artigo para a sala de estar.”
Entre os admiradores da obra estava o próprio Henrique III. Ao visitar
Paris no fim de 1580, Montaigne ofereceu um exemplar ao rei, seguindo
uma prática tradicional. Henrique disse-lhe que tinha gostado do livro, ao
que Montaigne teria respondido: “Meu Senhor, então Vossa Majestade
também gosta de mim” — pois, como sempre afirmou, ele e o livro eram
um só.
Isto, na verdade, deveria ter representado um obstáculo para o sucesso.
Escrevendo tão abertamente sobre suas observações cotidianas e sua vida
interior, Montaigne quebrava um tabu. Não se esperava que alguém
registrasse a si mesmo num livro, apenas aos seus grandes feitos, se é que
os tinha realizado. As poucas autobiografias até então escritas no
Renascimento, como Vita sua, de Benvenuto Cellini, e De vita propria, de
Girolamo Cardano, haviam ficado inéditas em grande parte por esse
motivo. Santo Agostinho escrevera sobre si mesmo, mas como um
exercício espiritual e com a finalidade de documentar sua busca por Deus,
não de comemorar as maravilhas de ser Agostinho.
Montaigne efetivamente comemorava o fato de ser Montaigne. Certos
leitores ficavam incomodados: o erudito clássico Joseph Justus Scaliger
ficou particularmente contrariado com a revelação feita por Montaigne, na
edição de 1588, de que preferia o vinho branco ao tinto. (Na verdade,
Scaliger procedia aqui a uma simplificação. Montaigne nos diz que mudou
sua preferência do tinto para o branco, depois novamente para o tinto, para
acabar voltando ao branco.) Outro estudioso, Pierre Dupuy, perguntava:
“Quem diabos está preocupado em saber do que ele gostava?”
Naturalmente, Pascal e Malebranche também ficaram incomodados:
Malebranche falava de “insolência” e Pascal achava que alguém devia ter
dito a Montaigne que parasse.
Apenas com o advento do Romantismo essa abertura de Montaigne a seu
próprio respeito veio a ser não só apreciada, mas plenamente abraçada. Ela
encantava em especial os leitores do outro lado do canal da Mancha. O
crítico inglês Mark Pattison escreveu em 1856 que o suposto egocentrismo
de Montaigne fazia com que ele ganhasse tanta vivacidade em suas páginas
quanto um personagem em um romance. E Bayle St. John observou que os
autênticos “apreciadores de Montaigne” adoravam sua “tagarelice”
inconsequente, pois ela conferia realismo ao personagem, permitindo que os
leitores se identificassem com ele. O crítico escocês John Sterling
comparava o estilo de Montaigne ao escrever sobre si mesmo com a
tradição mais socialmente aceita das memórias de personalidades públicas,
preocupadas apenas com o tedioso “tumulto barulhento” dos
acontecimentos externos. Montaigne nos oferecia “o homem em si mesmo”,
o “cerne” de sua pessoa. Em Os ensaios, “o interior é o que fica mais
claro”.
Mesmo na versão de 1580, Montaigne mostrava-se fascinado por seu
mundo interior: não foi num tardio capítulo mais aventuroso, mas já na
primeira edição, que ele escreveu:
Volto meu olhar para dentro, fixo-o ali e o mantenho ocupado. Todo
mundo olha para a frente; de minha parte, olho para o meu interior;
preocupo-me apenas comigo mesmo; estou constantemente a me
observar, avalio-me, experimento-me (...) rolo dentro de mim mesmo.
Dos cem membros e faces que cada coisa possui, tomo apenas um, às
vezes apenas para lambê-lo, às vezes para roçar a superfície, às vezes
para espremê-lo até os ossos. Trato de perfurá-lo, não com amplitude,
mas com o máximo de profundidade possível. E quase sempre gosto
de tomá-los de um ponto de vista inabitual.
VIAGENS
O
sucesso da primeira edição de Os ensaios em 1580 deve ter
mudado em Montaigne a maneira de encarar a vida. A
consagração o tirou de sua rotina e talvez lhe tenha dado a
sensação de que chegara o momento de voltar a se envolver com as coisas
do mundo. Embora ele não fale muito a respeito em Os ensaios, pode ter-
lhe ocorrido então que uma interessante carreira diplomática se
descortinava, e que a melhor maneira de iniciá-la seria com o
estabelecimento de contatos internacionais. Ele também estava ansioso por
se distanciar das limitações domésticas da propriedade, que podiam ser
entregues nas mãos perfeitamente capazes de sua mulher. Montaigne
sempre quisera viajar, para descobrir “a perene variedade das formas de
nossa natureza”. Ainda menino, ele sentia uma “sincera curiosidade” em
relação ao mundo — fosse em relação a “um prédio, uma fonte, um
homem, um antigo campo de batalha, o lugar onde César ou Carlos Magno
morreram”: tudo, enfim. Pois agora se imaginava seguindo os passos de
seus heróis clássicos e, ao mesmo tempo, explorando toda a variedade do
mundo atual, no qual podia “polir e lustrar” o cérebro no contato com
estranhos.
Havia ainda outro motivo, nem tão glamoroso, para viajar. Montaigne
herdara do pai certa tendência à formação de pedras nos rins. Tendo visto
Pierre literalmente desmaiar de dor, ele temia essa doença mais que
qualquer outra. Chegando agora aos quarenta e poucos anos, ele teve
oportunidade de descobrir por si próprio como era esse tipo de tortura.
A formação de pedras nos rins se deve ao acúmulo de cálcio e outros
minerais no sistema, criando caroços e cristais que bloqueiam o fluxo da
urina. Muitas vezes eles se fragmentam em cacos pontudos e irregulares.
Sejam inteiros ou fragmentados, eles precisam seguir o seu curso, e nesse
processo causam uma sensação que poderia ser comparada à de ser
retalhado por dentro. Também provocam um mal-estar generalizado na
região dos rins, dores lancinantes no abdômen e na região lombar e às vezes
náusea e febre. Mesmo depois de serem expelidos, o problema não acaba,
pois eles muitas vezes voltam a se manifestar ao longo da vida. Na época de
Montaigne, representavam risco de vida, fosse pelo simples bloqueio ou por
causarem infecção.
Hoje em dia, as pedras podem ser esfaceladas com ondas sonoras, para
facilitar a passagem, mas na época de Montaigne podia-se apenas esperar
que esses ferrões, esferas, carrapichos e agulhas encontrassem o caminho da
saída por si mesmos. Ele tentava expulsá-los prendendo a urina pelo
máximo tempo suportável, para aumentar a pressão; era em si mesmo um
procedimento doloroso e perigoso, mas às vezes funcionava. E também
experimentava outros remédios, embora em geral não confiasse na
medicina. Certa vez, ingeriu “terebintina veneziana, que dizem provir das
montanhas do Tirol, duas doses grandes numa colher de prata, com adição
de uma ou duas gotas de um xarope, para melhorar o gosto”. O único efeito
foi fazer com que sua urina ficasse com cheiro de violetas perfumadas. O
sangue de um bode alimentado com ervas especiais e vinho também seria
supostamente eficaz. Montaigne experimentou, criando o bode em sua
propriedade, mas deixou a ideia de lado ao encontrar nos órgãos do animal,
depois de abatido, cálculos muito semelhantes. Não conseguia entender de
que maneira um sistema urinário problemático poderia curar outro.
O remédio mais comum para pedras nos rins era o uso de águas de spas e
banhos termais. Montaigne também fez a tentativa: pelo menos era um
método natural, sem probabilidade de lhe fazer algum mal. Os spas muitas
vezes eram localizados em lugares atraentes, e a companhia era
interessante. Ele experimentou alguns deles na França no fim da década de
1570; a doença voltava a se manifestar após cada visita, mas ele se
dispunha a tentar novamente. Aí estava, assim, mais um motivo para viajar,
pois os balneários da Suíça e da Itália eram famosos. E a vantagem deste
motivo era que podia ser facilmente justificado junto à mulher e aos
amigos.
Assim foi que, no verão de 1580, o afamado escritor de 47 anos deixou
seus vinhedos e botou o pé na estrada para curar-se da sua enfermidade e
conhecer o mundo, ou pelo menos áreas seletas do mundo europeu. A
viagem o manteria afastado até novembro de 1581: dezessete meses. Ele
começou percorrendo regiões da França, aparentemente a negócios e talvez
recolhendo instruções para missões políticas durante a jornada. Foi nessa
ocasião que teve sua audiência com Henrique III, oferecendo-lhe o seu Os
ensaios. Em seguida, rumou para leste e atravessou a fronteira para terras
alemãs, tomando depois a direção dos Alpes e da Suíça e finalmente
chegando à Itália. Fosse por vontade sua, a viagem teria sido mais longa e
ele poderia ir para qualquer lugar. A certa altura, pensou em ir até a Polônia.
Mas se contentou com o destino mais habitual de Roma — importante lugar
de peregrinação para qualquer bom católico e qualquer intelectual do
Renascimento.
Montaigne não podia se dar ao luxo de viajar sozinho, obedecendo
apenas a seus desejos pessoais. Ele era um nobre importante e devia
sustentar um pesado séquito de criados, conhecidos e agregados, do qual
tentava escapar sempre que possível. Do grupo faziam parte quatro jovens
que vinham pela experiência educativa. Um deles era seu irmão menor,
Bertrand de Mattecoulon, que tinha apenas 20 anos; os demais eram o
jovem marido de uma de suas irmãs e o filho adolescente de um vizinho,
acompanhado de um amigo. À medida que a viagem prosseguia, todos eles
se apartariam em diferentes direções. O mais malfadado foi Mattecoulon,
que ficou em Roma estudando esgrima e matou um homem num duelo;
Montaigne teve de tirá-lo da prisão.
Viajar era em si mesmo um esporte radical na época, não muito menos
perigoso que os duelos. As estradas das rotas mais frequentadas de
peregrinação podiam ser boas, mas as demais eram precárias. A qualquer
momento podia ser o caso de mudar de rota, à notícia de uma peste adiante
ou de bandos de salteadores. Certa vez Montaigne alterou seu percurso em
direção a Roma diante de um aviso de assaltos à mão armada no caminho
que pretendia tomar. Havia quem contratasse uma escolta ou viajasse em
comboios. Montaigne já estava num grupo grande, o que ajudava, mas por
isso mesmo também podia atrair muita atenção.
Havia outros aborrecimentos. Era necessário subornar funcionários,
especialmente na Itália, conhecida pela corrupção e pelos excessos
burocráticos. Por toda a Europa, os portões das cidades eram fortemente
guardados; o viajante tinha de apresentar passaportes, autorizações de
viagem e bagagem e declarações devidamente certificadas de que não
passara recentemente por alguma região atingida pela peste. Os postos de
controle nas cidades costumavam emitir passes para hospedagem em
determinado hotel, cujo proprietário tinha de apor também sua assinatura.
Devia ser como viajar pelos países comunistas no auge da Guerra Fria, só
que com riscos e criminalidade ainda maiores.
E havia, ainda, as dificuldades da viagem propriamente dita. Ela era feita
quase sempre a cavalo. Também se podia recorrer a uma carruagem, mas
neste caso os assentos eram mais duros que as selas. Montaigne certamente
preferia cavalgar: comprava e vendia cavalos no caminho ou os alugava
para breves percursos. O transporte fluvial era outra opção, mas Montaigne
o evitava por sofrer de enjoo. Quase sempre a viagem a cavalo lhe
proporcionava a liberdade por que tanto ansiava; surpreendentemente, uma
sela também lhe parecia o lugar mais confortável para estar durante uma
crise de pedra nos rins.
O que ele mais gostava nessas viagens era da sensação de seguir no
fluxo. Montaigne sempre evitava planos prefixados. “Se à direita a coisa
parece feia, eu tomo a esquerda; quando não estou em condições de montar
o meu cavalo, paro.” Ele viajava exatamente como lia e escrevia: seguindo
o convite do prazer. Leonard Woolf, percorrendo a Europa com a mulher
mais de três séculos depois, relataria que ela também viajava como uma
baleia esquadrinhando o oceano em busca de plâncton, cultivando uma
“vigilância passiva” que lhe proporcionava uma estranha mistura de
“euforia e relaxamento”. Montaigne era igual. Tratava-se de uma extensão
do seu prazer cotidiano de “se deixar levar tranquilamente pela ondulação
dos céus”, como diria suntuosamente, mas com o prazer adicional
decorrente da visão das coisas como se fossem sempre novas, contempladas
com toda a atenção, como faria uma criança.
Ele não gostava de planejar, mas tampouco gostava de perder
oportunidades. Seu secretário, acompanhando-o e (por algum tempo)
mantendo o seu diário, observou que as pessoas do grupo se queixavam do
hábito de Montaigne de se desviar do caminho sempre que ouvia falar de
atrações extras que o interessavam. Mas Montaigne responderia que era
impossível desviar-se do caminho, pois não havia um caminho. O único
plano com que sempre se comprometera fora o de viajar por lugares
desconhecidos. Desde que não repetisse um caminho, ele estava seguindo
seu plano à risca.
A única limitação em sua energia era que ele não gostava de começar
muito cedo. “Minha preguiça de levantar da cama dá aos meus criados
tempo para se alimentar à vontade antes de começarmos.” O que convinha
aos seus hábitos, pois ele sempre tinha dificuldade de entrar no ritmo pela
manhã. No geral, contudo, ele se esforçava por largar seus hábitos durante
as viagens. Ao contrário de tantos viajantes, ele dava preferência aos pratos
locais e se fazia servir no estilo local. A certa altura da viagem, lamentou
não ter trazido o cozinheiro — não porque sentisse falta da comida de casa,
mas porque gostaria que ele aprendesse novas receitas estrangeiras.
Montaigne ficava envergonhado ao ver outros franceses tomados de
alegria quando encontravam algum compatriota no estrangeiro. Eles se
abraçavam, juntavam-se em grupos ruidosos e passavam noites inteiras se
queixando da barbárie dos nativos. Esses eram os poucos que chegavam a
se dar conta de que os habitantes locais faziam as coisas de maneira
diferente. Outros conseguiam viajar tão “protegidos e envoltos numa
prudência taciturna e incomunicável, defendendo-se do contágio de um
ambiente estranho”, que nem se davam conta de nada. No diário, o
secretário observava como o próprio Montaigne ia longe demais na direção
oposta, derramando-se em elogios exagerados ao país onde estivessem, sem
nunca jamais ter uma palavra boa a dizer sobre os compatriotas. “Na
verdade, havia em seu julgamento um pouco de raiva, um certo desprezo
por seu país”, escreveu o secretário, acrescentando a especulação de que a
aversão de Montaigne a tudo que fosse francês decorria de “considerações
de outra ordem” — talvez uma referência às guerras.
Sua capacidade de adaptação se estendia às línguas. Na Itália, ele falava
italiano e até redigia seu diário nessa língua, dispensando já agora o
secretário. Imitando o camaleão, ou o polvo, tentava passar despercebido
sempre que possível — ou de um jeito que para ele parecesse despercebido.
Em Augsburgo, escreveu o secretário, “Monsieur de Montaigne, não se
sabe por quê, quis que nosso grupo se dispersasse e caminhou sozinho o dia
inteiro pela cidade”. Não funcionou. Sentado num banco da igreja de
Augsburgo num ar gelado, Montaigne sentiu seu nariz escorrer e
distraidamente lançou mão de um lenço. Mas os habitantes da região não
usavam lenço, de modo que ele se traiu. Haveria algum mau cheiro?,
perguntavam-se os moradores. Ou será que ele estava com medo de pegar
alguma coisa? De qualquer maneira, eles já tinham entendido que se tratava
de um estrangeiro: sua indumentária não o deixava mentir. Montaigne
achava isso irritante. Para variar, “ele cometia o erro que mais tentava
evitar, o de se fazer notar por algum maneirismo que o distinguisse daqueles
que o viam”.
As igrejas desempenharam papel importante na viagem de Montaigne,
não porque fosse dado a orações, mas por sua curiosidade a respeito das
práticas. Ele observou as igrejas protestantes da Alemanha com o mesmo
interesse dedicado às católicas da Itália. Em Augsburgo, assistiu ao batizado
de uma criança. Ao sair (tendo visto desmascarada sua identidade de
estrangeiro), fez muitas perguntas sobre o ritual. Na Itália, visitou sinagogas
e “conversou muito sobre as cerimônias”. Também assistiu a uma
circuncisão judaica, numa residência particular.
Acontecimentos inusitados e narrativas humanas de toda espécie
despertavam seu interesse. Nas primeiras etapas da viagem, em Plombières-
les-Bains, na Lorena, conheceu um soldado com metade da barba branca e
uma sobrancelha branca: o sujeito disse-lhe que as duas haviam mudado de
cor de um dia para outro, à morte do irmão, por ele ter chorado durante
horas com uma das mãos cobrindo metade do rosto. Perto dali, em Vitry-le-
François, ele foi entretido com histórias sobre sete ou oito meninas da
região que tinham “conspirado” para se vestir e viver como homens. Uma
delas casou-se com uma mulher e viveu com ela durante vários meses —
“para sua satisfação, segundo dizem” —, até que alguém denunciou o caso
às autoridades e ela foi enforcada. Outra história nessa mesma região dizia
respeito a um homem chamado Germain que fora mulher até os 22 anos,
quando um conjunto de “instrumentos viris” pulou para fora certo dia
quando saltava um obstáculo. Surgiu então na cidade uma canção popular
advertindo as moças a não abrirem muito as pernas ao saltarem, para não se
verem na mesma contingência.
Montaigne ficava fascinado com as diferenças dos hábitos alimentares
— sempre um motivo óbvio de comparações culturais para qualquer
viajante. Na Suíça, as taças eram servidas de vinho à distância, com um
vaso de bico longo, e depois de comer carne todos atiravam os pratos em
uma cesta no meio da mesa. As pessoas usavam facas para comer,
“praticamente nunca punham as mãos no prato” e se valiam de minúsculos
guardanapos de cerca de trinta centímetros quadrados, apesar da preferência
que tinham por sopas e molhos bem lambuzados. Coisas ainda mais
estranhas o aguardavam nos quartos da Suíça: “As camas são tão altas que é
preciso chegar a elas por escadas; e quase sempre têm pequenas camas
debaixo das grandes.”
Tudo atraía a atenção de Montaigne ou de seu secretário, que escrevia
obedecendo a suas orientações. Numa hospedaria em Lindau, uma parede
inteira da sala de jantar era ocupada por uma gaiola cheia de pássaros, com
corredores e arames para permitir-lhes saltar de uma extremidade da sala à
outra. Em Augsburgo, deram com um grupo conduzindo dois avestruzes
pela coleira para presentear o duque da Saxônia. Nessa cidade, Montaigne
também notou que “eles tiram a poeira dos objetos de vidro com fios de
cabelo presos à ponta de um bastão”. E ele ficou intrigado com os múltiplos
portões controlados à distância na cidade, que isolavam câmaras
alternadamente, como comportas num canal, para impedir a invasão de
agressores.
Por toda parte, eles visitavam fontes modernas e jardins aquáticos, muito
bons para horas seguidas de entretenimento sádico. Nos jardins da família
Fugger, na Alemanha, ocultavam-se numa passarela de madeira, entre dois
lagos de peixinhos, canos de metal programados para borrifar damas e
cavalheiros que passassem distraídos. No mesmo jardim, era possível
apertar um botão para atirar um jato d’água no rosto de quem viesse
contemplar determinada fonte. Um aviso em latim dizia: “Você buscava
divertimentos triviais; pois aqui estão; desfrute.” Aparentemente, foi o que
fez o grupo de Montaigne.
A grande arte já não parecia impressioná-lo tanto, ou pelo menos ele
pouco se manifesta a respeito, só eventualmente comentando obras como
“as belíssimas e esplêndidas estátuas de Michelangelo” em Florença. Os
ensaios também contém poucas referências às artes visuais. Ele encheu sua
torre de afrescos, de modo que devia ter algum gosto pela pintura, mas não
parece ter-se sentido muito inclinado a escrever sobre ela — muito embora
a tinta mal tivesse secado ainda nas tantas obras de arte renascentista que
percorriam toda a Itália.
Esta omissão seria alvo de crítica, mais tarde, da parte de certos leitores
do diário, especialmente os românticos, que foram seu primeiro público,
pois o manuscrito só seria encontrado num baú do castelo em 1772. Os
leitores se atiraram com entusiasmo sobre a descoberta, mas acabaram
decepcionados. Além de uma melhor apreciação da arte, os leitores do
século XVIII também teriam gostado de devaneios sublimes sobre a beleza
dos Alpes e meditações melancólicas sobre as ruínas de Roma. Em vez
disso, o que tinham era um registro dos bloqueios urinários de Montaigne,
alternando-se com detalhes muito bem-observados, estimulantes mas nada
sublimes sobre as hospedarias, a comida, a tecnologia, os hábitos e
costumes sociais de cada parada. Os leitores não ficavam tão emocionados
de saber, pelo secretário, que “a água que Monsieur de Montaigne bebeu na
terça-feira provocou três evacuações” e que, dois dias depois, outra dose
das águas de um spa surtiu efeito “tanto pela frente quanto por trás”. Nem
exultavam propriamente quando o próprio Montaigne, assumindo a redação
do diário, informava que havia vertido uma pedra “grande e longa como um
pinhão, mas com a espessura de um feijão numa das extremidades e
apresentando, para dizer a verdade, exatamente a forma de um pênis”. A
única coisa que os leitores suíços e alemães, pelo menos, podiam apreciar
era o fato de o diário também estar cheio de elogios a suas terras,
especialmente aos bem-projetados fogões da Suíça.
A recepção algo morna da obra por parte dos primeiros leitores parece
ter dado o tom para o que viria depois: o diário sempre foi considerado o
primo pobre de Os ensaios. E no entanto é uma leitura mais interessante
que tantos livros de viagem pomposos do romantismo, precisamente por se
apegar aos detalhes. Tem camas menores debaixo das maiores, molhos
suíços que lambuzam, gaiolas do tamanho de uma sala, circuncisões,
mudanças de sexo e avestruzes: que mais poderíamos desejar?
Outra característica interessante do diário é que nos proporciona um
retrato de Montaigne traçado por um observador externo, seu secretário —
retrato que por sinal se revela notavelmente coerente com o Montaigne
autorreflexivo de Os ensaios. O leitor vê Montaigne se esforçando por
descartar todo e qualquer tipo de preconceito nacional, exatamente como
poderíamos esperar dele. Ele parece entusiástico e cheio de curiosidade,
mas às vezes também egoísta, arrastando seus relutantes acompanhantes a
lugares que não viam sentido em visitar. Há também uma ou outra
indicação de que ele abusava das evasivas e da prolixidade nos discursos
formais, não obstante seu desinteresse por eles (ou quem sabe justamente
por causa disso). Em Basileia, onde Montaigne teve de aguentar “um longo
discurso de boas-vindas” no jantar, o secretário escreve que ele deu uma
igualmente “longa resposta”. E, em Schaffhausen, Montaigne foi
presenteado com vinho — “não sem vários discursos cerimoniosos de
ambos os lados”.
A demanda dos poderes oratórios de Montaigne já não foi tão grande na
Itália, aonde chegaram em 28 de outubro de 1580. Mas, quanto mais eles se
aproximavam do país, mais ele se questionava se efetivamente queria visitá-
lo. Era sem dúvida o grande destino, o centro da cultura europeia: Veneza e
Roma o haviam atraído a vida inteira. Mas agora ele se dava conta de que
preferia lugares menos conhecidos. Se a vontade de Montaigne tivesse
prevalecido, observava o secretário ao se aproximarem dos Alpes, o grupo
poderia ter-se desviado para a Polônia ou a Grécia, talvez apenas para
prolongar a viagem. No entanto, enfrentou resistência e acabou por
concordar em tomar o rumo da Itália, como todo mundo. E logo se
recompôs. “Eu nunca o vi menos cansado ou se queixando menos das
dores”, escrevia agora o secretário, “pois estava com a mente
completamente voltada para o que encontrava, fosse no caminho ou na
hospedagem, e a todo momento se mostrava tão ansioso por conversar com
estranhos que tenho para mim que isto desviou sua mente da enfermidade”.
Veneza, uma das primeiras paradas importantes na Itália, confirmou seus
temores quanto aos destinos turísticos muito procurados. No dizer do
secretário, ele achou a cidade ligeiramente menos maravilhosa do que se
dizia. Mas nem por isto deixou de explorá-la com menos gana, alugando
uma gôndola e se aproximando das pessoas interessantes que encontrava.
Ele se deixou conquistar pela estranha geografia de Veneza, sua população
cosmopolita e seu governo como república independente. A cidade parecia
envolta numa espécie de magia política particular de que outros lugares
careciam, envolvendo-se em conflitos só quando tinha algo a ganhar e
mantendo dentro de suas fronteiras um governo justo. Montaigne também
ficou impressionado com a vida de dignidade e luxo das cortesãs da cidade,
abertamente mantidas pelos nobres e respeitadas por todos. Conheceu uma
das mais famosas, Veronica Franco, que havia sobrevivido recentemente a
um julgamento pela Inquisição e publicara um livro de correspondência, as
Lettere familiari e diversi¸ por ela oferecido pessoalmente a Montaigne.
Depois de Veneza, o grupo passou por Ferrara, onde Montaigne esteve
com Tasso, depois Bologna, onde assistiram a uma demonstração de
esgrima, e Florença, onde visitaram jardins cheios de efeitos, com assentos
que esguichavam água no traseiro de quem os usasse. Em outro jardim, o
grupo “teve a experiência muito divertida” de ser aspergido com água saída
de “uma quantidade infinita de buracos minúsculos”, projetando uma
emanação tão fina que era quase uma neblina.
Eles então prosseguiram, aproximando-se cada vez mais de Roma. Na
véspera da chegada à cidade, em 3 de novembro de 1580, Montaigne estava
tão empolgado que, pela primeira vez, fez todo mundo acordar três horas
antes do alvorecer para percorrer os últimos quilômetros restantes. A
estrada nas proximidades da cidade não era muito promissora, cheia de
calombos, fendas e buracos, mas à medida que avançavam divisaram as
primeiras ruínas e então, finalmente, a grande cidade.
A emoção murchou um pouco com a espera para passar pela burocracia
nos portões: a bagagem foi vasculhada “até os menores itens”. Os
funcionários passaram um tempo exagerado examinando os livros de
Montaigne. Roma era o domínio do próprio papa: os crimes do pensamento
eram levados a sério ali. Eles confiscaram um breviário, simplesmente por
ter sido publicado em Paris, e não em Roma, e algumas obras teológicas
católicas selecionadas por Montaigne na Alemanha. Ele se deu por feliz de
não estar carregando nada mais comprometedor. Não estando preparado
para uma inspeção tão rigorosa, bem que poderia trazer consigo livros
heréticos, pois, como observava o secretário, era mesmo de “temperamento
curioso”.
Confiscado para exame também foi um exemplar de seu Os ensaios. Só
lhe seria devolvido em março, quatro meses depois, com anotações
sugerindo correções. A palavra “sorte” foi assinalada em vários lugares,
juntamente com outras miudezas. Mas um representante da Igreja lhe diria
posteriormente que as objeções não eram graves, e que haviam sido feitas
por um frade que sequer era particularmente competente. “Pareceu-me tê-
los deixado bem satisfeitos comigo”, escreveu Montaigne no diário. Ele
tratou de ignorar as sugestões. Certos autores deram grande ênfase ao
desafio lançado por Montaigne à Inquisição, mas ele não precisava ser
nenhum Galileu para firmar posição.
Seja como for, esses episódios não eram um bom começo para
Montaigne em Roma, e ele sentiu que havia na cidade um clima de
intolerância. Mas ela também era cosmopolita. Ser romano era ser cidadão
do mundo, exatamente o que Montaigne pretendia ser. Assim foi que ele
pleiteou a cidadania romana, honra que lhe seria concedida pelo fim dos
quatro meses e meio que passou na cidade. Ficou tão satisfeito que
transcreveu a íntegra do documento num capítulo de Os ensaios sobre a
vaidade. Deu-se conta de que “vaidade” era a categoria indicada no caso,
mas não se importou. “Em todo caso, tive muito prazer em obtê-la.”
Roma era tão vasta e variada que as possibilidades não pareciam ter
limite. Montaigne pôde ouvir sermões e debates ecológicos. Visitou a
biblioteca do Vaticano e, tendo acesso a áreas vedadas até ao embaixador da
França, viu preciosos exemplares manuscritos de obras de seus heróis
Sêneca e Plutarco. Assistiu a uma circuncisão, visitou jardins e vinhedos e
conversou com prostitutas. Tentou descobrir seus segredos profissionais,
mas ficou sabendo apenas que cobravam caro até para conversar, o que
possivelmente seria, em si, um desses segredos.
Além das prostitutas, Montaigne também teve uma audiência com o
papa, o então octogenário Gregório XIII. O secretário descreveu o ritual em
detalhes. Primeiro Montaigne e um dos jovens que o acompanhavam na
viagem entraram no salão onde se encontrava o papa e se ajoelharam para
receber uma primeira bênção. Esgueirando-se de lado ao longo da parede,
dirigiram-se afinal para ele; a meio caminho, detiveram-se para uma
segunda bênção. Por fim, ajoelharam-se num tapete de veludo aos pés do
papa, tendo ao lado o embaixador francês, que os apresentava. O
embaixador também se ajoelhou e suspendeu a túnica do papa para mostrar
seu pé direito, calçando uma sapatilha vermelha com uma cruz branca. Os
dois visitantes inclinaram-se para a frente e beijaram o pé; Montaigne
observou que o papa levantou ligeiramente os dedos para facilitar o beijo.
Depois desse momento quase erótico, o embaixador voltou a cobrir o pé do
papa e levantou-se para pronunciar um discurso sobre os visitantes. O papa
os abençoou e disse algumas palavras, exortando Montaigne a persistir em
sua devoção à Igreja. Levantou-se, então, para dispensá-los; eles voltaram
pelo caminho percorrido, sem dar-lhe as costas e detendo-se duas vezes
para receber ajoelhados mais bênçãos. Finalmente, atravessaram a porta, e a
performance estava encerrada. Montaigne faria o secretário anotar, mais
tarde, que o papa falava com sotaque de Bolonha — “o pior dialeto da
Itália”. Era “um velho muito bonito, de estatura mediana, saudável e
vigoroso, para sua idade, sem gota, cólica nem problemas digestivos” —
muito diferente do pobre Montaigne e com uma espécie de semelhança de
família com o próprio Deus. Ele parecia “de temperamento brando, sem
muita paixão pelas coisas do mundo”, o que vem a ser muito semelhante ou
muito diferente de Deus, dependendo do ponto de vista. Brando ou não, era
o mesmo papa que mandara cunhar moedas e encomendara pinturas para
comemorar o massacre de São Bartolomeu.
Não havia como esquecer que Roma era a cidade do papa. Montaigne o
viu com frequência, presidindo cerimônias e participando de procissões. Na
Semana Santa, viu milhares de pessoas chegando à praça São Pedro,
carregando tochas e se flagelando com cordas, em certos casos com apenas
12 ou 13 anos de idade. Eram acompanhadas por homens carregando vinho,
que era levado à boca e cuspido nas extremidades dos açoites para
umedecer as cordas e separá-las quando ficavam impregnadas de sangue
coagulado. “Trata-se de um enigma que ainda não entendo bem”, escreveu
Montaigne. Os penitentes ficavam terrivelmente machucados, mas não
pareciam sentir dor nem levar muito a sério o que faziam. Bebiam também
muito vinho e cumpriam o ritual “com tal desprendimento que os vemos
conversar sobre outras questões, rir, gritar nas ruas, correr e pular”. Ele
deduziu então, com razão, que a maioria o fazia por dinheiro: haviam sido
pagos por fiéis ricos para se submeterem em seu nome à penitência. O que o
deixou ainda mais perplexo: “Por que é que o fazem os contratantes, se tudo
não passa de uma farsa?”
Montaigne também assistiu a um exorcismo. O homem possuído, que
quase parecia em estado de coma, foi segurado de cabeça para baixo no
altar enquanto o padre lhe dava murros, batia-lhe no rosto e gritava com ele.
Em outra ocasião, ele viu um homem sendo enforcado: um famoso
assaltante e bandido chamado Catena, entre cujas vítimas estavam dois
monges capuchinhos. Aparentemente ele prometera salvar-lhes a vida se
renegassem Deus; foi o que eles fizeram, incorrendo no risco de perder a
alma na eternidade, mas Catena ainda assim os matou. De todas as
reviravoltas até então presenciadas por Montaigne nesse tipo de cena que
tanto o fascinava — o indivíduo vencido que implora misericórdia, o
vencedor que decide ou não concedê-la —, foi esta provavelmente a mais
desagradável. Pelo menos o próprio Catena enfrentava a morte de peito
aberto. Não emitiu um único som ao ser conduzido à forca; seu corpo foi
então esquartejado com espadas. A multidão agitou-se mais com a violência
contra o corpo morto, uivando a cada golpe de espada, do que com a
própria execução: outro fenômeno que intrigou Montaigne, que considerava
a crueldade com um ser vivo mais perturbadora que qualquer coisa que
pudesse ser feita a um cadáver.
Todas estas eram as maravilhas da Roma moderna, mas não era por
motivos assim que vinha à cidade a maioria dos turistas de inclinações
humanistas no século XVI. Eles vinham para se impregnar da aura dos
antigos, e ninguém seria mais suscetível a essa aura do que Montaigne, que
quase poderia ser considerado um nativo. O latim, afinal, fora sua primeira
língua: Roma era sua pátria.
A cidade clássica chamava a atenção ao redor, embora quase sempre
Montaigne e o seu secretário não caminhassem propriamente sobre os
passos dos romanos, mas muito acima deles. Tanta terra e entulho se havia
acumulado ao longo dos séculos que o solo se elevara vários metros: o que
restava dos prédios antigos estava soterrado, como botas na lama.
Montaigne se maravilhava à ideia de que podia estar muitas vezes no alto
de muralhas antigas, o que só ficava evidente em lugares onde algum trecho
fosse revelado pela erosão da chuva ou os sulcos cavados pelas rodas.
“Muitas vezes tem acontecido”, escreveu ele, com um estremecimento de
regozijo, “que os escavadores, depois de se aprofundar muito no solo, mal
alcançavam o alto de uma enorme coluna, que ainda se alongava para
baixo”.
Já não é nem de longe o caso hoje em dia. As escavações desde então
permitiram expor integralmente a maioria das ruínas, e algumas foram
reconstituídas. Atualmente, o Arco de Severo se ergue orgulhoso; na época
de Montaigne, via-se apenas a parte superior. O Coliseu era então uma
carcaça de pedra coberta de mato. Construções medievais e do início da era
moderna também tinham sido erguidas por toda parte, sobre ruínas ou
utilizando velhos materiais reciclados. Lajes de pedra eram reposicionadas
constantemente em nível mais alto, para remendar muralhas ou erguer
barracos. Certas áreas haviam sido completamente liberadas para abrir
espaço a projetos triunfalistas como a nova igreja de São Pedro. A história
de Roma não se acumulava em camadas nítidas: tinha sido repetidas vezes
embaralhada e reagrupada, como ao influxo de terremotos.
O resultado de tudo isto era interessante, mas dava uma impressão da
Roma antiga mais ou menos equivalente à que ovos mexidos podem dar de
um ovo recém-posto. Na verdade, a Roma moderna se constituíra num
processo semelhante ao utilizado por Montaigne para escrever seu Os
ensaios. Constantemente acrescentando citações e alusões, ele reciclava
suas leituras clássicas exatamente como os romanos reciclavam a pedra. A
semelhança parece ter-lhe ocorrido, e certa vez ele se referiu ao livro como
uma construção feita com ruínas de Sêneca e Plutarco. Na cidade, como em
seu livro, ele considerava a imperfeição e a bricolagem criativa preferíveis a
uma ordem estéril, e a contemplação do resultado lhe dava prazer. O
processo também requeria certo esforço mental, que proporcionava ainda
maior satisfação. A experiência romana daí resultante era fruto sobretudo da
imaginação. O visitante quase poderia ter ficado em casa — quase, pois
ainda havia algo insubstituível no fato de estar ali presente.
Essa sensação de estranheza quase alucinatória acomete com frequência
os visitantes de Roma, em certa medida porque tudo ali já é familiar à
imaginação muito antes de ser visto. Duzentos anos depois, Goethe
consideraria a experiência ao mesmo tempo esfuziante e perturbadora. “Os
sonhos de minha juventude se realizaram”, escreveu ele ao chegar. “As
primeiras gravuras de que me recordo — meu pai pendurava vistas de
Roma na sala — posso agora ver na realidade, e tudo aquilo que há tanto
tempo conheço através de pinturas, desenhos, esboços, gravuras, moldes de
gesso e maquetes de cortiça está reunido diante de mim.” Algo semelhante
aconteceu a Freud em Atenas, quando viu a Acrópole. “Quer dizer então
que tudo isto existe, exatamente como aprendemos na escola!”, exclamou
ele, quase imediatamente seguindo-se a convicção: “O que estou vendo aqui
não é real.” Montaigne também estranhou a confluência da versão interna
com a externa, escrevendo sobre “a Roma e a Paris que tenho na alma”, e
que eram “sem tamanho nem lugar, sem pedra, sem gesso, sem madeira”.
Eram imagens oníricas que ele comparava à lebre ilusória perseguida por
seu cão.
Roma proporcionaria a Goethe uma paz quase mística: “Sinto-me agora
num estado de clareza e calma de tal ordem que havia muito tempo não
sentia.” Montaigne também o sentia; apesar das frustrações turísticas, a
Itália de maneira geral exercia esse efeito sobre ele. “Desfrutei de um
estado de espírito tranquilo”, escreveria pouco depois, em Lucca. Mas
acrescentava: “Senti falta de apenas uma coisa, de uma companhia que me
agradasse, estando forçado a desfrutar dessas belas coisas sozinho e sem
comunicação.”
Finalmente deixando Roma no dia 19 de abril de 1581, Montaigne
atravessou os Apeninos e tomou o rumo do grande centro de peregrinação
de Loreto, juntando-se à multidão que seguia em procissão com estandartes
e crucifixos. Na igreja local, deixou imagens votivas, para si mesmo e para
a mulher e a filha. Prosseguiu então pelo litoral do Adriático e retornou
pelas montanhas na direção de um spa em La Villa, onde permaneceria por
mais de um mês, no contato com as águas. Como se esperava de um nobre
em visita, organizou festas para os habitantes e convidados, com direito a
uma dança “para as camponesas” da qual participou, “para não parecer por
demais reservado”. Depois de uma passagem por Florença e Lucca,
retornou a La Villa, ali permanecendo no auge do verão, de 14 de agosto a
12 de setembro de 1581. A dor casusada pelas pedras andava terrível, e ele
também foi acometido de dor de dente, de um peso na cabeça e de
incômodos nos olhos. Desconfiava que a culpa fosse das águas, que
devastavam a sua metade superior embora aliviassem a inferior, se é que
efetivamente o faziam. “Comecei a achar esses banhos desagradáveis.”
E então, inesperadamente, ele foi convocado. Montaigne, que afirmava
querer apenas levar uma vida tranquila, tendo a chance de dar vazão a sua
“curiosidade sincera” Europa afora, recebeu de muitos longe um convite
que não podia recusar.
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem
tão bom assim
PREFEITO
A
carta chegou às mãos de Montaigne nos banhos termais de La
Villa, com todo o peso de uma autoridade distante. Assinada por
todos os juízes de Bordeaux — os seis homens que governavam a
cidade, juntamente com o prefeito —, ela o informava de que fora eleito,
em sua ausência, prefeito da cidade. Devia retornar imediatamente para
cumprir com seu dever.
Não deixava de ser lisonjeiro, mas, segundo Montaigne, era a última
coisa que desejaria ouvir. As responsabilidades seriam mais pesadas que as
de um magistrado. Ele perderia a liberdade no emprego do próprio tempo;
haveria discursos e cerimônias — exatamente aquelas coisas que menos
apreciara em seu percurso pela Itália. Teria de se valer de sua habilidade
diplomática, pois o exercício da função de prefeito significaria lidar com as
diferentes facções religiosas e políticas da cidade, servindo de elemento de
ligação entre Bordeaux e um rei impopular. Significava, também, que teria
de abreviar sua viagem.
Por desiludido que estivesse com a vida no spa, ele não sentia a menor
vontade de voltar para casa. A essa altura, já estava afastado havia 15 meses
— um período longo, mas não o suficiente para deixá-lo satisfeito. Parece
então ter tentado ganhar algumas semanas. Ele não se recusou a atender à
convocação dos juízes, mas tampouco saiu correndo de volta ao seu
encontro. Inicialmente, retornou a Roma, em ritmo tranquilo, detendo-se em
Lucca algum tempo e experimentando algumas outras águas termais no
caminho. Ficamos imaginando por que voltou a Roma, pois significava
andar para trás mais de trezentos quilômetros. Talvez esperasse aconselhar-
se com alguém sobre uma maneira de se livrar da missão. Nesse caso, a
resposta terá sido desencorajadora. Chegando a Roma em 1º de outubro, ele
encontrou uma segunda carta dos juízes de Bordeaux, desta vez em tom
mais peremptório. Ele era agora “urgentemente solicitado” a retornar.
Na edição seguinte de Os ensaios, ele enfatizaria que não buscara essa
nomeação e tentara incansavelmente evitá-la. “Eu pedi para ser eximido”,
escreveu — mas a resposta foi que isto não fazia diferença, pois estava
envolvida uma “ordem do rei”. O rei chegou inclusive a lhe escrever uma
carta pessoal, destinada a lhe ser entregue no exterior, embora Montaigne só
a tenha recebido ao retornar a sua propriedade:
OBJEÇÕES MORAIS
MISSÕES E ASSASSINATOS
Montaigne de fato é muitas vezes chocante, mas nem sempre nos lugares
onde se poderia esperar algum choque. Ele pode incomodar o leitor
sobretudo quando mais conciliador parece, por exemplo ao dizer
tranquilamente: “Não sei se seria decoroso admitir o pouco custo que teve
para a paz e a tranquilidade da minha vida passar mais de metade dela em
meio à ruína do meu país.” Levamos alguns momentos para nos dar conta
de como é inabitual que alguém escreva sobre a vida nesses termos, em
qualquer período da história. Poderíamos descartar observações assim se de
fato ele se tivesse mantido sempre passivo e calmo. Mas na década de 1580
Montaigne ficaria cada vez mais assoberbado por responsabilidades
relacionadas à guerra que — por mais que as subestime em seu livro —
certamente cobraram um preço em matéria de paz de espírito.
O país estivera oficialmente em paz durante seu mandato como prefeito,
mas no momento em que ele voltou a se retirar em sua propriedade as Ligas
católicas faziam o que estava ao seu alcance para provocar outra guerra. A
essa altura, o conflito já era tão político quanto religioso. A maior incógnita
política era saber quem sucederia Henrique III no trono da França. A linha
sucessória não era clara, pois ele não tinha filhos nem um parente próximo.
A monarquia estava disponível num momento de extrema instabilidade
nacional: uma combinação nada boa.
A maioria dos protestantes e alguns católicos davam preferência a
Henrique de Navarra, o príncipe protestante de Béarn que tanta influência
exercia na região de Bordeaux e tecnicamente podia ser considerado o
primeiro na linha de sucessão real — mas que, para muitos, devia ser
descartado, por sua religião. Seu principal rival era seu tio Carlos, o cardeal
de Bourbon, cuja pretensão era apoiada pelos liguistas e seu poderoso líder,
Henrique, o duque de Guise. Enquanto isso, o rei continuava perfeitamente
vivo, mostrando-se incerto quanto ao sucessor que devia endossar. A fase
seguinte da guerra ficaria conhecida como Guerra dos Três Henriques, pois
girava alucinadamente em torno dessa trinca composta por Henrique III,
Henrique de Navarra e Henrique de Guise.
Os politiques, entre eles o próprio Montaigne, estavam em princípio
comprometidos com o apoio ao rei, independente do que fizesse. Como
sucessor, contudo, a maioria preferia Henrique de Navarra, o que contribuiu
para atrair para eles um ódio ainda maior das Ligas. Os extremistas
católicos consideravam que era a mesma coisa levar ao trono o Diabo em
pessoa ou um rei protestante.
Como prefeito, Montaigne fizera tentativas de promover um
entendimento entre os dois partidos. Fosse politicamente, como prefeito de
uma cidade católica próxima do território de Navarra, ou pessoalmente,
como bom diplomata, ele estava bem-posicionado para isto. Periodicamente
se encontrava com Navarra e o entretinha, tendo feito amizade com sua
influente amante, Diane d’Andouins, ou “Corisande”. Em dezembro de
1584, Navarra hospedou-se por alguns dias na propriedade de Montaigne,
num momento em que o próprio rei tentava convencê-lo a renegar o
protestantismo para subir ao trono. Navarra recusou-se. Parecia, assim, que
uma das poucas esperanças para a França estaria em convencer Navarra a
reconsiderar essa recusa — e foi precisamente o que Montaigne tentou
fazer.
Em caráter pessoal, a visita foi bem-sucedida. Navarra confiava em
Montaigne, preferindo ser atendido pelos criados dele, e não pelos seus
próprios, e comendo sem que os alimentos fossem submetidos ao habitual
teste para detectar algum veneno. Montaigne registrou tudo isso em seu
diário Beuther:
19 de dezembro de 1584. O rei de Navarra veio ver-me em
Montaigne, onde nunca estivera, e aqui ficou por dois dias, servido
pelos meus homens, sem qualquer dos seus empregados. Não quis
saber de prova de alimentos nem de pratos cobertos, e dormiu na
minha cama.
E
stranhamente, ao longo do século que levaria à nova imagem de
marca de Montaigne formulada por Coste em 1724 — um período
difícil para Os ensaios na França —, os ingleses nunca deixaram de
admirá-lo. Eles foram os primeiros fora da França a adotar Montaigne, e
viriam a considerá-lo praticamente um dos seus. Alguma coisa na
mentalidade inglesa os colocava em sintonia; e dali por diante eles
continuariam a vibrar harmoniosamente nessa mesma sintonia, parecendo
indiferentes às mudanças intelectuais que ocorriam em outros quadrantes.
Vale a pena interromper por um momento a história da “sobrevida” de
Montaigne (que transcorre paralelamente à história de sua vida, e estava
aqui suspensa no século XIX, desde o capítulo passado) para dar uma
rápida olhada em vários séculos de sua recepção crítica do outro lado do
canal da Mancha — para onde ele parece nunca ter pensado viajar, e onde
ficaria muito surpreso de se ver acolhido como refugiado, especialmente
por se tratar de um país protestante.
A religião era um dos motivos pelos quais muitos leitores ingleses, a
partir do fim do século XVII, se sentiam tão livres para desfrutar de
Montaigne. Os protestantes ingleses não se preocuparam quando a Igreja
pôs seu livro no Índex. Tal fato servia inclusive para que usufruíssem da
agradável sensação de levar a melhor sobre os católicos e, melhor ainda,
sobre os franceses. Estes podiam ser considerados um povo incapaz de
reconhecer seus melhores escritores, principalmente depois que a Academia
Francesa começou a impor rigorosos padrões de elegância clássica na
literatura. Um escritor “livre e insubordinado” (como se considerava
Montaigne) não tinha lugar na nova estética francesa, mas a língua inglesa o
recebia de braços abertos, como um filho pródigo. Exuberante e anárquica
morada de Chaucer e Shakespeare, o inglês parecia a linguagem certa para
um autor assim. Lorde Halifax, a quem foi dedicada uma das edições
seiscentistas de Os ensaios, observou que traduzir Montaigne “é não só uma
valiosa aquisição para nós, mas uma justa censura da impertinência crítica
desses escribas franceses que se deram ao trabalho de inventar pequenas
reservas e objeções para diminuir a reputação desse grande homem, feito
pela natureza grande demais para se confinar à exatidão de um estilo
estudado”. E o ensaísta William Hazlitt conseguiu introduzir Montaigne,
além de Rabelais, num texto intitulado “Sobre antigos escritores e oradores
ingleses”. Assim justificou ele essa inclusão: “Mas estes consideramos em
grande medida ingleses, ou como aquilo para onde se inclinava o velho
temperamento francês, antes de ser corrompido por cortes e academias de
crítica.”
Se apreciavam o estilo de Os ensaios, os leitores ingleses ficavam ainda
mais encantados com seu conteúdo. A preferência de Montaigne pelos
detalhes, em detrimento das abstrações, os atraía; e o mesmo acontecia com
sua desconfiança em relação aos eruditos, sua preferência pela moderação e
o bem-estar e seu desejo de privacidade — o “compartimento nos fundos da
loja”. Por outro lado, os ingleses também tinham o gosto pelas viagens e
pelo exotismo, exatamente como Montaigne. Ele podia dar mostra de
inesperados surtos de radicalismo no meio do mais tranquilo
conservadorismo, e o mesmo se podia dizer deles. E, no fundo, o que ele
gostava mesmo era de ficar observando seu gato brincar perto da lareira —
exatamente como os ingleses.
E havia também sua filosofia, se é que lhe podemos dar este nome. Os
ingleses não eram filósofos natos; não gostavam de especular sobre o ser, a
verdade e o cosmo. Ao pegar um livro para ler, queriam anedotas,
temperamentos estranhos, comentários espirituosos e um toque de fantasia.
Como diria Virginia Woolf a propósito de Sir Thomas Browne, um dos
muitos autores ingleses que escreviam numa veia montaigniana, “a mente
inglesa inclina-se naturalmente a se sentir à vontade e encontrar prazer nos
humores e caprichos mais informais”. Por isto é que William Hazlitt
louvava Montaigne em termos capazes de interessar uma nação não
necessariamente filosófica:
Ao tomar da pena, ele não posava de filósofo, sabichão, orador ou
moralista, mas se tornava tudo isso simplesmente por ousar dizer-nos
o que passava por sua mente, em sua nua simplicidade e força.
Este trecho é bem típico do que acontecia quando Florio tinha rédea
solta. Como Montaigne, ele escrevia emitindo pensamentos cada vez mais
complexos, como uma aranha que emite fios de seda. Mas, enquanto
Montaigne sempre vai adiante, Florio se enrola sobre si mesmo e remastiga
suas sentenças em espirais cada vez mais apertadas, até que o significado
desaparece no colapso da sintaxe. A verdadeira magia acontece quando os
dois escritores se encontram. A natureza terrena de Montaigne mantém sob
controle os emaranhados de Florio, enquanto Florio proporciona a
Montaigne certa qualidade elizabetana inglesa, além de uma leitura muito
divertida. Quando Montaigne escreve: “Nossos alemães, afogados em
vinho” (nos Allemans, noyez dans le vin), Florio traduz “nossos soldados
alemães fanfarrões, quando estão com a cara enfiada nos canecos, bêbados
como ratos”. Uma frase que o tradutor moderno Donald Frame reproduz
tranquilamente como “lobisomens, duendes e quimeras” será encontrada no
universo de Florio como “Larvas, Duendes, Monstrengos e outros Bichos e
Quimeras” — como se estivéssemos lendo Sonho de uma noite de verão.
Shakespeare e Florio se conheciam, e Shakespeare foi um dos primeiros
leitores da tradução de Os ensaios. Pode até ter lido partes do manuscrito
antes de ser enviado para a gráfica: é possível discernir certos indícios de
Montaigne em Hamlet, que é anterior à edição de Florio. Uma peça muito
posterior, A tempestade, contém um trecho tão próximo de Florio que não
pode haver dúvida de que ele leu a tradução. Fazendo o elogio de sua visão
de uma sociedade perfeita no estado natural, o Gonzalo de Shakespeare
afirma:
Não, na república faria tudo pelos seus contrários, pois não admitiria
espécie alguma de comércio; de magistrados, nada, nem mesmo o
nome. O estudo ficaria ignorado de todo. Suprimiria, de vez, ricos e
pobres e os serviços; contratos, sucessões, questões de terra,
demarcações, cuidados da lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada.
Nenhum uso, também, de óleo e de vinho, trigo e metal. Ocupação,
nenhuma. Todos os homens, ociosos, todos.1
É uma nação (...) que não tinha qualquer tipo de comércio, nem
conhecimento das letras, nem inteligência dos números, nem nome de
magistrado, nem de superioridade política; nenhum uso para serviços
ou riqueza ou pobreza; nada de contratos, nem sucessões, nem
partilhas, nem ocupação alguma, mas só ociosidade; nenhum cuidado
com parentesco, mas tudo em comum, sem adornos, mas natural, sem
fertilização das terras, nem uso do vinho, do milho ou de têmpera.
Desde que esse paralelismo óbvio foi estabelecido por Edward Capell no
fim do século XVIII, a caça a indícios de influência em outras peças de
Shakespeare tornou-se uma espécie de esporte popular. A mais promissora
certamente é Hamlet, pois seu herói muitas vezes se parece com
um Montaigne tendo de enfrentar um dilema dramático num palco. Quando
Montaigne escreve “Nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos” ou
descreve a si mesmo com a incoerente torrente de adjetivos “tímido,
insolente; casto, lascivo; tagarela, taciturno; duro, delicado; inteligente,
estúpido; grosseiro, afável; mentiroso, verdadeiro; cultivado, ignorante,
liberal, sovina e pródigo”, podia estar dizendo um monólogo da peça. Ele
também observa que aquele que pensa demais sobre as circunstâncias e
consequências de determinado ato fica impedido de fazer o que quer que
seja — um belo resumo do principal problema da vida de Hamlet.
As semelhanças podem derivar simplesmente do fato de os dois
escritores estarem sintonizados com o clima do seu mundo no alto
Renascimento, com toda a sua confusão e indecisão. Montaigne e
Shakespeare foram ambos considerados os primeiros autênticos escritores
modernos, capturando esse sentimento tipicamente moderno de não saber
ao certo a que lugar pertencemos, quem somos e o que devemos fazer. O
estudioso shakespeariano J. M. Robertson considerava que toda literatura
desde esses dois autores podia ser interpretada como uma elaboração do seu
tema comum: a descoberta da consciência dividida.
O paralelismo não pode ser levado muito longe. Para começo de
conversa, Shakespeare era um dramaturgo, e não um ensaísta. Ele pode
dividir suas contradições com os personagens e pô-los em conflito no palco;
Montaigne não pode deixar de conter em si mesmo todas as contradições.
Outra diferença é que Montaigne não reina sozinho sobre o cânone literário
em sua terra, como acontece com Shakespeare na Inglaterra. Desse modo,
suscitou menos inveja, e nenhum iconoclasta veio tentar derrubá-lo de seu
pedestal, alegando que ele não escreveu Os ensaios, como tantas vezes
aconteceu com Shakespeare.
Ou quase nenhum. Entre as poucas exceções encontra-se um dos
principais “anti-Stratfordianos” (autores que lançavam dúvidas sobre
Shakespeare) do século XIX, Ignatius Donnelly. No fim de uma vasta obra
sustentando que Francis Bacon foi quem escreveu as peças de Shakespeare,
Donnelly acrescenta capítulos adicionais tentando provar que Bacon
também escreveu Os ensaios de Montaigne, além da Anatomia da
melancolia de Robert Burton e de toda a obra de Christopher Marlowe. Ele
encontra pistas ao longo de Os ensaios, como uma passagem em que
Montaigne escreve: “Quem quer que seja capaz de curar uma criança de
uma pertinaz aversão ao pão, ao bacon ou ao alho a estará curando de todo
tipo de fragilidade.” O nome Francis aparece várias vezes no texto,
supostamente na forma francesa François e geralmente denotando o rei
francês Francisco I. Mas não importa: trata-se também de uma pista. Para
fechar a questão, Donnelly menciona a descoberta feita por uma certa sra.
Pott, que chamou sua atenção para a frequente menção, nas peças de
Shakespeare, de montanhas, ou Mountaines. Como Bacon é que escreveu
Shakespeare, qualquer referência a Montaigne nas peças tende a indicar que
ele também escreveu Os ensaios. “Alguém seria capaz de acreditar que tudo
isso não passa de mero acidente?”, pergunta Donnelly.
Ele próprio se confessa perplexo com certos trechos de Os ensaios que
parecem cheios dessas pistas, mas são de mais difícil interpretação,
notadamente a história de uma jovem que batia nos próprios seios brancos
depois do assassinato do irmão. Donnelly desiste:
faz anotações sobre nossos trajes, nosso ar, nossa aparência, nossos
pensamentos, palavras e atos; mostra-nos o que somos e o que não
somos; representa diante de nós todo o jogo da vida humana, e,
fazendo-nos espectadores esclarecidos de suas cenas multicores,
permite (se possível) que nos tornemos agentes passavelmente
razoáveis naquela em que devemos desempenhar um papel.
Como Montaigne em sua viagem pela Itália, Sterne não pode ser acusado
de se desviar do caminho, pois seu caminho é feito de digressões. Sua rota
está, por definição, em qualquer direção que ele venha a tomar.
Tristram Shandy deu início a uma tradição irlandesa que chegaria a sua
manifestação extrema com o Finnegans Wake de James Joyce, romance que
se espraia por ramificações e fluxos de associação ao longo de centenas de
páginas, até que, no fim, faz uma pirueta sobre si mesmo: a última frase
inconclusa se engancha com a frase inconclusa que dera início ao livro. O
que pareceria arrumadinho demais para Sterne ou Montaigne, que evitavam
conclusões muito claras. Para eles, escrever e viver eram duas coisas que
deviam simplesmente fluir, ainda que isto significasse perder-se cada vez
mais em digressões sem jamais chegar a uma conclusão. Sterne e
Montaigne estão constantemente se envolvendo com um mundo que sempre
gera mais coisas sobre as quais escrever — por que, então, parar? Isto faz
deles filósofos acidentais, naturalistas numa pesquisa de campo da alma
humana, sem mapas nem planos, sem ter a menor ideia sobre onde vão
parar ou sobre o que poderão fazer quando lá chegarem.
1 Tradução em prosa de Carlos Alberto Nunes, editora Martin Claret. (N. do T.)
17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se
arrependa de nada
JE NE REGRETTE RIEN
C
ertos escritores limitam-se a escrever seus livros. Outros parecem
modelá-los na argila ou construí-los por acúmulo. James Joyce
estava entre estes: seu Finnegans Wake evoluiu por uma série de
esboços e edições, até que as sentenças perfeitamente normais da primeira
versão —
Quem não terá percebido que tomei um caminho pelo qual seguirei,
sem me deter nem me esforçar, enquanto houver tinta e papel neste
mundo?
A única coisa que o deteve no fim das contas foi a morte. Como
escreveu Virginia Woolf, Os ensaios foi interrompido porque chegou “não
ao seu fim, mas a uma suspensão em plena corrida”.
Esse empenho continuado pode ter sido resultante em parte do estímulo
dos editores. As primeiras edições venderam tão bem que parecia evidente a
existência de um mercado para novas edições, maiores e melhores. E
Montaigne tinha muita coisa a acrescentar em 1588, depois do seu grande
périplo e das experiências como prefeito. Ele escreveu ainda mais nos anos
subsequentes, quando lhe devem ter ocorrido novas ideias, após as
perturbadoras experiências na corte do rei refugiado: não necessariamente
ideias relacionadas às questões da atualidade francesa, mas à moderação, ao
critério, às imperfeições do mundo e muitos outros dentre seus temas
favoritos.
Na página de rosto da edição de 1588, publicada pela prestigiosa editora
parisiense de Abel L’Angelier, e não por seu editor anterior em Bordeaux, a
obra era apresentada como “ampliada por um terceiro livro e por seiscentos
acréscimos aos dois primeiros”. O que está essencialmente correto, apesar
de minimizar o real alcance dos acréscimos: Os ensaios de 1588 tinha quase
o dobro do tamanho da versão de 1580. O Livro III adicionava 13 longos
capítulos, e, quanto aos ensaios dos dois primeiros livros, praticamente
nenhum ficava inalterado.
O novo Montaigne de 1588, que chegou ao conhecimento do mundo no
momento em que o verdadeiro Montaigne acompanhava Henrique III e
planejava sua recuperação com a amiga recente Marie de Gournay na
Picardia, impressionava pelo novo grau de confiança. Como convinha a
alguém que rejeitava a ideia de desfazer os próprios pecados, ele não se
mostrava arrependido do caráter digressivo e pessoal do livro. Nem hesitava
em fazer exigências a qualquer um que entrasse em seu mundo. “É o leitor
desatento que se perde no meu tema, e não eu”, escrevia agora, comentando
a própria tendência a divagar. Para trás ficara qualquer pretensão de estar
escrevendo para a família e os amigos: ele sabia do que dispunha e
zombava de qualquer ideia de diluição, ocultação ou simplificação para
atender às convenções.
Mas apesar disso uma forma mais íntima de hesitação autoral ainda se
manifestava. Ele não podia lançar mão do livro sem mergulhar em confusão
criativa. “De minha parte, não sou capaz de julgar o valor de qualquer outro
livro com menos clareza do que o meu próprio; e situo Os ensaios ora
embaixo, ora lá em cima, de maneira muito incoerente e incerta.” A cada
vez que lia suas próprias palavras, ele era assaltado por essa combinação de
sentimentos — sendo então tomado por novos pensamentos, de modo que
lá vinha de novo a pena a escrever.
Como devia esperar o editor, Os ensaios de 1588 encontrou um mercado
ávido, embora certos leitores que haviam devorado a edição de 1580 como
um compêndio de sabedoria estoica ficassem perplexos com o que
encontravam agora. Vozes discordantes começaram a ser ouvidas.
Montaigne acaso não se tornava um pouco digressivo demais, um pouco
pessoal demais? Não nos estaria contando detalhes em excesso sobre seus
hábitos cotidianos? Haveria afinal alguma relação entre os títulos de
seus capítulos e o material que continham? Seriam realmente necessárias as
revelações sobre sua vida sexual? E não teria ele perdido, como sugerira seu
amigo Pasquier no encontro em Blois, o domínio da própria língua? Será
que se dava conta de que seu texto estava cheio de palavras estranhas,
neologismos e gasconismos coloquiais?
Quaisquer que fossem as incertezas de Montaigne, nada disso o afetava
muito. Se essas críticas o levavam a rever alguma coisa, era em geral para
tornar o texto ainda mais digressivo, pessoal e exuberante do ponto de vista
estilístico. Nos quatro anos de vida que ainda lhe restariam após a
publicação da edição de 1588 de Os ensaios, ele seguiu na mesma direção,
acrescentando folha após folha, dobra após dobra.
Tendo-se espalhado livremente na edição de 1588, ele agora galopava à
rédea solta. Não mais acrescentou capítulos, mas inseriu cerca de mil novas
passagens, algumas delas tão extensas que poderiam ter constituído um
ensaio inteiro na primeira edição. O livro, que já tinha quase o dobro do
tamanho original, era acrescido de mais um terço. Ainda assim, Montaigne
achava que podia apenas insinuar algumas coisas, não dispondo de tempo
nem de inclinação para discuti-las a fundo. “Para incluir mais coisas, vou
acumulando apenas o cabeçalho dos temas. Se tivesse de escrever mais
sobre suas consequências, haveria de multiplicar muitas vezes este
volume.” Como dissera a respeito de Plutarco, “ele se limita a apontar com
o dedo para onde devemos seguir, se quisermos”. A única regra é a verdade,
e o único caminho, a digressão.
Na folha de rosto de um dos exemplares nos quais trabalhava, Montaigne
escreveu em latim “viresque acquirit eundo”, uma citação de Virgílio:
“Ganha força à medida que avança.” Podia ser uma referência ao êxito
comercial do livro, ou, mais provavelmente, uma descrição da maneira
como recolhia material como uma bola de neve descendo a encosta. Até
mesmo Montaigne aparentemente temia estar perdendo o controle da obra.
Ao dar ao amigo Antoine Loisel um exemplar da edição de 1588, ele pediu-
lhe na dedicatória que lhe dissesse o que pensava a respeito — “pois temo
estar piorando à medida que avanço”.
É bem verdade que Os ensaios começavam a chegar ao limite da
compreensão. Podemos às vezes discernir o esqueleto da primeira edição
através desse emaranhado, especialmente nas edições modernas que
identificam com pequenas letras as três etapas: A para se referir à edição de
1580, B para a de 1588 e C para tudo que viria depois. O efeito pode se
parecer com o vislumbre dos contornos de um templo de pedra khmer em
meio a uma massa de folhagens tropicais. Ficamos nos perguntando como
seria uma eventual camada “D”. Se Montaigne tivesse vivido mais trinta
anos, será que teria continuado a adicionar textos ao livro até que se
tornasse praticamente impossível de ler, como o pintor da Obra-prima
desconhecida, de Balzac, que transforma seu quadro numa verdadeira
bagunça negra sem significado claro? Ou teria sabido exatamente quando
parar?
Não temos como responder, mas há indicações de que, ao morrer, ele não
achava que esse limite tivesse chegado. Seus derradeiros anos de trabalho
resultaram em pelo menos mais um exemplar densamente anotado, que
viria a se tornar — depois de passar pelas mãos de seu editor póstumo — o
alicerce de praticamente todos os posteriores Os ensaios de Montaigne.
Esse editor era ninguém menos que aquela exótica jovem que entrara em
sua vida em Paris no momento em que ele concluía a edição de 1588: Marie
de Gournay.
FILHA E DISCÍPULA
M
arie Le Jars de Gournay, a primeira grande editora e divulgadora
de Montaigne — como São Paulo para Jesus, ou Lênin para
Marx —, era uma mulher extremamente entusiástica e emotiva,
o que ela não deixou de evidenciar desinibidamente para Montaigne no
primeiro encontro que eles tiveram em Paris. Ela se tornaria de longe a
mulher mais importante da sua vida, mais até que sua mulher, sua mãe e sua
filha, a formidável trinca do lar de Montaigne. Como elas, sobreviveria a
ele — o que não surpreende, em seu caso, sabendo-se que tinha 32 anos
menos que ele. Os dois se conheceram quando Montaigne tinha 55 e ela,
23.
A vida de Marie de Gournay começou, em 1565, com muitas
semelhanças com a de Montaigne e duas diferenças cruciais: ela era mulher
e tinha menos dinheiro. Sua família de nobres provincianos vivia parte do
tempo em Paris e parte no castelo e propriedade de Gournay-sur-Aronde, na
Picardia, comprados pelo pai em 1568. Na idade adulta, Marie adotou como
sobrenome o nome da propriedade. Esse direito costumava ser reservado
aos filhos do sexo masculino, mas já era bem característico dela que
ignorasse a regra. Ela sempre se mostraria decidida a exigir mais da vida do
que lhe parecia reservado pelo sexo e a posição social.
Em 1577, seu pai morreu. Foi um sério golpe para ela e um verdadeiro
desastre para a família. Sem os rendimentos e a gestão assegurados por ele,
a vida de todos eles desmoronou. Morar em Paris era ainda mais
dispendioso que na Picardia, de modo que a família abriu mão quase
completamente da vida na cidade. Em 1580, Marie estava confinada a um
universo provinciano. Ele não lhe convinha muito, mas — já agora uma
teimosa adolescente — ela fez o que estava ao seu alcance para se educar,
usando os livros da biblioteca da família. Lendo obras latinas paralelamente
às respectivas traduções francesas, proporcionou a si mesma a melhor
formação clássica possível. O resultado disso foi um conhecimento
desigual, assistemático, mas de profunda motivação.
Montaigne poderia ter aprovado uma educação tão anárquica —
teoricamente. Na prática, não podemos imaginá-lo satisfeito com o que
estava ao alcance de Marie de Gournay, e que também haveria de deixá-lo
menos confiante em si mesmo. Montaigne podia mostrar-se despreocupado
a respeito da questão do aprendizado e sardônico quanto à admiração do pai
pelos livros. Gournay se orgulhava de suas conquistas porque tivera de lutar
por elas, e era muito fácil deixá-la na defensiva. Muitas vezes ela achava
que era alvo de zombaria. Sim, dizia, claro que as pessoas achavam
engraçado conhecer
Eis aqui um “você” no qual se reflete o meu “eu”; eis onde se abole
toda distância. (Stefan Zweig)
GUERRAS EDITORIAIS
Alguns anos depois, frente a nova cobrança — já que ainda não havia o
menor sinal de uma transcrição completa —, ele recorreu a nova tática:
Tudo que ainda resta fazer já está basicamente preparado e poderá ser
concluído em período relativamente breve, o qual, no entanto, seria
difícil definir, em vista de problemas especiais que se manifestam
repentina e frequentemente.
Eu li em Tito Lívio uma centena de coisas que outro homem não leu
nele. Plutarco leu nele uma centena além daquelas que eu pude ler, e
talvez além do que o autor ali pôs.
SEJA COMUM
E
ste livro tem sido em certa medida a história de como Montaigne
fluiu através dos tempos por meio de uma espécie de sistema de
canais das mentes. As amostras foram colhidas em cada comporta:
desde
De fato, uma vida comum e privada é precisamente isto: a vida mais rica
que se possa imaginar.
SEJA IMPERFEITO
Pelo menos esse proveito eu tiro da pedra, pois ela concluirá o que eu
ainda não pude realizar em mim mesmo, me reconciliando e
familiarizando completamente com a morte.
Existe algo mais doce que essa súbita mudança, no momento em que,
de uma dor extrema, eliminando a pedra, eu me recupero, como se se
acendesse a linda luz da saúde, tão livre e pleno (...)?
Só ele sabia a verdade: que era mais fácil gracejar e manter a conversa
no auge da dor do que qualquer observador jamais poderia imaginar. Como
indicara sua experiência passada de quase morte, a aparência externa de
alguém pode não ter qualquer relação com o que se passa em seu mundo
interior. Dessa vez, ele realmente estava em terrível agonia, diferentemente
do que acontecera nos momentos em que arrancava seu gibão. E, no
entanto, havia certa despreocupação em sua alma. A experiência parecia
tocá-la apenas de leve.
Já estou me acostumando a essa vida de cólicas: encontro nela
alimento para o consolo e a esperança.
NÃO É O FIM
M
ontaigne foi acometido de uma crise de pedra nos rins no início
de setembro de 1592. Ele já passara por isso muitas vezes, e
com toda a probabilidade aceitou a coisa filosoficamente de
início. Dessa vez, contudo, como ele sempre soubera poderia acontecer,
houve sérias complicações. Em vez de finalmente ser expelida, dando-lhe
aquela sensação de alívio e alegria, a pedra ficou onde estava, originando
uma infecção.
Seu corpo todo começou a inchar. Não demorou, e a inflamação chegou
à garganta, gerando um estado conhecido como “cinância”, da palavra
grega que designa a correia ou laço usado para estrangular um cão ou
qualquer outro animal — o que deixa bem claro como a sensação era
desagradável. À medida que esse estado se agravava, a garganta de
Montaigne se fechava cada vez mais, até que ele encontrasse enorme
dificuldade para respirar.
A cinância por sua vez levou a uma amigdalite, uma infecção grave da
garganta, ainda hoje considerada potencialmente fatal, se não for tratada.
Ela requereria tratamento com antibióticos, que no entanto não existiam na
época de Montaigne. Já agora, com a garganta inchada, ele não conseguia
falar, mas estava perfeitamente consciente e capaz de se comunicar
escrevendo bilhetes.
Três dias se passaram após a manifestação da amigdalite. Montaigne
sentava-se apoiado na cama, enquanto a família e os criados se reuniam
para acompanhá-lo e esperar. O quarto transformou-se exatamente na
superlotada cena de leito de morte muito concorrida que ele sempre quisera
evitar. Esses rituais tornavam a morte ainda pior que o necessário: serviam
apenas para aterrorizar o moribundo e os que o cercavam. Médicos e
sacerdotes debruçando-se sobre a cama; visitantes inconformados; “criados
pálidos e chorosos; um quarto escurecido; velas acesas; (...) em suma, tudo
ao nosso redor horroriza e assusta” — um cenário muito distante da morte
simples e até distraída que ele teria preferido. Mas agora que as coisas se
configuravam assim, ele nem tentou afastar aquela gente toda.
Quando ficou evidente que não restava esperança de recuperação, ele
redigiu seu último testamento e seus desejos finais. Um escritor da região,
Bernard Automne, afirmou que nesses últimos dias Montaigne “levantou-se
da cama de camisola” e mandou chamar criados e outros beneficiários
secundários do seu testamento, para transmitir-lhes pessoalmente o legado.
Talvez seja verdade, embora não combine bem com as descrições segundo
as quais estava paralisado na cama. Não dispomos de um relato plenamente
confiável de suas últimas horas de vida; todos eles são de segunda mão.
Mas um deles, pelo menos, pode ser considerado razoavelmente preciso: foi
escrito por um velho amigo de Montaigne, Étienne Pasquier, com base no
que ouviu de Françoise, que se manteve o tempo todo ao lado do marido.
Ao contrário de La Boétie tantos anos antes, Montaigne não quis afastar sua
mulher de seu leito de morte.
Providenciado o testamento, uma missa foi rezada em seu quarto. Ele
quase já não conseguia respirar. Segundo Pasquier, ele se levantou da cama
enquanto o padre falava, “num esforço desesperado, com as mãos
entrelaçadas”, para confiar seu espírito a Deus. Era um derradeiro gesto de
convenção católica: um breve reconhecimento a Deus na vida desse homem
tão alegremente secular.
Pouco depois, fechou-se o derradeiro e estreito canal de ar em sua
garganta. Ele pode ter sucumbido a um derrame, ou simplesmente sufocou.
Cercado pela família, amigos e criados, Michel Eyquem de Montaigne
morreu em 13 de setembro de 1592, aos 59 anos de idade.
Deve ter sido penoso assistir à morte de Montaigne — a luta para
respirar, o esforço desesperado, o horrível inchaço —, e ele parecia estar
plenamente consciente do que se passava, outra coisa que esperara poder
evitar. Mas talvez não fosse assim tão penoso para ele. No dia do seu
acidente de equitação, ele se arrastara vomitando sangue enquanto sua alma
flutuava no prazer; o mesmo pode ter acontecido no fim. Ele pode ter
sentido apenas a sensação de que sua vida era suavemente desligada dos
seus lábios: aquele delicado fio sendo finalmente cortado.
Étienne Pasquier e outro amigo, Pierre de Brach, compuseram seus
relatos de segunda mão para os contemporâneos, transformando a morte de
Montaigne num modelo de estoicismo. Prestavam à sua memória o mesmo
serviço que ele havia prestado à de La Boétie. Montaigne tivera uma vida
feliz, escrevia Pierre de Brach em carta a Justus Lipsius; e morrera bem,
igualmente feliz. Só os que a ele sobreviviam sentiriam dor, para sempre
privados de sua agradável companhia.
A primeira missão desses sobreviventes era a cerimônia fúnebre, além
do pavoroso desmembramento do corpo de Montaigne. Registrava uma
anotação na Ephemeris Beuther da família:
1533 (28
Nascimento de Montaigne
fev.)
1539?-48 Ele frequenta o Collège de Guyenne, em Bordeaux
Revolta contra o imposto do sal em Bordeaux; Montaigne
1548 (ago.)
assiste aos massacres de Moneins
Estudos, provavelmente de direito, provavelmente em
1548-54
Paris e/ou Toulouse
1554 Começa a trabalhar na Cour des Aides em Périgueux
Todos os funcionários de Périgueux são transferidos para
1557
Bordeaux
1558-59 Montaigne faz amizade com Étienne de La Boétie
O Tratado de Câteau Cambrésis põe fim às guerras
1559
externas da França, com consequências desastrosas
1562 Massacres de Vassy: início das guerras civis
Em Rouen com Carlos IX, Montaigne encontra três
tupinambás brasileiros
1563 (18
Morte de La Boétie, tendo Montaigne à cabeceira
ago.)
1565 (23
Montaigne se casa com Françoise de La Chassaigne
set.)
1568 (18
Morte de Pierre Eyquem: Montaigne herda a propriedade
jun.)
1569 Montaigne publica sua tradução da Teologia natural de
Sebond
Seu irmão Arnaud morre num acidente de tênis
1569 ou
início de Montaigne quase morre num acidente de equitação
1570
P. Como viver?
The Oxford Muse: http://www.oxfordmuse.com.
Melão: III:13 1031. Sexo: III:13 1012. Cantar: II:17 591. Debate: II:17 587; III:8 871. Estar vivo:
III:13 1036.
Levin: The Times (2 dez. 1991), p. 14. Pascal: Pascal, Pensées nº 568, p. 131.
“Há invariavelmente uma multidão”: Woolf, V., “Montaigne”, 71. “Ao nos encararmos”: “The Mark
on the Wall”, in Woolf, V., A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (Londres: Vintage,
2003), 79-80.
Tabourot et al.: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Quatrième et cinquième livre des touches
(Paris: J. Richer, 1588), V: f. 65v. Citado in Boase, Fortunes 7-8 e Millet 62-3. Emerson 92. Gide,
A., Montaigne (Londres & Nova York: Blackamore Press, 1929), 77-8. Zweig, “Montaigne” 17.
Leitores da Amazon: http://www.amazon.com/Michel-Montaigne-Complete-Penguin-
Classics/dp/0140446044. Comentários de tepi, Grant, Klurnz, diastolei e lexo-2x.
“Estou me contradizendo?”: Whitman, W., “Song of Myself”, in Leaves of Grass (Brooklyn, 1855),
55.
“Não posso manter meu tema parado”: III:2 740.
A pistola atirava: Saint-Sernin, J. de, Essais et observations sur les Essais du seigneur de Montaigne
(Londres: E. Allde, 1626), f. A6r.
“É em todo o mundo o único livro”: II:8 338.
No próprio traseiro: III:13 1044.
Flaubert: Gustave Flaubert a Mlle Leroyer de Chantepie, 16 de junho de 1857, citado in Frame,
Montaigne in France 61.
4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão
Leituras de Montaigne e o fato de não ter sido desestimulado pelo tutor: I:26 158. Quanto às
hipóteses sobre a identidade do tutor, ver Hoffmann, G., “Étude & éducation de Montaigne”, in
Desan, Dictionnaire 357-9.
Descoberta de Ovídio por Montaigne: I:26 158. Sobre Ovídio e Montaigne, ver Rigolot, e McKinley,
M., “Ovídioe”, in Desan, Dictionnaire 744-5.
Primeiras descobertas de Montaigne e “apesar de tudo isso, ainda era a escola”: I:26 158.
Esgotada a emoção proporcionada por Ovídio: II:10 361. Emulação de seu estilo ainda assim: II:35
688-9. Villey encontra 72 referências a Ovídio em Os ensaios: Villey, Les Sources I:205-6. Ver
Rigolot 224-6. Virgílio suscetível de ser um pouco melhorado: II:10 362.
“Diversidade e verdade” do homem e “variedade das maneiras como ele se forma”: II:10 367. Tácito:
III:8 873-4.
Montaigne sobre Plutarco: “Ele é tão universal”: III:5 809. Ele é “tão cheio de coisas”: II:10 364.
“Pensando bem, isso não é nada mau” e moscas num espelho: Plutarco, “Da tranquilidade
mental”, Moralia VI, 467C e 473E, ed. Loeb VI: 183, 219. Plutarco aponta aonde devemos ir se
quisermos: I:26 140. “Creio conhecê-lo até na própria alma”: II:31 657. Não importa há quanto
tempo uma pessoa amada morreu: III:9 927. Montaigne admirava as duas consagradas traduções
francesas de Plutarco por Jacques Amyot: Plutarco, Vies des hommes illustres (Paris: M. de
Vascosan, 1559), e Oeuvres morales (Paris: M. de Vascosan, 1572), ambas as tr. por J. Amyot. Ver
Guerrier, 0., “Amyot, Jacques”, in Desan, Dictionnaire 33-4.
Sobre a biblioteca de Montaigne: Sayce 25-6. A coleção se dispersou após sua morte; desde então
têm sido feitas tentativas de reconstituir uma listagem. Ver Villey, Les Sources I:273-83: Desan,
P., “Bibliothèque”, in Desan, Dictionnaire 108-11.
Petrarca, Erasmo e Maquiavel: Friedrich 42. A carta de Maquiavel é citada in Hale 190. Cícero: II:10
365: Virgílio: II:10 362.
“Vou percorrendo um livro aqui, outro ali” e “Na verdade, praticamente não faço deles”: III:3 761-2.
“Nós, que pouco contato temos”: III:8 873. “Se encontro dificuldades” II:10 361.
Lucrécio: Screech, M. A., Montaigne’s Annotated Copy of Lucretius (Genebra: Droz, 1998).
“Delicadeza e liberdade”: I:26 157.
“A memória é uma ferramenta maravilhosamente útil”: II:17 598. “Nenhum homem tem”: I:9 25.
Desejo de lembrar ideias e sonhos: III:5 811. “Estou cheio de rachaduras”: II:17 600. A fonte é
Terêncio, O Eunuco, I:105.
Linceste: III:9 893. A fonte é Quintius Curtius Rufus, History of Alexander the Great VII:1 8-9.
Montaigne sobre falar em público: III:9 893-4.
Tupinambás: I:31 193. Morte de La Boétie: carta de Montaigne ao pai, em sua edição das obras de La
Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], e in Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame,
1276-7.
Irritação porque as pessoas não acreditavam nele: I:9 25. Sobre sua capacidade de se lembrar de
citações, ver Friedrich 31, 338. Baudier: de um comentário em prosa apenso a seus versos em
latim, “À nobre heroína Marie de Gournay”, Baudier, D., Poemata (Leyden, 1607), 359-65.
Citado in Millet 151-8, e Villey, Montaigne devant la postérité 84-5. Malebranche: Malebranche
187-8.
Memória fraca requer honestidade: I:9 26-7: II:17 598. Contribui para a concisão das anedotas: I:9
26. Faculta bom-senso: I:9 25. Previne ressentimentos mesquinhos: I:9 27.
Stewart: Stewart, D., Elements of the Philosophy of the Human Mind, in Collected Works, ed. W.
Hamilton (Edimburgo: T. Constable, 1854-60), II:370-1.
“Tenho de solicitá-la de maneira relaxada”: II:17 598. O esforço de lembrança faz esquecer: III:5
811. O empenho de esquecimento faz lembrar: II:12 443.
“Tudo aquilo que faço com naturalidade e facilidade”: II:17 599. “Tão indolente, relaxado e pesado”:
I:26 157.
“Não existe sutileza tão transparente”: II:17 600-1. “Compreensão vagarosa”: I:26 157.
Uma vez entendida alguma coisa, era para valer: II:17 600. “O que eu via, via bem”: II:10 31. “Ideias
ousadas”: I:26 157.
Nadolny, S., Die Entdeckung der Langsamkeit (Munique: Piper, 1983), traduzido por R. Freedman
como The Discovery of Slowness (Nova York: Viking, 1987). Sobre o Movimento Devagar, ver
http://www.slowmovement.com/. Ver também Honoré, C., In Praise of Slow (Londres: Orion,
2005). Existe um World Institute of Slowness: http://www.theworldinstituteofslowness.com/.
“Estou quase sempre no devido lugar”: III:2 746. “Incapaz de se submeter”: I:26 159.
“Não sei qual dos dois”: III:13 1034.
“Lembro-me de que, desde a mais tenra idade”: II:17 582. Apenas “salpicado”: II:17 584.
Sobre “onde reside a pequenez” e Sobre “onde está o senhor?”: III:17 590. Falta de respeito por
causa da altura: II:17 589-90. Truque da montaria: III:13 1025.
Uma constituição forte e sólida: II:17 590. Levando uma bengala: II:25 633. Vestido de preto e
branco: I:36 204. Capa: I:26 155.
Poema de La Boétie: é o segundo de dois poemas dedicados a Montaigne e incluídos na edição
Montaigne das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], ff. 102r-103r (“Ad Belotium
et Montanum”) e 103v-105r (“Ad Michaëlem Montanum”). Foram publicados in Montaigne
Studies 3, nº 1 (1991) com tradução inglesa de R. D. Cottrell (16-47).
Toulouse: Montaigne afirma ter conhecido lá o médico Simon Thomas (I:21 82) e menciona o
julgamento de Martin Guerre, embora não diga ter comparecido pessoalmente: III:11 959. Paris:
III:9 903.
Montaigne magistrado: ver Almqvist, K., “Magistrature”, in Desan, Dictionnaire 619-22. Sobre os
primeiros anos no Périgueux e a transferência para Bordeaux: Frame, Montaigne 46-51, com a
tradução, por Frame, do relatório do discurso de Montaigne.
O trabalho de Montaigne: chegaram a nós cinco das interpretações de Montaigne. Ver Lazard 89.
“É mais trabalhoso”: III:13 996. Juiz Cabresto de Ganso: Tiers livre, caps. 39-44, in Rabelais, The
Complete Works. Jogando dados: 457.
Casos de injustiça: III:13 998. Montaigne sobre o direito: ver Tournon, A., “Justice and the Law”, in
Langer (ed.), Cambridge Companion 96-117, e “Droit”, in Desan, Dictionnaire 284-6. Sobre
outros críticos contemporâneos do direito, ver Sutcliffe, F., “Montaigne and the European legal
system”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 39-47.
Falibilidade dos juízes: II:12 514. Falibilidade das leis: III:13 1000.
Viagens a Paris: sabe-se que Montaigne fez várias entre 1559 e 1561. Ver Lazard 91, 107.
Henrique II “nunca chamava pelo nome certo”: I:46 244.
Sobre o contexto político e religioso francês nas décadas de 1550 e 1560: ver Holt; Knecht, Rise and
Fall e The French Civil Wars; Nakam, Montaigne et son temps.
“É absurdo”: Michel de L’Hôpital citado in Knecht, Rise and Fall 338. “Todos tivessem o seu Deus”
e “Un roi, une foi, une loi”: Elliott, J. H., Europe Divided 1559-1598 (Londres: Fontana, 1968),
93-4, sendo a primeira uma citação do Compenio y breve relación de la Liga (Bruxelas, 1591) de
Pedro Cornejo, f. 6.
“Grande medo”: Knecht, Rise and Fall 349. Vassy e o início da guerra: ibid., 352-5.
Pasquier a M. de Fonssomme, primavera de 1562: Pasquier, E., Lettres historiques 98-100. Citado in
Holt 50.
“Não creio que Deus”: II:23 628-9.
As histórias de Monluc: Monluc 246-72. Encomendas de mais rodas para esquartejamento e estacas:
Nakam, Montaigne et son temps 144·
Montaigne sobre Monluc: II:8 348.
O desafio de d’Escars e a reação de Montaigne: ver Frame, Montaigne 53-5, que também traduz o
relatório do discurso de Montaigne, com base em Payen, J.-F., Recherches sur Montaigne.
Documents inédits, nº 4 (Techener, 1856), 20. Admiração de Montaigne pela facção Lagebâton:
II:17 609.
“Por meu temperamento, estou sujeito a súbitas explosões”: III:5 824. A resposta é discutida in
Frame, Montaigne 52-5.
13. P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito
Detalhes das primeiras edições de Os Ensaios in “Sources”; ver também Sayce e Maskell. Millanges:
ver Hoffmann 66-83. Sobre as duas edições Millanges (1580 e 1582), ver Blum, C., “Dans
l’Atelier de Millanges”, in Blum & Tournon (eds), Editer les Essais de Montaigne (79-97). Sobre
a tiragem da primeira edição: Desan, P., “Édition de 1580”, in Desan, Dictionnaire 297-300, isto
em 300.
La Croix du Maine: La Croix du Maine 329. Os Ensaios também aparecia na bibliografia semelhante
de Antoine Du Verdier, La Bibliothèque d’Antoine Du Verdier, seigneur de Vauprivas (Lyon,
1585), artigo sobre “Michel de Montaigne”, 872-81. Os Ensaios se desempenhou melhor do que
Montaigne esperava: III:9 895. “Uma peça do mobiliário”: III:5 781.
“Meu Senhor, entãoVossa Majestade também gosta de mim”: La Croix du Maine 329. Cf. a
referência de Montaigne ao próprio livro como “consubstancal com o autor”: II:18 612.
Vinho tinto: Scaliger e Dupuy citados in Villey, Montaigne devant la postérité 73. Do vinho tinto ao
branco: III:13 1031. “Insolência”: Malebranche, La recherche de fa vérité (1674), 369, citado in
Marchi 48. Pascal: Pascal, Pensées nº 534, p. 127.
Pattison: Pattison, M., resenha in Quarterly Review 198 (Set. 1856), 396-415, isto na p. 396.
“Tagarelice”: St. John, B., Montaigne the Essayist (Londres: Chapman & Hall, 1858), I: 316-17.
“O homem em si mesmo”, o “cerne”: Sterling 323-4.
“Volto meu olhar para dentro”: II:17 606. Sobre esta passagem, ver Starobinski 225-6. Ver também
Coleman 114-15, que contesta esta tradução. Sobre o caráter barroco ou maneirista de Os Ensaios,
ver: Buffum; Butor; Sayce, R. A., “Baroque elements in Montaigne”, French Studies 8 (1954), 1-
15; Nakam, G., “Montaigne manieriste”, em seu livro Le dernier Montaigne 195-228; Rigolot, F.,
“Montaigne’s anti-Mannerist Mannerism”, in Cameron e Willett (eds), Le Visage changeant de
Montaigne 207-30. Montaigne: “Grotescos” e “Corpos monstruosos”: I:28 164. Horácio sobre a
poesia: Horácio, Ars poetica 1-23.
Escrever no ritmo de uma conversa: II:17 587. Ele se refere a seu “langage coupé” nas instruções ao
gráfico no exemplar de Bordeaux: ver Sayce 283.
“Dos cem membros”: I:50 266.
“Das carruagens”: III:6 831-49. Sobre o título deste ensaio, ver Tournon, A., “Fonction et sens d’un
titre enigmatique”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne 19-20 (1984), 59--68, e o
verbete “Coches”, in Desan, Dictionnaire 175-6. “Da fisionomia”: III:12 964-92.
Thackeray: ver Dédéyan I:288. “Não raro só o denotam por algum indício” e “palavras num canto”:
IIl:9 925. Ver McKinley, M. B., Words in a Corner: Studies in Montaigne’s Latin Quotations
(Lexington, Ky.: French Forum, 1981).
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim
As duas cartas dos juízes e a viagem a Roma: Diário de Viagem 1246-55.
“Eu me desculpei”: III:10 934. A carta do rei: traduzida in Frame, Montaigne 224.
Volta para casa: Diário de Viagem 1270, e Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 30 nov.
Sobre suas tarefas como prefeito e as dificuldades da época: Lazard 282-3; Lacouture 227-8; Cocula,
A.-M., Montaigne, maire de Bordeaux (Bordeaux: Horizon chimérique, 1992). Ouvir a todos sem
julgar: III:8 855.
Sobre Matignon, ver Cooper, R., “Montaigne dans l’entourage du maréchal de Matignon”,
Montaigne Studies 13 (2001), 99-140; e seu “Matignon, Maréchal de” in Desan, Dictionnaire
640-4.
Sobre a exaustão de Pierre com as viagens: III:10 935. As viagens de Montaigne como prefeito:
Frame, Montaigne 230. Seu trabalho no castelo: Nakam, Montaigne et son temps 311.
“Foi o que aconteceu no meu caso”: III:10 934. Sobre sua reeleição, enfrentando oposição: Frame,
Montaigne 230.
Montaigne como intermediário: Frame, Montaigne 212-4.
Rebelião de Vaillac e seu exílio de Bordeaux: Frame, Montaigne 238-40. Cartas de Montaigne a
Matignon: 22 e 27 de maio de 1585, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1323-7.
Admiração dos contemporâneos: Thou, J.-A. de, Mémoires (1714), e Duplessis-Mornay a Montaigne,
25 nov. 1583, traduzido in Frame, Montaigne, 229, 233.
“Ordem” e “suave e discreta tranquilidade”: III:10 953.
“Esmorecimento no empenho” e “Esta é muito boa”: III:10 950. Manter uma cidade sem ocorrências
especiais durante a “inovação”: III:10 953. Verdadeira motivação de um aparente engajamento:
III:10 951.
O que o dever impunha: III:10 954.
Shakespeare, W., King Lear (escrito c. 1603-6). “Odeio mortalmente parecer um lisonjeador”: I:40
225-6.
“Digo-lhes francamente quais são meus limites”: III:1 731. A franqueza torna as pessoas sinceras, e
não ser difícil estar entre duas facções: III:1 730.
Nem todo mundo entendia: III:1 731. “No fim das contas”: III:8 854.
Matignon a Henrique III, 30 de junho de 1585, e a Montaigne, 30 de julho de 1585, ambas traduzidas
in Frame, Montaigne 240.
Cartas de Montaigne aos juízes de Bordeaux, 30 e 31 de julho de 1585, in The Complete Works, tr. D.
Frame, 1328-9.
Decreto proibindo a entrada na cidade: ver Bonnet, P., “Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum
e Moreau (eds), Études montaignistes 59-67, esta citação p. 64.
Crítica da decisão de Montaigne: Detcheverry, Grün, Feugère e Lecomte, todos citados in Bonnet, P.,
“Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum e Moreau (eds), Études Montaignistes 59-67, esta
citação p. 59-62. As cartas foram inicialmente publicadas in Detcheverry, A., Histoire des
Israélites de Bordeaux (Bordeaux: Balzac jeune, 1850).
“Eu retenho”: II:12 454.
Sobre o niilismo nesse período, ver Gillespie, M. A., Nihilism before Nietzsche (Chicago: University
of Chicago Press, 1995).
Faguet: seus escritos foram reunidos e prefaciados por A. Compagnon em Faguet, Autour de
Montaigne. Champion: Champion, E., Introduction aux Essais de Montaigne (Paris, 1900): ver
Compagnon, A., Prefácio a Faguet 16.
Guizot: Guizot, G., Montaigne: études et fragments. “Ele não nos transformará nos homens que
nosso tempo requer”: ibid. 269. Guizot trabalhou durante 25 anos numa edição de Os Ensaios e
num estudo sobre a vida de Montaigne, sem chegar a concluí-los, mas os fragmentos foram
reunidos pelos amigos após sua morte.
Michelet: Michelet, Histoire de France (1861) VIII: 429 (ideia “fraca e negativa”) e X: 397-8
(“observar a si mesmo sonhando”). Em ambos os casos, citados in Frame, Montaigne in France
42-3.
Church, R. W., “The Essays of Montaigne”, in Oxford Essays contributed by Members of the
University. 1857 (Londres: John Parker, 1857), 239-82. “Da nulidade do homem (...) na ideia do
dever”: ibid. 265. “indolência e falta de tônus moral”: ibid. 280. Sobre Church, ver Dédéyan I:
295-308.
As observações de Halifax são reproduzidas na edição Hazlitt (1842) de Montaigne, The Complete
Works xxxv.
Edição Honoria: Montaigne, Essays, ed. Honoria (1800) (ver “Fontes”). Era um projeto semelhante
ao de Henrietta Maria Bowdler em The Family Shakespeare (1807), que gerou o verbo inglês
“bowdlerise”, significando expurgar ou censurar. “Se este Os ensaios se tornar adequado” e “Ele
também se mostra tão frequentemente desconexo”: introdução de Honoria, xix. Montaigne
criticado por não mencionar o massacre de São Bartolomeu: edição Honoria, 104n. Não acordar
as crianças com música: ibid. 157n. Montaigne organizando a própria vida, seu conformismo e
seus “muitos excelentes sentimentos religiosos”: introdução de Honoria, xviii.
“Não sei se seria decoroso admitir”: III:12 975.
A questão sucessória e a preferência dos politiques: Nakam, Montaigne et son temps 329-32.
Visita de Henrique de Navarra, inclusive a caça ao veado: Montaigne, Le Livre de raison, entrada
relativa a 19 dec., na tradução constante in Frame, Montaigne 235.
Ainda empenhado num acordo: Montaigne a Matignon, 18 jan. 1585, in The Complete Works, tr. D.
Frame, 1314-15.
“Guelfo para os gibelinos”: III:12 972. “Não havia acusações formais”: III:12 972. Assédio de
Castillon: Frame, Montaigne 256.
“Uma carga pesada de nossos distúrbios”: III:12 969. Peste: III:12 976.
Vendo gente cavando o próprio túmulo: III:12 979.
“Eu, que sou tão hospitaleiro”: III:12 976. Sobre a atuação política de Montaigne durante seu período
como refugiado e depois dele: Frame, Montaigne 247.
O convite a Montaigne e sua mulher e a ajuda de custo são mencionados numa carta de Catarina de
Médici a um tesoureiro a 31 dec. 1586: ver Frame, Montaigne 267.
Montaigne trabalhando com Corisande: Frame, Montaigne 269-70.
A missão de Montaigne e as cartas em que é mencionada: Frame, Montaigne 270-3. Preocupação dos
ingleses: ibid. 276.
Ataque na floresta: Montaigne a Matignon, 16 fev. [1588?], in The Complete Works, tr. D. Frame,
1330-1.
Henrique III e Guise em Paris e o Dia das Barricadas: ver Knecht, Rise and Fall 523-4. O comentário
do papa: citado in Neale, J. E., The Age of Catherine de Medici, nova ed. (Londres: Jonathan
Cape, 1957), 96.
“Eu nunca vi: Pasquier a Sainte-Marthe, maio de 1588, in Pasquier, Lettres historiques 286-97.
Detenção e libertação de Montaigne: Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 10 e 20 de julho;
esta última traduzida in Frame, Montaigne 281. Como sempre, Montaigne se confundiu nas datas:
escreveu o comentário inicialmente na página de 20 de julho, deu-se conta do equívoco e voltou a
escrevê-lo na página de 10 de julho. A segunda versão é mais sucinta, fosse por achar tedioso
escrever a mesma coisa duas vezes ou porque a revisão favorecesse a concisão. “Nenhuma prisão
jamais me viu”: III:13 999-1000.
Brach: Pierre de Brach a Justus Lipsius, 4 fev. 1593, traduzido in Frame, Montaigne 282. Sobre
Brach, ver Magnien, M., “Brache, Pierre de”, in Desan, Dictionnaire 126-8.
Sobre Marie de Gournay, ver Capítulo 18 acima.
Os conselhos de Pasquier em matéria de estilo e o desinteresse de Montaigne: Pasquier a A. M. de
Pelgé, 1619, in Pasquier, Choix de lettres 45-6, traduzido in Frame, Montaigne 283. “Oh, terrível
espetáculo!”: Pasquier, Lettres historiques 286-97. Sobre Étienne Pasquier, ver Magnien, C.,
“Estienne Pasquier ‘familier’ de Montaigne?”, Montaigne Studies 13 (2001), 277-313.
Pregadores exortando a matar o rei: ver por exemplo Boucher, J., De justa Henrici tertii abdicatione
(ag. 1589). Ver Holt 132.
Uma cidade enlouquecida: L’Estoile e Thou, ambos citados in Nakam, Montaigne et son temps 341-
2.
“Essa questão tão grave”: II:12 392.
“Maneira mais exata que temos”: III:2 971.
Cartas de Montaigne a Henrique IV: Montaigne a Henrique IV, 18 jan. [1590?] e 2 set. [1590?], in
The Complete Works, tr. D. Frame, 1332-6.
“Vejo os nossos reis”: III:1 728.
Sobre os hábitos masculinos de Henrique IV: Knecht, Rise and Fall, 559-61.
Discurso de Henrique IV em 1599: citado in Knecht, Rise and Fall 545-7.