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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir
a um novo nível."

logo
SARAH BAKEWELL

Tradução
Clóvis Marques
Copyright © Sarah Bakewell, 2010

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Objetiva Ltda., rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro — RJ — CEP: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br

Título original
How to Live or A Life of Montaigne in One Question and Twenty Attempts at an Answer

Capa
Sabine Dowek

Revisão
Tamara Sender
Lilia Zanetti
Ana Julia Cury

Coordenação de e-book
Marcelo Xavier

Conversão para e-book


Freitas Bastos

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B142c

Bakewell, Sarah

Como viver ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta
[recurso eletrônico] / Sarah Bakewell ; tradução Clóvis Marques. - Rio de Janeiro : Objetiva,
2013.
recurso digital

Tradução de: How to live or A life of Montaigne in one question and twenty attempts at an
answer
Formato: ePub
Requisitos de acesso: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
384p. ISBN 978-85-390-0442-3 (recurso eletrônico)
1. Montaigne, Michel de, 1533-1592. 2. Montaigne, Michel de, 1533-1592 - Filosofia. 3.
Escritores franceses - Séc. XVI - Biografia 4. Livros eletrônicos. I. Título.

12-8798.                            CDD: 928.4                            CDU: 929:821.133.1


Sumário

Capa
Folha de rosto
Créditos
P. Como viver?
Michel de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de
resposta
1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte
Por um fio
2. P. Como viver? R. Preste atenção
Começando a escrever
O fluxo da consciência
3. P. Como viver? R. Trate de nascer
Micheau
A experiência
4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine
com lentidão
Lendo
Montaigne, lento e esquecido
O jovem Montaigne em tempos conturbados
5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas
La Boétie: amor e tirania
La Boétie: morte e luto
6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques
Os pequenos truques e a arte de viver
Montaigne escravizado
7. P. Como viver? R. Questione tudo
Só sei que nada sei, e nem disto estou certo
Animais e demônios
Uma prodigiosa máquina de sedução
8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da
loja
Entregar-se com metade do traseiro
Responsabilidades práticas
9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros
Uma sabedoria alegre e comunicativa
Abertura, compaixão e crueldade
10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito
Tudo depende do ponto de vista
Selvagens nobres
11. P. Como viver? R. Viva com temperança
Elevando e baixando a temperatura
12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade
Terror
Herói
13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito
Best-seller Barroco
14. P. Como viver? R. Conheça o mundo
Viagens
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim
Prefeito
Objeções morais
Missões e assassinatos
16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso
Quinze ingleses e um irlandês
17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada
Je ne regrette rien
18. P. Como viver? R. Abra mão do controle
Filha e discípula
Guerras editoriais
Montaigne remixado e embabuinado
19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito
Seja comum
Seja imperfeito
20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma
Não é o fim
Cronologia
Agradecimentos
Notas
Fontes
Para Simo
P. Como viver?

MICHEL DE MONTAIGNE EM UMA PERGUNTA E VINTE TENTATIVAS DE RESPOSTA

O
século XXI está cheio de pessoas cheias de si. Meia hora de
percurso pelo oceano on-line de blogs, tweets, tubes, spaces,
faces, páginas e pods nos defronta com milhares de indivíduos
fascinados pela própria personalidade e clamando por atenção. Eles falam
de si mesmos, escrevem diários, conversam e postam fotografias de tudo
que fazem. Desinibidamente extrovertidos, também olham para dentro de si
mesmos como nunca antes. À medida que mergulham em sua experiência
pessoal, blogueiros e internautas se comunicam com os outros seres
humanos, num verdadeiro festival do ego.
Alguns otimistas tentaram transformar esse encontro global de mentes na
base para uma nova abordagem das relações internacionais. O historiador
Theodore Zeldin criou um site chamado “The Oxford Muse” (A Musa de
Oxford), estimulando as pessoas a montar pequenos autorretratos em
palavras que descrevessem sua vida cotidiana e as coisas que aprenderam.
O resultado é posto on-line, à disposição da leitura e das reações dos outros.
Para Zeldin, a autorrevelação compartilhada é a melhor maneira de
desenvolver a confiança e a cooperação no planeta, substituindo os
estereótipos nacionais por pessoas de carne e osso. A grande aventura da
nossa época, diz ele, é “descobrir quem habita o mundo, um indivíduo de
cada vez”. Assim, “Oxford Muse” está cheio de relatos ou entrevistas
pessoais, com títulos tais como estes:

Por que um russo instruído trabalha como faxineiro em Oxford


Por que ser um cabeleireiro satisfaz a necessidade de perfeição
Como descobrir que você não é quem pensava ser escrevendo um
autorretrato
O que é possível descobrir se você não bebe ou dança
O que dizemos a mais ao escrever sobre nós mesmos, em relação ao que
dizemos em conversa
Como ter sucesso e ser preguiçoso ao mesmo tempo
Como um chef de cozinha manifesta sua bondade

Descrevendo o que os torna diferentes de qualquer outra pessoa, os


internautas revelam aquilo que compartilham com todo mundo: a
experiência de ser humano.
Esta ideia — escrever a nosso próprio respeito para criar um espelho no
qual outras pessoas reconheçam a própria humanidade — não existiu
sempre. Teve de ser inventada. E, ao contrário de muitas invenções
culturais, pode ser atribuída a um único indivíduo: Michel Eyquem de
Montaigne, um nobre, viticultor e funcionário público que viveu na região
do Périgord, no sudoeste da França, de 1533 a 1592.
Montaigne lançou a ideia simplesmente pondo-a em prática. Ao
contrário da maioria dos memorialistas de sua época, ele não escrevia para
deixar registrados seus grandes feitos e suas conquistas. Nem se limitava a
botar no papel um simples e direto testemunho dos acontecimentos
históricos, embora pudesse tê-lo feito: ele sobreviveu a uma guerra civil
religiosa que quase destruiu seu país ao longo das décadas nas quais
incubou e escreveu seu livro. Membro de uma geração privada do idealismo
esperançoso vivenciado pelos contemporâneos de seu pai, se adaptou aos
horrores da vida pública voltando a atenção para a vida privada. Fez frente
à desordem, geriu sua propriedade, cuidou de ações judiciais como
magistrado e administrou Bordeaux, revelando-se o mais tranquilo
governante de sua história. O tempo todo, escrevia textos independentes e
exploratórios, aos quais dava títulos simples:

Da amizade
Dos canibais
Do hábito de usar roupas
Como choramos e rimos pela mesma coisa
Dos nomes
Dos cheiros
Da crueldade
Dos polegares
Como nossa mente cria obstáculos para si mesma
Da diversão
Das carruagens
Da experiência

No total, Montaigne escreveu 107 ensaios como esses. Alguns se


estendem por uma página ou duas; outros são muito mais longos, de tal
maneira que a maioria das edições recentes da coleção completa tem mais
de mil páginas. Eles raramente se propõem a explicar ou ensinar alguma
coisa. Montaigne se apresenta como alguém que anotava o que quer que lhe
passasse pela cabeça quando lançava mão da pena, capturando encontros e
estados de espírito à medida que se apresentavam. Valia-se dessas
experiências para fazer perguntas a si mesmo, tratando sobretudo daquela
grande questão que o fascinava, assim como a muitos de seus
contemporâneos. E ela pode ser resumida em duas palavras simples: “Como
viver?”
Não se trata da mesma questão desta outra pergunta de caráter ético:
“Como se deve viver?” Montaigne se interessava pelos dilemas morais, mas
estava menos preocupado com o que as pessoas deviam fazer do que com
aquilo que efetivamente faziam. Ele queria saber como viver bem a vida —
ou seja, como levar uma vida correta e honrada, mas também plenamente
humana, satisfatória e frutífera. A questão levou-o ao mesmo tempo a
escrever e a ler, pois se sentia curioso a respeito de todas as vidas humanas,
do passado e do presente. Estava sempre se perguntando sobre as emoções e
motivações por trás do que as pessoas faziam. E, como era ele próprio o
exemplo mais à mão de um ser humano cuidando da vida, fazia-se também
muitas perguntas sobre si mesmo.
Esta pergunta tão realista e direta — “Como viver?” — ramificou-se
numa infinidade de outras perguntas pragmáticas. Como qualquer outra
pessoa, Montaigne deparava com as grandes perplexidades da existência:
como enfrentar o medo da morte, como superar a perda de um filho ou de
um amigo querido, como aceitar os fracassos, como aproveitar ao máximo
cada momento, para não desperdiçar a vida. Mas também havia enigmas
menores. Como evitar entrar numa discussão sem sentido com a mulher ou
um criado? Como tranquilizar um amigo que se julga atingido pelo feitiço
de uma bruxa? Como animar um vizinho entregue às lágrimas? Como
proteger a própria casa? Qual a melhor estratégia se você for rendido por
assaltantes armados que parecem hesitar entre matá-lo e sequestrá-lo para
cobrança de resgate? Se você ouvir a professora de sua filha ensinando-lhe
algo que considera errado, seria correto intervir? Como lidar com bullying?
O que dizer ao seu cão se ele quiser sair para brincar, embora você prefira
ficar na escrivaninha escrevendo seu livro?
Em vez de dar respostas abstratas, Montaigne nos diz o que ele fazia
nesses casos e como se sentia ao fazê-lo. E fornece todos os detalhes de que
precisamos para termos uma ideia realista, às vezes até mais do que
precisamos. Sem qualquer motivo aparente, conta-nos que a única fruta que
aprecia é o melão, que prefere fazer sexo deitado a fazer em pé, que não
sabe cantar e que gosta da companhia de pessoas animadas, muitas vezes
deixando-se levar pelo entusiasmo de um debate bem-humorado. Mas
também descreve sensações mais difíceis de apreender em palavras, e
mesmo de serem trazidas à consciência: como é sentir-se preguiçoso,
corajoso ou indeciso; ou entregar-se a um momento de vaidade, ou ainda
tentar livrar-se de um medo obsessivo. Escreve até sobre a pura e simples
sensação de estar vivo.
Explorando fenômenos dessa natureza ao longo de vinte anos,
Montaigne estava sempre se questionando e acabou construindo um retrato
de si mesmo: um autorretrato em constante movimento, tão vívido que
praticamente salta da página e se senta ao nosso lado para ler em nossa
companhia. Ele é capaz de dizer coisas surpreendentes: muita coisa mudou
desde o nascimento de Montaigne, há quase meio milênio, e nem todos os
costumes e crenças podem ser reconhecidos nos dias atuais. Mas ler
Montaigne é vivenciar uma série de choques de familiaridade, que
simplesmente pulverizam os séculos entre ele e o leitor do século XXI. Os
leitores continuam a se ver nele, exatamente como os visitantes de “Oxford
Muse” se veem, ou veem aspectos de si mesmos, na história do russo
instruído que trabalha como faxineiro ou no relato sobre como é não gostar
de dançar.
O jornalista Bernard Levin escreveu em 1991 para o jornal The Times,
em artigo sobre o assunto: “Duvido que qualquer leitor de Montaigne deixe
de botar o livro de lado em algum momento para se perguntar, com
incredulidade: ‘Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito?’” A
resposta, naturalmente, é que ele o sabe porque sabe a respeito de si mesmo.
Por sua vez, as pessoas o entendem porque também já sabem “tudo isso”
sobre a própria experiência. No século XVII, Blaise Pascal, um dos mais
obsessivos leitores de Montaigne, escreveu: “Não é em Montaigne, mas em
mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo.”
A romancista Virginia Woolf imaginou as pessoas desfilando diante do
autorretrato de Montaigne como visitantes de uma galeria de arte. À medida
que as pessoas vão passando, param em frente ao retrato e se debruçam para
enxergar melhor através dos reflexos no vidro. “Há invariavelmente uma
multidão diante do retrato, contemplando-o em profundidade, vendo os
próprios rostos nele refletidos, enxergando sempre melhor com o passar do
tempo, mas sem nunca conseguir dizer exatamente o que está vendo.” O
rosto do retrato e dos observadores se fundem num só. É assim, segundo
Woolf, que as pessoas reagem umas às outras de maneira geral:

Ao nos encararmos nos ônibus e nos trens subterrâneos, estamos nos


olhando no espelho (...) E no futuro os romancistas vão-se dar conta
cada vez mais da importância desses reflexos, pois é claro que não
existe apenas um reflexo, mas uma quantidade quase infinita; essas
profundezas é que eles haverão de explorar, esses fantasmas é que
haverão de perseguir.

Montaigne foi o primeiro escritor a criar uma literatura que funcionava


deliberadamente dessa maneira e a fazê-lo recorrendo à abundância de
material de sua própria vida, e não à pura filosofia ou à pura invenção. Ele
foi o mais humano dos escritores, e também o mais sociável. Se tivesse
vivido na era da vasta comunicação em rede, ficaria perplexo com o alcance
a que chegou essa sociabilidade: não apenas dezenas ou centenas de pessoas
numa galeria, mas milhões vendo-se refletidas de diferentes ângulos.
O efeito disso, tanto na época de Montaigne como na nossa, pode ser
inebriante. Um de seus admiradores no século XVI, Tabourot des Accords,
afirmou que qualquer um que lesse Os ensaios se sentiria como se o tivesse
escrito. Mais de 250 anos depois, o ensaísta Ralph Waldo Emerson disse a
mesma coisa praticamente com as mesmas palavras. “Parecia que eu
próprio tinha escrito o livro, numa vida anterior.” “Me apropriei dele de tal
maneira”, escreveu no século XX o romancista André Gide, “que
parecemos ser a mesma pessoa”. E Stefan Zweig, um escritor austríaco que
se suicidaria após ter sido forçado a se exilar durante a Segunda Guerra
Mundial, encontrou em Montaigne seu único verdadeiro amigo: “Eis aí um
‘você’ no qual se reflete o meu ‘eu’; é aí que são abolidas todas as
distâncias.” A página impressa se desmancha diante de nossos olhos; surge
na sala, em seu lugar, um ser humano vivo. “Quatrocentos anos
desaparecem como fumaça.”
Os compradores entusiastas da livraria on-line Amazon.com reagem
ainda hoje da mesma maneira. Um deles considera que Os ensaios “não é
exatamente um livro, mas um companheiro para a vida toda”, e outro prevê
que ele será “o melhor amigo que você já teve”. Um leitor que mantém seu
exemplar sempre na mesinha de cabeceira lamenta que ele seja grande
demais (na versão completa) para ser carregado dia e noite. “Temos aqui
leitura para a vida inteira”, diz ainda outro: “Considerando-se que é um
clássico de tanta importância histórica, ele parece ter sido escrito ontem,
embora se tivesse efetivamente sido escrito ontem, a essa altura já estaria
em todas as páginas da revista Hello!.”
Tudo isto acontece porque Os ensaios não tem nenhum grande
significado, não defende nenhuma tese nem sustenta qualquer argumento. O
livro não tem um projeto ou objetivos direcionados aos leitores: cabe a você
fazer dele o que quiser. Montaigne deixa-se fluir em suas impressões e
observações, sem se preocupar se disse uma coisa em determinada página e
o contrário na página seguinte, ou mesmo na frase seguinte. Poderia ter
adotado como lema estes versos de Walt Whitman:
Estou me contradizendo?
Pois bem, eu me contradigo,
(Sou grande, contenho multidões.)

A cada par de frases ocorre-lhe uma nova maneira de encarar as coisas, e


ele muda de direção. Mesmo quando suas ideias se mostram mais
irracionais e sonhadoras, ele as segue no texto. “Não posso manter meu
tema parado”, diz. “Ele vai em frente perplexo e cambaleante, com uma
embriaguez natural.” Qualquer um tem a liberdade de acompanhá-lo até
onde parecer desejável, deixando que ele vagueie por aí sozinho se não for
o caso. Mais cedo ou mais tarde, os caminhos voltarão a se cruzar.
Tendo criado um novo gênero com essa maneira de escrever, Montaigne
inventou os essais, termo que criou para designá-lo. Hoje, a palavra
“ensaio”, ou essay em inglês, se reveste de uma conotação maçante.
Lembra a muitas pessoas os exercícios obrigatórios na escola ou no colégio,
que testavam o conhecimento adquirido nas leituras propostas: a
reexposição dos argumentos de outros autores com uma introdução tediosa
e uma conclusão simplista, enfiadas em cada extremidade do texto como
dois garfos numa espiga de milho. Dissertações dessa natureza existiam na
época de Montaigne, mas não essais. Em francês, essayer significa
simplesmente tentar. Ensaiar alguma coisa é testá-la ou prová-la, fazer a
experiência. Um montaignista do século XVII definiu o ato como atirar
com uma pistola para ver se ela acerta o alvo ou montar um cavalo para
sentir se ele se deixa levar. De maneira geral, o que Montaigne constatou foi
que a pistola atirava em todas as direções e o cavalo galopava fora de
controle, o que no entanto não o incomodava. Ele ficava encantado de ver
seu trabalho fluindo de forma tão imprevisível.
Ele pode não ter planejado ser o centro de uma revolução literária, mas
retrospectivamente sabia o que havia feito. “É em todo o mundo o único
livro do gênero”, escreveu, “um livro de estrutura excêntrica e bravia”. Ou,
como parecia mais o caso, sem qualquer estrutura. Os ensaios não foi
escrito numa ordem clara, do início ao fim. Cresceu por lenta incrustação,
como um recife de corais, entre 1572 e 1592. A única coisa que por fim o
deteve foi a morte de Montaigne.
Vendo as coisas de outra maneira, podemos dizer que nunca foi detido.
Ele continuou a crescer, não por uma escrita interminável, mas pela
interminável leitura. Do primeiro vizinho ou amigo que percorreu algumas
páginas do original na mesa de Montaigne no século XVI ao derradeiro ser
humano (ou qualquer outra entidade consciente) que vier a extraí-lo dos
bancos de memória de uma futura biblioteca virtual, um novo Os ensaios é
gerado a cada nova leitura. Os leitores abordam os textos de sua perspectiva
pessoal, aportando sua própria experiência de vida. Ao mesmo tempo, essas
experiências são moldadas por amplas tendências, que aparecem e se
esvaem em suave disposição. Quem quer que lance um olhar sobre esses
430 anos da leitura de Montaigne pode acompanhar a formação e
dissolução dessas tendências como nuvens no céu, ou multidões numa
plataforma ferroviária entre a chegada e a partida dos trens. Cada modo de
leitura parece natural em seu momento; até que chega um novo estilo e o
antigo se vai, às vezes tornando-se tão ultrapassado que praticamente só
pode ser compreendido pelos historiadores.
Os ensaios, portanto, é muito mais que um livro. É uma conversa
multicentenária entre Montaigne e todos aqueles que o conheceram: uma
conversa que se vai modificando ao longo da história, embora quase sempre
veja seu reinício naquela mesma pergunta perplexa: “Como é que ele sabia
tudo isso a meu respeito?” Sobretudo, continua sendo um encontro entre
duas pessoas, o escritor e o leitor. Mas uma conversa paralela também
transcorre entre os leitores: conscientemente ou não, cada geração aborda
Montaigne com expectativas decorrentes de seus contemporâneos e
antecessores. E a história prossegue, o cenário fica mais povoado. Deixa de
ser um jantar íntimo para se transformar num grande e animado banquete,
tendo Montaigne como involuntário mestre de cerimônias.
Este livro é sobre Montaigne, o homem e o escritor. É também sobre
Montaigne, a interminável festa — esse acúmulo de conversas particulares
e compartilhadas ao longo de 430 anos. O percurso será estranho e
acidentado, pois o livro de Montaigne não deslizou suave pelo tempo como
um seixo no riacho, que se torna cada vez mais aerodinâmico e polido
conforme segue seu caminho. Ele foi tropeçando sem direção
preestabelecida, juntando detritos, às vezes esbarrando em protuberâncias
incômodas. Minha história também se deixa levar pela corrente. Ela segue
“perplexa e cambaleante”, com frequentes mudanças de direção.
Inicialmente, mantém-se mais próxima do homem: a vida de Montaigne,
sua personalidade e sua carreira literária. Mais adiante, ramifica-se ainda
mais em histórias sobre seu livro e seus leitores, chegando a algumas bem
recentes. Por ser um livro escrito no século XXI, está inevitavelmente
permeado por um Montaigne do século XXI. Como dizia um dos seus
provérbios preferidos, não temos como escapar de nossa perspectiva: só
podemos andar com as próprias pernas e sentar no próprio traseiro.
Grande parte das pessoas que procuram contato com Os ensaios quer
extrair alguma coisa dele. Podem estar em busca de entretenimento,
esclarecimento, compreensão histórica ou algo mais pessoal. A um amigo
que se perguntava de que maneira abordar Montaigne, o romancista
Gustave Flaubert recomendou:

Não o leia como as crianças, por divertimento, nem como os


ambiciosos, para se instruir. Não, leia-o para viver.

Impressionada com a recomendação de Flaubert, valho-me da pergunta


renascentista “Como viver?” como guia para abrir caminho no emaranhado
da vida e da posteridade de Montaigne. A pergunta é sempre a mesma ao
longo do livro, mas os capítulos assumem a forma de vinte diferentes
respostas — cabendo imaginar que cada uma delas poderia ter sido dada
pelo próprio Montaigne. Na realidade, ele costumava responder às
perguntas com uma enxurrada de novas perguntas e uma profusão de
anedotas, que não raro apontavam em diferentes direções e levavam a
conclusões contraditórias. As perguntas e histórias eram as suas respostas,
ou novas maneiras de pôr a pergunta à prova.
Da mesma forma, cada uma das vinte possíveis respostas neste livro
assumirá uma forma anedótica: um episódio ou tema da vida de Montaigne
ou da vida de seus leitores. Não haverá soluções claras, mas esses vinte
“ensaios” de resposta nos permitirão dar uma olhada em pedacinhos da
longa conversa, desfrutando da companhia do próprio Montaigne — o mais
afável dos interlocutores e anfitriões.
1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte

POR UM FIO

M
ONTAIGNE NEM SEMPRE se sentiu tão à vontade em reuniões
sociais. De vez em quando, na juventude, enquanto os amigos
dançavam, riam e bebiam, ele se sentava à parte, com uma
nuvenzinha em cima da cabeça. Os amigos mal o reconheciam nessas
ocasiões: estavam mais acostumados a vê-lo flertando com as mulheres ou
debatendo animadamente uma nova ideia que lhe tivesse ocorrido. Ficavam
se perguntando se ele havia se ofendido com alguma coisa que tivessem
dito. Na verdade, como confessaria mais tarde em seu Os ensaios, quando
mergulhava nesse estado de espírito ele mal se dava conta do que acontecia
ao redor. Em meio a toda aquela alegria, ele estava pensando em alguma
assustadora história real que ouvira recentemente — talvez a história de um
rapaz que, queixando-se de uma leve febre depois de deixar uma festa
semelhante dias atrás, morrera antes até de os demais festeiros terem se
recuperado da ressaca. Se a morte podia pregar peças assim, então ele
próprio, Montaigne, estaria a qualquer momento a um passo do vazio
absoluto. Ele passou a ter tanto medo de perder a vida que já não era mais
capaz de desfrutá-la.
Na faixa dos 20 anos, Montaigne foi acometido dessa obsessão mórbida
porque passara muito tempo lendo os filósofos clássicos. A morte era um
tema de que os antigos nunca se cansavam. Cícero resumiu primorosamente
seu ponto de vista: “Filosofar é aprender a morrer.” O próprio Montaigne
usaria um dia esse pensamento calamitoso como título de um capítulo.
Mas, se começaram com um excesso de filosofia numa idade
impressionável, seus problemas não acabaram com a idade. Na faixa dos
30, quando se poderia esperar que Montaigne evoluísse para uma
perspectiva mais equilibrada, seus sentimentos com relação à opressiva
proximidade da morte tornaram-se mais fortes do que nunca, e ainda mais
pessoais. Deixando de ser uma abstração, a morte transformou-se em
realidade e começou a ceifar as vidas de praticamente todos que ele amava,
chegando mais perto dele próprio. Quando tinha 30 anos, em 1563, seu
melhor amigo, Étienne de La Boétie, morreu vitimado pela praga. Em 1568,
seu pai morreu, provavelmente por complicações de uma crise de pedra nos
rins. Na primavera do ano seguinte, Montaigne perdeu o irmão menor,
Arnaud de Saint-Martin, num estranho acidente desportivo. Nessa época,
ele próprio acabara de se casar, e o primeiro filho desse casamento viveria
apenas dois meses, morrendo em agosto de 1570. Montaigne perderia
quatro outros filhos: num total de seis, um único sobreviveu até a idade
adulta. Esta série de lutos tornou menos nebulosa a ameaça da morte, mas
ela ainda não era propriamente tranquilizadora. Seus temores continuavam
fortes como nunca.
A perda mais dolorosa foi aparentemente a de La Boétie: Montaigne o
amava mais que a qualquer outra pessoa. Mas a mais chocante deve ter sido
a do irmão Arnaud. Com apenas 27 anos, Arnaud foi atingido na cabeça por
uma bola quando jogava uma espécie de tênis da época, o jeu de paume. O
golpe não pode ter sido tão forte, e não se evidenciou nenhum efeito
imediato, mas cinco ou seis horas depois ele perdeu a consciência e morreu,
presumivelmente de um coágulo ou hemorragia. Ninguém poderia esperar
que uma simples pancada na cabeça extirpasse a vida de um homem
saudável. Não fazia o menor sentido, e a história parecia ainda mais
ameaçadora, de um ponto de vista pessoal, que a do rapaz que morrera de
febre. “Com exemplos tão frequentes e comuns passando diante de nossos
olhos”, escreveu Montaigne a respeito de Arnaud, “como poderíamos nos
livrar da ideia da morte e do pensamento de que a qualquer momento ela
pode nos agarrar pela garganta?”
Livrar-se desse pensamento não era possível, e ele sequer o desejava. Ele
ainda estava sob a influência dos seus filósofos. “Tenhamos a morte em
mente com mais frequência que qualquer outra coisa”, escreveu, num dos
primeiros ensaios sobre o tema:

A cada momento tratemos de retratá-la em nossa imaginação sob


todos os seus aspectos. Ante o tropeço de um cavalo, a queda de uma
telha, a mais leve picada de alfinete, prontamente cuidemos de
ponderar isto: Muito bem, e se fosse a própria morte?

Se repassarmos com frequência as imagens de nossa morte, diziam seus


sábios favoritos, os estoicos, ela jamais nos apanhará de surpresa. Sabendo-
nos bem preparados, temos liberdade para viver sem medo. Mas Montaigne
constatou exatamente o contrário. Quanto mais intensamente imaginava os
acidentes que poderiam se abater sobre ele e seus amigos, menos calmo se
sentia. Ainda que conseguisse, por um breve momento, aceitar a ideia
abstratamente, nunca se mostrava capaz de suportá-la nos detalhes. Seu
espírito era tomado por visões de ferimentos e febres; ou então de pessoas
chorando no seu leito de morte, e talvez do “toque de uma mão bem
conhecida” repousando-lhe na fronte para dizer adeus. Imaginava o mundo
se fechando sobre o buraco onde ele se encontrava: seus pertences eram
reunidos, as roupas, distribuídas entre amigos e criados. Esses pensamentos
não o libertavam, serviam apenas para aprisioná-lo.
Felizmente, essa pressão não durou muito. À altura de seus 40 e 50 anos,
Montaigne liberou-se para a serenidade e a despreocupação. Pôde escrever
seus ensaios mais fluidos e apaixonados pela vida, praticamente não mais
evidenciando sinais de seu anterior estado de espírito mórbido. Só sabemos
que ele existiu um dia porque dele nos fala o seu livro. Agora ele se
recusava a se preocupar com o que quer que fosse. A morte não passa de
alguns maus momentos no fim da vida, escreveu, em uma de suas últimas
anotações; não vale a pena desperdiçar angústia com ela. Até então a figura
mais sombria de seu próprio círculo de relações, ele se transformou no mais
despreocupado dos homens de meia-idade e também num mestre da arte de
bem viver. A cura foi encontrada numa jornada ao coração do problema: um
dramático encontro pessoal com a morte, seguido de uma prolongada crise
de meia-idade, que o levou a escrever seu Os ensaios.
O grande encontro entre Montaigne e a morte aconteceu em algum dia
de 1569 ou do início de 1570 — não há certeza quanto ao momento exato
— quando ele estava ao ar livre fazendo uma das atividades que
habitualmente dissipavam suas angústias e lhe davam uma sensação de
liberdade: andando a cavalo.
Na época, ele tinha aproximadamente 36 anos e sentia que precisava
fugir de muita coisa. Desde a morte do pai, repousava em seus ombros a
total responsabilidade pelo castelo e pela propriedade da família na
Dordonha. Eram terras de grande beleza, numa região coberta — tanto na
época como hoje — por vinhedos, colinas, aldeias e extensões florestais.
Para Montaigne, contudo, elas representavam o fardo do dever. Na
propriedade, havia sempre alguém a puxá-lo pelo braço, querendo alguma
coisa ou criticando algo que tivesse feito. Ele era o seigneur: tudo de
alguma forma dependia dele.
Felizmente, não costumava ser difícil encontrar alguma desculpa para
estar em outro lugar. Desde os 24 anos, Montaigne trabalhava como
magistrado em Bordeaux, a capital da região, a cerca de 48 quilômetros de
distância — de modo que sempre havia um motivo para ir até lá. E também
havia os distantes vinhedos da própria propriedade dos Montaigne,
espalhados em terrenos esparsos num raio de quilômetros pelo campo, e
muito úteis como pretexto para visitas caso ele assim quisesse. Ele também
visitava eventualmente os vizinhos de outros castelos da região: era
importante manter boas relações. Todas essas tarefas representavam
excelentes justificativas para uma cavalgada pelos bosques num dia
ensolarado.
Pelos caminhos da floresta, os pensamentos de Montaigne podiam vagar
quanto ele quisesse, embora mesmo nessas incursões ele fosse
invariavelmente acompanhado por criados e conhecidos. No século XVI,
raramente as pessoas andavam sozinhas. Mas ele podia esporear o cavalo
para se afastar de uma conversa tediosa ou então distanciar apenas a mente
para sonhar de olhos abertos, contemplando a cintilação da luz na copa das
árvores. Seria mesmo verdade, podia perguntar-se então, que o sêmen de
um homem provinha da medula espinhal, como dizia Platão? Que um peixe
rêmora podia ser tão forte que conseguisse reter um navio simplesmente
mordendo a popa e sugando? E o que pensar do estranho acidente que
presenciara em casa dias antes, quando seu gato ficou olhando fixamente
para uma árvore, até que dela caísse um pássaro, morto, bem entre suas
patas? Que poder tinha aquele animal? Essas especulações deixavam
Montaigne tão absorto que ele às vezes se esquecia de prestar atenção no
caminho e no que faziam seus companheiros.
Nessa ocasião, ele avançava calmamente pelo bosque com um grupo de
cavaleiros, todos ou quase todos seus empregados, a cerca de 5 ou 6
quilômetros do castelo. Era um percurso tranquilo, sem qualquer
expectativa de problemas, de modo que ele escolhera um cavalo manso,
sem muita força. E usava roupas comuns: calças curtas, camisa, gibão,
provavelmente uma capa. Trazia a espada na cintura — um nobre nunca ia a
lugar algum sem ela —, porém não usava armadura ou qualquer outra
proteção especial. Mas o fato é que sempre havia riscos fora das muralhas
da cidade ou do castelo: era comum a ação de assaltantes, e naquele
momento a França estava numa espécie de limbo do império da lei, entre
duas guerras civis. O campo era percorrido por grupos de soldados
desempregados, que procuravam pilhagens que os compensassem pela
perda de salário nesse interlúdio de paz. Apesar de suas angústias a respeito
da morte, Montaigne costumava manter-se calmo frente a esses riscos
específicos. Não se acovardava diante de qualquer estranho suspeito, como
os demais, nem se apavorava ao menor ruído na floresta. Mas a tensão do
momento deve tê-lo afetado de alguma maneira, pois o fato é que, ao ser
atingido por trás por um objeto pesado, sua primeira impressão foi de ter
sido atacado deliberadamente. Parecia um tiro de arcabuz, a arma de fogo
da época, semelhante a um fuzil.
Ele nem teve tempo de se perguntar por que alguém haveria de atirar
nele. Aquilo o havia atingido “como um raio”: seu cavalo foi derrubado e
ele próprio se viu arremessado longe. Bateu com força no solo, a metros de
distância, e perdeu instantaneamente a consciência.

Lá estava o cavalo, derrubado e aturdido, e eu a dez ou doze passos


de distância, inconsciente, estirado de costas, o rosto todo escoriado e
esfolado, a espada que trazia na mão a mais de dez passos, o cinturão
em pedaços, sem mais movimentos ou sensações que um lenho.
A ideia do arcabuz lhe ocorreu mais tarde; na verdade, não houve
intervenção de qualquer arma. O que aconteceu foi que um dos criados de
Montaigne, sujeito musculoso que vinha atrás dele em um potente cavalo, o
havia aguilhoado em rápido galope pelo caminho — “para mostrar sua
audácia e passar à frente dos companheiros”, como resumiria Montaigne.
De alguma forma ele não percebeu a presença de Montaigne no caminho,
ou então calculou mal a largura da trilha, julgando que poderia passar. Em
vez disso, “projetou-se como um colosso sobre o homenzinho e o
cavalinho”.
Os demais cavaleiros se detiveram, consternados. Os criados de
Montaigne apearam de seus cavalos e tentaram reanimá-lo, mas ele se
manteve inconsciente. Eles então o ergueram e, com dificuldade,
começaram a carregar seu corpo inerte em direção ao castelo. No caminho,
Montaigne recobrou consciência. Sua primeira impressão foi de ter sido
atingido na cabeça (e a perda da consciência é um indicativo de que estava
certo), mas ele também começou a tossir, como se tivesse recebido um
golpe no peito. Vendo que respirava com dificuldade, seus homens trataram
de botá-lo numa posição mais ereta, fazendo o possível para transportá-lo
nesse ângulo improvável. Em várias oportunidades, ele cuspiu sangue
coagulado. Era um sintoma alarmante, mas a tosse e o vômito o ajudavam a
manter-se desperto.
Ao se aproximarem do castelo, ele foi aos poucos recobrando as
faculdades, mas continuava se sentindo como se estivesse resvalando para a
morte, e não voltando à vida. A visão continuava turva; ele mal distinguia a
luz. Recuperando a consciência do corpo, o que ele via, contudo, não era
nada animador, pois suas roupas estavam sujas com o sangue que vinha
vomitando. Ele mal teve tempo de se perguntar sobre o arcabuz e
mergulhou de novo num estado de semi-inconsciência.
Nos momentos que se seguiram, segundo relato posterior de
testemunhas, Montaigne mostrou-se agitado. Rasgou seu gibão com as
unhas, como se quisesse livrar-se de um peso. “Eu sentia o estômago
oprimido com o sangue coagulado; minhas mãos se dirigiam a ele por
vontade própria, como costumam fazer quando sentimos coceira, contra
nossa própria vontade.” Parecia que ele queria rasgar o próprio corpo, ou
talvez afastá-lo de si mesmo, para que seu espírito pudesse partir. Durante
todo esse tempo, no entanto, ele se sentia interiormente tranquilo:

Parecia que a vida pendia dos meus lábios por um fio; fechei os olhos,
querendo, ao que me parecia, ajudar a soltá-la, e senti prazer em ficar
cada vez mais lânguido e me entregar. Essa ideia apenas flutuava na
superfície da minha alma, delicada e frágil como todo o resto, mas na
verdade não só livre de qualquer aflição como misturada àquela doce
sensação que experimentamos ao nos deixar deslizar para o sono.

Os criados continuaram a carregá-lo para casa, nesse estado de languidez


interna e agitação externa. A família percebeu a comoção e saiu correndo
até ele — “com os gritos e as exclamações habituais em casos como esses”,
comentaria ele mais tarde. Todos perguntavam o que havia acontecido.
Montaigne conseguiu dar respostas, mas não respostas coerentes. Viu sua
mulher abrindo caminho com dificuldade pela trilha irregular e pensou na
possibilidade de instruir seus homens a lhe dar um cavalo. Caberia supor
que tudo isto partia de uma “alma bem desperta”, escreveu ele. Mas “o fato
é que eu não estava ali em absoluto”. Ele viajara para muito longe. “Eram
pensamentos sem sentido, nas nuvens, suscitados por sensações dos olhos e
dos ouvidos; eles não vinham do meu interior” — chez moy, expressão que
em geral significa “em casa”. Seus gestos e suas palavras eram de certa
forma gerados só pelo corpo. “A contribuição da alma vinha em sonho,
tocada muito de leve, apenas lambida e salpicada, por assim dizer, pela
suave impressão dos sentidos.” Aparentemente, Montaigne e a vida estavam
para se separar sem pesar ou despedidas formais, como dois convidados
bêbados que deixassem uma festa tontos demais para se despedir.
Seu estado de confusão persistiu depois de ser transportado para o
interior do castelo. Ele continuava sentindo como se estivesse elevado num
tapete mágico, e não sendo carregado nos braços dos criados. Não sentia
dores nem o alarmava a visão de toda aquela agitação ao seu redor. Sentia
apenas preguiça e fraqueza. Os criados o depositaram na cama; e lá ficou
ele, perfeitamente feliz, sem um único pensamento na cabeça, à parte a
sensação de prazer no repouso. “Eu sentia uma infinita doçura naquele
repouso, pois tinha sido terrivelmente sacudido por aqueles pobres coitados,
que fizeram o possível para me carregar nos braços por um caminho longo e
muito acidentado.” Ele recusou qualquer remédio, certo de que estava
destinado a simplesmente se esvair. Seria “uma morte muito feliz”.
Essa experiência foi muito além das fantasias anteriores de Montaigne
sobre a morte. Foi uma viagem real pelo território da morte: ele se
esgueirou até bem pertinho e a tocou com os lábios. Pôde até sentir o seu
gosto, como uma pessoa experimentando um sabor desconhecido. Foi um
ensaio de morte: um exercício, ou exercitation, a palavra por ele escolhida
quando escreveu sobre a experiência. Mais tarde, ele ficaria muito tempo
repassando as sensações em sua mente, tratando de reconstruí-las com o
máximo de precisão possível, para aprender com elas. O destino lhe havia
proporcionado a perfeita oportunidade de testar o consenso filosófico a
respeito da morte. Mas era difícil certificar-se de que havia encontrado a
resposta certa. Os estoicos certamente olhariam seus resultados com
desconfiança.
Sob certos aspectos a lição estava correta: através daquela exercitation,
ele aprendera a não temer a própria não existência. A morte podia ter uma
cara amistosa, exatamente como prometiam os filósofos. Montaigne olhara
bem no seu rosto — mas não o fixara com lucidez, como deveria fazer um
pensador racional. Em vez de avançar de olhos abertos, comportando-se
como um soldado, ele havia flutuado em direção à morte praticamente sem
pensamentos conscientes, seduzido por ela. Ao morrer, dava-se conta ele,
não deparamos em absoluto com a morte, pois já nos fomos antes que ela
chegue. Morremos da mesma maneira que adormecemos: simplesmente
vamos nos distanciando. Se alguém tentar nos trazer de volta, ouvimos sua
voz “nas fímbrias da alma”. A vida fica presa por um fio, pendurada, como
disse ele próprio, na ponta dos lábios. Morrer não é um ato para o qual
possamos nos preparar. É um devaneio sem sentido.
A partir desse momento, ao ler a respeito da morte, Montaigne se
interessava menos pelo fim exemplar dos grandes filósofos e mais pelo das
pessoas comuns, especialmente aquelas cuja morte tivesse ocorrido num
estado de “debilitação e estupor”. Em seus ensaios mais maduros, ele
escreveu com admiração sobre homens como Petrônio e Tiguilino, romanos
que morreram cercados de gracejos, música e conversas do dia a dia,
simplesmente deixando que a morte tomasse conta deles suavemente, em
meio às comemorações. Em vez de transformar uma festa numa cena de
morte, como fizera o jovem Montaigne em sua imaginação, eles
transformavam suas cenas de morte em festas. Ele gostava particularmente
da história de Marcelino, que se esquivou de uma dolorosa morte por
doença recorrendo a um suave método de eutanásia. Depois de jejuar por
vários dias, Marcelino deitou-se numa banheira de água muito quente. Com
certeza já muito enfraquecido pela doença, ele viu seu último sopro de vida
simplesmente ser evaporado pelo banho. Lentamente foi perdendo a
consciência e faleceu. E à medida que se ia, langorosamente murmurava aos
amigos sobre o prazer que sentia.
Cabe supor que haja prazer numa morte como a de Marcelino. Mas
Montaigne descobrira algo mais surpreendente: que era capaz de desfrutar
das mesmas deliciosas sensações flutuantes com o corpo em aparente
convulsão, revirando-se numa agitação que aos demais parecia tormento.
Esta descoberta de Montaigne ia de encontro aos seus modelos clássicos;
e também punha em questão o ideal cristão dominante em sua época. Para
os cristãos, nosso último pensamento deve ser a grave entrega da alma a
Deus, e não uma deliciosa sensação de “Aaaaah...”. Na experiência pessoal
de Montaigne, aparentemente não houve lugar para pensar em Deus. Nem
lhe ocorreu, ao que tudo indica, que morrer embriagado e cercado de
prostitutas pudesse pôr em risco uma vida cristã no além. Ele estava mais
interessado na constatação puramente secular de que a psicologia humana e
a natureza de maneira geral eram os melhores amigos de um moribundo. E
agora lhe parecia que as únicas pessoas capazes de morrer da maneira
corajosa que se poderia esperar dos filósofos eram exatamente aquelas sem
qualquer conhecimento de filosofia: os camponeses incultos, em suas
propriedades e aldeias. “Eu nunca vi um dos meus vizinhos camponeses
especulando a respeito do semblante e da atitude com que deveria passar
sua última hora”, escreveu ele — embora não tivesse necessariamente como
saber se eles assim o fizessem. A natureza cuidava deles. Ensinava-os a não
pensar na morte, exceto quando estivessem morrendo, e, mesmo então,
muito pouco. Os filósofos encontram dificuldade para deixar o mundo
porque tentam manter o controle. O pensamento “Filosofar é aprender a
morrer”, portanto, é posto abaixo. A filosofia mais parecia uma maneira de
ensinar as pessoas a desaprender a capacidade natural de que todo
camponês era dotado de nascença.
Nesse episódio, apesar de disposto a se deixar ir, Montaigne não morreu.
Recuperou-se e, desde então, passou a viver de forma um pouco diferente.
Com esse ensaio de morte, aprendeu uma lição filosófica decididamente
nada filosófica, que resumiu deste jeito bem casual:

Se você não souber como morrer, não se preocupe; a Natureza lhe


dirá na hora o que fazer, completa e adequadamente. Ela executará
perfeitamente este trabalho para você; não ocupe sua cabeça com isto.

“Não se preocupe com a morte” transformou-se em sua resposta mais


fundamental e libertadora à pergunta sobre como viver. Ela possibilitava
exatamente isto: viver.
Mas a vida é mais difícil que a morte; em lugar de uma entrega passiva,
ela requer atenção e gestão. E também pode ser mais dolorosa. O agradável
resvalar de Montaigne nos braços do esquecimento não durou muito. Ao
recobrar plenamente a consciência, passadas duas ou três horas, ele se viu
acometido de dores, com os membros “golpeados e escoriados”. Passou mal
durante várias noites, e houve sequelas. “Ainda sinto os efeitos da pancada
causada por aquela colisão”, escreveu pelo menos três anos depois.
A memória demorou mais a voltar que as sensações físicas, embora ele
passasse vários dias tentando reconstruir o incidente, interrogando
testemunhas. Nada disso adiantou muito, até que o incidente lhe retornou à
memória de um só golpe, com um choque semelhante ao de ser atingido por
um relâmpago — uma repetição do “raio” do impacto original. O retorno à
vida foi tão violento quanto o acidente: sacudidelas, impactos, clarões e
trovões. A vida se projetou nele com forte ímpeto, ao passo que a morte
fora algo leve e superficial.
A partir de então, ele tentou transpor um pouco da delicadeza e da leveza
da morte para a vida. “Pontos ruins” podem ser encontrados em toda parte,
escreveria ele, num de seus últimos ensaios. É melhor “deslizar por este
mundo com alguma leveza e pela superfície”. Com essa descoberta da
necessidade de fluir e deixar-se ir, ele perdeu boa parte do medo, ao mesmo
tempo adquirindo uma nova consciência de que a vida, ao passar pelo seu
corpo — a sua vida pessoal, de Michel de Montaigne —, era um
interessantíssimo tema de investigação. Ele passaria a prestar atenção às
sensações e experiências, não pelo que poderiam representar ou pelas lições
filosóficas que pudessem conter, mas para efetivamente senti-las. Ele se
deixaria levar.
Era para ele uma nova disciplina, que se apoderou de sua rotina
cotidiana e — através dos seus escritos — conferiu-lhe uma espécie de
imortalidade. Assim foi que, mais ou menos pelo meio da vida, Montaigne
perdeu o rumo e renasceu.
2. P. Como viver? R. Preste atenção

COMEÇANDO A ESCREVER

O
acidente de equitação, que alterou significativamente a perspectiva
de Montaigne, durou apenas alguns momentos em si mesmo, mas
é possível desdobrá-lo em três partes e espraiá-lo ao longo de
vários anos. Temos, inicialmente, Montaigne estirado no solo, agarrando a
barriga com uma sensação de euforia. Passamos então ao Montaigne das
semanas e dos meses que se seguiram, refletindo sobre a experiência e
tentando conciliá-la com suas leituras filosóficas. Finalmente, vemos
Montaigne alguns anos depois, sentando-se para escrever sobre o incidente
— e também sobre uma infinidade de outras coisas. A primeira cena
poderia ter acontecido a qualquer um; a segunda, a qualquer jovem sensível
e instruído do Renascimento. A última delas é que torna Montaigne único.
A ligação não é simples: ele não se sentou na cama e imediatamente
começou a escrever sobre o acidente. Deu início a Os ensaios um par de
anos depois, por volta de 1572, e ainda assim escreveu outros capítulos
antes de abordar o que trata da perda de consciência. Quando efetivamente
chegou a ele, contudo, a experiência o levou a tentar um novo tipo de
escrita, que praticamente não havia sido explorada por outros escritores: a
recriação de uma sequência de sensações tal como de fato experimentadas
internamente, seguindo-as momento a momento. E parece haver uma
ligação cronológica entre o acidente e outra virada importante em sua vida,
que lhe abriu caminho para a literatura: a decisão de deixar o emprego de
magistrado em Bordeaux.
Até então, Montaigne mantinha duas vidas paralelas: uma urbana e
política, a outra rural e gerencial. Embora viesse administrando a
propriedade rural desde a morte do pai, em 1568, ele continuara a trabalhar
em Bordeaux. No início de 1570, todavia, pôs à venda sua magistratura.
Havia outras razões, além do acidente: sua candidatura a um cargo na
câmara alta do tribunal acabara de ser rejeitada, provavelmente por
interferência de inimigos políticos. Teria sido mais natural recorrer da
decisão ou lutar contra ela; em vez disso, ele preferiu aposentar-se. Talvez o
tenha feito por raiva ou desilusão. Ou quem sabe seu encontro com a morte,
associado à perda do irmão, o fez pensar de maneira diferente sobre o jeito
como gostaria de viver sua vida.
Antes de tomar esta decisão, Montaigne dedicara 13 anos de trabalho ao
parlement de Bordeaux. Estava com 37 anos — talvez na meia-idade,
segundo os padrões da época, mas ainda não estava velho. Mesmo assim se
considerava em processo de aposentadoria, deixando o movimento central
da vida para dar início a uma nova existência, mais reflexiva. Ao completar
38 anos, marcou essa decisão — quase um ano depois de efetivamente
tomá-la — mandando pintar uma inscrição latina na parede de uma
antecâmara de sua biblioteca:

No ano de Cristo de 1571, aos trinta e oito anos de idade, no último


dia de fevereiro, aniversário de seu nascimento, Michel de
Montaigne, há muito cansado da servidão do tribunal e dos empregos
públicos, apesar de ainda íntegro, retirou-se para o seio das Virgens
cultas [as Musas], onde, calmamente e livre de toda preocupação,
passará o pouco que resta de sua vida, da qual mais da metade já
decorreu. Se o destino permitir, ele concluirá esta morada, este doce
refúgio ancestral; e o dedicou a sua liberdade, tranquilidade e lazer.

Dali em diante, Montaigne viveria para si mesmo, e não para o


cumprimento do dever. Ele pode ter subestimado o trabalho necessário para
cuidar da propriedade, e ainda não fazia qualquer menção à redação de
ensaios. Falava apenas de “calma e liberdade”. Mas já havia concluído
vários projetos literários menores. Com alguma relutância, traduzira uma
obra teológica a pedido do pai e posteriormente editara uma coleção de
manuscritos deixados por Étienne de La Boétie, acrescentando dedicatórias
e uma carta de próprio punho relatando os últimos dias do amigo. Nesses
anos ao redor de 1570, suas incursões pela literatura conviviam com outras
experiências: a série de lutos e seu próprio contato com a morte, o desejo de
se afastar da política em Bordeaux e o anseio por uma vida de tranquilidade
— e isto não era tudo, pois sua mulher estava grávida do primeiro filho. A
expectativa de uma nova vida se encontrava com a sombra da morte; juntas,
elas o atraíram para uma nova maneira de ser.
A mudança de orientação de Montaigne ao se aproximar dos 40 anos tem
sido comparada às mais famosas crises existenciais da literatura: as de Dom
Quixote, que abandonou sua rotina para se entregar à busca de aventuras
cavaleirescas, e a de Dante, que se perdeu “pelo meio do caminho da vida”.
Os passos de Montaigne pelo emaranhado bravio desse período da  vida e
sua descoberta do caminho para sair dele deixaram pegadas — marcas de
um homem que vacilava, tropeçava e seguia em frente:

Junho de 1568 — Montaigne conclui a tradução do texto teológico. Seu


pai morre; ele herda a propriedade
Primavera de 1569 — Seu irmão morre no acidente desportivo
1569 — Sua carreira marca passo em Bordeaux
1569 ou início de 1570 — Ele quase morre
Outono de 1569 — Sua mulher engravida
Início de 1570 — Ele decide aposentar-se
Verão de 1570 — Aposenta-se
Junho de 1570 — Nasce o primeiro filho
Agosto de 1570 — Morre o primeiro filho
1570 — Edita as obras de La Boétie
Fevereiro de 1571 — Faz a inscrição de aniversário na parede da
biblioteca
1572 — Começa a escrever Os ensaios

Comprometendo-se com uma nova vida que esperava ser contemplativa,


Montaigne empenhou-se intensamente em prepará-la exatamente da
maneira como queria. Depois de se aposentar, escolheu uma das duas torres
dos ângulos de seu castelo para servir de retiro e centro de operações; a
outra torre foi reservada para sua mulher. Juntamente com o prédio
principal do complexo e as muralhas de ligação, essas duas torres angulares
enfeixavam um simples pátio quadrado, localizado em meio a campos e
florestas.
A construção principal original não existe mais. Pegou fogo em 1885,
tendo sido erguida uma cópia em seu lugar. Por sorte, contudo, o fogo não
atingiu a torre de Montaigne, que se mantém praticamente inalterada e pode
ser visitada. Percorrendo-a, não é difícil entender por que ele a apreciava
tanto. De fora, ela parece deliciosamente rechonchuda para uma torre de
quatro andares, com paredes espessas como as de um castelo de areia. Fora
concebida originalmente para prestar defesa, mas o pai de Montaigne a
adaptou para finalidades mais pacíficas. Ele transformou o andar térreo
numa capela e providenciou uma escada interna em espiral. O piso acima da
capela tornou-se o quarto de Montaigne. Com frequência ele dormia ali, em
vez de voltar para o prédio principal. Ao lado da escada acima desse
compartimento abriu-se um nicho para um banheiro. E acima dele — logo
abaixo do sótão, com seu “enorme sino”, que repicava ensurdecedoramente
para anunciar a passagem das horas — ficava o reduto favorito de
Montaigne: sua biblioteca.
Subindo hoje as escadas — sua pedra desgastada por séculos de uso —,
podemos entrar na biblioteca e caminhar por ela num círculo estreito,
contemplando da janela o pátio interno e a paisagem, exatamente como
Montaigne fazia. A vista não devia ser muito diferente na época, mas o
compartimento, sim. Atualmente de uma alva nudez, com o piso de pedra
exposto, ele teria na época um tapete, provavelmente de bambu. Nas
paredes haveria pinturas murais, ainda frescas. No inverno, o fogo era aceso
na maior parte dos compartimentos, mas não na biblioteca principal, que
não possuía lareira. Nos dias frios, Montaigne acomodava-se na antecâmara
ao lado, mais acolhedora, pois esta dispunha de uma lareira.
A principal característica da sala da biblioteca quando ocupada por
Montaigne era sua bela coleção de livros, acomodada em cinco fileiras
numa elegante estante de prateleiras recurvadas. A curva era necessária por
causa da forma circular da torre e deve ter representado um belo desafio
para o carpinteiro. Contemplando as prateleiras, Montaigne distinguia
satisfeito, de um só relance, todos os seus livros. No momento em que se
transferiu para a biblioteca, possuía cerca de mil volumes, muitos herdados
do amigo La Boétie, outros comprados por ele mesmo. Era uma coleção
substancial, e Montaigne efetivamente lia seus livros. Hoje, eles estão
dispersos; as prateleiras também se foram.
Por toda a sala encontravam-se também as outras coleções de
Montaigne: objetos de valor histórico, relíquias de família, artefatos da
América do Sul. A respeito dos antepassados, ele escreveu: “Guardo seus
manuscritos, seu selo, seu breviário e uma espada muito peculiar que eles
usavam, e não expulsei do meu estúdio algumas bengalas que meu pai
costumava trazer na mão.” A coleção de objetos sul-americanos formou-se
a partir de presentes de viajantes; dela faziam parte joias, espadas de
madeira e bengalas ritualísticas usadas em danças. A biblioteca de
Montaigne não era apenas um depósito ou lugar de trabalho. Era um salão
de maravilhas, assemelhando-se a uma versão quinhentista da última
residência de Sigmund Freud, em Hampstead, Londres: um verdadeiro
tesouro de livros, documentos, estatuetas, quadros, vasos, amuletos e
curiosidades etnográficas, destinado a estimular tanto a imaginação quanto
o intelecto.
A biblioteca também destacou Montaigne como homem da moda. A
tendência desse tipo de refúgio se vinha espalhando lentamente pela França,
depois de se manifestar na Itália no século anterior. Os homens abastados
enchiam seus gabinetes de livros e estantes, para poder usá-los como
refúgio, a pretexto de trabalhar. Montaigne levou a preocupação com a fuga
ainda mais longe, distanciando completamente sua biblioteca do resto da
casa. Ela era ao mesmo tempo mirante e caverna, ou, para usar uma
expressão de que gostava, uma arrière-boutique, um “quarto no fundo da
loja”. Ele podia levar convidados sempre que quisesse — e levava com
frequência —, mas não era obrigado a fazê-lo. E adorava aquele lugar.
“Infeliz o homem, em minha opinião, que não tem na própria casa um lugar
para ficar sozinho, agradar a si mesmo na intimidade, esconder-se!”
Como a biblioteca representava a própria liberdade, não surpreende que
Montaigne a decorasse e isolasse ritualisticamente. Na antecâmara,
juntamente com a inscrição celebrando sua aposentadoria, mandou pintar
murais do teto ao chão. Eles hoje estão completamente esmaecidos, mas,
pelo que ainda se pode ver, representavam grandes batalhas: Vênus
lamentando a morte de Adônis, um barbudo Netuno, navios numa
tempestade e cenas da vida bucólica — sempre evocações do mundo
clássico. Na sala principal, mandou pintar citações nas vigas do teto, quase
sempre clássicas também. Neste caso igualmente se tratava de uma moda,
embora fosse do gosto de uma minoria. O humanista italiano Marsilio
Ficino mandou inscrever citações nas paredes de sua mansão na Toscana, e
mais tarde, na região de Bordeaux, o barão de Montesquieu faria o mesmo,
em declarada homenagem a Montaigne.
Com o passar dos anos, também ficaram esmaecidas as citações nas
vigas do teto, mas elas seriam posteriormente reconstituídas e tornadas mais
uma vez legíveis, e hoje, caminhando pelo ambiente, podemos ouvir as
vozes que sussurram do alto:

Solum certum nihil esse certi


Et homine nihil miserius aut superbius
Só uma coisa é certa: que nada é certo
E nada é mais desprezível e arrogante que o homem. (Plínio, o Velho)

ΚΡΙΝΕΙ ΤΙΣ ΑΥΤΟΝ ΠΩΠΟΤ ΑΝΘΡΩΠΟΝ ΜΕΓΑΝ ΟΝ ΕΞΑΛΕΙΦΕΙ


ΠΡΟΦΑΣΙΣ Η ΤΥΧΟΥΣ’ ΟΛΟΝ
Como pode você considerar-se um grande homem, se é capaz de ser
completamente destruído pelo primeiro acidente? (Eurípedes)
ΕΝ ΤΩ ΦΡΟΝΕΙΝ ΓΑΡ ΜΗΔΕΝ ΗΔΙΣΤΟΣ ΒΙΟΣ ΤΟ ΜΗ ΦΡΟΝΕΙΝ
ΓΑΡ ΚΑΡΤ’ ΑΝΩΔΥΝΟΝ ΚΑΚΟΝ
Não há vida mais bela que a de um homem despreocupado;
A despreocupação é um mal verdadeiramente indolor. (Sófocles)

As vigas constituem um vívido lembrete da decisão de Montaigne de


deixar a vida pública para mergulhar numa existência mais meditativa —
uma vida a ser vivida, literalmente, sob o signo da filosofia, e não da
política. Essa mudança de esfera também era recomendada pelos antigos. O
grande estoico Sêneca reiteradamente exortava seus conterrâneos romanos a
se retirar da vida ativa para “se encontrarem”, como poderíamos dizer hoje.
No Renascimento, assim como na Roma antiga, isto fazia parte de uma vida
bem-gerida. O indivíduo tinha seu período de atividade cívica, em seguida
se retirava, para descobrir o real significado da vida e dar início ao longo
processo de preparação para a morte. Montaigne viria a fazer reservas
quanto à segunda parte desse processo, mas não resta dúvida do seu
interesse em contemplar a vida. Escreveu ele: “Devemos nos desvencilhar
de todos os vínculos que nos prendem aos outros; tratemos de conquistar de
nós mesmos a força de viver realmente sozinhos e de viver dessa maneira
confortavelmente.”
Ao recomendar a saída de cena, Sêneca também advertira para seus
perigos. Num diálogo intitulado “Da tranquilidade da mente”, ele escreveu
que a ociosidade e o isolamento podiam trazer à tona as consequências de
se ter levado uma vida equivocada, consequências que as pessoas
geralmente tratavam de evitar mantendo-se ocupadas — ou seja,
continuando a levar uma vida equivocada. Entre os sintomas podiam estar
insatisfação, autodesprezo, medo, indecisão, letargia e melancolia. Abrir
mão do trabalho pode desvendar males espirituais, especialmente se a
pessoa adquire o hábito de ler livros demais — ou, pior ainda, de expor
livros por mera ostentação e se vangloriar pelo arranjo.
No início da década de 1570, quando se deu essa mudança de valores,
Montaigne parece ter passado exatamente pela crise existencial para a qual
Sêneca advertia. Ele tinha trabalho, mas em menor quantidade do que
estava acostumado. A inatividade provocava estranhos pensamentos e um
“estado de ânimo melancólico”, que era incomum à sua personalidade.
Bastou que se aposentasse, disse ele, e sua mente começou a galopar como
um cavalo desembestado — uma comparação procedente, considerando-se
o que havia acontecido pouco tempo antes. Sua mente foi tomada por
asneiras, exatamente como terras devolutas são tomadas por ervas daninhas.
Em outra imagem vívida — ele adorava recursos dessa natureza —,
Montaigne comparou a mente desocupada ao útero sem fertilização de uma
mulher, o qual, segundo versões correntes na época, só dá à luz pedaços
disformes de carne, em vez de bebês. E, numa comparação tomada de
empréstimo a Virgílio, ele dizia que seus pensamentos se assemelhavam às
figuras que dançam no teto quando a luz solar se reflete na superfície de um
jarro d’água. Assim como essas luzes e sombras dançam no teto, também a
mente desocupada gira de maneira imprevisível, gerando divagações sem
sentido nem propósito. Ela gera fantasies ou reveries — palavras que antes
tinham conotações menos positivas que hoje em dia, sugerindo ideias
enganosas e delírio em vez de uma simples divagação.
Seu “reverie” por sua vez deu a Montaigne outra ideia absurda: escrever.
Ele também o considerou um sonho, que no entanto continha a promessa de
uma solução. Vendo sua mente tão cheia de “quimeras e monstros
fantásticos, um após o outro, sem ordem nem sentido”, ele decidiu registrar
tudo por escrito, não com o objetivo direto de dominá-los, mas para
examinar tranquilamente sua estranheza. Assim foi que lançou mão da
pena: nascia o primeiro Os ensaios.
Sêneca teria aprovado. Se você ficar deprimido ou entediado ao se
aposentar, recomendava ele, trate simplesmente de olhar ao seu redor e
se interessar pela diversidade e pelo esplendor das coisas. A salvação está
em dar toda a atenção à natureza. Montaigne tentou fazê-lo, mas considerou
que “natureza” significava basicamente o fenômeno natural mais próximo:
ele próprio. Começou então a observar e questionar sua experiência pessoal,
escrevendo sobre o que constatava.
Inicialmente, isto significou sobretudo seguir seus entusiasmos pessoais,
especialmente histórias de suas leituras: contos de Ovídio, histórias de
César e Tácito, fragmentos biográficos de Plutarco e conselhos de Sêneca e
Sócrates sobre o bem viver. Passou em seguida a anotar histórias ouvidas
dos amigos, incidentes da vida cotidiana na propriedade, casos que haviam
ficado em sua memória dos anos de atuação na justiça e na política e
curiosidades que tinha presenciado em suas viagens (até então limitadas).
Foi o seu modesto começo; mais tarde, os materiais por ele utilizados se
ampliaram, passando a incluir praticamente cada nuance de emoções e
pensamentos algum dia experimentados, e especialmente sua estranha
jornada para dentro e para fora da inconsciência.
A ideia de publicar esses textos pode ter-lhe passado pela cabeça muito
cedo, embora ele alegasse o contrário, afirmando que escrevia apenas para a
família e os amigos. Talvez até ele tenha começado com a intenção de
escrever um livro comum: uma coletânea de citações e histórias dispostas
tematicamente, do tipo que fazia sucesso entre os cavalheiros da época.
Neste caso, ele não teria levado muito tempo para ir além, possivelmente
sob a influência do único escritor que apreciava mais que Sêneca: Plutarco.
Plutarco ganhara fama no primeiro século antes de Cristo com espirituosas
e sucintas biografias de figuras históricas, e também escrevia breves textos
chamados Moralia, traduzidos para o francês no ano em que Montaigne
começou a redigir seu Os ensaios. Reuniam pensamentos e anedotas em
torno de questões que variavam de “Podem os animais ser considerados
inteligentes?” a “Como alcançar a paz de espírito?”. Sobre esta última
questão, a recomendação de Plutarco era a mesma de Sêneca: concentre-se
naquilo que está presente à sua frente, prestando-lhe toda a atenção.
À medida que avançava a década de 1570 e Montaigne se adaptava a sua
nova vida após a crise, prestar atenção tornou-se seu passatempo favorito.
Seu ano de maior produção literária foi 1572, quando deu início à maioria
dos ensaios do Livro I e a alguns do Livro II. O resto viria em 1573 e 1574.
Mas muito tempo se passaria até que ele se sentisse pronto para publicar;
talvez apenas porque não lhe tivesse ocorrido a possibilidade, ou quem sabe
porque tivesse levado muitos anos para ficar satisfeito com o que havia
escrito. Passou-se uma década entre o momento em que se aposentou em
1570 e o dia em que, depois de completar 47 anos, em 1º de março de 1580,
ele assinou e datou o prefácio da primeira edição de Os ensaios, tornando-
se famoso da noite para o dia.
A escrita permitira a Montaigne superar sua crise dos “sonhos loucos”;
agora, ela o ensinava a observar o mundo mais de perto, incutindo-lhe cada
vez mais o hábito de descrever com precisão as sensações íntimas e o
convívio social. Ele citou Plínio a respeito da ideia de prestar atenção a
esses fragmentos fugidios: “Cada homem é uma boa educação para si
mesmo, desde que tenha a capacidade de se observar de perto.” Enquanto o
homem Montaigne cuidava da vida cotidiana em sua propriedade, o escritor
Montaigne caminhava atrás dele, observando e tomando notas.
Quando finalmente veio a escrever sobre o seu acidente de equitação,
portanto, ele o fez não só para lançar fora o que ainda restava do seu medo
da morte, como se sacudisse a areia dos sapatos, mas também para
aprimorar suas técnicas de observação, chegando a um nível que jamais
tentara anteriormente. Assim como, nos dias que se seguiram ao acidente,
fizera os criados contarem repetidamente o que acontecera, também devia,
no momento da escrita, ter repassado mentalmente o episódio, revivendo
aquelas sensações de flutuação, a impressão de que seu fôlego ou seu
espírito pendia do limiar do corpo, além da dor experimentada ao voltar a
si. Ele o “processou”, como diriam os psicólogos hoje, através da literatura.
Ao fazê-lo, reconstituiu a experiência tal como efetivamente era, e não
como os filósofos diziam que deveria ser.
Esse seu novo hobby nada tinha de fácil. Montaigne gostava de fingir
que havia reunido Os Ensaios distraidamente, mas de vez em quando
esquecia a pose e reconhecia o enorme trabalho que lhe havia dado:

É uma tarefa espinhosa, mais do que pode parecer, seguir um


movimento incerto como o de nossa mente, penetrar as profundezas
opacas de seus mais íntimos refolhos, distinguir e imobilizar as
inúmeras oscilações que a agitam.

Montaigne pode ter celebrado a beleza dessa capacidade de deslizar com


leveza pela superfície da vida; na verdade, ele efetivamente aperfeiçoaria
essa arte à medida que envelhecia. Ao mesmo tempo, como escritor,
desenvolvia a arte de explorar as profundezas. “Eu medito sobre qualquer
satisfação”, escreveu. “Não passo simplesmente por ela, trato de sondá-la.”
Ele estava tão decidido a explorar até mesmo um fenômeno normalmente
fugidio por definição — o sono — que pedia a um criado havia muito
doente que o despertasse regularmente no meio da noite, na esperança de
capturar um vislumbre do próprio inconsciente, no momento em que lhe
escapava.
Montaigne queria vagar, mas também queria ligar-se à realidade para
dela extrair cada grão de experiência. O ato de escrever tornava possíveis as
duas coisas. Mesmo se perdendo em devaneios, ele secretamente prendia
seus ganchos em tudo que acontecia, de maneira a poder recapturar os
acontecimentos quando quisesse. Aprender a morrer era aprender a
entregar; aprender a viver era aprender a se aferrar.

O FLUXO DA CONSCIÊNCIA

Na verdade, por mais que se tente, não é possível resgatar plenamente uma
experiência. Como dizia o antigo filósofo Heráclito em frase que ficou
famosa, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Ainda que voltemos
ao mesmo ponto à margem, as águas que passam a cada momento são
sempre diferentes. Da mesma forma, é impossível ver o mundo exatamente
como há meia hora, assim como é impossível vê-lo do ponto de vista de
outra pessoa ao seu lado. A mente está sempre fluindo, num incessante
“fluxo da consciência” — expressão cunhada pelo psicólogo William James
em 1890, embora se tornasse mais conhecida graças a alguns romancistas.
Montaigne estava entre os muitos autores que citavam Heráclito e
refletia sobre a maneira como somos levados por nossos pensamentos, “ora
suavemente, ora violentamente, segundo estejam as águas agitadas ou
calmas (...) a cada dia uma nova fantasia, e os nossos humores mudam com
as alterações do tempo”. Não surpreende que a mente seja assim, já que até
mesmo no mundo físico, aparentemente sólido, impera incessantemente
uma suave agitação. Contemplando a paisagem ao redor de sua casa,
Montaigne era capaz de imaginá-la fervendo e arfando como um mingau na
panela. O rio que por ali passava, o Dordonha, esculpia as margens como
um carpinteiro cinzelando sulcos na madeira. Ele ficara maravilhado com a
mobilidade das dunas de Médoc, perto das quais vivia um dos seus irmãos:
elas perambulavam pelo território, devorando-o. Se pudéssemos ver o
mundo a uma velocidade diferente, pensava ele, assim é que veríamos tudo,
como “uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas”. A matéria
existia numa incessante branloire, palavra derivada da quinhentista dança
camponesa branle, significando algo parecido com agitação ou sacudidela.
O mundo era uma grande oscilação cósmica, uma trepidação.
Outros escritores do século XVI compartilhavam esse fascínio de
Montaigne pelo instável. O que o distinguia era o instinto de que o
observador é tão pouco digno de confiança quanto o observado. Os dois
tipos de movimento interagem como variáveis numa complexa equação
matemática, resultando disso que não podemos encontrar um ponto seguro a
partir do qual medir as coisas. Tentar entender o mundo é como tentar
agarrar uma nuvem de gás ou um líquido, usando mãos que são por sua vez
feitas de gás ou água, de tal maneira que se dissolvem quando os
enfeixamos.
É por isto que o livro de Montaigne flui: ele acompanha o fluxo de
consciência do autor sem tentar interrompê-lo ou contê-lo. Uma página de
Os ensaios costuma ser uma sucessão de meandros, reviravoltas e
divergências. Precisamos deixar-nos levar, torcendo para não capotar toda
vez que uma mudança de direção nos tirar o equilíbrio. No capítulo “Dos
aleijados”, por exemplo, Montaigne começa de maneira bastante
convencional, repetindo uma suposição sobre as mulheres mancas: seria
mais prazeroso fazer sexo com elas. Por que seria?, pergunta-se ele. Será
que é pelo fato de seus movimentos serem irregulares? Talvez, mas ele
acrescenta: “Acabo de saber que, de todas as filosofias, a antiga resolveu a
questão.” Aristóteles afirma que suas vaginas são mais musculosas por
receberem a nutrição de que as pernas são privadas. Montaigne registra esta
ideia mas volta atrás e introduz uma dúvida: “A essa altura, o que não
podemos transformar em objeto da razão?” Essas teorias não costumam
merecer crédito. Na verdade, ele acaba revelando que fez a experiência
pessoalmente, acessando uma perspectiva muito diferente: a pergunta pouco
significa, pois a imaginação pode nos levar a acreditar que estamos
vivenciando um prazer maior, estejamos “realmente” ou não. No fim das
contas, a estranheza da mente humana é a única certeza que podemos ter —
uma conclusão extraordinária, aparentemente sem qualquer relação com o
tema de que ele originalmente tratava.
Outro ensaio, “Que nossa felicidade não deve ser julgada até depois da
nossa morte”, começa citando um chavão encontrado numa obra de Sólon:
Nenhum homem pode ser considerado feliz até morrer. Montaigne
imediatamente se desvia para um pensamento mais interessante: talvez
nossa opinião sobre o fato de um homem ter sido feliz ou não tenha mais a
ver com a forma como ele morre. Um homem que morre bem tende a ser
lembrado como alguém que também viveu bem. Depois de dar exemplos
neste sentido, Montaigne volta mais uma vez a mudar de direção. Na
verdade, uma pessoa que tenha tido uma boa vida pode morrer de maneira
muito ruim, e vice-versa. Na própria época de Montaigne, três dos mais
infames indivíduos do seu conhecimento tinham desfrutado de lindas
mortes, “compostas à perfeição”. A essa altura, o capítulo já se transformou
numa longa perambulação com três guinadas, e Montaigne parece preparar-
se para concluir dizendo que, de qualquer forma, espera que sua morte
transcorra bem. Mas bem no fim ele observa que, com o desejo de que
“transcorra bem”, espera que ela seja “tranquila e insensível” — o que não
seria propriamente a ideia mais habitual de uma morte admirável. E com
isto o texto chega abruptamente ao fim, no exato momento em que o leitor
começa a se perguntar se isto significa que Montaigne viveu bem ou não.
Desse modo, o pensamento de Montaigne consiste essencialmente numa
série de percepções de que a vida não é tão simples quanto ele imaginava.

Se minha mente pudesse firmar-se com solidez, eu não escreveria


ensaios, e sim tomaria decisões; mas ela está sempre aprendendo e
experimentando.

Em certa medida, as mudanças de direção são explicadas por essa atitude


questionadora, mas também pelo fato de ele ter escrito o livro ao longo de
vinte anos. As ideias de uma pessoa mudam muito ao longo de duas
décadas, especialmente se ela passar todo esse tempo viajando, lendo,
conversando com pessoas interessantes e praticando política e diplomacia
em alto nível. Revisando redações anteriores de Os ensaios repetidas vezes,
ele acrescentava novos elementos, à medida que lhe ocorriam, sem se
preocupar em encaixotá-los em uma coerência artificial. Num espaço de
poucas linhas, podemos encontrar o jovem Montaigne e um velho com o pé
na cova, para retornar em seguida ao prefeito de meia-idade assoberbado de
responsabilidades. Vamos ouvi-lo se queixar de impotência; pouco depois,
podemos vê-lo jovem e vigoroso, “impertinentemente genital” em seus
desejos. Ele é impetuoso e franco; mostra-se cuidadoso; fascinado por
outras pessoas; farto da maioria delas. Seus pensamentos são expostos tal
como vêm. Ele nos faz sentir a passagem do tempo em seu mundo interior.
“Eu não retrato o ser”, escreveu, “retrato a passagem. Mas não a passagem
de uma época a outra (…), e sim de um dia a outro, de um minuto ao
seguinte”.
Entre os leitores que ficaram fascinados com a maneira como Montaigne
descrevia o fluxo de sua experiência, esteve uma das grandes pioneiras da
ficção exploratória do “fluxo de consciência” no início do século XX,
Virginia Woolf. Seu propósito na arte era mergulhar no rio mental e deixar-
se ir aonde ele a conduzisse. Seus romances perscrutavam o mundo dos
personagens “de minuto a minuto”. Às vezes ela deixava um canal aberto
para outra sintonia, transferindo o ponto de vista como um microfone de um
indivíduo para outro, mas o fluxo em si mesmo nunca cessava, até o fim de
cada livro. Ela identificou em Montaigne o primeiro escritor a tentar
alguma coisa do gênero, embora apenas com o seu “fluxo” individual. Ela
também o considerava o primeiro a dar tanta atenção ao simples sentimento
de estar vivo. “Observar, observar perpetuamente” era o seu lema, dizia ela
— e o que ele observava era, acima de tudo, esse rio da vida passando por
sua existência.
Montaigne foi o primeiro a escrever dessa maneira, mas não o primeiro a
tentar viver com plena atenção ao momento presente. Esta era uma das
regras recomendadas pelos filósofos clássicos. A vida é aquilo que acontece
enquanto estamos fazendo outros planos, diziam eles; a filosofia, portanto,
tem de estar constantemente reorientando a atenção para onde ela deve
estar: aqui. Ela desempenha um papel semelhante ao dos pássaros
estorninhos no romance Ilha, de Aldous Huxley, treinados para voar o dia
inteiro cantando “Atenção! Atenção!” e “Aqui e agora!”. Como dizia
Sêneca, a vida não faz qualquer pausa para nos lembrar que está indo
embora. Só você mesmo pode manter isto em mente:

Não causará nenhuma comoção lembrá-lo de sua rapidez, mas trate de


deslizar suavemente (...) Qual pode ser o resultado? Você se
preocupa, enquanto a vida passa. Enquanto isso, a morte vai chegar, e
você não pode escolher se deve ou não mostrar-se disponível a ela.

Se não formos capazes de capturar e apreender a vida, ela escapará entre


nossos dedos. Mas, se a capturarmos, ela de qualquer maneira haverá de
escapar. Devemos, portanto, segui-la — e “precisamos beber depressa,
como se de um fluxo rápido que não estará sempre passando”.
O truque consiste em manter uma espécie de espanto ingênuo diante de
cada instante da experiência — mas, como viria a aprender Montaigne, uma
das melhores técnicas para fazê-lo é escrever sobre tudo. O simples ato de
descrever um objeto sobre sua mesa ou a vista da sua janela abre os seus
olhos para a maravilha que são essas coisas comuns. Olhar para o nosso
interior é abrir um universo ainda mais fantástico. O filósofo Maurice
Merleau-Ponty considerava Montaigne um escritor que pôs “uma
consciência espantada consigo mesma no cerne da existência humana”.
Mais recentemente, o crítico Colin Burrow observou que o espanto e a outra
grande qualidade de Montaigne, a fluidez, consistem precisamente no que a
filosofia deveria ser, mas raramente tem sido, na tradição ocidental.
À medida que Montaigne envelhecia, não diminuía seu desejo de prestar
essa atenção espantada à vida; pelo contrário, aumentava. Ao fim do longo
processo de redação de Os ensaios, ele quase levara o truque à perfeição.
Sabendo que a vida que lhe restava não poderia ser muito longa, disse:
“Tento aumentar o seu peso, tento conter a velocidade do seu voo com a
rapidez com que a agarro (...) Quanto mais breve minha posse da vida, mais
profunda e plena devo torná-la.” Ele descobriu uma espécie de técnica de
meditação ambulante:

Quando caminho sozinho no belo pomar, se meus pensamentos se


desviam por algum tempo por incidentes irrelevantes, eu tento nos
outros momentos trazê-los de volta à caminhada, ao pomar, à doçura
dessa solidão, a mim.

Em momentos assim, ele parecia alcançar uma disciplina quase zen, uma
capacidade de simplesmente ser.
Quando eu danço, danço; quando eu durmo, durmo.

Parece tão simples, dito assim, mas nada poderia ser mais difícil. Por isto
é que os mestres zen passam uma vida inteira, ou várias vidas, aprendendo.
E mesmo assim, a dar crédito aos relatos da tradição, eles só o conseguem
depois de serem golpeados pelo mestre com uma vara — a keisaku, usada
para lembrar aos que meditam que devem manter a atenção plenamente
concentrada. Montaigne o conseguiu depois de uma única vida,
relativamente breve, em parte porque passou boa parcela dessa vida fazendo
anotações no papel, com uma vara minúscula.
Ao escrever sobre sua experiência como se ele próprio fosse um rio,
Montaigne deu início a uma tradição literária de atenta observação íntima,
hoje tão familiar que fica difícil lembrar que se trata mesmo de uma
tradição. A vida simplesmente parece ser assim, e observar o jogo dos
estados íntimos é a missão do escritor. Mas essa não era uma ideia
disseminada antes de Montaigne, e sua maneira particularmente inquieta e
formalmente livre de fazê-lo era desconhecida. Ao inventá-la, arriscando
uma segunda resposta à pergunta sobre como viver — “prestar atenção” —,
Montaigne transcendeu sua crise e conseguiu inclusive revertê-la em
benefício próprio.
Tanto “Não se preocupe com a morte” quanto “Preste atenção” eram
respostas para uma perda de rumo que pode acontecer no meio da vida:
surgiam da experiência de um homem que já vivera o suficiente para ter
cometido erros e conhecido frustrações. Mas também assinalavam um
início, propiciando o nascimento de um novo eu voltado para a redação de
ensaios.
3. P. Como viver? R. Trate de nascer

MICHEAU

O
eu anterior de Montaigne, o que não escrevia ensaios e
simplesmente vivia e respirava como todo mundo, começara de
maneira mais simples. Chegou a este mundo no dia 28 de
fevereiro de 1533 — o mesmo ano em que a futura rainha Elizabeth I da
Inglaterra nasceu. Seu nascimento ocorreu entre onze horas e meio-dia, no
mesmo castelo da família que seria sua residência por toda a vida. Ele foi
batizado de Michel, mas, pelo menos para o pai, seria sempre Micheau. O
apelido aparece até em documentos formais, como o testamento do pai,
quando o menino já se havia transformado num homem.
Em seu Os ensaios, Montaigne escreveu ter sido carregado no ventre da
mãe durante onze meses. Era uma afirmação estranha, pois se sabia
perfeitamente que semelhante prodígio não seria possível na natureza. Uma
mente mais perversa certamente tiraria sem hesitar conclusões indelicadas.
Em Gargântua, de Rabelais, o gigante que dá título ao livro também passa
onze meses no útero da mãe. “Parece estranho?”, pergunta Rabelais,
respondendo ele próprio com uma série de relatos sarcásticos, segundo os
quais advogados espertos conseguem comprovar até a legitimidade de uma
criança cujo suposto pai tinha morrido onze meses antes do nascimento.
“Graças a essas sábias leis, nossas virtuosas viúvas podem, durante dois
meses após a morte do marido, entregar-se livremente às brincadeiras mais
ousadas no escuro, com os tornozelos acima da cabeça e o coração feliz.”
Montaigne lera Rabelais e provavelmente pensara nas piadas óbvias, mas
não pareceu se preocupar com elas.
Nenhuma outra dúvida sobre paternidade é lançada nas demais páginas
de Os ensaios. Montaigne chega a refletir sobre a força das características
genéticas em sua família, descrevendo traços que havia recebido do bisavô,
do avô e do pai, incluindo uma serena honestidade e uma propensão a
pedras nos rins. Aparentemente se considerava muito parecido com o pai.
Montaigne sentia-se à vontade para falar de honestidade e problemas de
saúde hereditários. No entanto, mostrava-se mais discreto quanto a outros
aspectos da herança genética, pois não descendia da velha aristocracia, e
sim, em ambos os lados da família, de várias gerações de comerciantes que
haviam ascendido socialmente. Chegou até a inventar que na propriedade
dos Montaigne havia nascido “a maioria” de seus antepassados, o que era
uma redonda mentira: seu pai fora o primeiro a nascer ali.
É bem verdade que a propriedade já era da família havia mais tempo.
Fora comprada em 1477 por seu bisavô Ramon Eyquem, ao fim de uma
longa e bem-sucedida vida de busca por sucesso material, negociando
vinhos, peixes e pastéis-dos-tintureiros — a planta da qual é extraída a
tintura de anil, produto de grande importância econômica na região.
Grimon, o filho de Ramon, pouco contribuiu com melhorias para a
propriedade, à parte abrir um caminho margeado por cedros e carvalhos até
a igreja local. Mas aumentou ainda mais a riqueza dos Eyquem e deu início
a outra tradição familiar, envolvendo-se na política de Bordeaux. A certa
altura, deixou de comerciar e passou a viver “nobremente”, o que
representava um passo importante. Ser nobre não era um je ne sais quoi em
matéria de classe e estilo: era uma questão técnica, consistindo a regra
principal em que você e seus descendentes não se envolvessem com
práticas comerciais nem pagassem impostos por pelo menos três gerações.
Pierre, o filho de Grimon, também passou ao largo do comércio, de modo
que a nobreza foi conferida pela primeira vez à geração número três: do
próprio Michel Eyquem de Montaigne. A essa altura, ironicamente, seu pai,
Pierre, transformara a propriedade, que deixou de ser a mera extensão de
terras que era até então para se tornar um bem-sucedido empreendimento
comercial. O castelo tornou-se sede de um grande negócio viticultor,
fabricando dezenas de milhares de litros de vinho por ano. E continua a
fazê-lo até hoje. A prática era perfeitamente permitida: era possível ganhar
quanto dinheiro quisesse vendendo produtos da própria terra, sem que isto
fosse considerado comércio.
A história dos Eyquem exemplifica o grau de mobilidade que então era
possível, pelo menos em direção à parte mais alta da escala social. Os novos
nobres às vezes tinham dificuldade de granjear pleno respeito, mas isto se
aplicava sobretudo à chamada “nobreza togada”, elevada a essa posição
pela prestação de serviços políticos e civis, e não à “nobreza da espada”,
designada com base nas propriedades, como acontecera com a família de
Montaigne, e orgulhosa do papel militar que consequentemente teria
de desempenhar. Os camponeses, enquanto isto, ficavam basicamente onde
sempre haviam estado: na base. Sua vida ainda era dominada pelo seigneur
local — no caso, o chefe da família Eyquem. Ele era proprietário de suas
casas, dava-lhes emprego e cobrava aluguel pelo uso do espremedor de
vinhas e do forno de pão. Ao chegar sua vez, Montaigne provavelmente
continuou sendo para eles um típico seigneur, por mais que louvasse a
sabedoria dos camponeses em seu Os ensaios — livro que dificilmente
algum trabalhador agrícola de suas propriedades terá um dia lido.
O registro sobre o nascimento de Montaigne no livro da família informa
que ele nasceu “in confiniis Burdigalensium et Petragorensium”: na região
entre Bordeaux e o Périgord. O que era significativo, pois Bordeaux era
predominantemente católica, ao passo que o Périgord era dominado por
seguidores da nova religião, reformada ou protestante. A família Eyquem
precisava manter boas relações com ambos os lados de uma divergência que
haveria de dividir a Europa em duas ao longo da vida de Montaigne, e
também muito além dela.
A Reforma ainda era notícia recente: seu início costuma ser datado de
1517, ano em que Martinho Lutero escreveu um tratado condenando a
tradição católica das vendas de absolvições terrenas, ou “indulgências”,
tendo supostamente afixado o texto à porta da igreja de Wittenberg em
atitude desafiadora. Alcançando ampla circulação, o tratado desencadeou
uma grande rebelião contra a Igreja. O papa reagiu inicialmente descartando
Lutero como um “alemão bêbado”, para em seguida excomungá-lo. Os
poderes seculares do Sacro Império Romano declararam Lutero um fora da
lei com a cabeça a prêmio, transformando-o, assim, num herói popular.
Com o passar do tempo, quase toda a Europa ficaria dividida em dois
campos: os que se mantinham leais à Igreja e os que apoiavam a rebelião de
Lutero. Essa divisão nunca teve contornos geográficos ou ideológicos
claros. A Europa se desintegrou como um bolo esfarelado, e não como uma
maçã cortada ao meio por uma faca. Praticamente todos os países foram
afetados, mas poucos foram os que tomaram decididamente um caminho ou
outro. Em muitos lugares, especialmente na França, as linhas de cisão
passavam por aldeias e até famílias, e não entre diferentes territórios.
Na região onde vivia Montaigne, a Guyenne (também conhecida como
Aquitânia), era efetivamente possível constatar um padrão: grosso modo, o
campo ia numa direção e a capital, na outra. A tensão era agravada pela
impressão geral, já disseminada na região antes da Reforma, de que a
Aquitânia não fazia parte da França. Tinha sua língua própria e poucos
vínculos históricos com o norte do país. Durante muito tempo, fora
território inglês. Os ingleses só foram expulsos em 1451, por invasores
franceses vistos como raptores estrangeiros que não mereciam confiança. A
população se sentia nostálgica dos velhos tempos, não porque sentisse falta
dos ingleses, mas por detestar os franceses do norte. Eram frequentes as
rebeliões. As autoridades ergueram três enormes fortalezas para guardar a
cidade: o Château Trompette, o Fort du Hâ e o Fort Louis. Todas eram
detestadas, e todas deixaram de existir.
Sempre que possível, Bordeaux estabelecia relações diplomáticas com
qualquer um que não fizesse parte de seus conquistadores. Na época de
Montaigne, a região foi muito influenciada pela corte protestante de
Navarra, sediada em Béarn, na fronteira meridional com a Espanha.
Também mantinha vínculos com a Inglaterra, que importou o gosto de
Bordeaux pelos vinhos. Uma frota comercial inglesa regularmente aportava
ali para se abastecer — o que era excelente para os fornecedores locais,
entre eles os Eyquem, a família de Montaigne.
À medida que a propriedade adquiria maior importância, “Montaigne”
veio a sobrepujar o nome mais antigo de Eyquem, que tinha e continua
tendo uma conotação nitidamente regional. Uma parte da família ainda hoje
é lembrada por sua lendária propriedade vinícola: o Château d’Yquem.
Apesar de uma preferência pelo local e o particular na maioria das coisas,
Montaigne tornou-se o primeiro a passar por cima disto, ficando conhecido
pelo nome francês mais genérico de suas origens. Tal atitude tem sido
motivo de críticas de seus biógrafos, mas ele apenas dava continuidade a
uma iniciativa já tomada por seu pai, que se identificava como “de
Montaigne” ao assinar documentos. Enquanto o pai deixava de fora essa
parte extra quando queria ser breve, Montaigne tendia a extirpar o
“Eyquem”.
Se Michel Eyquem de Montaigne, produto de uma meteórica ascensão
social, abordou rapidamente a procedência mercantil do pai em Os ensaios,
pode ter sido para se assegurar de que o livro tivesse penetração nas esferas
nobres ociosas; ou talvez, simplesmente, por não se preocupar muito com a
questão. O pai provavelmente evitava entretê-lo com histórias sobre as
origens da família; é possível que Montaigne mal tivesse consciência delas
ao crescer. E não resta dúvida de que havia também uma ponta de vaidade:
era um dos muitos pecadilhos alegremente reconhecidos por Montaigne,
que acrescentava:

Se os outros se examinassem com atenção, como eu faço, haveriam


de se descobrir, como eu, cheios de futilidade e estupidez. Eu não
poderia me livrar disto sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos
mergulhados nisto, uns tanto quanto outros; mas os que têm
consciência se saem um pouco melhor — embora não dê para ter
certeza.

Esse remate final — “embora não dê para ter certeza” — é puro Montaigne.
Podemos imaginar que era acrescentado, em pensamento, a praticamente
tudo que ele escreveu. Toda a sua filosofia está contida nesse parágrafo.
Sim, diz ele, somos todos uns tolos, mas não podemos ser de outra maneira,
de modo que é melhor relaxar e aceitar tal condição.
Se as atividades do pai pareciam nebulosas, um segredo mais grave
aparentemente pairava sobre a família da mãe, Antoinette de Louppes de
Villeneuve. Seus antepassados eram comerciantes; eram também imigrantes
espanhóis, o que, no contexto da época, parece indicar que fossem
refugiados judeus. Como tantos outros, converteram-se ao cristianismo sob
pressão, emigrando em consequência da perseguição aos judeus na
península no fim do século XV.
Montaigne talvez não se tenha dado conta de que tinha origem judaica,
se é que efetivamente a tinha. Demonstrava escasso interesse pelo tema,
mencionando os judeus só ocasionalmente em Os ensaios, em geral de
maneira neutra ou solidária, mas nunca de uma forma indicativa de que se
sentisse pessoalmente envolvido. Viajando mais tarde pela Itália, ele visitou
sinagogas e presenciou uma circuncisão, mas o fez com a mesma
curiosidade que evidenciava por tudo mais que cruzava seu caminho:
serviços religiosos protestantes, execuções, bordéis, fontes com efeitos
especiais, jardins de pedras e mobília exótica.
Também demonstrava um sardônico ceticismo frente à “conversão” de
certos refugiados recentes — o que fazia sentido, considerando-se que não
era uma escolha voluntária. Se, como especulam alguns, isto representava
uma sutil cutucada na família da mãe, não seria de estranhar. Em sua vida
política, ele enfrentou constantes dificuldades da parte de certos parentes
dela em Bordeaux. Parece até ter tido problemas para se entender com a
própria Antoinette.
A mãe de Montaigne tinha indubitavelmente um temperamento forte,
mas as convenções a reduziam à impotência e à frustração. Casou-se jovem,
como costumavam fazer as mulheres, e provavelmente não teve muita
escolha na questão. Pierre Eyquem era bem mais velho que ela: na certidão
de casamento, datada de 15 de janeiro de 1529, sua idade consta como 33
anos, ao passo que ela é apenas “maior de idade”. Isto podia significar
qualquer coisa entre 12 e 25 anos; como ela viria a ter o derradeiro filho do
casal mais de trinta anos depois do casamento, devia estar mais perto dos 12
que dos 25. Dois filhos nasceram antes de Michel, mas nenhum dos dois
sobreviveu. É muito provável que ela ainda fosse uma adolescente ao trazê-
lo ao mundo, mas a essa altura já estava casada havia quatro anos.
Se ainda havia na noiva algo de infantil ou recatado, logo isto mudaria.
Documentos remanescentes de variados períodos de sua vida pintam o
retrato de uma pessoa voluntariosa, obstinada e capaz. Em seu primeiro
testamento, de 1561, seu marido confiava a ela a missão de gerir a casa, e
não ao filho mais velho, embora mais tarde tal indicação fosse alterada. Em
1561, ou Pierre Eyquem não depositava muita fé em Micheau (então com
quase 28 anos) ou tinha a mulher em conta excepcionalmente alta — o que
não deixa de causar espécie, numa época em que as mulheres mal eram
consideradas capazes de pensamento racional.
O segundo testamento, de 22 de setembro de 1567, evidenciava maior
confiança no filho, mas a essa altura Pierre sentia necessidade de se valer
do documento para ordenar à mulher que amasse os filhos e dizer a eles que
a honrassem e respeitassem. Aparentemente ele temia que ela e o filho mais
velho não convivessem de forma amistosa, pois ordenou a Montaigne que
encontrasse acomodações para ela em outro lugar, se o convívio na
propriedade da família se revelasse inviável. Antoinette acabou vivendo
com ele e sua família durante muito tempo após a morte do marido — até
aproximadamente 1587 —, mas sem muita convivência. Outro documento
legal firmado por mãe e filho em 31 de agosto de 1568 estabelecia o direito
de Antoinette a “todo respeito, honra e serviço filiais”, além de criados para
atendê-la e a uma centena de livres tournois por ano para os gastos
correntes. Ela, por sua vez, teve de reconhecer que cabiam a ele “o domínio
e o governo” do castelo e da propriedade. O contrato dava a entender que
Antoinette não se considerava bem-assistida, ao passo que Montaigne
queria acabar com suas intromissões.
As coisas se agravaram. Em seu próprio testamento, redigido a 19 de
abril de 1597 — cinco anos após a morte do filho, já que sobreviveu a ele
—, Antoinette declarava não desejar ser enterrada na propriedade, e
praticamente excluiu da herança a filha única de Montaigne, Léonor.
Queixou-se de que seu dote de casamento devia ter sido usado para a
aquisição de mais propriedades, o que não fora feito, e acrescentou:
“Trabalhei durante um período de quarenta anos na casa de Montaigne com
meu marido, de tal maneira que, com meu trabalho, cuidados e gestão, a
dita casa foi muito valorizada, melhorada e ampliada.” Seu filho Montaigne
desfrutou durante toda a vida desses benefícios, assim como Léonor, que já
estava “rica e opulenta” o suficiente, de nada mais precisando. Finalmente,
Antoinette observava estar “numa idade fácil de despistar”; tinha
provavelmente em torno de 80 anos, e ao que parece temia que o testamento
fosse contestado sob alegação de senilidade.
Lendo-se as frequentes confissões de indolência e inépcia encontradas
no livro de Montaigne, é fácil entender por que Antoinette considerava que
a propriedade não fora devidamente cuidada quando estava sob o comando
dele. Ele achava as questões práticas um tédio e as evitava tanto quanto
possível. É mais surpreendente que ela fizesse a mesma queixa na direção
do marido, Pierre, pois não é dessa forma, em absoluto, que ele é retratado
em Os ensaios. Montaigne faz com que o pai pareça um verdadeiro dínamo,
dedicado aos deveres e sempre trabalhando em melhoras na propriedade —
incansável e intervencionista até demais.
Pierre Eyquem de Montaigne era um homem do século XV — mas por
pouco, já que nasceu a 29 de setembro de 1495. Tudo nele proclamava sua
distância do mundo do filho. Seguindo uma tradição da nobreza, ele se
tornou soldado profissional, tendo sido o primeiro da família a fazê-lo.
Michel não o seguiu nisto: como membro da nobreza, era obrigado a
carregar uma espada, mas não há indicações em Os ensaios de que a
desembainhasse com frequência. Um contemporâneo seu, Brantôme,
deixou registrado que Montaigne “arrastava” a espada pela cidade e lhe
sugeriu que se limitasse a carregar uma pena. Sarcasmos assim não
caberiam no caso de Pierre, que agarrou a primeira oportunidade de se
alistar nas guerras francesas na Itália.
Tropas francesas vinham regularmente atacando e conquistando estados
na península desde 1494, e continuariam a fazê-lo até 1559, quando o
Tratado de Paz de Câteau Cambrésis pôs fim às invasões francesas, abrindo
caminho para a verdadeira catástrofe do país no século XVI: as guerras
civis. As aventuras italianas eram menos danosas, mas dispendiosas e quase
sempre sem sentido, além de traumáticas para os envolvidos. Pierre entrou
em combate por volta de 1518. À parte um breve intervalo no ano seguinte,
permaneceu longe de casa até o início de 1529, quando retornou para se
casar.
A guerra no século XVI era um circo de horrores, menos uma questão de
glamour no campo de batalha do que de hipotermia, febre, fome, doenças e
infecções por cortes de espada ou feridas de armas de fogo, para as quais
não havia tratamentos muito eficazes. Acima de tudo, havia cercos, pelos
quais se impunha a fome indiferentemente a civis e soldados, até a
rendição. Pierre pode ter participado dos cercos de Milão e Pavia em 1522,
e talvez também do desastroso assédio de Pavia em 1525, que terminou
com o massacre de uma grande quantidade de soldados franceses e o
aprisionamento do rei da França. Anos mais tarde, Pierre contemplaria a
família com relatos apavorantes de suas experiências na guerra, com direito
a histórias de populações de aldeias inteiras que, famintas e sem chance de
escapar, cometiam suicídio em massa. Pode estar aí a explicação do fato de
Montaigne, crescendo, ter dado preferência à pena em vez da espada.
As guerras italianas podem não ter sido nada edificantes sob certos
aspectos, mas, no sentido literal de oferecer educação, foram altamente
benéficas para os franceses. Entre um cerco e outro, os franceses tomavam
contato com ideias estimulantes nos terrenos da ciência, da política, da
filosofia, da pedagogia e das últimas tendências da moda. A essa altura, já
se passara o tempo do alto Renascimento italiano, mas a Itália continuava
sendo, de longe, a civilização mais avançada da Europa. Os soldados
franceses aprendiam novas maneiras de pensar sobre praticamente tudo, e
quando voltavam para casa levavam suas descobertas. Pierre certamente
fazia parte dessa geração de nobres franceses italianizados, influenciados
pelas viagens e por seu próprio rei carismático e modernizador, Francisco I.
Sucessores de Francisco deixaram de lado seu ideal renascentista, e durante
as guerras civis praticamente todo mundo perdeu a fé no futuro — mas na
juventude de Pierre essa desilusão ainda estava muito distante. Os ideais
ainda eram novos o bastante para empolgar.
À parte talvez o porte mais militar, Pierre tinha o mesmo aspecto físico
do filho. Montaigne o descreve como “um homem baixo, cheio de vigor e
de estatura ereta e bem-proporcionada”, com “um rosto atraente, tendendo
para o moreno”. Ostentava boa condição física e tratava de preservá-la.
Gostava de exercitar os bíceps valendo-se de canos cheios de chumbo, e
usava sapatos de solado chumbado para treinar a corrida e o salto. Este
último era um de seus especiais talentos. “Com seus saltos, ele deixou
alguns pequenos milagres na memória das pessoas”, escreveu Montaigne.
“Pude vê-lo já depois dos sessenta anos deixando-nos envergonhados em
matéria de agilidade, saltando para a sela do cavalo com sua túnica de pele,
fazendo um rodopio sobre a mesa com o polegar, praticamente nunca
subindo para seu quarto sem pular dois ou três degraus de cada vez.”
Pierre apresentava ainda outras belas qualidades, todas elas mais
características da sua geração que da geração de Montaigne. Era um homem
sério; preocupava-se com a própria aparência e o modo como se vestia e se
mostrava “consciencioso e escrupuloso” em tudo que fazia. Por seus
talentos esportivos e maneiras galantes, fazia sucesso entre as mulheres:
Montaigne o considerava “muito bem-dotado para as atenções com as
damas, tanto por natureza quanto por arte”. Era provavelmente para divertir
companhias femininas que ele saltava sobre as mesas. Quanto às escapadas
sexuais, Pierre não era claro com o filho. Por um lado, relatava histórias “de
notáveis intimidades, especialmente de sua parte, com mulheres
respeitáveis, isentas de qualquer suspeita”. Por outro, “jurava solenemente
que casara virgem”. Montaigne não parecia muito convencido da alegação
de virgindade, observando apenas que “no entanto, ele participara por muito
tempo das guerras italianas”.
Depois de retornar da Itália e se casar, Pierre iniciou uma carreira
política em Bordeaux. Foi eleito juiz e preboste em 1530, subprefeito em
1537 e finalmente prefeito em 1554. Foi um período de dificuldades na
cidade: a criação de um imposto local sobre o sal levou a um motim em
1548, e como punição a “França” suspendeu muitos direitos legais de
Bordeaux. Como prefeito, Pierre fez o que estava ao seu alcance para
recuperar a prosperidade da cidade, mas os privilégios só voltaram aos
poucos. A tensão acabou comprometendo sua saúde. Assim como suas
histórias sobre as atrocidades da guerra podem ter contribuído para afastar
Montaigne da vida militar, assim também a visão do cansaço de Pierre o
estimularia a manter certa distância da função quando ele, por sua vez,
também foi feito prefeito de Bordeaux, cerca de trinta anos depois.
Pierre tinha ideias brilhantes, entre elas a de uma espécie de eBay do
século XVI, com a proposta de que cada cidade e aldeia tivesse um lugar
onde qualquer um pudesse anunciar o que quisesse: “Quero vender pérolas;
quero comprar pérolas. Fulano de Tal precisa de companhia para ir a Paris;
Sicrano procura criado com tais especificações; Beltrano quer um mestre;
alguém mais, um trabalhador; este homem, isso, aquele outro, aquilo.”
Parece interessante, mas, não se sabe por quê, o plano não deu certo.
Outra boa ideia de Pierre foi manter um diário em que registrava tudo
que acontecia na propriedade: idas e vindas dos criados, dados financeiros e
agrícolas de toda espécie. Ele estimulou o filho a fazer o mesmo.
Montaigne começou, movido por boas intenções após a morte de Pierre,
mas não persistiu: existe apenas um fragmento remanescente. “Sou mesmo
um tolo por tê-lo negligenciado”, escreveu em Os ensaios. Mas ele
conseguiu dar continuidade a outro registro iniciado pelo pai, usando um
calendário impresso intitulado Ephemeris, do escritor alemão Michel
Beuther. Deste dispomos praticamente na íntegra, à parte algumas folhas,
estando cheio de anotações de Montaigne e outros membros da família.
Cada data do ano tem sua própria página, associando um resumo impresso
de acontecimentos históricos a uma área em branco para os comentários a
serem adicionados ano a ano. Montaigne usou o seu Beuther para registrar
nascimentos, viagens e visitas notáveis ao longo da vida. Manteve-se fiel ao
registro, mas com certa tendência a errar nas datas, nas idades e em outras
informações carentes de precisão.
Não obstante as queixas da mulher, Pierre aparentemente adorava o
trabalho duro, particularmente o que dedicava às melhorias da propriedade.
Talvez o que a irritasse fosse sua preferência por investir nesses
aperfeiçoamentos e não na compra de novas propriedades, além do hábito
de não levar as coisas até o fim. O fato de Pierre ter abandonado a ideia do
balcão de anúncios pode ter sido mais característico do seu comportamento
do que parece. À morte de Pierre, Montaigne herdou muitas tarefas
deixadas pela metade na propriedade, sentindo-se no dever de levá-las a
termo, o que no fim nunca chegou a fazer. Trabalho que está parado ainda
na organização do canteiro de obras é bem irritante: talvez a inércia fosse a
maneira encontrada por Montaigne para lidar com isto, assim como a
exasperação era a de Antoinette.
Certas iniciativas sem conclusão podem ter sido um indício de que a
energia de Pierre estava em declínio, pois a partir dos 66 anos ele foi
acometido de debilitantes ataques de pedras nos rins. Nos últimos anos de
vida, Montaigne com frequência o viu se contorcendo de dores. Ele jamais
esqueceria o choque que foi presenciar o primeiro desses ataques, que
atingiu Pierre inesperadamente, deixando-o inconsciente de tanta dor. Ao
desmaiar, ele caiu nos braços do filho. Foi provavelmente um episódio
semelhante, ou complicações decorrentes de um deles, que finalmente o
levou à morte. Ele morreu em 18 de junho de 1568, aos 74 anos.
A essa altura, Pierre tinha substituído seu primeiro testamento, tão
implicitamente crítico da capacidade do filho, por outro, que atribuía a
Montaigne a missão de cuidar dos irmãos menores e fazer para eles as vezes
do pai. “Ele deve tomar o meu lugar e me representar diante deles”,
escreveu. Montaigne efetivamente tomou o lugar do pai, e nem sempre
achou fácil ocupá-lo.
Em Os ensaios, ele aparece como uma espécie de negativo de Pierre. Um
elogio ao pai muitas vezes vem seguido da afirmação de que ele próprio
seria completamente diferente. Depois de relatar como Pierre gostava de
promover melhorias na propriedade, Montaigne nos apresenta uma imagem
quase comicamente exagerada de sua própria falta de habilidade ou mesmo
interesse nesse tipo de coisa. Qualquer trabalho que fizesse, “rematando
algum canto numa velha parede e consertando uma edificação malfeita”,
seria antes em homenagem a Pierre do que para sua própria satisfação,
explicava. Como viria a advertir o filósofo novecentista Friedrich
Nietzsche, “não se deve tentar superar o próprio pai em matéria de
diligência, para não ficar doente”. De maneira geral, Montaigne
efetivamente não tentou, preservando assim a própria sanidade.
Por mais inadequado que se sentisse nas habilidades práticas da vida, ele
sabia da vantagem que levava em matéria de literatura e cultura. A
limitação do conhecimento livresco de Pierre se contrapunha a seu amor
pelos livros. Na visão de Montaigne, o fato de o pai transformar os livros
em objeto de culto era bem característico de sua geração: ele se empenhava
em fazer contato com os autores, “recebendo-os em casa como seres
sagrados” e “bebendo seus ditos e sentenças como se fossem oráculos”.
Mas não demonstrava grande compreensão crítica. Tudo bem, parece dizer
Montaigne, Pierre podia ser capaz de rodopiar sobre uma mesa com seu
másculo polegar, mas em questões intelectuais era uma negação. Adorava
os livros sem entendê-los. Seu filho tentaria sempre fazer o contrário.
Montaigne estava certo ao considerar que se tratava de uma
característica dos contemporâneos de Pierre. Os nobres franceses do início
do século XVI apreciavam tudo que fosse brilhante e italianizante,
procurando se distanciar da atitude ostentada por seus antecessores de
desafiadora repulsa à erudição. O que Montaigne se esqueceu de observar
foi que ele próprio não era menos típico da sua época ao rejeitar o fetiche
dos livros. Os pais cobriam os filhos de literatura e história, faziam-nos
desenvolver o pensamento crítico e os ensinavam a girar em torno das
filosofias clássicas como bolas de malabarismo. E os filhos só sabiam
agradecer descartando tudo isso como coisas sem valor e assumindo uma
atitude de superioridade. Alguns chegaram a tentar reviver a antiga tradição
anti-intelectual, como se fosse uma radicalização nunca antes imaginada.
Havia desencanto e amargura na geração de Montaigne, assim como uma
nova e rebelde criatividade. Se eles se mostravam descrentes, não é difícil
entender por quê: tinham de assistir aos ideais que guiaram sua educação
serem transformados em uma piada de mau gosto. A Reforma, exaltada
inicialmente por certos pensadores como uma lufada de ar fresco benéfica
até para a própria Igreja, transformou-se numa guerra, ameaçando levar a
sociedade civilizada à ruína. Os princípios renascentistas da beleza, do
equilíbrio, da clareza e da inteligência dissolveram-se em violência,
crueldade e em uma teologia extremista. O meio século em que viveu
Montaigne foi tão desastroso para a França que ela precisaria de outro meio
século para se recuperar — e sob certos aspectos nunca se recuperou, pois a
turbulência do fim do século XVI impediu a França de construir um grande
império no Novo Mundo, como os da Inglaterra e da Espanha, e fez com
que se mantivesse voltada sobre si mesma. Na época da morte de
Montaigne, a França estava em situação economicamente frágil, devastada
pelas doenças, a fome e a desordem. Não surpreende, assim, que os jovens
nobres da sua geração se tornassem misantropos de requintada cultura.
Montaigne trazia em si um pouco dessa tendência anti-intelectual. Ele
cresceu acreditando que a única esperança para a humanidade estava na
simplicidade e na ignorância dos camponeses. Eram eles os verdadeiros
filósofos do mundo moderno, herdeiros de sábios clássicos como Sêneca e
Sócrates. Só eles sabiam viver, precisamente porque não sabiam muito a
respeito de mais nada. Foi a esse ponto que ele retornou ao culto da
ignorância: uma verdadeira bofetada no rosto de Pierre.
Mas nada pode acontecer exatamente da mesma forma uma segunda vez.
E ninguém podia ser menos parecido com os nobres medievais do que
Montaigne, com seus ensaios e experimentações, e o remate de tudo
que escrevia com codas ambivalentes. Seu jeito de acrescentar “embora não
tenha certeza”, implícita ou explicitamente, a quase todos os pensamentos
que lhe ocorriam o distancia, e muito, da maneira antiga. No fim das contas,
os ideais do pai sobreviveram nele, mas em forma mutante: abrandados,
ensombrecidos e totalmente desprovidos de qualquer certeza.

A EXPERIÊNCIA

É possível que essa disposição para questionar as certezas e os preconceitos


fosse um traço de família. Em meio às disputas religiosas, os Eyquem eram
conhecidos — “famosos”, dizia Montaigne — por sua liberdade em relação
às desarmonias sectárias. Mantiveram-se em sua maioria católicos, mas
vários deles se converteram ao protestantismo, o que surpreendentemente
gerou muito pouco incômodo. Quando um jovem Eyquem protestante deu
sinais de extremismo, La Boétie, o amigo de Montaigne, recomendou-lhe
mudar de ideia, “por respeito à boa reputação que a família à qual pertence
adquiriu por contínuo acordo — uma família que me é cara como qualquer
outra família do mundo: meu Deus, que família! Da qual nunca partiu
qualquer ato de que não fosse capaz um homem digno”.
Esse clã admirável também era muito grande. Montaigne tinha sete
irmãos e irmãs, sem contar os dois que nasceram e morreram antes dele,
tornado-o o mais velho. A diferença de idade em relação aos outros irmãos
era considerável, podendo parecer até uma divisão de gerações, pois
Montaigne já tinha 27 anos quando nasceu seu irmão menor, Bertrand.
Até onde se sabe, nenhum dos irmãos menores recebeu tanta atenção ou
uma educação tão excepcional quanto o pequeno Micheau. As irmãs
provavelmente tiveram uma educação feminina normal, o que significa
praticamente nenhuma. E mesmo os outros irmãos foram tratados de
maneira mais convencional, até onde se sabe. O único rebento bem
documentado da família é Michel de Montaigne — que não foi apenas
educado: tornou-se objeto de uma experiência pedagógica praticamente
inédita.
O caráter inusitado desse tratamento manifestou-se logo depois do
nascimento, quando Micheau foi instalado na casa de uma família modesta
numa aldeia próxima. Ter uma ama de leite camponesa era perfeitamente
normal, mas o pai de Montaigne queria que ele também absorvesse dos
plebeus uma compreensão do seu modo de vida, para ser capaz de se
entender, quando crescesse, com as pessoas que mais precisavam da ajuda
de um seigneur. Assim, em vez de trazer uma ama para cuidar do bebê, ele
enviou o bebê à ama, deixando-o lá até ser desmamado. Até mesmo no
batismo Pierre convocou “pessoas da classe mais baixa” para segurar a
criança na pia batismal. Desde o início, Montaigne teve a sensação de ser
um camponês entre camponeses e ao mesmo tempo muito especial e
diferente. Essa mistura de sentimentos seria experimentada pelo resto da
vida. Ele se sentia comum, mas sabia que o próprio fato de se dar conta
disso o tornava incomum.
O plano de convivência na aldeia apresentava uma desvantagem da qual
é improvável que Pierre se tenha dado conta. Vivendo com estranhos, é
difícil que Micheau tenha conseguido se “conectar” (como diríamos hoje)
com os pais de sangue. Em certo sentido, isto poderia se aplicar a qualquer
bebê criado por uma ama de leite, mas o fato é que a maioria costuma ter
contato com as mães no resto do tempo. Não foi, aparentemente, o caso de
Montaigne. Se as ideias dos séculos XX e XXI têm alguma validade (e
talvez não tenham: a questão da criação de laços imediatos entre a mãe e o
filho pode ser uma moda tão passageira quanto a das amas de leite), essa
privação nos cruciais primeiros meses de vida pode ter afetado para sempre
a relação de Montaigne com a mãe. Segundo sua própria avaliação,
contudo, o esquema funcionou magnificamente, e ele recomendava aos
leitores que, sempre que possível, fizessem o mesmo. Que os seus filhos
“sejam formados pelo destino segundo as leis das pessoas comuns e da
natureza”, dizia ele.
Qualquer que tenha sido a idade na qual ele retornou ao castelo — talvez
com um ano ou dois —, o fato é que a separação da família adotiva deve ter
sido muito abrupta, pois o segundo elemento de sua educação experimental
haveria de se revelar totalmente incompatível com o primeiro. De volta ao
lar, o camponezinho Micheau seria agora criado como um falante nativo de
latim.
Até então, a língua com que se havia familiarizado no lar adotivo fora o
dialeto local do Périgord. Se já tinha idade para se alimentar com a comida
daqueles que o recebiam, seus ouvidos também podiam adaptar-se à língua
deles, embora ele ainda fosse pequeno demais para falá-la. Pois agora teria
de trocá-la pelo latim, passando ao largo da língua em que um dia viria a
escrever: o francês. Era um plano surpreendente até mesmo de se conceber,
quanto mais de se pôr em prática, e apresentava uma dificuldade prática. O
próprio Pierre tinha conhecimentos mínimos de latim; sua mulher e os
criados, nenhum. E, de maneira geral, já era impossível a essa altura
encontrar pessoas fluentes em latim. Como foi que Pierre pensou que
conseguiria tornar Montaigne fluente na língua de Cícero e Virgílio?
A solução que encontrou dividia-se em duas partes. O primeiro passo
consistia em contratar um tutor que, embora não o tivesse como língua mãe,
falasse um latim quase impecável. Pierre encontrou um alemão conhecido
como dr. Horst, cuja principal qualificação era ter um bom domínio do
latim, embora quase não falasse francês, muito menos o dialeto do Périgord,
de tal maneira que ele e o pequeno Micheau só tinham uma forma de se
comunicar. Assim, desde a mais tenra idade — “antes que a minha língua
começasse a se soltar”, como diria Montaigne —, o dr. Horst, ou (em latim)
Horstanus, tornou-se a pessoa mais importante para ele.
O segundo passo era proibir todas as pessoas da casa de se dirigir a
Micheau em qualquer língua viva. Se quisessem dizer ao menino que
tomasse o desjejum, teriam de fazê-lo usando o imperativo latino e as
adequadas declinações. Todos passaram então a aprender alguma coisa,
inclusive o próprio Pierre, que tratou de tirar do baú seus conhecimentos
escolares. Desse modo, como escreveria Montaigne, todos se beneficiaram.

Assim foi que meu pai e minha mãe aprenderam latim o suficiente
para entendê-lo, capacitando-se a usá-lo quando necessário, da
mesma forma que os criados mais ligados ao meu atendimento. De
maneira geral, de tal modo nos latinizamos que a coisa se espraiou em
todas as direções pelas aldeias, onde subsistem vários nomes latinos
de artesãos e ferramentas, que se firmaram pelo uso constante.
Quanto a mim, só depois dos seis anos o francês ou o dialeto do
Périgord deixaria de ser algo tão ininteligível quanto o árabe.

Desse modo, “sem meios artificiais, sem um livro, sem gramática nem
regras, sem chicote nem lágrimas”, Montaigne aprendeu um latim tão bom
quanto o falado pelo tutor, e com uma fluência mais natural que a que
estaria ao alcance de Horst. Em posteriores contatos com outros
professores, eles haveriam de elogiá-lo por um latim ao mesmo tempo
tecnicamente perfeito e pragmático.
Por que o teria feito Pierre? Este é um daqueles momentos em que a
defasagem de meio milênio entre nós e o nosso tema subitamente se abre
num precipício aos nossos pés. Quase todo mundo hoje em dia acharia um
absurdo separar os pais de um filho por causa de uma língua morta. No
Renascimento, todavia, considerava-se que o objetivo a alcançar justificava
o sacrifício. O domínio de um latim belo e gramaticamente correto era a
meta mais alta de uma educação humanista: ele abria as portas do mundo
antigo — considerado a fonte de toda a sabedoria humana — e também de
boa parte da cultura moderna, já que a maioria dos eruditos continuava
escrevendo em latim. Representava também o início de uma bela carreira: o
latim era essencial no direito e no serviço público. A língua representava
um atributo de valor quase mágico para qualquer um que a falasse. Quem
falava bem devia ser capaz de pensar bem. Pierre queria atribuir ao filho a
maior vantagem possível: um elo ao mesmo tempo com o paraíso perdido
da antiguidade e com o sucesso pessoal no futuro.
A maneira como Pierre quis que Montaigne aprendesse o latim também
exemplificava os ideais da época. Em sua maioria, os meninos aprendiam
latim com muito esforço na escola, mas não era o que acontecia entre os
romanos: eles falavam latim com a mesma naturalidade com que
respiravam. Por precisarem aprender a língua artificialmente é que os
modernos não podiam se equiparar aos antigos em sabedoria ou grandeza
d’alma — ou pelo menos era o que rezava a teoria.
A experiência estava longe de ser cruel, pelo menos sob os aspectos mais
óbvios. As novas teorias educacionais enfatizavam não só a necessidade de
que o ensino fosse prazeroso, mas também que a única motivação
necessária para as crianças era seu desejo inato de aprender. Quando já
estava um pouco mais crescido, Montaigne também aprenderia grego nesse
mesmo espírito de diversão. “Nós jogávamos nossas conjugações para lá e
para cá”, recordaria, “como quem aprende aritmética e geometria com jogos
como de damas e de xadrez”. Seu grego não se fixou: ele reconheceria mais
tarde que tinha pouco conhecimento da língua. De maneira geral, todavia,
essa abordagem hedonista da educação efetivamente funcionou para ele.
Tendo-se orientado no início da vida apenas por sua própria curiosidade, ele
se tornou um adulto de espírito independente, seguindo em tudo o próprio
caminho, em vez de se curvar ao dever e à disciplina — um resultado de
alcance talvez ainda maior que o buscado pelo pai.
Esse princípio da naturalidade também regulava outros aspectos do
início da vida de Montaigne. Considerava-se que “o tenro cérebro das
crianças pode ser perturbado se elas forem acordadas de manhã com um
susto”, de modo que Pierre todo dia tratava de tirar o filho da cama como
quem encantasse uma cobra, ao som plangente de um alaúde ou algum
outro instrumento musical. Os castigos corporais eram praticamente
desconhecidos para ele; em toda a infância, só duas vezes foi golpeado com
uma vara e, ainda assim, com grande moderação. Era uma educação de
“sabedoria e tato”.
Pierre tirava suas ideias de seus queridos amigos eruditos, e talvez
também de pessoas que encontrara na Itália, embora o principal ideólogo ao
qual possamos atribuir essa abordagem fosse um holandês, Erasmo de
Roterdã, que escrevera sobre temas educacionais durante sua permanência
na Itália, duas décadas antes. Montaigne escreveu que o esquema se
originara no empenho do pai de proceder a “todas as investigações de que
um homem é capaz, entre homens de saber e entendimento”. De forma bem
característica, tratando-se de Pierre, era uma concepção ao mesmo tempo
erudita e caprichosa. Ela certamente trazia a marca do pai, e não de
Antoinette, e seria muito interessante saber o que ela pensava do projeto. Se
o período de amamentação de Montaigne entre os camponeses já o havia
afastado dela, essa etapa de sua educação aumentava ainda mais a distância.
Eles agora viviam sob o mesmo teto, mas do ponto de vista linguístico e
cultural era como se estivessem em planetas diferentes. É improvável
que ela se tenha tornado fluente em latim, embora Montaigne afirme que ela
aprendeu um pouco por causa dele. Segundo ele, o preparo de Pierre
tampouco passou de um nível rudimentar. Se a experiência foi efetivamente
tão rigorosa quanto dá a entender o seu relato (o que é uma grande
incógnita), os pais só podiam se comunicar com o filho de maneira
pomposa e distante. Nem mesmo Horst seria capaz de lhe falar de forma
plenamente espontânea, por mais profundo que fosse o seu conhecimento.
A tal “naturalidade” ia por água abaixo. Cabe suspeitar — e esperar — que
as regras fossem desrespeitadas de vez em quando. Mas Montaigne não faz
qualquer menção nesse sentido. E aparentemente considera que a
experiência foi um grande êxito.
Em termos de transformá-lo num autêntico latinista, o empreendimento
deu frutos nesses primeiros anos, mas as sementes não germinaram muito
além. No fim das contas, com a falta de prática, ele acabou num nível
equivalente ao de qualquer outro jovem nobre de boa formação. Mas a
língua latina estava profundamente assentada nele. Décadas depois, quando
o pai desmaiou de dor numa crise de pedra nos rins, Montaigne soltou uma
exclamação em latim ao ampará-lo nos braços.
Mais duradouros foram os efeitos da educação de Montaigne em sua
personalidade. Como costuma acontecer com tantas experiências dos
primeiros anos de vida, ela o beneficiou exatamente nas mesmas áreas em
que o prejudicou, destacando-o do ambiente doméstico e do mundo
contemporâneo. Isto lhe proporcionou um espírito independente, mas pode
tê-lo inclinado a certo desapego nos relacionamentos. Direcionou-o para
grandes expectativas, já que ele cresceu na companhia dos maiores
escritores da antiguidade, e não apenas dos franceses provincianos da
vizinhança. Mas ao mesmo tempo lhe tirou certas ambições mais
convencionais, levando-o a questionar tudo a que os outros aspiravam. O
jovem Montaigne era diferente. Não precisava competir; mal precisava se
esforçar. Cresceu tolhido por alguns dos mais estranhos limites jamais
impostos a uma criança, e ao mesmo tempo desfrutava de liberdade quase
ilimitada. Era um mundo em si mesmo.
No fim, ele desenvolveu bom domínio do francês, mas não no estilo
contido e imaculado que os séculos posteriores gostavam de ver cultivado
por seus escritores. Escrevia de maneira idiossincrática, e houve quem o
acusasse de parecer um rústico indisciplinado. Seja como for, escolheu
como sua língua o francês, e não o latim. Em Os ensaios, explica este fato
de maneira estranha. Não se podia esperar que o francês perdurasse tanto
quanto as línguas clássicas, dizia; seus escritos, assim, estavam condenados
à efemeridade, e ele poderia escrever da maneira como bem quisesse, sem
se preocupar com sua reputação. O fato de a língua francesa não estar
congelada numa rígida perfeição parecia-lhe atraente, em princípio: se ela
tinha defeitos, haveria menos pressão para que fosse usada de maneira
impecável.
Montaigne não costumava gostar de esquemas idealistas, mas neste caso
aprovou a experiência do pai. Quando veio por sua vez a escrever sobre
temas de educação, suas ideias pareciam uma versão mais moderada das
ideias de Pierre — que eram radicais demais para efetivamente interessar a
outra pessoa. O escritor montaignesco contemporâneo Tabourot des
Accords chegou a sugerir que um grupo de cavalheiros juntasse recursos
para criar os filhos numa espécie de comuna latina, já que era muito difícil
fazê-lo isoladamente, mas não temos notícia de que isto se tenha
concretizado.
Aspectos menos estranhos dessa educação quinhentista “centrada na
criança” foram surgindo ao longo dos anos, até o momento presente. No
século XVIII, Jean-Jacques Rousseau transformou num verdadeiro culto a
educação infantil em ambiente natural, tomando algumas de suas ideias de
empréstimo a Montaigne, especialmente do ensaio atipicamente prescritivo
que ele escreveu sobre educação.
Ele não podia deixar de ser prescritivo, pois o ensaio “Da educação” foi
de certa maneira encomendado por uma vizinha, Diane de Foix, condessa
de Gurson, que estava grávida e queria que Montaigne opinasse sobre a
melhor forma de introduzir seu filho à vida (presumindo que fosse um
menino). As recomendações de Montaigne demonstram o quanto estava
satisfeito com suas experiências de infância. Para começar, dizia, ela teria
de conter seus instintos maternos e convidar um estranho a desempenhar o
papel de mentor do filho: os pais estão por demais presos às emoções. Não
conseguem se eximir da preocupação com a possibilidade de que o filho
apanhe um resfriado na chuva, caia do cavalo ou se corte na esgrima. Um
tutor pode ser mais firme. Por outro lado, não deve haver espaço para a
crueldade. O aprendizado deve ser prazeroso, e as crianças precisam crescer
imaginando a sabedoria com um sorriso, não com expressão assustadora ou
carrancuda.
Montaigne critica duramente os métodos brutais da maioria das escolas.
“Fora com a violência e a coação!” Se alguém entra numa escola durante as
aulas, diz ele, “ouve apenas gritos, seja das crianças torturadas ou dos
professores transidos de raiva”. Tudo isto serve apenas para alienar as
crianças do aprendizado pelo resto de suas vidas.
Muitas vezes, nem é preciso usar livros. Qualquer um aprende a dançar,
dançando; a tocar alaúde, tocando alaúde. O mesmo se aplica ao
pensamento e até à vida. Toda experiência pode ser uma oportunidade de
aprender: “a travessura de um pajem, o comentário errôneo de um criado,
uma observação à mesa”. A criança deve aprender a questionar tudo, a
“passar tudo por um crivo, sem nada alojar na mente por simples autoridade
e confiança”. Viajar é útil, assim como socializar, pois desse modo a criança
aprende a ser aberta aos outros e a se adaptar a qualquer um com quem
venha a conviver. As excentricidades devem ser descartadas desde cedo,
pois dificultam o convívio com os outros. “Vi homens fugirem com mais
horror do cheiro das maçãs que do fogo de arcabuzes, outros se assustarem
com um camundongo, e outros ainda vomitarem à simples visão de um
creme ou à queda de um colchão de plumas.” Tudo isto impede bons
relacionamentos e o bem viver. E pode ser evitado, pois os jovens são
maleáveis.
Ou pelo menos o são até certo ponto. Montaigne logo muda de discurso.
O que quer que façamos, diz, não podemos realmente mudar as disposições
inatas. Podemos orientá-las ou treiná-las, mas não nos livrar delas. Em
outro ensaio, escreveu ele: “Não existe ninguém que, se ouvir a si mesmo,
deixe de descobrir em si um padrão que lhe é próprio, um padrão
dominante, que milita contra a educação.”
Pierre, até onde se imagina, tinha uma visão menos fatalista da natureza
humana, pois considerava que o pequeno Micheau efetivamente podia ser
moldado, e que valia a pena fazer a experiência. Com sua habitual atitude
confiante, ele tratou de moldar e desenvolver o filho exatamente como
moldava e desenvolvia sua propriedade.
Infelizmente, tal como acontecera com outros projetos, Pierre deixou a
tarefa por concluir, ou pelo menos era o que acreditava Montaigne. Por
volta dos 6 anos de idade, o menino foi repentinamente removido de sua
estufa nada convencional e mandado para a escola, como qualquer outra
criança. Pelo resto da vida, ele permaneceu convencido de que isso
acontecera por culpa sua, de que sua teimosia — seu “padrão dominante”
— houvesse levado o pai a desistir. Ou quem sabe Pierre tivesse apenas
cedido às convenções, agora que seus conselheiros iniciais já não estavam
por perto. Parece mais provável que Pierre desde sempre tivesse pretendido
enviar Micheau à escola a certa altura. Sem compreender o plano,
Montaigne via nisso uma crítica a si mesmo que provavelmente não existia.
Toda essa progressão em diferentes etapas, da família camponesa à escola,
passando pelos estudos de latim, configurava uma espécie de receita para
produzir o perfeito cavalheiro, de espírito independente mas capaz de se
adaptar à sociedade quando necessário. Assim foi que, em 1539, Montaigne
juntou-se a outros meninos de sua idade no Collège de Guyenne, em
Bordeaux.
Lá ele estudaria durante uma década, até pelo menos 1548, e em certa
medida se adaptaria, mas inicialmente foi um severo choque para o seu
sistema pessoal. Para começar, ele tinha de se habituar à vida urbana, depois
da liberdade da vida de menino no campo. Bordeaux ficava a mais de 60
quilômetros de sua casa, num percurso de várias horas, mesmo em montaria
rápida. A viagem era tornada ainda mais demorada pela necessidade de
atravessar o Dordonha: uma barca recolhia passageiros em vinhedos e
suaves colinas verdejantes, deixando-os no coração do bairro comercial de
Bordeaux — um mundo muito diferente.
Murada e claustrofóbica, amontoada ao redor do rio, a Bordeaux do
século XVI nada tinha a ver com a cidade de hoje. Suas velhas ruas foram
varridas do mapa nos séculos XVIII e XIX, sendo substituídas por
bulevares e grandes prédios de contornos suaves que hoje lhe conferem um
ar ligeiramente abstrato. Na época de Montaigne, ela não tinha nada de
suave. Era uma cidade populosa, com cerca de 25 mil habitantes, e muito
agitada. Pelo rio passava intensa navegação. Às suas margens havia
equipamentos para descarga, sobretudo de vinho, além de uma forte mistura
aromática de peixe em conserva, sal e madeira.
O clima mudava ao se chegar ao Collège de Guyenne, fundado numa
região tranquila da cidade, distante do centro comercial, e cercado de
olmos. Era um excelente colégio, embora Montaigne falasse mal a respeito.
Seu currículo e seus métodos parecem formidáveis à sensibilidade moderna.
Tudo girava em torno do estudo maquinal do latim, a única matéria em que
Montaigne desfrutava de vantagem tão grande que os professores
provavelmente ficaram encantados. Tanto os professores quanto os alunos
deviam conversar em latim. Tal como na casa de Montaigne, a comunicação
verbal na escola era canhestra e pomposa — mas a semelhança parava por
aí. Nela não havia música suave; tampouco havia qualquer ênfase no prazer
e, o que era mais chocante, ninguém partia do princípio de que o pequeno
Micheau era o centro do universo.
Pelo contrário, ele agora tinha de se adaptar aos demais. As aulas
começavam bem cedo pela manhã, com a minuciosa análise de exemplos
literários, geralmente de escritores como Cícero, com muito poucas chances
de atender ao gosto de leitores jovens. À tarde, eles tinham aulas de
gramática, sem a utilização de exemplos. À noite, havia leitura coletiva de
textos, com análises ditadas pelo professor, devendo ser decoradas pelos
meninos e recitadas caso fossem solicitados a fazê-lo.
Inicialmente, o domínio do latim rapidamente fez com que Montaigne
fosse promovido a classes adiantadas para sua faixa etária. Mas a má
influência de seus colegas menos privilegiados foi aos poucos minando seu
fácil domínio da língua, de tal maneira que — segundo afirmaria — deixou
a escola sabendo menos que ao chegar.
Na verdade, a filosofia do Collège era relativamente ousada e aberta, e
Montaigne se divertia mais com certos aspectos da vida escolar do que
estaria disposto a admitir. Nas turmas de alunos mais velhos, havia
competições em matéria de oratória e argumentação, tudo, naturalmente, em
latim, dando-se menos importância ao que era dito do que à maneira de
dizê-lo. A partir delas, Montaigne desenvolveu habilidades retóricas e uma
capacidade de pensamento crítico de que se valeria por toda a vida.
Também foi provavelmente nelas que ele entrou em contato pela primeira
vez com a ideia de recorrer a “cadernos de lugares-comuns”, para a
anotação de trechos escolhidos na leitura, estabelecendo entre eles uma
justaposição criativa. Mais tarde, na adolescência, Montaigne estudou
matérias mais interessantes, entre elas filosofia — infelizmente, não do tipo
de que gostava, tratando da questão de como viver, mas sobretudo lógica e
metafísica aristotélicas. Também havia momentos mais leves. Um novo
professor, Marc-Antoine Muret, escrevia e dirigia peças; Montaigne foi o
protagonista de uma delas. Revelou então um talento natural para o palco,
evidenciando (segundo escreveu) uma inesperada “segurança da expressão
e flexibilidade da voz e do gesto”.
Tudo isto ocorreu num período difícil para o Collège. Em 1547, o
diretor, o progressista André Gouvéa, foi obrigado a se afastar pelas facções
políticas conservadoras. Partiu para Portugal, levando os melhores
professores. No ano seguinte, revoltas se sucederam até mesmo em
Bordeaux: eram as rebeliões contra o imposto do sal, que tanto trabalho
dariam ao pai de Montaigne durante seu mandato como prefeito. O sudoeste
do país era tradicionalmente isento desse imposto. Agora, de uma hora para
outra, o novo rei, Henrique II, tentava impô-lo, com resultados incendiários.
Multidões de revoltosos se formaram para protestar, e durante cinco dias,
de 17 a 22 de agosto de 1548, percorreram as ruas tocando fogo nas
residências de cobradores de impostos. Havia quem atacasse as casas de
qualquer um que parecesse rico, até que a desordem ameaçou se
transformar numa generalizada revolta camponesa. Alguns cobradores de
impostos foram mortos, tendo seus corpos arrastados pelas ruas e cobertos
de sal, para deixar bem clara a mensagem. Num dos incidentes mais graves,
Tristan de Moneins, comandante da cidade — e portanto representante do
rei —, foi linchado. Ele havia se fechado na sólida fortaleza real da cidade,
o Château Trompette, mas uma multidão se formou em frente, desafiando-o
a sair. Talvez pensando que fosse conquistar o respeito da turba ao enfrentá-
la, ele se arriscou, mas equivocadamente. Foi espancado até a morte.
Na época com 15 anos, Montaigne estava nas ruas, pois o Collège
suspendera as aulas nesse período de violência. Ele assistiu ao linchamento
de Moneins, cena de que nunca se esqueceria. Ela suscitou em seu espírito,
talvez pela primeira vez, uma questão que permearia seu Os ensaios sob
diferentes formas: a de saber se seria melhor conquistar o respeito de um
inimigo com uma atitude de aberto desafio ou colocar-se à sua mercê, na
esperança de conquistá-lo pela submissão ou por um apelo ao que houvesse
de melhor nele.
Nesse caso, Montaigne considerou que Moneins fracassou por não saber
ao certo o que estava fazendo. Tendo decidido enfrentar a turba, ele perdeu
a autoconfiança e se comportou com deferência, mandando uma mensagem
ambígua. Também subestimou a psicologia distorcida da multidão. Uma
vez mergulhada no frenesi, ela só pode ser aplacada ou reprimida; não se
pode esperar que mostre sentimentos humanos comuns de empatia.
Moneins aparentemente não o sabia, esperando encontrar os mesmos
sentimentos de camaradagem que poderia esperar de um indivíduo.
Não se pode negar que demonstrou coragem ao enfrentar desarmado um
“mar de furiosos”. Mas sua única esperança então seria manter até o fim a
atitude de desafio. Ele

devia ter bebido da taça até o fim, sem abandonar seu papel; ao passo
que o que lhe aconteceu foi que, tendo visto o perigo de perto, perdeu
o sangue-frio e mais uma vez mudou a atitude aplacada e de lisonja
que havia assumido, mostrando-se assustado e deixando transparecer
surpresa e arrependimento na voz e no olhar. Tentando esconder-se,
ele inflamou a multidão, que se abateu sobre ele.

A chocante visão da morte de Moneins, e certamente de outras cenas


perturbadoras ao longo daquela semana, muito ensinou a Montaigne sobre a
complexidade psicológica do conflito e a dificuldade de se comportar bem
nas crises. Nesse caso, a violência acabou sendo aplacada, graças sobretudo
à ação do futuro sogro de Montaigne, Geoffrey de La Chassaigne, que
negociou uma trégua. Mas a cidade seria severamente punida por permitir
semelhante desobediência. Dez mil homens das tropas reais foram
mandados até lá em outubro, sob o comando do condestável de
Montmorency; oficialmente, o título “condestável” significava apenas
“chefe dos estábulos reais”, mas sua função detinha enorme poder. As
tropas permaneceram na cidade durante mais de três meses, e Montmorency
impôs um reinado de terror. Ele instigava seus homens a saquear e matar,
como uma força de ocupação num país estrangeiro. Todo aquele que fosse
identificado como participante da sublevação era esquartejado ou
queimado. Tudo foi feito para humilhar Bordeaux física, financeira e
moralmente. A cidade perdeu a autonomia administrativa; sua artilharia e
sua pólvora foram confiscadas; seu parlement foi dissolvido, e por algum
tempo ela seria governada por magistrados de outras partes da França.
Também teve de pagar pelos custos de sua própria ocupação. E, quando o
corpo de Moneins foi exumado para sepultamento na catedral, os dirigentes
locais foram obrigados a se ajoelhar em frente à residência de
Montmorency para implorar perdão pelo homicídio.
Os privilégios foram gradualmente restabelecidos, graças em parte ao
empenho do pai de Montaigne, como prefeito de Bordeaux, no sentido de
fazer com que a cidade caísse novamente nas graças do rei. Incrivelmente, a
rebelião alcançou seu objetivo, a longo prazo. Irritado com a revolta,
Henrique II decidiu suspender a cobrança do imposto sobre o sal. Mas o
preço que tiveram de pagar por isso fora alto.
Mal passou esse drama, e a cidade foi atingida pela praga, em 1549. Não
foi um surto longo nem de grandes proporções, mas bastou para que todos
passassem a examinar sua própria pele nervosamente, temendo qualquer
tosse mais próxima. O surto também obrigou o Collège a fechar novamente
por um período — mas dessa vez Montaigne provavelmente já seguira em
frente. Ele deixou a escola em algum momento por volta de 1548, pronto
para dar início à nova fase de sua jovem vida.
Segue-se então, até 1557, um longo período no qual não há certeza sobre
o que ele fazia. Pode ser que tenha retornado à propriedade. Pode ter sido
mandado para uma academia, uma espécie de colégio de aperfeiçoamento
no qual os rapazes aprendiam as nobres artes da equitação, do duelo, da
caça, da heráldica, do canto e da dança. (Neste caso, Montaigne só terá se
empenhado nas aulas de equitação: era a única dessas práticas na qual ele
mais tarde se diria perito.) Em determinado momento, ele também deve ter
estudado Direito. Chegou à idade adulta com tudo de que precisava para se
tornar um bem-sucedido jovem seigneur, e, apesar do desprazer pela
experiência, munido de um útil conjunto de habilidades e vivências
adquirido na escola. Entre elas destacava-se uma descoberta que teria
encantado o pai: a dos livros e dos mundos que lhe descortinavam —
mundos que iam muito além dos vinhedos de Guyenne e do tédio de um
internato do século XVI.
4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que
lê e raciocine com lentidão

LENDO

O
atento estudo gramatical de Cícero e Horácio quase matou no
nascedouro o interesse de Montaigne pela literatura. Mas alguns
dos professores da escola ajudaram a mantê-lo vivo, sobretudo
eximindo-se de confiscar livros mais interessantes das mãos do menino,
quando o apanhavam lendo-os, e talvez até tratando de lhe encaminhar
alguns outros — fazendo-o com a devida discrição, para que ele pudesse
desfrutar dessas leituras sem deixar de se sentir um rebelde.
Um texto não recomendado que Montaigne descobriu por conta própria
aos 7 ou 8 anos, e que mudou sua vida, foi Metamorfoses de Ovídio. Essa
caótica cornucópia de histórias sobre transformações milagrosas entre
antigos deuses e mortais era o que havia no Renascimento de mais próximo
de uma coletânea de contos de fada. Cheia de horrores e maravilhas, como
os contos de Grimm ou Andersen, e muito diferente dos textos escolares,
era o tipo de leitura capaz de capturar a imaginação de um menino no
século XVI, deixando-o de olhos arregalados e agarrando com avidez o seu
volume.
Em Ovídio, as pessoas mudam. Transformam-se em árvores, animais,
estrelas, corpos aquáticos ou vozes desencarnadas. Trocam de sexo, tornam-
se lobisomens. Uma mulher chamada Scylla entra num lago envenenado e
vê seus próprios membros se transformarem em monstros de formas
caninas dos quais não pode se livrar, pois os monstros são ela mesma. O
caçador Actéon transforma-se num veado, sendo caçado por seus próprios
cães de caça. Ícaro voa tão alto que é queimado pelo sol. Um rei e uma
rainha são transformados em duas montanhas. A ninfa Sálmacis mergulha
num lago em que o belo Hermafroditos se banha e o envolve como uma lula
agarrando sua presa, até que sua carne se dissolve na dele e os dois se
tornam uma só pessoa, metade macho, metade fêmea. Uma vez despertado
o gosto por esse tipo de coisa, Montaigne passou a percorrer outros livros
igualmente cheios de boas histórias: a Eneida, de Virgílio, e depois
Terêncio, Plauto e várias comédias italianas modernas. Desafiando as
práticas escolares, ele aprendeu a associar a leitura ao prazer. Foi a única
coisa positiva que extraiu do período lá passado. (“Mas apesar de tudo
isso”, acrescenta Montaigne, “ainda era a escola”.)
Muitas de suas primeiras descobertas haveriam de acompanhá-lo pelo
resto da vida. Embora o impacto inicial de Metamorfoses acabasse por
ceder, ele encheu Os ensaios de histórias tiradas delas e viria a emular o
estilo de Ovídio, passando de um tema a outro sem qualquer introdução
nem ordem aparente. Virgílio também continuou sendo um de seus autores
favoritos, embora o Montaigne da maturidade se sentisse no direito de
considerar que certos trechos da Eneida poderiam ser “um pouco
melhorados”.
Como gostava de saber o que as pessoas realmente faziam, e não o que
alguém imaginasse que elas podiam fazer, a preferência de Montaigne logo
se transferiu dos poetas para os historiadores e biógrafos. Era nas histórias
da vida real, dizia, que se podia encontrar a natureza humana em toda a sua
complexidade. Tomava-se conhecimento, assim, da “diversidade e verdade”
de um homem, bem como da “variedade das maneiras como ele se forma e
dos acidentes que o ameaçam”. Entre os historiadores, gostava sobretudo de
Tácito, comentando certa vez que acabara de ler sua História de cabo a
rabo, sem interrupção. Ele apreciava a maneira como Tácito tratava dos
acontecimentos da vida pública do ponto de vista dos “comportamentos e
tendências particulares”, tendo-o marcado em especial o fato de o
historiador ter vivido um período “estranho e extremo”, exatamente como
ele. Na verdade, escreveu, referindo-se a Tácito, “muitas vezes se poderia
dizer que somos nós que ele descreve”.
No caso dos biógrafos, Montaigne gostava dos que iam além dos
acontecimentos exteriores de uma vida, tentando reconstituir o mundo
interior de uma pessoa com base nesses dados. Nesse sentido, ninguém
superava seu escritor favorito: o biógrafo grego Plutarco, que viveu
aproximadamente entre 46 e 120 d.C. e que, em seu vasto volume Vidas,
apresentava narrativas sobre gregos e romanos notáveis em pares temáticos.
Plutarco representava para Montaigne o que Montaigne representaria para
muitos leitores de épocas posteriores: um modelo a ser seguido, um
verdadeiro baú de tesouro repleto de ideias, citações e anedotas a serem
saqueadas. “Ele é tão universal e tão pleno que a todo momento, por mais
excêntrico que seja o tema escolhido, consegue se imiscuir no nosso
trabalho.” A verdade desta última afirmação é inegável: várias seções de Os
ensaios são decalques de Plutarco, praticamente inalterados. Ninguém
considerava que se tratasse de plágio: esse tipo de imitação dos grandes
autores era na época considerado uma excelente prática. Além disso,
Montaigne cuidava de alterar sutilmente o que tomava de empréstimo, no
mínimo estabelecendo um contexto diferente e tratando de cercá-lo de
ambivalências.
Ele gostava da maneira como Plutarco compunha seus textos salpicando-
os de imagens, conversas, pessoas, animais e objetos de todos os tipos, em
vez de tentar dispor friamente abstrações e argumentos. Sua escrita está
cheia de coisas, assinalava Montaigne. Quando quer nos dizer que o
segredo de viver bem consiste em extrair o melhor de qualquer situação,
Plutarco conta a história de um homem que atirou uma pedra em seu cão,
errou o alvo, atingiu a sogra e exclamou: “Pensando bem, isso não é nada
mau!” Ou então, querendo nos mostrar que tendemos a esquecer as boas
coisas da vida, obcecados com as ruins, escreve sobre as moscas que
pousam num espelho e deslizam na superfície lisa, incapazes de se fixar até
que deparam com uma área mais áspera. Plutarco não se preocupa com
conclusões, mas lança sementes das quais podem brotar mundos inteiros de
investigação. Aponta as direções que podemos tomar, se quisermos; mas
não nos conduz, cabendo a nós segui-lo ou não.
Montaigne também gostava da forte emanação da personalidade de
Plutarco que podia ser sentida em sua obra: “Creio conhecê-lo até na
própria alma.” Era isto que Montaigne buscava num livro, exatamente o que
seus leitores mais tarde buscariam nos seus: a sensação de fazer contato
com alguém através dos séculos. Lendo Plutarco, ele se esquecia da
defasagem cronológica que os separava — muito maior que a defasagem
entre Montaigne e nós. Não importa, escreveu, se uma pessoa que amamos
está morta há 1.500 anos ou, como seu pai na época, há 18. Ambas estão
igualmente distantes; ambas estão igualmente próximas.
Essa aproximação entre os autores favoritos e o próprio pai diz muito da
maneira como Montaigne lia: ele encarava os livros como se fossem
pessoas, recebendo-os em sua família. O menino rebelde que lia Ovídio
chegaria um dia a reunir uma biblioteca de aproximadamente mil volumes:
um bom tamanho, mas não uma acumulação sem critério. Alguns livros
foram herdados de seu amigo La Boétie; outros foram adquiridos por ele
mesmo. Montaigne colecionava sem se preocupar com qualquer
sistematização nem levar em conta a beleza das encadernações ou a
raridade dos volumes. Jamais seria capaz de repetir o erro do pai, que tinha
os livros ou seus autores como objetos de fetiche. Não poderíamos imaginá-
lo beijando os volumes como se fossem relíquias sagradas, como
costumavam fazer, segundo se diz, Erasmo e o poeta Petrarca, ou vestindo
suas melhores roupas para lê-los, como Maquiavel, que escreveu: “Dispo-
me de minhas roupas sujas e suadas do dia a dia de trabalho e visto túnicas
cortesãs e palacianas, e nessa indumentária mais compenetrada entro nos
palácios dos antigos e sou por eles recebido.” Montaigne teria achado isto
ridículo. Preferia entender-se com os antigos em tom de camaradagem,
chegando às vezes a provocá-los, como nos trechos em que zomba de
Cícero por sua pretensão ou dá a entender que Virgílio podia ter-se
esforçado mais.
Esforço era precisamente o que ele alegava nunca precisar fazer, fosse
lendo ou escrevendo. “Vou percorrendo um livro aqui, outro ali”, escreveu,
“sem ordem nem plano, a partir de fragmentos desconexos”. Podia mostrar-
se decididamente contrariado se achasse que alguém podia suspeitá-lo de
diligente erudição. Certa vez, percebendo-se escrever que os livros
oferecem consolo, tratou rapidamente de acrescentar: “Na verdade,
praticamente não faço deles mais uso do que aqueles que nem os
conhecem.” E foi capaz de começar assim uma frase: “Nós, que pouco
contato temos com os livros...” Sua regra básica em matéria de leitura foi
sempre aquela que aprendera com Ovídio: buscar o prazer. “Se encontro
dificuldades na leitura”, escreveu, “não as fico remoendo; simplesmente as
deixo estar. Nada faço sem alegria”.
Na verdade, ele às vezes trabalhava duro, mas só quando achava que o
trabalho valia a pena. Chegaram até nós anotações manuscritas de
Montaigne em alguns livros de sua coleção, particularmente um exemplar
de Da natureza das coisas, de Lucrécio — com toda a evidência, um texto
que mereceu sua detida atenção. Idiossincrático e intelectualmente ousado,
é precisamente o tipo de livro que poderíamos imaginar absorvendo tanto
Montaigne.
Definir-se como um preguiçoso, percorrendo algumas páginas para em
seguida descartar o livro com um bocejo, era algo que convinha a
Montaigne. Estava de acordo com o clima de diletantismo que queria
evocar em seus textos. Como evidencia o exemplar de Lucrécio, contudo, a
verdade devia ser mais complexa. Mas não resta dúvida de que
efetivamente deixava de lado o que lhe causasse tédio: afinal, assim é que
havia sido educado. Pierre ensinou-lhe que tudo devia ser tratado com
“delicadeza e liberdade, sem pressão nem rigorismo”. Montaigne
transformou a recomendação num princípio de vida.

MONTAIGNE, LENTO E ESQUECIDO

Sempre que folheava as páginas de um livro, Montaigne rapidamente


esquecia o que havia lido, segundo afirmava. “A memória é uma ferramenta
maravilhosamente útil, e sem ela o julgamento encontra dificuldade em seu
trabalho”, escreveu, para em seguida acrescentar: “Sou totalmente
desprovido dela.”

Nenhum homem tem menos o que dizer sobre a memória. Pois


praticamente não identifico traços dela em mim e não creio que haja
no mundo alguma mais monstruosamente deficiente.

Ele reconhecia que se tratava de um inconveniente. Era desagradável


deixar escapar as ideias mais interessantes simplesmente porque lhe
ocorriam quando estava cavalgando, sem a possibilidade de anotá-las.
Também seria interessante poder lembrar-se melhor dos sonhos. Citando
Terêncio, ele escrevia: “Estou cheio de rachaduras, vazando por todos os
lados.”
Montaigne costumava sair em defesa dos que enfrentavam problemas de
memória. Sentia “indignação” e “um ressentimento pessoal” ao ler, por
exemplo, sobre Lincestes, obrigado a discursar perante todo um exército
para se desculpar pela acusação de ter conspirado contra Alexandre, o
Grande. Lincestes memorizou uma fala, mas ao tentar proferi-la lembrou-se
apenas de algumas palavras, ficando confuso e esquecendo o resto.
Enquanto gaguejava e se perdia em evasivas, um grupo próximo de
soldados perdeu a paciência e o atravessou com suas lanças. Eles
interpretaram seu tartamudeio como sinal de culpa. “O raciocínio
certamente fazia sentido!”, exclamou Montaigne. O episódio servia apenas
para provar que, sob pressão, é provável que uma memória sobrecarregada
se assuste com a própria carga como um cavalo em pânico, deixando tudo
desabar.
Mesmo que não fosse uma questão de vida ou morte, decorar um
discurso não era necessariamente uma boa ideia. Uma fala espontânea
geralmente é mais agradável de se ouvir. Quando tinha de falar em público,
Montaigne tentava mostrar-se relaxado, recorrendo a “gestos espontâneos e
impremeditados, como que suscitados pela ocasião”. Cuidava
especialmente de não anunciar uma sequência de itens (“Vou agora tratar de
seis possíveis abordagens...”), pois seria ao mesmo tempo tedioso e
arriscado: havia a probabilidade de esquecer algum ou passar do número
estabelecido.
Às vezes a própria importância ou interesse em determinada informação
bastava para expulsá-la de sua mente. Certa vez, tendo a sorte de encontrar
um grupo de indígenas tupinambás trazidos do Brasil por colonizadores
franceses, ele prestou muita atenção às respostas quando lhes foi
perguntado o que achavam da França. Eles responderam com três
observações, todas fascinantes — porém, no momento de reproduzir a
conversa em seu Os ensaios, Montaigne lembrou-se de apenas duas. Mas
houve lapsos mais graves. Em carta publicada sobre a morte de La Boétie
— o homem que mais amou na vida —, ele confessava que podia ter
esquecido algumas das últimas ações e palavras de despedida do amigo.
O fato de Montaigne admitir essas falhas ia frontalmente de encontro ao
ideal renascentista da oratória e da retórica, segundo o qual ser capaz de
pensar bem era o mesmo que ser capaz de falar bem, e falar bem dependia
da lembrança do fluxo lógico, associada a citações e exemplos brilhantes
para adorná-lo. Os apreciadores da arte da memória, a ars memoriae,
aprendiam técnicas para encadear horas de retórica, chegando a transformá-
las num verdadeiro programa de autoaperfeiçoamento filosófico. Isto não
despertava qualquer interesse em Montaigne.
Desde o início, certos leitores se recusavam a acreditar que a memória
dele fosse tão ruim quanto dizia. Isto o irritava de tal maneira que ele se
queixou a respeito em Os ensaios. Mas os incrédulos continuavam
assinalando, por exemplo, que ele aparentemente não tinha dificuldade para
se lembrar de citações colhidas em suas leituras, tão numerosas em Os
ensaios, como a de estar-se sentindo como um pote cheio de vazamentos.
Ou bem seu vazamento não era tão grande quanto dizia, ou então ele era
menos preguiçoso, pois, se não se lembrava das citações, devia tê-las
anotado. Certas pessoas começaram a ficar indignadas com o assunto. Um
quase contemporâneo seu, o poeta Dominique Baudier, declarou que as
queixas de Montaigne sobre sua memória lhe causavam “náusea e riso” —
uma reação sem dúvida radical. O filósofo seiscentista Malebranche achava
que Montaigne estava mentindo, acusação muito séria contra um escritor
que sempre deu tanta importância à própria honestidade.
Mas a acusação de alguma forma procedia. Montaigne certamente se
lembrava mais do que queria admitir. Não é incomum alguém achar que a
memória o deixou na mão: faz parte da imperfeição própria à condição
humana. Uma memória indisciplinada também é exatamente o que se
poderia esperar da criação sem pressões de Montaigne e de sua aversão a se
obrigar ao que quer que fosse. Sua aparente modéstia nessa questão também
pode ser traduzida como uma forma sutil de se atribuir virtudes que
considerava mais importantes. Uma delas, ironicamente, era a honestidade.
Como dizia o velho ditado, más lembranças fazem maus mentirosos. Se
Montaigne era esquecido demais para guardar as histórias na cabeça, tinha
de contar a verdade. Além disso, a falta de memória fazia com que
mantivesse seus discursos breves e suas anedotas, concisas, já que não
conseguiria lembrar se fossem longas, e isto lhe permitia exercitar o bom-
senso. As pessoas de boa memória têm a mente abarrotada, mas seu cérebro
felizmente era tão vazio que não interpunha obstáculos ao bom-senso.
Finalmente, ele esquecia com facilidade qualquer afronta, e assim não se
via assoberbado por ressentimentos. Em suma, ele se apresentava como
alguém que flutuava pelo mundo num colchão de benevolente
esvaziamento.
A esfera em que a memória de Montaigne efetivamente funcionava bem,
se ele quisesse, era a reconstituição de experiências pessoais como o
acidente de equitação. Em vez de resumi-las em anedotas lineares e
superficiais, ele era capaz de resgatar os sentimentos íntimos — não
perfeitamente, pois o fluxo heraclitiano o estava sempre conduzindo, mas
com muita precisão. O psicólogo oitocentista Dugald Stewart especulava
que a falta de controle de Montaigne sobre a memória permitia-lhe sair-se
melhor em tarefas similares. Montaigne sintonizava com o tipo de memória
“involuntária” que um dia deixaria Proust fascinado: aqueles laivos do
passado que inesperadamente irrompem no presente, talvez em reação a um
gosto ou cheiro há muito esquecido. Esses momentos só parecem possíveis
se estiverem cercados de um oceano de esquecimento, além de um estado
de espírito propício e de suficiente tempo de lazer.
Montaigne certamente não gostava de fazer nada com tensão e
insistência. “Tenho de solicitá-la de maneira relaxada”, escreveu, referindo-
se à memória. “Ela me atende ao seu próprio tempo, e não ao meu.”
Qualquer tentativa de resgatar algo de imediato servia apenas para
mergulhar ainda mais na sombra o que buscava. Em sentido inverso,
observava ele, bastava tentar conscientemente esquecer um incidente para
que ele se fixasse na memória.
“Tudo aquilo que faço com naturalidade e facilidade”, escreveu, “já não
posso fazer se me decido a fazê-lo por estrita determinação”. A autorização
para que a memória seguisse o próprio caminho fazia parte de sua filosofia
de permitir que a natureza governasse seus atos. Na infância, o resultado
disso foi que ele muitas vezes parecia preguiçoso e imprestável, e sob
muitos aspectos provavelmente o era. Não obstante os frequentes esforços
do pai no sentido de motivá-lo, escreveu, ele se revelava “tão indolente,
relaxado e pesado que eles não conseguiam me livrar da preguiça, nem
mesmo para brincar”.
Em sua própria avaliação, ele não era apenas preguiçoso, mas lento de
entendimento. Sua inteligência não era capaz de penetrar a mais leve
nuvem: “Não existe sutileza tão transparente que não me deixe aturdido.
Dos jogos em que a mente tem um papel a desempenhar — xadrez, cartas e
outros —, compreendo apenas os mais simples rudimentos.” Ele sofria de
“compreensão vagarosa”, “imaginação fraca” e “lentidão mental”,
tendências que não eram aliviadas por sua falta de memória. Todas as suas
faculdades se embotavam ao mesmo tempo, num leve ronco: ele faz com
que seu cérebro pareça um chá das cinco em que todos os convidados
fossem o ratinho sonolento de Alice no país das maravilhas.
Também neste caso, contudo, havia vantagens. Uma vez tendo ele
entendido alguma coisa, era para valer. Mesmo se referindo à infância, dizia
ele: “O que eu via, via bem.” Além disso, ele usava deliberadamente essa
relativa inércia para ocultar “ideias ousadas” e opiniões independentes. Sua
aparente modéstia o autorizava a dizer-se imbuído de algo mais importante
que a agilidade mental: a perspicácia.
Montaigne seria uma boa referência para o moderno Movimento
Devagar, que, originado no fim no século XX, aos poucos se foi
disseminando e se transformou quase num culto. Como Montaigne, seus
seguidores fazem da lentidão uma espécie de princípio moral. Seu texto
fundador é o romance The Discovery of Slowness (A descoberta da
lentidão), de Sten Nadolny, que conta a vida do explorador do Ártico John
Franklin, cujo ritmo natural de vida e pensamento é descrito como o de um
velho preguiçoso depois de uma longa massagem e de um cachimbo de
ópio. Na infância, Franklin é alvo de zombaria, mas ao chegar ao extremo
Norte ele encontra o ambiente perfeitamente adequado a seu temperamento:
um lugar onde todo mundo faz as coisas calmamente, onde pouco acontece
e onde é importante parar para pensar antes de se precipitar na ação. Muito
depois de publicado na Alemanha em 1983, The Discovery of Slowness
continuava nas listas de best-sellers, sendo propagandeado até como um
manual alternativo de administração. Enquanto isso, surgia na Itália um
desdobramento culinário do Movimento Devagar, o slow food, que teve
origem como protesto contra as filiais do McDonald’s em Roma e acabou
se transformando em toda uma filosofia do bem viver.
Montaigne teria entendido tudo isto perfeitamente. Para ele, a lentidão
era o caminho para a sabedoria, para um espírito de moderação que servia
de anteparo aos excessos e ao fanatismo que dominavam a França na época.
Felizmente ele se sentia imune a ambos, isento da tendência a se deixar
levar pelos entusiasmos aos quais os outros pareciam propensos. “Estou
quase sempre no devido lugar, como os corpos pesados e inertes”, escreveu.
Uma vez bem-assentado, era fácil para ele resistir à intimidação, pois a
natureza o havia feito “incapaz de se submeter à força e à violência”.
Como quase sempre acontece com Montaigne, temos aí apenas parte da
história. Na juventude, ele podia, sim, perder as estribeiras, e era um
homem inquieto, afirmando em Os ensaios: “Não sei qual dos dois, minha
mente ou meu corpo, tem encontrado mais dificuldade para se manter num
mesmo lugar.” Talvez ele só se fizesse de preguiçoso quando convinha.
“Esqueça quase tudo que aprendeu” e “Seja mentalmente lento” viriam a
ser duas das melhores respostas de Montaigne à pergunta sobre como
melhor viver. Graças a elas, ele se sentia livre para pensar com sabedoria, e
não com loquacidade e precipitação; elas lhe permitiam esquivar-se às
ideias fanáticas e às tolas ilusões em que as outras pessoas se viam
apanhadas; e também lhe permitiam seguir seus pensamentos aonde quer
que o levassem — que era o que ele realmente queria fazer.
A lentidão mental e o esquecimento podiam ser cultivados, mas
Montaigne considerava haver tido a sorte de tê-los inatos. Sua tendência
para fazer as coisas do seu jeito próprio tornou-se evidente desde cedo,
vindo acompanhada de um surpreendente grau de autoconfiança. “Lembro-
me de que, desde a mais tenra idade, as pessoas observavam em mim uma
postura corporal indefinível e certos gestos que davam conta de um orgulho
vão e estúpido”, escreveu. A vaidade era superficial: ele não estava
profundamente impregnado dela, apenas levemente “salpicado”. Mas o
espírito de independência o mantinha sereno. Sempre preparado para dizer
o que pensava, o jovem Montaigne também estava preparado para fazer os
outros esperarem pelo que tinha a dizer.

O JOVEM MONTAIGNE EM TEMPOS CONTURBADOS

Os ares de impassível superioridade de Montaigne eram mais difíceis de


sustentar por causa de sua baixa estatura física, algo de que se queixava
constantemente. Era diferente para as mulheres, escreveu ele. Outras formas
de boa apresentação podiam compensá-lo. No caso dos homens, a estatura
era “a única beleza”, e era precisamente a qualidade que lhe faltava.

Onde reside a pequenez, nem a amplitude ou o contorno da fronte,


nem a clareza ou a suavidade dos olhos, nem a forma regular no nariz,
o pequeno tamanho dos ouvidos e da boca, a regularidade e o branco
dos dentes, a macia espessura de uma barba tão morena como a casca
de um castanheiro, o cabelo encaracolado, o contorno conveniente da
cabeça, a frescura da cor, uma agradável expressão facial, um corpo
inodoro ou a justa proporção dos membros podem tornar formoso um
homem.

Nem os empregados de Montaigne eram mais baixos que ele, e quando


viajava ou visitava a corte real com um séquito de criados ficava muito
contrariado ao lhe perguntarem: “Onde está o senhor Montaigne?” Mas não
havia muito o que fazer, à parte estar montado sempre que possível — seu
truque favorito.
Uma visita à torre de Montaigne parece indicar que ele dizia a verdade:
os portais têm apenas em torno de um metro e meio de altura. Na época, a
altura média das pessoas era menor, e as portas foram construídas antes que
Montaigne lá vivesse, mas parece evidente que ele não batia com a cabeça
com suficiente frequência para se preocupar em elevar os portais.
Naturalmente, seria difícil dizer se o fator decisivo, aqui, foi sua
autoproclamada pequenez ou sua autoproclamada preguiça.
Ele podia ser baixinho, mas nos informa que tinha uma constituição forte
e sólida, movimentando-se com elegância e não raro levando consigo uma
bengala, na qual se apoiava “com certa afetação”. Mais para o fim da vida,
adotou o hábito do pai de se vestir com austeridade em preto e branco,
porém na juventude seguia a moda e se trajava com desembaraço e estilo,
com “uma capa usada como se fosse um xale, o capuz sobre o ombro, meias
altas negligentemente largadas”.
O retrato mais vívido do jovem Montaigne que chegou até nós pode ser
encontrado num poema que Étienne de La Boétie, seu amigo ligeiramente
mais velho, lhe dedicou. Nele, vemos o que havia de perturbador em
Montaigne e também o que o tornava atraente. La Boétie o achava brilhante
e altamente promissor, mas correndo o risco de desperdiçar o próprio
talento. Precisava ser orientado por um mentor mais tranquilo e sábio —
papel ao qual La Boétie se adequava —, mas tinha uma teimosa tendência a
rejeitar essa orientação quando lhe era oferecida. Mostrava-se por demais
suscetível a belas jovens e muito satisfeito de si. “Minha casa proporciona
amplas riquezas, e minha idade, amplos poderes”, diz Montaigne de
maneira autocomplacente no poema de La Boétie. “E com efeito uma doce
jovem está sorrindo para mim.” La Boétie o compara a um belo Alcebíades,
aquinhoado pela sorte, ou um Hércules, capaz de feitos heroicos mas
excessivamente hesitante diante das encruzilhadas morais. Seus maiores
encantos eram também seus maiores defeitos.
Quando esse poema foi escrito, Montaigne deixara muito para trás seus
dias de escola, fazendo já uma carreira no parlement de Bordeaux. Tendo
desaparecido do escrutínio biográfico durante alguns anos depois de
concluir os estudos no Collège, ele voltou a aparecer na cidade como jovem
magistrado.
Para isto, deve ter estudado Direito. É improvável que o tenha feito em
Bordeaux; as maiores probabilidades são Paris e Toulouse. Talvez ele tenha
morado nas duas. Certas observações em Os ensaios deixam claro que ele
conhecia bem Toulouse, e também tinha muito a dizer sobre Paris. Conta-
nos que a cidade havia conquistado seu coração desde a infância —
referindo-se na verdade a qualquer etapa da juventude, até
aproximadamente os 25 anos. “Eu a amo com ternura”, afirma, “até nas
manchas e verrugas”. Paris era o único lugar em que ele não se importava
de se sentir francês, esquecendo seu orgulho local de gascão. Era uma
grande cidade sob todos os aspectos: “Grande na população, grande na
excelência da localização, mas acima de tudo grande e incomparável na
variedade e diversidade das boas coisas da vida.”
Onde quer que Montaigne tenha feito sua formação, o fato é que ela
cumpriu seu papel, permitindo-lhe deslanchar na carreira jurídica e política
que desde o início pode ter sido imaginada para ele. Os estudos levaram 13
anos, período que costuma ser encolhido nas biografias, pois é
irregularmente documentado, mas que abrange anos muito importantes,
começando pouco antes de Montaigne completar 24 anos e indo até seu
trigésimo sétimo ano de vida. Quando se retirou para a vida no campo,
cultivando vinhas e escrevendo em sua torre, ele já acumulara toda uma
experiência no serviço público, o que ainda era recente em seu espírito ao
redigir os primeiros ensaios. No momento de escrever os mais tardios, ele já
assumira responsabilidades ainda mais pesadas.
O primeiro cargo de Montaigne não foi em Bordeaux, mas numa
cidadezinha próxima, Périgueux, a nordeste da propriedade da família. Seu
tribunal fora fundado recentemente, em 1554, e seria abolido pouco depois,
em 1557. Seu principal objetivo fora levantar dinheiro, pois os organismos
públicos estavam sempre de caixa vazio. A abolição ocorreu porque o
parlement de Bordeaux, mais poderoso, levantou objeção à existência de
outro em Périgueux, e mais enfaticamente ainda ao fato de seus
funcionários serem mais bem-remunerados.
Montaigne foi para Périgueux no fim de 1556, e o tribunal sobreviveu
apenas o suficiente para dar início à sua carreira. No fim das contas, porém,
contribuiu para acelerar sua carreira política em Bordeaux, pois, ao ser
fechado o tribunal de Périgueux, muitos funcionários foram transferidos
para lá. Entre eles estava Montaigne: seu nome aparece na lista. Eles não
foram propriamente recebidos de braços abertos, mas os magistrados de
Bordeaux não tinham alternativa. Trataram de se vingar dificultando ao
máximo a vida dos que vinham de Périgueux, destinando-lhes um espaço
apertado para trabalhar e privando-os dos serviços dos oficiais de justiça. O
ressentimento é compreensível: os transferidos de Périgueux continuavam
recebendo salários mais altos. Eles seriam afinal reduzidos em agosto de
1561, o que por sua vez deixou insatisfeito o contingente de Périgueux.
Embora ainda estivesse no início da carreira, aos 28 anos Montaigne foi
escolhido para interpor seu recurso no tribunal. Seu discurso nessa ocasião,
reproduzido nos registros de Bordeaux, assinala sua primeira aparição. Ele
certamente terá se valido de seus recém-desenvolvidos recursos de oratória
pública — na base da espontaneidade e da improvisação —, mas não
funcionou. A decisão do parlement foi contrária aos demandantes, e seus
salários acabaram sendo reduzidos.
Apesar das desarmonias da política administrativa, a vida no
parlement de Bordeaux devia ser mais interessante que em Périgueux. Seu
parlement era um dos oito principais da França, além de um dos mais
poderosos, mesmo com o restabelecimento apenas parcial dos privilégios.
Tinha a seu cargo a maior parte das leis locais e da administração cívica,
podendo vetar decretos reais e opor objeções formais ao rei sempre que ele
editava uma lei que não fosse do seu agrado — o que acontecia com
frequência nesses tempos conturbados.
Inicialmente, a vida cotidiana de Montaigne envolvia mais o direito do
que a política. Trabalhava sobretudo para a Chambre des Enquêtes, o
tribunal de investigações, onde sua tarefa consistia em avaliar os casos civis
complexos demais para serem resolvidos imediatamente pelos juízes do
tribunal principal, a Grand’ Chambre. Ele examinava os detalhes, tratava de
resumi-los e entregava uma interpretação escrita aos conselheiros. Não
cabia a ele julgar, apenas resumir os elementos em jogo de maneira
inteligente e clara, expondo o ponto de vista de cada uma das partes. Terá
sido aí, talvez, que começou a desenvolver sua sensibilidade para a
multiplicidade de perspectivas em cada situação humana, algo que percorre
Os ensaios como uma artéria.
Descrito assim, o direito do século XVI parece um trabalho interessante
de ser buscado, mas o fato é que era obstruído por excesso de detalhes. Os
argumentos legais deviam basear-se em fontes escritas, enquadradas em
categorias predeterminadas. Os fatos relativos a cada caso eram muitas
vezes secundários em relação aos códigos, estatutos, costumes
documentados, textos de jurisprudência e acima de tudo comentários e
anotações — volumes e volumes deles. Até mesmo os casos mais simples
requeriam análise de uma verborragia aparentemente sem fim, em geral por
parte de um assoberbado iniciante como Montaigne.
Eram os comentários que ele mais detestava, como detestava qualquer
literatura de segunda categoria:

É mais trabalhoso interpretar as interpretações do que interpretar as


coisas, e existem mais livros sobre os livros do que sobre qualquer
outro tema: nada mais fazemos senão redigir anotações uns sobre os
outros.

Rabelais tinha satirizado a montanha de documentos que se acumulava


em cada caso jurídico: seu personagem, o juiz Cabresto de Ganso, passava
horas lendo e ponderando para no fim das contas tomar suas decisões
jogando dados, método que considerava tão adequado quanto qualquer
outro. Muitos autores também criticavam a generalizada corrupção entre os
advogados. De maneira geral, a justiça era considerada tão injusta que,
como se queixava Montaigne, as pessoas comuns tratavam de evitá-la, em
vez de recorrer a ela. Ele relatava um incidente local no qual um grupo de
camponeses encontrara um homem apunhalado e sangrando no caminho.
Ele implorou que lhe dessem água e o ajudassem a se levantar, mas eles
saíram correndo, temendo ser acusados do ataque caso o tocassem.
Montaigne foi incumbido de lhes falar depois que foram localizados. “Que
poderia dizer-lhes?”, escreveu. Eles tinham motivos para ficar com medo.
Em outro caso por ele mencionado, um bando de assassinos confessou um
homicídio pelo qual alguém já havia sido julgado e estava para ser
executado. Caberia esperar que a execução fosse suspensa? Não, decidiu o
tribunal: a anulação de um julgamento poderia representar um perigoso
precedente.
Montaigne não era o único a defender uma reforma do sistema jurídico
no século XVI. Muitas de suas críticas faziam eco às que eram feitas na
mesma época pelo sábio chanceler da França, Michel de L’Hôpital, numa
campanha que resultou em efetivos aperfeiçoamentos. Mas Montaigne
também arrolava argumentos mais originais e de maior alcance. Para ele, o
maior problema do sistema jurídico era não levar em consideração uma
realidade fundamental da condição humana: as pessoas são falíveis.
Esperava-se sempre um veredito final, e no entanto, por definição, muitas
vezes era impossível alcançar uma decisão com um mínimo grau de certeza.
As provas muitas vezes eram falhas ou inadequadas, e, para complicar as
coisas, os juízes cometiam erros pessoais. Nenhum juiz poderia
sinceramente considerar perfeitas todas as suas decisões: eles seguiam mais
as próprias inclinações que as provas, e não raro a boa ou má digestão do
almoço também influenciava. Era algo natural e portanto inevitável, mas
pelo menos um juiz mais sábio podia adquirir consciência da própria
falibilidade e levá-la em consideração. Podia aprender a ir mais devagar,
tomando cuidado com as reações iniciais e examinando mais atentamente as
coisas. A única coisa boa no sistema jurídico era o fato de tornar tão óbvias
as falhas humanas: uma boa lição filosófica.
Se os advogados estavam sujeitos a errar, o mesmo se podia dizer das
leis que produziam, já que eram concebidas por seres humanos. Também
este era um fato que só podia ser reconhecido e acomodado, mas não
alterado. Esse desvio na direção do autoquestionamento, da autoconsciência
e do reconhecimento da imperfeição tornou-se uma marca do pensamento
de Montaigne em todas as esferas, e não apenas no direito. Não parece
absurdo localizar sua centelha inicial naqueles primeiros anos de
experiência em Bordeaux.
Fora do tribunal, o trabalho de Montaigne se desenrolava em outro
campo de atividades calculado para deixar claro a qualquer um como as
questões humanas são limitadas e falíveis: a política. Ele costumava ser
mandado em missões a outras cidades, entre elas, em várias ocasiões, Paris,
que ficava a aproximadamente uma semana de viagem, devendo entrar em
contato com o parlement da capital e às vezes com a corte real. Esta, em
particular, era um verdadeiro curso sobre a natureza humana.
A primeira corte com a qual Montaigne teve contato foi a de Henrique II.
Deve ter encontrado o rei pessoalmente, pois se queixou de que Henrique
“nunca chamava pelo nome certo um cavalheiro dessa parte da Gasconha”
— presumivelmente ele mesmo, numa época em que ainda usava o nome
regional de Eyquem. Henrique II nada tinha a ver com seu brilhante pai
Francisco I, a quem sucedera no trono em 1547. Carecia da percepção
política de Francisco e recorria com frequência aos assessores, entre eles
uma amante já avançada em idade, Diane de Poitiers, e uma esposa
poderosa, Catarina de Médici. A fraqueza de Henrique II foi em parte
responsável pelos problemas posteriores da França, pois as facções rivais
perceberam a oportunidade e começaram uma luta pelo poder que haveria
de dominar o país durante décadas. A disputa estava centrada em três
famílias: os Guise, os Montmorency e os Bourbon. Suas ambições
particulares compunham uma venenosa mistura com as tensões religiosas
que já se agravavam na França, assim como em boa parte da Europa.
Em questões religiosas, Henrique II era mais repressor que Francisco,
que só se decidira a reprimir a heresia depois de uma agressiva campanha
de propaganda dos protestantes em 1534. O líder reformista francês João
Calvino fugiu para Genebra, estabelecendo ali uma espécie de quartel-
general revolucionário no exílio. O calvinismo, e não o mais moderado
luteranismo do início da Reforma, é que se tornou então a principal forma
de protestantismo na França. Ele representava uma efetiva ameaça à
autoridade real e da Igreja.
O calvinismo é hoje uma religião minoritária, mas sua ideologia guarda
impressionante força. Ela tem como ponto de partida um princípio
conhecido como “absoluta depravação”, segundo o qual os seres humanos
não têm virtudes próprias, dependendo da graça de Deus para tudo,
inclusive a própria salvação e até a decisão de converter-se ao calvinismo.
A responsabilidade pessoal não tem grande importância, pois tudo é
predeterminado, não sendo possível qualquer negociação. A única atitude
possível diante de tal Deus é a completa submissão. Em troca, Deus
concede a Seus seguidores uma força invencível: o indivíduo abre mão da
vontade pessoal mas vem a ser escorado por todo o peso do universo de
Deus. Isto não significa que pode cruzar os braços e se omitir. Enquanto os
luteranos tendem a se manter distantes das questões do mundo, vivendo em
função da consciência pessoal na esfera privada, os calvinistas devem
engajar-se na política, trabalhando pela manifestação da vontade de Deus na
Terra. No século XVI, assim, os calvinistas se formavam numa academia
especial na Suíça, sendo então enviados à França de posse de argumentos e
publicações proibidas para converter os nativos e desestabilizar o Estado. A
certa altura da década de 1550, a designação “huguenote” passou a ser
associada aos seguidores de Calvino, tanto na França quanto fora dela. A
palavra provavelmente derivava de um ramo anterior de reformistas
eLivross, os “Eidgenossen” ou “confederados”. E ficou: os protestantes
franceses assim se designavam, e o mesmo faziam seus inimigos em relação
a eles.
Inicialmente, a Igreja Católica reagira à ameaça protestante tentando
reformar-se. Assim foi que Montaigne cresceu numa igreja mergulhada no
exame de consciência e no autoquestionamento, atividades que as
instituições religiosas não costumam abraçar com grande fervor. Enquanto
se dava esse processo, contudo, forças mais militantes ganharam terreno. A
ordem jesuíta, fundada por Ignacio López de Loyola em 1534, preparou-se
para uma batalha de ideias contra o inimigo. Um movimento mais agressivo
e menos intelectual surgiu na França na década de 1550, sendo
genericamente conhecido pelo nome de “Ligas”. Seu objetivo não era
vencer os heréticos com argumentos sofisticados, mas varrê-los da face da
Terra à força. Eles e os calvinistas se enfrentavam sem a mais leve sombra
de trégua no coração, autênticas imagens espelhadas do fanatismo. Os
seguidores das Ligas se opunham a qualquer rei francês que manifestasse a
mais leve tolerância em relação ao protestantismo; e essa oposição foi-se
tornando mais forte com o passar das décadas.
Henrique II deixava-se facilmente influenciar pelas pressões das Ligas,
por isso introduziu severas leis contra a heresia e até uma nova câmara no
parlement de Paris, para julgar crimes religiosos. A partir de julho de 1557,
blasfemar contra os santos, publicar livros proibidos e pregar ilegalmente
eram crimes passíveis de pena de morte. Entre uma e outra medida dessa
natureza, todavia, Henrique mudava de estratégia e tentava aplacar as
sensibilidades huguenotes, permitindo o culto protestante de forma limitada
em certas áreas ou reduzindo novamente as penalidades contra a heresia.
Toda vez que o fazia, o lobby católico protestava, e ele voltava a investir na
repressão. Assim, ia e vinha sem satisfazer ninguém.
Nesse período, a França enfrentava outros problemas, entre eles uma
inflação descontrolada que afetava sobretudo os pobres e beneficiava a
aristocracia fundiária, a qual recebia aluguéis mais altos e com isto
comprava cada vez mais propriedades — como aconteceu com várias
gerações da família de Montaigne. Nas classes menos afortunadas, a crise
econômica alimentava o extremismo. A humanidade atraíra toda essa
miséria para o mundo com seus pecados e, portanto, precisava aplacar Deus
seguindo a única verdadeira Igreja. Mas qual seria a verdadeira Igreja?
Desse quadro de inquietação religiosa, econômica e política é que
surgiriam as guerras civis, que dominaram a vida na França pela maior
parte do resto do século, de 1562, quando Montaigne tinha 29 anos, a 1598,
bem depois de sua morte. Antes da década de 1560, as aventuras militares
na Itália e em outros países haviam permitido que a França liberasse suas
tensões. Em abril de 1559, contudo, o tratado de Câteau Cambrésis pôs fim
a várias dessas guerras externas de um só golpe. Acabando com os
derivativos e enchendo o país de antigos soldados desempregados, em plena
depressão econômica, a paz quase imediatamente provocou a deflagração
de uma guerra muito pior.
Os primeiros maus presságios ocorreram durante torneios de luta
realizados para comemorar dois casamentos dinásticos ligados ao tratado de
paz. O rei, que adorava esses torneios, teve um papel de destaque. Numa
das justas, um adversário acidentalmente arrancou sua viseira com um
pedaço de lança partida. Lascas de madeira feriram o rosto do rei logo
acima de um dos olhos. Ele foi socorrido e, depois de vários dias de cama,
parecia recuperar-se, mas uma das lascas havia atingido o cérebro. No
quarto dia, ele foi acometido de febre e em 10 de julho de 1559 viria a
morrer.
Os protestantes interpretaram a morte como uma maneira encontrada por
Deus para dizer que Henrique II errara ao reprimir sua religião. Mas a
morte de Henrique haveria de agravar, e não melhorar, as coisas para eles.
Pelo trono passariam sucessivamente três de seus filhos: Francisco II,
Carlos IX e Henrique III. Os dois primeiros eram menores, subindo ao
trono respectivamente aos 15 e 10 anos de idade. Todos se mostraram
fracos e dominados pela mãe, Catarina de Médici, e todos revelaram inépcia
no trato do conflito religioso. Francisco II morreu de tuberculose logo
depois, em 1560. Foi sucedido por Carlos IX, que reinaria até 1574. Nos
primeiros anos, sua mãe governava como regente. Ela tentou encontrar um
equilíbrio entre as facções religiosas e políticas, mas não teve muito êxito.
Desse modo, a situação no início da década de 1560, durante a qual
Montaigne fez sua carreira em Bordeaux, era marcada por uma coroa fraca,
ganâncias rivais, dificuldades econômicas e crescentes tensões religiosas.
Em dezembro de 1560, num discurso que traduzia o sentimento então
generalizado, o chanceler Michel de L’Hôpital declarou: “É absurdo esperar
paz, tranquilidade e amizade entre pessoas de convicções religiosas
diferentes.” Apesar de desejado, seria um ideal inalcançável. O único
caminho para a unidade política era a unidade religiosa. Como observou um
teólogo espanhol, nenhuma república poderia ser bem governada se “todos
tivessem o seu Deus como o único Deus verdadeiro (...) considerando cegos
ou iludidos os outros indivíduos”. A maioria dos católicos consideraria isto
óbvio demais para merecer atenção. Até os protestantes tendiam a impor a
unidade sempre que assumiam a direção de um Estado. Un roi, une foi, une
loi, dizia o ditado: um rei, uma fé, uma lei. O ódio a qualquer um que
ousasse sugerir uma alternativa intermediária era praticamente a única coisa
com que todos os demais estavam de acordo.
L’Hôpital e seus aliados não promoveram a tolerância ou a
“diversidade”, em nenhum sentido moderno. Mas ele considerou melhor
atrair de volta as ovelhas desgarradas tornando a Igreja Católica mais
interessante, em vez de tentar se impor com ameaças. Sob sua influência, as
leis contra a heresia foram de certa forma abrandadas no início da década de
1560. Um decreto de janeiro de 1562 autorizava aos protestantes o culto
aberto fora das cidades, e em caráter privado no interior de suas muralhas.
Tal como acontecera em anteriores tentativas de negociação, ninguém ficou
satisfeito. Os católicos se sentiram traídos, enquanto os protestantes eram
estimulados a se sentir no direito de exigir mais. Meses antes, o embaixador
de Veneza escrevera sobre um “grande medo” que se disseminara pelo
reino; pois agora ele se transformava numa sensação de iminente desastre.
O gatilho foi disparado em 1º de março de 1562 na cidadezinha de Vassy,
ou Wassy, na região da Champanhe, no nordeste. Quinhentos protestantes
se reuniram para o culto num celeiro da cidade, o que era ilegal, pois essas
assembleias só eram autorizadas fora das muralhas. O duque de Guise, líder
católico radical, passava pela região com um grupo de soldados e foi
informado da reunião. Marchou então em direção ao celeiro. Segundo
relatos dos sobreviventes, ele permitiu que seus homens atacassem o celeiro
aos gritos de “Matem todos!”.
A congregação de huguenotes reagiu: havia muito eles esperavam
enfrentar problemas e estavam preparados para se defender. Forçaram os
soldados a bater em retirada, entrincheiraram-se por trás da porta do celeiro
e subiram por andaimes até o telhado para atirar nos homens de Guise
pedras que haviam sido estocadas ali, em caso de necessidade. Os soldados
dispararam seus arcabuzes e conseguiram entrar de novo no celeiro. Os
protestantes agora fugiam para salvar suas vidas; muitos caíram do telhado
ou foram abatidos a tiros na fuga. Cerca de trinta deles morreram, e mais de
cem ficaram feridos.
As consequências foram dramáticas. O líder protestante nacional, Luís I
de Bourbon, príncipe de Condé, exortou os protestantes a se revoltarem
para escapar de novos ataques. Muitos tomaram armas e, em reação,
católicos fizeram o mesmo, sendo ambos os lados movidos antes pelo medo
do que pelo ódio. Agindo em nome de Carlos IX, então com 9 anos,
Catarina de Médici determinou uma investigação sobre os acontecimentos
de Vassy, mas a coisa esmoreceu, como costuma acontecer com
investigações do poder público, e àquela altura já era tarde demais. Líderes
de ambos os lados convergiram para Paris com multidões de seguidores. Ao
entrar na cidade, o duque de Guise cruzou com uma procissão de
protestantes liderada por Condé, e os dois trocaram friamente um
cumprimento com o copo da espada.
Um observador, um advogado e amigo de Montaigne chamado Étienne
Pasquier, comentou numa carta que depois do massacre de Vassy só se
falava de guerra. “Se me fosse permitido analisar esses acontecimentos, eu
lhe diria que foi o início de uma tragédia.” E ele estava certo. Os crescentes
confrontos entre os dois lados transformaram-se em verdadeiras batalhas,
que por sua vez evoluíram para a primeira das guerras civis francesas. Ela
foi selvagem mas breve, terminando no ano seguinte, quando o duque de
Guise foi abatido a tiros, deixando os católicos temporariamente sem um
líder e relutantemente dispostos a assinar um tratado. Mas ninguém tinha a
sensação de uma resolução, e nenhum dos lados estava satisfeito. Uma
segunda guerra seria desencadeada em 30 de setembro de 1567 por outro
massacre, desta vez de protestantes sobre católicos, em Nîmes.
As guerras costumam ser referidas no plural, mas também faz sentido
encará-las como uma única guerra prolongada com interregnos de paz.
Montaigne e seus contemporâneos muitas vezes se referiam às lutas que
irrompiam como “distúrbios”. O consenso é de que elas foram oito, e pode
ser interessante enumerá-las aqui, para entender até que ponto a vida de
Montaigne foi condicionada pela guerra:

Primeiro Distúrbio (1562-63). Começou com o massacre de protestantes


em Vasy e viu seu fim com a Paz de Amboise.
Segundo Distúrbio (1567-68). Começou com um massacre de católicos
em Nîmes e viu seu fim com a Paz de Longjumeau.
Terceiro Distúrbio (1568-70). Começou com novas leis contra os
protestantes e viu seu fim com a Paz de Saint-Germain.
Quarto Distúrbio (1572-73). Começou com os massacres de protestantes
no Dia de São Bartolomeu em Paris e outras cidades, e viu seu fim com
a Paz de La Rochelle.
Quinto Distúrbio (1574-76). Começou com combates em Poitou e
Saintonge, e viu seu fim com a “Paz de Monsieur”.
Sexto Distúrbio (1576-77). Começou com leis antiprotestantes nos
Estados Gerais de Blois e viu seu fim com a Paz de Poitiers.
Sétimo Distúrbio (1579-80). Começou com a captura de La Fère, na
Normandia, pelos protestantes, e viu seu fim com a Paz de Fleix.
Oitavo Distúrbio (1585-98). De longe a mais prolongada e pior:
começou com agitação das Ligas e viu seu fim com o Tratado de
Vervins e o Edito de Nantes.

Cada um deles seguia o padrão estabelecido pela primeira e a segunda


guerras. Um período de paz era interrompido por um repentino massacre ou
provocação. Seguiam-se batalhas, cercos e desgraça generalizada, até que o
surgimento de sinais de fraqueza de um dos lados levava a um tratado de
paz. Todos ficavam insatisfeitos, mas o acordo prevalecia até uma nova
provocação — e assim o padrão ia se repetindo. Nem mesmo o último
tratado agradou a todos. Pelo menos três facções se envolviam nos
distúrbios, movidas pelo desejo de obter influência sobre o trono. Eram
guerras de religião, como as que fermentavam em outros países da Europa
no mesmo período, mas não deixavam de ser também guerras políticas.
As guerras civis haviam sido possibilitadas, para começo de conversa,
pelo fim de um conflito externo, e o início de outro acabaria por encerrá-las,
depois que Henrique IV declarou guerra à Espanha em 1595. O efeito
benéfico dessa decisão foi perfeitamente compreendido na época. Durante o
último “distúrbio”, Montaigne observou que muitos desejavam algo assim.
A violência precisava ser drenada, como o pus de uma infecção. Mas ele
não estava tão certo da ética desse método: “Não creio que Deus aprovasse
uma iniciativa tão injusta quanto ferir e provocar briga com outros por
nossa própria conveniência.” Mas era o que a França precisava e o que
afinal conseguiu de Henrique IV, o primeiro rei inteligente que subia ao
trono em muitos anos.
Mas isto ainda estava muito distante na década de 1560, quando
ninguém imaginava que o horror pudesse prolongar-se tanto. Os anos de
Montaigne no parlement abarcaram os três primeiros distúrbios; mesmo nos
períodos de paz, havia muita tensão política. Ao terminar a terceira guerra,
ele já tivera sua cota e estava para se retirar da vida pública. Até então, sua
posição em Bordeaux o situava bem no centro dos acontecimentos, numa
comunidade particularmente complexa. Bordeaux era uma cidade católica,
mas cercada de territórios protestantes e com uma importante minoria
protestante, que não hesitava em se entregar à profanação de imagens e
outros atos de agressividade.
Num confronto particularmente violento, na noite de 26 de junho de
1562 — meses depois do massacre de Vassy —, uma multidão de
protestantes atacou na cidade o Château Trompette, bastião do poder
governamental. A rebelião foi debelada, mas, como acontecera nas revoltas
do imposto sobre o sal, a punição revelou-se pior que o crime. Para dar uma
lição numa cidade que parecia incapaz de gerir os próprios negócios, o rei
enviou um novo comandante militar chamado Blaise Monluc, ordenando-
lhe que “pacificasse” a conturbada região.
Monluc entendeu que “pacificação” significava “massacre
generalizado”. Começou por enforcar grande número de protestantes sem
julgamento ou mandar esquartejá-los. Depois de uma batalha na aldeia de
Terraube, mandou matar e jogar tantos habitantes no poço que dava para
tocar o alto da pilha com as mãos. Escrevendo suas memórias anos depois,
ele se recordaria de um líder rebelde que pessoalmente lhe implorou
misericórdia depois de ser capturado por seus soldados. Monluc reagiu
agarrando-o pelo pescoço e o atirando contra uma cruz de pedra com tanta
violência que a pedra se partiu e o homem morreu. “Se não tivesse agido
assim”, escreveria ele, “teria sido alvo de zombaria”. Em outro incidente,
um capitão protestante que tinha servido sob as ordens de Monluc na Itália,
muitos anos antes, esperava que o velho camarada lhe poupasse a vida em
nome dos bons tempos. Pelo contrário, Monluc fez questão de mandar
matá-lo imediatamente, explicando que o fez porque sabia que ele era
corajoso: jamais deixaria de ser um inimigo perigoso. Era o tipo de cena
que com frequência apareceria nos ensaios de Montaigne: uma pessoa pede
misericórdia e a outra decide ou não concedê-la. Montaigne ficava
fascinado com a complexidade moral envolvida na questão. Mas que
complexidade moral?, teria perguntado Monluc. Matar era invariavelmente
a solução correta: “Um homem enforcado surte mais efeito que cem mortos
em combate.” Tantas execuções eram levadas a cabo na região que
começou a haver escassez de peças para a forca, passando os carpinteiros a
receber mais encomendas de patíbulos, rodas para esquartejamento e
estacas para fogueiras. Quando já não havia mais patíbulos, Monluc
começou a usar árvores, vangloriando-se de que o roteiro de suas viagens
por Guyenne podia ser traçado, retrospectivamente, pelos corpos
pendurados à beira das estradas. Ao chegar ao fim sua missão, diria ele,
nada se mexia em toda a região. Os sobreviventes guardavam silêncio.
Montaigne conheceu Monluc, embora principalmente mais tarde, e
interessou-se mais por sua personalidade do que por seus feitos na vida
pública — especialmente suas carências como pai e o arrependimento que o
atormentaria depois de perder um filho, morto na flor da juventude. Monluc
confessou a Montaigne que só tarde demais se dera conta de que sempre
tinha tratado o menino com frieza, embora na realidade o amasse muito.
Isto se devia em parte ao fato de ter seguido uma lastimável prática na
educação dos filhos, a de adotar uma atitude de frieza emocional no trato
com eles. “O pobre menino só via em mim um semblante de reprovação e
desdém”, diria Monluc. “Eu me forçava e me torturava para manter essa
máscara absurda.” A menção da máscara faz sentido, pois em 1571 — mais
ou menos na época em que Montaigne se retirou da vida pública — Monluc
foi desfigurado por um tiro de arcabuz. Pelo resto da vida, ele não sairia de
casa sem cobrir o rosto para esconder as cicatrizes. Podemos imaginar o
efeito desconcertante de uma máscara por cima das feições inexpressivas,
semelhantes a uma máscara, de um homem cruel em cujos olhos poucas
pessoas tinham coragem de olhar.
Ao longo da conturbada década de 1560, Montaigne ia com frequência a
Paris resolver questões do parlement e aparentemente se manteve longe de
casa por boa parte de 1562 e do início de 1563, embora aparecesse de volta
em Bordeaux quase com a mesma facilidade de um moderno motorista de
carro ou um passageiro de trem. Ele certamente estava na região em agosto
de 1563, quando morreu seu amigo Étienne de La Boétie. E devia estar em
Bordeaux em dezembro de 1563, pois nessa ocasião aconteceu um estranho
incidente, que configura o registro mais digno de nota de Montaigne nos
arquivos da cidade.
No mês anterior, um extremista católico chamado François de Péruse
d’Escars lançara um desafio direto ao presidente do parlement, o moderado
Jacques-Benoît de Lagebâton, entrando na câmara e acusando-o de ter
usurpado o governo. Lagebâton conseguiu calá-lo, mas d’Escars voltou a
lançar seu desafio no mês seguinte, e em resposta Lagebâton apresentou
uma relação dos membros do tribunal que considerava estarem em conluio
com d’Escars, provavelmente atuando para ele mediante pagamento.
Surpreendentemente, entre esses nomes estavam o de Montaigne e o do
recém-falecido Étienne de La Boétie. Caberia esperar que os dois
estivessem firmemente do lado de Lagebâton: La Boétie trabalhara para o
chanceler L’Hôpital, de quem Lagebâton era um seguidor, e Montaigne
também se mostrou admirador dessa facção em seu Os ensaios. Por outro
lado, d’Escars era amigo da família, e La Boétie estivera em sua casa ao
contrair a doença que acabaria por matá-lo. Isto parecia suspeito, e é
possível que Montaigne tivesse sido objeto de investigação por associação.
Os acusados tinham direito de se defender perante o parlement, o que
dava a Montaigne a oportunidade de voltar a se valer de sua habilidade
retórica. De todos, foi ele o orador que causou mais impressão. “Ele se
expressou com toda a vivacidade de seu temperamento”, afirma a anotação
no registro. Concluiu seu discurso afirmando “que denunciava todo o
Tribunal” e se retirou agitado.
O tribunal o convocou de volta, exigindo que explicasse o que quisera
dizer. Ele respondeu que não era inimigo de Lagebâton, que era amigo dele
e de toda a sua família. Mas — e dava para sentir que viria um “mas” —
sabia que os acusados tradicionalmente eram autorizados a contra-
argumentar as alegações do acusador e, portanto, queria se valer desse
direito. Com isto, voltou a deixar todos intrigados, mas o que queria dizer
era que Lagebâton é que podia ser acusado de comportamento impróprio.
Montaigne não deu mais explicações. Pressionado a retirar o comentário,
ele o fez, e a coisa ficou por aí. As acusações aparentemente não deram em
nada sério, acabando por ser esquecidas.
O incidente parece ainda hoje enigmático, mas certamente nos mostra
um Montaigne diferente do autor controlado e distante de Os ensaios ou da
imagem pintada por ele próprio de sua juventude, sempre a cair de sono
sobre os livros. Temos aqui um homem conhecido por sua “vivacidade” e
dado a entrar e sair precipitadamente dos salões, fazendo acusações que não
podia comprovar e enunciando absurdos tão delirantes que ninguém podia
saber ao certo o que queria dizer. Em Os ensaios, Montaigne reconhece que,
“por meu temperamento, estou sujeito a súbitas explosões que, apesar de
moderadas e leves, muitas vezes prejudicam meus negócios”. Esta última
parte da declaração nos leva a ficar imaginando se ele comprometeu sua
carreira no parlement com suas afirmações descontroladas, se não nesta
oportunidade, talvez em outras.
Ainda mais surpreendente que conhecer o lado exaltado do jovem
Montaigne é vê-lo de braços com os fanáticos e extremistas. Suas ligações
políticas eram complicadas: nem sempre é fácil deduzir como ele poderia se
posicionar em determinado tema. Mas esse caso pode ter tido mais a ver
com lealdades pessoais do que com convicções. Sua família tinha ligações
de ambos os lados do espectro político, e ele precisava estar sempre em
bons termos com todas elas. É possível que a tensão desse conflito o tenha
desestabilizado. A acusação também era um insulto — para ele próprio e,
em caráter ainda mais grave, para La Boétie, que já não podia mais se
defender. Lagebâton punha em dúvida a honra do homem mais honrado que
Montaigne conhecera: a pessoa que provavelmente mais amara na vida, e
que acabara de perder. Parece compreensível uma reação de raiva
incontrolável.
A lentidão e o esquecimento eram boas respostas para a pergunta sobre
como viver. Serviam muito bem de camuflagem e davam espaço para a
manifestação de avaliações mais ponderadas. Mas certas experiências da
vida suscitavam mais paixão, pedindo um tipo diferente de respostas.
5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas

LA BOÉTIE: AMOR E TIRANIA

M
ontaigne tinha vinte e poucos anos quando conheceu Étienne de
La Boétie. Ambos trabalhavam no parlement de Bordeaux e já
haviam ouvido falar bastante um do outro. La Boétie teria de
Montaigne a imagem de um jovem precoce e articulado. Montaigne ouvira
falar de La Boétie como o promissor autor de um polêmico manuscrito que
circulava na região, intitulado De la Servitude volontaire (“Da servidão
voluntária”). Leu-o pela primeira vez no fim da década de 1550, e mais
tarde escreveria sobre sua gratidão a ele, já que o texto o levou a conhecer o
autor. Começava então uma grande amizade, “tão inteira e perfeita que você
dificilmente lerá sobre outra semelhante (...) São tantas as coincidências
necessárias para construir uma amizade assim que se pode considerar muito
se o destino consegue fazê-lo uma vez em espaço de três séculos”.
Embora os dois jovens se sentissem curiosos a respeito um do outro, por
algum motivo demoraram muito tempo para se conhecer. No fim das
contas, o encontro se deu por acaso. Os dois participavam de um banquete
na cidade; começaram a conversar e se viram “tão interessados um pelo
outro, se entendendo tão bem, tão próximos” que imediatamente se
tornaram grandes amigos. Tiveram apenas seis anos, sendo que ficaram
separados cerca de um terço deles, pois às vezes ambos iam trabalhar em
outras cidades. Mas esse curto período foi suficiente para mantê-los tão
unidos como se tivessem uma vida inteira de experiências compartilhadas.
Lendo a respeito de Montaigne e La Boétie, muitas vezes ficamos com a
impressão de que o segundo era muito mais velho e sábio. Na realidade, La
Boétie tinha apenas alguns anos mais que Montaigne. Não era
particularmente vivaz nem bonito, mas ficamos com a impressão de que era
um homem inteligente e afetuoso, com certo ar de seriedade. Ao contrário
de Montaigne, já estava casado quando se conheceram, ocupando uma
posição mais alta no parlement. Já era conhecido pelos colegas como
escritor e funcionário público, ao passo que Montaigne até então escrevera
apenas relatórios jurídicos. La Boétie atraía atenção e inspirava respeito. Se
disséssemos aos conhecidos de ambos em Bordeaux no início da década de
1560 que hoje ele é lembrado sobretudo por ser amigo de Montaigne, e não
o contrário, eles provavelmente não acreditariam.
O ar de maturidade de La Boétie podia decorrer em parte do fato de ter
ficado órfão em tenra idade. Ele nasceu em 1º de novembro de 1530 na
cidade comercial de Sarlat, a cerca de 120 quilômetros da propriedade de
Montaigne, numa bela e alta construção ricamente ornamentada que ainda
hoje está de pé. A casa fora construída cinco anos antes pelo pai de La
Boétie, outro pai hiperativo, que viria a morrer quando o filho tinha 10
anos. Sua mãe também morreu, e assim La Boétie ficou sozinho. Um tio
com o mesmo nome de Étienne de La Boétie tomou-o aos seus cuidados e
aparentemente deu ao menino uma educação segundo as tendências
humanistas da época, ainda que fosse menos radical que a de Montaigne.
Como Montaigne, La Boétie estudou Direito. Por volta de 1554, casou-
se com Marguerite de Carle, uma viúva com duas crianças (uma das quais
viria a se casar com o irmão menor de Montaigne, Thomas de Beauregard).
Em maio do mesmo ano — dois anos antes de Montaigne se transferir para
Périgueux —, La Boétie assumiu um cargo no parlement de Bordeaux. Ele
era provavelmente um dos funcionários de Bordeaux que, ao verem os
colegas de Périgueux chegarem e receberem um salário melhor, os fixaram
com um olhar de reprovação.
La Boétie fez uma excelente carreira no parlement de Bordeaux. À parte
as estranhas acusações de 1563, era de maneira geral o tipo do sujeito que
inspira confiança. Recebia missões delicadas e com frequência era
destacado como negociador — como aconteceria mais tarde com
Montaigne. A essa altura, La Boétie provavelmente era considerado mais
confiável. Tinha o necessário ar de sobriedade e uma melhor atitude em
matéria de trabalho duro e cumprimento do dever. As diferenças eram
significativas, mas os dois se encaixaram como peças de um quebra-cabeça.
Eles compartilhavam coisas importantes: pensamento sutil, paixão por
literatura e filosofia e determinação de levar uma boa vida, como os
escritores clássicos e os heróis militares que admiravam desde a infância.
Tudo isto os aproximava, destacando-os dos colegas de criação menos
imaginosa.
La Boétie é conhecido hoje sobretudo através do olhar de Montaigne, o
Montaigne das décadas de 1570 e 1580, lembrando-se do amigo perdido
com saudade e pesar. Com isto, criou-se uma espécie de bruma nostálgica
através da qual podemos apenas tentar discernir o verdadeiro La Boétie. No
que diz respeito ao Montaigne visto por La Boétie, dispomos de uma
imagem mais clara, pois La Boétie escreveu um soneto deixando bem claro
o que considerava ser necessário a Montaigne para que se aperfeiçoasse.
Em vez de um Montaigne perfeito congelado na memória, o soneto captura
um Montaigne vivo, em processo de transição. E de modo algum parece
claro que esse personagem cheio de falhas conseguirá um dia vencer na
vida, especialmente se continuar desperdiçando sua energia em festas e
flertes com belas mulheres.
Embora La Boétie se dirija a Montaigne como um tio em atitude de
afetuosa desaprovação, seu poema vem permeado de emoções menos
familiares: “Você se ligou a mim, Montaigne, ao mesmo tempo pela força
da natureza e pela virtude, que é o doce atrativo do amor.” Montaigne
escreve no mesmo diapasão em Os ensaios, dizendo que a amizade
apoderou-se de sua vontade e “a levou a mergulhar e se perder na dele”, da
mesma forma como se apoderou da vontade de La Boétie e “a levou a
mergulhar e se perder na minha”. Esse tipo de linguagem não era incomum.
O Renascimento foi um período em que, embora qualquer ideia de
homossexualidade fosse encarada com horror, os homens normalmente se
escreviam como adolescentes apaixonados. Geralmente, estavam menos
apaixonados uns pelos outros do que por um elevado ideal de amizade,
absorvido da literatura grega e da latina. Esse tipo de ligação entre dois
jovens bem-nascidos era o auge da filosofia: eles estudavam juntos,
estavam constantemente na atenção um do outro e se apoiavam no
aperfeiçoamento da arte de viver. Tanto Montaigne quanto La Boétie eram
fascinados por esse modelo, e provavelmente estavam à espreita de uma
oportunidade quando se conheceram. O pouco tempo que passaram juntos
poupou-os de desilusões. Em seu soneto, La Boétie manifestava a esperança
de que seus nomes ficassem lado a lado por toda a eternidade, como os de
outros “amigos famosos” ao longo da história. E foi atendido.
Aparentemente eles encaravam sua amizade em analogia com um
modelo clássico específico: o do filósofo Sócrates e seu bem-apessoado
jovem amigo Alcebíades — ao qual La Boétie abertamente comparava
Montaigne em seu soneto. Montaigne, por sua vez, identificava elementos
socráticos em La Boétie: sua sabedoria, mas também uma qualidade mais
surpreendente, sua feiura. Sócrates ficou famoso pela falta de atributos
físicos, e Montaigne refere significativamente, em La Boétie, uma “feiura
que vestia uma alma muito bonita”. Isso faz eco à comparação feita por
Alcebíades no Simpósio, de Platão, entre Sócrates e as figurinhas “Silenus”
popularmente usadas como caixas para guardar joias e outros objetos
preciosos. Como Sócrates, elas apresentavam exteriormente faces e
imagens grotescas, mas por dentro guardavam tesouros. Montaigne e La
Boétie aparentemente gostavam desses papéis, divertindo-se em
desempenhá-los. Montaigne, pelo menos, se divertia. Imbuído da própria
dignidade filosófica, La Boétie provavelmente teria evitado dar sinais nesse
sentido se o achasse ofensivo.
O feio Sócrates rechaçou os avanços do belo Alcebíades, segundo
Platão, mas não resta dúvida de que sua relação era sensual, com um
componente de flerte. Caberia dizer o mesmo de Montaigne e La Boétie?
Poucos hoje acreditam que eles tivessem uma relação declaradamente
sexual, embora a ideia tenha tido seus adeptos. Mas a intensidade da
linguagem por eles usada causa impressão, não apenas no soneto de La
Boétie, mas nos trechos em que Montaigne descreve sua amizade como um
mistério transcendente, ou um grande roldão de amor que os arrebatou. Seu
apego à moderação em todas as coisas não o socorre quando se trata de La
Boétie, como tampouco seu amor à independência. Escreve ele: “Nossas
almas se misturam e combinam tão completamente que apagam a costura
que as une, e não mais podem encontrá-la.” As próprias palavras parecem
recusar-se a obedecer, como escreveria ele numa anotação à margem:
Se me obrigarem a dizer por que o amava, sinto que é algo que não
pode ser expresso, exceto pela resposta: Porque era ele, porque era eu.

No Renascimento, como no período clássico, esperava-se que as


amizades fossem escolhidas à luz clara e racional do dia. Por isso é que
tinham valor filosófico. A referência de Montaigne ao amor que “não pode
ser expresso” não se encaixa nesse padrão. E de fato ele admite: “Nossa
amizade não tem outro modelo senão ela própria, podendo ser comparada
apenas a ela mesma.” Se existe alguma referência, ela parece encontrar-se
mais uma vez no Simpósio, no qual Alcebíades se vê igualmente perturbado
pelo carisma de Sócrates, dizendo: “Muitas vezes eu gostaria que ele
desaparecesse da face da Terra, mas sei que se isto acontecesse minha dor
em muito superaria meu alívio. Na verdade, eu simplesmente não sei o que
fazer quanto a ele.”
Em seu soneto, La Boétie não expressa tanta perplexidade quanto
Montaigne; sua emoção não era amplificada pela dor da lembrança, como
no caso de Montaigne. Referências equivalentes à perda da razão e ao
magnetismo pessoal também podem ser encontradas em La Boétie, mas não
no soneto ou sequer nos medíocres poemas de amor por ele endereçados a
mulheres. Elas se manifestam, por incrível que pareça, no tratado de
política escrito na juventude — aquele mesmo que era lido com tanta
avidez em Bordeaux quando Montaigne ouviu falar dele pela primeira vez.
La Boétie aparentemente era muito jovem ao escrever esse tratado, Da
servidão voluntária. Segundo Montaigne, contava apenas 16 anos, tendo-o
redigido como exercício estudantil — “um tema comum, reciclado em mil
lugares nos livros”. É possível que Montaigne estivesse deliberadamente
minimizando a seriedade do trabalho, pois era polêmico e ele não queria
comprometer a reputação de La Boétie nem enfrentar problemas por
mencioná-lo. Ainda que não fosse um trabalho de fundo tão juvenil quanto
Montaigne queria fazer parecer, o fato é que evidenciava um talento
precoce: um escritor chamou La Boétie de o Rimbaud da sociologia
política.
O tema de Da servidão voluntária é a facilidade com que os tiranos têm
dominado as massas através da história, muito embora seu poder evaporasse
instantaneamente se tais massas retirassem seu apoio. Não há necessidade
de revolução: basta que o povo pare de cooperar e de escorar o poder do
tirano com exércitos de escravos e bajuladores. Mas isso quase nunca
acontece, nem mesmo àqueles que maltratam seus súditos de maneira
monstruosa. Quanto mais eles submetem o povo à fome e ao abandono,
mais o povo parece amá-los. Os romanos prantearam Nero quando morreu,
não obstante os abusos que cometia. O mesmo aconteceu à morte de Júlio
César — que, para variar, não era admirado por La Boétie. (Montaigne fazia
reservas semelhantes.) Tínhamos, neste caso, um imperador “que aboliu as
leis e a liberdade, um personagem no qual nada havia, ao que me parece, de
valor”, e que no entanto era adorado além de toda medida. O mistério do
domínio tirânico é tão profundo quanto o do próprio amor.
La Boétie considera que os tiranos de alguma forma hipnotizam seu
povo — embora o termo ainda não tivesse sido inventado. Para dizer de
outra forma, o povo se apaixona por ele. Entrega sua vontade à dele. É um
terrível espetáculo ver “um milhão de homens servindo deploravelmente
com o pescoço preso à canga, não submetidos por uma força maior, mas de
alguma forma (ao que parece) encantados e seduzidos pela simples menção
do nome de alguém cujo poder não deviam temer, já que ele está sozinho, e
cujas qualidades não deveriam amar, já que se mostra selvagem e desumano
em relação a eles”. Mas os homens não conseguem despertar do sonho. La
Boétie faz com que a coisa quase fique parecendo bruxaria. Se ocorresse em
escala menor, alguém provavelmente seria queimado na fogueira, mas o
feitiço não é questionado quando se apodera de uma sociedade inteira.
A análise do poder político feita por La Boétie aproxima-se muito do
clima de mistério apresentado por Montaigne em relação ao próprio La
Boétie: “Porque era ele, porque era eu.” A possibilidade de que o carisma
de um tirano atue como uma espécie de encantamento ou poção amorosa
ficou evidente através de uma série de autocratas da nossa história recente.
Quando se perguntou a um dos homens de confiança do ditador ugandense
Idi Amin, numa entrevista, por que amara seu líder com tanta lealdade, ele
respondeu de uma forma que parece Montaigne falando de La Boétie, ou
Alcebíades, de Sócrates:

É o amor, essa coisa chamada amor: podemos encontrar até um


homem que ama uma mulher de um olho só. Se lhe perguntarmos por
que ama essa mulher feia, você acha que ele dirá? O segredo por trás
disso fica entre os dois. O que me fez amá-lo e também o que o fez
me amar.

A tirania gera um drama de submissão e dominação, semelhante às


tensas cenas de confronto em batalha que são frequentemente descritas por
Montaigne. A massa confia com facilidade, o que serve apenas para
estimular o tirano a privá-la de tudo — até da vida, quando a mobiliza em
guerra para lutar por ele. Algo nos seres humanos os compele a um
“profundo esquecimento da liberdade”. De alto a baixo, todos do sistema
ficam paralisados por essa servidão voluntária e pela força do hábito, pois
muitas vezes não conheceram nada diferente. E, no entanto, precisam
apenas despertar e negar sua colaboração.
Quando alguns poucos indivíduos efetivamente rompem os grilhões,
acrescenta La Boétie, é muitas vezes porque seus olhos foram abertos pelo
estudo da história. Tomando conhecimento de tiranias semelhantes no
passado, eles identificam o padrão em sua própria sociedade. Em vez de
aceitar as condições em que nasceram, aperfeiçoam a arte de se esquivar
delas e enxergar tudo de um ângulo diferente — recurso que Montaigne
transformaria em seu modo característico de pensar e escrever em Os
ensaios. Infelizmente, esses espíritos livres em geral são muito poucos para
de fato promoverem mudanças. Eles não atuam em conjunto, vivendo
“sozinhos em suas fantasias”.
Entende-se por que motivo Montaigne, tendo lido Da servidão
voluntária, ficou tão interessado em conhecer seu autor. É uma obra ousada;
concordasse Montaigne com ela ou não, deve ter ficado impressionado.
Suas reflexões sobre a força do hábito, um tema-chave de seu Os ensaios, e
a ideia de que a leitura de historiadores e biógrafos pode levar à liberdade
certamente encontravam ressonância nele. E o mesmo se pode dizer da pura
e simples audácia intelectual do livro e de sua capacidade de pensar, por
assim dizer, pelos desvãos.
La Boétie provavelmente não via no seu tratado um brado
revolucionário. Fez com que circulasse em alguns poucos exemplares e
talvez sequer tivesse a intenção de publicá-lo. Se o fizesse, seu objetivo
seria exortar a elite governamental a adotar um comportamento mais
responsável, e não levar as classes inferiores a se mobilizar para assumir o
controle. Teria ficado horrorizado, assim, se visse o que veio a ser feito de
sua obra. Pouco mais de uma década depois de sua morte, Da servidão
voluntária voltou a circular como panfleto protestante radical, rebatizado
de Contr’un (Contra um) para surtir maior efeito e inserido no contexto de
uma convocação à rebelião contra o monarca francês. O texto foi
reproduzido numa série de publicações protestantes, inicialmente na
anônima Reveille-matin des François et de leurs voisins (1574) e depois em
várias edições das Mémoires de l’estat de France sous Charles IX (1577) de
Simon Goulart. Era um gesto incendiário e recebeu uma resposta
incendiária. O parlement de Bordeaux mandou queimar a segunda edição
de Goulart em público, em 7 de maio de 1579, dois dias antes de Montaigne
conseguir o privilégio oficial para a primeira edição de seu Os ensaios. Não
surpreende, assim, que ele enfatizasse o fato de a obra de La Boétie ser uma
experiência de juventude, não representando ameaça para quem quer que
fosse.
Era o início de uma longa e movimentada vida póstera para Da servidão
voluntária. Ainda hoje o livro às vezes é publicado como forma de
convocação às armas ou pelo menos à resistência moral. Durante a Segunda
Guerra Mundial, foi publicado nos Estados Unidos com o título Anti-
Dictator, acrescido de notas chamando a atenção para temas como “A
conciliação de nada serve” e “Por que os Führers fazem discursos”. Mais
tarde, grupos anarquistas e libertários se apoderaram do texto, publicando
edições com prefácios e comentários de teor radical. A história póstuma de
La Boétie como herói do anarquismo é uma das grandes exceções à regra
segundo a qual ele só é lembrado como amigo de Montaigne.
O que os anarquistas e libertários mais admiram é o seu conceito
gandhiano de que, para se livrar da tirania, uma sociedade precisa apenas
recusar-se tranquilamente a cooperar. Podemos ler num prefácio moderno
que La Boétie inspirou uma “revolução anônima e de baixa visibilidade de
um homem só” — certamente a mais pura forma imaginável de revolução.
O “voluntarismo” invoca La Boétie em apoio a sua tese de que toda
atividade política deve ser evitada, inclusive a votação democrática, por
conferir ao Estado uma falsa legitimidade. Alguns militantes do início do
movimento voluntarista se opunham ao sufrágio feminino, alegando que, se
os homens não deviam votar, tampouco deviam as mulheres.
O lado de “tranquila recusa” da política preconizada em Da servidão
voluntária exercia evidente atração sobre Montaigne. Ele concordava em
que o mais importante para enfrentar os abusos políticos era preservar a
própria liberdade mental — o que podia significar eximir-se da vida
pública, em vez de se envolver nela. Em sua insistência no distanciamento
de qualquer colaboração e na preservação da própria integridade, Da
servidão voluntária quase poderia ser um dos Ensaios de Montaigne,
escrito talvez numa fase inicial, quando ele ainda era polêmico e não havia
aperfeiçoado a arte de se sentar em todos os lados da cerca ao mesmo
tempo. Tal como Ralph Waldo Emerson lendo Os ensaios séculos depois,
Montaigne bem poderia ter exclamado, a respeito de Da servidão
voluntária: “Parecia que eu mesmo tinha escrito o livro, com tal sinceridade
ele dialogava com minhas ideias e minha experiência.”
Antes de sua apropriação pelos propagandistas huguenotes, ele
realmente pretendera integrá-lo ao próprio Os ensaios, naturalmente com o
devido crédito a La Boétie. Haveria de inseri-lo após o capítulo sobre a
amizade, aquele em que mais apaixonadamente escreve sobre os próprios
sentimentos. A ideia, ao que parecia, era incluir a obra como uma espécie
de estrela convidada ou atração principal, destacada pelos capítulos
circundantes como um quadro em sua moldura.
Na época da entrega do livro ao editor, contudo, a situação mudara. Da
servidão voluntária era visto já então como um panfleto revolucionário: em
vez de ser considerada uma homenagem à genialidade do amigo, como
pretendia Montaigne, a atitude pareceria uma provocação. De modo que ele
desistiu, mas deixou sua breve introdução, como um toco assinalando o
lugar da amputação. Escreveu ele: “Como constatei que esta obra veio a ser
trazida à luz, com más intenções, por aqueles que tentam perturbar ou
mudar a situação de nosso governo, sem se preocupar se poderão
aperfeiçoá-lo, e como além disso imiscuíram algumas de suas maquinações
nessa obra, mudei de ideia quanto a sua inclusão aqui.” Foi provavelmente
nessa altura que ele acrescentou seu comentário sobre o caráter juvenil e
experimental da obra.
Feito isto, ele também mudou de ideia a outro respeito. Não queria fazer
com que La Boétie parecesse insincero. Assim foi que acrescentou uma
nota dizendo que, naturalmente, La Boétie devia acreditar no que estava
escrevendo: não era o tipo de homem capaz de falar sem convicção.
Montaigne chegou a afirmar que o amigo teria preferido nascer em Veneza
— uma república — a nascer na cidadezinha de Sarlat, ou seja, no Estado
francês. Mas espere: isto fazia com que La Boétie ficasse mais uma vez
parecendo um rebelde! Uma nova reversão era necessária: “Mas ele tinha
outra máxima impressa de maneira soberana na alma, a de obedecer e
submeter-se religiosamente às leis sob as quais nascera.” No fim das contas,
Montaigne parece ter-se metido numa bela trapalhada por causa do panfleto
de La Boétie. Quase podemos vê-lo rabiscando todas essas ressalvas na
última hora num canto do escritório da gráfica, com o manuscrito retirado
ainda preso debaixo do braço.
Considerando-se que Da servidão voluntária estava àquela altura sendo
queimado em Bordeaux, já era corajoso da parte de Montaigne
simplesmente mencionar a obra, quanto mais justificá-la. Como sempre
contraditório, ele agia com prudência ao suspender a publicação, mas
demonstrava coragem ao defendê-la. Além disso, ao explicar de que
maneira La Boétie viera a escrevê-la, Montaigne na verdade revelava a
identidade do autor. Ela provavelmente já era conhecida, mas nenhuma das
publicações protestantes fora tão longe.
Tomada a decisão de não incluí-la, Montaigne escreveu: “Em
substituição a essa obra tão séria, incluirei outra, gerada na mesma estação
de sua vida, mais alegre e vigorosa.” Era uma coletânea de poemas de La
Boétie: não os que escrevera para si mesmo, mas um conjunto de 29
sonetos dedicados a uma jovem não identificada. Alguns anos depois,
contudo, Montaigne voltou a mudar de ideia e também os removeu. No fim
das contas, permaneceram apenas sua introdução e a dedicatória, além de
uma breve nota: “Estes versos podem ser encontrados em outro lugar.” Um
capítulo inteiro, o número 29 do Livro I, transformou-se em dupla
eliminação: um buraco ou toco de contornos irregulares, que Montaigne
deliberadamente se recusou a disfarçar. Ele chegou a chamar a atenção para
suas bordas desiguais. Era uma opção estranha, que não deixou de suscitar
muita especulação. Estaria Montaigne simplesmente acrescentando e
subtraindo materiais às pressas, sem se preocupar em dar acabamento ao
resultado, ou tentava alertar-nos para algo?
Uma teoria radical entrou e saiu de circulação algumas vezes nos últimos
anos. Como já observamos, Da servidão voluntária tem características tão
próprias de Montaigne que quase poderia ter sido escrito por ele. O livro
fala de hábitos, natureza, perspectivas e amizade — quatro temas que
reverberam ao longo de Os ensaios. Valoriza a liberdade interna como
caminho para a resistência política: uma posição tipicamente montaigniana.
E está cheio de exemplos da história clássica, tal como em Os ensaios. Ele
tem o jeito de um Ensaio. É persuasivo, divertido e dado a digressões. O
autor frequentemente sai por alguma tangente — por exemplo, derivando
por uma discussão sobre o grupo Plêiade de poetas quinhentistas — para
em seguida voltar aos trilhos com uma observação como “Mas, retornando
ao nosso tema, do qual praticamente me perdi”, ou “Mas, retornando do
ponto em que, não sei como, perdi o fio da minha discussão...”. Essa
divertida aparência de desorganização não parece habitual na prática
literária de um jovem, mas permeia de vida e espontaneidade o texto. O
autor nos fala como se estivéssemos tomando juntos uma taça de vinho ou o
tivéssemos encontrado por acaso numa esquina de Bordeaux. Surge, então,
a desconfiança: seria na verdade Montaigne, e não La Boétie, o autor de Da
servidão voluntária?
Mas deve ter sido mesmo La Boétie, vem, então, a resposta: cópias do
manuscrito estavam em circulação em Bordeaux. Ainda assim, nenhuma
das cópias remanescentes é um manuscrito de La Boétie — foram todas
feitas por outros —, e a única fonte de que dispomos sobre a história da
circulação em Bordeaux é o próprio Montaigne. É também ele que
identifica o autor como La Boétie, e é ele que se refere à obra como um
trabalho estudantil. Quem sabe esse Rimbaud adolescente fosse, na
verdade, o indivíduo temperamental dado a entrar e sair às pressas das
câmaras do parlement, e não o La Boétie de precoce sensatez. Ou quem
sabe não se tratava em absoluto de um trabalho juvenil, o que explicaria
certas referências anacrônicas no texto. Talvez até, como sugerem certos
entusiásticos adeptos da teoria da conspiração, Montaigne tivesse escrito o
texto muito mais tarde, inserindo os anacronismos para dar aos leitores
inteligentes uma pista do logro.
O primeiro a tentar atribuir Da servidão voluntária a Montaigne, em
1906, foi o montaignista independente Arthur-Antoine Armaingaud,
acostumado a lançar ideias chocantes e cruzar os braços para ver o circo
pegar fogo. Na época, quase ninguém concordou com ele, e são poucos hoje
os que concordam, mas sua hipótese conquistou a adesão de uma nova
geração de independentes, notadamente Daniel Martin e David Lewis
Schaefer. Este último quer identificar em Montaigne um fundo
revolucionário, como fazia Armaingaud, ao passo que Daniel Martin tende
a abordar o livro como uma espécie de jogo cifrado de palavras cruzadas,
cheio de pistas a serem seguidas. “Eliminar Da servidão voluntária de Os
ensaios seria como retirar a flauta de uma orquestra sinfônica”, escreve ele.
A ideia de Montaigne escrevendo um panfleto radical e protoanarquista,
desencadeando uma tempestade de poeira com informações falsas e
salpicando pistas para serem identificadas apenas pelos mais perceptivos, é
interessante em diferentes níveis. Como qualquer teoria da conspiração, ela
proporciona a emoção das peças que se encaixam, tornando Montaigne
glamoroso: um revolucionário solitário e um mestre da intriga.
Encontramos eventualmente em Os ensaios indícios de que Montaigne
era capaz de trapacear quando queria. Certa vez, ele se valeu de um truque
bem complicado para ajudar um amigo que sofria de impotência e se
considerava vítima de algum feitiço. Em vez de tentar fazê-lo entender a
situação, Montaigne deu-lhe uma túnica e uma moeda de aparência mágica,
com a representação de “figuras celestiais”. Disse-lhe então que realizasse
uma série de rituais com a medalha sempre que estivesse para ter relações
sexuais, primeiro depositando-a sobre os rins, depois prendendo-a à cintura
e por fim deitando-se com a parceira e estendendo a túnica sobre ambos. O
truque deu certo. Montaigne sentiu-se um pouco culpado, embora o tivesse
feito pelo bem do amigo. Mas o episódio mostra que ele era capaz de uma
trapaça se achasse que a situação o pedia, ou se a psicologia do caso o
fascinasse de alguma forma.
No geral, contudo, esse tipo de brincadeira era raro no seu caso, e ele
preferia dar ênfase à própria honestidade e abertura em todas as questões,
assim como a sua falta de talento para enigmas e quebra-cabeças. Isto tudo
podia fazer parte do jogo. Mas, se ele realmente fosse um trapaceiro de mão
cheia, teríamos de pôr em dúvida quase tudo que diz no livro — uma
perspectiva vertiginosa. Existem ainda outras implicações inquietantes. Se
Da servidão voluntária não foi escrito por La Boétie, então ele não era o
homem descrito por Montaigne em Os ensaios. Ele efetivamente existia,
mas sem traços claros: um código para a engenhosidade de Montaigne. E,
se não era excepcionalmente dotado — se não era o tipo de homem capaz
de escrever a Servidão —, por que Montaigne o amava tanto? Ele deve ter
tido motivos para um sentimento tão forte, e aparentemente não se tratava
dos belos olhos e da boa aparência de La Boétie, a menos que estivesse
mentindo sobre isto também.
Se levarmos a sério a história de amor entre os dois, a teoria
conspiratória torna-se praticamente inimaginável. Para Montaigne, atribuir
a Servidão a La Boétie para encobrir a própria autoria seria brincar com a
memória do amigo — que com toda a evidência respeitava quase ao ponto
da idolatria. É surpreendente que ele tenha revelado a autoria de La Boétie
no caso de uma obra que era queimada em praça pública em Bordeaux, mas
se o autor não era La Boétie, seria muito mais que surpreendente; seria uma
rematada traição, quase um ato de ódio. Nos escritos de Montaigne, nada
encontramos a respeito de La Boétie (inclusive nos comentários feitos num
diário de viagem que não se destinava a publicação) que sugerisse tais
sentimentos.
A intensidade dessa afeição recíproca também fornece uma explicação
convincente para a grande semelhança entre os estilos dos dois escritores.
Montaigne e La Boétie compartilhavam tudo, fundiam-se um no outro, não
como um escritor se funde com seu pseudônimo, mas como dois escritores
desenvolvem suas ideias em parceria — muitas vezes discutindo ou
discordando, mas constantemente absorvendo. Ao longo dos poucos anos
de convivência, Montaigne e La Boétie deviam conversar da manhã à noite:
sobre hábitos, sobre a necessidade de rejeitar ideias prontas e de alterar os
pontos de vista, sobre tirania e liberdade pessoal. Inicialmente, as ideias de
La Boétie seriam articuladas com mais clareza; mais tarde, é provável que
Montaigne o superasse, desenvolvendo ideias sobre costumes e perspectivas
em direções não imaginadas por La Boétie. Tudo isto acabaria incluído em
Os ensaios, que se transformaria num monumento a La Boétie sob vários
aspectos. As duas mentes de tal maneira se imbricavam que nem com as
melhores ferramentas críticas do mundo seria possível apartá-las.
Nenhum dos dois tinha motivos para pensar que não poderiam
prosseguir assim por décadas, tornando-se cada vez mais bem-sucedidos e
festejados em sua Atenas moderna. Mas o jovem Sócrates estava para ser
chamado de volta a casa, devendo abandonar o banquete.

LA BOÉTIE: MORTE E LUTO

Tudo começou na segunda-feira, 9 de agosto de 1563. La Boétie passara o


dia ao ar livre na propriedade de François de Péruse d’Escars, o homem que
se rebelara contra Lagebâton no parlement de Bordeaux. Nessa noite, La
Boétie deveria jantar com Montaigne, mas quando estava para deixar a
residência de d’Escars foi acometido de dores estomacais e diarreia.
Mandou então uma mensagem ao amigo falando de sua indisposição: não
poderia, Montaigne, então, vir ao seu encontro? Montaigne o fez. Tudo que
sabemos do que se seguiu procede de um relato mais tarde escrito por
Montaigne em forma de carta ao pai, e que ele viria a publicar.
Chegando à residência de d’Escars, Montaigne encontrou o amigo
sentindo dores. La Boétie disse-lhe ter contraído um resfriado depois de
passar todo o dia ao ar livre, mas a coisa parecia mais grave. Os dois
podiam já ter pensado na possibilidade de contrair a peste, que então se
disseminava pela região e em Bordeaux, assim como em Agenais, que La
Boétie visitara recentemente a trabalho. Se La Boétie já não tivesse
contraído a peste, corria agora esse risco, debilitado como estava.
Montaigne aconselhou-o a se transferir para uma região menos infectada e
se hospedar com a irmã e o cunhado, os Lestonnac. Mas La Boétie não se
sentia bem para viajar. Na realidade, já era tarde: com quase toda a certeza
ele já fora acometido da peste.
Montaigne partiu, mas na manhã seguinte a mulher de La Boétie mandou
chamá-lo, dizendo que o marido estava piorando. Montaigne retornou e, a
pedido de La Boétie, passou a noite lá: “Com mais afeto e insistência que
em qualquer outra ocasião, ele pediu que eu ficasse em sua companhia o
mais que pudesse. Isto me tocou muito.” Ele ficou também na noite
seguinte. O estado de La Boétie continuou piorando. No sábado, ele
reconheceu que sua doença era contagiosa e desagradável — dando a
entender que percebera se tratar da peste. Ele voltou a pedir que Montaigne
ficasse, mas apenas por breves períodos, para se expor menos a riscos.
Montaigne não atendeu a este último pedido. “Não voltei a deixá-lo”,
escreveu.
No domingo, La Boétie ficou profundamente debilitado e começou a
sofrer alucinações. Passada a crise, ele disse “que parecia ter ficado muito
confuso e nada via senão uma densa nuvem e uma espessa neblina em que
tudo era caótico e desordenado”. Montaigne tratou de tranquilizá-lo: “A
morte não guarda nada pior que isto, meu irmão”, ao que La Boétie retrucou
que, de fato, nada podia ser pior que aquilo. A partir desse momento,
confessaria a Montaigne, ele perdeu a esperança de se curar.
La Boétie decidiu organizar suas coisas, pedindo a Montaigne que
cuidasse da mulher e do tio se se deixassem abater pela dor. Quando La
Boétie se declarou pronto, Montaigne convocou a família ao quarto. Eles
“compuseram os rostos como podiam” e se sentaram ao redor da cama. La
Boétie disse-lhes o que pretendia deixar em testamento, especificando que o
essencial de sua biblioteca iria para Montaigne. Em seguida, mandou
chamar um padre. La Boétie com tal empenho se recompusera para as
disposições do leito de morte que Montaigne chegou a ter um momento de
esperança, mas, uma vez passado o esforço, o estado do amigo voltou a se
deteriorar.
Algumas horas depois, ainda à cabeceira de La Boétie, Montaigne disse-
lhe que “ruborizava de vergonha” ao vê-lo demonstrando mais coragem
diante da morte do que ele próprio se sentia capaz de reunir para presenciá-
la. Prometeu lembrar-se de seu exemplo quando chegasse o seu momento.
Sim, fez La Boétie, era uma boa ideia. Ele lembrou a Montaigne as muitas
conversas esclarecedoras que já haviam tido sobre tais questões. Aquela
experiência, dizia, era “o verdadeiro objeto de nossos estudos e da
filosofia”.
Tomando a mão de Montaigne, ele lhe garantiu que fizera na vida muitas
coisas mais dolorosas e difíceis. “E no fim das contas”, prosseguiu, “eu
estava preparado para isto havia muito tempo e sabia minha lição de cor”.
Como Montaigne àquela altura, ele seguira o conselho dos antigos e
ensaiara bem a própria morte. Afinal, continuou, ainda fazendo eco ao que
diziam os sábios, vivera de maneira saudável e feliz por bastante tempo.
Não havia lugar para arrependimento. Pois não chegara a uma bela idade?
“Eu estava para completar trinta e três anos”, disse. “Deus concedeu-me a
graça de ter tido até agora toda uma vida de saúde e felicidade. Diante da
inconstância do que é humano, não poderia mesmo durar mais.” A velhice
teria significado apenas sofrimento, podendo torná-lo mesquinho; melhor
era evitá-la. Montaigne parecia perturbado; La Boétie lembrou-lhe que
devia ser forte. “Mas, meu irmão, está querendo me amedrontar? Se eu
sentisse medo, quem mais, senão você, deveria afastá-lo de mim?”
La Boétie encontrava a perfeita morte do estoico, cheio de coragem e
sabedoria racional. Montaigne devia fazer sua parte: ajudar o amigo a
manter esta coragem e agir como testemunha, registrando os detalhes para
que outros aprendessem com a experiência. Talvez, ao fazê-lo, tenha
dourado ligeiramente a realidade, para fazer La Boétie parecer mais nobre e
corajoso do que efetivamente era. Mas talvez não; em La Boétie o
sentimento das virtudes clássicas era tão profundo que ele pode de fato ter-
se mostrado capaz de emular seus heróis filosóficos praticamente até o fim.
Como escreveria Montaigne, “sua mente fora moldada pelo padrão de
outras eras que não esta”.
Mas o próprio Montaigne era agora outro homem, e, à medida que
avança o seu relato, mais e mais transparece do seu verdadeiro eu: seu
ceticismo, sua sensibilidade para os detalhes embaraçosos e sua
determinação de contar as coisas tal como eram. Encontramos até
momentos de irreverência. Escrevendo sobre as falas de despedida de La
Boétie mais tarde naquele mesmo dia, ele comenta: “O quarto foi tomado
por gemidos e lágrimas, sem no entanto interromper o andamento de suas
falas, que estavam um pouco longas.”
Na manhã seguinte, segunda-feira, La Boétie perdia a consciência e a
recobrava sucessivas vezes, sendo reanimado com vinagre e vinho a cada
vez. Censurou então Montaigne: “Não está vendo que a partir de agora toda
ajuda que me der serve apenas para prolongar meu sofrimento?” Depois de
um desses desfalecimentos, ele perdeu temporariamente a visão. A
choradeira dos que o cercavam, sem que conseguisse vê-los, o deixou
horrorizado. “Meu Deus, quem é que me atormenta assim? Por que me
tiram desse grande e agradável repouso em que me encontro? Deixem-me
em paz, eu imploro.”
Um gole de vinho restaurou suas faculdades, mas ele se estava indo.
“Suas extremidades e mesmo o rosto estavam gelados, com um suor
mortífero que escorria pelo corpo; e já não se podia sentir qualquer sinal de
batimento do pulso.”
Na terça-feira ele recebeu a extrema-unção, pedindo ao padre, ao tio e a
Montaigne que rezassem por ele. Duas ou três vezes soltou gritos, dizendo a
certa altura: “Muito bem! Muito bem! Que ela venha quando quiser, estou
esperando, firme e forte.”
À noite, “restando apenas a aparência e a sombra de um homem”, ele
voltou a ter alucinações, desta vez com visões que, em seu relato a
Montaigne, eram “maravilhosas, infinitas e inefáveis”. Ele tentou
reconfortar a mulher, dizendo que tinha uma história a contar-lhe. “Mas
estou indo”, disse. Em seguida, vendo o seu alarme, corrigiu-se: “Estou
indo dormir.”
Ela deixou o quarto. La Boétie disse a Montaigne: “Meu irmão, fique
perto de mim, por favor.” Ainda havia muitas outras pessoas por perto;
Montaigne refere-se a elas como “toda a companhia”. No Renascimento,
ninguém fazia nada sozinho, muito menos morrer. Ao que parece, a mulher
de La Boétie foi a única pessoa dispensada.
Agora o moribundo se agitava, contorcendo-se violentamente na cama. E
começou a fazer pedidos estranhos. Escreve Montaigne:

Ele começou a me pedir repetidas vezes, com extremo afeto, que lhe
desse um lugar, de tal maneira que temi estivesse abalado o seu
discernimento. Mesmo quando protestei com toda a delicadeza que
ele estava se deixando levar pela doença e que não eram aquelas as
palavras de um homem em seu perfeito juízo, ele não cedeu,
inicialmente, repetindo com ênfase ainda maior: “Meu irmão, meu
irmão, você está me recusando um lugar?” Isto até que me forçasse a
convencê-lo pela razão e dizer-lhe que, como estava respirando e
falando e tinha um corpo, também tinha consequentemente o seu
lugar. “É verdade, é verdade”, respondeu-me ele, “eu tenho, mas não
é aquele de que preciso; e, no fim, não me resta um ser”.

Seria difícil saber responder a tais palavras. Montaigne tentou


reconfortá-lo: “Deus lhe dará muito breve um ser melhor”, disse.
“Ah, se eu já estivesse lá!”, fez La Boétie. “Estou há três dias tentando
partir.”
Nas três horas seguintes ele gritaria com frequência, escreveu
Montaigne, “simplesmente para saber se eu estava perto dele”. E ele sempre
estava.
Depois de começar de maneira convencional, a essa altura o relato de
Montaigne tornou-se ao mesmo tempo comovente e lúgubre. Ele parece
registrar o que realmente estava sendo dito e feito, independentemente do
significado filosófico. O próprio La Boétie já estava além da imitação de
modelos. Dizendo precisar de um lugar, ele parecia estar falando quase sem
consciência, como Montaigne faria alguns anos depois, enfurecido e se
contorcendo no próprio gibão.
Pelas duas horas da manhã ele conseguiu repousar, o que parecia um
bom sinal. Montaigne saiu do quarto para comunicá-lo à mulher de La
Boétie. Os dois ficaram satisfeitos com aquele progresso. Mas uma hora
depois, aproximadamente, quando Montaigne retornou ao quarto, La Boétie
mostrou-se agitado de novo. Disse uma ou duas vezes o nome de
Montaigne. Deu então um único suspiro e parou de respirar. La Boétie
estava morto — “aproximadamente às três horas da manhã da quarta-feira,
18 de agosto de 1563, depois de viver 32 anos, 9 meses e 17 dias”, segundo
o registro de Montaigne.
Era, portanto, a proximidade da morte — provavelmente o primeiro
encontro tão íntimo de Montaigne com a morte de alguém que amava tão
profundamente. A realidade física era chocante, especialmente
considerando-se que decorria de uma doença tão assustadora, embora
Montaigne nada diga de algum temor pessoal de infecção. Entre os
pensamentos que lhe devem ter passado pela cabeça está o que voltaria a
lhe ocorrer à luz de sua própria experiência: a esperança de que a morte
fosse tranquila para aquele que a enfrentava, por menos que, do exterior,
assim parecesse. Ele e La Boétie haviam discutido a questão certa vez:
Montaigne achava que isto podia ser verdade e La Boétie discordava. Pois
agora Montaigne devia desejar ardentemente que tivesse razão. Seria
melhor pensar que La Boétie sentira apenas bem-aventurança enquanto seu
corpo suava e lutava. Mais tarde, quando Montaigne veio a escrever sobre
sua própria experiência de perda da consciência, quase podemos vê-lo
retomando a velha discussão e perguntando ao amigo: “Viu só, você não
sofreu, não é mesmo?”, na esperança de que La Boétie respondesse: “Não.”
Embora ele sublimasse seu pesar na literatura, a dor de Montaigne foi
devastadora e parecia aumentar com o tempo. Depois da morte de La
Boétie, tudo ficou “uma sombria e escura noite”. Viajando pela Itália quase
18 anos depois, ele anotaria em seu diário íntimo: “Esta manhã, escrevendo
a Monsieur d’Ossat, fui acometido de pensamentos tão dolosos sobre
Monsieur de La Boétie, e por tanto tempo fiquei nesse estado de ânimo,
sem me recuperar, que isto me fez um grande mal.” Ele também escreveu,
em Os ensaios, sobre seu desejo de um autêntico companheiro na Itália —
alguém cuja maneira de ser se harmonizasse com a sua e que gostasse de
fazer as mesmas coisas. “Tenho sentido enorme falta de um homem assim
nas minhas viagens.”

Nenhum prazer tem sabor para mim sem comunicação. Nem uma só
ideia alegre me ocorre sem que eu fique aborrecido por tê-la
produzido sozinho, sem ter para quem oferecê-la.

Ele nunca descartou a possibilidade de encontrar alguém para assumir o


lugar de La Boétie. Era uma recomendação de Sêneca: um homem sábio
deve ser tão capaz de fazer novos amigos que possa substituir um antigo
sem perder o ritmo. Às vezes, em Os ensaios, Montaigne parece estar
acenando a eventuais candidatos: ele manifesta a esperança de que o livro
agrade a “algum homem de valor” que venha ao seu encontro. Mas na
realidade não achava que alguém pudesse substituir o original. Mostrava-se
sempre desencantado:

Não é uma tolice da minha parte sentir-me fora de sintonia com mil
pessoas das quais me aproxima o acaso, sem as quais não posso viver,
para no entanto aferrar-me a (...) um fantástico desejo de algo que não
posso recapturar?

Sempre que Montaigne se mostra distante ou desligado das outras


pessoas, como às vezes acontece, devemos nos lembrar de La Boétie.
As  pessoas, escreve ele, não devem ser “unidas e coladas a nós tão
fortemente que não se possam desvincular sem rasgar nossa pele e também
um pouco da nossa carne”. São palavras de um homem que sabe
perfeitamente como é sentir-se esfolado assim.
Enquanto o amigo ainda era vivo, aparentemente havia momentos em
que Montaigne se rebelava contra essa influência benéfica de La Boétie,
mas já agora não restavam traços disto. Com o anteparo de segurança da
morte de La Boétie, Montaigne podia render-se a ele sem reservas — e
podia fazer o que La Boétie lhe implorara que fizesse: dar-lhe um lugar.
Para começar, integrou muitos dos livros de La Boétie à sua biblioteca,
abrindo espaço para o amigo entre os seus bens mais preciosos. Depois,
escreveu sobre a morte de La Boétie, resgatando o máximo que conseguiu
lembrar do testamento do jovem filósofo à posteridade. Preparou para
publicação uma pilha de originais de La Boétie. Finalmente, ao se
aposentar da vida pública, fez do amigo o espírito-guia de sua nova carreira.
Ao lado da inscrição principal sobre a própria aposentadoria, ele
acrescentou outra na parede da biblioteca: ela está hoje em dia desgastada,
sendo de difícil decifração, mas aparentemente dedica todo o seu futuro
“trabalho estudioso” à memória de La Boétie, “o mais doce, querido e
íntimo amigo” que o século XVI podia ter produzido. La Boétie
acompanharia todas as atividades de Montaigne em sua biblioteca: seria o
seu anjo da guarda literário.
Com sua morte, La Boétie deixava de ser um companheiro real e
imperfeito de Montaigne, transformando-se numa entidade ideal sob seu
controle. Era já agora não tanto uma pessoa, mas uma espécie de técnica
filosófica. Sêneca recomendava aos seguidores que usassem os amigos
dessa maneira. No contato com um homem admirável, dizia, o indivíduo
deve visualizá-lo como um público sempre presente, para estar
constantemente verificando seus padrões mais elevados. Em vez de viver
para nós mesmos, escreveu, devemos viver para os outros — e, acima de
tudo, para um amigo escolhido.
Montaigne dispunha-se a experimentar qualquer truque nessa direção,
desde que trouxesse consolo. Numa das dedicatórias aos livros póstumos de
La Boétie, escreveria ele: “Ele continua presente em mim, tão inteiro e tão
vivo, que não posso acreditar que esteja tão irrevogavelmente enterrado ou
tão totalmente afastado de nossa comunicação.” Permitir que La Boétie
continuasse vivo dentro dele era uma maneira de cumprir o desejo do amigo
no leito de morte, ao mesmo tempo aliviando a própria solidão. Enquanto
isso, recorria a técnicas de distração e diversão para enfrentar o choque
imediato da perda. Acima de tudo, ele descobria os benefícios terapêuticos
da escrita. Oferecendo a narrativa da morte e a despedida de La Boétie ao
mundo em forma escrita, se permitia reviver a cena, para poder seguir em
frente. Ele nunca superou completamente a perda de La Boétie, mas
aprendeu a estar no mundo sem ele, e, com isto, a mudar a própria vida. O
ato de escrever sobre La Boétie acabaria por levá-lo a escrever seu Os
ensaios: o melhor truque filosófico de todos.
6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques

OS PEQUENOS TRUQUES E A ARTE DE VIVER

M
ontaigne costumava demonstrar desdém pelos filósofos
acadêmicos, sendo avesso a seu pedantismo e a suas abstrações.
Mas evidenciava perene fascínio por outra tradição filosófica, a
das grandes escolas pragmáticas que exploravam questões como a maneira
de enfrentar a morte de um amigo, desenvolver a coragem, agir com
correção em situações moralmente delicadas ou aproveitar o melhor
possível a vida. Eram as filosofias para as quais se voltava em épocas de
dor ou medo, e também para orientação no lidar com problemas menores do
dia a dia.
Os três sistemas de pensamento mais conhecidos dessa tendência eram o
estoicismo, o epicurismo e o ceticismo: as filosofias conhecidas como
helenísticas, por terem sua origem na era em que o pensamento e a cultura
gregos se espraiaram até Roma e outras regiões mediterrâneas, a partir do
terceiro século a.C. Havia diferenças de detalhe, mas elas estavam tão
próximas no essencial que quase sempre parecia difícil distingui-las. Como
todo mundo, Montaigne as misturava e combinava de acordo com suas
necessidades.
Todas essas escolas tinham o mesmo objetivo: alcançar um modo de
vida conhecido na língua grega como eudaimonia, termo que costuma ser
traduzido como “felicidade”, “alegria” ou “desabrochar humano”. Isto
queria dizer viver bem em todos os sentidos: desenvolver-se, desfrutar a
vida, ser uma boa pessoa. Elas também consideravam que o melhor
caminho para a eudaimonia era a ataraxia, que poderia ser traduzida como
“imperturbabilidade” ou “estar livre de ansiedade”. Ataraxia significa
equilíbrio: a arte de manter o prumo, sem exultar quando as coisas vão bem
nem mergulhar no desespero quando vão mal. Alcançar esse estado é
exercer controle sobre as emoções, para não ser golpeado e arrastado por
elas como um osso disputado por uma matilha de cães.
Foi sobre a questão de como alcançar essa tranquilidade que os filósofos
começaram a discordar. Cada um deles tinha uma concepção diferente, por
exemplo, do quanto deveríamos ceder ao mundo real. A comunidade
epicurista original, fundada por Epicuro no século IV a.C., pregava o
afastamento da família, para que os seguidores vivessem como membros de
um culto num “jardim” particular. Os céticos preferiam continuar
mergulhados no alvoroço da vida comum, mas assumindo uma atitude
mental radicalmente diferente. Os estoicos se posicionavam mais ou menos
entre as duas opiniões. Os dois autores estoicos mais conhecidos, Sêneca e
Epíteto, escreviam para leitores da elite romana profundamente envolvidos
nas questões de seu tempo e sem possibilidade de se isolar em jardins, mas
desejosos de encontrar oásis de tranquilidade e autodomínio onde quer que
fosse possível.
Os estoicos e os epicuristas também compartilhavam boa parte de suas
respectivas teorias. Consideravam que a capacidade de desfrutar a vida
pode ser comprometida por duas grandes fraquezas: falta de controle das
emoções e tendência a dar muito pouca atenção ao presente. Se essas duas
questões fossem resolvidas — controlar e prestar atenção —, a maioria dos
problemas se resolveria sozinho. O fator de complicação é que as duas
coisas são quase impossíveis de se fazer. Revelam-se tão difíceis que não
podem ser enfrentadas diretamente. É necessário abordá-las de ângulos
laterais, tratando de se induzir habilmente a alcançá-las.
Em função disso, os pensadores estoicos e epicuristas dedicavam-se com
afinco a conceber técnicas e experiências mentais. Por exemplo: imagine
que hoje seja o último dia da sua vida. Você está preparado para enfrentar a
morte? Imagine até que este exato momento – agora! — é o último
momento da sua existência. Como você se sente? Tem arrependimentos?
Existem coisas que gostaria de ter feito de outra forma? Está realmente vivo
neste momento ou se vê consumido pelo pânico, a recusa, o remorso? Esta
experiência abre seus olhos para aquilo que é importante para você,
lembrando que o tempo está constantemente escorrendo pelos seus dedos.
Certos estoicos chegavam a interpretar este “último momento” com
cenário e participação de um elenco de apoio. Sêneca escreveu sobre um
homem saudável chamado Pacúvio, que diariamente promovia para si
mesmo um funeral com todos os detalhes, terminando com um banquete
após o qual era levado da mesa para a cama num esquife, enquanto
convidados e criados cantavam “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida”.
Você pode obter o mesmo efeito de maneira mais simples e barata, apenas
mantendo no espírito a ideia do próprio fim e prestando-lhe toda a atenção.
O autor epicurista Lucrécio sugeria que nos imaginássemos no momento da
morte, contemplando duas possibilidades. Ou vivemos bem, e neste caso
podemos prosseguir satisfeitos, como um convidado que deixa a festa bem-
alimentado. Ou não foi este o caso, e então não faz diferença que estejamos
perdendo a vida, já que não sabíamos o que fazer com ela de qualquer
forma. Pode não ser de grande reconforto no leito de morte, mas se
pensarmos a respeito no meio da vida, teremos ajuda para mudar de
perspectiva.
Essas mudanças de atitude são o objetivo de muitas dessas experiências
mentais. Se você perdeu alguém ou algo precioso, pode tentar atribuir-lhe
um valor diferente imaginando que não chegou a conhecer essa pessoa ou a
ter o objeto. Como poderia sentir falta de algo que nunca teve? Um ponto
de vista diferente gera uma emoção diferente. Plutarco sugeriu essa tática
em uma carta à mulher após a morte da filha de dois anos, aconselhando-a a
pensar na época em que a menina ainda não nascera e fingir que voltavam a
viver esses dias. Não sabemos se lhe serviu de consolo, mas pelo menos
proporcionou-lhe algo em que se concentrar, em vez de ficar nadando num
oceano uniforme de dor. Montaigne e La Boétie conheciam bem essa carta,
pois La Boétie a traduzira para o francês e Montaigne editou a tradução
para publicação. É possível que ela viesse ao espírito de Montaigne toda
vez que morria um de seus filhos, assim como no momento da perda de La
Boétie. A amizade tivera duração tão breve que não seria difícil recordar
um período anterior a ela e resgatar a despreocupação dos tempos pré-La
Boétie.
Esses truques da imaginação podem ser usados tanto em situações
mundanas quando nas mais extremas; funcionam até frente a sentimentos
mais brandos de tédio ou depressão. Se você se sente cansado de tudo que
possui, sugere Plutarco, finja que perdeu todas essas coisas e sente
desesperadamente a sua falta. Seja o objeto um prato predileto, um amigo,
uma amante ou a sorte de viver numa época de paz com boa saúde, o
exercício faz com que magicamente o valorizemos. O princípio é o mesmo
quando ficamos pensando na morte: defrontando-nos com a ideia de perder
algo agora, damo-nos conta do seu valor.
A chave disso tudo é cultivar a plena atenção: prosoche, outra expressão
grega fundamental. A atenção plena é o truque por trás de muitos outros
truques. É um chamado a cuidar do mundo interior – e com isto também do
mundo exterior, pois as emoções descontroladas toldam a realidade assim
como as lágrimas obstruem a vista. Aquele que clareia a visão e vive
plenamente consciente do mundo tal como se apresenta, diz Sêneca, nunca
se sentirá entediado com a vida.
Além disso, a pessoa que não passa pelo mundo sonambulicamente tem
liberdade para reagir adequadamente às situações, sem hesitação — como
se respondessem a perguntas feitas à queima-roupa, na formulação de
Epíteto. Um ataque violento, uma briga, a perda de um amigo: são
exigências com que a vida nos defronta, semelhante a um professor
tentando nos apanhar distraídos na aula. Até mesmo um momento de tédio
representa uma pergunta desse tipo. O que quer que aconteça, por mais
imprevisto que seja, devemos estar em condições de reagir de maneira
precisa e adequada. Por isto é que, para Montaigne, aprender a viver
“adequadamente” (à propos) é a “grande e gloriosa obra-prima” da vida
humana.
Os estoicos e os epicuristas tratavam de alcançar essa meta sobretudo
pelo treino e a meditação. Como um jogador de tênis praticando gestos e
jogadas durante horas, eles se valiam do treinamento para talhar fulcros de
hábito, pelos quais a mente poderia correr com a naturalidade da água no
leito do rio. É uma forma de auto-hipnose. O grande imperador romano
Marco Aurélio, adepto do estoicismo, mantinha cadernos de anotações para
articular as mudanças de perspectiva que quisesse inculcar em si mesmo:
Como é bom, quando temos carne assada ou alimentos assim diante
de nós, trazer à mente que se trata do corpo morto de um peixe, ou o
corpo morto de um pássaro ou porco; e também que o vinho de
Falerno não passa de sumo de uvas, e que a sua túnica de debrum
vermelho é simplesmente pelo de carneiro embebido em sangue de
moluscos! E nas relações sexuais, que não passam de fricção de uma
membrana e emissão de um jorro de fluido.

Em outras ocasiões, ele se imaginava alçando voo até o céu, para olhar
para baixo e constatar a insignificância das preocupações humanas vistas
dessa distância. Sêneca também o fazia: “Contemple mentalmente a vasta
extensão do abismo do tempo e aprecie o universo; em seguida, contraste
nossa assim chamada vida humana com o infinito.”
Outra prática dos estoicos consistia em visualizar o tempo dando voltas
sobre si mesmo, pela eternidade. Sócrates assim nasceria de novo e
ensinaria em Atenas, exatamente como da primeira vez; cada borboleta
bateria as asas da mesma maneira; cada nuvem passaria na mesma
velocidade. Você mesmo voltaria a viver, tendo os mesmos pensamentos e
emoções que antes, sempre e sempre, sem fim. Esta ideia aparentemente
aterrorizante trazia conforto, pois — exatamente como outras ideias —
reduzia a menores proporções os problemas passageiros do indivíduo. Ao
mesmo tempo, como tudo que ele tivesse feito voltaria para assombrá-lo,
tudo importava. Nada era descartado, nada podia ser esquecido. Meditar a
respeito nos obrigava a prestar mais atenção à maneira como conduzíamos a
vida cotidiana. Apresentava um desafio, mas também levava a uma espécie
de aceitação, que os estoicos chamavam de amor fati, ou amor ao destino.
Escrevia o estoico Epíteto:

Não queira que tudo que acontece aconteça da maneira como deseja,
mas deseje que tudo aconteça como efetivamente acontece, e terá uma
vida serena.

Devemos ser capazes de aceitar tudo tal como é, de bom grado, sem
ceder ao vão desejo de alterar as coisas. Montaigne aparentemente achava
fácil este truque, que lhe era natural. “Se eu tivesse de viver de novo”,
escreveu, animadamente, “voltaria a viver como vivi”. Mas a maioria das
pessoas precisava treinar, e aí é que entravam os exercícios mentais.
Sêneca tinha um truque radical para o exercício do amor fati. Ele sofria
de asma, quase chegando a sufocar durante os ataques. Muitas vezes achava
que podia estar para morrer, mas aprendeu a se valer de cada um desses
ataques como uma oportunidade filosófica. Embora a garganta se cerrasse e
os pulmões arfassem em busca de ar, ele tentava acolher o que lhe
acontecia, dizendo “sim”. Eu quero isto, pensava; e, se necessário, aceito
morrer disto. Quando o ataque cedia, ele se sentia mais forte, pois
enfrentara e derrotara o medo.
Os estoicos gostavam particularmente desses impiedosos treinos mentais
das coisas mais temidas. Os epicuristas tendiam mais a desviar a vista das
coisas terríveis, para se concentrar no que fosse positivo. Um estoico
comporta-se como alguém que tencione os músculos da barriga,
convidando um oponente a esmurrá-los. Um epicurista prefere abster-se de
tal convite, simplesmente saindo do caminho quando acontecem coisas
adversas. Se os estoicos são boxeadores, os epicuristas estão mais próximos
dos praticantes das artes marciais orientais.
Na maioria das situações, Montaigne se identificava mais com a
abordagem dos epicuristas e levava suas ideias ainda mais longe. Ele dizia
invejar os malucos, pois sempre estavam mentalmente em algum outro
lugar — numa forma extremada desse desvio de foco epicurista. Que
importava se a visão do mundo de um maluco fosse distorcida, desde que
ele fosse feliz? Montaigne contava à sua maneira relatos clássicos como o
de Licas, que levava normalmente a vida e mantinha um trabalho de forma
bem-sucedida apesar de acreditar que tudo que via e presenciava acontecia
num palco, como uma montagem teatral. Curado dessa ilusão por um
médico, Licas ficou tão infeliz que o processou por privá-lo do prazer de
viver. Da mesma forma, um homem chamado Trasilau alimentava a crença
de que todo navio que entrava ou saía do porto de Pireu, onde morava,
transportava cargas maravilhosas exclusivamente para ele. Sentia-se
permanentemente feliz, pois se rejubilava a cada chegada de um navio ao
porto com segurança, sem se preocupar com o fato de as cargas nunca
aparecerem em sua casa. Infelizmente, seu irmão Crito tratou da ilusão e
tudo se acabou.
Nem todo mundo pode se valer da insanidade, mas todos podem facilitar
a própria vida abaixando um pouco o feixe de luz da razão. No caso da
mágoa, em particular, Montaigne descobriu que não tinha como se
recuperar simplesmente tentando se convencer de que deveria. Até tentou
recorrer a certos truques estoicos, e não tinha medo de centrar a atenção na
morte de La Boétie para escrever seu relato a respeito. Mas na maioria dos
casos achava melhor desviar a atenção para algo completamente diferente:

Um pensamento doloroso se apodera de mim; acho mais fácil mudá-


lo que subjugá-lo. Trato de substituí-lo pelo seu contrário, ou, se não
for possível, sempre outro diferente. A variação sempre consola,
dissolve e dissipa. Quando não posso combater, trato de escapar; e na
fuga eu me esquivo, cheio de truques.

Ele se valia da mesma técnica para ajudar os outros. Certa vez, tentando
consolar uma mulher que efetivamente sofria (ao contrário de outras viúvas,
dá ele a entender) pela morte do marido, ele contemplou inicialmente os
métodos filosóficos mais habituais: lembrando-lhe que nada se pode ganhar
com lamentações ou tentando convencê-la de que ela podia até nem ter
conhecido o marido. Mas acabou optando por um truque diferente, “muito
suavemente tratando de desviar, pouco a pouco, nossa conversa para temas
próximos, e em seguida mais remotos”. Inicialmente, a viúva não parecia
prestar muita atenção, mas os outros temas acabaram por capturar seu
interesse. Desse modo, sem que ela se desse conta do que acontecia,
escreveu ele, “eu imperceptivelmente a afastei desse pensamento doloroso,
mantendo-a de bom ânimo e perfeitamente apaziguada enquanto me
mantive a seu lado”. Ele reconhecia que o procedimento não permitira ir às
raízes da dor, mas lhe facultara superar uma crise imediata,
presumivelmente dando tempo para o início de uma recuperação natural.
Parte disso derivava das leituras epicuristas de Montaigne, parte, de uma
experiência pessoal acumulada a duras penas. “Fui certa vez atingido por
uma dor assoberbante”, escreveu ele, com toda a evidência pensando em La
Boétie. Ela poderia tê-lo destruído, se se tivesse escorado apenas em sua
força racional para superá-la. Em vez disso, entendendo que precisava de
“um violento esforço para desviar a atenção”, ele conseguiu desenvolver
uma atração por alguém. Montaigne não identifica a pessoa, e o episódio
parece não ter tido maior significado, mas serviu para dar um destino a suas
emoções.
Truques semelhantes podiam funcionar com outra emoção indesejável, a
raiva: Montaigne conseguiu certa vez curar um “jovem príncipe”,
provavelmente Henrique de Navarra (o futuro Henrique IV), de uma
perigosa paixão pela vingança. Ele não convenceu o príncipe em sentido
contrário nem o aconselhou a dar a outra face ou lembrou as trágicas
consequências que poderiam decorrer. Nem sequer mencionou os objetos da
raiva ou da vingança:

Deixei a paixão em paz e cuidei de fazê-lo apreciar a beleza de uma


imagem oposta, a honra, a aprovação e a boa vontade que ele poderia
adquirir com clemência e bondade. Tratei de desviá-lo para a
ambição. É assim que se faz.

Em épocas posteriores da vida, Montaigne valeu-se do truque de desviar


a atenção para enfrentar seu próprio medo de envelhecer e morrer. Os anos
o arrastavam na direção da morte; ele nada podia fazer, mas não precisava
encarar a coisa de frente. Pelo contrário, voltou-se na direção oposta,
acalmando-se com o prazer da contemplação da própria juventude e
infância. Desse modo, explicava, conseguiu “suavemente contornar e
desviar meu olhar desse céu nebuloso e tempestuoso que tenho à frente”.
Ele de tal maneira se tornou um conhecedor das técnicas de diversão que
até passou a admirar as manipulações políticas, desde que não fossem
usadas em apoio da tirania. Um episódio que apreciava era aquele em que
Zaleuco, príncipe dos lócrios na Grécia antiga, reduziu o excesso de gastos
no reino. Determinou que qualquer mulher poderia ser atendida por várias
criadas, mas só quando estivesse bêbada, e que poderia usar quantas joias
de ouro e vestidos bordados quisesse, se estivesse trabalhando como
prostituta. Um homem poderia usar anéis de ouro se fosse cafetão. Deu
certo: as joias de ouro e a criadagem numerosa desapareceram da noite para
o dia, mas ninguém se rebelou, pois ninguém achou que tivesse sido
forçado a nada.
De sua própria experiência de aproximação com a morte, Montaigne
aprenderia que o melhor antídoto para o medo era confiar na natureza; “Não
ocupe sua cabeça com isto.” Com a perda de La Boétie, ele já descobrira
que era esta a melhor maneira de enfrentar a dor. A natureza tem seus
próprios ritmos. A distração funciona precisamente porque vai ao encontro
daquilo de que são feitos os seres humanos: “Nossos pensamentos estão
sempre em algum outro lugar.” Para nós, é perfeitamente natural perder o
foco, esquivar-se tanto das dores quanto dos prazeres, “mal chegando a
roçar-lhes a crosta”. Precisamos apenas nos permitir ser como somos.
Montaigne selecionava em suas leituras estoicas e epicuristas o que lhe
convinha, assim como seus leitores sempre haveriam de extrair de Os
ensaios aquilo de que precisavam, sem se preocupar com o resto. No caso
de seus contemporâneos, isto significava apegar-se aos trechos mais
estoicos e epicuristas de sua obra. Eles interpretavam seu livro como um
manual do bem viver, saudando nele um filósofo ao velho estilo, capaz de
se ombrear com os fundadores. Seu amigo Étienne Pasquier chamou-o de
“um outro Sêneca em nossa língua”. Outro amigo e colega de Bordeaux,
Florimond de Raemond, exaltaria a coragem de Montaigne frente aos
tormentos da vida, recomendando aos leitores que se voltassem para ele em
busca de sabedoria, especialmente quanto à melhor maneira de enfrentar a
morte. Num soneto publicado em edição de 1595 do livro de Montaigne,
Claude Expilly elogiava o autor, definindo-o como um “estoico
magnânimo”, e comentava calorosamente o estilo viril de sua escrita, sua
intrepidez e sua capacidade de infundir força à mais fraca das almas. Os
“corajosos ensaios” de Montaigne serão louvados pelos séculos dos séculos,
escrevia Expilly, pois — como os antigos — ele ensina às pessoas a falar
bem, viver bem e morrer bem.
Temos aqui a primeira indicação das transformações por que passaria
Montaigne no espírito dos leitores ao longo dos séculos, à medida que cada
geração o adotava como fonte de esclarecimento e sabedoria. Cada grupo
de leitores encontrava nele mais ou menos o que esperava encontrar, e em
muitos casos o que eles próprios depositavam na obra. O primeiro público
de Montaigne foi o do alto Renascimento, cheio de neoestoicos e
neoepicuristas fascinados pela questão de como viver bem e como alcançar
a eudaimonia frente ao sofrimento. Eles o tomaram como um dos seus,
transformando-o num best-seller. Desse modo, lançavam as bases de sua
fama póstera como filósofo pragmático e guia na arte de viver.

MONTAIGNE ESCRAVIZADO

O truque de Montaigne de absorver La Boétie em si mesmo, como se fosse


um fantasma ou alguém que secretamente compartilhasse tudo que fazia,
talvez parecesse ir de encontro a seu plano de se distrair da dor. Mas à sua
maneira era efetivamente uma forma de diversão, desviando-o dos
pensamentos de perda para uma nova forma de conceber sua vida presente.
Abriu-se uma fenda entre seu ponto de vista e aquele que imaginava seria
adotado por La Boétie, de tal maneira que, a qualquer instante, ele podia
passar de um a outro. Terá talvez surgido daí a ideia de que, como escreveu
em outro momento, “somos, não sei como, duplos em nós mesmos”.
O próprio Montaigne observou que talvez não tivesse escrito Os ensaios
se não houvesse aberto esse espaço em si mesmo. Se tivesse “alguém com
quem conversar”, escreveu, talvez tivesse publicado apenas cartas, uma
forma literária mais convencional. Em vez disso, precisou desenvolver
interiormente seu diálogo com La Boétie. O crítico moderno Anthony
Wilden comparou essa manobra à dialética senhor/escravo na filosofia de
G. W. F. Hegel: La Boétie tornou-se o senhor imaginário de Montaigne,
ordenando-lhe que trabalhasse, enquanto Montaigne se transformou no
escravo dócil que sustentava a ambos com o trabalho da escrita. Era uma
forma de “servidão voluntária”. Dela nasceu Os ensaios, quase como um
subproduto do truque adotado por Montaigne para enfrentar a dor e a
solidão.
A morte de La Boétie certamente impôs a Montaigne uma escravidão
literária mais terra a terra, na forma de uma pilha de manuscritos inéditos.
Eles não eram particularmente incomuns ou originais, à exceção de Da
servidão voluntária (presumindo-se que fosse de fato obra de La Boétie),
mas mereciam melhor destino que o acúmulo de poeira. Fosse porque La
Boétie lhe pedira ou por iniciativa própria, Montaigne transformava-se em
editor póstumo do amigo — um trabalho exigente, que deu impulso a sua
própria carreira literária.
Surpreendentemente, considerando-se seu temperamento disciplinado, os
manuscritos de La Boétie estavam ao que parece completamente
desordenados. Numa das dedicatórias da publicação, Montaigne diz ter
“diligentemente reunido tudo que estivesse completo entre seus cadernos de
anotações e papéis espalhados aqui e ali”. Era uma tarefa formidável, mas
ele encontrou muitas coisas dignas de publicação, entre elas os sonetos de
La Boétie. Havia também traduções de textos clássicos, como a carta de
Plutarco à mulher consolando-a da morte do filho e a primeira tradução
francesa jamais feita do Oeconomicus de Xenofonte, um tratado sobre a arte
da boa gestão de terras e propriedades — tema relevante para Montaigne,
que estava para abrir mão de sua carreira em Bordeaux.
Tendo organizado os manuscritos, Montaigne acompanhou a impressão
de uma coletânea. Viajou então a Paris para entrar em contato com os
editores e promover a publicação. Para cada um dos textos de La Boétie, ele
prestava homenagem a um patrono, elaborando polidas e obsequiosas
dedicatórias a pessoas influentes como Michel de L’Hôpital e vários
notáveis de Bordeaux — assim como sua própria mulher, no caso da carta
de Plutarco. Por mais convencional que fosse o gênero da “epístola de
dedicatória”, as que saíram da sua pena eram vivazes e cheias de
personalidade. Ele também acresceu o livro de um texto de caráter ainda
mais pessoal: seu relato da morte de La Boétie. Todo esse empenho
confirma a impressão de que ele estabelecera uma parceria literária com a
memória de La Boétie, e de que os dois podiam contemplar um grande
futuro juntos. A experiência muito ensinou a Montaigne a respeito do
mundo editorial e do que os parisienses da moda gostavam de ler,
informações que haveriam de se revelar úteis.
O relato da morte de La Boétie foi publicado em forma de uma carta ao
pai de Montaigne: uma estranha escolha. É possível que Pierre o tivesse
exortado a escrevê-la. Ele certamente já o fizera antes. Por volta de 1567,
incumbira o filho de uma missão literária das mais desafiadoras, que
também contribuíra para transformá-lo num escritor.
Esta anterior solicitação parece ter representado uma tentativa de Pierre
de livrar o filho de uma constante tendência à ociosidade; era mais um
daqueles “truques” impingidos em benefício da vítima. Mesmo já entrado
na casa dos trinta, Montaigne ainda tinha algo de um adolescente
ressentido. Estava insatisfeito com a carreira de magistrado, nada
interessado na vida de cortesão, torcendo o nariz para o direito e indiferente
à gestão e à ampliação da propriedade. Além disso, não obstante seu
interesse pela literatura, não dava sinais de se empenhar muito em escrever.
É possível que Pierre, dando-se conta de que não viveria muito mais, tenha
sentido que Montaigne precisava preparar-se para as responsabilidades de
que logo seria investido. Estava na hora de enfrentar um desafio.
Micheau queria escrever: muito bem, que escreva! Pierre entregou-lhe
um volume de 500 páginas in folio escrito por um teólogo catalão mais de
um século antes, num latim inflado, e disse: “Meu filho, por favor me
traduza isto para o francês quando tiver um tempinho.”
Teria sido uma boa maneira de afastar Montaigne dos cometimentos
literários pelo resto da vida; e talvez fosse mesmo o que Pierre tentava
fazer. Por sorte, contudo, o livro não era apenas longo e tedioso. Também
apregoava um tipo de teologia detestado por Montaigne, o que o tirou da
letargia. Mais que o trabalho nos originais de La Boétie, mais talvez até que
a elaboração da carta descrevendo os últimos momentos do amigo, a
tradução solicitada pelo pai acendeu a fagulha que um dia arderia
plenamente em Os ensaios.
O livro intitulava-se Theologia naturalis, sive liber creaturarum
(Teologia natural, ou livro das criaturas). O autor, Raymond Sebond, o
havia escrito em 1436, mas ele só seria publicado em 1484, ainda assim
muito antes da época de Montaigne e Pierre. Fora dado a Pierre por um dos
amigos livrescos que gostava de cultivar, mas o latim era difícil demais para
ele, de modo que o volume ficou relegado numa pilha de papéis. Anos
depois, examinando a pilha, algo no livro, talvez sua espessa e resistente
inescrutabilidade, trouxe-lhe à mente o filho meio desencaminhado.
A decisão de Pierre de deixá-lo de lado quando deixou e, mais tarde,
tirá-lo do esquecimento pode ter tido a ver com o fato de o livro
inicialmente ter sido condenado pela Igreja, para depois voltar a cair em
suas graças. Theologia naturalis foi incluído no Índex de livros proibidos
em 1558 mas retirado em 1564, pois preconizava um tipo de teologia
“racional” a cujo respeito a Igreja vivia mudando de ideia. O debate
centrava-se na alegação de que as verdades religiosas podiam ser
comprovadas por argumentos racionais ou pelo exame de provas
encontradas na natureza. Sebond considerava que esta comprovação era
possível, o que o situava em posição diametralmente oposta à de Montaigne
e, por certo período, à da Igreja. Montaigne tendia mais para uma posição
conhecida como fideísmo, que não depositava qualquer expectativa na
razão ou no esforço humano, negando que os homens pudessem alcançar o
conhecimento de verdades religiosas senão pela fé. Montaigne talvez não
tivesse tanta necessidade de fé, mas sentia profunda aversão à pretensão
humana — e o resultado era o mesmo.
Assim foi que Montaigne se viu diante da tarefa de traduzir 500 páginas
de argumentação teológica destinada a comprovar uma afirmação de que
discordava. “Foi uma ocupação muito estranha e nova para mim”, escreveu.
Em Os ensaios, ele tentou fazer parecer que tinha abordado a tarefa com
desprendimento. “Como na época eu estava por acaso desocupado”, disse,
“e incapaz de desobedecer a qualquer ordem do melhor pai que jamais
existiu, tratei de me desempenhar da melhor maneira possível”. Mas deve
ter sido um projeto e tanto, demandando um ano ou mais para sua
conclusão. É provável que ele próprio se tenha surpreendido com o
resultado alcançado. O trabalho o estimulou como a areia a uma ostra.
Enquanto escrevia, devia pensar o tempo todo: “Mas... mas...” e mesmo
“Não! Não!”. Sentiu-se forçado a questionar as próprias ideias. Ainda que
naquele momento não questionasse o texto profundamente, ele certamente o
fez quando veio a ser convidado alguns anos depois (provavelmente por
Marguerite de Valois, a irmã do rei, mulher do protestante Henrique de
Navarra) a escrever um ensaio em defesa do livro — ou seja, a defender
uma obra que considerava indefensável.
Este viria a ser seu “Apologia de Raymond Sebond”, o décimo segundo
capítulo do Livro II de Os ensaios. Trata-se, de longe, do texto mais longo
do livro, quase absurdamente desproporcional em relação ao resto. Na
edição de 1580, os outros 93 capítulos têm em média nove páginas e meia,
enquanto a “Apologia” ocupa 248. Estilisticamente, contudo, ele se encaixa
perfeitamente. Encanta o leitor e entretece complexos padrões de digressão,
tal como os demais capítulos, conferindo peso a Os ensaios sob vários
aspectos. Sem ele, o livro teria exercido menos influência nos séculos
posteriores. Teria sido menos detestado, por alguns, mas também menos
lido.
“Apologia” significa “defesa”; e de fato o ensaio começa como uma
defesa de Sebond. Mas persiste nesta linha por aproximadamente meia
página, desviando-se para algo muito diferente: algo muito mais parecido
com um ataque. Como diria mais tarde o crítico Louis Cons, ele apoia
Sebond “como a corda dá apoio ao enforcado”.
Como, então, chamar o texto de “apologia”? O truque de Montaigne é
simples. Ele alega estar defendendo Sebond dos que tentaram atacá-lo
recorrendo a argumentos racionais. E o faz demonstrando que os
argumentos racionais, em geral, são falíveis, pois não se pode confiar na
própria razão humana. Assim, ele defende um racionalista frente a outros
racionalistas, sustentando que qualquer coisa que se baseie apenas na razão
não tem valor. A defesa de Montaigne solapa os inimigos de Sebond, é bem
verdade, mas solapa ainda mais fatalmente o próprio Sebond. E disto ele
teria, é claro, perfeita consciência.
Não obstante a extensão e a complexidade, o ensaio é invariavelmente
interessante. Isto porque Montaigne adota uma técnica de Plutarco,
construindo sua argumentação pelo acúmulo de estudos de caso. Histórias e
fatos se derramam a cada parágrafo feito flores de uma cornucópia.
Praticamente cada história constitui um exemplo e uma ilustração da
inutilidade da razão humana, da debilidade dos poderes humanos e do grau
de tolice e ilusão de cada um — incluindo dele mesmo, Montaigne, como
reconhece alegremente.
Muitos exemplos derivam do próprio Plutarco. Mas a força propulsora
por trás dessa “Apologia” nada apologética não é de Plutarco — ou não é
apenas sua. Ela provém da terceira das grandes filosofias helenísticas, a
mais estranha delas: o ceticismo pirrônico.
7. P. Como viver? R. Questione tudo

SÓ SEI QUE NADA SEI, E NEM DISTO ESTOU CERTO

A
o lado do estoicismo e do epicurismo, o ceticismo parece um
elemento discrepante. Os outros dois parecem caminhos óbvios
em direção à tranquilidade e ao “desabrochar humano”, ensinando
a cada um como se preparar para as dificuldades da vida, a prestar atenção,
desenvolver bons hábitos de pensamento e praticar truques terapêuticos em
si mesmo. O ceticismo já parece algo mais limitado. Um cético é
considerado alguém que está sempre em busca de provas, duvidando de
tudo em que as outras pessoas acreditam à primeira vista. Parece que estão
envolvidas apenas questões ligadas ao conhecimento, e não a questão de
saber como viver. No Renascimento, contudo, e no mundo clássico em que
o ceticismo surgiu, juntamente com as outras filosofias pragmáticas, ele era
encarado de maneira diferente.
Como as outras, o ceticismo redundava numa forma de terapia. Era, pelo
menos, o que se poderia dizer do ceticismo pirrônico, originado pelo
filósofo grego Pirro, que morreu aproximadamente em 275 a.C., e
posteriormente desenvolvido com maior rigor por Sexto Empírico no
segundo século da nossa era. (O ceticismo “dogmático” ou “acadêmico”, o
outro tipo dessa filosofia, teve menor alcance.) Podemos ter uma ideia do
estranho efeito do pirronismo sobre as pessoas pela reação de Henri
Estienne, quase contemporâneo de Montaigne e primeiro tradutor francês
de Sexto Empírico, ao ter contato com as Hypotyposes de Sexto.
Trabalhando certo dia em sua biblioteca, mas sentindo-se doente e cansado
para levar adiante as tarefas habituais, ele encontrou um exemplar ao
remexer numa velha caixa de manuscritos. Mal começou a ler e se viu rindo
tão desabridamente que esqueceu o cansaço e recobrou a energia
intelectual. Outro estudioso da época, Gentian Hervet, teve uma experiência
semelhante. Também deparou com Sexto por acaso, na biblioteca de seu
patrão, e viu abrir-se a sua frente todo um mundo de leveza e prazer. A obra
não servia tanto para instruir ou convencer os leitores, mas para fazê-los
sorrir.
Um leitor moderno que percorresse as Hypotyposes talvez se perguntasse
o que havia ali de tão divertido. O livro realmente contém alguns exemplos
curiosos, como tantas vezes acontece em livros de filosofia, mas não parece
assim tão engraçado. Não fica claro por que teria curado Estienne e Hervet
de seu tédio — ou por que teve tanto impacto em Montaigne, que o
consideraria o perfeito antídoto para Raymond Sebond e suas ideias solenes
e pomposas sobre a importância humana.
A chave do truque é a revelação de que nada na vida precisa ser levado a
sério. O pirronismo nem sequer se leva a sério. O ceticismo dogmático
comum declara a impossibilidade do conhecimento, resumindo-se na
observação de Sócrates: “Só sei que nada sei.” O ceticismo pirrônico
começa deste ponto, mas então acrescenta: “E nem mesmo disto estou
certo.” Tendo afirmado seu único princípio filosófico, ele dá a volta num
círculo e se autodevora, deixando para trás apenas uma baforada de
absurdo.
Assim é que os pirrônicos encaram os problemas que a vida lhes venha a
apresentar recorrendo a uma única palavra que resume esta manobra: em
grego, epokhe, que significa “suspensão do julgamento”. Ou, numa versão
diferente exposta em francês pelo próprio Montaigne, je soutiens: “Eu
retenho.” Essa frase vence qualquer inimigo, desmonta-o de tal maneira que
ele se desintegra em átomos diante de nossos olhos.
Isto parece tão pouco animador quanto o conceito estoico ou epicurista
de “indiferença”. Mas, assim como as outras ideias helenísticas, funciona, e
é o que importa. A epokhe funciona quase como os intrigantes koans do
zen-budismo: conceitos lacônicos e enigmáticos ou perguntas sem resposta
como “Qual é o som de uma mão aplaudindo?”. Inicialmente, esses
enunciados causam apenas perplexidade. Mais adiante, abrem caminho para
uma sabedoria que tudo abarca. Esta semelhança entre o pirronismo e o
zen-budismo talvez não seja acidental: Pirro visitou a Pérsia e a Índia com
Alexandre, o Grande, interessando-se pela filosofia oriental — não pelo
zen-budismo, que ainda não existia, mas por certos precursores.
O truque da epokhe nos faz rir e nos sentir melhor porque nos liberta da
necessidade de encontrar uma resposta clara para tudo. Para usar um
exemplo de Alan Bailey, historiador do ceticismo, se alguém afirma que o
número de grãos de areia no Saara é par, exigindo sua opinião a respeito,
sua resposta mais natural poderia ser: “Não tenho uma resposta” ou “Como
poderia saber?”. Ou então, se quiser parecer mais filosófico: “Mantenho
meu julgamento em suspenso” – epokhe. Se outra pessoa disser: “Besteira!
É claro que o número de grãos de areia no Saara é ímpar”, você ainda assim
diria epokhe, no mesmo tom inalterável. Na verdade, você responde com a
afirmação impassível que o próprio Sexto citou como definição de epokhe:

Não sei dizer qual das coisas propostas eu deveria considerar


convincente e qual não deveria considerar convincente.

Ou então:

No momento não me sinto inclinado a postular dogmaticamente nem


a rejeitar qualquer dos elementos contemplados nesta investigação.

Ou ainda:

A toda explicação por mim examinada que pretenda estabelecer


alguma coisa dogmaticamente, parece-me que se opõe outra
explicação pretendendo estabelecer algo dogmaticamente equivalente
à anterior em capacidade persuasória ou na falta dela.

Esta última formulação, em especial, deveria ser memorizada, por sua


utilidade no sentido de calar qualquer um que venha com alegações
absurdas sobre o Saara ou o que quer que seja. Ao enunciá-la, sentimos uma
espécie de calma mental se apoderar de nós. Não temos como saber a
resposta e percebemos que isto não importa, de modo que a ausência de
comprometimento não causa angústia.
Para um pirrônico, isto se aplica mesmo quando as questões são mais
complexas. Estaria certo mentir para alguém para fazê-lo sentir-se melhor?
Epokhe. Meu gato é mais bonito que o seu? Eu sou mais bondoso que você?
O amor traz a felicidade? Existem guerras justas? Epokhe. E assim por
diante. Um autêntico pirrônico mantém o julgamento suspenso mesmo
diante de perguntas que para as pessoas comuns deveriam ter uma resposta
óbvia. As galinhas botam ovos? As outras pessoas realmente existem?
Estou olhando neste momento para uma xícara de café? É epokhe o tempo
todo.
Os pirrônicos não o faziam para se desestabilizar profundamente,
atirando-se num vórtice paranoide de dúvidas, mas para alcançar um estado
de relaxamento frente a tudo. Era o caminho que haviam encontrado para a
ataraxia — meta por eles compartilhada com os estoicos e os epicuristas —
e, portanto, para a alegria e o desabrochar humano. A vantagem mais óbvia
é que os pirrônicos não precisavam preocupar-se com o erro. Se levam a
melhor numa discussão, eles mostram que estão certos. Se saem perdendo,
isto prova apenas que estavam certos ao duvidar do próprio conhecimento.
Isto os torna ao mesmo tempo muito tranquilos e muito teimosos. Eles
gostam de sustentar pontos de vista impopulares, por puro divertimento.
Escreveu Montaigne:

Se alguém afirma que a neve é negra, eles sustentam, em sentido


inverso, que é branca. Se alguém disser que não é uma coisa nem
outra, cabe a eles sustentar que ela é ambas as coisas. Se você diz,
com certo discernimento, que nada sabe a respeito, eles retrucarão
que sabe. Sim, e se você lhes afirmar, num axioma taxativo, que está
em dúvida a respeito, eles insistirão em argumentar que não é
verdade, ou que você não tem como avaliar e provar que está em
dúvida.

A essa altura, eles provavelmente terão sido calados com um murro no


nariz, mas nem assim se incomodam, pois não os perturba a ideia de alguém
irritado com eles, nem tampouco se deixam abater mais que o necessário
pela dor física. Quem pode afirmar que a dor é pior que o prazer? E se um
caco de osso penetrar em seu cérebro e matá-los, e daí? Acaso é melhor
viver que morrer?
“Salve, sossego cético!”, escreveu o poeta irlandês Thomas Moore,
muito depois de Montaigne:

Deixadas para trás as ondas do erro,


Como é doce tocar enfim seu porto seguro,
E suavemente ondulando na dúvida,
Sorrir dos ventos fortes que lá fora guerreiam!

Tão imenso era esse sossego que podia apartar totalmente os céticos das
pessoas comuns — muito embora, ao contrário dos epicuristas em seu
Jardim, eles preferissem continuar envolvidos no mundo real. Corriam
histórias extraordinárias sobre o próprio Pirro. Ele era considerado tão
indiferente e tranquilo que não reagia a nada. Caminhando, não mudava de
rumo nem mesmo diante de precipícios ou carroças que se aproximavam,
de modo que os amigos tinham de estar constantemente intervindo para
salvá-lo. E, como recordaria Montaigne, “quando começava a dizer algo,
nunca deixava de ir até o fim, ainda que aquele com quem falava se tivesse
afastado”, pois não queria deixar-se apartar da realidade interna pelas
alterações externas.
Mas outros relatos deixam transparecer que nem mesmo Pirro era capaz
de se manter todo o tempo em perfeita indiferença. Um amigo o
surpreendeu “em exaltada altercação” com a irmã, acusando-o de trair os
próprios princípios. “Mas como? Acaso deve esta tola servir também de
prova das minhas próprias regras?”, retrucou Pirro. Em outra ocasião, sendo
visto a se defender de um cão enfurecido, ele reconheceu: “É muito difícil
despir completamente o homem.”
Montaigne adorava os dois tipos de histórias: as que mostravam Pirro
radicalmente distante dos comportamentos normais e também aquelas em
que parecia simplesmente humano. E, como autêntico cético, ele tentava
suspender o julgamento a respeito de todas elas. Considerava mais
provável, todavia, que Pirro fosse um homem comum como ele mesmo,
apenas tentando enxergar com clareza e não deixar de dar às coisas seu
devido valor.
Ele não queria se transformar numa pedra ou num pedaço de tronco;
queria tornar-se um homem vivo, pensante, dotado de  razão,
desfrutando dos prazeres e confortos da natureza, valendo-se de todas
as suas faculdades corporais e espirituais.

Segundo Montaigne, Pirro abria mão apenas da pretensão da qual a


maioria das pessoas era refém: a de “arregimentar, manipular e fixar a
verdade”. Era o que verdadeiramente interessava a Montaigne na tradição
cética: não tanto a abordagem radical do empenho de evitar a dor e o
sofrimento (neste sentido, ele preferia os estoicos e os epicuristas, que
pareciam sintonizados mais de perto com a vida real), mas o desejo de
encarar tudo de maneira transitória e questionadora. Era o que ele mesmo
sempre tentara fazer. Para manter sempre em mente essa meta, mandou
cunhar em 1576 uma série de medalhas, com a inscrição da palavra mágica
de Sexto, epokhe (grafada erradamente como epekho), ao lado de suas
armas e do símbolo da balança. As balanças são outro símbolo pirrônico,
destinado a lembrá-lo sempre de manter o equilíbrio e pesar bem as coisas,
em vez de apenas aceitá-las.
As imagens por ele usadas eram incomuns, mas o mesmo não se pode
dizer da ideia de inscrever coisas tão pessoais em medalhas ou jetons: era
uma moda da época, funcionando ao mesmo tempo como lembrete e sinal
de pertencimento ou identidade. Se Montaigne fosse um jovem do início do
século XXI, e não do século XVI, provavelmente o teria feito em forma de
tatuagem.
Se a medalha realmente se destinava a lembrar-lhe seus próprios
princípios, funcionou: o ceticismo o guiava no trabalho, na vida doméstica e
na escrita. Os ensaios está impregnado dele: suas páginas estão cheias de
vocábulos e expressões como “talvez”, “em certa medida”, “eu acho”,
“parece-me” e assim por diante — formulações que, no dizer do próprio
Montaigne, “abrandam e moderam a dureza de nossas afirmações”,
exemplificando o que o crítico Hugo Friedrich chamava de sua filosofia da
“modéstia”. Não se trata de floreios supérfluos, mas do próprio pensamento
de Montaigne, em seu estado mais puro. Ele não se cansava desse tipo de
pensamento, ou de estontear a própria mente contemplando os milhões de
vidas vividas ao longo da história e a impossibilidade de saber a verdade a
seu respeito. “Ainda que tudo que a nós chegou por relatos do passado fosse
verdadeiro e conhecido por alguém, seria menos que nada em comparação
com o que é desconhecido.” Quão insignificante é o conhecimento até
mesmo da pessoa mais curiosa, refletia ele, e como é assombroso, em
comparação, o mundo. Para citar Hugo Friedrich novamente, Montaigne
tinha uma “profunda necessidade de se surpreender com o que é único, o
que não pode ser classificado, o misterioso”.
E de tudo que era misterioso, nada o espantava mais que ele mesmo, o
mais insondável dos fenômenos. Incontáveis vezes, ele se apanhou
mudando de opinião de um polo ao outro, ou pulando de uma emoção a
outra em questão de segundos.

Minha base é tão instável e insegura, acho-a tão vacilante e pronta a


resvalar, e minha visão é tão falível, que de estômago vazio sinto-me
um outro homem que depois de uma refeição. Se minha saúde me
sorri, assim como o brilho de um belo dia, sou um excelente sujeito;
se um grão de milho me machuca o dedo do pé, mostro-me mal-
humorado, desagradável e inabordável.

Nem mesmo suas percepções mais simples merecem confiança. Quando


ele está com febre ou tomou um remédio, tudo tem um sabor diferente ou se
apresenta com outras cores. Um mero resfriado basta para toldar a mente; a
demência viria um dia a tirá-la completamente de esquadro. O próprio
Sócrates podia ser transformado num perfeito idiota por um derrame ou
alguma lesão cerebral, e se fosse mordido por um cão raivoso começaria a
dizer absurdos. A saliva do cão podia tornar “toda a filosofia, se ela fosse
encarnada, doida varrida”. E é precisamente esta a questão: para Montaigne,
a filosofia é encarnada. Ela vive em seres humanos individuais e falíveis,
estando portanto permeada de incerteza. “Os filósofos, ao que me parece,
praticamente nunca abordavam esse ângulo.”
E o que dizer das percepções das diferentes espécies? Acertadamente,
Montaigne supõe (como fizera Sexto antes dele) que outros animais
enxergam as cores de forma diferente dos seres humanos. Seremos talvez
nós, e não eles, que as vemos “erradamente”. Não temos como saber quais
são efetivamente as cores. Os animais têm faculdades que em nós são
débeis ou inexistentes, e talvez algumas delas sejam essenciais para o pleno
entendimento do mundo. “Formamos uma verdade através da cooperação e
orientação de nossos cinco sentidos; mas talvez precisemos da convergência
de oito ou dez sentidos, com suas contribuições, para percebê-la com
certeza e em sua essência.”
Esta observação aparentemente casual na verdade postula uma ideia
chocante: que é possível que nossa própria natureza nos impeça de ver as
coisas como elas são. A perspectiva de um ser humano talvez não seja
meramente tendente a erros eventuais, mas limitada por definição,
exatamente como em geral (e de forma arrogante) presumimos ser a
inteligência de um cão. Só alguém com excepcional capacidade de escapar
ao próprio ponto de vista imediato poderia alimentar semelhante ideia, e era
precisamente este o talento de Montaigne: saber esquivar-se à visão pessoal
para dar uma olhada em si mesmo com uma pirrônica suspensão de
julgamento. Nem mesmo os criadores do ceticismo foram tão longe.
Duvidavam de tudo ao seu redor, mas geralmente não levavam em conta
quanto estavam implicados no mais recôndito de suas almas nessa incerteza
geral. Montaigne o fazia o tempo todo:

Nós, e nosso julgamento, e todas as coisas mortais estão


incessantemente fluindo e girando. Desse modo, nada certo se pode
estabelecer sobre uma coisa em detrimento de outra, estando o que
julga e o que é julgado em contínuo movimento e mudança.

Pode parecer um beco sem saída, vedando toda possibilidade de


conhecer o que quer que seja, já que nada pode ser avaliado em relação a
nada, mas também pode ser uma abertura para uma nova maneira de viver.
Torna tudo mais complicado e mais interessante: o mundo se transforma
numa vasta paisagem multidimensional em que cada ponto de vista deve ser
levado em consideração. Precisamos apenas lembrar este fato, para nos
“tornarmos sábios a nossas próprias custas”, no dizer de Montaigne.
Mesmo para ele, a disciplina da atenção exigia constante esforço:
“Realmente devemos empenhar nossa alma no esforço de tomar consciência
de nossa própria falibilidade.” Seu Os ensaios ajudava. Ao escrevê-lo, ele
se posicionava como um rato de laboratório e ao mesmo tempo se
contemplava de lápis e papel na mão. Cada esquisitice constatada o enchia
de júbilo. Ele sentia prazer até nos lapsos de memória, pois serviam para
lembrá-lo de suas falhas, livrando-o do erro de insistir em que estava
sempre certo. Havia apenas uma exceção a essa regra de “tudo questionar”:
ele fazia questão de deixar claro que considerava sua fé religiosa acima de
qualquer dúvida. Aceitava os dogmas da Igreja Católica, e ponto final.
Isto pode surpreender os leitores modernos. Hoje, o ceticismo e a
religião institucionalizada são em geral considerados em polos opostos,
representando esta última a fé e a autoridade, enquanto o primeiro se alia à
ciência e à razão. Na época de Montaigne, as linhas divisórias eram
traçadas de outra maneira. Em seu sentido moderno, a ciência ainda não
existia, e a razão humana só raramente era considerada algo que se
impusesse por si mesmo, sem o respaldo de Deus. A ideia de que a mente
humana fosse capaz de descobrir algo por si mesma era exatamente a idea a
cujo respeito os céticos podiam mostrar-se mais céticos. E a Igreja dava
então primazia à fé sobre a “teologia racional”, de modo que naturalmente
via no pirronismo um aliado. Atacando a arrogância humana, o ceticismo
pirrônico mostrava-se particularmente útil frente à “inovação” do
protestantismo, que dava prioridade ao raciocínio individual e à consciência
sobre o dogma.
Assim foi que, durante várias décadas, o catolicismo abraçou o
pirronismo, corroborando livros como a tradução de Sexto por Henri
Estienne e Os ensaios de Montaigne como antídotos valiosos à heresia.
Montaigne ajudou com seus ataques à arrogância racional, e também com
as muitas outras declarações abertas de fideísmo espalhadas por sua obra. A
religião, escreveu, deve chegar a nós vinda de Deus, por meio de uma
“infusão extraordinária”, e não mediante nossos próprios esforços. Deus
entra com o saquinho de chá, e nós com a água e a xícara. E, se não
recebermos diretamente a infusão, basta confiar na Igreja, que é uma
espécie de samovar autorizado, cheio de uma fé pré-fermentada. Montaigne
deixava claro reconhecer o direito da Igreja de governá-lo em questões
religiosas, chegando mesmo a policiar seus pensamentos. Numa época em
que as pessoas corriam atrás de novidades, escreveu, o princípio da
obediência cega o salvara muitas vezes:

Caso contrário, eu não conseguiria me impedir de estar


constantemente rolando daqui para ali. Assim foi que, pela graça de
Deus, mantive-me intacto, sem agitação ou perturbação da
consciência, nas antigas crenças da nossa religião, em meio a tantas
seitas e divisões geradas por nosso século.

É difícil dizer se as perturbações que ele tinha em mente eram


espirituais, ou se estava pensando mais no inconveniente de ser chamado de
herético e ver seus livros queimados. O fideísmo podia ser um bom pretexto
para os secretamente descrentes. Tendo rendido preito a Deus e se
imunizado contra acusações de irreligiosidade, o indivíduo podia
teoricamente mostrar-se tão secular quanto quisesse. Que acusação poderia
ser feita contra alguém que preconizava a submissão a Deus e à doutrina da
Igreja em cada detalhe? Na verdade, a Igreja acabou por se dar conta do
perigo, e no século seguinte lançara descrédito sobre o fideísmo. Àquela
altura, no entanto, quem quisesse tomar esse rumo podia fazê-lo
impunemente. Estaria Montaigne nessa categoria?
É verdade que ele dava poucos sinais de real interesse pela religião. Os
ensaios nada tinha a dizer sobre a maioria das ideias cristãs: ele parece
indiferente aos temas do sacrifício, do arrependimento ou da salvação, e não
demonstra medo do Inferno nem anseio pelo Céu. A ideia de que existem
bruxas e demônios em ação no mundo merece menos atenção que a de que
existem gatos hipnotizando pássaros para que caiam das árvores. Quando
cisma a respeito da morte, Montaigne parece esquecer que supostamente
acredita na vida após a morte. Diz coisas assim: “Mergulho de cabeça,
estupidamente, na morte (...) como se fosse um abismo silencioso e escuro
que me engole de um só golpe e me subjuga num instante com um sono
pesado, livre de sentimentos e dor.” Os teólogos do século seguinte ficavam
horrorizados com essa imagem da ausência de Deus. Outro tema pelo qual
Montaigne não demonstra interesse é Jesus Cristo. Ele escreve sobre a
morte digna de Sócrates e Catão de Útica, mas não se lembra de mencionar
a crucificação. O mistério sagrado da redenção o deixa indiferente. Ele se
preocupa muito mais com a moralidade secular, envolvendo questões de
compaixão e crueldade. Como resumiu o crítico moderno David Quint,
Montaigne provavelmente interpretaria a mensagem de Cristo crucificado à
humanidade como “Não crucifiquem as pessoas”.
Por outro lado, é improvável que Montaigne fosse um ateu de
carteirinha. No século XVI, praticamente ninguém o era. E não seria
surpreendente descobri-lo genuinamente atraído pelo fideísmo. Ele
combinava ao mesmo tempo com sua filosofia cética e seu temperamento
pessoal, pois não obstante seu amor à independência ele muitas vezes
preferia abrir mão do controle, especialmente de coisas que não o
interessassem muito. Além disso, o que quer que realmente pensasse do
Deus de elevação do fideísmo, era muito maior sobre ele a atração do que
está aqui embaixo.
Seja como for, o resultado é que ele levou a vida sem enfrentar
problemas sérios com a Igreja: um feito e tanto para um homem que
escrevia com tanta liberdade, vivendo na fronteira entre terras católicas e
protestantes e ocupando cargos públicos numa época de guerras religiosas.
No período da década de 1580 em que viajou pela Itália, funcionários da
Inquisição chegaram a examinar Os ensaios, fazendo uma lista de pequenas
objeções. Uma delas dizia respeito ao uso da palavra “Fortuna”, em vez da
expressão oficial “Providência”. (Providência vem de Deus, abrindo espaço
para o livre-arbítrio; Fortuna se refere a algo além do nosso controle.)
Outras centravam-se no fato de ele citar poetas heréticos, tentar desculpar o
imperador apóstata Juliano, considerar cruel qualquer coisa mais severa que
uma simples execução e recomendar que as crianças fossem criadas com
liberdade e naturalidade. Mas a Inquisição não se preocupou com sua visão
da morte, suas reservas quanto aos processos por bruxaria ou muito menos
seu ceticismo.
Na verdade, foi o ceticismo de Os ensaios que lhe conferiu tanto sucesso
na primeira publicação, juntamente com o estoicismo e o epicurismo nele
evidenciados. Ele despertava o interesse de leitores refletidos e
independentes, mas também dos religiosos mais ortodoxos. Agradava a
homens como Florimond de Raemond, colega de Montaigne em Bordeaux,
católico zeloso que em seus escritos tinha como tema favorito a iminente
chegada do Anticristo e o advento do Apocalipse. Raemond recomendava
que as pessoas lessem Montaigne para se fortalecer contra a heresia,
louvando em especial a “bela Apologia”, por sua abundância de relatos
demonstrando como sabemos pouco deste mundo. Tomou emprestadas
várias dessas histórias num capítulo de sua obra L’Antichrist, intitulado
“Coisas estranhas cujas razões desconhecemos”. Por que um elefante
enfurecido se acalma ao dar com uma ovelha?, perguntava. Por que um
touro indomável torna-se dócil ao ser amarrado a uma figueira? E como
exatamente uma rêmora prende pelas garras o casco de um navio ao mar?
Raemond mostra-se tão amável e demonstra tão vívido espanto ante as
maravilhas da natureza que precisamos nos beliscar para lembrar que ele
acreditava na iminência do fim do mundo. O fideísmo suscitava com efeito
aproximações muito estranhas: extremistas e moderados seculares se
juntavam no desejo de se assombrar com a própria ignorância.
Desse modo, o Montaigne da fase inicial era adotado pelos ortodoxos
como um devoto e sábio cético, um novo Pirro e também um novo Sêneca:
o autor de um livro ao mesmo tempo consolador e de aprimoramento moral.
Parece surpreendente, assim, que no fim do século seguinte fosse evitado
com horror, sendo Os ensaios incluído no Índex de livros proibidos, para
nele permanecer por quase 180 anos.
O problema começou com a discussão de um tema que poderia parecer
de menor importância: os animais.

ANIMAIS E DEMÔNIOS

O truque favorito de Montaigne para solapar a vaidade humana era contar


histórias de animais como as que tanto intrigavam Florimon de Raemond —
muitas extraídas de Plutarco. Ele as apreciava porque eram divertidas, mas
tinham um propósito sério. Os contos sobre a inteligência e a sensibilidade
dos animais demonstravam não só que as capacidades humanas estavam
longe de ser excepcionais, mas, principalmente, que os animais fazem
muitas coisas melhor que nós.
Os animais podem mostrar-se muito aptos, por exemplo, à ação
cooperativa. Os bois, os porcos e outros animais formam grupos para se
defender. Quando um peixe-papagaio é fisgado por um pescador, outro vem
mastigar a linha do anzol para libertá-lo. Ou então, quando um deles é
apanhado na rede, outros projetam a cauda pela rede para que ele a agarre
com os dentes e seja puxado para fora. Até mesmo espécies diferentes
colaboram dessa maneira, como o peixe-piloto que guia a baleia ou o
pássaro que palita os dentes do crocodilo.
O atum demonstra uma sofisticada compreensão da astronomia: ao
chegar o solstício de inverno, o cardume inteiro para exatamente onde se
encontra na água e lá permanece até o seguinte equinócio de primavera.
Esses peixes também têm conhecimentos de geometria e aritmética, pois já
se observou que formam conjuntamente um cubo perfeito de seis lados
iguais.
Em termos morais, os animais se revelam pelo menos tão nobres quanto
os seres humanos. Em matéria de arrependimento, quem pode superar o
elefante, que ficou tão mortificado por ter matado seu guardião num acesso
de fúria que se deixou morrer de fome? E que dizer da fêmea do alcião, ou
martim-pescador, que fielmente carrega o companheiro ferido nos ombros,
se necessário pelo resto da vida? Esses amorosos pássaros também mostram
gosto pela tecnologia: usam espinhas de peixe para construir uma estrutura
que serve ao mesmo tempo de ninho e embarcação, cuidando até de testar a
eventual existência de fendas com vazamento perto da praia, antes de lançá-
la em mar aberto.
Os animais nos superam nos mais diversos tipos de capacidades. Os
seres humanos mudam de cor, mas de forma descontrolada: ficamos
ruborizados quando envergonhados e pálidos quando assustados. Com isto,
ficamos no mesmo nível que os camaleões, que também mudam ao sabor
do acaso, mas muito aquém do polvo, capaz de misturar suas cores como e
quando quiser. Nós e os camaleões só podemos contemplar com admiração
o poderoso polvo — um verdadeiro choque para a vaidade humana.
Apesar de tudo isto, nós, seres humanos, continuamos nos considerando
diferentes de todas as demais criaturas, mais parecidos com deuses que com
camaleões ou peixes-papagaio. Nunca nos ocorre emparelhar-nos entre os
animais ou nos colocarmos em seu lugar. Mal paramos para nos perguntar
se eles acaso têm uma mente. Para Montaigne, contudo, basta observar um
cão sonhando para perceber que deve ter um mundo interior, exatamente
como o nosso. Uma pessoa sonhando sobre Roma ou Paris evoca
interiormente uma Roma ou uma Paris insubstancial; da mesma forma, um
cão sonhando com uma lebre certamente vê uma lebre desencarnada
correndo em seu sonho. É o que podemos perceber pela agitação de suas
patas: uma lebre está correndo à sua frente em algum lugar, embora “uma
lebre sem pele nem ossos”. Exatamente como nós, os animais inventam
fantasmas para povoar seu mundo interior.
As histórias de animais contadas por Montaigne pareceram ao mesmo
tempo deliciosas e inócuas aos primeiros leitores. No mínimo, eram
moralmente úteis, mostrando que os seres humanos são criaturas modestas
que não podem esperar domínio ou compreensão de muita coisa nesse
mundo de Deus. Entretanto, à medida que o século XVI passava à história e
o XVII avançava, as pessoas foram ficando cada vez mais incomodadas
com esta autoimagem de seres menos refinados ou capazes que um polvo.
Parecia algo degradante, mais que um simples convite à humildade. Na
década de 1660, a “Apologia”, onde se encontra a maioria desses histórias
de animais, já não era encarada como um tesouro de sabedoria edificante.
Mais ficava parecendo um estudo de caso de tudo aquilo que dera errado
com a moral do século anterior. A fácil aceitação, em Montaigne, da
falibilidade humana e de nosso lado animalesco era já agora algo a
combater — quase um truque do próprio Diabo.
Bem característica dessa nova atitude foi a denúncia feita do púlpito, em
1668, pelo bispo Jacques-Bénigne Bossuet. Segundo ele, Montaigne
prefere os animais aos homens, seus instintos a nossa razão, sua
natureza simples, inocente e direta (...) a nossos refinamentos e
malícias. Mas diga-me, sutil filósofo, que se ri com tanta inteligência
do homem, por se imaginar algo [mais que um animal], acaso
considera como se nada significasse conhecer Deus?

O tom desafiador era novidade, assim como o sentimento de que era


preciso defender a dignidade humana de um inimigo “sutil”. O século XVII
já não veria em Montaigne um sábio, enxergando nele um impostor
subversivo. Suas histórias sobre animais e a desmistificação da pretensão
humana revelaram-se particularmente irritantes para dois dos maiores
escritores da época: René Descartes e Blaise Pascal. Os dois não tinham a
menor simpatia recíproca, o que torna tanto mais digno de nota o fato de
terem convergido na desaprovação de Montaigne.
René Descartes, o maior filósofo do início da era moderna, interessava-
se pelos animais sobretudo como um contraste frente aos seres humanos. Os
homens têm uma mente consciente e imaterial; são capazes de refletir sobre
a própria experiência e dizer “eu penso”. Já os animais, não. Para Descartes,
assim, eles carecem de alma, não passando de máquinas. São programados
para andar, correr, dormir, bocejar, espirrar, caçar, rugir, coçar-se, construir
ninhos, criar os filhotes, comer e defecar, mas fazem tudo isso como um
mecanismo de autômato que tivesse suas engrenagens ativadas para se
locomover ruidosamente pelo chão. Para Descartes, um cão não tem
perspectiva nem real experiência. Não cria uma lebre em seu mundo
interior para sair correndo atrás dela pelos campos. Pode fungar e retorcer
as patas quanto quiser, que Descartes jamais verá aí mais que contrações
musculares e excitação dos nervos, desencadeadas por operações
igualmente mecânicas do cérebro.
Descartes não seria capaz de trocar olhares com um animal. Montaigne,
sim, e efetivamente o faz. Num trecho que ficou famoso, ele cismava:
“Quando brinco com minha gata, quem poderia dizer se não sou eu um
passatempo para ela mais do que ela para mim?” E acrescentava, em outra
versão do texto: “Nós nos divertimos com macaquices recíprocas. Se tenho
a possibilidade de começar ou recusar, ela também a tem.” Ele assume o
ponto de vista da gata em relação a ele próprio com a mesma naturalidade
com que assume o seu em relação a ela.
A pequena interação de Montaigne com a gata é um dos momentos mais
encantadores de Os ensaios, além de importante. Traduz sua convicção de
que todos os seres compartilham o mesmo mundo, embora cada criatura
tenha uma maneira própria de percebê-lo. “Todo Montaigne está contido
nesse comentário fortuito”, comentou um crítico. A gata de Montaigne
ficou tão famosa que inspirou um artigo cheio de erudição, além de constar
com verbete próprio no Dictionnaire de Montaigne, de Philippe Desan.
Todo o talento de Montaigne para pular de uma perspectiva a outra vem
a primeiro plano quando ele escreve sobre os animais. Achamos difícil
entendê-los, diz ele, mas eles também devem considerar difícil entender-
nos. “Essa falha que compromete a comunicação entre eles e nós, por que
seria de responsabilidade apenas deles, e não também nossa?”

Temos uma compreensão medíocre do que eles querem dizer; e


também eles quanto a nós, mais ou menos no mesmo grau. Eles nos
lisonjeiam, nos ameaçam e imploram, e nós a eles.

Montaigne não é capaz de olhar para sua gata sem vê-la devolvendo o
olhar e imaginar-se enquanto olha para ela. É esse tipo de interação entre
indivíduos que têm defeitos e são mutuamente conscientes de espécies
diferentes que jamais aconteceria com Descartes, que ficava incomodado
com essa noção, assim como outros tantos em seu século.
No caso de Descartes, o problema estava no fato de toda a sua estrutura
filosófica exigir um ponto de absoluta certeza, por ele encontrado numa
consciência clara e sem qualquer comprometimento. Não poderia haver
lugar, aqui, para as ambiguidades com que Montaigne costumava tornar
vagas as fronteiras das coisas, como em suas reflexões sobre um Sócrates
enlouquecido ou furioso ou os sentidos superiores de um cão. As
complicações que deleitavam Montaigne alarmavam Descartes.
Ironicamente, entretanto, sua busca desse ponto de absoluta certeza decorria
em grande medida de sua compreensão da dúvida pirrônica, tal como
transmitida basicamente por Montaigne, o mais eminente pensador
pirrônico do mundo moderno.
A solução de Descartes ocorreu-lhe em novembro de 1619, quando,
passado um período de viagens e observação da diversidade dos costumes
humanos, ele se fechou num gabinete na Alemanha e, aquecido pelo lenho
de um fogão, passou um dia inteiro pensando. Começou com o pressuposto
cético de que nada é real e todas as suas convicções anteriores eram falsas.
Avançou então lentamente, em passos cautelosos, “como um homem que
caminha sozinho no escuro”, substituindo essas falsas crenças por outras,
logicamente justificáveis. Era um progresso puramente mental: enquanto
ele dava um passo após o outro, seu corpo permanecia junto ao fogo, onde
podemos imaginá-lo contemplando as brasas durante horas a fio. A imagem
de Descartes diante do fogão, quem sabe na posição recurvada do
“Pensador” de Rodin, contrasta flagrantemente com a de Montaigne
caminhando para cima e para baixo, apanhando livros nas prateleiras,
distraindo-se, expondo ideias esquisitas aos criados para puxá-las pela
própria memória e tendo suas melhores ideias em animadas discussões em
jantares com vizinhos ou lendo no bosque. Mesmo em seu “retiro”,
Montaigne costumava pensar num ambiente de grande vibração, povoado
de objetos, livros, animais e pessoas. Descartes precisava da imobilidade do
retraimento.
Ao pé do fogão, Descartes gradualmente desfiava os elos de seu
raciocínio, considerando cada um deles firmemente preso ao anterior. Sua
primeira descoberta foi sua própria existência:

Penso, logo existo.

Dessa base bem segura ele veio a estabelecer, valendo-se apenas


da dedução, que Deus devia existir, que sua própria ideia “clara e distinta”
da existência de Deus devia proceder de Deus e, portanto, que tudo mais a
cujo respeito tivesse uma ideia clara e distinta também devia ser verdadeiro.
Ele exporia este último ponto com audácia ainda maior numa obra
intitulada Meditações, na qual escreveu que “tudo aquilo que percebo clara
e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro” — certamente uma das
afirmações mais espantosas de toda a filosofia, tão distante quanto possível
da maneira de Montaigne de fazer as coisas. E no entanto procedia isto do
ramo de ceticismo favorito de Montaigne, aquele que duvidava de tudo, até
de si mesmo, plantando um enorme ponto de interrogação no coração da
filosofia europeia.
A cadeia de raciocínio supostamente infalível de Descartes pode parecer
absurda, mas faz mais sentido no contexto das ideias do século anterior, às
quais queria escapar. Tratava-se, acima de tudo, das duas grandes tradições
transmitidas a sua geração por Montaigne: o ceticismo, que tudo
desmantelava, e o fideísmo, que voltava a integrar tudo com base na fé.
Descartes não queria acabar neste ponto. Ele podia ser tudo, menos um
fideísta. De certa maneira, contudo, foi precisamente o que aconteceu: era
uma tradição da qual era difícil esquivar-se.
A verdadeira inovação de Descartes foi a força de seu desejo por certeza.
Novo também era, de maneira geral, seu extremismo. Tentando livrar-se do
ceticismo, ele o levou a extremos até então inconcebíveis, como alguém que
esticasse um pedaço de chiclete preso à sola do sapato. Estava fora de
questão ficar flutuando indefinidamente na dúvida, como num “mar de
especulações”. A incerteza não podia ser um meio de vida, como acontecia
com Montaigne e os primeiros pirrônicos. Para Descartes, era uma etapa de
crise. Dá para perceber sua desorientação quando ele escreve, em
Meditações:

A Meditação de ontem encheu minha mente de tantas dúvidas que já


não tenho como esquecê-las (...) Não consigo fincar os pés com força
no solo nem nadar para me manter na superfície.

Era aí que o século XVII realmente se distinguia do mundo de


Montaigne: na descoberta de que havia algo de pesadelo no ceticismo.
Nessa “Meditação de ontem”, Descartes — sempre muito habilidoso para
expor ideias por vívidas metáforas — chegara a personificar suas incertezas
numa figura realmente horrorosa:
Vou supor, assim, que não existe um Deus verdadeiro, que é a fonte
soberana da verdade, mas um demônio do mal, tão astuto e enganoso
quanto poderoso, que se valeu de todos os seus artifícios para me
enganar. Suporei que o céu, o ar, a terra, as cores, as formas, os sons e
as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e logros por ele
usados para me enganar. Irei me imaginar alguém que não tem mãos,
olhos, carne, sangue ou sentidos, mas que erradamente acredita ter
todas essas coisas.

Os demônios ainda pareciam reais e assustadores na época de Descartes,


exatamente como na de Montaigne. Havia quem achasse que enchiam o
mundo de nuvens, como microrganismos poluentes; juntamente com seu
mestre, Satã, podiam gerar ilusões no ar ou amarrar os raios de luz ou os
próprios filamentos do nosso cérebro para nos levar a enxergar feras e
monstros. A ideia de que tal espírito pudesse nos enganar sistematicamente
quanto à natureza do mundo físico — e de nós mesmos — era suficiente
para enlouquecer qualquer um. A única coisa pior seria a possibilidade de
que o próprio Deus fosse esse enganador, algo que Descartes chegou a dar a
entender de passagem, e logo retirou.
De forma talvez estranha para alguém que preconizava o império da
razão pura, jurando inimizade aos truques da imaginação, Descartes valia-se
de todos os expedientes romanescos ao seu alcance para jogar com as
emoções dos leitores. Como a maioria dos escritores de horror, contudo,
tinha impulsos basicamente conservadores. O demônio ameaça a ordem das
coisas, mas vem a ser derrotado e a normalidade é restabelecida em bases
mais sólidas — só que não é bem assim. Na ficção de horror, o monstro
muitas vezes ameaça voltar no fim, não realmente derrotado, mas apenas à
espera de uma nova oportunidade. Descartes não queria saber de
continuações. Considerava ter tapado para sempre o abismo, mas não era
verdade: seu final feliz quase instantaneamente desmoronou.
Uma maneira prática de escapar a toda essa confusão seria finalmente
encontrada, não através do desafio extremista de Descartes, mas por um
acordo pragmático que tem muito mais em comum com o espírito
montaignesco. Em vez de buscar a certeza absoluta, a ciência moderna
admite teoricamente um elemento de dúvida, ao mesmo tempo em que, na
prática, todos seguem em frente no empenho de conhecer o mundo,
comparando observações a hipóteses, com base em códigos de prática
previamente acertados. Vivemos como se não existisse um abismo. Como
Montaigne se adaptando à própria falibilidade, nós aceitamos o mundo tal
como se apresenta, apenas reconhecendo formalmente a possibilidade de
que nada seja sólido. O demônio fica à espreita nos bastidores, mas a vida
segue em frente.
A história de horror de Descartes foi o que sobreveio quando o
pirronismo de Montaigne chegou a uma mente mais angustiada e dividida
que qualquer uma gerada no século XVI. Montaigne não deixava de ter seus
momentos de angústia existencial: podia escrever coisas como “nós somos,
não sei por quê, duplos em nós mesmos” ou “não temos comunicação com
o ser”. Mas a sensação de Descartes de estar-se afogando na dúvida o
deixaria intrigado.
Hoje, muitas pessoas talvez achassem mais fácil entender o terror de
Descartes que o singular reconforto encontrado no ceticismo por Montaigne
e os primeiros pirrônicos. A ideia de que existe um vazio por baixo de tudo
que experimentamos já não parece assim tão facilmente consoladora.
Nossa experiência desse vazio decorre em grande medida da
contestadora leitura de Montaigne feita por Descartes. Uma parte nos
chegou também do outro grande discípulo e antagonista de Montaigne no
século XVI, um homem ainda mais incomodado com as implicações do
pirronismo. Estamos falando de Blaise Pascal, filósofo, místico e outro
grande escritor de horror.

UMA PRODIGIOSA MÁQUINA DE SEDUÇÃO

A obra pela qual Pascal é mais lembrado, Pensées (“Pensamentos”), não


pretendia aterrorizar ninguém, senão ele mesmo: era uma coletânea de
anotações desordenadas para um tratado teológico mais sistemático que ele
acabou nunca conseguindo escrever. Se tivesse concluído essa obra, ela
provavelmente seria menos interessante. Em lugar disso, ele nos deixou um
dos textos mais misteriosos da literatura, uma efusão apaixonada escrita em
grande medida para fazer frente à perigosa força que ele enxergava em Os
ensaios de Montaigne.
Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand em 1623. Ainda menino,
mostrou um talento precoce para a matemática e a invenção, chegando a
conceber uma primitiva máquina de calcular. Aos 31 anos, hospedado na
abadia de Port-Royal-des-Champs, teve uma experiência reveladora que
tentou descrever num pedaço de papel sob a inscrição FOGO:

Certeza. Certeza. Sentimento, Alegria, Paz.


Deus de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vostrum.
Esquecimento do mundo e de tudo exceto Deus.
Ele só pode ser encontrado pelos caminhos ensinados no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
Justo Pai, o mundo não O conhece, mas eu O conheço.
Alegria, Alegria, Alegria, lágrimas de alegria.

Essa epifania mudou sua vida. Ele costurou à roupa o pedaço de papel,
para levá-lo consigo a toda parte, e a partir de então dedicou todo o seu
tempo a escritos teológicos e às anotações que se tornariam seu Pensées.
Mas não dispôs de muito tempo para esse trabalho. Aos 39 anos, morreu de
uma hemorragia cerebral.
Pascal quase nada tinha em comum com Descartes, à parte a obsessão
com o ceticismo. Arrebatadoramente místico, não apreciava a confiança
depositada por Descartes na razão, lastimando a ascendência do que
chamava de “espírito de geometria” sobre a filosofia. Essa aversão à
racionalidade deveria no mínimo conduzi-lo, isto sim, na direção de
Montaigne — e foi o que aconteceu, pois ele estava constantemente lendo
Os ensaios. Mas ele também ficava tão perturbado com a tradição pirrônica,
tal como transmitida por Montaigne, que mal conseguia percorrer uma
página da “Apologia” sem correr ao seu caderno de anotações para verter
violentas ideias a respeito. Pascal elegeu em Montaigne “o grande
adversário”, para tomar de empréstimo uma frase empregada pelo poeta T.
S. Eliot para se referir à relação entre os dois. É um tipo de linguagem
habitualmente reservada ao próprio Satã, mas a alusão procede, pois
Montaigne era para Pascal tormento, sedução e tentação.
Pascal temia o ceticismo pirrônico por estar convencido, ao contrário dos
leitores do século XVI, de que representava uma ameaça à fé religiosa. A
essa altura, a dúvida já não era considerada amiga da Igreja; era coisa do
Diabo, devendo ser combatida. E aí residia o problema, pois, como todos
sempre souberam, era praticamente impossível combater o ceticismo
pirrônico. Qualquer tentativa de enfrentá-lo servia apenas para reforçar sua
tese de que tudo estava sujeito a discussão, ao passo que a atitude de
neutralidade confirmava o ponto de vista de que valia a pena manter em
suspenso os julgamentos.
Num texto breve geralmente integrado a Pensées, dando conta de uma
conversa com Isaac Le Maître de Sacy, diretor da abadia de Port-Royal,
Pascal assim resume o argumento pirrônico de Montaigne, ou a falta dele:

Tudo ele submete a uma dúvida universal, e essa dúvida é tão


generalizada que se deixa levar por si mesma; ou seja, ele duvida de
que duvide, e, pondo em dúvida até mesmo esta última afirmação, sua
incerteza dá voltas sem descanso num círculo interminável. Ele
contradiz ao mesmo tempo os que sustentam que tudo é incerteza e
aqueles para os quais não é assim, pois não quer afirmar
absolutamente nada.

Montaigne está “tão convenientemente instalado nessa dúvida universal


que se fortalece igualmente no sucesso e na derrota”. Dá para perceber a
frustração: como seria possível combater semelhante adversário? Mas é
preciso. Trata-se de um dever moral, caso contrário a dúvida arrastará tudo
de roldão, como uma enchente: o mundo, tal como o conhecemos, a
dignidade humana, nossa sanidade e nosso sentido de Deus. Observaria
ainda T. S. Eliot:
Dentre todos os autores, Montaigne é um dos menos destrutíveis.
Seria mais fácil dissipar uma névoa atirando granadas de mão. Pois
Montaigne é uma bruma, um gás, um fluido e insidioso elemento. Ele
não raciocina, ele insinua, seduz e influencia, ou então, quando
raciocina, devemos estar preparados para o fato de ter em mente
algum outro desígnio sobre nós, que não o de nos convencer com sua
argumentação.

Como não tinha como lutar contra Montaigne, Pascal não conseguia
parar de lê-lo — ou de escrever a seu respeito. Combatia Os ensaios tão de
perto que não conseguia encontrar ângulo para um golpe certeiro. Se La
Boétie pairava sobre as páginas de Montaigne como seu amigo invisível,
Montaigne pairava sobre os textos de Pascal como seu inimigo e coautor
sempre presente. Ao mesmo tempo, Pascal sabia que o verdadeiro drama
transcorria em sua própria alma. Reconhecia ele: “Não é em Montaigne,
mas em mim mesmo, que encontro tudo que ali vejo.”
Ele também poderia ter lançado um olhar a seu caderno de anotações e
dito “Não foi em mim mesmo, mas em Montaigne, que encontrei tudo que
aqui vejo”, pois costumava transcrever uma grande quantidade de material
quase palavra por palavra.

Montaigne: Como choramos e rimos pela mesma coisa.


Pascal: Portanto, choramos e rimos da mesma coisa.

Montaigne: Eles querem sair de si mesmos e escapar do homem. É


loucura: em vez de se transformar em anjos, transformam-se em feras.
Pascal: O homem não é anjo nem fera, e infelizmente quem quer agir
como anjo age como fera.

Montaigne: Ponha-se um filósofo numa jaula de fino fio de arame em


malha larga e pendure-a no alto das torres de Notre Dame de Paris:
ele ponderará com lógica irretocável que é impossível cair, e no
entanto (a menos que esteja acostumado a limpar chaminés) não
conseguirá impedir que a visão desta altura extrema o aterrorize e
paralise (...) Estenda-se entre as duas torres uma viga larga o
suficiente para caminhar sobre ela: nenhuma sabedoria filosófica será
firme o suficiente para nos dar coragem de andar por ela como
faríamos se estivesse no solo.
Pascal: Se pusermos o maior filósofo do mundo numa prancha mais
larga que o necessário, mas com um precipício por baixo, por mais
firmemente que o convença sua razão de que estaria seguro, sua
imaginação levará a melhor.

Em seu livro O cânone ocidental, Harold Bloom considera Pensées “um


caso grave de indigestão” no que diz respeito a Montaigne. Mas Pascal, ao
copiar Montaigne, também o alterava. Mesmo usando as palavras de
Montaigne, expunha-as a uma luz diferente. Como o personagem Pierre
Menard, de Jorge Luis Borges, escrevendo no século XX um romance que
vem a ser idêntico ao Dom Quixote, Pascal escrevia as mesmas palavras
numa época diferente e com um temperamento diferente, assim criando
algo novo.
É a diferença emocional que importa. Montaigne e Pascal tinham
percepções parecidas dos aspectos menos lisonjeiros da natureza humana,
no reino do “humano, humano demais” onde vicejam o egoísmo, a
indolência, a mesquinhez, o orgulho e tantas outras fraquezas. Mas
Montaigne as contemplava com indulgência e humor; em Pascal, elas
inspiravam um horror maior até que o jamais alcançado por Descartes.
Para Pascal, a falibilidade é insuportável em si mesma: “Temos em tão
alta conta a alma humana que não suportamos imaginar que essa ideia
esteja errada e assim ter de privar-nos dessa estima por ela. A felicidade
humana repousa nessa estima.” Para Montaigne, as fraquezas humanas são
não apenas suportáveis, como chegam a ser quase motivo de comemoração.
Pascal considerava que as limitações não deviam ser aceitas; toda a filosofia
de Montaigne gira em torno da visão contrária. Mesmo quando Montaigne
escreve algo como “parece-me que nunca podemos ser tão desprezados
quanto merecemos” — o tipo de coisa que Pascal diz o tempo todo —, ele o
faz em ânimo alegre, acrescentando que quase sempre somos antes tolos
que perversos.
Pascal está sempre num extremo ou noutro, mergulhado em desespero ou
arrebatado em euforia. Seu texto pode ser emocionante como uma
perseguição em alta velocidade, projetando-nos em espaços infinitos de
escala desproporcional. Ele contempla o vazio do universo ou a
insignificância de seu próprio corpo, dizendo: “Quem quer que assim olhe
para si ficará aterrorizado consigo mesmo.” Da mesma forma que Descartes
levantava o cobertor do conforto mental pirrônico — a dúvida universal —,
encontrando monstros por debaixo, Pascal também o faz com um dos
truques preferidos dos estoicos e epicuristas: a viagem pelo espaço
imaginário e a ideia da pequenez humana. E segue esse pensamento até um
lugar de terror:

Contemplando nossa cegueira e desgraça, observando todo o universo


silencioso e a humanidade sem luz entregue a si mesma, perdida
nesse canto do universo sem saber quem nos botou aqui, o que
viemos realizar, o que será de nós quando morrermos, incapazes de
todo conhecimento, fico apavorado, como alguém levado durante o
sono a uma aterrorizante ilha deserta e que desperta sem saber o que
aconteceu e sem meios de fugir.

A leitura é emocionante, mas passadas algumas páginas começamos a


sentir falta de uma dose do humanismo mais sereno de Montaigne. Pascal
nos quer sempre conscientes das coisas últimas: os infinitos espaços vazios,
Deus, a morte. Mas poucos de nós somos capazes de cultivar por muito
tempo pensamentos assim. Nossa atenção se desvia, a mente retorna a
questões concretas e pessoais. Pascal ficava furioso com isto: “Em que
pensa o mundo? Nunca a este respeito! Mas em dançar, tocar alaúde, cantar,
escrever versos, tocar o sino (...).” Montaigne também gostava de levantar
questões importantes, mas preferia explorar a vida através das leituras, dos
animais domésticos, dos incidentes que presenciava em suas viagens ou dos
problemas de um vizinho com os filhos. Pascal escrevia: “Sensibilidade
humana para as coisas pequenas e insensibilidade para as coisas maiores:
sinal de uma estranha confusão.” Montaigne teria dito exatamente o
contrário.
Cerca de um século depois, Voltaire, que decididamente não gostava de
Pascal, escreveu: “Arrisco-me a defender a humanidade frente a esse
sublime misantropo.” Percorreu então 57 citações de Pensées, desmontando
cada uma delas. “De minha parte”, observava,

quando vejo Paris ou Londres, não encontro motivo para cair nesse
desespero de que fala Pascal. Vejo uma cidade que nem de longe se
parece com uma ilha deserta, mas populosa, rica, policiada, onde os
homens se mostram tão felizes quanto permite a natureza. Que
homem sensato se disporia a se enforcar por não saber como encarar
Deus frente a frente? (...) Por que nos fazer sentir enojados de nosso
próprio ser? Nossa existência não é tão miserável quanto somos
levados a crer. Encarar o mundo como uma cela de prisão e todos os
homens como criminosos é uma ideia de fanático.

Isto levava Voltaire a sair em defesa do “grande adversário” de Pascal:

Que esplêndida ideia a de Montaigne, de se retratar sem artifícios,


como fez! Pois estava assim retratando a própria natureza humana. E
que projeto medíocre (...) o de Pascal, de tentar desdenhar de
Montaigne!

Voltaire sentia-se muito mais em casa com um credo como o de


Montaigne, tal como o encontramos no último capítulo de Os ensaios:

Aceito de todo coração e com gratidão o que a natureza fez por mim,
e estou satisfeito comigo mesmo e orgulhoso disto. Ofendemos o
grande Doador ao recusar sua dádiva, anulando-a e desfigurando-a.

Essa tranquila aceitação da vida como se apresenta e da própria


individualidade como é enfurecia ainda mais Pascal que o próprio ceticismo
pirrônico. As duas coisas vão de par. Montaigne põe tudo em dúvida, mas
deliberadamente reafirma o que é familiar, incerto e comum — pois aí está
tudo que temos. Seu ceticismo o leva a celebrar a imperfeição: exatamente
aquilo de que Pascal, tanto quanto Descartes, queria escapar, sem êxito.
Para Montaigne, seria óbvia a explicação dessa impossibilidade. Ninguém
pode elevar-se acima da humanidade: por mais alto que possamos subir,
levamos essa humanidade conosco. No fim do derradeiro volume, na versão
final, ele escreveu:

É uma absoluta perfeição, quase divina, saber como desfrutar


adequadamente do nosso ser. Buscamos outras condições porque não
entendemos o uso das nossas próprias, e saímos de nós mesmos
porque não sabemos como é lá dentro. Mas de nada vale subir em
pernas de pau, pois ainda nelas temos de continuar andando com as
próprias pernas. E no trono mais alto do mundo ainda estaremos
sentados no próprio traseiro.

Como acontece com o pirronismo, é impossível derrubar o argumento do


“traseiro”, mas a Pascal ainda assim parecia necessária uma refutação, pois
ele representava um perigo moral. Em Montaigne, o princípio predominante
da “conveniência e calma”, como o definia Pascal, era pernicioso. Algo que
preocupava Pascal, deixando-o numa raiva impotente, como se Montaigne
desfrutasse de alguma vantagem que não estaria ao seu alcance.
Um padrão equivalente de indignação pode ser percebido na reação de
outro leitor desse período, o filósofo Nicolas Malebranche. Racionalista,
mais próximo de Descartes que de Pascal, ele no entanto, como este,
desaprovava Montaigne tanto por sua atitude genérica de indiferença quanto
pelo acolhimento da dúvida.
Malebranche reconhecia que o livro de Montaigne era um constante
sucesso — mas tinha de ser mesmo, observa, amargo. Montaigne conta
histórias interessantes e apela para a imaginação do leitor, e as pessoas
gostam disso. “Suas ideias são falsas mas belas; sua expressão, irregular ou
audaciosa, mas agradável.” Contudo, ler Montaigne pelo prazer da leitura é
particularmente perigoso. Enquanto você flutua nesse banho de conforto
sensual, Montaigne está induzindo sua razão ao sono e enchendo-o com seu
veneno. “A mente não pode sentir-se satisfeita com a leitura de um autor
sem adotar suas opiniões, ou pelo menos receber delas uma coloração que,
misturada a suas próprias ideias, as torna confusas e obscuras.” Ou seja, o
prazer da leitura corrompe as “ideias claras e distintas” de Descartes.
Montaigne não argumenta nem tenta convencer; não precisa fazê-lo, pois é
capaz de seduzir. Malebranche traça o perfil de uma figura quase diabólica.
Montaigne nos engana, como o demônio de Descartes, atraindo-nos para a
dúvida e a negligência espiritual.
Essas sinistras imagens teriam vida longa. Em 1866, o estudioso de
literatura Guillaume Guizot ainda se referia a Montaigne como o grande
“sedutor” entre os escritores franceses. T. S. Eliot o via da mesma forma. E
a crítica moderna Gisèle Mathieu-Castellani refere-se a Os ensaios como
“uma prodigiosa máquina de sedução”. Montaigne enfeitiça por sua
despreocupação, seu tom de divagação informal e a pose de que não se
importa com o leitor — truques destinados a nos atrair e se apoderar de nós.
Expostos a semelhante máquina, os leitores modernos não raro apreciam
essa possibilidade de relaxar, como Barbarella, e desfrutam. Já no século
XVII os leitores se sentiam algo ameaçados, pois estavam em jogo questões
sérias ligadas à razão e à religião.
Mesmo nesse período, contudo, Montaigne também era apreciado pelo
prazer que proporcionava. Vários leitores saíram de peito aberto em sua
defesa. Em seu Caractères, o aforista Jean de La Bruyère ponderou que
Malebranche não entendera Montaigne por ser demasiado intelectual e
incapaz de “apreciar pensamentos que surgem naturalmente”. Essa fluida
naturalidade, associada à dúvida cética, transformaria Montaigne no herói
de uma nova classe de pensadores: a vaga confederação de intelectuais e
rebeldes conhecidos como libertins.
Em inglês, “libertino” evoca figuras de má reputação ao estilo Casanova,
mas eles não eram apenas isto (como tampouco Casanova). Embora certos
libertins efetivamente buscassem a liberdade sexual, queriam também a
liberdade filosófica: o direito de pensar como bem entendessem, em termos
políticos, religiosos ou quaisquer outros. O ceticismo era um caminho
natural para essa liberdade interna e externa.
O grupo era variado, abarcando desde o grande filósofo Pierre Gassendi
até estudiosos menos graves como François La Mothe le Vayer e escritores
imaginativos como Cyrano de Bergerac, na época mais conhecido por seu
romance de ficção científica sobre uma viagem à Lua. (Seu papel numa
história mais conhecida, em torno de seu protuberante nariz, viria mais
tarde.) A primeira editora de Montaigne, Marie de Gournay, talvez fosse
secretamente uma libertine, juntamente com muitos de seus amigos. Outro
deles era Jean de La Fontaine, autor de fábulas ao estilo de Plutarco sobre a
inteligência e a estupidez dos animais. Ele conseguiu evitar críticas
adotando um tom moderado, mas ainda assim elas representavam um
desafio à dignidade humana. Sua premissa era a mesma de Montaigne: os
animais e os seres humanos são feitos de igual estofo.
O libertinismo foi um movimento minoritário mas de influência
desproporcional, pois dos libertins decorreria no século seguinte a filosofia
do Iluminismo. Eles conferiram a Montaigne uma nova imagem, perigosa
mas positiva, que acabaria pegando. Também abarcavam homens de
sociedade menos radicais, como La Bruyère e La Rochefoucauld, cuja obra
Máximas reunia breves observações montaignescas sobre a natureza
humana:

Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros.

A maneira mais certa de se enganar é considerar-se mais esperto que os


outros.

O acaso e o capricho governam o mundo.

E por sinal uma das máximas de La Rochefoucauld constituía um


perfeito comentário sobre as dificuldades do próprio Montaigne com o
século XVII:

Com frequência indispomos os outros ao julgar-nos incapazes de


fazê-lo.
De forma semelhante ao caso de Montaigne, boa parte do que os
libertins e os aforistas tinham a dizer girava em torno da questão do bem
viver. Os libertins valorizavam qualidades como o bel esprit, que
poderíamos traduzir como “boa disposição”, mas foi melhor definido por
outro autor da época como “alegre, vivaz, cheio de entusiasmo, o mesmo
que se evidencia em Os ensaios de Montaigne”. Aspiravam igualmente à
honnêteté, a “honestidade”, uma vida de moralidade mas também de “boa
conversação” e “boa companhia”, segundo o dicionário da Academia
Francesa de 1694.
Um homem como Pascal sequer imaginaria viver assim, pois significaria
deixar-se desviar pelos negócios deste mundo, em vez de manter os olhos
fixos nas coisas últimas. Ficamos imaginando Pascal a contemplar
os  espaços infinitos do universo, mergulhado em terror místico e bem-
aventurança, assim como Descartes contemplava com igual intensidade as
brasas no fogão. Em ambos os casos, temos o silêncio e um olhar fixo,
olhos arregalados de espanto, profunda cogitação, alarme e horror.
Os libertins e os companheiros do bel esprit não ficavam de olhar fixo.
Longe disso! Eles sequer sonhariam em fixar o que quer que fosse, lá em
cima ou lá em baixo no universo, com olhos esbugalhados de coruja.
Preferiam observar as questões humanas de esguelha, com os olhos
semicerrados, vendo-as tal como se apresentavam — e a começar por eles
próprios. Esses olhos mal abertos percebiam mais da vida que Descartes
com suas “ideias claras e distintas” ou Pascal com seus êxtases espirituais.
Como observaria Friedrich Nietzsche séculos depois, boa parte das
observações mais válidas sobre o comportamento e a psicologia humanos
— e portanto, também, sobre a filosofia — “foi inicialmente detectada e
exposta nos círculos sociais capazes de qualquer sacrifício, não pelo
conhecimento científico, mas por um coquetismo perspicaz”.
Nietzsche se deleitava com a ironia desse fenômeno porque detestava os
filósofos profissionais. Para ele, os sistemas abstratos não tinham valia; o
importante era a autoconsciência crítica: a capacidade de investigar as
próprias motivações e ainda assim aceitar-se do seu próprio jeito. Por isso
tanto apreciava os aforistas La Rochefoucauld e La Bruyère, assim como
seu antepassado Montaigne. Considerava Montaigne “a mais livre e
poderosa das almas”, acrescentando: “O fato de este homem ter escrito
aumentou verdadeiramente a alegria de viver neste planeta.” Montaigne
aparentemente conseguiu dar um jeito de viver como Nietzsche gostaria:
sem miúdos ressentimentos ou arrependimentos, aceitando as coisas que
aconteciam sem vontade de mudá-las. O distraído comentário do ensaísta de
que “Se tivesse de viver de novo, viveria do mesmo jeito” exemplificava
tudo que Nietzsche passara a vida tentando alcançar. Montaigne não só o
alcançou como escreveu a respeito de maneira despreocupada, como se não
fosse nada especial.
Como Montaigne, Nietzsche ao mesmo tempo questionava tudo e
tentava aceitar tudo. As coisas que, em Montaigne, mais indispunham
Pascal — a dúvida sem fim, a “tranquilidade cética”, o equilíbrio, a
disposição de aceitar as imperfeições — eram o mesmo que sempre haveria
de atrair essa outra tradição tão diferente, abarcando dos libertins a
Nietzsche e mais além, até muitos de seus maiores admiradores da
atualidade.
Infelizmente, no século XVII, os detratores de Montaigne revelaram-se
mais fortes que seus entusiastas, especialmente depois de se organizarem
para lançar uma campanha de repressão. Em 1662, um ano depois da morte
de Pascal, seus antigos companheiros Pierre Nicole e Antoine Arnauld
lançaram um ataque contra Montaigne em seu grande sucesso editorial
Logique du Port-Royal. Na segunda edição, em 1666, eles pregaram
abertamente a inclusão de Os ensaios no Índex de livros proibidos da Igreja
Católica, por ser um perigoso texto de irreligião. O apelo seria atendido dez
anos depois: Os ensaios foi incluído no Índex em 28 de janeiro de 1676.
Montaigne era condenado, em grande parte também por associação, pois a
essa altura era a leitura favorita de um bando nada recomendável de
almofadinhas, espertalhões, ateus, céticos e dissolutos.
Tinha início um dramático declínio na reputação de Montaigne na
França. Desde a publicação em 1580 até 1669, novas edições de Os ensaios
vinham a público a cada dois ou três anos, paralelamente a adaptações
populares feitas por editores que chamavam a atenção para os trechos de
fundo mais pirrônico. Depois da proibição, a situação mudou. Em sua
versão integral, a obra já não podia ser publicada ou vendida em países
católicos; nenhum editor francês seria capaz de relançá-lo. Durante anos, só
podia ser encontrada em edições censuradas ou estrangeiras, estas não raro
em francês, para atender em contrabando aos leitores nacionais não
conformistas.
Montaigne observou uma vez que certos livros “tornam-se mais
vendáveis e públicos ao serem proibidos”. Em certa medida, foi o que lhe
aconteceu: a proibição de seu livro na França conferiu-lhe uma aura
irresistível. No século seguinte, aumentou ainda mais seus atrativos para os
filósofos rebeldes do Iluminismo e até mesmo para revolucionários
políticos.
Globalmente, contudo, a censura antes fez mal que bem às vendas
póstumas, confinando Montaigne a um público limitado na França, ao passo
que em outros países ele continuava atraindo uma gama mais ampla de
interesses — tanto rebeldes quanto pilares da comunidade.
Surpreendentemente, Os ensaios permaneceria no Índex por quase duzentos
anos, até 27 de maio de 1854. Foi um longo exílio, indo além do autêntico
frisson de alarme provocado pelo livro no fim do século XVII.
A observação de Pascal de que “Não é em Montaigne, mas em mim
mesmo, que encontro tudo que ali vejo” poderia ser adotada como mantra
ao longo de toda a história que se segue. Os séculos avançam; cada novo
leitor se vê refletido em Os ensaios, enriquecendo seus possíveis
significados. No caso de Descartes, o que ele encontrou foram duas figuras
de pesadelo da sua própria psique: um demônio resistente à lógica e um
animal capaz de pensar. Ele recuava diante de ambos. Pascal e Malebranche
enxergavam a possibilidade de serem seduzidos num leito de comodidade
cética e igualmente fugiam horrorizados.
Os libertins, vendo as mesmíssimas coisas, reagiam com um sorriso
divertido e um alçar de sobrancelhas. Eles também se reconheciam em
Montaigne. Seu descendente muito mais tardio, Nietzsche, faria o mesmo e
igualmente devolveria Montaigne a sua pátria filosófica: o coração das três
grandes filosofias helenísticas, com sua investigação da pergunta de como
viver.
8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado
nos fundos da loja

ENTREGAR-SE COM METADE DO TRASEIRO

D
e volta à década de 1560, o Montaigne de carne e osso ainda
enfrentava a mesma pergunta. Valia-se das três tradições
filosóficas helenísticas para levar a vida e se recuperar da perda de
La Boétie. Conseguiu fundir seu ceticismo com a lealdade aos dogmas
católicos — uma combinação que ninguém questionava. Concluiu seu
primeiro grande projeto literário, a tradução de Raymond Sebond, e
trabalhou nas dedicatórias do livro de La Boétie e na carta que publicou
relatando a morte do amigo. Outra mudança ocorreria nesse período: ele se
casou, tornando-se um chefe de família.
Montaigne parece ter exercido atração sobre as mulheres. Pelo menos
em parte ela seria de natureza física: ele faz comentários irônicos sobre as
mulheres que dizem amar os homens apenas pelo intelecto. “Nunca pude
constatar que por nossa beleza intelectual, por mais sábia e madura que
fosse, as mulheres se dispusessem a conceder favores a um corpo
resvalando ainda que só um pouco para o declínio.” Mas é provável que sua
inteligência, seu senso de humor, sua personalidade afável e até sua
tendência a se deixar arrebatar pelas ideias e a falar alto contribuíssem para
o encanto pessoal. E talvez também o ar de inacessibilidade emocional em
que banhava depois da morte de La Boétie, e que configurava um desafio.
Na realidade, quando ele gostava de alguém, essa indiferença desaparecia:
“Eu faço investidas e me atiro com tanta avidez que dificilmente deixo de
me agarrar a algo e de causar impressão onde quer que eu pouse.”
Montaigne gostava de sexo e o praticou muito ao longo da vida. Só na
meia-idade mais avançada é que seu desempenho e seu desejo declinaram,
assim como a atração que exercia — fatos todos eles lastimados em seu
derradeiro Os ensaios. É deprimente ser rejeitado, dizia ele, mas pior ainda
é ser aceito por piedade. E ele detestava sentir-se importuno para alguém
que não o quisesse. “Abomino a ideia de um corpo sendo meu sem afeto.”
Seria como fazer amor com um cadáver, como na história do “egípcio
frenético todo fogoso com a carcaça de uma mulher morta que ele cuidava
de embalsamar e cobrir com a mortalha”. Uma relação sexual deve ter
reciprocidade. “Na verdade, nesse deleite, o prazer que dou estimula mais
docemente minha imaginação que aquele que sinto.”
Mas ele era realista no que dizia respeito ao entusiasmo provocado em
suas amantes. Às vezes a mulher não está realmente presente de coração:
“Às vezes elas se entregam só com metade do traseiro.” Ou quem sabe não
está fantasiando sobre alguém mais: “E se ela comer o seu pão com o
molho de uma imaginação mais agradável?”
Montaigne sabia que as mulheres geralmente sabem mais de sexo do que
supõem os homens, e que na verdade sua imaginação as leva a esperar mais
do que recebem. “No lugar das partes reais, elas colocam, pelo desejo e a
expectativa, outras três vezes maiores.” Ele reprovava a irresponsabilidade
dos grafites: “Os danos que não são causados por essas enormes imagens
espalhadas pelos meninos nos corredores e escadas dos palácios! Por causa
delas, as mulheres adquirem um cruel desprezo por nossa capacidade
natural.” Poderíamos concluir que Montaigne tivesse um pênis pequeno?
Sim, de fato, pois ele confessaria mais adiante no mesmo ensaio que a
natureza o tratara “cruel e injustamente”, acrescentando uma citação
clássica:

“Mesmo as matronas — e o sabem muito bem —


Olham com reserva um homem de membro pequeno.”

Ele não se envergonhava de revelar essas coisas: “Nossa vida é em parte


loucura, em parte sabedoria. Aquele que só escreve sobre ela com
reverência e de acordo com as regras deixa de fora mais da metade.”
Também lhe parecia injusto que os poetas tivessem mais licença
simplesmente por escreverem em versos. E citava dois exemplos
contemporâneos:
“Posso morrer se sua fenda for mais que uma linha fininha.” —
Théodore de Bèze

“Um instrumento amigo a trata bem e satisfaz.” — Saint-Gelais

Em meio às variadas aventuras de seu instrumento amigo, contudo,


Montaigne também fez o que deviam fazer os nobres diligentes,
especialmente os herdeiros de grandes propriedades: casou-se.
O nome dela era Françoise de La Chassaigne, de uma família muito
respeitada em Bordeaux. O casamento, ocorrido em 23 de setembro de
1565, teria sido arranjado entre as duas famílias — o que era uma tradição,
e até mesmo as idades dos esposos estavam mais ou menos na faixa
estabelecida pelo costume. Montaigne observou que sua idade (33, diz ele,
embora tivesse 32) estava próxima do ideal recomendado por Aristóteles,
que acreditava ser 35 (sendo na realidade 37). Se ele ainda era ligeiramente
jovem, sua mulher era um pouco mais velha que o habitual: nascera a 13 de
dezembro de 1544, tendo portanto pouco menos de 21 anos ao se casar.
Com essa idade, ainda tinha pela frente muitos anos para a procriação.
Infelizmente, os filhos seriam sobretudo motivo de decepção e dor para o
casal. E, apesar de ser mais de dez anos mais velho que a mulher,
Montaigne parece ter feito muito decididamente o que fazem tantos
homens: casou-se com a mãe. E a escolha não o faria particularmente feliz.
Ele não menciona Françoise com frequência em Os ensaios; e, quando o
faz, ela fica parecendo Antoinette, só que mais escandalosa. “As esposas
sempre têm tendência a discordar dos maridos”, escreveu. “Agarram com as
duas mãos o menor pretexto para contrariá-los.” É provável que ele tivesse
Françoise em mente tanto aqui quanto em outra passagem, escrevendo que
não fazia sentido enfurecer-se inutilmente com os criados:

Eu advirto (...) minha família a não ficar com raiva à toa e cuidar para
que suas reprimendas cheguem à pessoa de que se queixam, pois
geralmente já estão gritando antes de estar em sua presença e
continuam a gritar por muito tempo depois que ela se foi (...)
Ninguém é assim punido ou afetado, exceto aqueles que tiverem de
suportar o alarido de suas vozes.

Quase dá para ver Montaigne tapando os ouvidos com as mãos e se


refugiando em sua torre.
Entre seus muitos motivos de admiração do filósofo Sócrates estava o
fato de ele ter aperfeiçoado a arte de viver com uma mulher agressiva.
Montaigne considerava esse fato uma tribulação quase tão grande quanto a
sofrida por Sócrates nas mãos do parlamento ateniense, que o condenou à
morte por ingestão de cicuta. Ele esperava emular a política de tolerância e
humor adotada por Sócrates, e gostava da resposta que deu a Alcebíades
quando este lhe perguntou como enfrentava esse tipo de implicância. A
gente se acostuma, disse Sócrates, exatamente como os vizinhos de um
moinho se habituam ao som da roda girando. Montaigne também gostava
da maneira como Sócrates transformou a experiência num “truque”
filosófico para o próprio aperfeiçoamento espiritual, valendo-se do
temperamento difícil da mulher para praticar a arte de suportar
adversidades.
Além de vigorosa, Françoise era resistente. Sobreviveria a ele por quase
35 anos, morrendo em 7 de março de 1627 com 82 anos. Sobreviveu
igualmente aos filhos, inclusive à única que chegou à idade adulta. A mãe
de Montaigne também sobreviveu a ele. Quase ficamos com a impressão de
que todos ali contribuíram para levá-lo cedo ao túmulo.
Parte das melhores informações de que dispomos sobre o temperamento
de Françoise datam de sua velhice, muito depois da morte de Montaigne. A
essa altura, ela se tornara extremamente devota. O segundo marido de sua
filha, Charles de Gamaches, relatou que ela jejuava às sextas-feiras e por
metade da Quaresma, mesmo aos 77 anos. Mantinha intensa
correspondência com um conselheiro espiritual, Dom Marc-Antoine de
Saint-Bernard: várias cartas chegaram até nós. Ele a presenteava com
laranjas e limões; ela lhe mandava marmelada e feno. Ela costumava
escrever-lhe a respeito de suas preocupações monetárias e questões legais.
Na última carta, mostra-se aliviada com um acerto de negócios: “Com isto
deu-me Deus meios de sustentar esta casa do meu falecido marido e dos
meus filhos.” O tom é às vezes apaixonado: “Realmente não sei se não
preferiria morrer a saber que estais para partir.” Por outro lado, ela temia
pelo bem-estar do conselheiro se ele viajasse ao seu encontro: “Preferiria
morrer a vê-lo na estrada com um tempo tão ruim.” Na juventude, ela seria
provavelmente menos preocupada, mas sua ansiedade com relação a
assuntos monetários e jurídicos pode ter sido uma constante. Na pior das
hipóteses, arriscaríamos dizer que ela se preocupava mais que Montaigne
com questões práticas. O que não parecia difícil: era o caso de praticamente
qualquer um, se considerarmos seus relatos verdadeiros.
Françoise e o marido costumavam passar o dia em partes separadas do
castelo. Montaigne ia para sua torre e ela, para a sua, na outra extremidade
da muralha: a “Tour de Madame”. (Depois de ser transformada num pombal
no início do século XIX, a torre desabou, não mais existindo hoje.) Com
isto, o corpo principal do prédio ficava sendo o domínio da mãe de
Montaigne, que lá permaneceu pela maior parte do casamento do filho, até
aproximadamente 1587. Aparentemente as torres foram convertidas em
refúgios para que o jovem casal pudesse se separar um do outro e também
dela. Em seus escritos, Montaigne cala-se sobre a presença da mãe na vida
de ambos; quando menciona o jogo de cartas com a família às noites, não
dá qualquer indicação de que Vovó participasse.
Essa imagem de uma família dispersa pela propriedade não deixa de ser
triste. Mas certamente haveria dias de clima mais leve, e de qualquer
maneira nenhuma parte da propriedade devia parecer solitária ou vazia.
Sempre havia gente por perto: criados, empregados, convidados com seus
acompanhantes, às vezes crianças. O próprio Montaigne não ficava
cismando em sua torre como um conde de Gormenghost: gostava de
caminhar ao ar livre. “Meus pensamentos caem no sono quando os deixo
sentados. Minha mente não se move se as pernas não a deslocarem.” E a
separação nos estilos de vida masculino e feminino era normal. Esperava-se
mesmo que marido e mulher tivessem seus mundos à parte; instalações
novas ou modernizadas muitas vezes eram concebidas com essa finalidade.
Em 1452, Leon Battista Alberti recomendava em seu De re aedificatoria
(Da construção): “Marido e mulher devem ter quartos separados, não só
para assegurar que ele não seja perturbado por ela, quando estiver doente ou
para dar à luz, como também para permitir a ambos, mesmo no verão, uma
noite ininterrupta de sono.” As únicas diferenças na residência dos
Montaigne eram a separação dos respectivos “quartos” pela galeria externa
e o fato de ele também usar sua torre como local de trabalho.
Teria sido um bom casamento, pelos padrões da época? Certos
observadores vieram a considerá-lo desastroso; outros, um casamento típico
da época e até mesmo bom. No balanço final, não parece ter sido uma
relação terrível, apenas ligeiramente insatisfatória. Seria provavelmente
mais bem resumida, como sugeria Donald Frame, biógrafo de Montaigne,
com esta observação encontrada em Os ensaios: “Aquele que supuser,
vendo-me olhar às vezes friamente, às vezes amorosamente para minha
mulher, que qualquer dos dois olhares é fingimento será um tolo.”
Um afeto sincero pode ser depreendido da decisão de Montaigne de
dedicar uma de suas primeiras publicações a Françoise: a carta de Plutarco
à mulher após a morte do filho, na tradução de La Boétie. Dedicatórias à
esposa não eram bem-vistas, podendo ser consideradas inadequadas ou
grosseiras. Montaigne comenta, desafiador: “Que digam o que quiserem
(...) Você e eu, minha mulher, vivamos ao velho estilo francês.” Sua
dedicatória é vazada num tom caloroso, e ele chega a dizer: “Ninguém
tenho, creio eu, que me seja mais íntimo que você”, o que a posiciona num
nível próximo de La Boétie.
O afeto que ele acaso sentisse por Françoise provavelmente terá surgido
depois do casamento, e não antes. Ele entrara no casamento como um
prisioneiro recebendo as algemas sem opor resistência. “Por minha livre e
espontânea vontade, eu me teria esquivado de desposar a própria Sabedoria,
se me quisesse. Mas seja lá o que dissermos, o costume e a prática da vida
comum nos vão levando.” Ele não se importava realmente que esse tipo de
coisa fosse providenciado em seu nome, considerando muitas vezes os
outros mais dotados de sensatez. Mas precisou ser convencido, pois se
encontrava numa disposição “despreparada e contrária”. Se pudesse
escolher, não seria em absoluto do tipo casamenteiro. “Homens de humores
oscilantes como eu, que detestam qualquer tipo de liame ou obrigação, não
se adaptam muito a isto.” Mais tarde, ele tiraria o melhor proveito da
situação, chegando a se esforçar por se manter fiel — com mais êxito do
que esperava, segundo diria. Tornou-se de certa forma satisfeito, como
descobriria ser muitas vezes possível em situações que qualquer um
tenderia a evitar. “Pois não só as coisas inconvenientes, mas absolutamente
tudo, por mais feio, odioso ou repugnante, pode tornar-se aceitável em
determinadas condições ou circunstâncias.”
Felizmente, Françoise nem de longe poderia ser considerada feia ou
repugnante. Montaigne parece tê-la achado bastante atraente — ou pelo
menos é o que diria seu amigo Florimond de Raemond em nota à margem
num exemplar de Os ensaios. O problema estava mais no princípio de estar
obrigado a fazer sexo regularmente com alguém, pois Montaigne nunca
gostou de se sentir preso. Cumpria com relutância seu dever conjugal, “com
um traseiro só”, como diria ele próprio, fazendo o necessário para gerar
filhos. Também isto colhemos na nota marginal de Florimond de Raemond,
aqui reproduzida na íntegra:

Muitas vezes ouvi o autor dizer que, embora se tivesse casado cheio
de amor, ardor e juventude com sua belíssima e adorável mulher,
jamais se relacionara com ela senão com o respeito à honra requerido
no leito conjugal, nada vendo além de suas mãos e o rosto
descobertos, nem sequer seu seio, embora no convívio com outras
mulheres fosse extremamente travesso e imoral.

Parecerá espantoso a um leitor moderno, mas na época era perfeitamente


convencional. Um marido se comportando com a esposa como amante
apaixonado seria considerado algo moralmente errado, pois poderia
transformá-la numa ninfomaníaca. O adequado para um casamento era a
relação sexual mínima, sem qualquer efusão. Num ensaio quase totalmente
dedicado ao sexo, Montaigne remete à sabedoria de Aristóteles: “Um
homem (...) deve tocar a esposa com prudência e moderação, para não
arrancá-la dos limites da razão com prazeres causados por carícias
demasiado lascivas.” Os médicos também advertiam que o excesso de
prazer podia causar a coagulação do esperma no corpo da mulher,
incapacitando-a para a concepção. Era melhor que o marido proporcionasse
êxtase em outros leitos, onde não importassem eventuais danos. “Os reis da
Pérsia”, relata Montaigne, “convidavam as esposas a se juntar a eles em
seus banquetes; mas quando começavam a esquentar para valer com o
vinho e precisavam dar livre curso à sensualidade, mandavam-nas de volta
a seus aposentos”. Tratavam então de mandar vir mulheres mais indicadas
para a situação.
A Igreja se alinhava, nisso, com Aristóteles, os médicos e os reis da
Pérsia. Os manuais dos confessores da época mostram que um marido que
se entregasse a práticas pecaminosas com a esposa merecia penitência mais
severa que se fizesse a mesma coisa com outra mulher. Corrompendo os
sentidos de sua mulher, ele punha em risco sua alma eterna, traindo sua
responsabilidade para com ela. Se uma mulher casada tivesse de adquirir
hábitos licenciosos, seria melhor que o fizesse com alguém livre de tais
deveres. E de qualquer forma, como observaria Montaigne, a maioria das
mulheres parecia mesmo preferir essa alternativa.
Montaigne revela-se sardônico na questão das mulheres, mas também
pode se mostrar convencional. Ao contrário de certos contemporâneos,
contudo, ele não parecia considerar as esposas meros animais reprodutores.
Seu casamento ideal seria um autêntico encontro de mentes, e não só de
corpos; seria até mais completo que uma amizade ideal. A dificuldade
estava em que, ao contrário da amizade, o casamento não era livremente
escolhido, permanecendo na esfera da obrigação e da coerção. Além disso,
era difícil encontrar uma mulher capaz de uma relação elevada, pois em sua
maioria elas careciam de capacidade intelectual e de uma qualidade que ele
designava como “firmeza”.
A opinião de Montaigne sobre a flacidez espiritual das mulheres pode
ser por sua vez desalentadora. George Sand confessou que se sentiu “ferida
no coração” por essa opinião, tanto mais por considerar Montaigne
inspirador sob outros aspectos. Mas devemos ter em mente como era a
maioria das mulheres no século XVI. Eram lamentavelmente incultas, não
raro analfabetas e com pouca experiência do mundo. Algumas poucas
famílias nobres contratavam tutores para as filhas, mas quase sempre para
ensinar ornamentos insignificantes, como na época vitoriana: italiano,
música e alguma aritmética para a gestão da casa. A educação clássica, o
único tipo considerado valioso, brilhava quase sempre pela ausência. As
poucas mulheres verdadeiramente cultas do século XVI eram exceções
muito raras, como Margarida de Navarra, autora de uma coletânea de
contos conhecida como Heptameron, ou a poetisa Louise Labé, que
(presumindo-se que realmente tenha existido, não sendo o pseudônimo de
um grupo de poetas do sexo masculino, como dá a entender recente
hipótese) exortava as outras mulheres a “elevar a mente um pouco acima
dos carretéis e da roca de fiar”.
A França efetivamente contou um movimento feminista no século XVI.
Ele representava um dos lados da “querelle des femmes”, uma polêmica na
moda entre os intelectuais que esgrimiam argumentos contra e a favor das
mulheres: seriam elas, de maneira geral, algo bom? Os favoráveis pareciam
fazer mais sucesso que os contrários, mas um debate tão condescendente
pouca diferença fazia para a vida das mulheres.
Montaigne frequentemente é tachado de antifeminista, mas se tivesse
participado dessa querelle provavelmente se teria posicionado do lado das
mulheres. Ele escreveu, por exemplo: “As mulheres não estão erradas em
absoluto quando rejeitam as regras da vida introduzidas no mundo, na
medida em que foram estabelecidas pelos homens sem a participação
delas.” E acreditava que, por natureza, “machos e fêmeas provêm do
mesmo molde”. Tinha plena consciência da duplicidade de critérios usados
para julgar o comportamento sexual masculino e o feminino. Apesar do que
dizia Aristóteles, Montaigne desconfiava de que as mulheres tinham as
mesmas paixões e necessidades que os homens, e no entanto eram muito
mais severamente condenadas quando se entregavam a tais impulsos. Seu
hábito de mudar de perspectiva também deixava evidente para ele que sua
visão das mulheres não podia deixar de ser tão imparcial e falível quanto a
visão das mulheres sobre os homens. Seu sentimento na questão pode ser
resumido nesta observação: “Somos em quase todas as coisas juízes
injustos de seus atos, como elas dos nossos.”
Em vista dessa injustiça, não surpreende que ele tenha decidido que a
melhor política em casa seria ausentar-se da esfera feminina o máximo
possível. Ele as deixava desfrutar de uma domesticidade própria, enquanto
ele desfrutava da sua. Num ensaio sobre a solidão, escreveu:

Devemos ter esposa, filhos, bens e acima de tudo saúde, se pudermos;


mas não devemos nos apegar a tudo isto de tal maneira que nossa
felicidade disso dependa. Devemos reservar nos fundos da loja um
compartimento só para nós, inteiramente livre, para nele estabelecer
nossa verdadeira liberdade e nosso reduto principal de solidão. Ali, a
conversa habitual deve ser entre nós e nós mesmos, e tão particular
que nenhuma associação ou comunicação exterior nela encontre
lugar; ali, devemos falar e rir como se esposa não tivéssemos, nem
filhos, nem posses, nem séquito, nem criados, de tal maneira que,
chegado o momento de perdê-los, não será novidade para nós viver
sem eles.

A referência ao “compartimento nos fundos da loja” — a arrière


boutique — aparece com frequência nos livros sobre Montaigne, mas
raramente no devido contexto. Ele não se refere a um desligamento egoísta
e introvertido da vida de família, mas à necessidade de se proteger da dor
que seria causada por sua perda. Montaigne buscava o isolamento e a
retirada para não se ferir demais, mas ao fazê-lo também descobriu que essa
retirada o ajudava a estabelecer sua “verdadeira liberdade”, o espaço de que
precisava para pensar e olhar para dentro.
Ele certamente tinha seus motivos para desenvolver o distanciamento
estoico. Depois de perder sucessivamente o amigo, o pai e o irmão,
Montaigne viria a perder quase todos os filhos – na verdade, todas as filhas.
Ele registrou a triste sequência de nascimentos e mortes em seu diário, as
Ephemeris de Beuther:

28 de junho de 1570: Thoinette. Montaigne escreveu: “É o primeiro filho


do meu casamento”, mas acrescentou posteriormente: “E morreu dois
meses depois.”
9 de setembro de 1571: Nascimento de Léonor — a única que
sobreviveu.
5 de julho de 1573: Filha sem nome. “Viveu apenas sete semanas.”
27 de dezembro de 1574: Filha sem nome. “Morreu cerca de três meses
depois, sendo batizada às pressas em vista das circunstâncias.”
16 de maio de 1577: Filha sem nome; morreu com um mês.
21 de fevereiro de 1583: “Tivemos outra filha, chamada Marie, batizada
pelo senhor de Jaurillac, conselheiro do parlement, por seu tio e minha
filha Léonor. Morreu dias depois.”

Montaigne escreveu ter perdido a maioria dos filhos “sem dor, ou pelo
menos sem aflição”, pois eram muito pequenos. As pessoas realmente
tentavam não se apegar demais aos filhos na primeira idade, pois era grande
a probabilidade de que morressem, mas Montaigne parecia
excepcionalmente habilidoso para esse distanciamento. Ele reconhecia
tratar-se de um desgosto que não o atingia profundamente. Chegou a
escrever, em meado da década de 1570, que perdera “dois ou três filhos”,
como se não tivesse certeza do número, embora pudesse tratar-se na
verdade de seu hábito de se mostrar vago em matéria numérica. É bem
parecido com seu jeito de estabelecer o momento de seu acidente de
equitação, que segundo ele ocorreu “durante nossa terceira guerra civil, ou
na segunda (não lembro exatamente qual)”. Na dedicatória à esposa na
tradução de Plutarco, ele se equivoca ainda mais espetacularmente nos
detalhes, escrevendo que sua primeira filha morrera “no segundo ano de
vida”, embora tivesse morrido com dois meses. Provavelmente se tratava
antes de um ato falho no momento da redação que de um erro de memória.
Mas será mesmo? Com Montaigne, ficamos com a sensação de que tudo é
possível.
Havia na vida outras desgraças que ele sabia incapazes de incomodá-lo
tanto quanto deveriam:

Constato outros motivos comuns de aflição que dificilmente eu


sentiria se me adviessem, e tenho desprezado, ao me ocorrerem,
alguns que costumam apresentar no mundo tão terrível aspecto que eu
não ousaria ostentar minha indiferença a eles diante da maioria das
pessoas sem enrubescer.

Ficamos nos perguntando se ele contemplava aqui a possível morte da


mulher, ou talvez da mãe. Em ambos os casos, ele não teve tal sorte. Ou
talvez estivesse pensando na morte do pai, ou se perguntando o que
aconteceria se seu castelo fosse saqueado durante as guerras, ou se ele
tivesse as mãos queimadas. Aparentemente, qualquer coisa que não fosse a
morte de La Boétie parecia-lhe tolerável: fora a única coisa que o fizera
perder o equilíbrio, levando-o a evitar apegar-se tanto outra vez.
Na realidade, é provável que seu desapego fosse menos radical do que
queria dar a entender. Suas anotações sobre a morte das filhas são diretas
mas pungentes. E havia em Os ensaios ocasiões em que ele se mostrava
eloquente sobre a dor de um pai, e não apenas a sua. Seu ensaio sobre a
tristeza, escrito em meado da década de 1570, quando já perdera vários
filhos, trata de episódios de luto paterno na literatura. Ele também escreveu
com sentimento sobre a história de Níobe, que chorou tanto depois de
perder sete filhos e sete filhas que se transformou numa cachoeira de pedra
— “representando a perplexidade sombria, cega e surda que nos
estupidifica quando somos avassalados por acidentes que ultrapassam nossa
capacidade de resistência”. Fosse essa sensação causada ou não pela perda
dos filhos, Montaigne certamente sabia como era experimentá-la.
Montaigne falhou quanto à principal responsabilidade de um nobre, que
era ter um filho homem para garantir a sucessão. Mas teve uma filha
saudável, Léonor, a quem se afeiçoou à medida que foi crescendo. Nascida
em 1571, ela deve ter sido concebida não muito depois de ele ter-se
aposentado da vida pública. O que a tornava filha de sua crise da meia-
idade e de seu renascimento espiritual, quem sabe conferindo a ela uma
dose extra de força vital. Única sobrevivente, ela morreria em 1616, tendo-
se casado duas vezes e trazido ao mundo duas filhas.
Durante seu crescimento, o pai a deixou entregue basicamente à esfera
feminina da casa, como se esperava que fizesse. “O governo das mulheres
tem uma forma misteriosa de proceder; devemos deixar que elas o façam”,
escreveu, num tom que sugere alguém saindo na ponta dos pés de um lugar
onde não deveria estar. Certa vez, tendo ouvido algo que não considerou
conveniente para Léonor, ele se eximiu de intervir, sabendo que seria
descartado com escárnio se o fizesse. Ela estava lendo um livro em voz alta
para sua tutora; a palavra fouteau apareceu no texto — significava faia, um
tipo de árvore, mas parecia foutre, que significa foder. A menina nada
percebeu, mas a tutora, embaraçada, fez que se calasse. Montaigne
considerou que era um equívoco: “Nem a companhia de vinte lacaios
durante seis meses seria capaz de incutir em sua imaginação a compreensão
e o uso e todas as consequências daquelas terríveis sílabas com a mesma
eficácia daquela velha mulher com sua reprimenda e sua proibição.” Mas
ele nada disse.
Ele dizia que Léonor apresentava aspecto mais jovem que sua idade,
mesmo já tendo idade para se casar. Ela tinha “uma compleição acanhada,
pequena e frágil”. Ele considerava que a responsabilidade era de sua
mulher, que se excedera no isolamento da menina. Mas Montaigne também
concordou em dar a Léonor uma formação tranquila e agradável como a
que tivera: escreveu que decidira com a mulher que ela só fosse punida com
palavras severas, quando necessário, e mesmo assim “muito delicadas”.
Embora ele escrevesse que pouco se envolvia na criação dos filhos,
encontramos em outras passagens de Os ensaios uma encantadora visão de
Montaigne en famille, participando de brincadeiras e até de jogos de azar
envolvendo pequenas somas: “Eu dou as cartas e fico de olho na pontuação,
seja por alguns centavos ou duplos dobrões.” E eles também se divertiam
com charadas verbais. “Estivemos há pouco jogando em casa um jogo para
ver quem descobria a maior quantidade de coisas que se encontram nos
extremos”, como por exemplo a palavra “sire”, ao mesmo tempo título do
rei e forma de tratamento de comerciantes humildes, ou “dames”, para
mulheres da mais alta e também da mais baixa extração. Não temos aqui
um Montaigne frio e distante, que despreza as mulheres e ignora as
crianças, mas um homem de família, dando o melhor de si no papel do
patriarca cordial numa casa cheia de mulheres que quase sempre só o veem
com exasperação.
RESPONSABILIDADES PRÁTICAS

Em certa medida, Montaigne merecia essa reação, pois se reconhecia inútil


na casa. Preferia entregar sua gestão à mulher, que, como sua mãe, se
mostrava dotada para essas coisas. Ele gostava da disposição de Françoise
de assumir essas responsabilidades quando ele se afastava nas viagens ou a
trabalho; e provavelmente também apreciaria que ela pudesse fazê-lo
quando estava presente. Sua incapacidade nesse terreno era um dos motivos
principais do prazer que costumava sentir ao se afastar. “É horrível estar
num lugar onde tudo que vemos nos envolve e preocupa”, escreveu.
Cuidar da propriedade devia ter seu lado oneroso. “Há sempre alguma
coisa que dá errado”, queixava-se ele. A principal atividade a gerir era a
produção de vinho, que saía da propriedade às dezenas de milhares de litros
anualmente. Nem todos os anos eram bons. A inclemência do tempo
destruiu as colheitas em 1572, 1573 e 1574 — os anos em que Montaigne
escreveu seus primeiros ensaios. Outro período ruim ocorreu em 1586,
quando as imediações foram invadidas por soldados, causando devastação.
Montaigne conseguiu recuperar algumas perdas usando sua influência no
parlement de Bordeaux para vender o que restava do vinho, o que deixa
claro que era capaz de enfrentar as dificuldades quando necessário. Mas sua
pouca visão do negócio pode ser depreendida do comentário de que até já
bem tarde na vida não sabia o que significava “fermentar o vinho”.
Montaigne fazia o que tinha de fazer, mas confessava que não gostava,
tratando, portanto, de se restringir ao mínimo indispensável. Por isto é que
não se empenhou em ampliar a propriedade ou promover melhorias. Pierre
empreendera projetos dessa natureza pelo puro prazer e desafio, mas era um
homem muito diferente. Era o tipo do sujeito que hoje em dia se manteria
ocupado com tarefas individuais, provavelmente deixando-as pela metade.
Se é um perfil bastante conhecido, o mesmo se pode dizer de Montaigne,
cujos lemas certamente seriam “Tudo pelo sossego” e “Se está quebrado,
deixa ficar”.
Quando efetivamente sentia necessidade de fazer algo, ele se entregava
com energia. “Eu enfrento bem o trabalho duro; mas só se o abordo por
livre e espontânea vontade, e na medida em que for movido pelo desejo.”
Ele detestava ser obrigado a fazer coisas que o entediassem. Em 18 anos de
gestão da propriedade, escreveu, jamais fora capaz de examinar uma
escritura ou esquadrinhar devidamente um contrato. Ele se sentia uma
massa de inaptidões e relutâncias:

Não sei calcular, seja com contadores ou com uma pena; a maioria de
nossas moedas, não conheço; nem sei a diferença entre um grão e
outro, seja no solo ou no celeiro, a menos que seja óbvia, e mal posso
distinguir entre repolhos e alfaces em minha horta. Sequer identifico
os nomes dos principais utensílios domésticos ou os mais elementares
princípios da agricultura, bem conhecidos das crianças. Sei ainda
menos das artes mecânicas, do comércio e das mercadorias, da
diversidade e natureza dos frutos, vinhos e alimentos, ou sobre como
treinar um pássaro ou tratar de um cavalo ou de um cão. E, para
tornar completa minha vergonha, não faz um mês fui surpreendido na
ignorância de que se usa fermento para fazer o pão.

Montaigne percorre no mesmo espírito seu catecismo negativo de falhas


e carências ao listar a relação de coisas de que não dispunham os “canibais”
do Brasil: criados, magistrados, contratos e propriedade privada, mas
também mentiras, pobreza, traição, inveja e cobiça. Podia ser uma bênção
carecer de certas coisas.
Não que Montaigne não quisesse aprender. Em princípio, ele aprovava
todo conhecimento prático, admirando as coisas concretas e específicas.
Mas nada podia fazer quanto ao próprio desinteresse, e qualquer sensação
de obrigação o tornava ainda mais resistente. A explicação disto remontava
em parte aos suaves combates da infância: “Como nunca até hoje me foi
imposto senhor nem governador, eu sempre fui até onde me agradava, e no
meu próprio ritmo. O que me tornou fraco e imprestável no serviço dos
outros, sem valia para ninguém senão a mim mesmo.” Este trecho revela
algumas de suas verdadeiras motivações: era a sua vida que ele queria
viver. O fato de ser carente de espírito prático o deixava livre.
“Extremamente indolente, extremamente independente, fosse por natureza
ou por arte”: assim ele resumia seu temperamento. Deixava-se governar
apenas pela “liberdade e a preguiça”.
Ele sabia que havia um preço a pagar, além de ser desancado pela
mulher. As pessoas muitas vezes tiravam vantagem de sua ignorância. Mas
lhe parecia preferível perder dinheiro eventualmente do que perder tempo
correndo atrás de cada centavo e vigiando os menores movimentos dos
criados. De qualquer maneira, outras pessoas também se deixavam enganar,
por mais que tentassem evitá-lo. Seu exemplo favorito de insensatez era um
vizinho, o poderoso Germain-Gaston de Foix, marquês de Trans, que na
velhice se transformou num avaro tirano doméstico. A família e os criados
o deixavam vociferar o quanto quisesse, tratando de se adaptar às magras
rações de alimentos mas ao mesmo tempo se servindo à vontade pelas suas
costas. “Todo mundo se refestela pelos cantos da casa, apostando, gastando
e contando histórias sobre sua inútil raiva e esperteza.” Apesar disso,
acrescentava Montaigne depois de pensar melhor, não tinha importância,
pois o velho estava convencido de deter um poder absoluto na casa,
sentindo-se com isto tão feliz quanto uma pessoa como ele poderia ser.
“Nada me custa caro, senão a preocupação e os aborrecimentos”,
escrevia Montaigne: “Quero apenas tornar-me indiferente e tranquilo.”
Podemos imaginar a pressão arterial de Pascal subindo à leitura disto. O que
Montaigne dizia mais querer na velhice era um genro que lhe tirasse
qualquer responsabilidade. Na verdade, se viesse a ser manipulado e tratado
com condescendência por um estranho, seu gosto da independência
provavelmente se insurgiria — e de fato ele acrescenta a esta observação
sobre o genro uma enxurrada de comentários inversos:

Eu evito submeter-me a qualquer tipo de obrigação.

Tento não ter necessidade explícita de ninguém (...) É lastimável e


arriscado depender de outra pessoa.

Adquiri um ódio mortal a ser obrigado por outra ou para outra pessoa
que não eu mesmo.
Ele não tinha em mente a gestão da casa ao escrever isso: o tema são
seus compromissos, mais tarde, com o novo rei da França, Henrique IV, que
aparentemente o queria às suas ordens. Montaigne haveria de resistir com
uma determinação beirando a insolência — exatamente sua atitude em
relação a exigências mais domésticas. A preguiça respondia por apenas
metade de sua autoimagem, sendo a outra a liberdade. Ele chegava a ter
fantasias em que se transformava em Hípias de Élis, filósofo sofista grego
do século V a.C., que desenvolveu a capacidade da autossuficiência,
aprendendo a cozinhar, barbear-se e fazer os próprios sapatos e roupas —
tudo de que precisava. Era uma boa ideia. Mas ainda assim: um Montaigne
autossuficiente, costurando o próprio gibão com agulha e linha, cultivando
o jardim, assando o pão, curtindo o couro de suas botas? Até ele mesmo
acharia difícil imaginar cenas do tipo.
Como sempre, ele deixou o tema banhar em contradições e num espírito
de negociação. Se seus protestos de incompetência não bastavam para
eximi-lo de determinada responsabilidade, ele botava a mão na massa, e
talvez mais conscienciosamente do que gostaria de admitir.
Nietzsche escreveu sobre certas “pessoas de espírito livre” que ficam
perfeitamente satisfeitas “com uma posição acanhada ou uma situação
material que atenda estritamente a suas necessidades; pois tratam de viver
de tal maneira que uma grande alteração nas condições econômicas ou
mesmo uma revolução nas estruturas políticas não arruíne simultaneamente
sua vida”. Acrescenta que uma pessoa assim tende a ter “relações
cautelosas e efêmeras”. Isto se parece tanto com o esquema doméstico de
Montaigne que quase nos perguntamos se Nietzsche não o tinha em mente,
especialmente por acrescentar que essa pessoa “deve confiar em que o
gênio da justiça diga algo em favor de seu discípulo e protegido, caso seja
acusado de carência amorosa”.
No caso de Montaigne, a acusação era pronunciada antes de tudo por ele
mesmo. Outros o tomaram como estímulo a repeti-la desde então, em tom
duro, sem o senso de ironia do próprio Montaigne ou de Nietzsche. Mas
nada nos escritos ou no temperamento de Montaigne era tão direto assim.
Por mais que ele nos tente convencer de que é frio e distante, outras
imagens se nos afiguram: Montaigne levantando-se de um salto no
parlement para mergulhar no debate, Montaigne em profunda e apaixonada
conversa com La Boétie, até mesmo Montaigne apostando centavos no jogo
com a mulher e a filha ao pé da lareira. Certas respostas suas à questão de
como viver são de fato gélidas: cuide do que é seu, preserve sua identidade,
afaste-se dos problemas e mantenha um compartimento nos fundos da loja.
Mas outra quase poderia ser considerada o exato oposto. Estamos falando
de...
9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros

UMA SABEDORIA ALEGRE E COMUNICATIVA

“E xistem temperamentos secretos, recolhidos e introspectivos”, escreve


Montaigne. Mas o seu não é nenhum desses.

Meu padrão essencial é tendente à comunicação e à revelação. Situo-


me em campo aberto e à vista de todos, nascido para o convívio e a
amizade.

Ele adora se misturar. A conversação é algo que aprecia mais que


qualquer outro prazer. De tal maneira precisa dela que preferiria perder a
visão que a audição ou a fala, pois conversar é melhor que ler livros. E não
precisa ser uma conversa séria: o que ele mais valoriza é “a troca vívida e
penetrante que a disposição favorável e a familiaridade facultam aos
amigos, brincando e gracejando com entusiasmo e argúcia”. Qualquer
conversa é boa, desde que amistosa e de bom ânimo. Essas boas disposições
sociais deviam ser estimuladas nas crianças desde a mais tenra idade, para
extraí-las de seu mundinho fechado. “Um maravilhoso fulgor pode ser
propiciado ao julgamento humano pelo conhecimento dos homens. Estamos
todos debruçados e concentrados sobre nós mesmos, e nossa visão se reduz
ao comprimento do nosso nariz.”
Montaigne adorava o debate aberto. “Nenhuma afirmação me espanta,
nenhuma crença me ofende, por mais oposta que seja às minhas próprias.”
Ele gostava de ser refutado, pois isto dava lugar a conversas mais
interessantes e o ajudava a pensar — algo que preferia fazer por interação, e
não na contemplação do fogo, como Descartes. Seu amigo Florimond de
Raemond considerava sua conversa “a mais doce e rica de inspiração”.
Mas, quando não estava em estado de doçura ou se deixava arrebatar pelo
tema de uma discussão, Montaigne podia ser vociferante. Apaixonado,
mostrava-se imprudente e estimulava os outros a fazer o mesmo. A
liberdade de expressão era lei em sua casa. Na propriedade dos Montaigne,
dizia, não havia lugar para “estar sempre atendendo e acompanhando
alguém aqui e ali, ou outros preceitos incômodos de nosso código de boas
maneiras (ah, que hábito servil e fastidioso!)”. Cada um se comportava
como bem quisesse, e qualquer convidado que também ansiasse pela
solidão podia ficar na sua pelo tempo que quisesse, sem ofender a ninguém.
Além de descartar os procedimentos convencionais da etiqueta,
Montaigne desencorajava a tediosa conversa fiada. As performances solo
muito cheias de si também o aborreciam. Certos amigos seus eram capazes
de manter um grupo extasiado por horas com suas anedotas, mas Montaigne
preferia uma troca mais natural. Em jantares solenes fora de casa, onde a
conversa ficava na esfera das convenções, sua atenção se perdia; quando
alguém subitamente se dirigia a ele, Montaigne costumava fazer
comentários inadequados, “indignos de uma criança”. Era algo que
lamentava, pois a conversa fluente em situações triviais era valiosa, abrindo
caminho para relacionamentos mais profundos e noites mais agradáveis, nas
quais se podia brincar e rir à vontade.
Para Montaigne, “a tranquilidade e a afabilidade” não eram apenas
talentos úteis, mas fatores essenciais do bem viver. Ele tentava cultivar
“uma sabedoria alegre e sociável” — formulação que evoca a famosa
definição da filosofia, em Nietzsche, como “gaia” ou “alegre” ciência.
Como os libertins, Nietzsche concordava com Montaigne em que o
importante era uma compreensão compassiva e sociável, embora o próprio
Nietzsche a achasse difícil. Seus relacionamentos muitas vezes eram
traumáticos. Mas numa tocante passagem de um de seus primeiros livros,
Humano, demasiado humano, ele escreveu:

Entre as coisas pequenas mas infinitamente abundantes e portanto


muito eficazes às quais a ciência devia dar mais atenção que às coisas
grandes e raras está a boa vontade [Wohlwollen]. Refiro-me às
expressões de uma disposição amistosa nas interações, àquele sorriso
do olhar, ao aperto de mãos, à naturalidade que geralmente envolve
quase todos os atos humanos. Todo professor, todo funcionário inclui
esse ingrediente naquilo que considera ser do seu dever. É a contínua
manifestação de nossa humanidade, seus raios de luz, por assim dizer,
nos quais tudo prospera (...) A boa índole, a cordialidade e a
generosidade de coração (...) têm contribuído muito mais para a
cultura que as expressões muito mais reputadas desse impulso,
chamadas compaixão, caridade e abnegação.

Para Montaigne, quase sempre, a disposição amistosa era algo fácil. O


que o favorecia, pois ele precisava muito dela, fosse em casa ou na vida
profissional. Ele devia relacionar-se bem com os colegas em Bordeaux;
mais tarde, precisaria em suas atividades seduzir diplomatas, reis e temíveis
guerreiros. Muitas vezes teve de estabelecer algum entendimento com
adversários enceguecidos pelo fanatismo religioso. Em torno da
propriedade também era importante a socialização com os vizinhos — nem
sempre era fácil. Volta e meia eles aparecem em Os ensaios, não raro
envolvidos em histórias movimentadas: o avaro marquês de Trans, cuja
família, os de Foix, era muito poderosa na região; um certo Jean de
Lusignan, que se esgotava na organização de festas excessivas para os
filhos adultos; François de La Rochefoucauld, que considerava nojento
assoar o nariz num lenço, preferindo usar apenas os dedos. Certas
representantes da nobreza da região mereceram dedicatórias em capítulos
específicos: Diane de Foix, condessa de Gurson; Marguerite de Gramond; e
Mme. d’Estissac, cujo filho viajaria mais tarde à Itália com Montaigne.
Montaigne se aproximou sobretudo da mulher que se tornaria amante de
Henrique de Navarra (mais tarde Henrique IV): Diane d’Andouins,
condessa de Guiche e de Gramont, mais conhecida como “Corisande”,
nome de uma personagem de um de seus romances de cavalaria preferidos.
Para acompanhar tais amigos, Montaigne tinha de participar de muitos
entretenimentos da moda de que secretamente não gostava. Ao receber
convidados, ele podia promover uma caçada a veados, por mais que se
sentisse avesso à prática. Tinha mais sucesso quando se tratava de evitar os
torneios de luta, que considerava letais e sem sentido. Também tentava
escapulir dos divertimentos de salão da época, entre eles torneios de poesia,
jogos de cartas e adivinhações de rébus — talvez porque, como admitia ele
próprio, não se saísse bem em nenhum.
Sua casa costumava ser visitada por artistas itinerantes: acrobatas,
dançarinos, treinadores de cães amestrados e “monstros” humanos, que
tentavam desesperadamente ganhar a vida percorrendo o país. Montaigne os
tolerava, mas não se deixava impressionar por exibições fantásticas como as
de um homem que à distância arremessava grãos de milhete pelo buraco de
uma agulha. Interessava-se mais por novidades que tivessem algum
significado, como o grupo de indígenas tupinambás que encontrou em
Rouen. E percorria distâncias consideráveis para investigar informações
sobre nascimentos anômalos, como o de uma criança que nasceu tendo
presa ao torso uma parte sem cabeça de outra criança. Visitou um pastor
hermafrodita em Médoc e foi ao encontro de um homem sem braços que
conseguia carregar e disparar uma pistola, enfiar a linha numa agulha,
costurar, escrever, pentear o cabelo e jogar cartas com os pés. Como o
arremessador de milhete, este outro também sobrevivia se exibindo, mas
Montaigne o achou muito mais interessante. As pessoas falavam de
“monstros”, escreveu, mas esses indivíduos não iam de encontro à natureza,
apenas aos hábitos. Em matéria de real excentricidade, não podia haver
dúvida quanto ao que sobressaía, para Montaigne:

Não encontrei neste mundo mais evidente monstruosidade ou milagre


que eu mesmo. Acostumamo-nos a qualquer coisa estranha com o uso
e o tempo; mas, quanto mais convivo comigo mesmo e me conheço,
mais me espanta minha deformidade e menos eu me compreendo.

A propriedade, assim, era uma movimentada encruzilhada, atravessada


por ondas de gente em todas as direções. O clima era mais o de uma aldeia
que de uma residência privada. Mesmo quando se retirava em sua torre para
escrever, Montaigne raramente trabalhava sozinho ou em silêncio. Havia
sempre gente falando e trabalhando ao seu redor; em frente à janela, cavalos
eram conduzidos do estábulo e de volta a ele, enquanto galinhas
cacarejavam e cães latiam. Na temporada de produção de vinho, o retinir
das prensas estava sempre no ar. Mesmo no auge das guerras, Montaigne
mantinha sua propriedade mais aberta para o mundo que os outros — uma
decisão rara em tempos tão difíceis.
Sob certos aspectos, o mundo de Montaigne tornou-se um universo
fechado sobre si mesmo, com seus valores próprios e certo clima de
liberdade. Mas ele nunca o transformou numa fortaleza. Fazia questão de
dar as boas-vindas a quem quer que chegasse ao seu portão, embora
soubesse dos riscos e reconhecesse que isto significava ir-se deitar sem
saber se seria assassinado durante o sono por algum vagabundo ou soldado
sem rumo. Mas o princípio era incontornável. Ao escrever “situo-me em
campo aberto e à vista de todos”, Montaigne não se referia apenas a
conversas triviais: queria dizer que pretendia manter-se em comunicação
livre e sincera com outros seres humanos — mesmo aqueles que podiam
parecer determinados a matá-lo.

ABERTURA, COMPAIXÃO E CRUELDADE

Segundo Giovanni Botero, um escritor italiano de temas políticos que viveu


na França na década de 1580, o interior francês nessa época estava tão
cheio de ladrões e assassinos que toda casa era obrigada a manter “vigias
nos vinhedos e hortas; portões, trancas, ferrolhos e cães de guarda”. Ao que
parece, Botero não visitou a propriedade de Montaigne, na qual o único
encarregado da defesa era um homem por ele descrito como “um porteiro
de antigos modos e hábitos, que serve não tanto para defender meu portão,
mas para conferir-lhe mais propriedade e elegância”.
Montaigne vivia assim porque estava decidido a resistir à intimidação e
não queria tornar-se seu próprio carcereiro. Mas, paradoxalmente, também
acreditava que sua abertura lhe proporcionava mais segurança. As
residências fortemente guardadas da região eram muito mais atacadas que a
sua. Para explicar o fenômeno, ele citava Sêneca: “Lugares trancados
atraem o ladrão. O assaltante passa sem se deter pelo que está aberto.” As
trancas faziam com que um lugar ficasse parecendo valioso, e não havia a
menor grandeza em roubar uma residência na qual o ladrão recebesse as
boas-vindas de um porteiro idoso. Além disso, as regras habituais da
fortificação não se aplicam propriamente numa guerra civil: “Seu criado
pode estar nas fileiras que você teme.” Não se pode montar barricadas no
portão para fazer frente a uma ameaça que já está no interior; é muito
melhor conquistar o inimigo comportando-se com generosidade e honradez.
Os acontecimentos aparentemente davam razão a Montaigne. Certa vez,
ele hospedou uma companhia de soldados, mas se deu conta de que
tramavam tirar vantagem de sua hospitalidade para tomar o castelo. Eles
desistiram do plano, contudo, e o líder explicou a Montaigne o motivo:
ficara “desarmado” ao ver “o rosto e a sinceridade” do anfitrião.
Também no mundo exterior a abertura de Montaigne o protegia da
violência. Numa ocasião, viajando por uma floresta em perigosa região
rural, ele foi atacado por quinze ou vinte mascarados, seguidos por um
bando de arqueiros montados — uma impressionante investida,
aparentemente planejada com antecipação. Eles o conduziram a uma área
mais densa da floresta, saquearam seus pertences, apoderaram-se de seus
baús de viagem e do cofre de dinheiro e começaram a discutir como
partilhar seus cavalos e outros equipamentos. Para piorar, tiveram a ideia de
fazê-lo refém a fim de obter mais ganhos, mas não conseguiam decidir o
valor do resgate a ser cobrado. Montaigne ouviu-os debater a questão e se
deu conta de que provavelmente estabeleceriam um valor excessivamente
alto, o que significaria sua morte, se ninguém pudesse pagar. Não mais
aguentando, ele os interrompeu. Declarou então que já tinham em seu poder
tudo que conseguiriam. O resgate poderia ter o valor que fosse, não faria a
menor diferença: não veriam a cor do dinheiro. Era uma maneira arriscada
de enfrentar a situação, mas depois disso o comportamento dos bandidos
mudou dramaticamente. Fecharam-se novamente em mais discussões, e
então o chefe foi em direção de Montaigne com um ar quase amistoso.
Tirou a máscara — um gesto significativo, pois os dois podiam agora
encarar-se frente a frente, como seres humanos — e disse que tinham
decidido soltá-lo. Chegaram a devolver alguns de seus pertences, inclusive
o cofre. O chefe explicou, como escreveria Montaigne mais tarde, que “eu
devia minha liberdade a meu rosto e à liberdade e firmeza da minha fala”.
Ele foi salvo por seu ar de naturalidade e sinceridade, combinado à coragem
de enfrentar a agressão.
Era o tipo de confronto que podia acontecer a qualquer momento, a
qualquer pessoa, e Montaigne muitas vezes se perguntava quanto à melhor
maneira de lidar com isto. Seria mais indicado enfrentar diretamente o
inimigo e desafiá-lo ou buscar sua complacência mostrando submissão?
Invocar a misericórdia do agressor e esperar que fosse levado por seu
sentimento humanitário a poupá-lo? Ou seria isto loucura?
O problema é que cada resposta contém seus riscos. A ousadia pode
impressionar o outro, mas também enfurecê-lo. A submissão pode inspirar
piedade, mas tem igual probabilidade de suscitar o desprezo do inimigo, de
tal maneira que venha a descartá-lo sem maior preocupação do que se
esmagasse um inseto. Quanto a apelar a seu senso humanitário, como saber
se efetivamente dispõe dele?
Tais questões não eram de mais fácil solução no violento século XVI do
que num antigo campo de batalha mediterrâneo ou num beco de uma cidade
moderna, frente a um assaltante. São questões perenes, e Montaigne não
enxergava nenhuma resposta satisfatória. Mas nunca se cansou de explorá-
las. Reiteradas vezes, em Os ensaios, ele relata cenas envolvendo dois
indivíduos em confronto, um deles derrotado e obrigado a implorar pela
própria vida ou mostrar-se desafiador, o outro convidado a mostrar
compaixão ou negá-la.
Num desses episódios, relatado no primeiro ensaio do livro, Skanderbeg,
um herói militar albanês quatrocentista, estava a ponto de matar um de seus
próprios soldados, num acesso de fúria. O sujeito implorava misericórdia,
mas Skanderbeg não se deixava abalar. Em desespero, o soldado
desembainhou a espada e partiu para a luta — o que impressionou
Skanderbeg de tal maneira que sua raiva se evaporou e ele libertou o
homem. Em outra história, temos Edward, príncipe de Gales, que percorria
uma cidade francesa derrotada dando a torto e a direito ordens de
assassinatos em massa de cidadãos. Deteve-se apenas quando deu com três
homens acuados mas resistindo. Tomado de admiração, poupou suas vidas,
comentando em seguida que os demais habitantes também podiam ser
poupados.
Esses relatos dão a entender que a melhor política é a atitude de desafio.
Mas o mesmo ensaio examina incidentes que tiveram um outro desenlace.
Ao atacar a cidade de Gaza, Alexandre, o Grande, deu com o comandante
inimigo Betis “sozinho, abandonado por seus homens, a armadura
despedaçada, coberto de sangue e ferimentos e ainda resistindo”. Como
Edward, Alexandre foi tomado de admiração, mas apenas por um momento.
Continuando Betis a opor-lhe resistência, encarando-o de forma insolente,
Alexandre perdeu a paciência. Perfurando seus calcanhares, arrastou-o
preso a uma carroça até morrer. O comandante derrotado fora longe demais,
ainda por cima frente ao adversário errado.
Outras histórias mostram com a mesma clareza os riscos da submissão.
Montaigne recordava com nitidez o caso de Tristan de Moneins, o
comandante militar linchado numa rua de Bordeaux ao se apresentar muito
timidamente aos revoltosos contra o imposto do sal em 1548. Quando
alguém demonstra fraqueza e dispara no outro uma espécie de instinto de
caça, tudo está perdido. E raramente haverá alguma esperança se o
confronto se der com um autêntico caçador. Montaigne era obcecado com a
imagem de um veado acuado depois de horas de perseguição, exausto e sem
saída nem alternativa senão entregar-se aos caçadores, “implorando
misericórdia com as lágrimas”. Esse tipo de misericórdia nunca se
materializa.
Por mais que Montaigne encenasse confrontos mentalmente, todos
pareciam apontar para diferentes interpretações e respostas. Por isso mesmo
é que o fascinavam. Em cada caso a parte derrotada deve tomar uma
decisão, mas também o indivíduo vitorioso, pois as coisas podem dar muito
errado para ele se não avaliar corretamente a situação. Se poupar alguém
que venha a interpretar sua generosidade como fraqueza, ele também pode
ser morto. Se se mostrar duro demais, provocará rebelião e vingança.
O cristianismo parece oferecer uma resposta simples: o vitorioso deve
sempre mostrar compaixão e a vítima deve sempre dar a outra face. Mas
não se pode esperar que no mundo real as coisas funcionem assim — e
tampouco podia esperá-lo a maioria dos cristãos nessa época de violentas
guerras religiosas. Montaigne não se preocupava muito com teologia:
mergulhado em suas leituras clássicas parecia, como sempre, esquecer o
ponto de vista cristão. Para ele, de qualquer maneira, as verdadeiras
dificuldades eram antes psicológicas que morais. Ou então, se fossem
morais, seria no sentido mais amplo da expressão usado na filosofia
clássica, na qual não significava seguir preceitos, mas saber tomar decisões
justas e inteligentes na vida real.
No cômputo geral, a visão de Montaigne era de que tanto a vítima
quanto o vitorioso deviam tomar o caminho que significasse depositar a
máxima confiança no outro — vale dizer, como bons cristãos, a parte
derrotada devia pedir misericórdia e a vitoriosa, concedê-la. Mas os dois
haveriam de fazê-lo corajosamente, de “peito aberto”, livres de qualquer
submissão ou medo. A atitude de ambos os lados devia caracterizar-se por
uma “pura e límpida confiança”. Montaigne encontraria sua situação ideal
na cena ocorrida na praça Tiananmen, em Pequim, em 1989, quando os
tanques chegaram para reprimir uma manifestação de protesto. Um homem,
que de forma incompatível com a situação portava uma sacola de compras,
posicionou-se tranquilo e imóvel diante deles; em vista disso, o condutor do
primeiro tanque deteve-se. Se o sujeito tentasse se proteger ou fugir, ou
então, inversamente, se esbravejasse e brandisse os punhos, teria sido mais
fácil para o condutor matá-lo. Em vez disso, a “pura e límpida confiança”
do manifestante ocasionou uma disposição semelhante do oponente.
A coisa não funcionaria com um veado, numa situação em que o
sentimento de fraternidade é bloqueado pela relação caça-caçador; talvez
não funcionasse tampouco entre uma bruxa perseguida e um torturador,
confronto em que se interpõem elementos de fanatismo e obediência ao
desempenho de papéis. A guerra também desorganiza a psicologia habitual,
assim como o faz a histeria das multidões. Embora a cena na praça
Tiananmen fosse violenta, ela se deu em tempo de paz, ao passo que uma
batalha cria um estado mental alterado. No mundo clássico, e em certa
medida na época de Montaigne, era considerado normal que um soldado
não fosse capaz de se conter durante uma batalha. Ele estaria tomado de
furor: um frenesi arrebatadoramente destemido no qual não se deve nem se
poderia esperar qualquer manifestação de moderação ou compaixão.
Montaigne ficava perplexo com o furor, como diante da maioria dos
estados extremos. Não gostava, por exemplo, da maneira como Júlio César
supostamente insuflava seus soldados à selvageria, antes de uma batalha,
com falas assim:

Quando as armas trovejam, sentimentos piedosos


Não deves, ainda diante dos pais, abrigar;
Seus veneráveis rostos com o aço haverás de retalhar.

Dentre todos os guerreiros famosos, Montaigne admirava sobretudo o


general Epaminondas, conhecido em Tebas por sua capacidade de manter o
furor sob controle. Certa vez, em plena batalha, “terrível de sangue e ferro”,
Epaminondas se viu frente a frente com um conhecido que o hospedara
um dia. Virou-se e não o matou. Pode parecer banal, mas teoricamente um
soldado não deveria ser capaz de deliberar tal contenção, como não o faria
um tubarão em fúria instintiva para se alimentar. Epaminondas revelou-se
“no comando da própria guerra”, na formulação de Montaigne; fez com que
a batalha “acolhesse a curva da benignidade” no auge do êxtase.
Montaigne desconfiava de que a tradição do furor fosse usada apenas
como desculpa. “Cuidemos de privar as naturezas perversas, sanguinárias e
traiçoeiras desse pretexto da razão.” A brutalidade já era suficientemente
ruim em si mesma: brutalidade com a desculpa de um estado mental
elevado era pior ainda. Acima de tudo, ele lastimava o fanatismo religioso
dos que acreditavam que Deus exigia violência tão extrema e irracional
como prova de devoção.
A crueldade deixava Montaigne enojado: era mais forte que ele. Ele a
detestava cruelmente, escreveu, frisando o paradoxo. Sua aversão era
instintiva, tão parte integrante dele quanto a abertura estampada em seu
rosto. Por isso não suportava caçar. Até a visão de uma galinha tendo o
pescoço torcido ou de uma lebre capturada por cães o horrorizava. A
mesma capacidade de trocar de perspectiva que lhe permitia adotar o ponto
de vista de seu gato impedia que visse uma lebre sendo estraçalhada sem
sentir a experiência nas próprias tripas.
Se não era capaz de suportar a visão de uma lebre em sofrimento, muito
menos poderia ele tolerar as torturas e execuções judiciais comuns em sua
época. “Nem mesmo as execuções da lei, por razoáveis que sejam, posso
presenciar com o olhar firme.” Em sua carreira, podia caber-lhe ordenar
punições assim, mas ele se recusava. “Sou tão melindroso quando se trata
de machucar que nem mesmo a bem da razão poderia fazê-lo. E quando as
circunstâncias me impuseram a condenação de criminosos, mostrei-me
aquém dos reclamos da justiça.”
Ele não era o único escritor de sua época a se opor à caça ou à tortura. O
que põe Montaigne à parte era o motivo: sua relação visceral com os outros.
Quando falou com os indígenas brasileiros em Rouen, ficou impressionado
com a maneira como se referiam aos homens como metades uns dos outros,
figurando a imagem de franceses se empanturrando enquanto suas “outras
metades” morriam de fome à sua porta. Para Montaigne, todos os seres
humanos compartilham algum elemento do seu ser, assim como todos os
demais seres vivos. “É sempre a mesma e única natureza que segue seu
curso.” Mesmo que os animais não nos fossem tão familiares, ainda assim
teríamos para com eles um dever de fraternidade, simplesmente por estarem
vivos.

Existe certo respeito e um dever genérico da humanidade que nos liga


não só aos animais, que têm vida e sentimento, mas até às plantas e
árvores. Temos um dever de justiça para com os homens, e de
compaixão e bondade para com outras criaturas capazes de recebê-lo.
Existe alguma relação entre elas e nós, e um compromisso recíproco.

Esse compromisso vigora não só nos contatos de vida ou morte como


também nos mais triviais. Devemos aos demais seres todos esses
incontáveis pequenos gestos de bondade e empatia que Nietzsche chamava
de “boa vontade”. Depois do trecho citado acima, Montaigne acrescentava
esta observação a respeito de seu cão:
Não receio admitir que meu temperamento é de tal maneira brando,
infantil, que não posso recusar ao meu cão as brincadeiras a que me
convida ou que me pede fora de hora.

Ele cede ao cão porque é capaz em sua imaginação de assumir o ponto


de vista do animal, sentindo o seu desespero por livrar-se do tédio e obter a
atenção do amigo humano. Em Pascal, isto era motivo de zombaria:
segundo ele, Montaigne monta seu cavalo como se não acreditasse que
tivesse o direito de fazê-lo, perguntando-se se “o animal, pelo contrário, é
que não deveria estar fazendo uso dele”. Pois ele estava certo, e se isto
muito indispunha Pascal, teria encantado Nietzsche, cujo definitivo colapso
mental teria começado (em versão não comprovada) no momento em que
passou os braços no pescoço de um cavalo numa rua de Turim e começou a
chorar.
Entre os leitores menos emotivos, um dos que ficaram particularmente
tocados pelas observações de Montaigne a respeito da crueldade foi o
marido de Virginia Woolf, Leonard Woolf. Em suas memórias, ele via no
ensaio “Da crueldade”, de Montaigne, um texto muito mais importante do
que geralmente se considerava. Montaigne, escreveu ele, era “a primeira
pessoa no mundo a manifestar esse intenso horror pessoal à crueldade. Era
também o primeiro homem completamente moderno”. As duas coisas
estavam relacionadas: a modernidade de Montaigne residia precisamente na
“intensa consciência e no apaixonado interesse pela própria individualidade
e a de todos os outros seres humanos” — e dos não humanos também.
Até um porco ou um camundongo tem, como diz Woolf, o sentimento de
ser um “eu”. Era precisamente o que Descartes negava tão incansavelmente,
mas Woolf chegou a esta convicção por experiência pessoal, e não por
raciocínio cartesiano. Lembrava-se de ter sido instruído, na infância, a
afogar alguns filhotes de cachorro recém-nascidos que ninguém queria —
sem dúvida uma missão surpreendente para uma criança. Fez o que lhe
mandaram, mas ficou mais perturbado do que imaginava. Anos depois,
escreveria:
Observados sem muita atenção, os filhotes recém-nascidos são
pequenos objetos ou coisas, cegos, contorcidos, indiferenciados. Pus
um deles no balde d’água e imediatamente aconteceu uma coisa
extraordinária, terrível. Aquela coisa cega e amorfa começou a lutar
desesperadamente pela vida, debatendo-se, movendo as patas na água.
Percebi de repente que se tratava de um indivíduo, que, como eu, ele
era um “eu”, que em seu balde d’água vivenciava o que eu teria
vivenciado e lutava contra a morte, como eu faria se estivesse me
afogando no oceano infinito. Era, achava eu, como ainda acho, uma
coisa terrível e bárbara afogar aquele “eu” num balde d’água.

Woolf lembrou-se do incidente na idade adulta ao ler Montaigne.


Aplicou então a mesma percepção à esfera política, refletindo
particularmente sobre suas recordações da década de 1930, quando o
mundo parecia a ponto de mergulhar numa barbárie em que não havia
espaço para esse pequeno eu individual. Em escala global, nenhuma
criatura pode ter tanta importância, escreveu, mas de outra perspectiva esses
“eus” são a única coisa importante. E só uma política que os reconheça
representa alguma esperança para o futuro.
Escrevendo sobre a consciência, o psicólogo William James teve uma
reação instintiva semelhante. Nada entendemos da experiência de um cão,
do “êxtase dos ossos debaixo das sebes, dos cheiros de árvores ou postes”.
Eles nada entendem da nossa, quando por exemplo nos veem contemplando
interminavelmente as páginas de um livro. Mas os dois estados de
consciência compartilham certa qualidade: o “deleite”, a “vibração” que se
dá quando estamos completamente absortos no que fazemos. Essa vibração
nos deveria levar a reconhecer as semelhanças que partilhamos mesmo
quando os objetos de nosso interesse são diferentes. E esse reconhecimento,
por sua vez, conduziria à bondade. Esquecer essa semelhança é o pior erro
político, e também o pior do ponto de vista pessoal e moral.
Na visão de William James, como na de Leonard Woolf e de Montaigne,
não vivemos emparedados em nossas perspectivas separadas, como
Descartes em seu quarto. Vivemos na porosidade sociável. Podemos
esquivar-nos de nossa mente, ainda que por alguns momentos, para ocupar
o ponto de vista de outro ser. Esta capacidade é o verdadeiro significado de
“ser sociável”, que vem a ser a resposta deste capítulo à questão de como
viver, além da maior esperança em se tratando de civilização.
10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito

TUDO DEPENDE DO PONTO DE VISTA

A
arte de enxergar as coisas da perspectiva de outra pessoa ou de um
animal pode ser instintiva em alguns, mas também pode ser
cultivada. É o que os romancistas fazem o tempo todo. Enquanto
Leonard Woolf elaborava sua filosofia política, sua mulher, Virginia,
escrevia em seu diário:

Lembro-me de estar deitada junto a uma depressão do terreno,


esperando L[eonard] chegar & colher cogumelos, & vi uma lebre
vermelha correndo & pensei de repente “É a vida na Terra”. Eu
parecia estar vendo como tudo era telúrico, & eu mesma sendo um
tipo mais avançado de lebre; como se fosse vista por um visitante da
Lua.

Esse momento fantástico, quase alucinatório, deu a Woolf a sensação de


como ela e a lebre seriam vistas por alguém que não as olhasse com os
olhos embotados pelo hábito. Permitiu-lhe des-familiarizar o familiar — um
truque mental parecido com os utilizados pelos filósofos helenísticos
quando se imaginavam contemplando a vida humana das estrelas. Como
tantos desses truques, ele funciona ajudando a pessoa a prestar a devida
atenção. O hábito torna tudo insípido, induz ao sono. Adotar uma
perspectiva diferente é uma maneira de despertar de novo. Montaigne
adorava esse truque e o utilizava constantemente em seus textos.
Seu procedimento favorito consistia simplesmente em percorrer listas de
costumes completamente diferentes de todas as partes do mundo,
maravilhando-se com seu caráter estranho e aleatório. Seus ensaios “Do
costume” e “Dos costumes antigos” falam de países onde as mulheres
urinam de pé e os homens, agachados, onde as crianças são amamentadas
até os 12 anos, onde é considerado fatal amamentar um bebê no primeiro
dia, onde o cabelo cresce do lado direito do corpo mas é completamente
raspado do lado esquerdo, onde se deve matar o próprio pai quando chega a
certa idade, onde as pessoas esfregam as costas com uma esponja na ponta
de uma vara e onde o cabelo é usado longo na frente e curto atrás, e não o
contrário. As listas semelhantes encontradas em “Apologia” vão desde os
peruanos que alongam as orelhas até os orientais que escurecem os dentes
por considerar deselegantes os dentes brancos.
Cada cultura, adotando esses costumes, considera-se como o padrão.
Para alguém que viva num país onde os dentes são enegrecidos, parece
óbvio que apenas esses dentes possam ser considerados belos. O
conhecimento da diversidade nos ajuda a nos libertar disto, ainda que por
breves momentos de visão ampliada. “Este vasto mundo”, escreve
Montaigne, “é o espelho no qual devemos nos contemplar para nos
reconhecer do devido ângulo”. Depois de percorrer uma dessas listas,
encaramos de outra maneira nossa própria existência. Nossos olhos se
abrem para a verdade de que nossos costumes não são menos esquisitos que
os de qualquer outro povo ou pessoa.
Parte do interesse de Montaigne por essas mudanças de perspectiva
remontava à observação do espanto dos visitantes tupinambás em Rouen.
Olhar para eles enquanto observavam os franceses foi um autêntico
despertar, como o de Virginia Woolf na colina. O encontro estimulou em
Montaigne um interesse pelo Novo Mundo que o acompanharia pelo resto
da vida — todo um hemisfério desconhecido dos europeus até algumas
décadas antes do seu nascimento, e ainda tão surpreendente que mal parecia
real.
Quando Montaigne nasceu, a maioria dos europeus já aceitava a ideia de
que as Américas realmente existiam, não sendo mera fantasia. Havia quem
tivesse adquirido o hábito de comer pimenta e chocolate, e uns poucos até
fumavam tabaco. O cultivo da batata tivera início, embora sua forma
vagamente testicular ainda levasse muita gente a pensar que servisse apenas
como afrodisíaco. Ao retornar, os viajantes contavam histórias de
canibalismo e sacrifícios humanos, ou de fortunas fabulosas em ouro e
prata. À medida que a vida na Europa se tornava mais difícil, muitos
contemplavam a hipótese de emigrar, e as colônias brotavam como
cogumelos no litoral oriental americano. Tratava-se na maioria dos casos de
espanhóis, mas os franceses também tentaram a sorte. Na juventude de
Montaigne, a França parecia em condições de prosperar na nova aventura
colonial. Tinha uma grande esquadra e dispunha de portos internacionais
bem-equipados como ponto de partida — destacando-se entre eles
Bordeaux.
Várias expedições francesas foram empreendidas em meado do século,
mas uma a uma foram encontrando dificuldades. Os colonizadores
franceses tinham uma curiosa tendência para sabotar as próprias iniciativas
através de conflitos religiosos, que importaram para a América. A primeira
colônia francesa no Brasil, fundada por Nicolas Durand de Villegaignon na
década de 1550, perto do lugar onde fica atualmente a cidade do Rio de
Janeiro, foi de tal maneira comprometida pela divisão entre católicos e
protestantes que não resistiu a uma invasão dos portugueses. Na década de
1560, uma colônia predominantemente protestante na Flórida sucumbiu aos
espanhóis. A essa altura, uma guerra civil irrompera no território francês,
tornando-se difícil conseguir dinheiro e logística para grandes viagens. A
França perdeu o lugar na primeira grande bonança além-mar, aquela mesma
que fez a fortuna da Inglaterra e da Espanha. Quando veio afinal a se
recuperar e tentar novamente, era tarde demais para recobrar a vantagem
por completo.
Como tantos em sua geração, Montaigne sentia verdadeiro fascínio por
tudo que dissesse respeito às Américas, paralelamente a uma certa
descrença em relação às conquistas coloniais. Valorizava suas lembranças
da conversa com os tupinambás — que tinham chegado à França numa das
embarcações de Villegaignon — e colecionava recordações para sua estante
de curiosidades na torre: “exemplares de suas camas, cordas, espadas de
madeira e braceletes que usam durante os combates, além de grandes
bastões, abertos numa das extremidades, com cujo som marcam o ritmo em
suas danças”. Boa parte disso provavelmente fora obtida por um empregado
que vivera durante certo tempo na colônia de Villegaignon. O mesmo
indivíduo apresentou Montaigne a marinheiros e comerciantes que
alimentariam ainda mais sua curiosidade. Era ele próprio “um sujeito
simples e rude”, mas Montaigne considerava que por isto mesmo seria uma
excelente testemunha, não se sentindo tentado a enfeitar ou interpretar em
demasia o que relatava.
Além dessas conversas, Montaigne lia tudo que chegasse a suas mãos
sobre a matéria. Em sua biblioteca havia traduções da Historia de las
Indias  de López de Gómara e da Brevisima relación de la destruccion de
las Indias, de Bartolomé de Las Casas, além de originais franceses mais
recentes, particularmente dois relatos concorrentes da colônia de
Villegaignon, pelo protestante Jean de Léry e o católico André Thevet.
Dentre os dois, ele dava acentuada preferência à Histoire d’un voyage fait
en la terre du Brésil (1578), de Léry, que observava a sociedade tupinambá
com simpatia e precisão. Como se poderia esperar de um puritano
protestante, Léry admirava a preferência dos tupinambás pela nudez, em
vez de se adornarem com golas altas e adereços chamativos, como faziam
os franceses. Observou que muito poucos dentre os mais idosos tinham
cabelos brancos, suspeitando que assim fosse por não se consumirem em
“desconfiança, avareza, disputas e litígios”. E tinha em alta conta sua
coragem na guerra. Os tupinambás travavam batalhas sangrentas com
esplêndidas espadas, mas somente por questões de honra, nunca por espírito
de conquista ou cobiça. Esses combates costumavam terminar num
banquete em que o prato principal eram os prisioneiros. O próprio Léry
compareceu a um deles: nessa noite, foi despertado em sua choupana por
um homem que brandia junto a sua cama um pé humano torrado, em atitude
aparentemente ameaçadora. Deu então um salto, assustado, para alegria da
turba. Mais tarde, foi-lhe explicado que o homem estava apenas sendo um
generoso anfitrião ao lhe oferecer um pedaço. A confiança de Léry em seus
amigos foi restabelecida. Sentia-se mais seguro entre eles, segundo dizia, do
que em casa, “entre franceses desleais e degenerados”. E de fato ele haveria
de presenciar cenas não menos pavorosas nas guerras civis francesas,
quando ficou retido na cidade de Sancerre, no alto de uma colina, durante
um cerco de inverno no fim de 1572, vendo os aldeãos comerem carne
humana para sobreviver.
Montaigne leu Léry com avidez e, ao relatar seu contato com os
tupinambás, em “Dos canibais”, estabeleceu igualmente comparações com
a França, sem esquecer as devidas implicações quanto à presunção europeia
de superioridade. Num capítulo posterior, “Das carruagens”, também
observou que os dourados jardins e palácios dos incas e dos astecas
deixavam na sombra seus equivalentes europeus. Mas a simplicidade dos
tupinambás interessava Montaigne muito mais. Ele os descrevia com uma
lista de negativas desejáveis:

Trata-se de uma nação (...) em que não existe qualquer tráfico, nem
conhecimento das letras, nem ciência dos números, nem nome para
designar um magistrado ou a superioridade política, nem hábito de
servidão, riqueza ou pobreza, contratos, heranças, partilhas,
ocupações que não sejam tranquilas, preocupação com relações que
não sejam comuns, nem roupas, agricultura, metais, uso do vinho ou
do trigo. Até palavras que signifiquem mentira, traição, dissimulação,
avareza, inveja, desdém, perdão — nunca ouviram falar.

Esse tipo de “enumeração negativa” era um conhecido recurso de


retórica na literatura clássica, antecedendo em muito o contato com o Novo
Mundo. Aparece até nos textos cuneiformes sumerianos, de 4 mil anos
atrás:

Houve um tempo em que não havia cobras, não havia


escorpiões,
Não havia hienas, não havia leões,
Não havia cães ferozes, nem lobos,
Não havia medo, nem terror,
O homem não tinha rivais.

Era perfeitamente natural que voltasse a aparecer nos textos


renascentistas sobre o Novo Mundo. A tradição teria prosseguimento: no
século XIX, Herman Melville descreveu o vale de Typee, nas ilhas
Marquesas, como um lugar sem “execuções hipotecárias, protesto de
títulos, contas a pagar, dívidas de honra (...) nem parentes pobres (...) viúvas
desvalidas (...) ou mendigos; nem prisões para devedores; nem nababos em
Typee; ou, em poucas palavras — sem dinheiro!”. A ideia era que as
pessoas podiam ser mais felizes levando uma vida desimpedida e próxima
da natureza, como Adão e Eva no Jardim do Éden. Os estoicos tinham
explorado muito essa fantasia da “Época de Ouro”: Sêneca imaginava um
mundo em que não se acumulavam bens, as armas não eram usadas para a
violência e os rios não eram poluídos por canos de esgoto. Sem casas, as
pessoas até dormiam melhor, pois não eram despertadas com um susto no
meio da noite pelo ranger das madeiras.
Montaigne entendia a atração dessa fantasia e a compartilhava. Como as
frutas silvestres, escreveu, os selvagens preservam plenamente suas
qualidades naturais. Por isso é que se mostravam capazes de tanta coragem,
pois seu comportamento na guerra não era comprometido pela ganância.
Até os rituais canibalescos dos tupinambás, longe de serem degradantes,
mostravam o melhor dos povos primitivos. As vítimas evidenciavam uma
coragem espantosa na espera de seu fim e chegavam a desafiar seus
captores com provocações. Montaigne ficou impressionado com uma
canção em que um prisioneiro com os dias contados desafia os inimigos a ir
em frente e comê-lo à saciedade. Ao fazê-lo, canta o prisioneiro, lembrem-
se de que estão comendo seus próprios pais e avós. Eu os comi no passado,
de modo que será sua própria carne que estarão saboreando! Temos aqui
mais uma daquelas cenas arquetípicas de confronto: o derrotado não tem
saída mas demonstra uma estoica firmeza frente ao inimigo. É disso,
depreende-se, que os seres humanos seriam invariavelmente capazes se
seguissem sua verdadeira natureza.
A canção do prisioneiro é uma das duas “canções do canibal” que
encontramos em Os ensaios de Montaigne. A outra, também procedente dos
tupinambás, é uma canção de amor que ele pode ter ouvido em Rouen em
1562, pois louva sua sonoridade, descrevendo o tupinambá como “uma
língua amena, de som agradável, evocando o grego em suas terminações”.
Em sua própria tradução em prosa, diz a canção:
Víbora, fica; fica aqui, víbora, para que do padrão das tuas cores
minha irmã extraia o modelo e a artesania de um rico cinturão que eu
possa dar ao meu amor; para que assim a tua beleza e o teu padrão
sejam para sempre preferidos aos das outras serpentes.

Montaigne apreciava a elegância simples dessa canção, em contraste


com os versos europeus por demais elaborados de sua época. Em outro
ensaio, ele escreveu que esse tipo de “poesia puramente natural” — do qual
faziam parte as vilanelas tradicionais de sua Guyenne natal, assim como as
canções trazidas do Novo Mundo — rivalizava com os poemas mais
requintados encontrados nos livros. Nem mesmo os poetas clássicos tinham
como competir.
A “canção de amor canibal” de Montaigne teria uma vida
surpreendentemente prolongada, independente do resto de Os ensaios.
Chateaubriand a usou em suas Mémoires d’outre tombe, nas quais uma
atraente rapariga norte-americana entoa algo semelhante. Ela migraria em
seguida para a Alemanha, onde ressurgiu na forma de um Lied no século
XVIII — num país que, fora isso, pouco se interessou inicialmente por
Montaigne. Juntamente com certas observações elogiosas sobre os fogões
alemães, as duas canções canibalescas foram os únicos fragmentos da
produção montaignesca a terem alguma repercussão nessa parte do mundo
até a época de Nietzsche. “Víbora, fica” foi traduzida por alguns dos
maiores poetas românticos alemães: Ewald Christian von Kleist, Johann
Gottfried Herder e até o grande Johann Wolfgang von Goethe — que
compôs uma Libeslied eines Amerikanischen Wilden (“Canção de amor de
um selvagem americano”) e uma Todeslied eines Gefangenen (“Canção de
morte de um prisioneiro”). Os românticos alemães tinham especial queda
por canções sobre amor e morte, e portanto não surpreende que tanto se
interessassem pelas transcrições de Montaigne. O que causa espécie é que
se apegassem ao texto, ignorando praticamente tudo mais — mas é afinal o
que os leitores costumam fazer, em maior ou menor grau.
Como Léry, Montaigne podia ser acusado de romantizar os povos do
Novo Mundo. Mas estava por demais ciente das complexidades da
psicologia humana para realmente pretender varrer boa parte dela para viver
como um fruto silvestre. Reconhecia igualmente que as culturas americanas
podiam ser tão estúpidas e cruéis quanto as europeias. Como a crueldade
era o vício que mais deplorava, não deixa de ser significativo que não tenha
tentado fechar os olhos ao seu papel nas religiões do Novo Mundo, algumas
delas realmente sanguinolentas. “Eles queimam as vítimas vivas, tirando-as
da fogueira meio assadas, para arrancar-lhes as entranhas. Outras, inclusive
mulheres, são esfoladas vivas, e com suas peles ensanguentadas eles vestem
e fantasiam outras pessoas.”
Ele descrevia essas atrocidades mas assinalava que pareciam excessivas
sobretudo porque os europeus não as conheciam. Práticas não menos
terríveis eram aceitas bem mais perto de casa, em virtude da força do
hábito. “Não lamento que tomemos nota do bárbaro horror de tais atos”,
escreveu, a respeito dos sacrifícios praticados no Novo Mundo, “mas
lamento profundamente que, julgando com razão esses erros, tão cegos
fiquemos ante os nossos próprios”. Montaigne queria que os leitores
abrissem os olhos e vissem. Os povos da América do Sul não eram
fascinantes apenas em si mesmos. Constituíam um espelho ideal, no qual
Montaigne e seus compatriotas podiam “reconhecer-se de um ângulo
adequado”, despertando-os de seu sonho presunçoso.

SELVAGENS NOBRES

Os leitores alemães do século XVIII podem não ter encontrado grande


interesse em Montaigne, à parte seus Volkslieder, mas uma nova geração de
leitores franceses que o redescobriam nesse mesmo período demonstrou
mais curiosidade por seus canibais e espelhos do que ele mesmo poderia
imaginar.
Foram estimulados nesse sentido por uma bela edição publicada em
1724. Os ensaios continuava proibido na França — uma proibição que já
vigorava havia cinquenta anos —, mas agora o país começava a receber
uma torrente de textos de Montaigne contrabandeados da Inglaterra, onde o
eLivros protestante francês Pierre Coste organizara uma edição para o novo
século. Coste enfatizava deliberadamente o aspecto subversivo de
Montaigne, não interferindo no texto, mas adicionando toda uma
parafernália, particularmente Da servidão voluntária, de La Boétie,
reproduzido na íntegra na edição de 1727. Era a primeira publicação de Da
servidão voluntária desde o lançamento dos panfletos protestantes no
século XVI, e com certeza a primeira vez em que surgia acoplado a Os
ensaios. O livro alterava Montaigne por associação, conferindo-lhe uma
aura de rebeldia política e pessoal, fazendo-o aparecer como o tipo de
escritor cuja tranquila filosofia podia ocultar significados mais turbulentos.
Coste contribuiu para criar uma versão de Montaigne ainda hoje
disseminada: um radical secreto, que se encobre sob um véu de discrição.
Em particular, sua edição fez com que Montaigne ficasse parecendo um
philosophe livre-pensador do Iluminismo que nascera dois séculos
adiantado. Os leitores do século XVIII se identificavam com ele, como
acontece tantas vezes, e os espantava que ele tivesse esperado tanto tempo
para encontrar a geração efetivamente capaz de entendê-lo.
Essa nova classe de leitores “esclarecidos” reagia com paixão ao retrato
do corajoso tupinambá por ele pintado. Os estoicos canibais de Montaigne
se enquadravam à perfeição numa nova figura de fantasia: o selvagem
nobre, criatura de impossível perfeição que associava a simplicidade
primitiva ao heroísmo clássico, tornando-se verdadeiro objeto de culto. Os
seguidores do culto adotavam o ponto de vista de Montaigne segundo o
qual os canibais tinham seu próprio senso de honradez e constituíam um
espelho da civilização europeia. Mas deixavam escapar a compreensão,
também encontrada em Montaigne, de que os “selvagens” eram tão falhos,
cruéis e bárbaros quanto qualquer outro povo.
Entre os escritores que se apoderaram com deleite dos tupinambás de
Montaigne estava Denis Diderot, filósofo que ficou famoso por sua
contribuição à monumental compilação de conhecimentos da época, a
Encylopédie, assim como por incontáveis romances e diálogos filosóficos.
Diderot leu Montaigne no início de sua carreira, gostou e honrou-o com a
citação de Os ensaios em seus escritos — geralmente, mas nem sempre,
dando-lhe o devido crédito. Em seu breve Supplément au voyage de
Bougainville, de 1796, Diderot escreveu entusiasticamente sobre os povos
do Pacífico Sul, então recentemente descobertos pelos europeus e sendo
portanto os equivalentes, no seu século, dos indígenas americanos da época
de Montaigne. Como os tupinambás, os ilhéus do Pacífico pareciam levar
uma vida simples, quase em estado de graça. Os aspectos menos palatáveis
de sua cultura eram fáceis de ignorar, pois a Europa pouco sabia deles. Isso
deixava espaço suficiente para invenções, notadamente a de que os ilhéus
desfrutavam de uma sexualidade hedonista com qualquer um, a qualquer
momento. No Supplément, Diderot botava na boca de um de seus
personagens taitianos a recomendação aos europeus de que apenas
obedecessem à natureza para ser felizes, não havendo qualquer outra lei a
seguir. Era o que seus compatriotas queriam ouvir.
O nobre selvagem foi conduzido a um patamar ainda mais elevado por
Jean-Jacques Rousseau, outro escritor influenciado por Montaigne
(dispomos ainda hoje de seu exemplar anotado de Os ensaios). Ao contrário
de Diderot, Rousseau considerava a sociedade primitiva tão perfeita que
não podia de fato existir em parte alguma do mundo, nem mesmo no
Pacífico. Ela funcionava apenas como um contraste ideal à balbúrdia em
que se haviam transformado as sociedades existentes. Toda civilização era
por definição corrompida.
Em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau imagina
como poderia ter sido o homem sem as cadeias da civilização. “Eu vejo um
animal (...) saciando a fome debaixo de um carvalho, matando a sede no
regato mais próximo, fazendo o próprio pão ao pé da mesma árvore que lhe
proporcionou o alimento.” Esse homem natural extrai da natureza tudo de
que precisa. Ela não o mima, mas ele não precisa ser mimado. As condições
muito duras encontradas desde a infância o tornaram resistente às doenças,
e ele é suficientemente forte para afugentar desarmado os animais
selvagens. Não dispõe de machados, mas se vale dos músculos para quebrar
galhos pesados. Não tem estilingues ou armas de fogo, mas arremessa
pedras com força suficiente para derrubar qualquer presa. Não carece de
cavalos, pois corre com a mesma velocidade deles. Só quando a civilização
torna o homem “sociável e um escravo” é que ele perde sua virilidade,
aprendendo a ser fraco e a temer tudo ao seu redor. Aprende também a se
desesperar: ninguém jamais ouviu falar de um “selvagem livre” se
suicidando, diz Rousseau. Ele perde até a natural tendência a se mostrar
compassivo. Se alguém cortar a garganta de uma pessoa debaixo da janela
de um filósofo, é provável que este tape os ouvidos com as mãos, fingindo
não ouvir; um selvagem jamais faria isso. Um homem natural não deixaria
de ouvir a voz interna que o leva a se identificar com os semelhantes —
uma voz que se parece muito com a que leva Montaigne a sentir empatia
por qualquer ser humano em sofrimento.
Se invertermos a cronologia para imaginar Montaigne lendo Rousseau
em sua poltrona, não deixa de ser intrigante imaginar até onde ele
conseguiria prosseguir sem deixar de lado o livro. Na parte inicial deste
trecho, ele poderia ficar encantado, sentindo-se em perfeita harmonia com o
autor. Alguns parágrafos adiante, já começaria a hesitar e franzir o cenho.
“Não sei, não...”, poderia murmurar, à medida que a retórica de Rousseau
ganhasse corpo. Montaigne precisaria fazer uma pausa para examiná-la de
ângulos diferentes. Será que a sociedade realmente nos torna insensíveis?,
perguntaria. Não vivemos melhor quando acompanhados? O homem
realmente nasce livre? Já não começa cheio de fraquezas e imperfeições?
Sociabilidade e escravidão andam de mãos dadas? E, por sinal, será que
alguém seria realmente capaz de atirar uma pedra com tanta força que
pudesse matar à distância, sem um estilingue?
Rousseau nunca se detém ou muda de direção. Deixa-se levar, arrastando
consigo muitos leitores; tornou-se por sinal o autor mais popular da época.
A leitura de algumas páginas de Rousseau nos faz sentir a grande diferença
em relação a Montaigne, mesmo quando este parece ter sido uma fonte de
suas ideias. Montaigne é salvo de arroubos de fantasia primitivista por sua
tendência a tomar certa distância do que diz, no próprio momento em que o
diz. Seu “mas não sei, não” sempre se manifesta. Além disso, seu objetivo
genérico é diferente do de Rousseau. Ele não está preocupado em mostrar
que a civilização moderna é corrompida, mas que todas as perspectivas
humanas sobre o mundo são corrompidas e parciais por natureza. Isto se
aplica aos visitantes tupinambás mirando perplexos os franceses em Rouen,
assim como a Léry ou Thevet no Brasil. A única esperança de deixar para
trás a névoa das interpretações equivocadas está em permanecer atento a
sua existência: vale dizer, caminhar às próprias custas na direção da
sabedoria. Mas mesmo esta não deixa de ser uma solução imperfeita.
Jamais poderemos escapar totalmente a nossas limitações.
Autores como Diderot e Rousseau não se sentiam atraídos apenas pelo
“canibal” Montaigne, mas por todas as passagens em que ele escrevia sobre
os modos de vida simples e naturais. O livro de Rousseau no qual mais se
evidenciam elementos de Os ensaios é Émile, romance pedagógico de
enorme sucesso que mudou a vida de toda uma geração de crianças
educadas no rigor da moda, ao preconizar uma criação “natural”. Pais e
tutores deviam educar as crianças com brandura, propunha ele, permitindo
que conhecessem o mundo seguindo a própria curiosidade mas cercando-as
de oportunidades de viagem, conversação e experiência. Ao mesmo tempo,
elas também deviam ser habituadas, como pequenos estoicos, a um rigoroso
condicionamento físico. Esta orientação já se encontrava no ensaio de
Montaigne sobre a educação, embora Rousseau só eventualmente mencione
o antecessor em seu livro, em geral para criticá-lo.
Ele volta a insultar Montaigne no início de sua autobiografia, as
Confissões — obra que pode ser considerada em certa medida inspirada no
projeto montaignesco de autorretrato. Em seu prefácio original (omitido em
muitas edições posteriores), Rousseau trata de descartar essas acusações,
dizendo: “Situo Montaigne em posição de destaque entre os dissimuladores
que pretendem enganar dizendo a verdade. Ele se apresenta com defeitos,
mas só se atribui defeitos adoráveis.” Se Montaigne iludia o leitor, então
não é ele, mas Rousseau, a primeira pessoa na história a escrever um relato
franco e completo sobre si mesmo. O que permite a Rousseau dizer, a
respeito de seu próprio livro: “É este o único retrato de um homem que
existe e provavelmente existirá exatamente de acordo com a natureza e
pintado em toda a sua verdade.”
As duas obras efetivamente diferem, e não só por serem as Confissões
uma narrativa, reconstituindo a vida do autor da infância em diante, em vez
de capturar tudo de uma só vez, como Os ensaios. Há também uma
diferença de propósito. Rousseau escreveu o livro por se considerar tão
excepcional, fosse na genialidade ou às vezes até na perversidade, que era
preciso apreender tão rara combinação de fatores antes que se perdesse para
o mundo.

Eu conheço os homens. Não sou feito como nenhum que até hoje
tenha conhecido; arrisco-me a crer que não fui feito como qualquer
outro que exista (...) Quanto a saber se a Natureza acertou ou errou ao
quebrar o molde em que fui feito, é algo que ninguém poderá avaliar
antes de me ler.

Montaigne, em contraste, se via como um homem perfeitamente comum


sob todos os aspectos, exceto pelo hábito nada comum de anotar as coisas.
Ele “representa a forma inteira da condição humana”, como todos nós,
inclinando-se assim a se apresentar como espelho para os outros — o
mesmo papel que atribui aos tupinambás. É esta a tese central de Os
ensaios. Se ninguém pudesse reconhecer-se nele, por que haveria alguém de
lê-lo?
Alguns contemporâneos observaram estranhas semelhanças entre
Rousseau e Montaigne. Rousseau foi abertamente acusado de plágio: um
panfleto assinado por Dom Joseph Cajot, com o contundente título de Os
plágios de Rousseau em matéria de educação, opinava que a única
diferença estava no fato de Montaigne se deixar arrebatar menos que
Rousseau e mostrar-se mais conciso — certamente a única vez em que esta
última qualidade foi jamais atribuída a Montaigne. Outro crítico, Nicolas
Bricaire de la Dixmerie, inventou um diálogo no qual Rousseau reconhece
ter copiado ideias de Montaigne, mas argumentando que nada tinham em
comum porque ele escreve “por inspiração”, ao passo que Montaigne
escreveria “friamente”.
Rousseau viveu numa época em que o arrebatamento, a inspiração e o
ardor eram admirados. Significavam, precisamente, que o sujeito estava em
contato com a “Natureza”, não se reduzindo a mero escravo das exigências
da civilização. Era selvagem e sincero, estava na onda canibal.
Os leitores setecentistas que seguiam Montaigne em sua admiração dos
tupinambás e em seus escritos sobre a natureza evoluíam gradualmente para
um pleno romantismo — tendência que dominaria os últimos anos do
século XVIII e os primeiros do seguinte. E Montaigne nunca mais seria o
mesmo depois que os românticos se apropriaram dele.
Desde sua formulação inicial em forma de uma resposta ligeiramente
rebelde e aberta à pergunta sobre como bem viver, o “Desperte do sono do
hábito” foi-se gradualmente transformando em algo muito mais incendiário
e até revolucionário. Depois do romantismo, já não seria fácil ver em
Montaigne uma tranquila e digna fonte de sabedoria helenística. Dali em
diante, os leitores estariam sempre tentando aquecê-lo de alguma forma. Ele
passaria a ter, para sempre, um lado selvagem.
11. P. Como viver? R. Viva com temperança

ELEVANDO E BAIXANDO A TEMPERATURA

S
ob muitos aspectos, os leitores do fim do século XVIII e início do
século XIX tinham facilidade de gostar do Montaigne que
inventavam para uso próprio. Além de apreciar seu enaltecimento
dos americanos, eles se identificavam com o espírito aberto que tinha a seu
próprio respeito, sua disposição de explorar as contradições de seu
temperamento, sua indiferença às convenções e o desejo de romper com
hábitos fossilizados. Gostavam do interesse que demonstrava pela
psicologia, especialmente a percepção da coexistência de diferentes
impulsos numa mesma mente. Além disso — e representavam a primeira
geração de leitores a se sentir dessa maneira em número expressivo —,
gostavam do seu estilo, em toda a sua exuberante desordem. Eles
aprovavam a maneira como aparentemente liberava o que quer que lhe
viesse ao espírito a qualquer momento, sem se preocupar em arranjar as
ideias de forma ordeira.
Os leitores da era romântica apreciavam particularmente os sentimentos
intensos de Montaigne a respeito de La Boétie, por se tratar de sua única
manifestação de emoções fortes. O fim trágico da história de amor, com a
morte de La Boétie, a tornava ainda mais bela. A resposta simples de
Montaigne à pergunta sobre por que se amavam — “Porque era ele, porque
era eu” — transformou-se em frase feita, denotando o mistério
transcendente contido em toda forma de atração humana.
Em sua autobiografia, a escritora romântica George Sand conta que na
juventude ficou obcecada com Montaigne e La Boétie, representando um
autêntico protótipo da ligação espiritual que ela ansiava encontrar — e de
fato encontraria, mais tarde, com amigos escritores como Flaubert e Balzac.
O poeta Alphonse de Lamartine tinha um sentimento parecido. Escreveu ele
a respeito de Montaigne, numa carta: “Tudo que nele admiro é a amizade
por La Boétie.” Ele já se valera da frase de Montaigne para descrever seus
próprios sentimentos numa carta anterior ao mesmo amigo: “Porque é você,
porque sou eu.” E adotou o próprio Montaigne como companheiro,
escrevendo sobre “o amigo Montaigne: sim, amigo”.
O teor intenso ou ardoroso dessas novas reações a Montaigne também se
reflete no aumento, nessa época, das peregrinações à sua torre. Os visitantes
eram atraídos à propriedade de Montaigne pela curiosidade, mas uma vez lá
pareciam perder o controle sobre as emoções, entrando em transes
meditativos, sentindo a presença de Montaigne ao seu redor. Não raro
sentiam como se tivessem se transformado nele por alguns momentos.
Muito pouco disso se havia manifestado nos séculos anteriores. Os
descendentes de Montaigne viveram na propriedade até 1811, e durante
quase todo esse tempo ninguém interferiu em suas vidas, fosse quando
transformavam o andar térreo da torre em depósito de batatas ou o quarto
do primeiro andar ora em canil, ora em galinheiro. Isto só mudaria quando o
filete dos primeiros visitantes românticos se transformou num fluxo regular,
até que as batatas e galinhas finalmente deram lugar a uma recriação
organizada do ambiente de trabalho de Montaigne.
Tudo isto parecia óbvio aos românticos. Naturalmente, se alguém se
interessava pelos escritos de Montaigne, apreciaria estar lá pessoalmente,
contemplando de sua janela a paisagem que ele via diariamente ou se
aproximando do lugar onde se sentava para escrever, e quase chegando a
ver suas palavras aparecerem fantasmagoricamente. Ignorando a algazarra
que certamente teria lugar no pátio lá embaixo, e provavelmente também no
quarto dele, o visitante podia imaginar a torre como uma cela monástica
habitada por um Montaigne ermitão. “Apressemo-nos a atravessar a
soleira”, escreveu um dos primeiros visitantes, Charles Compan, referindo-
se à biblioteca da torre:

Se o seu coração bater como o meu com uma emoção indescritível; se


a lembrança de um grande homem inspirá-lo essa profunda veneração
que não podemos recusar aos benfeitores da humanidade — entre.

A tradição da peregrinação prolongou-se além da era propriamente


romântica. Ao escrever sobre sua visita à torre em 1862, o marquês de
Gaillon resumiu a dor da separação em linguagem amorosa:

Mas finalmente devemos deixar esta biblioteca, este compartimento,


esta querida torre. Adeus, Montaigne!, pois deixar este lugar é me
separar de você.

O problema, em todos esses desmaios apaixonados nos braços de


Montaigne, sempre foi o próprio Montaigne. Fantasiar dessa maneira a seu
respeito é alienar-se do seu jeito de fazer as coisas. Deixar de lado as partes
de Os ensaios que interferem na interpretação de cada um já pode ser
considerado uma atividade imemorial, mas os ardorosos românticos
enfrentavam mais dificuldades que a maioria. Eles estavam constantemente
deparando com coisas assim:

Não tenho grande experiência nessas agitações ardorosas, sendo como


sou de temperamento indolente e moroso.

Gosto de pessoas de natureza temperada e moderada.

Meus excessos não me levam muito longe. Nada há de extremo ou


estranho neles.

As vidas mais belas, em minha opinião, são as que se adaptam ao padrão


humano comum, com ordem, mas sem milagre nem excentricidade.

O poeta Alphonse de Lamartine era um desses leitores frustrados. Ao


travar conhecimento com Montaigne, passou a idolatrá-lo, mantendo
sempre um exemplar de Os ensaios no bolso ou na mesa, para lançar mão
dele sempre que sentisse necessidade. Mas viria mais adiante a se voltar
contra seu ídolo com igual veemência, decidindo então que Montaigne nada
sabia dos verdadeiros sofrimentos da vida. Explicou a um correspondente
que só fora capaz de amar Os ensaios na juventude — vale dizer, cerca de
nove meses antes, quando começou a se derramar em admiração pelo livro
em suas cartas. Agora, com 21 anos, já pudera amadurecer na dor, achando
Montaigne por demais frio e comedido. Talvez, imaginava, pudesse retornar
a ele muitos anos depois, na velhice, quando seu coração tivesse sido
ressecado por mais sofrimento ainda. No momento, a moderação do
ensaísta o deixava decididamente doente.
George Sand também escreveu que “não era discípula de Montaigne”
quando ele entrava em sua “indiferença” estoica ou cética — em seu
equilíbrio ou ataraxia, meta já então fora de moda. Ela amara sua amizade
com La Boétie, único indício de calor humano, mas não era o bastante, e ela
se cansou dele.
O pior obstáculo para os leitores românticos era um trecho em que
Montaigne relatava sua visita ao famoso poeta Torquato Tasso em Ferrara,
durante sua viagem pela Itália em 1580. A obra mais festejada de Tasso, o
poema épico Gerusalemme liberata, tivera enorme êxito ao ser publicada
naquele mesmo ano, mas o poeta perdera o juízo, sendo confinado num
asilo de loucos, onde passou a viver em condições terríveis, cercado de
lunáticos. Passando por Ferrara, Montaigne foi vê-lo e ficou horrorizado.
Sentiu compaixão, mas desconfiava de que Tasso fora levado àquela
condição por passar tempo demais entregue a estados de êxtase poético. O
resplendor de sua inspiração o privara da razão: ele se deixara “cegar pela
luz”. A visão do gênio reduzido ao idiotismo entristeceu Montaigne. Pior
ainda, irritou-o. Que desperdício, destruir-se dessa maneira! Ele sabia que
era necessário entregar-se ao frenesi de tal maneira para escrever poesia,
mas qual o sentido de um certo “frenesi” que eliminava a possibilidade de
voltar a escrever? “O arqueiro que atira além do alvo erra tanto quanto o
que não consegue alcançá-lo.”
Contemplando dois escritores tão diferentes quanto Montaigne e Tasso e
admirando ambos, os românticos acompanhavam Montaigne na convicção
de que Tasso desencaminhara a própria mente com a poesia. E entendiam a
tristeza de Montaigne com o fato. O que não entendiam nem perdoavam era
sua irritação. Os românticos eram adeptos da genialidade que cega; eram
adeptos da melancolia; eram adeptos de formas intensas de identificação
imaginativa. Mas não queriam saber de irritação.
Montaigne obviamente não é “um poeta”, bradou um desses leitores,
Philarète Chasles. Jules Lefèvre-Deumier lamentava a “indiferença estoica”
de Montaigne ante o sofrimento de outros homens — o que parece uma
leitura equivocada do trecho sobre Tasso. O verdadeiro problema era que os
românticos tomavam partido. Identificavam-se com Tasso nesse episódio, e
não com Montaigne, que representava o mundo incompreensível com o
qual sempre se achavam defrontados. Como poderia Nietzsche ter alertado
a Montaigne,

A moderação acha-se bela; não percebe que aos olhos do imoderado


pode parecer escura e sóbria, e portanto feia.

Nesse caso, na verdade, Montaigne é que fazia o papel do rebelde.


Fazendo o elogio da moderação e do equilíbrio e pondo em dúvida o valor
dos excessos poéticos, ele ia de encontro à tendência não só do romantismo,
mas de sua própria época. Os leitores do Renascimento fetichizavam os
estados extremos: o êxtase era o único em que se podia escrever poesia,
assim como seria a única maneira de lutar numa batalha ou se apaixonar.
Nos três casos, Montaigne aparentemente dispunha de um termostato
interno que o desligava automaticamente quando a temperatura ultrapassava
certo ponto. Por isso é que admirava tanto Epaminondas, o único guerreiro
clássico que mantinha a cabeça fria no fragor do combate, por isso dava
mais valor à amizade que à paixão. “Os humores transcendentais me
assustam”, dizia. As qualidades que valorizava eram a curiosidade, a
sociabilidade, a bondade, a fraternidade, a adaptabilidade, a reflexão
inteligente, a capacidade de enxergar as coisas do ponto de vista de um
outro e a “boa vontade” — nenhuma delas compatível com a fornalha
ardente da inspiração.
Montaigne chegava a afirmar que a verdadeira grandeza de alma é
encontrada “na mediocridade” — uma observação chocante e mesmo,
paradoxalmente, extremada. Os modernos foram de tal maneira treinados a
considerar a mediocridade como uma condição limitada e empobrecedora
que fica difícil saber o que pensar quando ele diz algo assim. Estaria mais
uma vez jogando com o leitor, como suspeitam que faça quando diz ter
memória fraca e intelecto lento? Talvez o esteja, em certa medida, mas
também parece estar falando sério. Montaigne não confia em ambições
divinas; para ele, aqueles que tentam alçar-se acima do que é humano
conseguem apenas cair no subumano. Como Tasso, tentam transcender os
limites, mas em vez disso perdem suas faculdades humanas normais. Ser
verdadeiramente humano significa comportar-se não só de maneira comum,
mas ordenada, palavra definida no Oxford English Dictionary como
“organizada, regulada; ordeira, regular, moderada”. Significa viver
adequadamente, ou à propos, de modo a avaliar as coisas pelo exato valor e
comportar-se de maneira apropriada a cada situação. Por isso é que, no
dizer de Montaigne, viver adequadamente é “nossa grande e gloriosa obra-
prima” — uma linguagem pomposa, mas empregada aqui para descrever
uma qualidade que pode ser tudo menos pomposa. Para Montaigne, a
mediocridade não significa um embotamento causado pela falta de uma boa
reflexão, ou pela falta de imaginação que impede de enxergar além do
próprio ponto de vista. Significa aceitar que se é igual a todos e que se
carrega a forma da condição humana em sua totalidade. Não poderia haver
algo mais distante de Rousseau e seu sentimento de se destacar de toda a
humanidade. Para Montaigne:

Não há nada tão belo e legítimo quanto ser um homem de forma boa e
adequada, nem conhecimento tão difícil de adquirir quanto o
conhecimento de como viver esta vida bem e com naturalidade; e a
mais bárbara de nossas doenças é desprezar o nosso ser.

Mas ele sabia, apesar de tudo, que a natureza humana nem sempre se
amolda a essa sabedoria. Ao lado do desejo de ser feliz, de alcançar a paz
emocional e estar no pleno domínio das próprias faculdades, alguma coisa
compele periodicamente as pessoas a destruir as próprias conquistas. É o
que Freud chamava de princípio de thanatos: a pulsão para a morte e o
caos. Ela foi descrita assim, no século XX, pela escritora Rebecca West:

Só em parte somos sãos: só uma parte nossa ama o prazer e um dia


mais prolongado de felicidade, só uma parte quer viver até noventa
anos e mais e morrer em paz, numa casa que construímos e que
abrigará os que vierem depois de nós. Nossa outra metade é quase
louca. Prefere o desagradável ao agradável, ama a dor e seu sombrio
desespero noturno e quer morrer numa catástrofe que mandará a vida
de volta ao começo, nada deixando de nossa casa, senão os alicerces
calcinados.

Tanto West como Freud viveram a experiência da guerra, assim como


Montaigne: ele dificilmente teria como ignorar esse lado da humanidade.
Seus textos sobre a moderação e a mediocridade devem ser lidos tendo em
mente as guerras civis francesas, nas quais o extremismo transcendental
ocasionou crueldades subumanas em escala esmagadora. O terceiro
“distúrbio” terminou em agosto de 1570, seguindo-se dois anos de paz
durante os quais Montaigne viveu em sua propriedade e começou a
trabalhar em Os ensaios. Muito antes que concluísse a obra, no entanto, a
paz chegou ao fim de maneira repentina e chocante, com um acontecimento
que não poderia deixar qualquer margem a dúvida quanto ao aspecto
sombrio da natureza humana.
12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade

TERROR

C
omo acontecera com acordos de paz anteriores, o Tratado de Saint-
Germain firmado em 1570 desagradou a todos. Os protestantes,
sempre querendo mais, achavam que os termos não iam longe o
suficiente, pois lhes concediam liberdade limitada de culto. Os católicos
consideravam que iam longe demais: estavam preocupados com a
possibilidade de que os protestantes tomassem qualquer concessão como
um estímulo. Eles temiam que os protestantes pressionassem por uma
revolução contra o monarca católico legítimo e dessem início a uma nova
guerra. Estavam certos quanto à ocorrência de outra guerra, mas errados
quanto aos responsáveis por ela.
As tensões continuaram aumentando e atingiram o auge durante as
comemorações organizadas em Paris, em agosto de 1572, para o casamento
dinástico da católica Marguerite de Valois com o protestante Henrique de
Navarra. Os líderes das três principais facções chegaram à cerimônia em
disposição sombria: o rei católico moderado Carlos IX, o almirante Gaspard
de Coligny, chefe protestante radical, e o duque de Guise, extremista
católico. Cada uma das facções temia a outra. Pregadores inflamados
elevavam ainda mais a temperatura emocional entre os parisienses,
exortando-os a se rebelar para impedir o casamento e varrer do mapa os
dirigentes heréticos enquanto era tempo.
O casamento foi celebrado a 18 de agosto, seguindo-se quatro dias de
comemorações oficiais. Muitos certamente deram um suspiro de alívio
quando elas terminaram. Mas no fim da última noite, a 22 de agosto de
1572, alguém deu um tiro de arcabuz no dirigente protestante Coligny, que
deixava a pé o palácio do Louvre de volta a sua casa, e feriu-o num braço.
A notícia do incidente espalhou-se pela cidade. Na manhã seguinte,
hordas de huguenotes acorreram à casa de Coligny, jurando vingança.
Muitos acreditavam (como ainda acredita a maioria dos historiadores) que o
próprio rei estava por trás da tentativa de assassinato, com a cumplicidade
de sua mãe, Catarina de Médici — com o objetivo de sufocar no
nascedouro qualquer possível rebelião protestante, eliminando seu líder. Se
a conclusão for verdadeira, então Carlos cometeu um erro de cálculo. O
atentado enfureceu os protestantes. E o mais arriscado era o fato de deixar
os católicos temerosos. Esperando que os protestantes se rebelassem em
reação ao acontecido, eles uniram forças pela cidade e se prepararam para
se defender. O rei também se sentiu intimidado e deve ter raciocinado que
um líder rebelde morto seria menos perigoso que ferido. Aparentemente
seguindo ordens suas, uma guarda real invadiu a casa de Coligny e concluiu
o trabalho malfeito, matando o ferido em sua cama. Era o início da manhã
de domingo, 24 de agosto: Dia de São Bartolomeu.
Os assassinos decapitaram Coligny e despacharam a cabeça para o
palácio real; ela viria a ser embalsamada e enviada a Roma, para ser
admirada pelo papa. O resto do corpo foi atirado pela janela e desabou na
rua, onde uma multidão de católicos o incendiou e arrastou pelo bairro. O
corpo se desmembrou enquanto pegava fogo, mas partes foram ostentadas e
ainda mais mutiladas por dias seguidos.
A comoção na casa de Coligny causou pânico ainda maior entre os
católicos como também entre os protestantes de Paris. Bandos de católicos
acorreram às ruas, capturando e matando qualquer um que fosse
identificado como protestante e invadindo residências de protestantes —
nas quais muitos dormiam tranquilamente, sem a menor ideia do que
ocorria pela cidade. A multidão os arrastava para fora, cortava-lhes a
garganta ou os esquartejava, para em seguida queimar os corpos ou atirá-los
no rio. A violência atraía multidões cada vez maiores, insuflando novas
atrocidades. Para mencionar apenas um dos incidentes registrados, um
homem chamado Mathurin Lussault foi morto ao cometer o erro de atender
à porta de sua casa; seu filho desceu, atraído pelo barulho, e também foi
esfaqueado. A mulher de Lussault, Françoise, tentou fugir pulando da janela
do primeiro andar para o pátio do vizinho, mas quebrou ambas as pernas. O
vizinho a ajudou, mas os atacantes irromperam no lugar e a arrastaram para
a rua pelos cabelos. Cortaram-lhe as mãos para roubar os braceletes e a
empalaram; mais tarde, jogariam o corpo no rio. Mastigadas por cães, as
mãos ainda podiam ser vistas em frente ao prédio vários dias depois. Cenas
semelhantes ocorriam por toda a cidade, e tantos corpos foram atirados no
Sena que se dizia que suas águas ficaram vermelhas de sangue.
O que quer que Carlos pretendesse com a tentativa inicial de assassinato
— se é que realmente foi o mandante —, dificilmente era essa sua intenção.
Resolveu então ordenar aos soldados que reprimissem a violência, mas era
tarde demais. A matança prosseguiu por quase uma semana em diferentes
bairros de Paris, disseminando-se pelo resto da França. Só em Paris, o
massacre, que ficaria para sempre conhecido pelo nome de São Bartolomeu,
causou a morte de pelo menos 5 mil pessoas. No fim, cerca de 10 mil
haviam sido mortas em todo o país. As cidades eram engolfadas na
violência como barcos de pesca num tornado: Orléans, Lyon, Rouen,
Toulouse, Bordeaux e incontáveis cidades menores.
Foi um furor do tipo que Montaigne detestava até mesmo num campo de
batalha tradicional, só que nesse caso as vítimas eram civis. De modo geral,
eram civis também os assassinos; só em poucos lugares houve
envolvimento de soldados ou oficiais. Bordeaux foi um deles. Nada
aconteceu na cidade até 3 de outubro, mas, quando os incidentes de
violência tiveram início, foram aparentemente organizados e aprovados
pelo prefeito, o fanático católico Charles de Montferrand, que fez uma lista
formal de alvos a serem atacados. Na maioria dos casos, o derramamento de
sangue ocorria de maneira mais caótica, pelas mãos de pessoas que
normalmente se comportariam como cidadãos pacatos. Em Orléans, a
multidão fazia paradas nas tabernas entre uma matança e outra para
comemorar, “acompanhada de cantos, alaúdes e violões”, segundo um
historiador. Certos grupos eram formados sobretudo por mulheres ou
crianças. Os católicos interpretavam a presença destas como sinal de que o
próprio Deus era favorável aos massacres, pois levara até mesmo inocentes
a se envolver. De maneira geral, muitos achavam que, pelo fato de
extrapolarem qualquer escala humana habitual, as matanças deviam ter
aprovação divina. Não resultavam de decisões humanas, sendo mensagens
de Deus para a humanidade, presságios de caos cósmico assim como uma
colheita destruída ou a passagem de um cometa pelo céu. Uma medalha
cunhada em Roma para comemorar os massacres mostrava os huguenotes
sendo abatidos, não por outros mortais, mas por um anjo armado e
irradiando ira sagrada. O novo papa, Gregório XIII, parece ter ficado
satisfeito com os acontecimentos na França. Além da medalha, encomendou
a Giorgio Vasari a pintura de afrescos comemorativos na Sala Regia do
Vaticano. O rei da França também participou de procissões de ação de
graças e mandou cunhar duas medalhas, uma delas representando-o como
Hércules em combate contra a Hidra; na outra, ele aparecia em seu trono
cercado de cadáveres despidos e segurando uma folha de palmeira, para
simbolizar a vitória.
Tendo os huguenotes recobrado forças e mobilizado exércitos para
reagir, a guerra estourou de novo. Ela teria prosseguimento ao longo da
década de 1570, com pausas apenas eventuais. Os acontecimentos de São
Bartolomeu representavam uma linha divisória: depois deles, as guerras
tornaram-se mais anárquicas e de fundo mais fanático. Além das batalhas
habituais, muito sofrimento seria causado por bandos descontrolados de
soldados, mesmo em supostos interlúdios de paz, quando não tinham
comando nem salário. Os camponeses às vezes fugiam, preferindo levar
uma vida selvagem na floresta a esperar nas cidades para serem atacados e
às vezes até torturados pelo simples prazer de torturar. Era o estado natural
a todo vapor. Em 1579, um advogado do interior, Jean La Rouvière,
escreveu ao rei implorando ajuda para os pobres camponeses de sua região
— “homens miseráveis, martirizados e abandonados” que extraíam da terra
o sustento que conseguiam, depois de perder tudo que tinham. Entre os
horrores a que tinha assistido ou de que ouvira falar estavam relatos sobre
homens

enterrados vivos em montes de estrume, atirados em poços e valas e


deixados à morte, uivando como cães; tinham sido presos em caixas
sem ar para respirar, emparedados em torres sem alimentos e
enforcados em árvores nas profundezas de montanhas e florestas;
tinham sido estirados em frente a fogueiras, com os pés tostados em
gordura; suas mulheres tinham sido estupradas, e as grávidas eram
obrigadas a abortar; seus filhos haviam sido sequestrados para
cobrança de resgate ou mesmo assados vivos diante dos pais.

As guerras eram alimentadas pelo fanatismo religioso, mas os


sofrimentos nelas causados geravam por sua vez novas invenções
apocalípticas. Católicos e protestantes consideravam que os acontecimentos
chegavam a um ponto além do qual não mais poderia haver uma história
normal, pois restaria apenas um confronto final entre Deus e o Diabo. Por
isso os católicos comemoravam com tanto entusiasmo os massacres de São
Bartolomeu: viam-nos como uma autêntica vitória sobre o mal, além de
uma maneira de reconduzir incontáveis indivíduos equivocados à
verdadeira Igreja, antes que fosse tarde demais para salvarem suas almas.
Era algo de extrema importância, pois o tempo urgia. No Juízo Final,
Cristo voltaria, o mundo seria destruído e cada um teria de justificar os
próprios atos perante Deus. Em tal transe não haveria negociações,
nenhuma consideração sobre o ponto de vista do outro nem muito menos
entendimento recíproco entre fés religiosas rivais. Montaigne, com seu
elogio da vida comum e da mediocridade, vendia uma ideia que não poderia
encontrar mercado num mundo à beira do abismo.
Sinais da iminência desse Apocalipse não faltavam. Uma série de
epidemias de fome, colheitas perdidas e invernos enregelantes nas décadas
de 1570 e 1580 parecia indicar que Deus privava o mundo do Seu calor.
Surtos de varíola, tifo e coqueluche varriam o país, além da pior de todas as
doenças: a peste. Parecia que os quatro Cavaleiros do Apocalipse estavam à
solta: epidemias, guerra, fome e morte. Um lobisomem percorria o país,
gêmeos siameses nasciam em Paris e uma nova estrela — a chamada estrela
nova — explodiu no céu. Mesmo quem não fosse dado ao extremismo
religioso tinha a sensação de que tudo se precipitava para um fim
inominável. A editora de Montaigne, Marie de Gournay, evocaria mais
tarde a França de sua juventude como um país de tal forma entregue ao caos
“que ficávamos esperando a ruína final, e não o restabelecimento do
Estado”. Havia quem achasse que o fim estava mesmo muito próximo: em
1573, o linguista e teólogo Guillaume Postel escreveu numa carta que
“dentro de oito dias a população será dizimada”.
O Diabo também sabia que seu tempo de influência na Terra estava
chegando ao fim e assim enviou exércitos de demônios para conquistar as
derradeiras almas vulneráveis. E eram de fato exércitos: em seu De
praestigis daemonum (1564), Jean Wier calculara que pelo menos
7.409.127 demônios atuavam em nome de Lúcifer, sob a supervisão de 79
príncipes-demônios. A seu lado havia bruxas: o dramático aumento de
casos de feitiçaria depois da década de 1560 representava mais uma prova
de que o Apocalipse se aproximava. Assim que eram identificadas, os
tribunais mandavam queimá-las, mas o Diabo tratava de substituí-las com
rapidez ainda maior.
O demonologista contemporâneo Jean Bodin sustentava que, em
condições de crise como essas, os padrões de comprovação deviam ser
menos exigentes. A feitiçaria era algo tão sério e de tão difícil detecção
pelos métodos habituais de investigação que a sociedade não podia dar-se
ao luxo de se aferrar muito a “rigor legal e procedimentos normais”. Os
comentários públicos podiam ser considerados “quase infalíveis”: se numa
aldeia todos estivessem dizendo que determinada mulher era uma feiticeira,
era o bastante para justificar sua tortura. Técnicas medievais foram
resgatadas especificamente para esses casos, entre elas “banhar” as
suspeitas para ver se flutuavam e queimá-las com ferros em brasa. O
número de  feiticeiras condenadas continuava crescendo à medida que os
padrões de comprovação se tornavam mais frouxos, e esse aumento era
mais uma prova de que a crise era real e impunha novas atualizações da
legislação. Como se pode constatar reiteradamente através da história, não
há nada mais eficaz para acabar com ressalvas jurídicas tradicionais do que
a dupla alegação de que um crime é inusitadamente ameaçador e de que os
responsáveis por ele têm excepcional poder de resistência. Tudo era aceito
sem praticamente um murmúrio, exceto da parte de alguns poucos
escritores como Montaigne, que assinalavam que a tortura de nada servia
para chegar à verdade, pois a vítima dirá qualquer coisa para evitar a dor —
e que, além disso, seria “apostar muito alto em conjeturas” mandar torrar
alguém vivo com base nelas.
Um acontecimento grave para o qual advertiam os teólogos era a
iminente chegada do Anticristo. Os sinais seriam abundantes nos anos
subsequentes: em 1853, uma velha deu à luz num país africano uma criança
com dentes de gato, que anunciou, com voz de adulto, ser o Messias.
Simultaneamente, na Babilônia, uma montanha se abriu, revelando uma
coluna enterrada, na qual se lia a inscrição em hebraico: “Chegou a hora da
minha natividade.” O principal especialista francês nessas histórias de
Anticristo era o sucessor de Montaigne no parlement de Bordeaux,
Florimond de Raemond, outro entusiástico matador de feiticeiras. Sua obra
L’Antichrist analisava os presságios celestes, a destruição de vegetações e
colheitas, os movimentos populacionais e os casos de atrocidade e
canibalismo cometidos nas guerras, mostrando como tudo isso comprovava
que o Diabo estava a caminho.
Aderir em tais circunstâncias a atos de violência coletiva era mostrar a
Deus que se estava com ele. Fossem católicos ou protestantes, os
extremistas cultuavam esse ardor sagrado, que redundava na total doação de
si a Deus e na rejeição das coisas mundanas. Todo aquele que continuasse
dando atenção às questões cotidianas numa época assim caía sob suspeita
de fraqueza moral, na melhor das hipóteses, ou, na pior, de pacto com o
Diabo.
Na verdade, contudo, muitos seguiam em frente com suas ocupações e
faziam o possível para ficar longe da agitação, mantendo-se fiéis à
normalidade que, para Montaigne, era a essência da sabedoria. Ainda que
nele acreditassem, o iminente confronto de Satã com Deus não os
interessava mais que os escândalos e a diplomacia da corte real. Muitos
protestantes discretamente abriram mão de sua fé depois de 1572, ou pelo
menos trataram de ocultá-la, implicitamente admitindo que consideravam a
vida neste mundo mais importante que sua crença no outro. Mas uma
minoria foi para o extremo oposto. Radicalizados além de toda medida,
pregavam guerra total contra o catolicismo e a morte do rei — o “tirano”
responsável pela morte de Coligny e de todas as outras vítimas. Foi nesse
contexto que Da servidão voluntária, de La Boétie, veio a ser resgatado de
uma hora para outra e publicado por radicais huguenotes, que o
reinventaram como forma de propaganda de uma causa que o próprio La
Boétie jamais apoiaria.
No fim, o regicídio haveria de se revelar desnecessário. Carlos IX
morreu de causas naturais um ano e meio depois, em 30 de maio de 1574.
Subiu ao trono outro filho de Catarina de Médici, Henrique III, que se
revelou ainda mais impopular. Nem os católicos gostavam dele. Ao longo
da década de 1570, foi aumentando o apoio aos extremistas católicos
conhecidos como ligueurs, os liguistas, que nos anos seguintes causariam
quase tantos problemas à monarquia quanto os huguenotes, sob a liderança
do poderoso e ambicioso duque de Guise. Daí em diante, as guerras
francesas envolveriam três facções, ficando a monarquia muitas vezes na
posição mais vulnerável. Henrique tentou eventualmente assumir a
liderança das Ligas, para neutralizar sua ameaça, mas elas o rejeitaram e
muitas vezes o retrataram como um agente satânico disfarçado.
Talvez ele fosse por demais moderado para as Ligas, mas Henrique III
era um extremista sob outros aspectos, não mostrando qualquer
compreensão quanto à moderação preconizada por Montaigne. Este, que o
encontrou várias vezes, não o apreciava muito. Por um lado, Henrique
cercava-se de dândis na corte, transformando-a num reduto de corrupção,
luxo e absurdas exigências de etiqueta. Dançava toda noite e na juventude
usava túnicas e gibões de seda de amoreira, com braceletes de corais e
capas cortadas em tiras. Lançou a moda de camisas com quatro mangas,
duas para uso e duas atiradas para trás, como asas. Outras afetações suas
eram consideradas ainda mais estranhas: à mesa, usava garfos, em vez de
facas e dedos, usava roupas de dormir à noite e de vez em quando lavava os
cabelos. Por outro lado, Henrique também gostava de manifestações
exageradas de misticismo e penitência. Quanto mais perplexo ficava com os
problemas enfrentados pelo reino, com mais frequência participava de
procissões de autoflagelação, percorrendo as ruas descalço, entoando
salmos e se açoitando.
Para Montaigne, a ideia de que a solução da crise política estivesse na
oração e nos exercícios espirituais radicais não fazia sentido. Ele se
esquivava dessas procissões e não acreditava em cometas, tempestades de
granizo, pássaros monstruosos ou qualquer outro sinal de chegada do fim
dos tempos. Observava que aqueles que faziam previsões a partir desses
fenômenos geralmente se mantinham vagos, podendo em seguida dizerem-
se certos independentemente do que acontecesse. Os relatos sobre feitiçaria
tendiam a parecer a Montaigne efeitos da imaginação humana, e não de
atividade satânica. Em geral, ele preferia se ater ao seu lema: “Suspendo
qualquer julgamento.”
Seu ceticismo atraiu algumas críticas: dois contemporâneos de
Bordeaux, Martin-Antoine del Rio e Pierre de Lancre, advertiram-no que
era teologicamente perigoso explicar acontecimentos apocalípticos em
termos de imaginação humana, pois desviava a atenção da ameaça real. No
fim das contas, Montaigne não chegou a levantar suspeitas mais sérias, mas
efetivamente arriscou a própria reputação ao se pronunciar contra a tortura e
os julgamentos de bruxaria. Seu nome já estava associado no espírito de
muitos a uma categoria de pensadores conhecidos pelos inimigos como
politiques, que se distinguiam pela convicção de que os problemas do reino
nada tinham a ver com o Anticristo ou o Fim dos Tempos, pois eram
puramente políticos. Eles deduziram que a solução também deveria ser
política — donde a designação por que ficaram conhecidos. Teoricamente,
eles apoiavam o rei, considerando que a esperança do país estava na
unidade sob a liderança de um monarca legítimo, embora sua maioria
secretamente esperasse que um rei mais inspirador e capaz de unir do que
Henrique III fosse chegar em algum momento. Mesmo mantendo a
lealdade, procuravam encontrar algum terreno comum entre as outras
facções, na esperança de pôr fim às guerras e lançar as bases do futuro da
França.
Infelizmente, o único terreno comum que realmente aproximava os
extremistas católicos dos extremistas protestantes era o ódio aos politiques.
A própria designação era uma acusação de ateísmo. Tratava-se de homens
preocupados exclusivamente com soluções políticas, indiferentes à situação
da própria alma. Eram mascarados, impostores, como o próprio Satã. “Ele
veste a pele de um cordeiro”, escreveu um contemporâneo, descrevendo um
politique típico, “mas é um lobo furioso”. Ao contrário dos autênticos
protestantes, eles tentavam se passar por algo que não eram, e, sendo
inteligentes e intelectualizados, não podiam usar a desculpa de que eram
vítimas inocentes dos logros do Diabo. A vinculação de Montaigne aos
politiques representava para ele um bom motivo para enfatizar sua abertura
e franqueza, assim como sua ortodoxia católica (muito embora, é claro, a
alegação de franqueza seja precisamente o que faria um lobo em pele de
cordeiro).
Os liguistas acusavam os politiques de deslealdade, mas os politiques
por sua vez acusavam os liguistas de se entregarem a suas paixões e
perderem o juízo. Era muito estranho, refletia Montaigne, que o
cristianismo levasse com tanta frequência a excessos de violência e,
portanto, à destruição e à dor:

Nosso ardor opera maravilhas quando aliado a nossa tendência para o


ódio, a crueldade, a ambição, a avareza, a maledicência, a rebelião.
Indo contra a corrente, em direção à bondade, à benignidade, à
moderação, a menos que por milagre ela faça morada em uma
natureza rara, não será capaz de caminhar nem voar.

“Não há hostilidade que supere a hostilidade cristã”, chegou ele a


escrever a certa altura. Em vez da figura do fanático cristão de olhos em
brasa, ele preferia contemplar a do sábio estoico: uma pessoa que se
comporta com moralidade, tempera as próprias emoções, pratica o bom-
senso e sabe viver.
Havia de fato muito da filosofia estoica no pensamento e na ação dos
politiques. Eles não pregavam a revolução ou o regicídio, mas
recomendavam a aceitação da vida como ela é, com base no princípio
estoico do amor fati, ou amor ao destino. Também preconizavam o senso
estoico da continuidade: a convicção de que o mundo provavelmente
continuaria avançando em ciclos de decadência e rejuvenescimento, em vez
de acelerar numa precipitação unidirecional para o Fim. Enquanto os
partidos religiosos imaginavam os exércitos do Armagedom se mobilizando
no céu, os politiques desconfiavam que, mais cedo ou mais tarde, tudo se
acalmaria e as pessoas recuperariam o bom-senso. Em épocas milenaristas,
eram eles os únicos a sistematicamente mudar de perspectiva e pensar à
frente do seu tempo, projetando-se numa época em que os “distúrbios” se
teriam tornado história — e planejando a maneira de construir esse futuro.
O lado estoico de Montaigne levou-o a minimizar a importância das
guerras num grau surpreendente nos seus escritos. Os biógrafos
invariavelmente dão grande destaque a sua experiência da guerra, e por
bons motivos: ela de fato afetou profundamente sua vida. Certos críticos
basearam toda a sua leitura de Montaigne nas guerras. No entanto, depois
de percorrer uma dessas interpretações, a leitura de Os ensaios pode vir
como uma surpresa, pois vemos Montaigne dizendo coisas como “Fico
impressionado ao constatar como nossas guerras são brandas e comedidas”
ou “Será de espantar se daqui a cem anos as pessoas lembrarem que em
nossa época houve guerras civis na França”. A vivência do presente nos
leva a presumir que as coisas sejam piores do que realmente são, diz ele,
pois não conseguimos fugir à perspectiva local:

Todo aquele que contemplar, como numa pintura, o quadro geral de


nossa mãe Natureza em toda a sua majestade; todo aquele que ler tão
universal e constante variedade em seu semblante; todo aquele que lá
se vir, e não apenas a si mesmo, mas a todo um reino, como um
pontinho assinalado com o mais leve pincel; só esse homem é capaz
de avaliar as coisas em suas devidas proporções.

Montaigne lembrava aos contemporâneos a velha lição dos estoicos:


evitar sentir-se tragado por uma situação difícil, tentar imaginar o seu
mundo de diferentes ângulos ou em diferentes escalas de significado. Era o
que faziam os antigos quando contemplavam seus problemas do alto, como
que a uma comoção numa colônia de formigas. Os astrólogos agora
advertem para “grandes e iminentes alterações e mutações”, escreve
Montaigne, mas esquecem o simples fato de que, por pior que estejam as
coisas, o essencial da vida segue imperturbável. “Não perco esta
esperança”, acrescentava ele, brandamente.
Devemos reconhecer que Montaigne teve sorte. As guerras arruinaram
suas colheitas, fizeram-no temer ser assassinado na cama e o forçaram a
participar de atividades políticas que preferiria evitar. Haveriam de gerar-
lhe problemas ainda mais graves na década de 1580, quando a guerra entrou
em sua derradeira e mais desesperada fase. Mas ninguém poderia alegar que
ele saiu seriamente marcado por essas experiências, e se algum dia chegou a
empunhar armas, nada diz a respeito em Os ensaios. Em suma, ele teve uma
boa guerra. O que na maioria dos casos não seria suficiente para que
alguém se eximisse de queixas.
E Montaigne estava certo. A vida realmente seguia em frente. Os
massacres de São Bartolomeu, por terríveis que fossem, deram lugar a anos
de sofrimentos individuais, sem prenunciar nenhum fim do mundo. O
Anticristo não apareceu. As gerações se sucederam, até que chegou um
momento em que, como previra Montaigne, muitas pessoas tinham apenas
uma vaga ideia de que as guerras do seu século tivessem afinal ocorrido.
Em certa medida, isto aconteceu em decorrência do trabalho empreendido
por ele e seus colegas politiques no sentido de restabelecer a sensatez.
Simulando tranquilidade e comodidade, Montaigne contribuiu mais para
salvar seu país que seus exaltados contemporâneos. Parte de sua obra era
puramente política, mas sua maior contribuição consistiu simplesmente em
manter-se de fora e escrever Os ensaios. O que o torna um herói aos olhos
de muitos.

HERÓI

Os que exaltaram Montaigne nesse papel costumam apresentá-lo como um


tipo de herói incomum: aquele que resiste a qualquer pretensão de
heroísmo. São poucos os que o reverenciam por grandes feitos públicos,
embora ele efetivamente tenha realizado coisas notáveis mais para o fim da
vida. Com maior frequência ele é admirado pela teimosa insistência em
preservar a normalidade em circunstâncias extraordinárias, e por sua recusa
de aceitar qualquer negociação quanto à própria independência.
A esta luz ele era visto por muitos de seus contemporâneos: o grande
pensador político estoico Justus Lipsius disse-lhe que continuasse
escrevendo porque as pessoas precisavam seguir seu exemplo. Muito depois
de o estoico Montaigne do século XVI ter sido esquecido, leitores de épocas
conturbadas continuariam a ver nele um modelo. Em seu Os ensaios podia
ser encontrada toda uma sabedoria pragmática sobre questões como a
melhor maneira de encarar atos de intimidação ou como conciliar
exigências conflitantes de abertura e segurança. Ele também oferecia algo
mais nebuloso: um senso de como sobreviver a catástrofes públicas sem
perder o respeito próprio. Da mesma forma que se podia pedir clemência a
um inimigo sem rodeios e sem se comprometer, ou defender uma
propriedade optando por deixá-la sem defesa, era possível também
atravessar uma guerra desumana permanecendo humano. Esta mensagem de
Montaigne exerceria particular atração sobre os leitores do século XX que
vivenciaram guerras ou ditaduras fascistas ou comunistas. Nesses períodos,
poderia parecer que as estruturas da sociedade civilizada entraram em
colapso e que nada mais voltaria a ser como antes. Montaigne estava mais
tranquilizador que nunca ao se mostrar pouco ou nada identificado com este
sentimento — quando lembrava aos leitores que, no fim, a normalidade se
restabelece e as perspectivas voltam a mudar.
Dentre os muitos leitores que reagiram a esse aspecto de Os ensaios, um
pode falar por todos: o escritor judeu austríaco Stefan Zweig, que, em seu
exílio forçado na América do Sul durante a Segunda Guerra Mundial, se
distraía e acalmava escrevendo um longo ensaio de fundo pessoal sobre
Montaigne — seu herói não heroico.
Ele admitiria que, ao ler pela primeira vez Os ensaios na juventude, na
Viena da virada do século, o livro não lhe causou impressão especial. Como
Lamartine e Sand, achou-o por demais desprovido de paixão. Faltava-lhe
“aquela corrente elétrica de alma a alma”; ele não encontrava ali o que
pudesse ser pessoalmente relevante para ele. “Que interesse poderia haver
para um jovem de 20 anos nas digressões sem rumo de um Sieur de
Montaigne sobre a ‘Cerimônia de audiência dos reis’ ou em suas
‘Considerações sobre Cícero’?” Mesmo quando Montaigne se voltava para
temas que deveriam ter mais apelo, como sexo e política, sua “sabedoria
suave e moderada” e seu sentimento de que era mais sábio não se envolver
muito no mundo indispunham Zweig. “É da natureza da juventude não
querer ouvir recomendações de brandura ou ceticismo. Qualquer dúvida
parece-lhe uma limitação.” Os jovens anseiam por crenças, querem ser
estimulados.
Além disso, em 1900 a liberdade individual não parecia propriamente
ameaçada. “Tudo aquilo já não se tornara algo óbvio havia muito tempo,
garantido pela lei e os costumes a uma humanidade havia muito liberta da
tirania e da servidão?” A geração de Zweig — que nasceu em 1881 —
partia do princípio de que a prosperidade e a liberdade individual
continuariam se expandindo. Por que as coisas haveriam de retroceder?
Ninguém considerava que a civilização corresse perigo; ninguém precisava
recolher-se à identidade privada para preservar a liberdade espiritual.
“Montaigne parecia inutilmente arrastar correntes que havia muito
considerávamos rompidas.”
Como se sabe, é claro, a história mostraria que a geração de Zweig
estava errada. Assim como o próprio Montaigne chegara na idade adulta a
um mundo cheio de esperança para em seguida vê-lo degenerar, assim
também Zweig nasceu no mais ditoso país e no mais afortunado dos
séculos, mas viu tudo desmoronar ao seu redor. As correntes voltariam a ser
forjadas, mais fortes e pesadas do que nunca.
Zweig sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, mas em seguida veio a
ascensão de Hitler. Ele fugiu da Áustria e se viu forçado a vagar durante
anos como refugiado, inicialmente na Grã-Bretanha, depois nos Estados
Unidos e finalmente no Brasil. O exílio tornou-o “indefeso como uma
mosca, desamparado como uma lesma”, como diria em sua autobiografia.
Ele se sentia um condenado esperando pela execução em sua cela, e cada
vez menos capaz de se envolver com o mundo de seus anfitriões. Manteve a
sanidade mental mergulhando no trabalho. No exílio, escreveu uma
biografia de Balzac, uma série de novelas e contos, uma autobiografia e
finalmente o ensaio sobre Montaigne — tudo sem acesso a fontes ou
anotações, já que estava apartado de seus bens. Jamais alcançaria a atitude
de desprendimento de Montaigne, mas sua situação também era muito pior:

Não me sinto em casa em lugar algum e em toda parte sou um


estranho, na melhor das hipóteses um convidado. A Europa, pátria de
escolha do meu coração, perdeu-se para mim, já que se dilacerou de
forma suicida uma segunda vez, numa guerra de irmão contra irmão.
Contra a vontade tenho assistido à mais terrível derrota da razão e ao
mais selvagem triunfo da brutalidade na crônica das eras.

Ao chegar ao Brasil em 1941, ele já estava muito distanciado de


qualquer ideia de uma pátria e, embora fosse grato ao país por acolhê-lo,
teve dificuldade de sustentar a esperança. Dando com um exemplar de Os
ensaios na casa onde se hospedou, ele voltou a lê-los e constatou que a obra
se transformara em outra completamente irreconhecível. Aquele livro que
outrora lhe parecera muito contido e irrelevante agora lhe falava em tom
direto e íntimo, como se tivesse sido escrito exclusivamente para ele, ou
talvez para sua geração. Imediatamente lhe veio a ideia de escrever sobre
Montaigne. Em carta a um amigo, escreveu: “A semelhança de sua época e
condição com a nossa é espantosa. Não estou escrevendo uma biografia;
proponho-me simplesmente a apresentar como exemplo sua luta pela
liberdade interior.” No ensaio propriamente dito, ele reconhecia: “Nessa
fraternidade de destino, Montaigne tornou-se para mim o indispensável
socorro, confidente e amigo.”
No fim, seu ensaio sobre Montaigne acabou se revelando uma espécie de
biografia, mas de caráter altamente pessoal, sem constrangimento de
ressaltar as semelhanças entre a experiência de Montaigne e a sua própria.
Numa época como a da Segunda Guerra Mundial, e também durante as
guerras civis francesas, escreve Zweig, a vida das pessoas comuns é
sacrificada no altar das obsessões do fanatismo, de modo que a questão,
para qualquer pessoa íntegra, não é tanto saber “Como posso sobreviver?”,
mas “Como permanecer plenamente humano?”. E a questão se coloca de
muitas formas: Como preservar meu verdadeiro eu? Como garantir que eu
não vá mais longe do que considero correto em palavras ou atos? Como
evitar a perda da minha própria alma? E acima de tudo: Como me manter
livre? No sentido habitual da expressão, Montaigne não era nenhum
combatente da liberdade, e Zweig o reconhece. “Ele não se sai com as
invectivas exaltadas e a verve cativante de um Schiller ou um Lorde Byron,
nem com a agressividade de um Voltaire.” Suas constantes afirmações de
que é um preguiçoso, displicente e irresponsável conferem-lhe um ar de
anti-herói, mas não se trata na verdade de defeitos. São essenciais na luta
pela preservação de seu eu particular, tal como se apresenta.
Zweig sabia que a Montaigne não agradavam as pregações, mas ainda
assim extraiu de Os ensaios uma série de regras gerais. Não as relacionou
com esse espírito, mas as parafraseou de maneira a transformá-las em oito
mandamentos — que também poderiam ser chamados de oito liberdades:

Seja isento de vaidade e orgulho.


Seja isento de crença, descrença, convicções e partidos.
Seja isento de hábitos.
Seja isento de ambição e cobiça.
Seja isento de família e vizinhança.
Seja isento de fanatismo.
Seja isento de destino: seja senhor da sua própria vida.
Seja isento de morte: a vida depende da vontade dos outros, mas a morte,
da nossa própria vontade.

Zweig fazia a seleção de um Montaigne dos mais estoicos, retornando


assim a uma maneira quinhentista de lê-lo. No fim das contas, a liberdade
que Zweig tinha em mais alta conta era a última da lista e vinha diretamente
de Sêneca. Tendo entrado em depressão, Zweig optou pela derradeira forma
de emigração interna: suicidou-se com a droga Veronal em 23 de fevereiro
de 1942; sua mulher decidiu morrer com ele. Em sua mensagem de
despedida, Zweig expressava gratidão ao Brasil, “esta terra maravilhosa”
que o recebera tão hospitaleiramente, e concluía: “Saúdo os meus amigos!
Que eles possam ver a aurora depois da longa noite! Eu, por demais
impaciente, parto antes.”
Parecia — e era assim que Zweig via a questão — que o verdadeiro
valor de Montaigne só podia ser enxergado quando se era levado para perto
desse ponto extremo. Era preciso atingir um estado em que a única coisa
que restasse defender fosse um desnudo “eu”: a simples existência.

Só alguém que tenha vivido numa época que ameace sua vida e essa
substância valiosa, a liberdade individual, por meio de guerra, poder e
ideologias tirânicas — só essa pessoa sabe quanta coragem, quanta
honestidade e determinação são necessárias para preservar o eu
interior numa tal época de insanidade em massa.

Ele teria concordado com Leonard Woolf, quando dizia que a visão de
“eus” interligados sustentada por Montaigne era a essência da civilização.
Era a base sobre a qual um futuro poderia ser construído, uma vez superado
o terror e terminada a guerra — embora Zweig não conseguisse esperar até
lá.
Caberia perguntar se a visão de integridade individual e esperança
política adotada por Montaigne teria hoje a mesma autoridade moral.
Certamente há quem pense assim. Livros foram escritos para apresentar
Montaigne como um herói para o século XXI: o jornalista francês Joseph
Macé-Scaron sustenta, especificamente, que Montaigne deveria ser adotado
como antídoto às novas guerras religiosas. Outros podem considerar que a
última coisa de que precisamos hoje é alguém que nos estimule a relaxar e
nos retirar em nossos mundos privados. As pessoas já passam tempo o
bastante isoladas, em detrimento das responsabilidades cívicas.
Os que tomam Montaigne como herói ou como um companheiro
compassivo argumentariam que ele não preconizava uma abordagem “faça-
o-que-lhe-aprouver” em matéria de deveres sociais. Pelo contrário,
sustentava que a solução para um mundo completamente fora dos eixos era
que cada um tratasse de se colocar nos eixos: aprender “como viver”,
começando pela arte de manter os pés no chão. Pode-se realmente encontrar
uma mensagem de inatividade, indolência e desmotivação em Montaigne, e
provavelmente também uma justificação para nada fazer quando a tirania
assume as rédeas, em vez de resistir a ela. Mas muitas passagens de Os
ensaios parecem sugerir, pelo contrário, que devemos nos comprometer
com o futuro; especificamente, que não devemos dar as costas ao mundo
histórico concreto para ficar sonhando com o paraíso e a transcendência
religiosa. Montaigne fornece todos os estímulos de que poderíamos precisar
para respeitar os outros, para nos eximir de matar a pretexto de agradar a
Deus e resistir à compulsão que periodicamente leva os seres humanos a
destruir tudo ao seu redor e “mandar a vida de volta ao começo”. Como
dizia Flaubert a seus amigos, “Leiam Montaigne (...) Ele os acalmará.”
Mas, como também acrescentava: “Leiam-no para viver.”
13 P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha
feito

BEST-SELLER BARROCO

A
o longo da década de 1570, com seus episódios alternados de
guerra e paz, Montaigne foi tocando sua vida, assim como seu
livro. Passou boa parte da década escrevendo e retrabalhando os
primeiros ensaios, até que os publicou em 1580 pela gráfica do editor
Simon Millanges, de Bordeaux.
A escolha de Millanges era interessante. Ele se estabelecera na cidade
havia poucos anos — mais ou menos na mesma época em que Montaigne
começara a escrever. Montaigne não teria dificuldade de aceitação entre os
editores parisienses: já tratara com eles antes e o valor de uma obra como
Os ensaios não lhes teria passado despercebido. Mesmo em sua primeira
edição, era uma obra ímpar, que no entanto se encaixava facilmente nos
gêneros já consagrados das miscelâneas clássicas e dos livros de lugares-
comuns. Ele apresentava essa perfeita combinação comercial:
impressionante originalidade e fácil classificação. Mas Montaigne fez
questão de optar pelo editor local, fosse por um relacionamento pessoal ou
por fidelidade à Gasconha.
Esta primeira versão do livro de Montaigne era muito diferente daquela
que hoje conhecemos. Enchia apenas dois volumes razoavelmente
pequenos, e, embora a “Apologia” já parecesse desproporcional, a maioria
dos capítulos era relativamente simples. Não raro oscilavam entre dois
pontos de vista opostos, mas não se espraiavam como turbulentos rios
caudalosos nem se abriam em deltas, como posteriores ensaios. Alguns até
se prendiam à defesa de um aparente ponto de vista. Mas já vinham
permeados da personalidade curiosa, questionadora e inquieta de
Montaigne, com frequência explorando enigmas e idiossincrasias do
comportamento humano. Os leitores da época sabiam reconhecer qualidade
quando a viam, e a obra logo encontrou um público entusiástico.
A primeira edição de Millanges provavelmente era pequena, talvez em
torno de quinhentos ou seiscentos exemplares, e logo se esgotou. Dois anos
depois ele lançou uma nova edição com algumas modificações. Cinco anos
mais tarde, em 1587, esta edição foi revista e novamente publicada, em
Paris, por Jean Richer. Mas desde o início da década de 1580 o livro havia
se transformado na leitura da moda da nobreza francesa. Em 1584, o
bibliógrafo La Croix du Maine considerou Montaigne o único autor
contemporâneo digno de se ombrear com os antigos — apenas quatro anos
depois de sua publicação por uma modesta gráfica de Bordeaux. O próprio
Montaigne escreveu que Os ensaios havia tido um desempenho melhor do
que ele esperava, transformando-se numa espécie de livro de salão, popular
entre as damas: “Uma peça do mobiliário, um artigo para a sala de estar.”
Entre os admiradores da obra estava o próprio Henrique III. Ao visitar
Paris no fim de 1580, Montaigne ofereceu um exemplar ao rei, seguindo
uma prática tradicional. Henrique disse-lhe que tinha gostado do livro, ao
que Montaigne teria respondido: “Meu Senhor, então Vossa Majestade
também gosta de mim” — pois, como sempre afirmou, ele e o livro eram
um só.
Isto, na verdade, deveria ter representado um obstáculo para o sucesso.
Escrevendo tão abertamente sobre suas observações cotidianas e sua vida
interior, Montaigne quebrava um tabu. Não se esperava que alguém
registrasse a si mesmo num livro, apenas aos seus grandes feitos, se é que
os tinha realizado. As poucas autobiografias até então escritas no
Renascimento, como Vita sua, de Benvenuto Cellini, e De vita propria, de
Girolamo Cardano, haviam ficado inéditas em grande parte por esse
motivo. Santo Agostinho escrevera sobre si mesmo, mas como um
exercício espiritual e com a finalidade de documentar sua busca por Deus,
não de comemorar as maravilhas de ser Agostinho.
Montaigne efetivamente comemorava o fato de ser Montaigne. Certos
leitores ficavam incomodados: o erudito clássico Joseph Justus Scaliger
ficou particularmente contrariado com a revelação feita por Montaigne, na
edição de 1588, de que preferia o vinho branco ao tinto. (Na verdade,
Scaliger procedia aqui a uma simplificação. Montaigne nos diz que mudou
sua preferência do tinto para o branco, depois novamente para o tinto, para
acabar voltando ao branco.) Outro estudioso, Pierre Dupuy, perguntava:
“Quem diabos está preocupado em saber do que ele gostava?”
Naturalmente, Pascal e Malebranche também ficaram incomodados:
Malebranche falava de “insolência” e Pascal achava que alguém devia ter
dito a Montaigne que parasse.
Apenas com o advento do Romantismo essa abertura de Montaigne a seu
próprio respeito veio a ser não só apreciada, mas plenamente abraçada. Ela
encantava em especial os leitores do outro lado do canal da Mancha. O
crítico inglês Mark Pattison escreveu em 1856 que o suposto egocentrismo
de Montaigne fazia com que ele ganhasse tanta vivacidade em suas páginas
quanto um personagem em um romance. E Bayle St. John observou que os
autênticos “apreciadores de Montaigne” adoravam sua “tagarelice”
inconsequente, pois ela conferia realismo ao personagem, permitindo que os
leitores se identificassem com ele. O crítico escocês John Sterling
comparava o estilo de Montaigne ao escrever sobre si mesmo com a
tradição mais socialmente aceita das memórias de personalidades públicas,
preocupadas apenas com o tedioso “tumulto barulhento” dos
acontecimentos externos. Montaigne nos oferecia “o homem em si mesmo”,
o “cerne” de sua pessoa. Em Os ensaios, “o interior é o que fica mais
claro”.
Mesmo na versão de 1580, Montaigne mostrava-se fascinado por seu
mundo interior: não foi num tardio capítulo mais aventuroso, mas já na
primeira edição, que ele escreveu:

Volto meu olhar para dentro, fixo-o ali e o mantenho ocupado. Todo
mundo olha para a frente; de minha parte, olho para o meu interior;
preocupo-me apenas comigo mesmo; estou constantemente a me
observar, avalio-me, experimento-me (...) rolo dentro de mim mesmo.

A imagem tem uma intensidade física: podemos ver Montaigne se


contorcendo como um cãozinho na grama. Quando não está rolando, ele se
recolhe: “Eu recolho o olhar para dentro” seria uma tradução mais literal da
primeira frase desse trecho: je replie ma veue au dedans. Ele parece estar
constantemente se voltando sobre si mesmo, se aprofundando cada vez
mais, atravessando camada após camada. O resultado é uma espécie de
panejamento barroco, movimentado e turbulento. Não surpreende que por
vezes Montaigne tenha sido caracterizado como o primeiro escritor do
período barroco, embora o tenha antecedido; em termos menos anacrônicos,
também foi qualificado como um autor maneirista. A arte maneirista, que
floresceu pouco antes do barroco, era ainda mais elaborada e anárquica,
comportando ilusões de ótica, deformações, confusões e toda sorte de
ângulos esdrúxulos, numa violenta rejeição aos ideais clássicos de
equilíbrio e proporção que haviam dominado o Renascimento. Referindo-se
a seu Os ensaios como “grotescos” e “corpos monstruosos (...) sem forma
definida, ordem, sequência ou proporção que não fosse acidental”,
Montaigne parece a própria encarnação do maneirismo. De acordo com os
princípios clássicos expostos por Horácio, não se deveria sequer mencionar
monstros numa obra de arte, pois representam falhas e deformações, mas é
justamente a um deles que Montaigne compara o seu livro.
Montaigne, o conservador político, revelou-se desde o início um
revolucionário literário, escrevendo de maneira única e permitindo à pena
seguir os ritmos naturais da conversa, e não uma linha formal de
construção. Ele omitia conexões, saltava passos do raciocínio e deixava seu
material depositar-se em blocos sólidos, coupé ou “talhados” como bifes
recém-cortados. “Não enxergo nada em sua totalidade”, escreveu:

Dos cem membros e faces que cada coisa possui, tomo apenas um, às
vezes apenas para lambê-lo, às vezes para roçar a superfície, às vezes
para espremê-lo até os ossos. Trato de perfurá-lo, não com amplitude,
mas com o máximo de profundidade possível. E quase sempre gosto
de tomá-los de um ponto de vista inabitual.

Esta última parte era inquestionavelmente verdadeira. Já em seus


primeiros capítulos ele patina por caminhos oblíquos, tendência que se
torna ainda mais radical nos ensaios da década de 1580. “Das carruagens”
começa falando de autores, envereda brevemente pelos espirros e chega ao
tema declarado das carruagens duas páginas adiante — para quase
imediatamente sair correndo de novo e passar o resto do tempo tratando do
Novo Mundo. “Da fisionomia” aborda o tema da fisionomia por meio de
uma repentina observação a respeito da feiura de Sócrates, quando já
ficaram para trás 22 páginas de um ensaio que (na tradução inglesa de
Donald Frame) comporta apenas 28. O escritor inglês Thackeray brincou
que Montaigne poderia ter dado a qualquer de seus ensaios o título de outro,
ou que poderia ter intitulado um deles “Da lua” e outro “Do queijo fresco”:
pouca diferença faria. Montaigne reconhecia que seus títulos não tinham
uma ligação mais óbvia com o conteúdo — “não raro só o denotam por
algum indício”. Mas também observou que, se o título parece aleatório e o
rumo de sua lógica, perdido, “algumas palavras a respeito sempre poderão
ser encontradas em algum canto, o que invariavelmente será suficiente”. As
“palavras num canto” muitas vezes encobrem seus temas mais
interessantes. Ele as posiciona exatamente nas partes do texto que parecem
romper o fluxo de maneira mais destrutiva, turvando as águas e fazendo
com que seja impossível seguir seus argumentos.
Os ensaios de Montaigne se apresentava inicialmente como uma obra
das mais convencionais: um ramo de flores colhidas no jardim dos grandes
autores clássicos, junto a considerações sobre diplomacia e ética nos
campos de batalha. Uma vez abertas, contudo, suas páginas se
metamorfoseavam como uma criatura de Ovídio numa aberração sustentada
por um único elemento: o rosto de Montaigne. Dificilmente seria possível
desafiar as convenções mais categoricamente. O livro não só era
monstruoso como apresentava como único ponto de unidade exatamente
aquilo que deveria modestamente desaparecer como pano de fundo.
Montaigne representa o maciço cerne gravitacional da obra; um cerne que
vai se tornando mais forte à medida que o livro evolui por suas variantes,
mesmo depois de ser intensamente sobrecarregado de novos membros,
ornamentos, bagagens e desordenadas partes do corpo.
A década de 1570 foi a primeira grande década de Montaigne em termos
de produção escrita, mas a de 1580 seria o seu grande período como autor.
Nos dez anos subsequentes, Os ensaios dobrou de tamanho, fazendo com
que Montaigne deixasse de ser uma nulidade para se transformar numa
estrela. Ao mesmo tempo, a década de 1580 o retirou de sua tranquila
posição na Guyenne rural e o levou a fazer uma longa viagem por Suíça,
Alemanha e Itália, já como uma festejada celebridade, e o fez prefeito de
Bordeaux. Solidificou sua estatura como personalidade pública e literária. E
também arruinou sua saúde, exauriu-lhe as forças e o transformou num
homem digno de lembrança.
14. P. Como viver? R. Conheça o mundo

VIAGENS

O
sucesso da primeira edição de Os ensaios em 1580 deve ter
mudado em Montaigne a maneira de encarar a vida. A
consagração o tirou de sua rotina e talvez lhe tenha dado a
sensação de que chegara o momento de voltar a se envolver com as coisas
do mundo. Embora ele não fale muito a respeito em Os ensaios, pode ter-
lhe ocorrido então que uma interessante carreira diplomática se
descortinava, e que a melhor maneira de iniciá-la seria com o
estabelecimento de contatos internacionais. Ele também estava ansioso por
se distanciar das limitações domésticas da propriedade, que podiam ser
entregues nas mãos perfeitamente capazes de sua mulher. Montaigne
sempre quisera viajar, para descobrir “a perene variedade das formas de
nossa natureza”. Ainda menino, ele sentia uma “sincera curiosidade” em
relação ao mundo — fosse em relação a “um prédio, uma fonte, um
homem, um antigo campo de batalha, o lugar onde César ou Carlos Magno
morreram”: tudo, enfim. Pois agora se imaginava seguindo os passos de
seus heróis clássicos e, ao mesmo tempo, explorando toda a variedade do
mundo atual, no qual podia “polir e lustrar” o cérebro no contato com
estranhos.
Havia ainda outro motivo, nem tão glamoroso, para viajar. Montaigne
herdara do pai certa tendência à formação de pedras nos rins. Tendo visto
Pierre literalmente desmaiar de dor, ele temia essa doença mais que
qualquer outra. Chegando agora aos quarenta e poucos anos, ele teve
oportunidade de descobrir por si próprio como era esse tipo de tortura.
A formação de pedras nos rins se deve ao acúmulo de cálcio e outros
minerais no sistema, criando caroços e cristais que bloqueiam o fluxo da
urina. Muitas vezes eles se fragmentam em cacos pontudos e irregulares.
Sejam inteiros ou fragmentados, eles precisam seguir o seu curso, e nesse
processo causam uma sensação que poderia ser comparada à de ser
retalhado por dentro. Também provocam um mal-estar generalizado na
região dos rins, dores lancinantes no abdômen e na região lombar e às vezes
náusea e febre. Mesmo depois de serem expelidos, o problema não acaba,
pois eles muitas vezes voltam a se manifestar ao longo da vida. Na época de
Montaigne, representavam risco de vida, fosse pelo simples bloqueio ou por
causarem infecção.
Hoje em dia, as pedras podem ser esfaceladas com ondas sonoras, para
facilitar a passagem, mas na época de Montaigne podia-se apenas esperar
que esses ferrões, esferas, carrapichos e agulhas encontrassem o caminho da
saída por si mesmos. Ele tentava expulsá-los prendendo a urina pelo
máximo tempo suportável, para aumentar a pressão; era em si mesmo um
procedimento doloroso e perigoso, mas às vezes funcionava. E também
experimentava outros remédios, embora em geral não confiasse na
medicina. Certa vez, ingeriu “terebintina veneziana, que dizem provir das
montanhas do Tirol, duas doses grandes numa colher de prata, com adição
de uma ou duas gotas de um xarope, para melhorar o gosto”. O único efeito
foi fazer com que sua urina ficasse com cheiro de violetas perfumadas. O
sangue de um bode alimentado com ervas especiais e vinho também seria
supostamente eficaz. Montaigne experimentou, criando o bode em sua
propriedade, mas deixou a ideia de lado ao encontrar nos órgãos do animal,
depois de abatido, cálculos muito semelhantes. Não conseguia entender de
que maneira um sistema urinário problemático poderia curar outro.
O remédio mais comum para pedras nos rins era o uso de águas de spas e
banhos termais. Montaigne também fez a tentativa: pelo menos era um
método natural, sem probabilidade de lhe fazer algum mal. Os spas muitas
vezes eram localizados em lugares atraentes, e a companhia era
interessante. Ele experimentou alguns deles na França no fim da década de
1570; a doença voltava a se manifestar após cada visita, mas ele se
dispunha a tentar novamente. Aí estava, assim, mais um motivo para viajar,
pois os balneários da Suíça e da Itália eram famosos. E a vantagem deste
motivo era que podia ser facilmente justificado junto à mulher e aos
amigos.
Assim foi que, no verão de 1580, o afamado escritor de 47 anos deixou
seus vinhedos e botou o pé na estrada para curar-se da sua enfermidade e
conhecer o mundo, ou pelo menos áreas seletas do mundo europeu. A
viagem o manteria afastado até novembro de 1581: dezessete meses. Ele
começou percorrendo regiões da França, aparentemente a negócios e talvez
recolhendo instruções para missões políticas durante a jornada. Foi nessa
ocasião que teve sua audiência com Henrique III, oferecendo-lhe o seu Os
ensaios. Em seguida, rumou para leste e atravessou a fronteira para terras
alemãs, tomando depois a direção dos Alpes e da Suíça e finalmente
chegando à Itália. Fosse por vontade sua, a viagem teria sido mais longa e
ele poderia ir para qualquer lugar. A certa altura, pensou em ir até a Polônia.
Mas se contentou com o destino mais habitual de Roma — importante lugar
de peregrinação para qualquer bom católico e qualquer intelectual do
Renascimento.
Montaigne não podia se dar ao luxo de viajar sozinho, obedecendo
apenas a seus desejos pessoais. Ele era um nobre importante e devia
sustentar um pesado séquito de criados, conhecidos e agregados, do qual
tentava escapar sempre que possível. Do grupo faziam parte quatro jovens
que vinham pela experiência educativa. Um deles era seu irmão menor,
Bertrand de Mattecoulon, que tinha apenas 20 anos; os demais eram o
jovem marido de uma de suas irmãs e o filho adolescente de um vizinho,
acompanhado de um amigo. À medida que a viagem prosseguia, todos eles
se apartariam em diferentes direções. O mais malfadado foi Mattecoulon,
que ficou em Roma estudando esgrima e matou um homem num duelo;
Montaigne teve de tirá-lo da prisão.
Viajar era em si mesmo um esporte radical na época, não muito menos
perigoso que os duelos. As estradas das rotas mais frequentadas de
peregrinação podiam ser boas, mas as demais eram precárias. A qualquer
momento podia ser o caso de mudar de rota, à notícia de uma peste adiante
ou de bandos de salteadores. Certa vez Montaigne alterou seu percurso em
direção a Roma diante de um aviso de assaltos à mão armada no caminho
que pretendia tomar. Havia quem contratasse uma escolta ou viajasse em
comboios. Montaigne já estava num grupo grande, o que ajudava, mas por
isso mesmo também podia atrair muita atenção.
Havia outros aborrecimentos. Era necessário subornar funcionários,
especialmente na Itália, conhecida pela corrupção e pelos excessos
burocráticos. Por toda a Europa, os portões das cidades eram fortemente
guardados; o viajante tinha de apresentar passaportes, autorizações de
viagem e bagagem e declarações devidamente certificadas de que não
passara recentemente por alguma região atingida pela peste. Os postos de
controle nas cidades costumavam emitir passes para hospedagem em
determinado hotel, cujo proprietário tinha de apor também sua assinatura.
Devia ser como viajar pelos países comunistas no auge da Guerra Fria, só
que com riscos e criminalidade ainda maiores.
E havia, ainda, as dificuldades da viagem propriamente dita. Ela era feita
quase sempre a cavalo. Também se podia recorrer a uma carruagem, mas
neste caso os assentos eram mais duros que as selas. Montaigne certamente
preferia cavalgar: comprava e vendia cavalos no caminho ou os alugava
para breves percursos. O transporte fluvial era outra opção, mas Montaigne
o evitava por sofrer de enjoo. Quase sempre a viagem a cavalo lhe
proporcionava a liberdade por que tanto ansiava; surpreendentemente, uma
sela também lhe parecia o lugar mais confortável para estar durante  uma
crise de pedra nos rins.
O que ele mais gostava nessas viagens era da sensação de seguir no
fluxo. Montaigne sempre evitava planos prefixados. “Se à direita a coisa
parece feia, eu tomo a esquerda; quando não estou em condições de montar
o meu cavalo, paro.” Ele viajava exatamente como lia e escrevia: seguindo
o convite do prazer. Leonard Woolf, percorrendo a Europa com a mulher
mais de três séculos depois, relataria que ela também viajava como uma
baleia esquadrinhando o oceano em busca de plâncton, cultivando  uma
“vigilância passiva” que lhe proporcionava uma estranha mistura de
“euforia e relaxamento”. Montaigne era igual. Tratava-se de uma extensão
do seu prazer cotidiano de “se deixar levar tranquilamente pela ondulação
dos céus”, como diria suntuosamente, mas com o prazer adicional
decorrente da visão das coisas como se fossem sempre novas, contempladas
com toda a atenção, como faria uma criança.
Ele não gostava de planejar, mas tampouco gostava de perder
oportunidades. Seu secretário, acompanhando-o e (por algum tempo)
mantendo o seu diário, observou que as pessoas do grupo se queixavam do
hábito de Montaigne de se desviar do caminho sempre que ouvia falar de
atrações extras que o interessavam. Mas Montaigne responderia que era
impossível desviar-se do caminho, pois não havia um caminho. O único
plano com que sempre se comprometera fora o de viajar por lugares
desconhecidos. Desde que não repetisse um caminho, ele estava seguindo
seu plano à risca.
A única limitação em sua energia era que ele não gostava de começar
muito cedo. “Minha preguiça de levantar da cama dá aos meus criados
tempo para se alimentar à vontade antes de começarmos.” O que convinha
aos seus hábitos, pois ele sempre tinha dificuldade de entrar no ritmo pela
manhã. No geral, contudo, ele se esforçava por largar seus hábitos durante
as viagens. Ao contrário de tantos viajantes, ele dava preferência aos pratos
locais e se fazia servir no estilo local. A certa altura da viagem, lamentou
não ter trazido o cozinheiro — não porque sentisse falta da comida de casa,
mas porque gostaria que ele aprendesse novas receitas estrangeiras.
Montaigne ficava envergonhado ao ver outros franceses tomados de
alegria quando encontravam algum compatriota no estrangeiro. Eles se
abraçavam, juntavam-se em grupos ruidosos e passavam noites inteiras se
queixando da barbárie dos nativos. Esses eram os poucos que chegavam a
se dar conta de que os habitantes locais faziam as coisas de maneira
diferente. Outros conseguiam viajar tão “protegidos e envoltos numa
prudência taciturna e incomunicável, defendendo-se do contágio de um
ambiente estranho”, que nem se davam conta de nada. No diário, o
secretário observava como o próprio Montaigne ia longe demais na direção
oposta, derramando-se em elogios exagerados ao país onde estivessem, sem
nunca jamais ter uma palavra boa a dizer sobre os compatriotas. “Na
verdade, havia em seu julgamento um pouco de raiva, um certo desprezo
por seu país”, escreveu o secretário, acrescentando a especulação de que a
aversão de Montaigne a tudo que fosse francês decorria de “considerações
de outra ordem” — talvez uma referência às guerras.
Sua capacidade de adaptação se estendia às línguas. Na Itália, ele falava
italiano e até redigia seu diário nessa língua, dispensando já agora o
secretário. Imitando o camaleão, ou o polvo, tentava passar despercebido
sempre que possível — ou de um jeito que para ele parecesse despercebido.
Em Augsburgo, escreveu o secretário, “Monsieur de Montaigne, não se
sabe por quê, quis que nosso grupo se dispersasse e caminhou sozinho o dia
inteiro pela cidade”. Não funcionou. Sentado num banco da igreja de
Augsburgo num ar gelado, Montaigne sentiu seu nariz escorrer e
distraidamente lançou mão de um lenço. Mas os habitantes da região não
usavam lenço, de modo que ele se traiu. Haveria algum mau cheiro?,
perguntavam-se os moradores. Ou será que ele estava com medo de pegar
alguma coisa? De qualquer maneira, eles já tinham entendido que se tratava
de um estrangeiro: sua indumentária não o deixava mentir. Montaigne
achava isso irritante. Para variar, “ele cometia o erro que mais tentava
evitar, o de se fazer notar por algum maneirismo que o distinguisse daqueles
que o viam”.
As igrejas desempenharam papel importante na viagem de Montaigne,
não porque fosse dado a orações, mas por sua curiosidade a respeito das
práticas. Ele observou as igrejas protestantes da Alemanha com o mesmo
interesse dedicado às católicas da Itália. Em Augsburgo, assistiu ao batizado
de uma criança. Ao sair (tendo visto desmascarada sua identidade de
estrangeiro), fez muitas perguntas sobre o ritual. Na Itália, visitou sinagogas
e “conversou muito sobre as cerimônias”. Também assistiu a uma
circuncisão judaica, numa residência particular.
Acontecimentos inusitados e narrativas humanas de toda espécie
despertavam seu interesse. Nas primeiras etapas da viagem, em Plombières-
les-Bains, na Lorena, conheceu um soldado com metade da barba branca e
uma sobrancelha branca: o sujeito disse-lhe que as duas haviam mudado de
cor de um dia para outro, à morte do irmão, por ele ter chorado durante
horas com uma das mãos cobrindo metade do rosto. Perto dali, em Vitry-le-
François, ele foi entretido com histórias sobre sete ou oito meninas da
região que tinham “conspirado” para se vestir e viver como homens. Uma
delas casou-se com uma mulher e viveu com ela durante vários meses —
“para sua satisfação, segundo dizem” —, até que alguém denunciou o caso
às autoridades e ela foi enforcada. Outra história nessa mesma região dizia
respeito a um homem chamado Germain que fora mulher até os 22 anos,
quando um conjunto de “instrumentos viris” pulou para fora certo dia
quando saltava um obstáculo. Surgiu então na cidade uma canção popular
advertindo as moças a não abrirem muito as pernas ao saltarem, para não se
verem na mesma contingência.
Montaigne ficava fascinado com as diferenças dos hábitos alimentares
— sempre um motivo óbvio de comparações culturais para qualquer
viajante. Na Suíça, as taças eram servidas de vinho à distância, com um
vaso de bico longo, e depois de comer carne todos atiravam os pratos em
uma cesta no meio da mesa. As pessoas usavam facas para comer,
“praticamente nunca punham as mãos no prato” e se valiam de minúsculos
guardanapos de cerca de trinta centímetros quadrados, apesar da preferência
que tinham por sopas e molhos bem lambuzados. Coisas ainda mais
estranhas o aguardavam nos quartos da Suíça: “As camas são tão altas que é
preciso chegar a elas por escadas; e quase sempre têm pequenas camas
debaixo das grandes.”
Tudo atraía a atenção de Montaigne ou de seu secretário, que escrevia
obedecendo a suas orientações. Numa hospedaria em Lindau, uma parede
inteira da sala de jantar era ocupada por uma gaiola cheia de pássaros, com
corredores e arames para permitir-lhes saltar de uma extremidade da sala à
outra. Em Augsburgo, deram com um grupo conduzindo dois avestruzes
pela coleira para presentear o duque da Saxônia. Nessa cidade, Montaigne
também notou que “eles tiram a poeira dos objetos de vidro com fios de
cabelo presos à ponta de um bastão”. E ele ficou intrigado com os múltiplos
portões controlados à distância na cidade, que isolavam câmaras
alternadamente, como comportas num canal, para impedir a invasão de
agressores.
Por toda parte, eles visitavam fontes modernas e jardins aquáticos, muito
bons para horas seguidas de entretenimento sádico. Nos jardins da família
Fugger, na Alemanha, ocultavam-se numa passarela de madeira, entre dois
lagos de peixinhos, canos de metal programados para borrifar damas e
cavalheiros que passassem distraídos. No mesmo jardim, era possível
apertar um botão para atirar um jato d’água no rosto de quem viesse
contemplar determinada fonte. Um aviso em latim dizia: “Você buscava
divertimentos triviais; pois aqui estão; desfrute.” Aparentemente, foi o que
fez o grupo de Montaigne.
A grande arte já não parecia impressioná-lo tanto, ou pelo menos ele
pouco se manifesta a respeito, só eventualmente comentando obras como
“as belíssimas e esplêndidas estátuas de Michelangelo” em Florença. Os
ensaios também contém poucas referências às artes visuais. Ele encheu sua
torre de afrescos, de modo que devia ter algum gosto pela pintura, mas não
parece ter-se sentido muito inclinado a escrever sobre ela — muito embora
a tinta mal tivesse secado ainda nas tantas obras de arte renascentista que
percorriam toda a Itália.
Esta omissão seria alvo de crítica, mais tarde, da parte de certos leitores
do diário, especialmente os românticos, que foram seu primeiro público,
pois o manuscrito só seria encontrado num baú do castelo em 1772. Os
leitores se atiraram com entusiasmo sobre a descoberta, mas acabaram
decepcionados. Além de uma melhor apreciação da arte, os leitores do
século XVIII também teriam gostado de devaneios sublimes sobre a beleza
dos Alpes e meditações melancólicas sobre as ruínas de Roma. Em vez
disso, o que tinham era um registro dos bloqueios urinários de Montaigne,
alternando-se com detalhes muito bem-observados, estimulantes mas nada
sublimes sobre as hospedarias, a comida, a tecnologia, os hábitos e
costumes sociais de cada parada. Os leitores não ficavam tão emocionados
de saber, pelo secretário, que “a água que Monsieur de Montaigne bebeu na
terça-feira provocou três evacuações” e que, dois dias depois, outra dose
das águas de um spa surtiu efeito “tanto pela frente quanto por trás”. Nem
exultavam propriamente quando o próprio Montaigne, assumindo a redação
do diário, informava que havia vertido uma pedra “grande e longa como um
pinhão, mas com a espessura de um feijão numa das extremidades e
apresentando, para dizer a verdade, exatamente a forma de um pênis”. A
única coisa que os leitores suíços e alemães, pelo menos, podiam apreciar
era o fato de o diário também estar cheio de elogios a suas terras,
especialmente aos bem-projetados fogões da Suíça.
A recepção algo morna da obra por parte dos primeiros leitores parece
ter dado o tom para o que viria depois: o diário sempre foi considerado o
primo pobre de Os ensaios. E no entanto é uma leitura mais interessante
que tantos livros de viagem pomposos do romantismo, precisamente por se
apegar aos detalhes. Tem camas menores debaixo das maiores, molhos
suíços que lambuzam, gaiolas do tamanho de uma sala, circuncisões,
mudanças de sexo e avestruzes: que mais poderíamos desejar?
Outra característica interessante do diário é que nos proporciona um
retrato de Montaigne traçado por um observador externo, seu secretário —
retrato que por sinal se revela notavelmente coerente com o Montaigne
autorreflexivo de Os ensaios. O leitor vê Montaigne se esforçando por
descartar todo e qualquer tipo de preconceito nacional, exatamente como
poderíamos esperar dele. Ele parece entusiástico e cheio de curiosidade,
mas às vezes também egoísta, arrastando seus relutantes acompanhantes a
lugares que não viam sentido em visitar. Há também uma ou outra
indicação de que ele abusava das evasivas e da prolixidade nos discursos
formais, não obstante seu desinteresse por eles (ou quem sabe justamente
por causa disso). Em Basileia, onde Montaigne teve de aguentar “um longo
discurso de boas-vindas” no jantar, o secretário escreve que ele deu uma
igualmente “longa resposta”. E, em Schaffhausen, Montaigne foi
presenteado com vinho — “não sem vários discursos cerimoniosos de
ambos os lados”.
A demanda dos poderes oratórios de Montaigne já não foi tão grande na
Itália, aonde chegaram em 28 de outubro de 1580. Mas, quanto mais eles se
aproximavam do país, mais ele se questionava se efetivamente queria visitá-
lo. Era sem dúvida o grande destino, o centro da cultura europeia: Veneza e
Roma o haviam atraído a vida inteira. Mas agora ele se dava conta de que
preferia lugares menos conhecidos. Se a vontade de Montaigne tivesse
prevalecido, observava o secretário ao se aproximarem dos Alpes, o grupo
poderia ter-se desviado para a Polônia ou a Grécia, talvez apenas para
prolongar a viagem. No entanto, enfrentou resistência e acabou por
concordar em tomar o rumo da Itália, como todo mundo. E logo se
recompôs. “Eu nunca o vi menos cansado ou se queixando menos das
dores”, escrevia agora o secretário, “pois estava com a mente
completamente voltada para o que encontrava, fosse no caminho ou na
hospedagem, e a todo momento se mostrava tão ansioso por conversar com
estranhos que tenho para mim que isto desviou sua mente da enfermidade”.
Veneza, uma das primeiras paradas importantes na Itália, confirmou seus
temores quanto aos destinos turísticos muito procurados. No dizer do
secretário, ele achou a cidade ligeiramente menos maravilhosa do que se
dizia. Mas nem por isto deixou de explorá-la com menos gana, alugando
uma gôndola e se aproximando das pessoas interessantes que encontrava.
Ele se deixou conquistar pela estranha geografia de Veneza, sua população
cosmopolita e seu governo como república independente. A cidade parecia
envolta numa espécie de magia política particular de que outros lugares
careciam, envolvendo-se em conflitos só quando tinha algo a ganhar e
mantendo dentro de suas fronteiras um governo justo. Montaigne também
ficou impressionado com a vida de dignidade e luxo das cortesãs da cidade,
abertamente mantidas pelos nobres e respeitadas por todos. Conheceu uma
das mais famosas, Veronica Franco, que havia sobrevivido recentemente a
um julgamento pela Inquisição e publicara um livro de correspondência, as
Lettere familiari e diversi¸ por ela oferecido pessoalmente a Montaigne.
Depois de Veneza, o grupo passou por Ferrara, onde Montaigne esteve
com Tasso, depois Bologna, onde assistiram a uma demonstração de
esgrima, e Florença, onde visitaram jardins cheios de efeitos, com assentos
que esguichavam água no traseiro de quem os usasse. Em outro jardim, o
grupo “teve a experiência muito divertida” de ser aspergido com água saída
de “uma quantidade infinita de buracos minúsculos”, projetando uma
emanação tão fina que era quase uma neblina.
Eles então prosseguiram, aproximando-se cada vez mais de Roma. Na
véspera da chegada à cidade, em 3 de novembro de 1580, Montaigne estava
tão empolgado que, pela primeira vez, fez todo mundo acordar três horas
antes do alvorecer para percorrer os últimos quilômetros restantes. A
estrada nas proximidades da cidade não era muito promissora, cheia de
calombos, fendas e buracos, mas à medida que avançavam divisaram as
primeiras ruínas e então, finalmente, a grande cidade.
A emoção murchou um pouco com a espera para passar pela burocracia
nos portões: a bagagem foi vasculhada “até os menores itens”. Os
funcionários passaram um tempo exagerado examinando os livros de
Montaigne. Roma era o domínio do próprio papa: os crimes do pensamento
eram levados a sério ali. Eles confiscaram um breviário, simplesmente por
ter sido publicado em Paris, e não em Roma, e algumas obras teológicas
católicas selecionadas por Montaigne na Alemanha. Ele se deu por feliz de
não estar carregando nada mais comprometedor. Não estando preparado
para uma inspeção tão rigorosa, bem que poderia trazer consigo livros
heréticos, pois, como observava o secretário, era mesmo de “temperamento
curioso”.
Confiscado para exame também foi um exemplar de seu Os ensaios. Só
lhe seria devolvido em março, quatro meses depois, com anotações
sugerindo correções. A palavra “sorte” foi assinalada em vários lugares,
juntamente com outras miudezas. Mas um representante da Igreja lhe diria
posteriormente que as objeções não eram graves, e que haviam sido feitas
por um frade que sequer era particularmente competente. “Pareceu-me tê-
los deixado bem satisfeitos comigo”, escreveu Montaigne no diário. Ele
tratou de ignorar as sugestões. Certos autores deram grande ênfase ao
desafio lançado por Montaigne à Inquisição, mas ele não precisava ser
nenhum Galileu para firmar posição.
Seja como for, esses episódios não eram um bom começo para
Montaigne em Roma, e ele sentiu que havia na cidade um clima de
intolerância. Mas ela também era cosmopolita. Ser romano era ser cidadão
do mundo, exatamente o que Montaigne pretendia ser. Assim foi que ele
pleiteou a cidadania romana, honra que lhe seria concedida pelo fim dos
quatro meses e meio que passou na cidade. Ficou tão satisfeito que
transcreveu a íntegra do documento num capítulo de Os ensaios sobre a
vaidade. Deu-se conta de que “vaidade” era a categoria indicada no caso,
mas não se importou. “Em todo caso, tive muito prazer em obtê-la.”
Roma era tão vasta e variada que as possibilidades não pareciam ter
limite. Montaigne pôde ouvir sermões e debates ecológicos. Visitou a
biblioteca do Vaticano e, tendo acesso a áreas vedadas até ao embaixador da
França, viu preciosos exemplares manuscritos de obras de seus heróis
Sêneca e Plutarco. Assistiu a uma circuncisão, visitou jardins e vinhedos e
conversou com prostitutas. Tentou descobrir seus segredos profissionais,
mas ficou sabendo apenas que cobravam caro até para conversar, o que
possivelmente seria, em si, um desses segredos.
Além das prostitutas, Montaigne também teve uma audiência com o
papa, o então octogenário Gregório XIII. O secretário descreveu o ritual em
detalhes. Primeiro Montaigne e um dos jovens que o acompanhavam na
viagem entraram no salão onde se encontrava o papa e se ajoelharam para
receber uma primeira bênção. Esgueirando-se de lado ao longo da parede,
dirigiram-se afinal para ele; a meio caminho, detiveram-se para uma
segunda bênção. Por fim, ajoelharam-se num tapete de veludo aos pés do
papa, tendo ao lado o embaixador francês, que os apresentava. O
embaixador também se ajoelhou e suspendeu a túnica do papa para mostrar
seu pé direito, calçando uma sapatilha vermelha com uma cruz branca. Os
dois visitantes inclinaram-se para a frente e beijaram o pé; Montaigne
observou que o papa levantou ligeiramente os dedos para facilitar o beijo.
Depois desse momento quase erótico, o embaixador voltou a cobrir o pé do
papa e levantou-se para pronunciar um discurso sobre os visitantes. O papa
os abençoou e disse algumas palavras, exortando Montaigne a persistir em
sua devoção à Igreja. Levantou-se, então, para dispensá-los; eles voltaram
pelo caminho percorrido, sem dar-lhe as costas e detendo-se duas vezes
para receber ajoelhados mais bênçãos. Finalmente, atravessaram a porta, e a
performance estava encerrada. Montaigne faria o secretário anotar, mais
tarde, que o papa falava com sotaque de Bolonha — “o pior dialeto da
Itália”. Era “um velho muito bonito, de estatura mediana, saudável e
vigoroso, para sua idade, sem gota, cólica nem problemas digestivos” —
muito diferente do pobre Montaigne e com uma espécie de semelhança de
família com o próprio Deus. Ele parecia “de temperamento brando, sem
muita paixão pelas coisas do mundo”, o que vem a ser muito semelhante ou
muito diferente de Deus, dependendo do ponto de vista. Brando ou não, era
o mesmo papa que mandara cunhar moedas e encomendara pinturas para
comemorar o massacre de São Bartolomeu.
Não havia como esquecer que Roma era a cidade do papa. Montaigne o
viu com frequência, presidindo cerimônias e participando de procissões. Na
Semana Santa, viu milhares de pessoas chegando à praça São Pedro,
carregando tochas e se flagelando com cordas, em certos casos com apenas
12 ou 13 anos de idade. Eram acompanhadas por homens carregando vinho,
que era levado à boca e cuspido nas extremidades dos açoites para
umedecer as cordas e separá-las quando ficavam impregnadas de sangue
coagulado. “Trata-se de um enigma que ainda não entendo bem”, escreveu
Montaigne. Os penitentes ficavam terrivelmente machucados, mas não
pareciam sentir dor nem levar muito a sério o que faziam. Bebiam também
muito vinho e cumpriam o ritual “com tal desprendimento que os vemos
conversar sobre outras questões, rir, gritar nas ruas, correr e pular”. Ele
deduziu então, com razão, que a maioria o fazia por dinheiro: haviam sido
pagos por fiéis ricos para se submeterem em seu nome à penitência. O que o
deixou ainda mais perplexo: “Por que é que o fazem os contratantes, se tudo
não passa de uma farsa?”
Montaigne também assistiu a um exorcismo. O homem possuído, que
quase parecia em estado de coma, foi segurado de cabeça para baixo no
altar enquanto o padre lhe dava murros, batia-lhe no rosto e gritava com ele.
Em outra ocasião, ele viu um homem sendo enforcado: um famoso
assaltante e bandido chamado Catena, entre cujas vítimas estavam dois
monges capuchinhos. Aparentemente ele prometera salvar-lhes a vida se
renegassem Deus; foi o que eles fizeram, incorrendo no risco de perder a
alma na eternidade, mas Catena ainda assim os matou. De todas as
reviravoltas até então presenciadas por Montaigne nesse tipo de cena que
tanto o fascinava — o indivíduo vencido que implora misericórdia, o
vencedor que decide ou não concedê-la —, foi esta provavelmente a mais
desagradável. Pelo menos o próprio Catena enfrentava a morte de peito
aberto. Não emitiu um único som ao ser conduzido à forca; seu corpo foi
então esquartejado com espadas. A multidão agitou-se mais com a violência
contra o corpo morto, uivando a cada golpe de espada, do que com a
própria execução: outro fenômeno que intrigou Montaigne, que considerava
a crueldade com um ser vivo mais perturbadora que qualquer coisa que
pudesse ser feita a um cadáver.
Todas estas eram as maravilhas da Roma moderna, mas não era por
motivos assim que vinha à cidade a maioria dos turistas de inclinações
humanistas no século XVI. Eles vinham para se impregnar da aura dos
antigos, e ninguém seria mais suscetível a essa aura do que Montaigne, que
quase poderia ser considerado um nativo. O latim, afinal, fora sua primeira
língua: Roma era sua pátria.
A cidade clássica chamava a atenção ao redor, embora quase sempre
Montaigne e o seu secretário não caminhassem propriamente sobre os
passos dos romanos, mas muito acima deles. Tanta terra e entulho se havia
acumulado ao longo dos séculos que o solo se elevara vários metros: o que
restava dos prédios antigos estava soterrado, como botas na lama.
Montaigne se maravilhava à ideia de que podia estar muitas vezes no alto
de muralhas antigas, o que só ficava evidente em lugares onde algum trecho
fosse revelado pela erosão da chuva ou os sulcos cavados pelas rodas.
“Muitas vezes tem acontecido”, escreveu ele, com um estremecimento de
regozijo, “que os escavadores, depois de se aprofundar muito no solo, mal
alcançavam o alto de uma enorme coluna, que ainda se alongava para
baixo”.
Já não é nem de longe o caso hoje em dia. As escavações desde então
permitiram expor integralmente a maioria das ruínas, e algumas foram
reconstituídas. Atualmente, o Arco de Severo se ergue orgulhoso; na época
de Montaigne, via-se apenas a parte superior. O Coliseu era então uma
carcaça de pedra coberta de mato. Construções medievais e do início da era
moderna também tinham sido erguidas por toda parte, sobre ruínas ou
utilizando velhos materiais reciclados. Lajes de pedra eram reposicionadas
constantemente em nível mais alto, para remendar muralhas ou erguer
barracos. Certas áreas haviam sido completamente liberadas para abrir
espaço a projetos triunfalistas como a nova igreja de São Pedro. A história
de Roma não se acumulava em camadas nítidas: tinha sido repetidas vezes
embaralhada e reagrupada, como ao influxo de terremotos.
O resultado de tudo isto era interessante, mas dava uma impressão da
Roma antiga mais ou menos equivalente à que ovos mexidos podem dar de
um ovo recém-posto. Na verdade, a Roma moderna se constituíra num
processo semelhante ao utilizado por Montaigne para escrever seu Os
ensaios. Constantemente acrescentando citações e alusões, ele reciclava
suas leituras clássicas exatamente como os romanos reciclavam a pedra. A
semelhança parece ter-lhe ocorrido, e certa vez ele se referiu ao livro como
uma construção feita com ruínas de Sêneca e Plutarco. Na cidade, como em
seu livro, ele considerava a imperfeição e a bricolagem criativa preferíveis a
uma ordem estéril, e a contemplação do resultado lhe dava prazer. O
processo também requeria certo esforço mental, que proporcionava ainda
maior satisfação. A experiência romana daí resultante era fruto sobretudo da
imaginação. O visitante quase poderia ter ficado em casa — quase, pois
ainda havia algo insubstituível no fato de estar ali presente.
Essa sensação de estranheza quase alucinatória acomete com frequência
os visitantes de Roma, em certa medida porque tudo ali já é familiar à
imaginação muito antes de ser visto. Duzentos anos depois, Goethe
consideraria a experiência ao mesmo tempo esfuziante e perturbadora. “Os
sonhos de minha juventude se realizaram”, escreveu ele ao chegar. “As
primeiras gravuras de que me recordo — meu pai pendurava vistas de
Roma na sala — posso agora ver na realidade, e tudo aquilo que há tanto
tempo conheço através de pinturas, desenhos, esboços, gravuras, moldes de
gesso e maquetes de cortiça está reunido diante de mim.” Algo semelhante
aconteceu a Freud em Atenas, quando viu a Acrópole. “Quer dizer então
que tudo isto existe, exatamente como aprendemos na escola!”, exclamou
ele, quase imediatamente seguindo-se a convicção: “O que estou vendo aqui
não é real.” Montaigne também estranhou a confluência da versão interna
com a externa, escrevendo sobre “a Roma e a Paris que tenho na alma”, e
que eram “sem tamanho nem lugar, sem pedra, sem gesso, sem madeira”.
Eram imagens oníricas que ele comparava à lebre ilusória perseguida por
seu cão.
Roma proporcionaria a Goethe uma paz quase mística: “Sinto-me agora
num estado de clareza e calma de tal ordem que havia muito tempo não
sentia.” Montaigne também o sentia; apesar das frustrações turísticas, a
Itália de maneira geral exercia esse efeito sobre ele. “Desfrutei de um
estado de espírito tranquilo”, escreveria pouco depois, em Lucca. Mas
acrescentava: “Senti falta de apenas uma coisa, de uma companhia que me
agradasse, estando forçado a desfrutar dessas belas coisas sozinho e sem
comunicação.”
Finalmente deixando Roma no dia 19 de abril de 1581, Montaigne
atravessou os Apeninos e tomou o rumo do grande centro de peregrinação
de Loreto, juntando-se à multidão que seguia em procissão com estandartes
e crucifixos. Na igreja local, deixou imagens votivas, para si mesmo e para
a mulher e a filha. Prosseguiu então pelo litoral do Adriático e retornou
pelas montanhas na direção de um spa em La Villa, onde permaneceria por
mais de um mês, no contato com as águas. Como se esperava de um nobre
em visita, organizou festas para os habitantes e convidados, com direito a
uma dança “para as camponesas” da qual participou, “para não parecer por
demais reservado”. Depois de uma passagem por Florença e Lucca,
retornou a La Villa, ali permanecendo no auge do verão, de 14 de agosto a
12 de setembro de 1581. A dor casusada pelas pedras andava terrível, e ele
também foi acometido de dor de dente, de um peso na cabeça e de
incômodos nos olhos. Desconfiava que a culpa fosse das águas, que
devastavam a sua metade superior embora aliviassem a inferior, se é que
efetivamente o faziam. “Comecei a achar esses banhos desagradáveis.”
E então, inesperadamente, ele foi convocado. Montaigne, que afirmava
querer apenas levar uma vida tranquila, tendo a chance de dar vazão a sua
“curiosidade sincera” Europa afora, recebeu de muitos longe um convite
que não podia recusar.
15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem
tão bom assim

PREFEITO

A
carta chegou às mãos de Montaigne nos banhos termais de La
Villa, com todo o peso de uma autoridade distante. Assinada por
todos os juízes de Bordeaux — os seis homens que governavam a
cidade, juntamente com o prefeito —, ela o informava de que fora eleito,
em sua ausência, prefeito da cidade. Devia retornar imediatamente para
cumprir com seu dever.
Não deixava de ser lisonjeiro, mas, segundo Montaigne, era a última
coisa que desejaria ouvir. As responsabilidades seriam mais pesadas que as
de um magistrado. Ele perderia a liberdade no emprego do próprio tempo;
haveria discursos e cerimônias — exatamente aquelas coisas que menos
apreciara em seu percurso pela Itália. Teria de se valer de sua habilidade
diplomática, pois o exercício da função de prefeito significaria lidar com as
diferentes facções religiosas e políticas da cidade, servindo de elemento de
ligação entre Bordeaux e um rei impopular. Significava, também, que teria
de abreviar sua viagem.
Por desiludido que estivesse com a vida no spa, ele não sentia a menor
vontade de voltar para casa. A essa altura, já estava afastado havia 15 meses
— um período longo, mas não o suficiente para deixá-lo satisfeito. Parece
então ter tentado ganhar algumas semanas. Ele não se recusou a atender à
convocação dos juízes, mas tampouco saiu correndo de volta ao seu
encontro. Inicialmente, retornou a Roma, em ritmo tranquilo, detendo-se em
Lucca algum tempo e experimentando algumas outras águas termais no
caminho. Ficamos imaginando por que voltou a Roma, pois significava
andar para trás mais de trezentos quilômetros. Talvez esperasse aconselhar-
se com alguém sobre uma maneira de se livrar da missão. Nesse caso, a
resposta terá sido desencorajadora. Chegando a Roma em 1º de outubro, ele
encontrou uma segunda carta dos juízes de Bordeaux, desta vez em tom
mais peremptório. Ele era agora “urgentemente solicitado” a retornar.
Na edição seguinte de Os ensaios, ele enfatizaria que não buscara essa
nomeação e tentara incansavelmente evitá-la. “Eu pedi para ser eximido”,
escreveu — mas a resposta foi que isto não fazia diferença, pois estava
envolvida uma “ordem do rei”. O rei chegou inclusive a lhe escrever uma
carta pessoal, destinada a lhe ser entregue no exterior, embora Montaigne só
a tenha recebido ao retornar a sua propriedade:

Monsieur de Montaigne, como tenho em grande estima sua fidelidade


e ardorosa devoção ao meu serviço, foi para mim um prazer ser
informado de que foi eleito prefeito da minha cidade de Bordeaux; e
achei essa eleição muito conveniente e a confirmei, e o fiz tanto mais
de bom grado por ter sido ela efetuada sem intriga e na sua distante
ausência. E nessa oportunidade minha intenção é, e nesse sentido
estabeleço e ordeno muito expressamente, que sem demora nem
desculpa retorne assim que receber esta carta e assuma o
cumprimento dos deveres e serviços da sua responsabilidade, às quais
foi tão legitimamente chamado. E estará fazendo algo que me será
muito agradável, sendo que o contrário muito me desagradaria.

Parecia quase uma punição por se mostrar tão pouco investido de


ambição política — presumindo-se que a relutância de Montaigne fosse
sincera.
Sua falta de pressa em voltar para casa certamente não indica ambição de
poder. Com toda a calma, ele foi serpenteando na direção da França via
Lucca, Siena, Piacenza, Pávia, Milão e Turim, levando aproximadamente
seis semanas na jornada. Ao entrar em território francês, deixou o italiano
para trás e voltou a redigir o diário em francês, e ao finalmente chegar a sua
propriedade registrou o acontecimento com uma nota em que também
indicava que sua viagem havia durado “17 meses e oito dias” — num raro
caso de correção numérica em seus escritos. Em seu diário Beuther, ele
também fez uma anotação com a data de 30 de novembro: “Cheguei à
minha casa.” Apresentou-se então aos funcionários de Bordeaux, obediente
e pronto para o cumprimento do dever.
Montaigne seria o prefeito da cidade durante quatro anos, de 1581 a
1585. O trabalho exigia muito, mas não era totalmente ingrato. Era
acompanhado de honrarias e acessórios de toda espécie: ele tinha seu
gabinete próprio, uma guarda especial, túnica e colar do cargo e lugar de
honra em funções públicas. Só lhe faltava um salário. Mas não podia ser
considerado apenas uma figura decorativa. Juntamente com os juízes, era
chamado a escolher e designar outros funcionários municipais, decidir
sobre as leis cívicas e julgar casos judiciais — tarefa que Montaigne
considerava particularmente árdua, levando-se em conta seus padrões de
exigência em matéria de comprovação dos fatos. Acima de tudo, ele tinha
de entrar no jogo político, tomando cuidado. Devia falar em nome de
Bordeaux perante as autoridades reais, e, em sentido inverso, transmitir a
política real aos juízes e outros notáveis da cidade, muitos dos quais
mostravam resistência.
O prefeito anterior, Arnaud de Gontault, barão de Biron, tinha indisposto
muita gente, de modo que uma das primeiras tarefas de Montaigne foi
apagar o incêndio. Biron governara com rigor, mas de maneira
irresponsável, permitindo a fermentação do ressentimento entre diferentes
facções e alienando Henrique de Navarra, o poderoso príncipe dos domínios
próximos de Béarn — uma pessoa com a qual era importante manter boas
relações. O próprio Henrique III se ofendera com a evidente simpatia de
Biron pelos liguistas católicos, que continuavam em rebelião contra a
autoridade real. Examinando-se o caso de Biron, fica evidente por que a
cidade escolheu Montaigne para sucedê-lo: teria assim um novo prefeito
conhecido por sua moderação e habilidade diplomática, exatamente as
qualidades que faltavam ao anterior. Em particular, embora estivesse ligado
aos desprezados politiques, Montaigne sabia lidar com todo mundo. Era
conhecido como alguém capaz de ouvir atentamente todos os lados, pautado
por este princípio pirroniano: dar ouvido a todos sem confiar a mente a
ninguém, ao mesmo tempo tratando de preservar a própria integridade.
Auspiciosamente, os anos da gestão de Montaigne também foram,
tecnicamente, anos de paz. As guerras foram suspensas entre 1580 e 1585,
período que cobria os anos de viagem de Montaigne e também sua
permanência no cargo. Mas não era uma paz fácil, e, como de hábito, todos
estavam insatisfeitos com a limitada tolerância ao culto protestante.
Bordeaux era uma cidade dividida: a minoria protestante representava cerca
de um sétimo da população e ela estava cercada de terras protestantes, mas
também contava com uma forte facção liguista. Mesmo nas melhores
condições, era difícil administrá-la. E as melhores condições não eram as
que prevaleciam, embora tampouco se pudesse dizer que eram as piores,
como se apressaria a assinalar o próprio Montaigne.
Ele também tinha a responsabilidade de manter a paz e a lealdade para
com o comandante militar do rei na região, um homem chamado Jacques de
Goyon, conde de Matignon. Diplomata experiente, oito anos mais velho que
Montaigne, Matignon talvez tenha evocado para ele a figura de La Boétie.
Os dois não se tornaram amigos íntimos, mas se deram bem. Ambos tinham
talento para lidar cuidadosamente com extremistas, e eram homens de
princípios. Durante os massacres de São Bartolomeu, Matignon se destacara
como um dos poucos funcionários empenhados em proteger os huguenotes
nas áreas sob sua responsabilidade, Saint-Lô e Alençon. Firme e tranquilo,
era a personalidade certa para a situação em Guyenne naquele momento. E
o mesmo quanto a Montaigne, embora lhe faltassem duas qualidades
essenciais: experiência e entusiasmo.
Montaigne preocupava-se em prevenir qualquer expectativa de que
pudesse ser uma cópia do pai, capaz de arruinar a própria saúde no trabalho.
Lembrava-se de Pierre esgotado pelas viagens de negócios, “a alma
cruelmente agitada por essa turbulência pública, esquecendo-se dos doces
ares do lar”. Seu próprio entusiasmo pelas viagens diminuía, agora
que,  como acontecera com o pai, devia fazê-las por obrigação. Mas não
tinha como evitá-las, e de fato fez várias viagens a Paris, particularmente
em agosto de 1582, quando foi à capital para finalmente recuperar os
privilégios perdidos por Bordeaux na já distante rebelião contra o imposto
do sal. Pelo fim do segundo mandato, sua gestão tornou-se ainda mais
peripatética: a documentação mostra sua presença em Mont-de-Marsan,
Pau, Bergerac, Fleix e Nérac. Ele também fazia regularmente o percurso
entre Bordeaux e seu castelo, onde, felizmente, podia executar boa parte do
trabalho. Na propriedade, igualmente podia levar adiante seus projetos
pessoais, e a segunda edição corrigida de Os ensaios foi publicada em 1582,
o ano seguinte ao da sua posse na prefeitura.
Embora não se dedicasse propriamente à função como um emprego de
tempo integral, Montaigne deve ter-se saído bem no primeiro mandato, pois
seria reeleito em 1º de agosto de 1583. E não podia deixar de se orgulhar
disso, pois não era comum a reeleição. “Foi o que aconteceu no meu caso, e
havia acontecido apenas duas vezes antes.” A reeleição enfrentou oposição,
particularmente de um rival que queria o cargo: Jacques d’Escars, sieur de
Merville, governador na cidade do Fort du Hâ. Montaigne não cedeu a suas
pressões, o que indica que se sentia mais atraído pelo cargo do que afirmava
inicialmente.
É possível que ele tenha mudado de ideia ao constatar a própria aptidão
para a função política. Juntamente com Matignon, ele era responsável agora
pela comunicação entre os representantes do rei, os rebeldes liguistas de
Bordeaux e o protestante Henrique de Navarra, que detinha mais poder que
nunca na região. Cada vez mais, no segundo mandato, Montaigne fazia as
vezes de intermediário. Estabeleceu relações particularmente boas com os
representantes do rei e o campo de Navarra. Os liguistas se mostravam mais
difíceis, já que rejeitavam qualquer acordo com quem quer que fosse e
ainda pareciam decididos a afastar Montaigne do cargo e assumir o controle
de Bordeaux.
A rebelião mais dramática partiu do barão de Vaillac, governador
liguista, na cidade, do Château Trompette. Em abril de 1585, Matignon e
Montaigne souberam que ele planejava um golpe político na cidade. Devem
ter debatido a melhor maneira de lidar com a ameaça: enfrentando-a
agressivamente ou tentando dialogar para convencer Vaillac. Era mais uma
vez uma daquelas cenas canhestras. Neste caso, eles decidiram que a
melhor reação seria uma oposição corajosa, associada à disposição de
mostrar clemência. Presumivelmente com a colaboração ativa de
Montaigne, Matignon convidou Vaillac e seus homens ao parlement e
mandou bloquear as saídas assim que os conspiradores entraram. Matignon
ofereceu então a Vaillac duas alternativas: a prisão, com uma provável
sentença de morte, ou a abdicação de seus direitos até mesmo sobre a
fortaleza de Trompette, deixando Bordeaux definitivamente. Vaillac optou
pela segunda. Partiu para o exílio, mas mal havia ultrapassado as muralhas
da cidade e já começou a organizar forças da Liga, como se preparasse um
ataque. Era sempre este o risco de mostrar clemência ao inimigo.
Seguiram-se vários dias de angústia. Em 22 de maio de 1585, Montaigne
escreveu a Matignon, dizendo que ele e outros funcionários da cidade
estavam vigiando os portões, sabendo que havia mobilização de homens do
lado de fora. Cinco dias depois, escrevia que Vaillac ainda estava na região.
Diariamente eram dados cinquenta alarmes urgentes.

Tenho andado todas as noites a circular pela cidade armado ou fora


dela, no porto, e antes do seu aviso já montara guarda lá uma noite, à
notícia de uma embarcação que devia passar transportando homens
armados. Nada vimos.

No fim, não houve ataque. É possível que, vendo os preparativos para a


defesa, Vaillac tenha tratado de safar-se, mostrando que a combinação de
agressividade e compreensão de Montaigne e Matignon afinal surtia efeito.
Seja como for, a crise passou. Mas a mobilização de guerra na região teve
prosseguimento, assim como por toda a França, e a Liga continuou
oferecendo resistência às tentativas de Montaigne de abrir um campo
intermediário.
O trabalho de Montaigne nessa época era admirado por muitos dos que o
conheciam. O magistrado e historiador Jacques-Auguste de Thou escreveu
que havia “aprendido muitas coisas com Michel de Montaigne, homem de
espírito livre e avesso a facções, que (...) tinha um grande e firme
conhecimento das nossas questões, e especialmente da sua Guyenne”. O
político Philippe Duplessis-Mornay louvava a calma de Montaigne,
considerando-o uma pessoa que não provocava problemas nem se deixava
provocar.
Como costumava acontecer sempre que algum contemporâneo registrava
impressões a respeito de Montaigne, a descrição combina
extraordinariamente com a visão que ele tinha de si mesmo. Ele escreveu
que seus mandatos foram caracterizados quase sempre pela “ordem” e uma
“suave e discreta tranquilidade”. Tinha inimigos, mas também muito bons
amigos. E a solução da crise em torno de Vaillac parece indicar que era
capaz de agir com decisão quando necessário, a menos que toda essa
determinação tenha partido de Matignon.
Havia aparentemente quem achasse que Montaigne era por demais
desmotivado e complacente, pois a esse respeito transparece certa atitude
defensiva em Os ensaios, nos quais Montaigne reconhece que foi acusado
de demonstrar “esmorecimento no empenho”. Para alguns, ele parecia um
típico politique, alguém que recusasse envolvimento em qualquer direção.
Era com toda a evidência um fato, e Montaigne o reconhecia fatalmente; a
diferença estava em não ser considerada uma boa coisa pelos seus
adversários. Para modernos estoicos e céticos como ele, não era em
absoluto mau. O estoicismo estimulava um distanciamento sábio, ao passo
que os céticos por princípio se mantinham em atitude de contenção. A
política de Montaigne derivava de sua filosofia. As pessoas se queixam,
escreveu ele, de que seus mandatos como prefeito não deixaram muitas
lembranças. “Esta é muito boa! Eles me acusam de inércia numa época em
que quase todo mundo era condenado por fazer demais.” Tendo a
“inovação” (vale dizer, o protestantismo) causado tanta balbúrdia,
certamente teria sido recomendável manter uma cidade por tanto tempo sem
acontecimentos especiais. E Montaigne havia muito aprendera que boa
parte do que passava por um apaixonado envolvimento com a coisa pública
era na verdade mera exibição. As pessoas se envolvem porque querem
parecer coerentes ou promover seus interesses particulares, ou
simplesmente manter-se ocupadas para não pensar na vida.
Um dos problemas de Montaigne era mostrar-se tão sincero em suas
escolhas. Outras pessoas, muito menos conscienciosas que ele, eram
elogiadas porque fingiam entusiasmo e engajamento. Montaigne avisou aos
superiores que não esperassem isto dele: daria a Bordeaux o que lhe
impunha o dever, nem mais nem menos, sem qualquer encenação.
Montaigne assemelha-se notavelmente, aqui, a outra grande figura
sincera da literatura renascentista: Cordélia, a filha do Rei Lear de
Shakespeare, que se recusa a derramamentos insinceros sobre seu amor ao
pai, como fazem as gananciosas irmãs, para conseguir seus favores. Como
ela, Montaigne mostra-se sincero, com isto parecendo rude e indiferente.
Cordélia poderia ter dito sobre si mesma, como Montaigne:

Odeio mortalmente parecer um lisonjeador, e assim caio naturalmente


numa maneira de falar seca, direta e contundente (...) Eu mais respeito
aqueles aos quais menos demonstro respeito (...) Entrego-me com
parcimônia e orgulho àqueles aos quais pertenço. E menos me ofereço
àqueles aos quais mais me dei; parece-me que eles deviam ler meus
sentimentos no meu coração, e ver que o que minhas palavras
expressam não faz justiça ao meu pensamento.

Parece uma atitude de rebeldia, mas nisto Montaigne e Cordélia não


destoavam realmente do seu mundo no alto Renascimento. As virtudes da
sinceridade e da naturalidade eram muito admiradas. Por outro lado,
valorizando a franqueza, Montaigne convenientemente se distanciava da
acusação constantemente feita aos politiques: a de que eram mascarados de
língua melíflua nos quais não se podia confiar. Vez por outra, em Os
ensaios, Montaigne pode parecer o pior dos politiques, equívoco,
excessivamente sofisticado, secular e esquivo. Não era mau que de vez em
quando se mostrasse contundente.
Além disso, pelo mesmo efeito invertido que fazia com que a ausência
de cadeados nas portas contribuísse para a segurança, a sinceridade sem
rodeios de Montaigne revelou-se um extraordinário talento diplomático.
Abriu mais portas que os tortuosos engodos de seus colegas. Mesmo no
trato com os príncipes mais poderosos — e talvez especialmente nesses
casos —, ele olhava direto nos olhos. “Digo-lhes francamente quais são
meus limites.” Essa franqueza levava os outros a se abrirem também;
servia, escreveu, para atrair sinceridade, como o vinho e o amor.
Quanto às dificuldades políticas de estar entre duas facções, eram muito
caracteristicamente minimizadas por Montaigne. Não é realmente difícil
avançar quando se está entre dois grupos hostis, escreveu ele; basta
comportar-se com moderada afeição em relação a ambos, para que nenhum
dos dois julgue controlá-lo. Não se deve esperar muito deles, nem tampouco
oferecer demais. Poderíamos resumir a política de Montaigne dizendo que
se deve fazer um bom trabalho, mas nem tão bom assim. Seguindo esta
regra, ele evitou problemas e se manteve radicalmente humano. Fez apenas
o que era seu dever e, com isto, ao contrário de quase todo mundo,
efetivamente o cumpriu.
Ele se deu conta de que nem todo mundo entendia sua maneira de se
comportar. Mas sua atitude realmente não gerou problemas com os
contemporâneos, mas com a posteridade. A escolha de Cordélia é
justificada na própria peça: não resta dúvida quanto a seu autêntico amor
pelo pai. Montaigne, em compensação, desde então sofre de problemas de
imagem ligados ao cargo de prefeito. Ele sabia dos riscos de escrever com
excessiva modéstia, em Os ensaios, sobre seus atos: “No fim das contas,
não se pode escrever sobre si mesmo sem algum dano. A autocondenação
sempre recebe crédito, e o autolouvor, descrédito.” Talvez a velha regra
contrária a escrever sobre si mesmo fizesse lá algum sentido.

OBJEÇÕES MORAIS

O conceito algo limitado de Montaigne a respeito do próprio dever ficou


mais evidente em junho de 1585, quando se abateu sobre Bordeaux uma
onda de calor, rapidamente seguida de um surto de peste, combinação
particularmente destrutiva. A epidemia se prolongou até dezembro, e nesses
poucos meses mais de 14 mil pessoas morreram na cidade, quase um terço
da população. Foram vitimadas mais pessoas que nos massacres de São
Bartolomeu em todo o país, e no entanto, como costuma acontecer com
epidemias ocorridas em tempo de guerra, poucos traços ela deixou na
memória histórica. Seja como for, as pestes eram comuns. Os surtos eram
tão frequentes no século XVI que fica fácil esquecer como eram
catastróficos, a cada vez, para aqueles que tinham a infelicidade de serem
neles apanhados.
Como de hábito, ao começarem a circular por Bordeaux, naquele ano, os
primeiros boatos sobre uma peste, todos que podiam trataram de fugir.
Praticamente ninguém ficou por escolha deliberada, embora alguns poucos
funcionários permanecessem em seus cargos. A maioria dos ligados ao
parlement partiu, inclusive quatro dos seis juízes. Em 30 de junho,
Matignon escrevia ao rei: “A peste está se espraiando de tal maneira na
cidade que ninguém que tenha condições de viver em outro lugar se eximiu
de abandoná-la.” Isto foi ainda nas primeiras etapas. Um mês depois,
Matignon dizia a Montaigne que “todos os habitantes abandonaram a
cidade; refiro-me aos que poderiam remediar de alguma maneira a situação;
pois quanto às pessoas comuns que ficaram, estão morrendo como moscas”.
Matignon aparentemente permaneceu, mas Montaigne nem mesmo se
encontrava na cidade. Estava em casa quando a peste começou, preparando-
se para comparecer a uma cerimônia de transferência de cargo: seu mandato
como prefeito terminara e ele seria sucedido pelo próprio Matignon. O dia
1º de agosto de 1585 era seu último no cargo, de modo que ao ser escrita em
30 de julho a carta de Matignon, ainda restavam dois dias a Montaigne. Sua
única missão nesses dois dias era aparentemente comparecer à cerimônia de
eleição de Matignon. Nas condições do momento, contudo, praticamente
ninguém compareceria à cerimônia, se é que de fato teve lugar.
Montaigne precisava agora decidir se devia ou não ir a Bordeaux para a
transmissão do cargo. Sua propriedade não fora afetada pela doença; se ele
fosse a Bordeaux nesse momento, entraria numa zona atingida pela peste
por uma questão meramente formal. Qual era, de fato, o imperativo do
dever? Incerto quanto ao que devia fazer, ele viajou até Libourne, mais
perto da cidade mas ainda fora da área de risco. De lá, escreveu aos poucos
juízes que permaneciam na cidade, pedindo que o aconselhassem. “Não
pouparei minha vida nem o que quer que seja”, escreveu. Mas acrescentava:
“Deixo ao seu critério julgar se o serviço que posso prestar-lhes com a
minha presença na vindoura eleição justifica que me arrisque a entrar na
cidade, tendo-se em conta a situação em que se encontra.” Enquanto isso,
ele esperaria no castelo de Feuillas, em frente à cidade, do outro lado do rio.
De Feuillas, voltou a escrever no dia seguinte, reiterando a pergunta: que é
que lhe recomendavam?
A resposta dos juízes, se houve — e se de fato algum deles ainda se
encontrava na cidade —, não chegou até nós. A única certeza é o resultado:
Montaigne não foi a Bordeaux. Aparentemente, lhe disseram que não fosse
ou não responderam. Alguém devia estar trabalhando no parlement, pois
mais ou menos nessa época entrou em vigor um novo decreto: ninguém
poderia entrar na cidade. Se Montaigne tivesse insistido em ir, estaria
infringindo essa ordem. Parece evidente que ele resolveu a questão
seguindo a consciência e voltou a sua propriedade. A essa altura, aqueles
dois dias já haviam transcorrido, e ele não era mais o prefeito. Em vez de
terminar com uma cerimônia gratificante e discursos de agradecimento, o
mandato simplesmente se extinguira em meio à confusão.
Ninguém no século de Montaigne parece ter criticado duramente sua
decisão. O problema começou de fato 270 anos depois, no século XIX,
quando alguns antiquários descobriram as cartas a respeito do episódio no
Arquivo Municipal de Bordeaux e as publicaram, expondo Montaigne ao
julgamento de um mundo muito diferente — um mundo de ideias
completamente opostas sobre heroísmo e abnegação.
O pesquisador responsável pela descoberta, Arnaud Detcheverry,
comentou que as cartas de Montaigne ostentavam sua conhecida tendência
para o “epicurismo impassível”, o que deu o tom para os comentários de
outros críticos. Um de seus primeiros biógrafos, Alphonse Grün, considerou
que Montaigne demonstrara falta de coragem ao ficar do lado seguro do rio.
Num seminário sobre o livro de Grün, Léon Feugère disse que Montaigne
“teve a infelicidade de esquecer o próprio dever na mais grave situação”.
Para ele, o episódio desacreditava Os ensaios como um todo. Se o autor do
livro falhava num tal momento, como se poderia dar crédito ao que ele dizia
sobre a melhor maneira de viver? O incidente expunha a mais profunda
falha filosófica de Os ensaios: sua “absoluta ausência de decisão”. Outros
autores concordariam. O cronista Jules Lecomte descartou Montaigne e
toda a sua filosofia com uma única palavra: “Covarde!”
O que todos eles pareciam considerar intolerável não era apenas uma
eventual falta de coragem pessoal — afinal, Montaigne permanecera
uma semana à cabeceira de um homem morrendo de peste —, mas o fato de
não ter cumprido seu dever público. Os frios cálculos e as indagações
escritas de Montaigne pareciam odiosas a uma geração cujo novo rigor
moral preservava um remanescente perfume de romantismo. Este inspirava-
lhe o sentimento de que se devia estar disposto a qualquer sacrifício, por
mais que carecesse de sentido. Os princípios da própria geração, por sua
vez, alimentavam o desejo de que Montaigne se sacrificasse em nome do
trabalho.
A origem do problema, tal como no século XVII, era certa aversão ao
seu ceticismo. Aos leitores do século XIX ele incomodava de uma maneira
experimentada por poucos desde Pascal. Eles não se importavam com o fato
de Montaigne pôr em dúvida os fatos, mas não gostavam que aplicasse o
ceticismo à vida cotidiana, ostentando um distanciamento emocional em
relação aos padrões aceitos. O epokhe do cético, o “Eu retenho”, parecia
revelar certa deslealdade em sua natureza. Parecia o grande bicho-papão da
nova era: o niilismo.
No fim do século XIX, niilismo significava ausência de Deus, de
significado e de objetivos. A expressão podia ser usada quando se queria
falar na verdade de ateísmo, mas insinuava algo ainda pior: o abandono de
todo padrão moral. No fim, “niilista” tornou-se praticamente sinônimo de
“terrorista”. Os niilistas eram homens sem Deus, que atiravam bombas e
pregavam a destruição da ordem social vigente. Eram uma espécie de ala
revolucionária do partido dos céticos, ou talvez céticos desencaminhados.
Se assumissem o poder, nada seria preservado e nada poderia ser dado
como certo.
Diante disso, os defensores com que Montaigne ainda podia contar
subitamente se defrontavam com a urgente tarefa de provar não só que ele
agira de maneira razoável durante o surto de peste como também que não
era afinal um grande cético. Era, isto sim, um moralista conservador e um
bom cristão. Um crítico influente, Émile Faguet, escreveu uma série de
artigos para demonstrar o papel insignificante do ceticismo em Os ensaios.
Outro, Edme Champion, considerava possível detectar certos elementos de
ceticismo, mas não daquele ceticismo destrutivo que “negava” ou
“aniquilava” tudo.
O debate ganhou maior significado porque, por coincidência, Os ensaios
acabava de ser retirado do Índex na França. A decisão foi tomada em 1854,
apenas um ano ou dois depois da descoberta da primeira carta sobre a peste,
embora não certamente em consequência disto. Era uma decisão que havia
muito deveria ter sido tomada. Apesar da condenação da Igreja, Montaigne
a essa altura já fazia parte do cânone na França, tendo-se tornado objeto de
uma nova indústria de pesquisas literárias e biográficas. O fim da proibição
deu mais relevo a seu perfil, abrindo caminho para a ampliação do espectro
de leitores, ao mesmo tempo em que intensificava a questão de sua
aceitabilidade moral.
E para muitos ele voltou a ser aquilo que fora para Pascal e
Malebranche: um trapaceiro que fazia mal à alma. Guillaume Guizot, que
em 1866 chamou Montaigne de um grande “sedutor”, fez o que estava ao
seu alcance para armar os leitores contra essa sedução. Tendo outrora
cedido ao feitiço de Montaigne, ele escrevia agora para ajudar as vítimas a
se desenredarem de sua teia, como antigo seguidor de uma seita que
dedicasse o resto da vida a ajudar incautos a escapar dela.
Ele relacionava então os riscos apresentados por Montaigne, cada um
deles associado a um defeito de caráter específico. Montaigne não tinha
força de vontade. Era egocêntrico. Não era tão cristão quanto alegava ser.
Esquivava-se à vida pública por motivos puramente egoístas, para passar
mais tempo em contemplação — que nem sequer era uma contemplação
religiosa, o que seria compreensível. Quando essa introspecção evidenciava
defeitos, ele não tentava corrigi-los; aceitava-se tal como era. Era ateu e
irresponsável. Não é o tipo de escritor de que precisamos: “Ele não nos
transformará nos homens que nosso tempo requer.”
O historiador Jules Michelet, um dos críticos mais duros que Montaigne
jamais teve, considerava que tudo isso podia ser atribuído ao fato de o
escritor ter tido uma educação demasiado livre, destinada a gerar uma ideia
meramente “fraca e negativa” do ser humano, no lugar de um herói ou de
um bom cidadão. Aquelas cenas de despertar ao som de música plangente
em sua infância explicavam muita coisa. Michelet apresentava o Montaigne
adulto como um inválido que se isolava em sua torre para “observar a si
mesmo sonhando” — consequência inevitável de uma formação decadente
e indisciplinada. Na Inglaterra, o teólogo Richard William Church concluía
um estudo que, sob outros aspectos, transparecia admiração, opinando que
Montaigne tinha uma ideia por demais assoberbante “da nulidade do
homem, da pequenez de seus maiores planos e da vacuidade de suas
maiores realizações” — indicações perfeitamente claras de niilismo. Isto
lhe impossibilitava acreditar “na ideia do dever, no desejo do bem, no
pensamento da imortalidade”. De maneira geral, ele demonstrava
“indolência e falta de tônus moral”.
Uma questão moral menos grave também inquietava os leitores
novecentistas de Montaigne: sua abertura em matéria sexual. (Ou pelo
menos hoje em dia ela nos parece menos grave.) Não era uma completa
novidade, mas algo que agora se tornava fundamental na questão da sua
autoridade como escritor. Mesmo em gerações anteriores, sua conversa
sobre traseiros, fendas e instrumentos eventualmente incomodara. Lorde
Halifax, a quem foi dedicada uma tradução inglesa no século XVII,
observava: “Não posso aceitar que, depois de discorrer sobre a vida
exemplar de um homem santo, ele imediatamente passe a falar, como fala,
de cornudos e partes pudendas e outras coisas dessa natureza (...) Gostaria
que tivesse deixado essas coisas de fora, que as damas não precisassem
enrubescer quando Os ensaios é encontrado em suas bibliotecas.” Esta
última parte parece irônica, pois Montaigne ironizara que as partes mais
ousadas do seu volume final serviriam para tirar o livro das bibliotecas e
levá-lo para os boudoirs das senhoras, onde ele preferia mesmo estar.
Uma solução para o rubor feminino era o lançamento de edições
expurgadas, uma alternativa que se popularizou no século XIX. Havia
muito se faziam edições abreviadas de Os ensaios, mas o objetivo em geral
era reorganizar o material para mais facilmente localizar aqui e ali pílulas
de sabedoria. Pois agora o sentimento era de que Montaigne também
precisava sofrer intervenções por motivos de gosto e moral.
Uma das mais características dessas edições esterilizadas foi publicada
na Inglaterra em 1800, preparada para o público feminino por uma editora
que se apresentava como “Honoria”. Seu Os ensaios, selecionado de
Montaigne com um esboço da vida do Autor valeu-se da tradução inglesa da
época, feita por Charles Cotton, e a picotou para apresentar o perfeito
Montaigne para o século que começava, expurgado de tudo que fosse
perturbador ou embaraçoso.
“Se este Os ensaios se tornar adequado ao exame do meu próprio sexo
pela separação do joio e do trigo”, escreve Honoria, “estarei plenamente
recompensada”. Ela não se detém no fato de que, para tal, devesse examinar
atentamente as “alusões grosseiras e indelicadas”. E não se exime de
socorrer Montaigne com algumas técnicas básicas de redação. “Ele também
se mostra tão frequentemente desconexo em seus temas e oscilante em suas
opiniões que nem sempre se entende o que quer dizer.” Honoria o ajuda a se
fazer mais claro, acrescentando notas de rodapé, às vezes para repreendê-lo
(por exemplo, por não mencionar os massacres do Dia de São Bartolomeu),
outras, para advertir os leitores a não tentarem pôr em prática em casa suas
ideias mais perigosas. Especialmente, acordar as crianças com música suave
constitui “uma forma de educação excêntrica” que “de modo algum é aqui
mencionada como método recomendável”.
Seu prefácio traça o perfil de um Montaigne insuportavelmente sério e
respeitável. “Ele queria que sua filosofia não fosse mera especulação, pois
desejava pautar não só a própria velhice, mas a vida inteira, por seus
preceitos.” Ela dá ênfase a seu conformismo político e chama a atenção
para os “muitos excelentes sentimentos religiosos espalhados por seu Os
ensaios”. Hoje em dia, esse tipo de coisa dificilmente provocaria uma
corrida às livrarias. Mas Honoria estava sintonizada com o mercado do
século que se abria e contribuiu para gerar a imagem de um pensativo e
carrancudo Montaigne de gola engomada.
Naturalmente, muitos leitores novecentistas continuavam gostando da
versão subversiva, individualista e libertária de Montaigne. Mas o esforço
de Honoria e outros contribuiria para torná-lo cada vez mais aceitável para
leitores dos mais diversos tipos, todos eles em busca de um Montaigne
inventado por eles mesmos. Tal esforço tornou possível a leitura de
Montaigne não só no boudoir, no romântico cume de uma montanha ou na
biblioteca de um homem do mundo, mas também num jardim num dia de
verão, onde era possível encontrar uma jovem e inocente senhora de
delicados preceitos morais percorrendo Montaigne num in-oitavo
censurado. E se ela quisesse ter acesso também aos trechos proibidos, a
qualquer momento poderia aventurar-se pela biblioteca do pai.

MISSÕES E ASSASSINATOS

Montaigne de fato é muitas vezes chocante, mas nem sempre nos lugares
onde se poderia esperar algum choque. Ele pode incomodar o leitor
sobretudo quando mais conciliador parece, por exemplo ao dizer
tranquilamente: “Não sei se seria decoroso admitir o pouco custo que teve
para a paz e a tranquilidade da minha vida passar mais de metade dela em
meio à ruína do meu país.” Levamos alguns momentos para nos dar conta
de como é inabitual que alguém escreva sobre a vida nesses termos, em
qualquer período da história. Poderíamos descartar observações assim se de
fato ele se tivesse mantido sempre passivo e calmo. Mas na década de 1580
Montaigne ficaria cada vez mais assoberbado por responsabilidades
relacionadas à guerra que — por mais que as subestime em seu livro —
certamente cobraram um preço em matéria de paz de espírito.
O país estivera oficialmente em paz durante seu mandato como prefeito,
mas no momento em que ele voltou a se retirar em sua propriedade as Ligas
católicas faziam o que estava ao seu alcance para provocar outra guerra. A
essa altura, o conflito já era tão político quanto religioso. A maior incógnita
política era saber quem sucederia Henrique III no trono da França. A linha
sucessória não era clara, pois ele não tinha filhos nem um parente próximo.
A monarquia estava disponível num momento de extrema instabilidade
nacional: uma combinação nada boa.
A maioria dos protestantes e alguns católicos davam preferência a
Henrique de Navarra, o príncipe protestante de Béarn que tanta influência
exercia na região de Bordeaux e tecnicamente podia ser considerado o
primeiro na linha de sucessão real — mas que, para muitos, devia ser
descartado, por sua religião. Seu principal rival era seu tio Carlos, o cardeal
de Bourbon, cuja pretensão era apoiada pelos liguistas e seu poderoso líder,
Henrique, o duque de Guise. Enquanto isso, o rei continuava perfeitamente
vivo, mostrando-se incerto quanto ao sucessor que devia endossar. A fase
seguinte da guerra ficaria conhecida como Guerra dos Três Henriques, pois
girava alucinadamente em torno dessa trinca composta por Henrique III,
Henrique de Navarra e Henrique de Guise.
Os politiques, entre eles o próprio Montaigne, estavam em princípio
comprometidos com o apoio ao rei, independente do que fizesse. Como
sucessor, contudo, a maioria preferia Henrique de Navarra, o que contribuiu
para atrair para eles um ódio ainda maior das Ligas. Os extremistas
católicos consideravam que era a mesma coisa levar ao trono o Diabo em
pessoa ou um rei protestante.
Como prefeito, Montaigne fizera tentativas de promover um
entendimento entre os dois partidos. Fosse politicamente, como prefeito de
uma cidade católica próxima do território de Navarra, ou pessoalmente,
como bom diplomata, ele estava bem-posicionado para isto. Periodicamente
se encontrava com Navarra e o entretinha, tendo feito amizade com sua
influente amante, Diane d’Andouins, ou “Corisande”. Em dezembro de
1584, Navarra hospedou-se por alguns dias na propriedade de Montaigne,
num momento em que o próprio rei tentava convencê-lo a renegar o
protestantismo para subir ao trono. Navarra recusou-se. Parecia, assim, que
uma das poucas esperanças para a França estaria em convencer Navarra a
reconsiderar essa recusa — e foi precisamente o que Montaigne tentou
fazer.
Em caráter pessoal, a visita foi bem-sucedida. Navarra confiava em
Montaigne, preferindo ser atendido pelos criados dele, e não pelos seus
próprios, e comendo sem que os alimentos fossem submetidos ao habitual
teste para detectar algum veneno. Montaigne registrou tudo isso em seu
diário Beuther:
19 de dezembro de 1584. O rei de Navarra veio ver-me em
Montaigne, onde nunca estivera, e aqui ficou por dois dias, servido
pelos meus homens, sem qualquer dos seus empregados. Não quis
saber de prova de alimentos nem de pratos cobertos, e dormiu na
minha cama.

Era uma grande responsabilidade, e, além do mais, convidados desse


calibre esperavam ser tratados como reis. Montaigne organizou uma caçada:
“Mandei soltar um veado na floresta, o que o ocupou numa caçada por dois
dias.” Os entretenimentos correram bem (embora não, provavelmente, do
ponto de vista do veado), mas o mesmo não se pode dizer do projeto
diplomático. Uma carta de Montaigne a Matignon um mês depois indica
que ele ainda se empenhava no mesmo sentido. Enquanto isso, Henrique III
era pressionado pelos liguistas — agora extremamente poderosos,
especialmente em Paris — a propor leis antiprotestantes que afastassem
Navarra definitivamente do trono. Sentindo que não contava com apoio em
sua própria cidade, Henrique III cedeu e, em outubro de 1585, baixou
decreto dando aos huguenotes três meses para renegar sua fé ou partir para
o exílio.
Se era uma tentativa de evitar a guerra, teve o efeito contrário. Navarra
convocou seus seguidores a se rebelarem e resistir a esse novo ato de
opressão. Henrique III promulgou novas leis antiprotestantes na primavera
seguinte, alienando ainda mais Navarra. A mãe do rei, Catarina de Médici,
percorreu o país, tentando, como Montaigne, alcançar um acordo de última
hora com Navarra, mas igualmente fracassou. Entrava-se agora em guerra
declarada.
Seria a última delas, mas também, de longe, a mais longa e mortífera.
Durou até 1598, o que significou que Montaigne não voltaria a ver a paz,
pois morreu em 1592. Mais que nunca, nesse “distúrbio”, os piores
sofrimentos foram infligidos em nível local, de maneira caótica, por bandos
de soldados sem qualquer controle e gangues de refugiados famintos que
percorriam o interior, além da fome e da peste.
Montaigne estava numa posição arriscada, ameaçado não só pela
anarquia no interior, mas por seus antigos inimigos de Bordeaux. Ele
aparentemente tinha amigos protestantes demais para um bom católico;
sabia-se que havia hospedado Navarra e que tinha um irmão combatendo
nas forças deste. No dizer dele próprio, era um guelfo para os gibelinos e
um gibelino para os guelfos — alusão às duas facções que por séculos
dividiram a Itália. “Não havia acusações formais, pois nada havia a que se
pudessem agarrar”, escreveu ele, porém “suspeitas veladas” sempre pairam
no ar. Mas ele continuou deixando sua propriedade sem uma guarda
pessoal, apegando-se a seu princípio de abertura e transparência. Em julho
de 1586, um exército liguista de 20 mil homens montou cerco a Castillon,
na Dordonha, a cerca de 8 quilômetros; os combates ultrapassaram as
fronteiras da propriedade de Montaigne. Parte desse exército acampou em
suas terras. Os soldados saquearam suas colheitas e roubaram seus colonos.
Nessa época, Montaigne tentava retomar o trabalho em seu livro, dando
início a um terceiro volume e fazendo acréscimos em capítulos já escritos.
Foi exatamente então que, como escreveu, “uma carga pesada de nossos
distúrbios se abateu sobre mim com todo o seu peso por vários meses. Eu
tinha, por um lado, o inimigo à minha porta, e por outro, os saqueadores,
inimigos ainda piores (...) e experimentava todo tipo de dano militar de uma
vez só”. No fim de agosto, a peste se abateu sobre o exército sitiante,
disseminando-se pela população local e infestando a propriedade de
Montaigne.
Mais uma vez, ele se via na contingência de decidir o que fazer frente à
ameaça da peste. Uma concepção primária do heroísmo poderia determinar
que ele permanecesse junto aos seus colonos para sofrer e, se necessário,
morrer com eles, levando a própria família. Como anteriormente, contudo, a
realidade da situação era mais complexa. Quem quer que pudesse evitar
permanecer numa zona afetada pela peste certamente o faria. Muito poucos
camponeses tinham essa possibilidade, mas ela estava ao alcance de
Montaigne, que, assim, partiu. Ele interrompeu o trabalho no ensaio que
escrevia então, “Da fisionomia”, e caiu na estrada com a família.
Poderíamos dizer que ele assim abandonava os colonos. A situação deles
já devia ser muito difícil antes de sua partida, pois ele escreveu em Os
ensaios ter visto gente cavando o próprio túmulo para nele se deitar à espera
da morte. Se já tinham chegado a esse ponto, não havia mais o que fazer.
Montaigne certamente levou consigo seus criados pessoais, mas não
poderia se responsabilizar por toda a comunidade de trabalhadores
agrícolas. Ao verem sua família se preparando para a partida, eles devem
ter sentido que eram entregues à própria morte: provavelmente o que
deviam mesmo esperar de seus supostos protetores nobres. Estranhamente,
em contraste com as duras críticas a ele endereçadas quando abandonou
Bordeaux, praticamente não se tomou conhecimento de censuras a
Montaigne a esse respeito. Mas o fato é que, também neste caso, seria
difícil imaginar como ele poderia ter agido de outra forma, e afinal de
contas tinha responsabilidade para com sua família.
Já agora transformados em sem-tetos errantes, eles seriam forçados a se
manter longe durante seis meses, até serem informados em março de 1587
de que passara o surto da peste. Não era fácil encontrar hospitalidade
durante seis meses. Montaigne tinha antigos colegas da época de dedicação
à vida pública, e tanto ele quanto sua mulher tinham ligações familiares.
Pois foram obrigados a recorrer a todas elas. Mas eram poucos os que
podiam acomodar toda a família e acompanhantes, e, dentre os que tinham
condições de fazê-lo, a maioria via com horror os refugiados da peste.
Escreveu Montaigne: “Eu, que sou tão hospitaleiro, tive grande dificuldade
para encontrar refúgio para minha família: uma família sem rumo, causa de
medo para os amigos e para si mesma, e também de horror onde quer que
tentasse acomodar-se, devendo trocar de morada toda vez que alguém do
grupo começasse a sentir alguma dor na pontinha do dedo.”
Nesses meses sem ponto fixo, Montaigne também retomou suas
atividades políticas. Seria talvez, em certos casos, o preço a pagar pela
acolhida. Ele desempenhava um papel cada vez mais importante nas
tentativas dos politiques e outros de solucionar a crise e garantir o futuro da
França. O abandono da função pública em 1570 lhe conferira certo espaço
para pensar na vida; desta vez, era diferente. Os anos posteriores aos
mandatos como prefeito o haviam conduzido cada vez mais alto na
pirâmide do poder, até esferas onde o ar era rarefeito e a queda podia ser
perigosa. Ele lidava com alguns dos mais eminentes protagonistas da época:
primeiro, com Henrique de Navarra, e já agora com Catarina de Médici,
mãe do conturbado rei.
Catarina de Médici sempre se pautou pela convicção de que, podendo-se
sentar para conversar, os problemas seriam resolvidos. Mais que ninguém,
ela deu de si para tornar isso possível, tendo encontrado em Montaigne um
aliado natural nesse sentido. Convocou-o a pelo menos um de uma série de
encontros que teve com Navarra no castelo de Saint-Brice, perto de Cognac,
entre dezembro de 1586 e o início de março de 1587. Montaigne
compareceu acompanhado da mulher, tendo o casal recebido durante sua
permanência no castelo uma ajuda de custo para despesas de viagem e
roupas. Os dois tinham, assim, onde ficar, mas a pressão deve ter sido
intensa. Catarina esperava obter um acordo formal nesses encontros;
infelizmente, como tantas vezes já acontecera, revelou-se que conversar não
era o suficiente.
A peste cedeu no Périgord nesse período, e assim Montaigne retornou
com a família, encontrando o castelo intacto, mas os campos e vinhedos
devastados. Ele voltou a trabalhar no ensaio a que se dedicava ao partir,
tomando da pena e concluindo a observação sobre a pesada carga de
distúrbios. Mas seu envolvimento político não diminuiu. Nesse outono, ele
se encontrou com Corisande e mais tarde, separadamente, com Navarra, que
visitou o castelo em outubro. Aparentemente, Montaigne o exortou a buscar
um acordo com o rei. Ao se encontrar com Navarra, Corisande tentou
convencê-lo no mesmo sentido. Ela e Montaigne parecem ter montado
juntos essa estratégia: um ataque por duas frentes. Navarra começava a dar
sinais de ceder.
No início de 1588, Montaigne voltou a se encontrar com Navarra; pouco
depois, este o enviou numa missão altamente secreta ao rei, em Paris. De
uma hora para outra, todos em Paris pareciam falar dessa missão e de seu
misterioso herói, de modo que ela deve ter sido importante. O escritor
protestante Philippe Duplessis-Mornay tratava do assunto em carta à
mulher. Sir Edward Stafford, o embaixador inglês na França, referia-se a
“Montigny” em seus relatórios, considerando-o “um cavalheiro muito sábio
do rei de Navarra” e acrescentando mais adiante que “todos os criados do
rei de Navarra aqui ficaram enciumados com sua chegada”. O cortejo de
Navarra deve ter-se sentido fora de esquadro: lá estava Montaigne numa
missão do seu próprio chefe, mas ninguém lhes dizia o que estava
acontecendo. O embaixador espanhol, Dom Bernardino de Mendoza,
escreveu ao seu rei, Filipe II, que os homens de Navarra em Paris “não
sabem o motivo da sua vinda” e “desconfiam de que ele está numa missão
secreta”. Dias depois, em 28 de fevereiro, também fez menção à suposta
influência de Montaigne sobre Corisande, acrescentando que Montaigne era
“considerado um homem compreensivo, embora algo confuso”. Stafford
também mencionava a ligação com Corisande. Montaigne, dizia, era o
“grande favorito” dela; e era igualmente “um homem muito suficiente”, o
que na linguagem da época significava muito capaz. Parece que Montaigne
e Corisande tinham conseguido convencer Navarra a chegar a um acerto,
talvez um acordo preliminar no sentido de abrir mão do protestantismo se
necessário, e que Montaigne lá se encontrava para transmitir essa
mensagem ao rei.
Dada a delicadeza da situação, tanto os liguistas quanto os seguidores
protestantes de Navarra tinham todos os motivos para tentar impedir que
Montaigne chegasse a Paris. Na verdade, essa missão de reconciliação e
moderação pareceu desagradar a quase todo mundo. Até o embaixador
inglês a temia, pois a Inglaterra queria manter sua influência sobre Navarra
e não desejava que ele voltasse a se converter ao catolicismo. Os únicos que
podiam estar satisfeito eram o rei, Catarina de Médici e alguns poucos
politiques, sempre esperançosos de uma França unida no futuro.
Não surpreende, assim, que a viagem de Montaigne não tenha
transcorrido facilmente. Pouco depois de partir, percorrendo a floresta de
Villebois, a sudeste de Angoulême, seu séquito caiu numa emboscada,
sendo atacado por assaltantes armados. Não foi este o incidente em que ele
veio a ser libertado por causa da franqueza de sua expressão facial: este
fora, com toda a certeza, um ataque mais aleatório. Dessa vez, o motivo era
político — ou era isto, pelo menos, o que ele acreditava. Escrevendo
posteriormente a Matignon a esse respeito, Montaigne dizia suspeitar que os
atacantes fossem liguistas tentando impedir qualquer acordo entre seus dois
inimigos. Ameaçado de violência em plena floresta, ele foi obrigado a
entregar seu dinheiro, as roupas finas de seus baús (destinadas
provavelmente ao seu comparecimento à corte real) e seus documentos,
entre os quais certamente estariam documentos secretos da base de Navarra.
Felizmente, os atacantes não o mataram. Tendo sobrevivido, cabe supor que
ele tenha entregado a mensagem. Mais uma vez, no entanto, apesar dos
riscos incorridos por Montaigne, apesar de toda a agitação por ele causada,
não se chegou a um acordo. E as coisas estavam para piorar.
Os problemas começaram quando o duque de Guise, ainda o mais
perigoso dos inimigos do rei, chegou à capital em maio de 1588, pouco
depois de Montaigne. Henrique III banira Guise da cidade, de modo que se
tratava de um desafio aberto à autoridade real, mas o duque sabia que
contava com o apoio dos parlamentares rebeldes de Paris. O rei deveria ter
mandado detê-lo, mas nada fez, nem mesmo quando Guise foi procurá-lo
pessoalmente. O novo papa, Sisto V, teria comentado mais tarde a respeito
desse encontro: “Guise foi um tolo precipitado ao se colocar assim nas
mãos de um rei que estava insultando; e o rei foi um covarde ao deixá-lo
partir impune.” Era mais um daqueles equilíbrios delicados: no caso, uma
parte mais forte precisava decidir até que ponto levar um desafio, enquanto
a parte mais fraca tinha de resolver se inclinava a cabeça ou oferecia
resistência.
Henrique III tomaria três vezes seguidas a decisão errada. Para começar,
nada fez, quando devia ter feito algo. Em seguida, para compensar, teve
uma reação exagerada. Na noite de 11 de maio, mobilizou tropas reais por
toda a cidade, como se estivesse se preparando para uma batalha e
possivelmente até um massacre dos seguidores de Guise. Alarmadas e
enfurecidas, multidões de liguistas bloquearam as ruas, prontas para se
defender. Esse dia ficaria conhecido como o “Dia das Barricadas”.
Henrique III cometeu então seu terceiro erro. Em pânico, bateu em
retirada, evidenciando aquela exata combinação de fraqueza e exagero que
Montaigne considerava desastrosa, especialmente no trato com uma
multidão. O rei tentou convencer Guise a acalmar seus seguidores; o duque
então percorreu as ruas a cavalo, supostamente para atender ao pedido, mas
na verdade insuflando ainda mais a multidão. Seguiram-se violentos motins.
“Eu nunca vi tão furioso descontrole da população”, escreveria Étienne
Pasquier, amigo de Montaigne, numa carta. Parecia um novo dia de São
Bartolomeu, mas houve menos mortos e dessa vez havia uma meta
específica, rapidamente alcançada. Ao terminar o dia seguinte, relatava
Pasquier, “tudo ficara tão calmo de novo que se poderia dizer que não
passara de um sonho”. Mas não fora um sonho: Paris acordava para uma
nova realidade. O rei fugira da cidade. Esquivando-se de maneira tão
discreta que praticamente ninguém se deu conta, ele partira para Chartres,
deixando Paris nas mãos de Guise.
Tendo abandonado sua cidade sem lutar, Henrique III era agora um rei
no exílio. Tinha praticamente abdicado, embora seus seguidores ainda o
considerassem seu monarca. Guise ordenou-lhe que aceitasse o cardeal de
Bourbon como sucessor, e Henrique não teve alternativa senão concordar.
Não faltava quem se dispusesse a lhe indicar como sobreviera semelhante
catástrofe. Ele perdera uma oportunidade única de se livrar de Guise, fosse
detendo-o ou simplesmente mandando matá-lo. Montaigne, sempre um leal
monarquista, juntou-se ao rei em Chartres; mais tarde, quando Henrique
transferiu-se para Rouen, Montaigne também o acompanhou. O que não
surpreende: a alternativa teria sido permanecer com os liguistas em Paris ou
sair completamente de cena, voltando para casa. Ele não fez nenhuma das
duas coisas, mas acabaria se separando do rei e voltando a Paris em julho de
1588. Na época, estava doente, acometido de gota ou reumatismo — um
ataque tão grave que ele ficou de cama durante parte de sua estada.
Ele com certeza esperava ser deixado em paz na capital, pois
provavelmente não fizera nada mais subversivo que se encontrar com seus
editores, tendo recentemente concluído seu derradeiro volume. Mas Paris
não era o melhor lugar para quem quer que estivesse ligado ao rei. Certa
tarde, estando ainda Montaigne de cama e se sentindo muito mal, homens
armados vieram detê-lo por ordem da Liga. O motivo pode ter sido
vingança por um recente incidente em Rouen, quando Henrique III ordenara
a detenção de um liguista em circunstâncias semelhantes: era esta pelo
menos a teoria de Montaigne, tal como registrou em seu diário Beuther.
Montando seu próprio cavalo, ele foi conduzido à Bastilha e encarcerado.
Em Os ensaios, Montaigne escrevera sobre seu horror ao cativeiro:

Nenhuma prisão jamais me viu, nem mesmo em visita. A imaginação


torna a visão de qualquer delas, mesmo de fora, desagradável a mim.
É tão grande o meu anseio de liberdade que se alguém me proibisse o
acesso a algum recanto das Índias, eu viveria com um nítido
desconforto.

Ser jogado numa masmorra da Bastilha, especialmente estando doente,


foi um choque. Mas Montaigne tinha razões para acreditar que não
permaneceria ali por muito tempo — e foi o que aconteceu. Passadas cinco
horas, Catarina de Médici veio em seu socorro. Ela também estava em Paris
a essa altura, na expectativa, como sempre, de resolver a crise botando todo
mundo para conversar, a começar por Guise, com quem se encontrava ao
receber a notícia da detenção de Montaigne. Ela imediatamente pediu a
Guise que providenciasse sua libertação. Com evidente relutância, ele o fez.
As ordens de Guise foram dadas ao comandante da Bastilha, mas nem
mesmo isto foi suficiente de início. O comandante exigiu confirmação da
parte do prévôt des marchands, Michel Marteau, sieur de La Chapelle, que
por sua vez enviou seu consentimento através de outro homem poderoso,
Nicolas de Neufville, seigneur de Villeroy. No fim das contas, desse modo,
foi necessária a intervenção de quatro indivíduos poderosos para libertar
Montaigne. Sua interpretação dos fatos foi que teria sido “libertado por uma
generosidade inédita” e só depois de “muita insistência” da parte de
Catarina de Médici. Ela provavelmente gostava dele; o duque de Guise
provavelmente não gostava, mas até ele era capaz de ver que Montaigne
merecia consideração especial.
Depois disso, Montaigne permaneceu em Paris por pouco tempo. A dor
nas articulações cedeu, mas logo depois ele seria acometido  de outra
doença. Foi provavelmente uma crise de pedra nos rins, problema de que
ele ainda sofria com frequência, e que tantas vezes temera pudesse matá-lo.
Nessa oportunidade, foi o que quase aconteceu. Seu amigo Pierre de Brach
relataria o episódio alguns anos mais tarde, em carta de alto teor estoico a
Justus Lipsius:

Quando estávamos em Paris havia alguns anos, e os médicos perdiam


toda esperança por sua vida enquanto ele só desejava a morte, eu o vi,
quando a morte o olhou bem de perto no rosto, afastá-la bem para
longe com seu desprezo pelo medo que ela traz. Quantos belos
argumentos para satisfazer os ouvidos, que belos ensinamentos para
tornar sábia a alma, que decidida firmeza de uma coragem capaz de
tranquilizar os mais medrosos pôde aquele homem então demonstrar!
Eu nunca ouvi alguém se expressar melhor ou mostrar-se mais
decidido a fazer o que os filósofos disseram a respeito, sem que a
fraqueza do corpo abatesse o vigor da alma.

O relato de Brach é convencional, mas parece indicar que Montaigne em


certa medida aceitara a própria mortalidade, desde a época de seu acidente
de equitação. Ele passara por muita coisa desde então, e as crises de pedra
nos rins o haviam forçado a periodicamente encarar a morte de perto. Estes
também eram confrontos em campo de batalha. A morte acabaria saindo
vencedora, mas por enquanto Montaigne lhe fazia frente.
Ainda convalescente, Montaigne visitou uma amiga que conhecera em
Paris no ano anterior: Marie de Gournay, leitora entusiástica de sua obra,
que o convidou a se hospedar no castelo de sua família na Picardia. Era uma
bem-vinda oportunidade de repouso. Enquanto isso, saíra a nova edição de
Os ensaios, e ele já pensava em novos acréscimos, talvez à luz de suas
experiências recentes. Começou então a adicionar notas a seu exemplar
recém-saído da gráfica, às vezes sozinho, outras, com a ajuda de Gournay e
outros.
Uma vez plenamente restabelecido, por volta de novembro desse ano,
Montaigne seguiu para Blois, onde o rei participava, com Guise, de uma
reunião da assembleia legislativa nacional conhecida como Estados Gerais.
O objetivo seria supostamente a ampliação das negociações, mas Henrique
III fora além. Um rei sem reino, ele estava desesperado. E passara seis
meses sendo lembrado por seus conselheiros de que tudo poderia ter sido
diferente se tivesse descartado Guise quando teve a oportunidade.
Pois agora, acompanhado de Guise no castelo de Blois, Henrique
dispunha novamente da oportunidade e decidiu corrigir o próprio erro. No
dia 23 de dezembro, convidou o duque a seus aposentos particulares para
uma conversa. Guise aceitou o convite, embora seus conselheiros o
advertissem do perigo. Ao entrar nos aposentos reais ao lado do quarto de
Henrique III, vários guardas reais saltaram de esconderijos, fecharam a
porta atrás dele e o apunhalaram mortalmente. Mais uma vez, e agora para
escândalo até mesmo de seus seguidores, o rei fora de um extremo ao outro,
ignorando a zona intermediária de judiciosa moderação favorecida por
Montaigne.
Embora Montaigne se tivesse deslocado para Blois a fim de juntar-se ao
séquito do rei, não há qualquer indicação de que tivesse conhecimento da
conspiração assassina. Nos dias que antecederam o incidente, ele estava na
verdade se divertindo, restabelecendo contato com velhos amigos como
Jacques-Auguste de Thou e Étienne Pasquier — muito embora este tivesse
o hábito irritante de arrastar Montaigne a seu quarto para apontar erros
estilísticos na mais recente edição de Os ensaios. Montaigne ouvia
polidamente e ignorava tudo que Pasquier dizia, exatamente como fizera
com os homens da Inquisição.
Emocionalmente mais volúvel que Montaigne, Pasquier mergulhou em
profunda depressão ao tomar conhecimento do assassinato de Guise. “Oh,
terrível espetáculo!”, escreveu a um amigo. “Há muito venho alimentando
em mim humores melancólicos, que devo agora vomitar no seu colo. Temo
estar testemunhando o fim da nossa república (...) o rei perderá a coroa ou
então verá o seu reino virado de ponta-cabeça.” Montaigne não era dado a
esse tipo de dramaticidade, mas também deve ter ficado chocado. O pior de
tudo, para um politique, era o fato de esse assassinato frio e inoportuno
lançar sérias dúvidas sobre a estatura moral do rei, visto pelos politiques
como o foco de suas esperanças de estabilidade.
Henrique III provavelmente pensou que um ato radical acabaria com
seus problemas, mais ou menos como Carlos IX pouco antes dos massacres
de São Bartolomeu. Mas a morte de Guise serviu na verdade para
radicalizar ainda mais os liguistas, e Henrique III foi declarado um tirano
por um movimento revolucionário que acabava de surgir em Paris, o
Conselho dos Quarenta. A Sorbonne perguntou ao papa se seria
teologicamente justificável matar um rei que havia renunciado à própria
legitimidade. O papa respondeu que não, mas os pregadores e advogados
liguistas argumentaram que qualquer pessoa que se sentisse imbuída desse
sentimento e atendendo a um chamado de Deus poderia fazê-lo. A palavra
“tirano” estava no ar, mas, ao contrário de La Boétie em Da servidão
voluntária, esses pregadores não exortavam à resistência passiva nem a uma
pacífica discordância. Haviam simplesmente baixado um decreto de morte.
Se Henrique era o agente do Diabo na Terra, como proclamava uma
verdadeira torrente de publicações de propaganda, matá-lo seria um dever
sagrado.
A agitação em Paris em 1589 permeava todas as esferas da vida. O
cronista protestante Pierre L’Estoile falava de uma cidade enlouquecida:

Pois hoje, assaltar o vizinho, massacrar os parentes mais próximos,


roubar dos altares, profanar as igrejas, estuprar mulheres e meninas,
espoliar todo mundo é a prática habitual de um membro de liga e a
marca infalível de um católico devoto; ter invariavelmente a religião e
a missa nos lábios, mas o ateísmo e o roubo no coração, e o homicídio
e o sangue nas mãos.

De todo lado vinham sinais e presságios; até Jacques Auguste de Thou, o


amigo geralmente sensato de Montaigne, viu uma cobra de duas cabeças
sair de um monte de lenha, enxergando aí um mau agouro. Quando já
parecia que a situação não poderia piorar, Catarina de Médici morreu, em 5
de janeiro de 1589. Com a morte da mãe, Henrique III estava sozinho,
protegido do ódio que o cercava apenas pelas tropas mal-remuneradas e os
politiques que se sentiam obrigados a ficar a seu lado por uma questão de
princípio.
Como sempre, foram os politiques que atraíram a desconfiança de todos.
E também não ajudou que alguém como Montaigne, num tom distante e
contido, ponderasse que praticamente já não era possível distinguir entre a
Liga e os huguenotes radicais:

Essa questão tão grave de saber se seria legítimo rebelar-se um súdito


e tomar armas contra seu príncipe em defesa da religião — é bom
lembrar na boca de quem a resposta afirmativa constituía ainda no
ano passado o esteio de uma das facções, e a negativa, o esteio de
qual outra delas; e perceber agora de onde vêm a voz e a norma de
ambos os lados, e se as armas fazem menos ruído por esta causa do
que por aquela.

Quanto à ideia do assassinato sagrado, como poderia alguém imaginar


que matar um rei conduz ao céu? Como poderia vir a salvação da “maneira
mais exata que temos de alcançar com certeza a danação”? Em dado
momento dessa época, Montaigne perdeu o que ainda lhe restava de gosto
pela política. Ele deixou Blois mais ou menos no início de 1589. No fim de
janeiro, estava de volta a sua propriedade e sua biblioteca. E dali se
manteve ativo, sempre em contato com Matignon — que continuava no
comando militar da região, além de ser o novo prefeito de Bordeaux —,
mas aparentemente descartou a partir de então qualquer possibilidade de
viagens para fins diplomáticos. Ironicamente, pouco depois de ter desistido,
Henrique III e Navarra finalmente chegaram ao tão esperado
rapprochement. Uniram forças e se prepararam para sitiar a capital no verão
de 1589.
Mas este foi mais um dos erros do rei. Os liguistas da cidade deram-se
conta de que, reunindo-se os exércitos nos campos além dos seus portões,
Henrique III estava ao seu alcance. Um jovem frade dominicano chamado
Jacques Clément recebeu ordens de Deus para agir. Alegando trazer uma
mensagem secreta de seguidores da cidade, ele chegou ao campo em 1º de
agosto e foi levado à presença do rei, sentado naquele momento na latrina
— um jeito perfeitamente comum, na época, de os monarcas receberem
visitantes. Clément sacou de um punhal e conseguiu apunhalar o rei no
abdômen pouco antes de ser morto pelos guardas. Durante várias horas,
Henrique sangrou lentamente, até morrer. Um de seus últimos atos foi
confirmar Navarra como sucessor, embora reiterando a condição de que ele
voltasse ao seio da Igreja Católica.
A notícia da morte do rei foi recebida com júbilo em Paris. Em Roma,
até o papa Sisto V elogiou o ato de Clément. Navarra finalmente concordou
em voltar ao catolicismo. Inicialmente, alguns católicos ainda se recusaram
a reconhecê-lo, especialmente membros do parlement de Paris, insistindo
em que seu rei era o Bourbon. Durante algum tempo, houve duas
realidades, dependendo do lado em que se encontrava cada um. Aos
poucos, no entanto, com paciência, Navarra acabou levando a melhor. Ele
se tornou o rei incontestável da França, com o nome de Henrique IV: o
monarca que acabaria encontrando uma maneira de pôr fim às guerras civis
e impor a unidade, essencialmente pela simples força de sua personalidade.
Era o rei que os politiques sempre haviam desejado.
Como sempre tivera um relacionamento amistoso com Navarra,
Montaigne mais uma vez seria levado a assumir um papel semioficial como
conselheiro de Henrique IV — e um conselheiro incrivelmente franco,
como se haveria de constatar. Montaigne escreveu a Henrique oferecendo
seus serviços, como exigia a etiqueta; Henrique respondeu em 30 de
novembro de 1589 convocando-o a Tours, sede provisória de sua corte. Ou
bem a carta demorou a chegar ou Montaigne a deixou repousar sobre a
lareira por um bom tempo, pois sua resposta é datada de 18 de janeiro de
1590 — tarde demais para obedecer à ordem. O juramento de aliança ia
muito bem, teoricamente, mas Montaigne estava decidido a não viajar,
especialmente porque sua saúde andava pior que nunca. Ele explicou ao rei
que, infelizmente, a carta demorara a chegar; reiterou seus cumprimentos e
disse que esperava vê-lo cercado de ainda maior apoio.
Essa parte da carta era perfeitamente convencional, mas Montaigne
acrescentava uma recomendação mais franca. Sempre se dirigindo a ele
com toda a deferência formal, ele dizia ao novo rei que deveria ter-se
mostrado menos indulgente, recentemente, com os soldados de seu exército.
Precisava impor sua autoridade mas ao mesmo tempo ganhar terreno com
“clemência e magnanimidade”, que constituem meios mais seguros de
conquistar as pessoas do que as ameaças. O rei deve ser forte mas também
deve mostrar confiança nas pessoas e ser antes amado que temido.
Ele escreveu outra carta em 2 de setembro, depois de ter Henrique mais
uma vez proposto uma viagem a Montaigne, dessa vez para ir ao encontro
de Matignon. Ofereceu-se para pagar as despesas, mas, de novo, Montaigne
esperou tranquilamente que se passassem seis semanas para responder,
alegando que acabara de receber a carta. Na verdade, ele já escrevera três
vezes a Matignon, propondo-se, segundo dizia, a visitá-lo, mas não obtivera
resposta. Talvez, sugeria Montaigne, Matignon o quisesse poupar dos
perigos e da demora de uma viagem, considerando “a demora e os riscos
das estradas”. A indireta parece clara: Henrique IV devia dar mostra da
mesma consideração. Montaigne também se ressentiu da oferta de dinheiro.

Eu jamais recebi qualquer espécie de presente da liberalidade dos reis,


como tampouco a solicitei nem mereci; nem obtive pagamento pelas
medidas que tomei a seu serviço, das quais Vossa Majestade tem
conhecimento até certo ponto. O que eu fiz por vossos antecessores
farei com disposição ainda maior por vós. Sou, meu Senhor, tão rico
quanto poderia desejar. Quando tiver esgotado os recursos da minha
bolsa com Vossa Majestade em Paris, me atreverei a dizer-vos.

Parece uma maneira incrivelmente direta de falar a um rei — mas


Montaigne estava envelhecendo e doente (acometido de febre na época), e
já tinha com o rei suficiente convívio para falar-lhe abertamente. Em Os
ensaios, ele escreveu: “Vejo os nossos reis simplesmente com uma afeição
leal e cívica, que não é movida nem removida por interesses particulares
(...) É o que me faz andar por toda parte de cabeça erguida, o rosto e o
coração abertos.” A carta a Henrique IV mostra que se podia acreditar em
sua palavra. De fato, ele se revela nas duas cartas exatamente como se
mostra em Os ensaios: franco, sem se deixar impressionar pelo poder e
decidido a preservar a própria liberdade.
Montaigne pode ter detectado os primeiros sinais de algo que viria a
tornar-se uma característica do reinado de Henrique IV: a tendência do rei a
se erigir em objeto de culto. Ele era forte, o que vinha a ser uma
necessidade do país, depois de uma série de reis fracos e autoindulgentes,
mas carecia de sutileza. Discursos breves e ação rápida e decisiva, era este o
seu estilo. Se Henrique III se lavava com regularidade e usava garfos para
comer, ele se mostrava sujo, como devia ser um autêntico homem, e
segundo se dizia cheirava mal como carne estragada. Tinha carisma.
Montaigne gostava da ideia de um rei forte, mas não queria saber de
nenhuma mística. Em Os ensaios, escreve a respeito de Henrique IV em
tom de ponderada aprovação, e não de maquinal devoção; reservas
equivalentes podem ser encontradas em suas cartas. E esta batalha ele
acabaria vencendo, pois jamais viajaria ao encontro de Henrique IV.
No início de 1595, quando já era tarde demais para que Montaigne
tivesse conhecimento, Henrique IV conseguiu dar início a uma guerra
contra um inimigo externo, a Espanha, com isto começando a drenar as
energias das guerras civis, que finalmente chegaram ao fim em 1598. A
França começou a construir uma verdadeira identidade coletiva, embora
ainda frágil e centrada essencialmente na pessoa de Henrique. Muitos se
mostravam ardorosamente leais a ele, mas outros o detestavam com igual
ardor. Ele também viria a ser assassinado, apunhalado em 1610 pelo
fanático católico François Ravaillac.
Entre suas contribuições para a história está o Edito de Nantes
proclamado em 13 de abril de 1592, garantindo a liberdade de consciência e
certa liberdade de culto às duas facções religiosas. Ao contrário de
anteriores tratados buscando a conciliação, este funcionou, por algum
tempo. Até então o país mais afetado pelas divergências religiosas, a França
tornou-se a primeira nação da Europa ocidental a reconhecer formalmente
duas formas diferentes de cristianismo. Em discurso pronunciado no
parlement em 7 de fevereiro de 1599, Henrique deixou claro que o edito
não decorria do desejo de agradar, como acontecera com iniciativas
anteriores, e não devia ser tomado como licença para gerar problemas.
“Sufocarei no nascedouro toda facção e toda pregação sediciosa; e
mandarei decapitar todo aquele que as estimular.”
Imposto tão decididamente, com essa confiança afirmativa que
Montaigne apreciava, o Edito de Nantes durou quase um século, até 1685,
quando sua revogação gerou uma onda de refugiados huguenotes em
direção à Inglaterra e a outros países. Entre eles estavam muitos leitores de
Montaigne, como Pierre Coste, cuja edição clandestina de Os ensaios
acabaria sendo introduzida na França através do canal da Mancha e levaria
a imagem de um novo e revolucionário Montaigne a seus conturbados
compatriotas.
16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso

QUINZE INGLESES E UM IRLANDÊS

E
stranhamente, ao longo do século que levaria à nova imagem de
marca de Montaigne formulada por Coste em 1724 — um período
difícil para Os ensaios na França —, os ingleses nunca deixaram de
admirá-lo. Eles foram os primeiros fora da França a adotar Montaigne, e
viriam a considerá-lo praticamente um dos seus. Alguma coisa na
mentalidade inglesa os colocava em sintonia; e dali por diante eles
continuariam a vibrar harmoniosamente nessa mesma sintonia, parecendo
indiferentes às mudanças intelectuais que ocorriam em outros quadrantes.
Vale a pena interromper por um momento a história da “sobrevida” de
Montaigne (que transcorre paralelamente à história de sua vida, e estava
aqui suspensa no século XIX, desde o capítulo passado) para dar uma
rápida olhada em vários séculos de sua recepção crítica do outro lado do
canal da Mancha — para onde ele parece nunca ter pensado viajar, e onde
ficaria muito surpreso de se ver acolhido como refugiado, especialmente
por se tratar de um país protestante.
A religião era um dos motivos pelos quais muitos leitores ingleses, a
partir do fim do século XVII, se sentiam tão livres para desfrutar de
Montaigne. Os protestantes ingleses não se preocuparam quando a Igreja
pôs seu livro no Índex. Tal fato servia inclusive para que usufruíssem da
agradável sensação de levar a melhor sobre os católicos e, melhor ainda,
sobre os franceses. Estes podiam ser considerados um povo incapaz de
reconhecer seus melhores escritores, principalmente depois que a Academia
Francesa começou a impor rigorosos padrões de elegância clássica na
literatura. Um escritor “livre e insubordinado” (como se considerava
Montaigne) não tinha lugar na nova estética francesa, mas a língua inglesa o
recebia de braços abertos, como um filho pródigo. Exuberante e anárquica
morada de Chaucer e Shakespeare, o inglês parecia a linguagem certa para
um autor assim. Lorde Halifax, a quem foi dedicada uma das edições
seiscentistas de Os ensaios, observou que traduzir Montaigne “é não só uma
valiosa aquisição para nós, mas uma justa censura da impertinência crítica
desses escribas franceses que se deram ao trabalho de inventar pequenas
reservas e objeções para diminuir a reputação desse grande homem, feito
pela natureza grande demais para se confinar à exatidão de um estilo
estudado”. E o ensaísta William Hazlitt conseguiu introduzir Montaigne,
além de Rabelais, num texto intitulado “Sobre antigos escritores e oradores
ingleses”. Assim justificou ele essa inclusão: “Mas estes consideramos em
grande medida ingleses, ou como aquilo para onde se inclinava o velho
temperamento francês, antes de ser corrompido por cortes e academias de
crítica.”
Se apreciavam o estilo de Os ensaios, os leitores ingleses ficavam ainda
mais encantados com seu conteúdo. A preferência de Montaigne pelos
detalhes, em detrimento das abstrações, os atraía; e o mesmo acontecia com
sua desconfiança em relação aos eruditos, sua preferência pela moderação e
o bem-estar e seu desejo de privacidade — o “compartimento nos fundos da
loja”. Por outro lado, os ingleses também tinham o gosto pelas viagens e
pelo exotismo, exatamente como Montaigne. Ele podia dar mostra de
inesperados surtos de radicalismo no meio do mais tranquilo
conservadorismo, e o mesmo se podia dizer deles. E, no fundo, o que ele
gostava mesmo era de ficar observando seu gato brincar perto da lareira —
exatamente como os ingleses.
E havia também sua filosofia, se é que lhe podemos dar este nome. Os
ingleses não eram filósofos natos; não gostavam de especular sobre o ser, a
verdade e o cosmo. Ao pegar um livro para ler, queriam anedotas,
temperamentos estranhos, comentários espirituosos e um toque de fantasia.
Como diria Virginia Woolf a propósito de Sir Thomas Browne, um dos
muitos autores ingleses que escreviam numa veia montaigniana, “a mente
inglesa inclina-se naturalmente a se sentir à vontade e encontrar prazer nos
humores e caprichos mais informais”. Por isto é que William Hazlitt
louvava Montaigne em termos capazes de interessar uma nação não
necessariamente filosófica:
Ao tomar da pena, ele não posava de filósofo, sabichão, orador ou
moralista, mas se tornava tudo isso simplesmente por ousar dizer-nos
o que passava por sua mente, em sua nua simplicidade e força.

Numa das raras ocasiões em que Montaigne referiu-se a si mesmo como


filósofo, foi para dizer que aconteceu apenas por acaso: ele era um “filósofo
não premeditado e acidental”. Passava tantas páginas vagando pelos
próprios pensamentos que não podia deixar de acabar tropeçando aqui e ali
em alguma grande teoria clássica. A filosofia empírica do melhor estilo de
vida a adotar o interessava, mas era algo diferente. Globalmente, tudo isto
se aplicava aos ingleses.
Boa parte de seu sucesso na Inglaterra, contudo, pode ter sido uma
questão de feliz coincidência, e não necessariamente de profunda afinidade,
como convém a um homem acidental. Os ensaios pôde contar desde o
início com um excelente tradutor inglês, um homem chamado John Florio
— o que fez toda a diferença.
O fato de Florio ter sido o primeiro a chamar a atenção para o inglês
oculto em Montaigne é tanto mais notável por ele ser um itinerante
multicultural de sensibilidade nada inglesa. Ele costuma ser considerado
italiano, embora sua mãe fosse inglesa e ele tivesse nascido em Londres em
1553, sendo portanto mais inglês que qualquer outra coisa. Mas seu pai era
o italiano Michele Agnolo Florio, professor de línguas e escritor que havia
se transferido para a Inglaterra como refugiado protestante muitos anos
antes. Quando a católica Maria Tudor subiu ao trono, a família Florio
voltou ao exílio percorrendo a Europa, o que levou o jovem John a aprender
tantas línguas. De volta à Inglaterra na idade adulta, ele fez nome ensinando
francês e italiano e publicando uma série de manuais de conversação, além
de um bem-sucedido dicionário inglês-italiano.
Florio traduziu Os ensaios a pedido de uma rica mecenas, a condessa de
Bedford, que também o aproximou de uma série de amigos e colaboradores
que o ajudaram a identificar citações e promover o livro. Florio retribuiu a
ajuda com elaboradas dedicatórias, em certos casos tão rebuscadas que os
homenageados mal conseguiam entendê-las. Em sua epístola à condessa de
Bedford, podemos ler:

Aqui atributos vão de acordo com seus deméritos; donde, para o


desenvolvimento de uma carreira duradoura, uma área livre e extensa
deve me ser convidativa, e meu espírito ardente me incitaria, não
fosse eu seguro por sua mão doce e dominante (quem já sentiu esse
desejo, que muito cedo excede aquilo que imaginamos de nós
mesmos, passa a se considerar aquilo que em verdade não é) ou não
deveria eu prejudicar sua garantida vantagem por meio de um
desvelar precoce, Quando o seu valor estiver em deliberação.

Este trecho é bem típico do que acontecia quando Florio tinha rédea
solta. Como Montaigne, ele escrevia emitindo pensamentos cada vez mais
complexos, como uma aranha que emite fios de seda. Mas, enquanto
Montaigne sempre vai adiante, Florio se enrola sobre si mesmo e remastiga
suas sentenças em espirais cada vez mais apertadas, até que o significado
desaparece no colapso da sintaxe. A verdadeira magia acontece quando os
dois escritores se encontram. A natureza terrena de Montaigne mantém sob
controle os emaranhados de Florio, enquanto Florio proporciona a
Montaigne certa qualidade elizabetana inglesa, além de uma leitura muito
divertida. Quando Montaigne escreve: “Nossos alemães, afogados em
vinho” (nos Allemans, noyez dans le vin), Florio traduz “nossos soldados
alemães fanfarrões, quando estão com a cara enfiada nos canecos, bêbados
como ratos”. Uma frase que o tradutor moderno Donald Frame reproduz
tranquilamente como “lobisomens, duendes e quimeras” será encontrada no
universo de Florio como “Larvas, Duendes, Monstrengos e outros Bichos e
Quimeras” — como se estivéssemos lendo Sonho de uma noite de verão.
Shakespeare e Florio se conheciam, e Shakespeare foi um dos primeiros
leitores da tradução de Os ensaios. Pode até ter lido partes do manuscrito
antes de ser enviado para a gráfica: é possível discernir certos indícios de
Montaigne em Hamlet, que é anterior à edição de Florio. Uma peça muito
posterior, A tempestade, contém um trecho tão próximo de Florio que não
pode haver dúvida de que ele leu a tradução. Fazendo o elogio de sua visão
de uma sociedade perfeita no estado natural, o Gonzalo de Shakespeare
afirma:

Não, na república faria tudo pelos seus contrários, pois não admitiria
espécie alguma de comércio; de magistrados, nada, nem mesmo o
nome. O estudo ficaria ignorado de todo. Suprimiria, de vez, ricos e
pobres e os serviços; contratos, sucessões, questões de terra,
demarcações, cuidados da lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada.
Nenhum uso, também, de óleo e de vinho, trigo e metal. Ocupação,
nenhuma. Todos os homens, ociosos, todos.1

O que é notavelmente parecido com o que Montaigne diz a respeito dos


tupinambás, na tradução de Florio:

É uma nação (...) que não tinha qualquer tipo de comércio, nem
conhecimento das letras, nem inteligência dos números, nem nome de
magistrado, nem de superioridade política; nenhum uso para serviços
ou riqueza ou pobreza; nada de contratos, nem sucessões, nem
partilhas, nem ocupação alguma, mas só ociosidade; nenhum cuidado
com parentesco, mas tudo em comum, sem adornos, mas natural, sem
fertilização das terras, nem uso do vinho, do milho ou de têmpera.

Desde que esse paralelismo óbvio foi estabelecido por Edward Capell no
fim do século XVIII, a caça a indícios de influência em outras peças de
Shakespeare tornou-se uma espécie de esporte popular. A mais promissora
certamente é Hamlet, pois seu herói muitas vezes se parece com
um Montaigne tendo de enfrentar um dilema dramático num palco. Quando
Montaigne escreve “Nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos” ou
descreve a si mesmo com a incoerente torrente de adjetivos “tímido,
insolente; casto, lascivo; tagarela, taciturno; duro, delicado; inteligente,
estúpido; grosseiro, afável; mentiroso, verdadeiro; cultivado, ignorante,
liberal, sovina e pródigo”, podia estar dizendo um monólogo da peça. Ele
também observa que aquele que pensa demais sobre as circunstâncias e
consequências de determinado ato fica impedido de fazer o que quer que
seja — um belo resumo do principal problema da vida de Hamlet.
As semelhanças podem derivar simplesmente do fato de os dois
escritores estarem sintonizados com o clima do seu mundo no alto
Renascimento, com toda a sua confusão e indecisão. Montaigne e
Shakespeare foram ambos considerados os primeiros autênticos escritores
modernos, capturando esse sentimento tipicamente moderno de não saber
ao certo a que lugar pertencemos, quem somos e o que devemos fazer. O
estudioso shakespeariano J. M. Robertson considerava que toda literatura
desde esses dois autores podia ser interpretada como uma elaboração do seu
tema comum: a descoberta da consciência dividida.
O paralelismo não pode ser levado muito longe. Para começo de
conversa, Shakespeare era um dramaturgo, e não um ensaísta. Ele pode
dividir suas contradições com os personagens e pô-los em conflito no palco;
Montaigne não pode deixar de conter em si mesmo todas as contradições.
Outra diferença é que Montaigne não reina sozinho sobre o cânone literário
em sua terra, como acontece com Shakespeare na Inglaterra. Desse modo,
suscitou menos inveja, e nenhum iconoclasta veio tentar derrubá-lo de seu
pedestal, alegando que ele não escreveu Os ensaios, como tantas vezes
aconteceu com Shakespeare.
Ou quase nenhum. Entre as poucas exceções encontra-se um dos
principais “anti-Stratfordianos” (autores que lançavam dúvidas sobre
Shakespeare) do século XIX, Ignatius Donnelly. No fim de uma vasta obra
sustentando que Francis Bacon foi quem escreveu as peças de Shakespeare,
Donnelly acrescenta capítulos adicionais tentando provar que Bacon
também escreveu Os ensaios de Montaigne, além da Anatomia da
melancolia de Robert Burton e de toda a obra de Christopher Marlowe. Ele
encontra pistas ao longo de Os ensaios, como uma passagem em que
Montaigne escreve: “Quem quer que seja capaz de curar uma criança de
uma pertinaz aversão ao pão, ao bacon ou ao alho a estará curando de todo
tipo de fragilidade.” O nome Francis aparece várias vezes no texto,
supostamente na forma francesa François e geralmente denotando o rei
francês Francisco I. Mas não importa: trata-se também de uma pista. Para
fechar a questão, Donnelly menciona a descoberta feita por uma certa sra.
Pott, que chamou sua atenção para a frequente menção, nas peças de
Shakespeare, de montanhas, ou Mountaines. Como Bacon é que escreveu
Shakespeare, qualquer referência a Montaigne nas peças tende a indicar que
ele também escreveu Os ensaios. “Alguém seria capaz de acreditar que tudo
isso não passa de mero acidente?”, pergunta Donnelly.
Ele próprio se confessa perplexo com certos trechos de Os ensaios que
parecem cheios dessas pistas, mas são de mais difícil interpretação,
notadamente a história de uma jovem que batia nos próprios seios brancos
depois do assassinato do irmão. Donnelly desiste:

Quem é essa jovem? Nada mais encontramos a seu respeito no texto.


E terão sido acaso os seios brancos que assassinaram seu irmão? (...)
E de onde foi disparada a bala? Acaso foram os seios brancos? Nada
disto faz sentido (...) E existem centenas de trechos assim.

O fato de Os ensaios ter sido escrito em francês podia representar um


problema — mas não para Donnelly. Sua explicação é que Bacon queria
publicar um livro de opiniões céticas e nada ortodoxas do ponto de vista
religioso, mas não ousava fazê-lo na Inglaterra, de modo que deu um jeito
de publicá-lo como se fosse uma tradução. Por força da sorte, o irmão de
Francis Bacon, Anthony, estava na França na época e conhecia Montaigne.
Ele convenceu Montaigne a emprestar seu nome à farsa, enquanto alguém
mais convencia Florio a desempenhar o papel do tradutor. Desse modo,
Bacon escreveu o livro; Montaigne o assinou; e Florio presumivelmente o
traduziu — mas do inglês para o francês. “Montaigne” era de fato um
inglês, de uma forma mais literal que Lorde Halifax ou William Hazlitt
jamais sonhariam.
Um dos aspectos dessa história efetivamente se fundamenta em fatos:
Anthony Bacon realmente conhecia Montaigne e o visitou duas vezes, a
primeira no início da década de 1580 e novamente em 1590. Ele poderia
facilmente ter levado um exemplar de Os ensaios para o irmão, o que
significa que Francis podia tê-lo lido (em francês) antes de publicar sua
própria coleção de Os ensaios em 1597. Isto explicaria algo que sempre
causou perplexidade: como foi que Bacon e Montaigne se saíram com o
mesmo título em intervalo de apenas poucos anos?
Cabe dizer, contudo, que o título é praticamente o único ponto
semelhante. Todas as qualidades que podem ser consideradas “inglesas” em
Montaigne estão fragorosamente ausentes em seu colega inglês. Bacon
escrevia com maior rigor intelectual que Montaigne. Era mais incisivo,
mais filosófico e muito mais tedioso. Ao tratar de temas como a leitura ou
as viagens, ele dava ordens. Isto é o que você deve ler, aquilo é o que se
deve buscar numa viagem. Quando um tema comportava subdivisões, ele
não se eximia de fazê-lo, anunciando os subtópicos antecipadamente para
em seguida enveredar por cada um deles até chegar ao fim. Se há uma coisa
de que podemos estar certos com Montaigne é que ele jamais faria algo
assim.
Uma vez tomada a iniciativa por Florio e Bacon, surgiram inúmeros
livros ingleses com a palavra Ensaios no título. Alguns se inspiravam
abertamente no Montaigne de Florio, outros, em Bacon, mas em quase
todos os casos era em Montaigne que iam buscar seu estilo de pensar e
escrever. Muito poucos ensaios ingleses posteriores ao início do século
XVII podiam ser considerados investidas filosoficamente rigorosas por
temas importantes; quase todos representavam devaneios agradáveis sobre
nada em particular. Típicas dessa tendência eram as obras de William
Cornwallis, que leu Florio numa das primeiras versões manuscritas e
publicou sequências de Essayes em 1600, 1601, 1616 e 1617, explorando
temas como “Do sono”, “Da insatisfação”, “Do fantástico”, “Das tabernas”
e “Da observação e uso das coisas”.
Mesmo aqueles que não faziam uso do título não raro escreviam de uma
forma tipicamente digressiva e pessoal. Enquanto a literatura francesa
tornava-se cada vez mais aprumada e formal, a Inglaterra produzia
excêntricos como Robert Burton, que se referia ao próprio estilo, em seu
vasto tratado Anatomia da melancolia, como capaz de correr “como um
spaniel desembestado latindo a cada pássaro que vê”. Ainda mais estranho
era Sir Thomas Browne, que produziu investigações ensaísticas sobre a
medicina, a jardinagem, os métodos de sepultamento, as bibliotecas
imaginárias e muito mais, num retorcido estilo barroco tão diferente
(mesmo do de Florio) que imediatamente reconhecemos uma frase de sua
autoria.
No auge dessa fase altamente estranha da recepção de Montaigne na
Inglaterra, apareceu um novo tradutor para equilibrar um pouco as coisas:
Charles Cotton, cuja nova versão foi publicada em 1685 e 1686, não muito
depois de ter Os ensaios entrado para o Índex na França. Cotton era mais
preciso que Florio e aproximou de Os ensaios uma nova geração de leitores
ingleses. Surpreendentemente, o responsável por essa tradução mais contida
tinha um temperamento mais instável e diletante que Florio. Cotton fez
fama em sua época sobretudo como autor de poemas burlescos
escatológicos. Ele certa vez referiu-se a si mesmo com um “bobalhão do
norte”, tendo como ocupação preferida beber cerveja na taberna a noite
inteira para em seguida recolher-se a sua biblioteca e

Escrever epístolas libertinas e às vezes traduzir


Velhas Histórias de Banheira, da Guyen[n]e e da Provença,
E terçar armas com velhos espadachins da França.

Após sua morte, a reputação póstuma de Charles Cotton passou por


transformações tão estranhas quanto as de Montaigne ou Shakespeare,
embora em menor escala. O século XIX considerava ofensivos seus versos
cômicos, admirando-o por uma lírica poesia da natureza que seus
contemporâneos haviam ignorado. Mais tarde, também ela seria esquecida.
Cotton seria festejado por um capítulo sobre a pesca da truta que escreveu
para O pescador completo de Isaac Walton — por sua vez uma empreitada
altamente montaigniana. Hoje, esta relíquia está praticamente esquecida —
exceto entre os pescadores de trutas — e ele é lembrado sobretudo por sua
tradução de Montaigne.
A tradução de Cotton foi a referência durante mais de dois séculos,
levando Montaigne a novas gerações de escritores menos barrocos, mais
preocupados em apreender as realidades psicológicas da vida cotidiana do
que em desfiar fios de fantasia. O poeta Alexander Pope anotou em seu
exemplar da tradução de Cotton: “Este é (em minha Opinião) o melhor
Livro de Informação sobre os Costumes até hoje escrito; Este Autor diz
apenas o que cada um sente no Coração.” Um artigo publicado na revista
literária Spectator louvava o hábito de Montaigne de introduzir experiências
e qualidades pessoais no livro, prática que podia ser considerada
autocomplacente, mas não deixava de entreter. Como observou o crítico
francês Charles Dédéyan, os ingleses aceitavam de bom grado que um autor
falasse de si mesmo, desde que o fizesse de maneira agradável.
Dali para a frente, não faltariam ensaístas ingleses fazendo exatamente
isso. Pertenciam todos ao que o crítico Walter Pater chamou de “a
verdadeira família de Montaigne”: eles evidenciavam “essa intimidade, essa
moderna subjetividade que pode ser considerada o elemento montaignesco
na literatura”. Entre eles estava o popular ensaísta Leigh Hunt, que encheu
seu exemplar de Os ensaios de sublinhados e anotações à margem — não
raro das mais tolas. Quando Montaigne conta que viu um menino sem mãos
mas capaz de carregar uma espada pesada e estalar o chicote tão bem
quanto qualquer carroceiro da França, Hunt anota meticulosamente à
margem: “Com os braços, claro. Mas ainda assim é surpreendente.”
Um admirador intelectualmente mais dotado era William Hazlitt, aquele
mesmo que louvava Montaigne por não posar de filósofo. Sua opinião
daquilo que constitui um bom ensaísta exemplifica o que os ingleses agora
tendiam a buscar em Montaigne. Esses escritores, diz Hazlitt, colecionam
curiosidades da vida humana exatamente como os entusiastas da história
natural colecionam conchas, fósseis ou escaravelhos em seus passeios pela
floresta ou à beira-mar. Apreendem as coisas como realmente são, e não
como deveriam ser. Montaigne era o melhor de todos porque permitia que
tudo fosse como era, inclusive ele próprio, e sabia como olhar as coisas.
Para Hazlitt, um ensaio ideal

faz anotações sobre nossos trajes, nosso ar, nossa aparência, nossos
pensamentos, palavras e atos; mostra-nos o que somos e o que não
somos; representa diante de nós todo o jogo da vida humana, e,
fazendo-nos espectadores esclarecidos de suas cenas multicores,
permite (se possível) que nos tornemos agentes passavelmente
razoáveis naquela em que devemos desempenhar um papel.

Em outras palavras, o ensaio é o gênero que — mais que qualquer


romance ou biografia — nos ajuda a descobrir como viver.
O filho de Hazlitt, também chamado William Hazlitt, editaria a tradução
de Cotton juntamente com cartas de Montaigne, seu diário de viagem pela
Itália e uma breve biografia, tudo isto reunido nas Obras completas em
1842. Esta haveria de tornar-se nos anos subsequentes a edição standard na
Grã-Bretanha; ela seria mais uma vez revista pelo seu filho em 1877. Assim
foi que os dois Hazlitt marcaram o Montaigne inglês de maneira ainda mais
duradoura que Florio. Esse novo Montaigne era apreciado sobretudo por
essas virtudes hazlittianas: a atenção para os fatos da vida cotidiana, tal
como se apresentavam, e a capacidade de escrever a respeito de maneira
agradável, sem formalismos literários.
Essa tradição teve prosseguimento entre o século XIX e o XX, e tudo
indica que avançará pelo século XXI. Todas as épocas produziram novos
montaignianos ingleses; a tradição continua hoje em dia através dos
incontáveis ensaístas efêmeros e colunistas de fim de semana nos jornais, os
quais, conscientemente ou não, mantêm vivo o “elemento montaignesco na
literatura”.
Dentre os herdeiros de Montaigne do outro lado do canal da Mancha, a
última palavra deve ficar com um anglo-irlandês: Laurence Sterne, autor no
século XVIII de Tristram Shandy. Seu grande romance, se assim pode ser
classificado, é uma exagerada divagação montaignesca, com várias
referências explícitas ao antecessor francês e cheia de brincadeiras,
paradoxos e digressões. Dedicatórias e prólogos, que normalmente estariam
no início, surgem por toda parte, na ordem errada. O “Prefácio do Autor”
será encontrado no Volume 3, Capítulo 20. A certa altura, deparamos com
uma página em branco, para que os leitores possam traçar o retrato de um
personagem, de acordo com sua própria imaginação. Em outra página,
temos uma série de diagramas lineares resumindo os padrões de digressão
do livro até ali.
O livro parece constantemente a ponto de se dissolver. O enredo que
acaso tivesse sido prometido no início se evapora; as rupturas e desvios da
narrativa tomam conta. “Pois não prometi ao mundo um capítulo sobre os
laços?”, reflete Sterne a certa altura; “dois capítulos sobre a extremidade
certa e a errada de uma mulher? um capítulo sobre bigodes? um capítulo
sobre desejos? — um capítulo dos narizes? — Não, o que fiz foi isto: — um
capítulo sobre o recato do meu tio Toby: para não falar de um capítulo sobre
os capítulos, que deverei concluir antes de me deitar.” É como se fosse um
Montaigne em alta velocidade.
Mas é claro, afirma Sterne, que nenhum relato que realmente preste
atenção ao mundo tal como é poderia ser diferente. Ele não poderia ir direto
do ponto de partida ao destino. A vida é complicada; não existe apenas um
caminho a seguir.

Poderia um historiador direcionar sua história como um tropeiro


direciona sua mula — direto em frente?; — por exemplo, partindo de
Roma em direção a Loretto, sem jamais voltar a cabeça para a direita
ou para a esquerda?, — ele poderia arriscar-se a prognosticar uma
hora antes o momento em que sua jornada chegaria ao fim; — mas a
coisa é, moralmente falando, impossível: Pois, se ele é um homem
minimamente dotado de espírito, terá cinquenta desvios de uma linha
reta a observar.

Como Montaigne em sua viagem pela Itália, Sterne não pode ser acusado
de se desviar do caminho, pois seu caminho é feito de digressões. Sua rota
está, por definição, em qualquer direção que ele venha a tomar.
Tristram Shandy deu início a uma tradição irlandesa que chegaria a sua
manifestação extrema com o Finnegans Wake de James Joyce, romance que
se espraia por ramificações e fluxos de associação ao longo de centenas de
páginas, até que, no fim, faz uma pirueta sobre si mesmo: a última frase
inconclusa se engancha com a frase inconclusa que dera início ao livro. O
que pareceria arrumadinho demais para Sterne ou Montaigne, que evitavam
conclusões muito claras. Para eles, escrever e viver eram duas coisas que
deviam simplesmente fluir, ainda que isto significasse perder-se cada vez
mais em digressões sem jamais chegar a uma conclusão. Sterne e
Montaigne estão constantemente se envolvendo com um mundo que sempre
gera mais coisas sobre as quais escrever — por que, então, parar? Isto faz
deles filósofos acidentais, naturalistas numa pesquisa de campo da alma
humana, sem mapas nem planos, sem ter a menor ideia sobre onde vão
parar ou sobre o que poderão fazer quando lá chegarem.

1 Tradução em prosa de Carlos Alberto Nunes, editora Martin Claret. (N. do T.)
17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se
arrependa de nada

JE NE REGRETTE RIEN

C
ertos escritores limitam-se a escrever seus livros. Outros parecem
modelá-los na argila ou construí-los por acúmulo. James Joyce
estava entre estes: seu Finnegans Wake evoluiu por uma série de
esboços e edições, até que as sentenças perfeitamente normais da primeira
versão —

Quem foi o primeiro a explodir?

transformaram-se em estranhos mutantes —

Quiangque foi o primo que a arrombou?2

Montaigne não brincava com as palavras como Joyce, mas efetivamente


agia por revisitação, elaboração e acréscimo. Embora retomasse
constantemente o trabalho, raramente parecia sentir a necessidade de apagar
alguma coisa — queria apenas adicionar sempre mais. A ideia do
arrependimento lhe era estranha no ato de escrever, exatamente como na
vida, na qual se mantinha firmemente ligado ao amor fati: a alegre
aceitação do que quer que aconteça.
Isto ia de encontro às doutrinas do cristianismo, que insistiam em que
devemos estar constantemente nos arrependendo dos pecados passados,
para manter o quadro limpo e ter a oportunidade de recomeçar. Montaigne
sabia que certas coisas feitas no passado já não faziam sentido para ele, mas
se limitava a presumir que era então uma pessoa diferente, e ficava por isso
mesmo. As anteriores manifestações do seu eu eram tão diversas quanto um
grupo de pessoas numa festa. Assim como não lhe passaria pela cabeça
julgar um grupo de conhecidos reunidos, tendo todos eles seus motivos e
pontos de vista para explicar o que haviam feito, assim também ele não
desejaria julgar anteriores versões de Montaigne. “Somos todos uma colcha
de retalhos”, escreveu, “tão sem forma e tão diversa em sua composição
que cada pedacinho, cada momento joga seu próprio jogo”. Não havia um
ponto de vista genérico a partir do qual fosse possível olhar para trás e
erigir o único Montaigne coerente que ele gostaria de ter sido. Como ele
não tentava apagar da vida seus eus anteriores, tampouco haveria motivos
para que o fizesse em seu livro. Os ensaios havia crescido junto com ele
durante vinte anos; era o que era, e ele pretendia deixá-lo assim.
Essa recusa do arrependimento não o impediu de reler o livro, contudo,
frequentemente fazendo acréscimos. Ele jamais chegou ao momento em
que poderia descansar a pena e anunciar: “Agora, eu, Montaigne, disse tudo
que queria dizer. Pude preservar-me no papel.” Enquanto vivesse, teria de
continuar escrevendo. O processo poderia ter continuado sem fim:

Quem não terá percebido que tomei um caminho pelo qual seguirei,
sem me deter nem me esforçar, enquanto houver tinta e papel neste
mundo?

A única coisa que o deteve no fim das contas foi a morte. Como
escreveu Virginia Woolf, Os ensaios foi interrompido porque chegou “não
ao seu fim, mas a uma suspensão em plena corrida”.
Esse empenho continuado pode ter sido resultante em parte do estímulo
dos editores. As primeiras edições venderam tão bem que parecia evidente a
existência de um mercado para novas edições, maiores e melhores. E
Montaigne tinha muita coisa a acrescentar em 1588, depois do seu grande
périplo e das experiências como prefeito. Ele escreveu ainda mais nos anos
subsequentes, quando lhe devem ter ocorrido novas ideias, após as
perturbadoras experiências na corte do rei refugiado: não necessariamente
ideias relacionadas às questões da atualidade francesa, mas à moderação, ao
critério, às imperfeições do mundo e muitos outros dentre seus temas
favoritos.
Na página de rosto da edição de 1588, publicada pela prestigiosa editora
parisiense de Abel L’Angelier, e não por seu editor anterior em Bordeaux, a
obra era apresentada como “ampliada por um terceiro livro e por seiscentos
acréscimos aos dois primeiros”. O que está essencialmente correto, apesar
de minimizar o real alcance dos acréscimos: Os ensaios de 1588 tinha quase
o dobro do tamanho da versão de 1580. O Livro III adicionava 13 longos
capítulos, e, quanto aos ensaios dos dois primeiros livros, praticamente
nenhum ficava inalterado.
O novo Montaigne de 1588, que chegou ao conhecimento do mundo no
momento em que o verdadeiro Montaigne acompanhava Henrique III e
planejava sua recuperação com a amiga recente Marie de Gournay na
Picardia, impressionava pelo novo grau de confiança. Como convinha a
alguém que rejeitava a ideia de desfazer os próprios pecados, ele não se
mostrava arrependido do caráter digressivo e pessoal do livro. Nem hesitava
em fazer exigências a qualquer um que entrasse em seu mundo. “É o leitor
desatento que se perde no meu tema, e não eu”, escrevia agora, comentando
a própria tendência a divagar. Para trás ficara qualquer pretensão de estar
escrevendo para a família e os amigos: ele sabia do que dispunha e
zombava de qualquer ideia de diluição, ocultação ou simplificação para
atender às convenções.
Mas apesar disso uma forma mais íntima de hesitação autoral ainda se
manifestava. Ele não podia lançar mão do livro sem mergulhar em confusão
criativa. “De minha parte, não sou capaz de julgar o valor de qualquer outro
livro com menos clareza do que o meu próprio; e situo Os ensaios ora
embaixo, ora lá em cima, de maneira muito incoerente e incerta.” A cada
vez que lia suas próprias palavras, ele era assaltado por essa combinação de
sentimentos — sendo então tomado por novos pensamentos, de modo que
lá vinha de novo a pena a escrever.
Como devia esperar o editor, Os ensaios de 1588 encontrou um mercado
ávido, embora certos leitores que haviam devorado a edição de 1580 como
um compêndio de sabedoria estoica ficassem perplexos com o que
encontravam agora. Vozes discordantes começaram a ser ouvidas.
Montaigne acaso não se tornava um pouco digressivo demais, um pouco
pessoal demais? Não nos estaria contando detalhes em excesso sobre seus
hábitos cotidianos? Haveria afinal alguma relação entre os títulos de
seus capítulos e o material que continham? Seriam realmente necessárias as
revelações sobre sua vida sexual? E não teria ele perdido, como sugerira seu
amigo Pasquier no encontro em Blois, o domínio da própria língua? Será
que se dava conta de que seu texto estava cheio de palavras estranhas,
neologismos e gasconismos coloquiais?
Quaisquer que fossem as incertezas de Montaigne, nada disso o afetava
muito. Se essas críticas o levavam a rever alguma coisa, era em geral para
tornar o texto ainda mais digressivo, pessoal e exuberante do ponto de vista
estilístico. Nos quatro anos de vida que ainda lhe restariam após a
publicação da edição de 1588 de Os ensaios, ele seguiu na mesma direção,
acrescentando folha após folha, dobra após dobra.
Tendo-se espalhado livremente na edição de 1588, ele agora galopava à
rédea solta. Não mais acrescentou capítulos, mas inseriu cerca de mil novas
passagens, algumas delas tão extensas que poderiam ter constituído um
ensaio inteiro na primeira edição. O livro, que já tinha quase o dobro do
tamanho original, era acrescido de mais um terço. Ainda assim, Montaigne
achava que podia apenas insinuar algumas coisas, não dispondo de tempo
nem de inclinação para discuti-las a fundo. “Para incluir mais coisas, vou
acumulando apenas o cabeçalho dos temas. Se tivesse de escrever mais
sobre suas consequências, haveria de multiplicar muitas vezes este
volume.” Como dissera a respeito de Plutarco, “ele se limita a apontar com
o dedo para onde devemos seguir, se quisermos”. A única regra é a verdade,
e o único caminho, a digressão.
Na folha de rosto de um dos exemplares nos quais trabalhava, Montaigne
escreveu em latim “viresque acquirit eundo”, uma citação de Virgílio:
“Ganha força à medida que avança.” Podia ser uma referência ao êxito
comercial do livro, ou, mais provavelmente, uma descrição da maneira
como recolhia material como uma bola de neve descendo a encosta. Até
mesmo Montaigne aparentemente temia estar perdendo o controle da obra.
Ao dar ao amigo Antoine Loisel um exemplar da edição de 1588, ele pediu-
lhe na dedicatória que lhe dissesse o que pensava a respeito — “pois temo
estar piorando à medida que avanço”.
É bem verdade que Os ensaios começavam a chegar ao limite da
compreensão. Podemos às vezes discernir o esqueleto da primeira edição
através desse emaranhado, especialmente nas edições modernas que
identificam com pequenas letras as três etapas: A para se referir à edição de
1580, B para a de 1588 e C para tudo que viria depois. O efeito pode se
parecer com o vislumbre dos contornos de um templo de pedra khmer em
meio a uma massa de folhagens tropicais. Ficamos nos perguntando como
seria uma eventual camada “D”. Se Montaigne tivesse vivido mais trinta
anos, será que teria continuado a adicionar textos ao livro até que se
tornasse praticamente impossível de ler, como o pintor da Obra-prima
desconhecida, de Balzac, que transforma seu quadro numa verdadeira
bagunça negra sem significado claro? Ou teria sabido exatamente quando
parar?
Não temos como responder, mas há indicações de que, ao morrer, ele não
achava que esse limite tivesse chegado. Seus derradeiros anos de trabalho
resultaram em pelo menos mais um exemplar densamente anotado, que
viria a se tornar — depois de passar pelas mãos de seu editor póstumo — o
alicerce de praticamente todos os posteriores Os ensaios de Montaigne.
Esse editor era ninguém menos que aquela exótica jovem que entrara em
sua vida em Paris no momento em que ele concluía a edição de 1588: Marie
de Gournay.

2 Tradução de Augusto e Haroldo de Campos, editora Perspectiva (N. do T.)


18. P. Como viver? R. Abra mão do controle

FILHA E DISCÍPULA

M
arie Le Jars de Gournay, a primeira grande editora e divulgadora
de Montaigne — como São Paulo para Jesus, ou Lênin para
Marx —, era uma mulher extremamente entusiástica e emotiva,
o que ela não deixou de evidenciar desinibidamente para Montaigne no
primeiro encontro que eles tiveram em Paris. Ela se tornaria de longe a
mulher mais importante da sua vida, mais até que sua mulher, sua mãe e sua
filha, a formidável trinca do lar de Montaigne. Como elas, sobreviveria a
ele — o que não surpreende, em seu caso, sabendo-se que tinha 32 anos
menos que ele. Os dois se conheceram quando Montaigne tinha 55 e ela,
23.
A vida de Marie de Gournay começou, em 1565, com muitas
semelhanças com a de Montaigne e duas diferenças cruciais: ela era mulher
e tinha menos dinheiro. Sua família de nobres provincianos vivia parte do
tempo em Paris e parte no castelo e propriedade de Gournay-sur-Aronde, na
Picardia, comprados pelo pai em 1568. Na idade adulta, Marie adotou como
sobrenome o nome da propriedade. Esse direito costumava ser reservado
aos filhos do sexo masculino, mas já era bem característico dela que
ignorasse a regra. Ela sempre se mostraria decidida a exigir mais da vida do
que lhe parecia reservado pelo sexo e a posição social.
Em 1577, seu pai morreu. Foi um sério golpe para ela e um verdadeiro
desastre para a família. Sem os rendimentos e a gestão assegurados por ele,
a vida de todos eles desmoronou. Morar em Paris era ainda mais
dispendioso que na Picardia, de modo que a família abriu mão quase
completamente da vida na cidade. Em 1580, Marie estava confinada a um
universo provinciano. Ele não lhe convinha muito, mas — já agora uma
teimosa adolescente — ela fez o que estava ao seu alcance para se educar,
usando os livros da biblioteca da família. Lendo obras latinas paralelamente
às respectivas traduções francesas, proporcionou a si mesma a melhor
formação clássica possível. O resultado disso foi um conhecimento
desigual, assistemático, mas de profunda motivação.
Montaigne poderia ter aprovado uma educação tão anárquica —
teoricamente. Na prática, não podemos imaginá-lo satisfeito com o que
estava ao alcance de Marie de Gournay, e que também haveria de deixá-lo
menos confiante em si mesmo. Montaigne podia mostrar-se despreocupado
a respeito da questão do aprendizado e sardônico quanto à admiração do pai
pelos livros. Gournay se orgulhava de suas conquistas porque tivera de lutar
por elas, e era muito fácil deixá-la na defensiva. Muitas vezes ela achava
que era alvo de zombaria. Sim, dizia, claro que as pessoas achavam
engraçado conhecer

uma mulher se passando por culta sem escolarização formal, pois


sozinha aprendera mecanicamente o latim, cotejando traduções com
os originais, e por isso não ousava falar a língua, por medo de dar um
passo em falso — uma mulher cultivada que não é capaz de garantir
inequivocamente a métrica de um verso latino; uma mulher cultivada
sem saber grego, hebraico, sem a capacidade de fazer comentários
eruditos sobre os autores.

Por toda a vida Gournay haveria de mostrar-se indignada e insatisfeita.


Em sua Peinture de moeurs, um autorretrato em versos, ela se apresentava
como um emaranhado de intelecto e emoção, incapaz de ocultar seus
sentimentos — o que transparece em seus escritos.
A mesma combinação aparece no que ela nos relata sobre seus primeiros
encontros com Montaigne, inicialmente por escrito e depois em pessoa. Nos
últimos anos da adolescência, aparentemente por acaso, ela deu com uma
edição de Os ensaios. A experiência a abalou tanto que sua mãe pensou que
ela perdera a razão, e já estava a ponto de lhe administrar heléboro, um
tratamento tradicional para loucura — ou pelo menos é o que afirma
Gournay, talvez exagerando um pouco para maior efeito. Gournay sentia ter
encontrado o seu outro eu em Montaigne, a única pessoa com a qual tinha
verdadeira afinidade e a única que a entendia. Era a mesma experiência que
tiveram tantos leitores de Montaigne ao longo dos anos:
Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito? (Bernard Levin)

Parece que ele é o meu próprio eu. (André Gide)

Eis aqui um “você” no qual se reflete o meu “eu”; eis onde se abole
toda distância. (Stefan Zweig)

Gournay ansiava por conhecer Montaigne pessoalmente, mas, ao tentar


se informar, recebeu de volta o boato de que ele estava morto. Alguns anos
depois, em 1588, encontrando-se em Paris com a mãe, ficou sabendo que
ele ainda vivia. E não só isto, mas todo mundo falava dele, pois era o
momento de sua missão secreta entre Navarra e o rei. No auge desse drama,
Marie de Gournay ousou enviar a Montaigne um convite para visitar sua
família: um gesto nada ortodoxo para uma jovem de sua posição, dirigindo-
se a um homem mais velho e de classe hierarquicamente superior, de quem
todo mundo falava na ocasião. Certamente encantado com tanta audácia, e,
como sempre, incapaz de resistir à lisonja de uma jovem, Montaigne
aceitou o convite e foi ao seu encontro no dia seguinte.
Pelo relato de Marie de Gournay, o encontro deve ter tido um caráter de
intimidade emocional, embora não provavelmente física, pois ao fim ele
propôs muito castamente que ela se tornasse sua filha adotiva — oferta que
ela não hesitou em agarrar. Ela não diz mais nada, de modo que só podemos
imaginar a conversa que levou a isto. Teria ela demonstrado excessivo
entusiasmo quanto a um sentimento de “afinidade” com ele? Teria contado
a história do heléboro? Seria bem de acordo com seu temperamento que ela
derramasse tudo sobre ele numa torrente desconexa. Num acréscimo tardio
a Os ensaios, Montaigne relata um estranho episódio que aparentemente
ocorreu num dos encontros posteriores entre os dois. Ele viu uma jovem —
e os comentários acrescentados deixam claro que se tratava de Gournay —,

preocupada em demonstrar o ardor de suas promessas, e também sua


lealdade, ferir-se, com o estilete que trazia nos cabelos, quatro ou
cinco vezes com vigorosos golpes no braço, o que rasgou sua pele e a
fez sangrar bastante.
Fosse ou não o primeiro encontro marcado por essa intensidade que
chega à automutilação, cabe ao menos suspeitar que foi Marie de Gournay
quem efetivamente tenha conduzido a conversa. A proposta de um
relacionamento do tipo pai-filha partiu mais provavelmente dela que dele. É
possível até que ele tenha tentado tirar vantagem, sexualmente, do
entusiasmo da moça, sendo então convencido a aceitar afinal a relação
adotiva. Desde o início da leitura de Os ensaios, Gournay sentira que os
dois pertenciam espiritualmente à mesma família; pois agora a coisa se
tornava oficial. Montaigne substituiria o pai que ela havia perdido, e ela por
sua vez seria bem-recebida no pequeno círculo de mulheres que ele não
entendia direito.
Ainda que ele tenha concordado em fazer o papel do père d’alliance só
para agradá-la, o fato é que não tratou de descartá-la em seguida. O convite
de Marie para que se hospedasse com ela e sua mãe no interior da Picardia
representava para ele uma excelente oportunidade de se recuperar da
doença, distante das exigências políticas parisienses e de qualquer
probabilidade de ser novamente detido. Também lhe dava oportunidade de
trabalhar. Ele e a nova filha abraçaram quase imediatamente a tarefa de
proceder a revisões na edição de 1588 de Os ensaios. O que a deve ter
deixado empolgada: sua fantasia nunca foi envolver Montaigne numa manta
e cuidar dele tranquilamente na velhice. Ela queria que ele escrevesse, para
poder ser sua aprendiz. E sua presença provavelmente contribuiu para que
isto acontecesse: o fato de ter ao lado alguém tão entusiástico estimularia
Montaigne a retornar a Os ensaios quase imediatamente depois da
publicação, dando prosseguimento à tarefa mesmo depois de deixar a
Picardia. Estava assim dado o tom para seus últimos anos de trabalho.
Em troca, Marie de Gournay jamais poderia ser acusada de minimizar
sua alliance. Ao escrever o prefácio da edição póstuma de Os ensaios, ela
assinou como filha adotiva de Montaigne, referindo-se a ele como o homem
“que tanto me honra chamar de Pai”. E acrescentava: “Não posso, Leitor,
usar outro nome para ele, pois não sou eu mesma senão na medida em que
sou sua filha.” Em outra obra de sua própria lavra, ela escreveu:
Na verdade, se a alguém surpreende que, embora não sejamos pai e
filha senão no nome, a boa vontade que nos une transcenda na
verdade a de autênticos pais e filhos — o primeiro e mais íntimo de
todos os vínculos naturais —, que essa pessoa tente um dia acolher a
virtude dentro de si e ir ao encontro dela em um outro alguém; e então
dificilmente se espantará que ela tenha mais força e poder de
harmonizar as almas que a própria natureza.

Resta imaginar o que a verdadeira filha de Montaigne, Léonor, pensava


dessa pretensão de transcender os vínculos biológicos de família. Ela estaria
no direito de se sentir incomodada, mas aparentemente não foi o que
aconteceu. Ela e Marie de Gournay viriam a se tornar boas amigas anos
depois, e Gournay a chamava de “irmã”, como seria de se esperar, já que
tinham o mesmo pai. Quando Marie de Gournay falava de “transcender”,
provavelmente pensava na intensidade de sua comunhão com Montaigne, e
não em tratar uma rival com desdém. A única pessoa com quem
aparentemente se sentia competindo era La Boétie, havia muito morto, com
o qual não hesitava em se comparar. Sua dedicatória terminava com uma
citação de um verso de La Boétie: “E não temo que nossos descendentes
relutem em arrolar nossos nomes entre os que ficaram conhecidos pela
amizade, se pelo menos as deusas do destino assim quiserem.” E no
prefácio de Os ensaios ela escreveu: “Ele foi meu por apenas quatro anos,
não mais do que foi seu La Boétie.”
O mesmo trecho também contém uma observação estranha e talvez
reveladora sobre Montaigne: “Quando ele me elogiava, eu o possuía.” E
com toda a evidência ele a elogiava. A edição de Os ensaios preparada por
ela inclui algumas linhas nas quais Montaigne se refere a ela como sua
querida fille d’alliance, por ele amada com mais do que um amor paterno (o
que quer que isto signifique) e valorizada em seu retiro como parte do seu
próprio ser. Prossegue ele:

Ela é a única pessoa em quem ainda penso neste mundo. Se a


promessa da juventude tem algum significado, sua alma será capaz
um dia das melhores coisas, entre outras coisas perfeitas nesse tipo
mais sagrado de amizade que, segundo lemos, seu sexo ainda não foi
capaz de alcançar. A sinceridade e a firmeza de seu caráter já são
suficientes, e sua afeição, muito mais que superabundante, é de tal
ordem, em suma, que nada deixa a desejar, a não ser que sua
apreensão quanto ao meu fim, tendo em vista meus cinquenta e cinco
anos quando a conheci, não a atormente de maneira tão cruel.

Finalmente, ele fala calorosamente de sua ponderada avaliação de Os


ensaios — “ela, uma mulher, e nesta idade, tão jovem, e sozinha em seu
distrito” — e da “notável avidez com que me amava e queria minha
amizade”.
Essas frases caíram sob suspeita ao longo dos anos, pois aparecem
apenas na edição de Gournay, e não na versão alternativa e com anotações
pessoais do último Os ensaios de Montaigne, conhecida como “Exemplar
de Bordeaux”. É natural que se imagine que ela poderia tê-las inventado. O
tom parece mais Gournay que Montaigne, e, curiosamente, ela própria
apagou trechos dessa passagem numa edição posterior. Por outro lado, o
Exemplar de Bordeaux contém traços de adesivo no local onde ocorrem
essas linhas, juntamente com uma pequena cruz manuscrita por Montaigne
— o símbolo de que costumava se valer para indicar uma inserção. Uma
tira colada pode ter caído numa das ocasiões em que o exemplar foi
reencadernado nos séculos XVII e XVIII. Seja autêntico ou não o trecho,
não parece haver motivos para duvidar da afeição de Montaigne pela
discípula, com estiletes, heléboros e tudo mais.
Passado o primeiro ano, todavia, e vindo o aumento do trabalho na
Picardia, os dois mantiveram contato apenas por carta. Em abril de 1593,
Gournay disse a outro amigo literário, Justus Lipsius, que havia quase cinco
anos não se encontrava com Montaigne. Mas eles se correspondiam
regularmente, pois na época dessa carta a Lipsius ela se dizia preocupada
porque Montaigne não escrevia havia seis meses. E tinha mesmo motivos
para se preocupar: Montaigne morrera nesse intervalo, e uma derradeira
mensagem a ela enviada através de um dos seus irmãos não chegara ao
destino. Lipsius teve de dar-lhe a notícia em sua resposta. Tratou de fazê-lo
delicadamente, acrescentando: “Como aquele a quem chamava de seu pai
não mais está neste mundo, aceite-me como seu irmão.” Chocada, ela
respondeu: “Meu senhor, assim como há quem não reconheça hoje meu
rosto, temo que não reconheça meu estilo, tão radicalmente me mudou a
perda do meu pai. Eu era sua filha, e sou seu túmulo; era seu segundo ser,
sou suas cinzas.”
A essa altura, ela também vivia tempos difíceis sob outros aspectos. Sua
mãe morreu em 1591 e Marie herdou grandes dívidas da família, além da
responsabilidade pelos irmãos menores. Decidida a não aceitar um
casamento sem amor, por dinheiro, empenhou-se em viver exclusivamente
do que escrevia — uma opção difícil e quase inédita para uma mulher. Pelo
resto da vida, escreveria sobre qualquer tema que considerasse vendável —
análises de poemas e estilo, feminismo, polêmicas religiosas, a história de
sua vida —, valendo-se de todos os contatos literários a que pudesse
recorrer. Justus Lipsius foi um dos escritores para os quais se voltou em
busca de ajuda para promover seu trabalho. Mas nenhum deles seria mais
importante que o mentor ao qual seu nome estaria sempre ligado:
Montaigne.
O hábil uso da reputação dele permitiu-lhe um primeiro passo importante
em 1594, quando publicou um romance intitulado Le Proumenoir de
Monsieur de Montaigne (O passeio do Sr. de Montaigne). O conteúdo nada
tinha a ver com ele, à parte o fato de — como escreveu ela na epístola
dedicatória — ter sido inspirado por uma história que ela lhe havia contado
certo dia, quando caminhavam pelo jardim de sua família. Na verdade, a
exótica narrativa do Proumenoir foi praticamente toda roubada do livro de
outro autor. Teve grande sucesso, abrindo caminho para o livro que
efetivamente deu início à carreira de Gournay: sua grande e definitiva
edição de Os ensaios, publicada em 1595.
A ideia de transformá-la em editora e executora literária de Montaigne
aparentemente surgiu apenas após sua morte, quando a viúva e a filha
encontraram entre os papéis dele um dos seus exemplares anotados da
edição de 1588. Enviaram-no então a Gournay em Paris, para publicação.
Talvez quisessem apenas que ela o encaminhasse a uma gráfica, mas ela
interpretou a coisa como uma importante encomenda editorial, pondo mãos
à obra. A tarefa haveria de se revelar gigantesca, tão árdua que continua
intimidando editores mais experientes e bem-preparados que ela. Ainda
hoje, ninguém chega a uma conclusão a respeito, tantas são as variantes, tão
complexo é o texto e tão grande é o trabalho de identificar todas as
referências e alusões de Montaigne. Mas o fato é que Gournay realizou o
trabalho de maneira brilhante. Talvez tenha cedido a uma tentação ao
acrescentar aquelas estranhas linhas a seu próprio respeito, ou quem sabe
eram realmente autênticas, mas globalmente ela se mostrou mais
preocupada com a precisão que a maioria dos editores da época.
Exemplares ainda hoje existentes da primeira impressão do livro mostram
que ela continuou fazendo correções de última hora a tinta quando as
páginas já saíam da gráfica, assim como depois da publicação — numa
clara indicação do seu cuidado.
A partir de então, ela seria menos uma filha de Montaigne que uma mãe
adotiva de seu Os ensaios. “Tendo perdido o pai”, escreveu, “Os ensaios
precisa de proteção”. Ela editou o livro mas também se tornou sua
divulgadora, defendendo-o, promovendo-o e — nessa primeira edição —
dotando-o de um longo e combativo prefácio empenhado em rebater
antecipadamente qualquer pretensão de crítica. Seus argumentos eram
quase sempre racionais e bem-estruturados, mas ela os temperava com
muita emoção. Frente aos que consideravam vulgar ou impuro o estilo de
Montaigne, ela escrevia: “Quando o defendo dessas acusações, sou toda
desprezo.” E no caso da alegação de que ele escrevia desorganizadamente:
“Não se pode tratar de grandes questões com inteligência pequena (...) Não
temos aqui o conhecimento elementar de um aprendiz, mas o Corão dos
mestres, a quintessência da filosofia.”
E tampouco se mostrava ela satisfeita quando as pessoas elogiavam Os
ensaios sem muita convicção. “Quem quer que diga de Cipião que é um
capitão nobre e de Sócrates que é um homem sábio lhes estará fazendo mais
injustiça que alguém que nada diz deles.” Não se pode escrever em tom
moderado sobre Montaigne: “A excelência supera todo limite.” (O que
contradiz a ideia de moderação expressa por Montaigne.) Temos de nos
deixar “arrebatar”, como aconteceu com ela. Por outro lado, devemos ser
capazes de explicar por que fomos arrebatados, comparando-o ponto a
ponto com os antigos e mostrando exatamente em que se equipara a eles e
onde se mostra superior. Os ensaios sempre representou para Gournay o
teste ideal de inteligência. Depois de perguntar a alguém o que achava do
livro, ela deduzia o que podia pensar da pessoa. Diderot faria num século
posterior observação quase idêntica a respeito de Montaigne: “Seu livro é a
pedra de toque de uma mente equilibrada. Se alguém não é capaz de
apreciá-lo, podemos estar certos de que tem alguma deficiência do coração
ou do entendimento.”
Mas Marie de Gournay tinha o direito de esperar muito dos leitores, pois
ela própria era uma excelente leitora de Montaigne. Apesar dos seus
excessos, tinha uma fina percepção dos motivos pelos quais Os ensaios se
encaixava perfeitamente entre os clássicos. Numa época em que muitos
insistiam em considerar o livro apenas uma coleção de ditos estoicos —
uma interpretação válida, dentro dos seus limites —, ela o admirava por
razões menos habituais: o estilo, a estrutura errante, a disposição de tudo
revelar. Foi em certa medida o sentimento, em Gournay, de que as pessoas
ao seu redor não estavam entendendo nada que acabou gerando o perene
mito de um Montaigne que nascera na época errada, um escritor que teve de
esperar para ver o seu valor reconhecido pelos leitores. De um autor que se
tornara muito popular sem praticamente se esforçar para isso, ela
transformou Montaigne num gênio incompreendido.
Gournay reconhecia de bom grado estar à sombra de Montaigne: “Não
consigo dar um passo, seja escrevendo ou falando, sem me ver seguindo
suas pegadas.” Na realidade, sua personalidade transparece com toda a
força, não raro de maneiras conflitantes com as dele. Ao exaltar, por
exemplo, uma virtude montaigniana como a moderação, ela o faz sem a
menor moderação. Preconizando a arte do distanciamento estoico e da
tranquila fluidez na vida, recorre a um tom emocional e abrasivo. Isto faz da
sua edição uma fascinante luta corporal entre dois escritores, exatamente
como acontece entre Montaigne e Florio e mesmo entre Montaigne e La
Boétie, nos primeiros projetos de conversa que viriam a se transformar em
Os ensaios.
Sob muitos aspectos, era esta uma parceria literária do mesmo tipo, só
que muito complicada pelo fato de Marie de Gournay ser uma mulher.
Incomodava-a o fato de sua parceria nunca ter sido levada tão a sério
quanto outras relações dessa natureza — como tampouco ela era levada
muito a sério. O ridículo a acompanhou ao longo de toda a vida; ela nunca
conseguiu livrar-se dele. Em vez disso, se enfurecia. Parte dessa fúria
encontra expressão no Prefácio de Os ensaios: em certos momentos, a
autora parece saltar das páginas para agarrar pela gola os leitores do sexo
masculino e invectivá-los. “Abençoado és de fato, Leitor, se não pertences a
um sexo ao qual está vedada toda posse, ao qual está vedada a liberdade, ao
qual foram vedadas todas as virtudes.” Os homens mais presunçosos são
ouvidos com respeito, em virtude de sua barba, mas quando ela oferece
alguma contribuição todos sorriem de maneira condescendente, como se
dissessem: “É uma mulher falando.” Se Montaigne tivesse sido submetido a
semelhante tratamento, também poderia ter reagido com um sorriso, mas
Gournay não tinha esse dom. Quanto mais ela dava vazão a sua indignação,
mais as pessoas riam. Mas é essa impressão de tensão e angústia que a torna
uma escritora interessante. O Prefácio não é apenas a mais antiga
introdução dada a público da obra canônica de Montaigne; é também um
dos primeiros e mais eloquentes panfletos feministas do mundo.
Isto pode parecer estranho, tratando-se de um texto de introdução a
Montaigne, que não era lá nenhum grande feminista. Mas o fato é que o
feminismo de Gournay estava estreitamente associado ao seu próprio
“montaignismo”. Sua convicção de que homens e mulheres eram iguais —
sem superioridade de parte a parte, apesar das diferenças de experiência e
situação — estava afinada com o relativismo dele. Ela se inspirou na
tendência de Montaigne a questionar o senso comum social e saltar daqui
para ali entre os diferentes pontos de vista. Para Gournay, se os homens
pudessem valer-se da imaginação para ver o mundo tal como o enxergam as
mulheres, ainda que por alguns minutos, aprenderiam o suficiente para
mudar para sempre o seu comportamento. Mas essa mudança de perspectiva
era precisamente aquilo de que eles nunca se mostravam capazes.
Pouco depois da publicação, infelizmente, Gournay mudou de ideia a
respeito de seu cáustico Prefácio. A essa altura, ela estava hospedada na
propriedade de Montaigne, convidada pela viúva, pela mãe e a filha do
escritor, que aparentemente a haviam adotado por amizade, lealdade ou
simpatia. Da residência delas, ela escreveu a Justus Lipsius em 2 de maio de
1596, dizendo que só escrevera o Prefácio por causa da enorme dor
provocada pela morte de Montaigne, e que desejava retirá-lo. O tom
excessivo nele adotado, dizia ela agora, resultava de “uma violenta febre da
alma”. Pouco depois, enviando exemplares a editores de Basileia,
Estrasburgo e Antuérpia, ela eliminou o Prefácio, substituindo-o por uma
nota breve e perfeitamente indiferente de apenas dez linhas. O original
ficou no fundo da gaveta de Gournay, reaparecendo alguns de seus trechos
em forma diferente numa edição de 1599 do Proumenoir. Mais tarde ainda,
ela se arrependeu completamente daquele arrependimento, quem sabe
imbuída de um tardio senso montaignesco de desafio: as últimas edições de
Os ensaios publicadas em sua vida restabelecem o Prefácio em toda a glória
de seus excessos.
Todas essas sucessivas edições de Os ensaios, juntamente com uma série
de obras de menor importância e não raro mais polêmicas, ajudaram
Gournay a atravessar seus anos mais avançados. Mal ou bem, ela fez
exatamente o que pretendia: viveu da sua pena. Havia agora retornado a
Paris, vivendo num simples sótão com uma criada fiel, Nicole Jamyn.
Eventualmente promovia um salon e estabeleceu laços de amizade com
alguns dos homens mais interessantes da época, entre eles libertins como
François le Poulchre de la Motte-Messemé e François de La Mothe Le
Vayer. Muitos suspeitavam que ela própria fosse uma libertine e livre-
pensadora em matéria religiosa. Em seu texto autobiográfico Peincture de
moeurs, ela de fato escreveu que carecia da profunda fé que gostaria de ter,
insinuando, talvez, que fosse completamente descrente.
Os livros de Gournay vendiam bem, mas a publicidade que favorecia
essas vendas não raro assumia a forma de escândalo ou zombaria em
público. Tais reações nunca se voltavam para Os ensaios, pelo menos não
enquanto ela ainda estava viva, nem mesmo para seus vários textos
feministas. Basicamente, ela era ridicularizada por seu estilo de vida fora do
comum ou por suas obras polêmicas e menos importantes. Vez por outra,
conseguia algum relutante respeito. Em 1634, foi ela uma das fundadoras da
influente Académie française, mas sobre esse feito projeta-se a sombra de
duas grandes ironias. Uma delas é o fato de, sendo mulher, nunca ter podido
participar das reuniões da instituição. A outra é que a Académie esteve
associada durante séculos precisamente ao estilo árido e perfeccionista
detestado por Gournay. A instituição se eximia de qualquer identificação
tanto com as ideias sobre linguagem literária por ela nutridas quanto com
seu amado Montaigne.
Gournay morreu em 13 de julho de 1645, pouco antes de completar 80
anos. O epitáfio em sua sepultura a descrevia exatamente como seria do seu
gosto: uma escritora independente, filha de Montaigne. Como no caso dele,
sua reputação póstuma seria distorcida em formas as mais estranhas com as
mudanças de pensamento e moda. O estilo exuberante de que ela gostava
caiu em desgraça por muito tempo. No século XVIII, escreveria um
observador: “Nada poderá equiparar-se ao louvor que ela mereceu em vida,
mas já não podemos fazer-lhe esse elogio, e quaisquer que tenham sido seus
méritos como pessoa, suas obras não são mais lidas por ninguém, tendo
caído num esquecimento do qual jamais voltarão a sair.”
A única coisa que continuava vendendo bem era sua edição de
Montaigne. Mas isto por sua vez gerava inveja e ciúmes, e os séculos XVIII
e XIX começaram a vê-la como uma parasita de Montaigne. Essa
interpretação tinha algo de verdadeiro, pois ela de fato valeu-se de
Montaigne para sobreviver, mas ignorava que em grande medida ela
também o havia promovido e defendido. A absoluta intensidade dessa
devoção podia causar suspeitas. No século XX, um editor de Montaigne,
Maurice Rat, ainda se referia a ela como “uma solteirona grisalha (...) que
cometeu o erro de viver demais” e cuja “atitude agressiva ou irascível”
revelou-se mais prejudicial que benéfica. Até o ponderado estudioso Pierre
Villey, que geralmente a defendia, não resistia às vezes a fazer graça,
rejeitando sua tentativa de comparar a própria amizade com Montaigne à
que o ligava a La Boétie. De maneira geral, a amizade Gournay/Montaigne
continuaria sendo julgada por critérios diferentes dos que eram aplicados à
amizade Montaigne/La Boétie. Esta última é louvada, desconstruída,
teorizada, analisada, erotizada e psicanalisada nos mínimos detalhes. Já a
“adoção” de Gournay há muito é tratada com pouco mais que um daqueles
sorrisos condescendentes que tanto a irritavam.
Nos últimos anos, muita coisa mudou, sobretudo com a ascensão do
feminismo, que identifica nela uma pioneira. Seu primeiro grande defensor
nos tempos modernos foi um homem, Mario Schiff, que escreveu um
estudo biográfico em 1910 e publicou novas edições de suas obras
feministas. Desde então, o caminho tem sido sempre ascendente. Marjorie
Henry Ilsley concluía sua biografia A Daughter of the Renaissance (Uma
filha do Renascimento), de 1963, com um capítulo intitulado “A fortuna em
ascensão de Marie de Gournay”; desde então, ela tem subido cada vez mais
alto, com a publicação regular de novas biografias e edições críticas, além
de ficcionalizações de sua vida.
Ainda mais recentemente, mudou também a atitude em relação a sua
edição de 1595 de Os ensaios — que caiu em desuso por aproximadamente
cem anos, depois de três séculos de domínio incontestado. Após ir ao fundo
do poço no século XX, sendo lembrada apenas em algumas notas de
rodapé, ela voltou à crista da onda, parecendo oferecer a mesma formidável
capacidade de resistência da própria Marie de Gournay.

GUERRAS EDITORIAIS

A rejeição da edição de Gournay tornou-se mais acentuada no exato


momento em que sua reputação geral começou a se recuperar. Esse estranho
fato tem uma explicação simples. Até então, seu texto não tinha
concorrência; não vinha ao caso o que os leitores pensavam da sua
personalidade. No fim do século XVIII, contudo, apareceu um texto
diferente nos arquivos de Bordeaux: um exemplar da edição de 1588, com
cerrada anotação manuscrita do próprio Montaigne e também de secretários
e assistentes, entre eles a própria Marie de Gournay.
Esse “Exemplar de Bordeaux”, como ficaria conhecido, não atrairia
muita atenção até o fim do século XIX, quando os estudiosos começaram a
desenvolver o gosto pela análise minuciosa de textos dessa natureza. Ficava
evidente então que o Exemplar de Bordeaux e a edição de Gournay de 1595
eram semelhantes grosso modo, mas não nos detalhes. Constatavam-se
milhares de diferenças, espalhadas por todo o livro. Destas, cerca de uma
centena era de natureza a modificar o sentido, ao passo que algumas poucas
eram consideráveis, entre elas o trecho louvando a própria Marie de
Gournay. Na verdade, todas as diferenças eram igualmente importantes,
pois indicavam que no fim das contas Gournay não fora uma editora tão
cuidadosa assim. Mostrara-se na melhor das hipóteses incompetente, e, na
pior, fraudulenta. Esta conclusão levou a uma reação anti-Gournay, seguida
de uma série de guerras editoriais que se prolongaram pelo início do século
XX, tendo sido retomadas hoje, depois de uma trégua.
A batalha seguia as regras da guerra clássica, centrada no cerco às praças
fortes mais importantes e no acesso aos suprimentos. Exércitos de copistas
e editores rivais atacavam o Exemplar de Bordeaux, trabalhando mais ou
menos simultaneamente, espionando uns aos outros e fazendo o possível
para impedir o acesso dos concorrentes ao precioso objeto. Cada qual
inventava uma técnica própria para a leitura da tinta apagada e para a
representação dos diferentes níveis de acréscimos e ampliações, assim
como das diferentes mãos. Alguns ficavam tão atolados na metodologia que
não conseguiam avançar. Um dos primeiros copistas, Albert Caignieul,
escreveu a seus chefes na Biblioteca de Bordeaux explicando por que
demorava tanto para produzir algo:

A separação das diferentes etapas foi efetuada pela observação e


análise de fatos materiais claros (...) Consideramos que essa
separação era devidamente efetuada quando se cumpriam duas
condições: 1. levar em conta todos os elementos fornecidos pela
análise. 2. levar em conta apenas esses elementos. Os resultados
demonstraram a eficácia do método (...)

Alguns anos depois, frente a nova cobrança — já que ainda não havia o
menor sinal de uma transcrição completa —, ele recorreu a nova tática:

Tudo que ainda resta fazer já está basicamente preparado e poderá ser
concluído em período relativamente breve, o qual, no entanto, seria
difícil definir, em vista de problemas especiais que se manifestam
repentina e frequentemente.

O projeto Caignieul não deu em nada, mas outros chegaram a melhores


resultados. No início da década de 1900, três versões diferentes estavam em
andamento, uma delas uma “Edição Fototípica” que se limitava a reproduzir
os volumes em fac-símile. As duas outras eram a Edição Municipal,
dirigida pelo pretensioso erudito Fortunat Strowski, e a Edição Tipográfica,
dirigida pelo não menos dogmático e difícil Arthur-Antoine Armaingaud.
Os dois se revezavam na ultrapassagem um do outro, como dois cavalos de
corrida muito lentos numa pista longa. Strowski venceu a primeira etapa,
publicando seus dois primeiros volumes em 1906 e 1909. Jactou-se então
de que nenhuma outra edição seria necessária, convencendo o arquivo de
Bordeaux a impor a Armaingaud difíceis condições de trabalho, entre elas
temperaturas ambientes de congelar os dedos e a exigência de que todas as
páginas fossem lidas através de espessos vidros verdes ou vermelhos, para
protegê-las da luz. Armaingaud foi em frente; seu primeiro volume foi
publicado em 1912 — embora ele lhe atribuísse a data falsa de 1906, para
mandar para a posteridade a mensagem de que viera a lume ao mesmo
tempo que o de Strowski.
O jogo teve prosseguimento. Durante algum tempo, Armaingaud tomou
a frente, mas seus volumes subsequentes ficaram emperrados. Ele também
se isolou, com sua tendência a promover opiniões incomuns a respeito de
Montaigne, notadamente a ideia de que ele seria o verdadeiro autor de Da
servidão voluntária. Tal como Marie de Gournay antes e muitos teóricos
literários depois dele, Armaingaud gostava de imaginar que Montaigne
comportava níveis secretos de significado, aos quais só ele teria acesso. No
sarcástico comentário de um de seus inimigos, “só ele o conhece em
profundidade, só ele está a par de seus segredos, só ele pode falar a seu
respeito, em seu nome, só ele pode interpretar seu pensamento”. Mas pelo
menos Armaingaud mantinha uma produção mínima, ao passo que Strowski
se desviou para outros projetos, deixando de publicar o último volume de
sua edição. As autoridades de Bordeaux que o financiavam acabaram
incumbindo do trabalho François Gébelin, que editou o derradeiro volume
em 1919 — cinquenta anos após o surgimento da ideia inicial. Volumes de
comentários e indexação viriam a público em 1921 e 1933, a cargo do
arguto montaignista que agora assumia a direção do projeto, Pierre Villey,
cujo feito terá sido tanto mais digno de nota por ser ele cego desde os três
anos de idade. Ele concluiu a empreitada a tempo das comemorações em
Bordeaux do quarto centenário do nascimento de Montaigne em 1933 —
para ser esquecido pelos organizadores dos festejos, que não o convidaram.
Enquanto isso, Armaingaud também concluía sua versão, de maneira que o
mundo finalmente era brindado com duas belas transcrições de Os ensaios.
Os dois livros tinham uma característica fundamental em comum: depois de
lutar tanto para ter acesso físico ao Exemplar de Bordeaux, os editores
estavam decididos a se aferrar a ele, ignorando quase inteiramente a edição
de fácil acesso publicada por Marie de Gournay. Também compartilhavam
uma tendência altamente antimontaignesca a se considerar fonte da palavra
final e incontestável em todas as questões de erudição textual de Os
ensaios.
Essas duas edições dariam o tom pelo resto do século. A partir de então,
a versão de 1595 só seria usada como fonte de eventuais variantes
vocabulares, assinaladas em notas de pé de página. E mesmo isto só era
feito em casos de diferenças significativas. Caso contrário, as pequenas
variantes eram tomadas como indício de insuficiente trabalho editorial da
parte de Marie de Gournay e do estado de deturpação do texto de 1595.
Presumia-se que Gournay tivesse feito exatamente o que eles haviam feito
— transcrever o Exemplar de Bordeaux —, mas de maneira atabalhoada.
Ainda em 1866, todavia, outra explicação fora apresentada por Reinhold
Dezeimeris. Gournay podia ter feito um excelente trabalho editorial, dava
ele a entender, só que em outro exemplar. Levou algum tempo para que essa
ideia se assentasse. Uma vez feito isto, ela atrairia uma quantidade cada vez
maior de adeptos, alguns dos quais investigaram detalhadamente a maneira
como a troca de exemplares poderia ter ocorrido.
Se esta teoria tiver fundamento, a história provavelmente começou com
o trabalho que Montaigne fez durante vários anos no Exemplar de
Bordeaux, como sempre imaginaram seus adeptos. A certa altura, contudo,
ele ficou tão cheio de anotações que praticamente já não podia ser usado.
Frustrado com seu estado de confusão, Montaigne mandou fazer um novo
exemplar — que não chegou até nós, mas passa aqui a ser chamado de
“Cópia”, por conveniência. Ele continuou a fazer acréscimos nesse novo
exemplar, em sua maioria de menor importância, pois a essa altura já estava
se aproximando do fim da vida. Ao morrer, a Cópia — e não o Exemplar de
Bordeaux — foi enviada a Marie de Gournay para que a editasse e
publicasse. Isto explicaria o fato de não ter chegado até nós: tanto os
manuscritos quanto as edições anteriores anotadas pelos autores
costumavam ser destruídos no processo de impressão. Enquanto isso, não
utilizado o Exemplar de Bordeaux permanecia intacto.
A hipótese tem bases claras, explicando tanto a sobrevivência do
Exemplar de Bordeaux quanto suas divergências textuais. Ela vai ao
encontro do que sabemos das práticas editoriais de Marie de Gournay: não
seria da sua índole atentar minuciosamente para correções de última hora,
como é o caso, se parecia tão descuidada com seu próprio trabalho. Sendo
aceita a explicação, as consequências são dramáticas. Significa que a
publicação feita por Gournay em 1595, e não o Exemplar de Bordeaux, é
que pode ser considerada a mais próxima de uma versão final de Os
ensaios, tal como o desejaria Montaigne, e, portanto, que a maior parte dos
esforços editoriais do século XX não passa de um equívoco.
Naturalmente, esse debate mergulhou o mundo de Montaigne em
turbulência, provocando um conflito tão acirrado quanto os de um século
atrás. Certos editores inverteram completamente a hierarquia, relegando as
variantes do Exemplar de Bordeaux à humilde posição das notas de rodapé
por tanto tempo ocupada por Gournay; é o caso, particularmente, da edição
Pléiade de 2007, editada por Jean Balsamo, Michel Magnien e Catherine
Magnien-Simonin. Outros estudiosos continuam favorecendo o Exemplar
de Bordeaux, que se impõe particularmente numa edição realizada em 1998
por André Tournon, superando edições anteriores em sua atenção aos mais
microscópicos detalhes desse texto. Ela incorpora a pontuação e os sinais
do próprio Montaigne, até então atenuados ou modernizados — como se
quisesse enfatizar sua proximidade física com o manuscrito de Montaigne e
suas intenções. É como se ele ainda estivesse com a pena na mão, pingando
tinta.
Quando a poeira assentar — presumindo-se que isto aconteça —, um
texto de referência será estabelecido para o próximo século. Serão várias as
consequências para os leitores de Montaigne. É provável que as novas
edições deem preferência a um texto ou outro, em vez de amalgamá-los, já
que é hoje tão amplamente reconhecida a importância das variações. Se
Gournay levar a melhor, uma página de Montaigne também pode ficar
parecendo mais simples, pois poderia reduzir o desejo da farta distribuição,
visualmente perturbadora, das letras “A”, “B” e “C”, indicando diferentes
camadas de composição tipográfica. Elas continuariam apresentando
interesse, mas o fato é que foram introduzidas por editores que trabalhavam
com o Exemplar de Bordeaux, motivados em parte pelo desejo de deixar
plenamente visível seu árduo trabalho. A própria Gournay nunca pensou em
fazê-lo; como tampouco Montaigne. Também haveria consequências para
os leitores não francófonos de Montaigne. Uma nova tradução inglesa seria
urgentemente necessária, já que as duas outras, por sinal excelentes, que
atualmente dominam o mercado, feitas por Donald Frame e M. A. Screech,
são nitidamente produtos da era do Exemplar de Bordeaux. Voltaríamos
predominantemente para o texto de base usado por John Florio, Charles
Cotton e a dinastia Hazlitt.
Seja como for, é improvável que seja este o fim da história. As disputas
terão prosseguimento, talvez apenas em torno da distribuição das vírgulas.
Seria difícil, a esta altura, manter a arrogante convicção strowskiana da
possibilidade de uma edição definitiva perfeita. Na verdade, jamais se
poderá dizer que Os ensaios efetivamente está concluído. O homem
Montaigne pode ter pendurado as botas e deixado de lado a pena, mas,
enquanto leitores e editores discordarem a respeito dos resultados, o autor
Montaigne jamais terá de fato lançado o ponto final à página.

MONTAIGNE REMIXADO E EMBABUINADO

Montaigne sabia perfeitamente que, a partir do momento em que um livro é


publicado, perde-se o controle dele. Outras pessoas poderão fazer o que
bem entenderem: poderão editá-lo das mais estranhas formas ou impor
interpretações com as quais jamais sonharíamos. Até um manuscrito inédito
pode fugir ao controle, como aconteceu com o livro de La Boétie, Da
servidão voluntária.
Na época de Montaigne e La Boétie, a ausência de uma lei de direitos
autorais e a valorização da cópia como técnica literária davam uma
liberdade ainda maior que a que se poderia esperar hoje em dia. Qualquer
um que se encantasse com trechos de Os ensaios podia publicá-los
separadamente; podia também resumir ou fazer acréscimos ao todo,
eliminar seções que desagradassem, estabelecer uma nova ordem ou
publicar o livro com outro título. Era possível, por exemplo, pinçar uma
dúzia de capítulos e reuni-los num pequeno volume de fácil manuseio,
prestando um valioso serviço aos leitores de bíceps insuficientemente
fornidos para o tomo integral. Um serviço de simplificação também poderia
ser oferecido: defrontando-se com vinte páginas de divagações de
Montaigne, um redator decidido como “Honoria” podia reduzi-las a duas
páginas que — uma noção nada montaignesca! — aparentemente tratariam
do tema anunciado no título.
Certos editores se têm mostrado ainda mais intervencionistas. Em vez de
retalharem trechos escolhidos aqui e ali, eles arregaçaram as mangas e
puseram a mão na massa em Os ensaios, desmembrando-o em pedaços
como um frango para transformá-lo numa entidade completamente
diferente. Seu principal representante é também o mais antigo e mais
famoso: Pierre Charron, contemporâneo e amigo de Montaigne, que
produziu um best-seller seiscentista intitulado La Sagesse (A sabedoria).
Montaigne provavelmente não se teria reconhecido no livro, mas se trata
essencialmente de Os ensaios com outro nome e em formato diferente. Ele
tem sido considerado uma “remontagem”, e também poderia ser chamado
de “remixagem”, mas nenhum dos termos deixa explícito o quanto o
espírito original foi alterado. Charron inventou um Montaigne isento de
detalhes idiossincráticos, citações ou digressões, de asperezas e revelações
pessoais de qualquer espécie. Deu aos leitores algo com que pudessem
discutir ou concordar, se quisessem: um conjunto de afirmações que já não
se eximiam a interpretações nem evaporavam como fumaça. A partir das
divagações de Montaigne sobre um tema como a relação dos seres humanos
com os animais, ele montou esta clara estrutura:

1. Características comuns aos animais e aos seres humanos


2. Características não compartilhadas por seres humanos e animais.
1. Características vantajosas para os seres humanos
2. Características vantajosas para os animais
1. Gerais
2. Particulares
3. Características de vantagem contestável.

Não deixa de ser impressionante — e prosaico, tão prosaico que La Sagesse


teve enorme sucesso. Encorajado, Charron condensou ainda mais o livro,
publicando uma versão abreviada, o Petit traité de la sagesse. Também
neste caso as vendas foram boas: os dois livros tiveram numerosas edições.
À medida que avançava o século XVII, aumentava constantemente o
número de leitores que encontravam seu Montaigne em forma charronizada,
o que em parte explica que pudessem entender e lidar com seu ceticismo
pirrônico de maneira tão analítica. (Se Pascal ainda ficava enfurecido com
seu estilo evasivo, foi por ter lido o original.) Marie de Gournay, entretanto,
não aprovou as iniciativas de Charron. No Prefácio de sua edição de 1635
de Os ensaios, ela o chamava de “mau copista”, observando que a única
coisa que poderia recomendar sua leitura era o fato de ele lembrar ao leitor
a genialidade do autêntico Montaigne.
Os sucessores de Charron nos séculos XVII e XVIII procederam a
remixagens ainda mais profundas de Montaigne, chegando às vezes a
remixar o próprio Charron. Enquanto Os ensaios ainda estava no Índex, as
remixagens e remontagens representavam a única possibilidade de publicar
o livro na França. O mercado foi então inundado com Montaignes muito
abreviados e sem o devido crédito autoral, ou com obras de títulos
evocando essências purificadas: L’Esprit des Essais de Montaigne (O
espírito dos Ensaios de Montaigne) ou Pensées de Montaigne (Pensamentos
de Montaigne). Esta última versão era de tal maneira expurgada que o livro
se resume a 214 páginas de formato pequeno, introduzidas pela observação
“Existem poucos livros tão ruins que nada de bom possa ser encontrado
neles, e poucos tão bons que nada contenham de ruim”.
A condensação de obras é uma prática imemorial. Ainda hoje prosperam
na indústria editorial as reduções de grandes obras, não raro com títulos
como “Edição Compacta”. Um representante de um desses
empreendimentos na Grã-Bretanha declarou: “Moby Dick deve ter sido
leitura difícil em 1850 — em 2007 é praticamente impossível abrir caminho
por suas páginas.” Mas o risco de cortar gordura demais em Moby Dick é
que acabe não sobrando nada da baleia. Da mesma forma, o “espírito” de
Montaigne reside precisamente naqueles trechos que os editores mais se
apressam a deixar no chão da sala de montagem: os desvios, os apartes, as
mudanças de ideia e seu perene movimento de um pensamento a outro. Não
surpreende, assim, que ele próprio fosse levado a declarar que “qualquer
resumo de um bom livro é um resumo burro”.
Mas Montaigne também sabia que a leitura sempre envolve algum
esforço de seleção. Era o que fazia ele próprio sempre que pegava um livro
para ler, e o fazia ainda mais decididamente se acabasse por deixá-lo de
lado, entediado. Montaigne só lia o que lhe interessava; seus leitores e
editores fazem o mesmo com ele. Toda leitura do livro acaba se
transformando num Esprit des Essais de Montaigne, até mesmo as mais
eruditas.
Na verdade, estas se mostram mais tendentes a isto que qualquer outro
tipo de leitura. É impressionante a maneira como os críticos modernos
parecem remixar e remodelar um Montaigne que se parece com eles
próprios, não só individualmente, mas como espécie. Assim como os
românticos descobriam um Montaigne romântico, os moralistas vitorianos
encontravam um Montaigne moralista e os ingleses em geral desvendavam
um Montaigne inglês, assim também os críticos “desconstrucionistas” ou
“pós-modernos” que se multiplicaram no fim do século XX (entrando pelo
XXI) deparam satisfeitos exatamente com aquilo que já estavam
predispostos a encontrar: um Montaigne desconstrucionista e pós-moderno.
Esse tipo de Montaigne tornou-se tão familiar ao olhar crítico
contemporâneo que é preciso certo esforço para tomar distância e enxergá-
lo pelo que realmente é: um artefato, ou pelo menos um remix criativo.
Os pós-modernistas encaram o mundo como um sistema eternamente
cambiante de significados, e assim se concentram num Montaigne que fala
do mundo como uma branloire dançante, ou que diz que os seres humanos
são “diferenciados e ondulantes” e “duplos em nós mesmos”. Eles
consideram impossível o conhecimento objetivo, sentindo-se portanto
atraídos pelos textos de Montaigne sobre perspectiva e dúvida. (Este livro é
tão suscetível a tais tentações quanto qualquer outro, sendo como é produto
do seu tempo.) É algo sedutor, lisonjeiro. Olhamos para nosso exemplar de
Os ensaios como a rainha de Branca de Neve e os sete anões se olhando no
espelho. Antes mesmo que haja tempo de fazer a pergunta do conto de
fadas, o espelho já devolve: “Você é a mais bela de todas.”
Encontramos na recente teoria crítica uma característica que a torna
inusitadamente sujeita a esse efeito do espelho mágico: sua tendência a falar
do texto, e não do autor. Em vez de se perguntar o que Montaigne
“realmente” queria dizer ou investigar contextos históricos, os críticos têm
investigado basicamente a rede independente de associações e significados
na página escrita — e ela pode ser lançada como uma grande rede de pesca,
para capturar praticamente qualquer coisa. Esta não é uma característica
exclusiva do estrito pós-modernismo. Os recentes críticos psicanalíticos
também aplicam suas análises a Os ensaios propriamente dito, e não a
Montaigne, o homem. Há inclusive os que tratam o livro como uma
entidade que tem seu próprio subconsciente. Assim como um analista pode
ler os sonhos de um paciente para chegar ao que está por trás deles, assim
também um crítico pode investigar a etimologia, os sons, os lapsos e até os
erros tipográficos de um texto para descobrir níveis ocultos de significado.
Admite-se que não houve da parte de Montaigne a intenção de incluí-los,
mas isto não importa, pois o texto tem suas próprias intenções.
Dessa corrente de pensamento derivaram leituras que, à sua maneira,
revelam-se tão barrocas e belas quanto os próprios textos de Montaigne.
Para destacar um dos exemplos mais interessantes, “Cidades amamentadas:
Montaigne em Paris e Roma”, de Tom Conley, apodera-se de uma simples
observação de um dos ensaios de Montaigne, “Da vaidade”: a de que ele
soube da existência de Roma antes de tomar conhecimento do Louvre em
Paris. “Louvre”, o nome do palácio real da França na época, assemelha-se à
palavra francesa louve, “loba”. Para Conley, isto mostra a associação
subconsciente do texto com a loba que amamentou os gêmeos fundadores
de Roma, Rômulo e Remo. Suas bocas se abriam para sugar; da mesma
forma, abrimos nossa perspectiva a respeito de cidades como Roma e Paris
ao pensar sobre a maneira como sobreviveram ao longo dos séculos. A boca
abre esta perspectiva; a abre, que em francês é l’ouvre. Desse modo,
quando Montaigne menciona o Louvre na mesma frase que Roma, seu texto
revela uma imagem oculta na qual “os lábios do ensaísta se fecham em
torno de um mamilo real”.
A imagem da sucção nos leva aos seios, que se multiplicam por toda
Roma na forma dos muitos belvederes e cúpulas da cidade. “Bicos erógenos
que se elevam no horizonte da cidade são assimilados a uma multiplicidade
de pontos de nutrição.” A visão dos lábios de Montaigne torna-se ainda
mais estranha:

Montaigne suga de cima o bico ereto do templo de Jupiter Optimus


Maximus na Colina Saturnina de Roma ao contrair os lábios por
baixo dos mamilos da loba fundadora.
Tudo isto pode ser encontrado no comentário de Montaigne sobre o
Louvre — mas ainda não é tudo. No mesmo ensaio, Montaigne acrescenta:
“Tenho trazido mais na cabeça [plus en teste] as capacidades e fortunas de
Luculo, Metelo e Cipião que as de qualquer outro homem.” Por
insignificante que possa parecer a afirmação, tester ou teter, em francês,
significa “amamentar”. Os três heróis clássicos podem ser visualizados
como retratos, talvez incrustados em moedas, que Montaigne leva à boca:
“qu’il teste”. Uma grande “sucção e vazão de espaço e tempo” flui, assim,
por essas poucas páginas.
E temos mais ainda. Montaigne escreve nesse ensaio que ficou
“embabuinado” pela história romana — embabouyné significando
“encantado” ou “enfeitiçado”, mas também “amamentado”. A palavra
francesa torna-se ainda mais sugestiva se for lida como “en bas bou(e) y
n(ais)”, significando “lá em baixo na lama eu nasci”. Temos aqui mais uma
referência aos dois bebês e à loba, pois eles tiveram de se abaixar em meio
à lama do Tibre para mamar nela. Como a lama é mole e marrom, é como
se víssemos o Montaigne embabuinado resvalando para “um mundo pré-
simbólico de odor e excremento”.
O ensaio de Conley é em si mesmo fascinante, ou embabuinante — e ele
não está apenas jogando com palavras, como Rômulo e Remo atirando lama
do Tibre para todo lado. Nem pretende dizer que Montaigne “realmente”
tivesse a ideia de mamilos na cabeça ao escrever sobre Roma. O objetivo é
identificar uma rede de associações, encontrar em algumas poucas palavras
aparentemente simples e diretas do texto um significado tão envolvente e
revelador quanto um sonho. O resultado oferece uma beleza onírica própria,
e não temos por que ficar aborrecidos se ela parece ter pouca relação com
Montaigne. Como dizia Montaigne a respeito de Plutarco, cada linha de um
texto rico como Os ensaios está cheia de pistas indicando “aonde devemos
ir, se quisermos”. Os críticos modernos levam isto muito a sério.
E o tempo todo o verdadeiro paciente no divã do analista — aquele cujos
sonhos clamam por uma interpretação — não é o texto de Os ensaios nem a
pessoa de Montaigne, mas o crítico. Ao tratar o texto de Montaigne como
um manancial de pistas para algo desconhecido e ao mesmo tempo separar
essas pistas do contexto original, esses detetives literários submetem-se a
um conhecido truque de abertura do subconsciente. É exatamente a mesma
técnica usada por uma vidente ao expor folhas de chá numa xícara ou um
psicólogo aplicando um teste de Rorschach. Um campo aleatório de pistas é
estabelecido, longe de seu contexto convencional, e se vê então o que surge
na mente do observador. A resposta, inevitavelmente, será algo pelo menos
tão esotérico e extravagante quanto L’Esprit des Essais de Montaigne.
Lamentavelmente, para quem aprecia tais coisas, essa tendência da
moderna teoria crítica — a derradeira incursão dessa nossa serpenteante
turnê pela história da recepção de Montaigne — já parece estar entrando
para a história. Uma reação se tem esboçado nos últimos anos, em lenta
mudança de ventos. Aumenta sempre mais o número de estudiosos
literários que retornam à história. Mais uma vez, eles estudam sobriamente
os significados seiscentistas da linguagem de Montaigne e tentam
identificar suas intenções e motivações. Parece o fim de uma era — e o
início de outra.
Que teria feito Montaigne de tudo isto? Ele gostava de seguir as
indicações encontradas numa página de Plutarco, mas dizia irritar-se com
excessos de interpretação literária. Quanto mais um crítico trabalha num
texto, afirmava, menos ele será entendido. “O centésimo revisor o transmite
a seu sucessor mais espinhoso e árduo do que se mostrara ao primeiro.”
Qualquer texto pode transformar-se num amontoado de contradições:

Veja-se como Platão é manipulado e jogado daqui para ali. Cada


indivíduo, jactando-se de aplicá-lo a si mesmo, o empurra para o lado
que lhe apraz. Exibem-no e o encaixam em todas as novas opiniões
aceitas pelo mundo.

Viria acaso o dia, perguntava-se Montaigne, em que os intérpretes


entrariam em acordo quanto à determinada obra: “Já se disse o suficiente
sobre este livro; daqui em diante nada mais haverá a dizer a respeito”?
Claro que não; e Montaigne sabia que sua própria obra teria de continuar
passando pelo mesmo moinho enquanto tivesse leitores. Estes sempre
haveriam de encontrar nele coisas que nunca pretendera dizer. Com isto,
tais coisas estariam na realidade sendo criadas. “Um leitor capaz muitas
vezes descobre nos escritos de outros homens perfeições além das que
foram incluídas ou percebidas pelo autor, conferindo-lhes significados e
aspectos mais ricos.”

Eu li em Tito Lívio uma centena de coisas que outro homem não leu
nele. Plutarco leu nele uma centena além daquelas que eu pude ler, e
talvez além do que o autor ali pôs.

Ao longo dos séculos, esta interpretação e reinterpretação cria uma longa


corrente ligando um escritor aos futuros leitores — que não raro leem uns
aos outros, além de lerem o original. Virginia Woolf teve uma bela visão
das gerações assim interligadas, da maneira como “as mentes são
entretecidas — da maneira como qualquer mente viva é do mesmo exato
estofo que as de Platão & Eurípides (...) É essa mente comum que unifica
todo o mundo; & o mundo todo é mente”. Esta capacidade de continuar
vivendo através do mundo interior dos leitores em longos períodos
históricos é o que torna um livro como Os ensaios um autêntico clássico.
Na medida em que renasce de forma distinta em cada mente, ele também
une essas mentes.
Não é possível exercer a ambição como escritor sem aceitar que outras
pessoas venham a fazer o que lhes aprouver com a obra oferecida,
alterando-a, se for o caso, a ponto de torná-la irreconhecível. Montaigne
aceitava este princípio na arte, tal como na vida. E até sentia prazer nele. As
pessoas fazem ideias estranhas a nosso respeito, nos adaptam a seus
próprios objetivos. Deixando-se ir com o fluxo e abrindo mão do controle
desse processo, podemos desfrutar as vantagens do velho truque helenístico
do amor fati: a alegre aceitação do que vier. No caso de Montaigne, o amor
fati era uma das respostas à pergunta genérica sobre como viver, e no fim
das contas também abriu caminho para sua imortalidade literária. Seu
legado revelou-se tanto melhor por ser imperfeito, ambíguo, inadequado e
sujeito a distorções. “Deus meu”, poderíamos imaginá-lo exclamando, “que
eu possa ser incompreendido!”.
19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito

SEJA COMUM

E
ste livro tem sido em certa medida a história de como Montaigne
fluiu através dos tempos por meio de uma espécie de sistema de
canais das mentes. As amostras foram colhidas em cada comporta:
desde

— os primeiros leitores entusiásticos de Montaigne, que louvavam sua


sabedoria estoica e sua capacidade de recolher belos pensamentos dos
antigos;
— homens como Descartes e Pascal, que sentiam por ele aversão e
fascínio em igual medida, por seu ceticismo e a eliminação, por ele
efetuada, das delimitações entre os seres humanos e outros animais;
— os libertins do século XVII, que apreciavam nele o ousado livre-
pensador;
— filósofos do Iluminismo no século XVIII, igualmente atraídos por seu
ceticismo e seu apreço pelas culturas do Novo Mundo;
— os românticos, que saudavam um Montaigne “natural”, ao mesmo
tempo desejando que ele tivesse mais intensidade;
— leitores que tinham suas vidas atormentadas pela guerra e a
turbulência política, fazendo de Montaigne um herói e companheiro;
— moralistas do fim do século XIX, ruborizados com suas indecências e
lastimando sua falta de fibra ética, mas conseguindo reinventá-lo como
um respeitável cavalheiro semelhante a eles mesmos;
— ensaístas e filósofos casuais ingleses mergulhados na leitura de seu
livro ao longo de cerca de quatrocentos anos;
— um filósofo nem tão casual assim, Friedrich Nietzsche, que admirava
a leveza de espírito de Montaigne e reinventou para uma nova era seus
truques estoicos e epicuristas da arte de viver;
— modernistas como Virginia Woolf, que tentaram capturar o
sentimento de estar vivo e consciente;
— editores, copistas e magos da mixagem, que moldaram Montaigne em
diferentes formas;
— intérpretes do fim do século XX, que ergueram estruturas
extraordinárias com base num punhado de palavras de Montaigne.

Ao longo do percurso, houve os que achavam que ele escrevia demais


sobre seu próprio sistema urinário, os que consideravam que seu estilo
literário podia ser aperfeiçoado e os que o achavam muito informal; e
também os que viam nele um sábio, ou um segundo eu tão próximo que não
podiam saber ao certo se estavam lendo Os ensaios ou escrevendo-o eles
próprios.
Muitas dessas leituras díspares eram transmutações das três grandes
tradições helenísticas, tal como transmitidas — e alteradas — por
Montaigne. O que é perfeitamente natural, pois essas tradições constituíam
o alicerce do seu pensamento, e suas linhas de influência perpassavam toda
a cultura europeia. Elas dificilmente poderiam ser distinguidas umas das
outras, nem mesmo em suas mais remotas origens; na versão modernizada
de Montaigne, tornaram-se mais imbricadas que nunca. Elas se mantêm
coesas acima de tudo na busca comum da eudaimonia, ou desabrochar
humano, e na convicção de que a melhor maneira de alcançá-la é através da
tranquilidade ou equilíbrio: a ataraxia. Esses princípios as mantêm ligadas
a Montaigne, e através dele aos leitores pósteros que buscam Os ensaios
pela companhia ou por uma sabedoria prática e cotidiana de que possam
fazer uso.
Os leitores modernos que chegam a Montaigne perguntando o que ele
pode fazer por eles estão fazendo a mesma pergunta que ele próprio fazia a
Sêneca, Sexto e Lucrécio — a mesmíssima pergunta que eles por sua vez
faziam a seus antecessores. É o que significa na verdade a corrente mental
descrita por Virginia Woolf: não uma tradição erudita, mas uma série de
indivíduos voltados para o interesse próprio e se questionando sobre suas
vidas, mas de forma cooperativa. Eles compartilham uma qualidade que
pode ser descrita simplesmente como “humanidade”: a experiência de ser
um ser pensante e dotado de sentimentos, que deve levar adiante uma vida
humana comum — embora Montaigne de bom grado estendesse essa união
de mentes a outras espécies também.
Por isto é que, para Montaigne, até mesmo a existência mais comum nos
diz tudo que precisamos saber:

Eu tive uma vida humilde e inglória; mas não importa. É possível


vincular toda a filosofia moral a uma vida comum e privada,
exatamente como a uma vida mais rica.

De fato, uma vida comum e privada é precisamente isto: a vida mais rica
que se possa imaginar.

SEJA IMPERFEITO

Montaigne enfrentou tantos problemas de saúde em seus últimos anos que


parecia passar a metade do tempo no limiar entre a vida e a morte — aquela
mesma zona que havia visitado no frescor da juventude, após o acidente de
equitação. Ele ainda não estava velho, mal se aproximando dos 60 anos,
mas sabia que suas crises de pedra nos rins podiam matá-lo a qualquer
momento, e às vezes era o que desejava, tão horrível era a agonia. Mas
nessa época a pedra não o agarrava pela gola como um brutamontes para
arrastá-lo até o rosto tirânico da morte. Ela o atraía “com jeito e
delicadeza”, deixando-lhe tempo suficiente para pensar entre uma crise e
outra. A morte parecia amistosa, exatamente como os estoicos diziam que
seria.

Pelo menos esse proveito eu tiro da pedra, pois ela concluirá o que eu
ainda não pude realizar em mim mesmo, me reconciliando e
familiarizando completamente com a morte.

A primeira coisa de que ele se tinha dado conta ao perder a consciência


era amplamente confirmada agora: a natureza faz tudo por nós, e não
precisamos nos preocupar com nada. Ela nos conduz pela mão, escreveu
ele, como “num declive suave e praticamente imperceptível, aos
pouquinhos”. A rigor, nem precisamos prestar atenção no caminho.
Tornando-o doente, a natureza lhe dava aquilo que havia tanto tempo
buscava: ataraxia e, portanto, eudaimonia. Os momentos de maior bem-
estar que conhecera na vida se haviam manifestado imediatamente depois
de uma crise, com a eliminação da pedra. Era um momento de alívio físico,
mas também de libertadora leveza espiritual.

Existe algo mais doce que essa súbita mudança, no momento em que,
de uma dor extrema, eliminando a pedra, eu me recupero, como se se
acendesse a linda luz da saúde, tão livre e pleno (...)?

Ele chegou inclusive a descobrir um prazer semelhante em meio às


próprias crises. Elas continuavam dolorosas, mas ele aprendeu a desfrutar
suas pequenas compensações, entre elas o relance de satisfação que sentia
ao ver admiração nos olhos dos outros:

É um prazer ouvir alguém dizer a seu respeito: Quanta força, quanta


coragem! Eles o veem suando de agonia, vomitando sangue, sofrendo
estranhas contrações e convulsões, às vezes derramando enormes
lágrimas dos olhos, vertendo uma urina espessa, escura e assustadora
ou retendo-a por causa de uma pedra áspera e dura que machuca e
esfola cruelmente o canal do pênis; e ao mesmo tempo mantendo a
conversa com os circundantes com aparência normal, gracejando com
os criados nos intervalos.

Só ele sabia a verdade: que era mais fácil gracejar e manter a conversa
no auge da dor do que qualquer observador jamais poderia imaginar. Como
indicara sua experiência passada de quase morte, a aparência externa de
alguém pode não ter qualquer relação com o que se passa em seu mundo
interior. Dessa vez, ele realmente estava em terrível agonia, diferentemente
do que acontecera nos momentos em que arrancava seu gibão. E, no
entanto, havia certa despreocupação em sua alma. A experiência parecia
tocá-la apenas de leve.
Já estou me acostumando a essa vida de cólicas: encontro nela
alimento para o consolo e a esperança.

Ele extraiu uma lição semelhante do envelhecimento de maneira geral.


Não que a idade automaticamente trouxesse sabedoria. Pelo contrário, ele
achava que os velhos eram mais dados a vaidades e imperfeições que os
jovens. Mostravam-se inclinados a “um orgulho tolo e decrépito, a
uma tagarelice tediosa, a humores irascíveis e antissociais, à superstição e a
uma ridícula preocupação com bens materiais”. Mas era este o ponto, pois
na adaptação a esses defeitos é que estava o valor do envelhecimento. A
velhice representa uma oportunidade de reconhecer a própria falibilidade de
uma forma que geralmente parece difícil na juventude. Constatando o
próprio declínio inscrito no corpo e na mente, o indivíduo aceita sua
limitação como ser humano. Mas, compreendendo que a idade não nos
torna sábios, alcançamos afinal de contas uma certa sabedoria.
Aprender a viver, no fim, é aprender a conviver com a imperfeição desse
jeito, e até aceitá-la.

O nosso ser é cimentado com qualidades doentias (...) Aquele que


eliminasse no homem as sementes dessas qualidades destruiria as
condições fundamentais de nossa vida.

Até mesmo a filosofia precisa mostrar-se “complicada e obscura” antes


de poder ser aplicada à vida real. “Não há necessidade de esclarecer as
questões tão profunda e sutilmente.” Não há qualquer vantagem em viver
como Tasso, cegando-se com o próprio brilho. É melhor ser moderado,
modesto e ligeiramente vago. A natureza cuida do resto.
Ao longo desses últimos anos, mais tranquilo e amadurecido que nunca,
Montaigne continuou trabalhando em Os ensaios. Ficava em casa, mas
ainda escrevia cartas, entre elas várias para Henrique IV. E encontrava
amigos, escritores e antigos colegas de Bordeaux e outras partes, entre os
quais o irmão de Francis Bacon, Anthony. Sua filha Léonor, já na idade
adulta, casou-se com François de la Tour em 27 de maio de 1590, em
cerimônia na propriedade de Montaigne. No ano seguinte, Montaigne
tornou-se avô, quando Léonor deu à luz uma filha chamada Françoise, no
dia 31 de março de 1591. Ele continuava escrevendo, adicionando fantasias
e anedotas, assim como seus últimos pensamentos sobre a arte de viver em
harmonia com a normalidade e a imperfeição. Ele se apresentava cada vez
mais como um homem que aprendera a viver; ou quem sabe era apenas sua
habitual despreocupação, alcançando um grau inédito de maestria.
20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si
mesma

NÃO É O FIM

M
ontaigne foi acometido de uma crise de pedra nos rins no início
de setembro de 1592. Ele já passara por isso muitas vezes, e
com toda a probabilidade aceitou a coisa filosoficamente de
início. Dessa vez, contudo, como ele sempre soubera poderia acontecer,
houve sérias complicações. Em vez de finalmente ser expelida, dando-lhe
aquela sensação de alívio e alegria, a pedra ficou onde estava, originando
uma infecção.
Seu corpo todo começou a inchar. Não demorou, e a inflamação chegou
à garganta, gerando um estado conhecido como “cinância”, da palavra
grega que designa a correia ou laço usado para estrangular um cão ou
qualquer outro animal — o que deixa bem claro como a sensação era
desagradável. À medida que esse estado se agravava, a garganta de
Montaigne se fechava cada vez mais, até que ele encontrasse enorme
dificuldade para respirar.
A cinância por sua vez levou a uma amigdalite, uma infecção grave da
garganta, ainda hoje considerada potencialmente fatal, se não for tratada.
Ela requereria tratamento com antibióticos, que no entanto não existiam na
época de Montaigne. Já agora, com a garganta inchada, ele não conseguia
falar, mas estava perfeitamente consciente e capaz de se comunicar
escrevendo bilhetes.
Três dias se passaram após a manifestação da amigdalite. Montaigne
sentava-se apoiado na cama, enquanto a família e os criados se reuniam
para acompanhá-lo e esperar. O quarto transformou-se exatamente na
superlotada cena de leito de morte muito concorrida que ele sempre quisera
evitar. Esses rituais tornavam a morte ainda pior que o necessário: serviam
apenas para aterrorizar o moribundo e os que o cercavam. Médicos e
sacerdotes debruçando-se sobre a cama; visitantes inconformados; “criados
pálidos e chorosos; um quarto escurecido; velas acesas; (...) em suma, tudo
ao nosso redor horroriza e assusta” — um cenário muito distante da morte
simples e até distraída que ele teria preferido. Mas agora que as coisas se
configuravam assim, ele nem tentou afastar aquela gente toda.
Quando ficou evidente que não restava esperança de recuperação, ele
redigiu seu último testamento e seus desejos finais. Um escritor da região,
Bernard Automne, afirmou que nesses últimos dias Montaigne “levantou-se
da cama de camisola” e mandou chamar criados e outros beneficiários
secundários do seu testamento, para transmitir-lhes pessoalmente o legado.
Talvez seja verdade, embora não combine bem com as descrições segundo
as quais estava paralisado na cama. Não dispomos de um relato plenamente
confiável de suas últimas horas de vida; todos eles são de segunda mão.
Mas um deles, pelo menos, pode ser considerado razoavelmente preciso: foi
escrito por um velho amigo de Montaigne, Étienne Pasquier, com base no
que ouviu de Françoise, que se manteve o tempo todo ao lado do marido.
Ao contrário de La Boétie tantos anos antes, Montaigne não quis afastar sua
mulher de seu leito de morte.
Providenciado o testamento, uma missa foi rezada em seu quarto. Ele
quase já não conseguia respirar. Segundo Pasquier, ele se levantou da cama
enquanto o padre falava, “num esforço desesperado, com as mãos
entrelaçadas”, para confiar seu espírito a Deus. Era um derradeiro gesto de
convenção católica: um breve reconhecimento a Deus na vida desse homem
tão alegremente secular.
Pouco depois, fechou-se o derradeiro e estreito canal de ar em sua
garganta. Ele pode ter sucumbido a um derrame, ou simplesmente sufocou.
Cercado pela família, amigos e criados, Michel Eyquem de Montaigne
morreu em 13 de setembro de 1592, aos 59 anos de idade.
Deve ter sido penoso assistir à morte de Montaigne — a luta para
respirar, o esforço desesperado, o horrível inchaço —, e ele parecia estar
plenamente consciente do que se passava, outra coisa que esperara poder
evitar. Mas talvez não fosse assim tão penoso para ele. No dia do seu
acidente de equitação, ele se arrastara vomitando sangue enquanto sua alma
flutuava no prazer; o mesmo pode ter acontecido no fim. Ele pode ter
sentido apenas a sensação de que sua vida era suavemente desligada dos
seus lábios: aquele delicado fio sendo finalmente cortado.
Étienne Pasquier e outro amigo, Pierre de Brach, compuseram seus
relatos de segunda mão para os contemporâneos, transformando a morte de
Montaigne num modelo de estoicismo. Prestavam à sua memória o mesmo
serviço que ele havia prestado à de La Boétie. Montaigne tivera uma vida
feliz, escrevia Pierre de Brach em carta a Justus Lipsius; e morrera bem,
igualmente feliz. Só os que a ele sobreviviam sentiriam dor, para sempre
privados de sua agradável companhia.
A primeira missão desses sobreviventes era a cerimônia fúnebre, além
do pavoroso desmembramento do corpo de Montaigne. Registrava uma
anotação na Ephemeris Beuther da família:

Seu coração foi levado para a igreja de Saint Michel, e Françoise de


la Chassaigne, madame de Montaigne, sua viúva, mandou o corpo
para Bordeaux, para ser enterrado na igreja dos Feuillants, onde
mandou construir para ele um túmulo elevado, para isto pagando
direitos à igreja.

Não era incomum separar partes do corpo para o enterro, embora


efetivamente pareça estranho que fosse depositado apenas o coração, e não
todo o corpo, na pequena capela construída na propriedade no século XII.
Seria, de fato, um tranquilo lugar de repouso: ele estaria ao lado do pai,
assim como dos pequenos esqueletos de tantos de seus próprios filhos.
Mas os restos dos seus restos foram para a igreja da Ordem dos
Feuillants, uma estranha decisão, mais uma vez, e aparentemente distinta da
original. O plano inicial consistira em enterrá-lo na catedral de Saint-André
em Bordeaux, o que foi autorizado em 15 de dezembro de 1592. Com isto,
ele teria ficado perto de membros da família de Françoise, e não da sua
própria. Mas ela mudou de ideia, fosse por ser devota dos Feuillants ou por
ter sido este o caso dele: Montaigne manifestara admiração por eles em Os
ensaios. A decisão certamente era boa para os monges. Em troca de acolher
o corpo de Montaigne e rezar missas regularmente por sua alma, eles
recebiam uma generosa doação que foi usada para financiar a pintura do
interior do prédio. Deram-lhe um esplêndido túmulo, que ainda existe: ele é
mostrado deitado em sua armadura de cavaleiro, com as mãos retiradas das
luvas para juntar-se em prece. Dos dois lados, epitáfios em grego e latim
louvam seu pirronismo cristão, seu respeito às leis e à religião dos
antepassados, suas “maneiras suaves”, sua ponderação, sua honestidade e
sua coragem. O texto latino termina de maneira comovente:

Françoise de la Chassaigne, desgraçadamente presa de perpétuo luto,


ergueu este monumento à memória de seu marido, que
justificadamente lamenta. Ele não teve outra esposa; ela não terá tido
outro marido.

Seu corpo, sem o coração, finalmente foi depositado nesse túmulo a 1º de


maio de 1594, um ano e meio depois de sua morte. Ele já tivera de esperar
muito tempo pelo repouso eterno — que afinal não seria eterno em
absoluto. Cerca de uma década depois, tiveram início obras de ampliação da
igreja e mudança de sua estrutura. Com isto, o túmulo de Montaigne teria
ficado muito distante do novo altar, o que iria de encontro ao acordo feito
com Françoise. Ela processou os Feuillants e venceu: eles foram obrigados
a deslocar o túmulo, em 1614, para um local privilegiado na nova capela.
Lá ele permaneceu e as décadas se passaram tranquilamente, até a
chegada da Revolução Francesa, cerca de nove gerações depois. O novo
Estado secular aboliu a ordem dos Feuillants, juntamente com outras ordens
religiosas, confiscando suas propriedades, entre elas a igreja e tudo que nela
se encontrava. Isto se deu numa época em que Montaigne era considerado
um herói do Iluminismo — um philosophe livre-pensador, um homem
digno de ser honrado pelo regime revolucionário. Não parecia adequado
deixá-lo onde estava. Assim foi que se decidiu, em 1800, que ele fosse
desenterrado e novamente sepultado no salão de monumentos do novo
grande templo secular de Bordeaux: a Académie des sciences, belles-lettres
et arts. Os preciosos restos mortais foram retirados e transferidos com
grande solenidade para seu novo destino, acompanhados pela cavalaria e
saudados ao longo do caminho por fanfarras de metais.
Dois anos e meio mais tarde, um antiquário que examinava os registros
da mesma Académie de Bordeaux fez uma descoberta embaraçosa. O corpo
transferido não era o de Montaigne. Era o da sobrinha de sua viúva, uma
mulher chamada Marie de Brian, que fora sepultada no mesmo túmulo,
junto com outros membros da família. Discretamente, desta vez sem
cavalaria nem fanfarras, ela foi retirada do salão de monumentos e
devolvida à localização original. Montaigne ficou onde sempre estivera,
intocado, no túmulo original. O homem a quem tanto desagradavam obras
de construção, “inovações” idealistas e qualquer agitação desnecessária fora
afinal poupado de perturbações pela Revolução, que passara sobre sua
cabeça como uma onda por cima do profundo leito do mar.
Em maio de 1871, a igreja foi destruída por um incêndio. O túmulo ficou
praticamente ileso, mas permaneceria por quase uma década desprotegido
em meio às ruínas. Em dezembro de 1880, foi aberto por funcionários para
avaliação do estado da venerada relíquia, constatando-se que a concha de
chumbo em torno dos restos de Montaigne se esmigalhara. Os fragmentos
foram retirados e um novo caixão de carvalho veio a ser confeccionado para
ele. O túmulo restaurado passou então cinco anos alojado temporariamente
no Depósito Cartusiano, para afinal ser instalado, em 11 de março de 1886,
no saguão de entrada do novo prédio da Universidade de Bordeaux,
abrigando as faculdades de teologia, ciências e literatura. Hoje, encontra-se
no Musée d’Aquitaine em Bordeaux, onde é exibido orgulhosamente.
Dificilmente poderia ter havido uma série mais apropriada de aventuras
póstumas para alguém tão sintonizado com o fluxo do mundo e tão
consciente da maneira como os esforços humanos podem ser
comprometidos pelo erro. Mesmo depois da morte, alguma coisa parecia
continuar compelindo Montaigne de volta ao fluxo da vida, em vez deixá-lo
congelado numa lembrança perfeita. E seu verdadeiro legado nada tem a
ver, em absoluto, com esse túmulo. É na posteridade turbulenta de Os
ensaios que ele pode ser encontrado, seu segundo eu em interminável
evolução. Eles continuaram vivos, e, para Montaigne, era sempre a vida que
importava. Virginia Woolf gostava particularmente de citar este pensamento
de seu último ensaio: era o mais próximo que Montaigne havia chegado da
melhor ou definitiva resposta à pergunta sobre como viver.

A vida deve ser um objetivo em si mesma, uma finalidade em si


mesma.

Ou bem não se trata de uma resposta em absoluto, ou então é a única


resposta possível. Ela tem a mesma qualidade que a resposta dada pelo
mestre zen que, diante da pergunta “Que é o esclarecimento?”, deu com um
bastão na cabeça daquele que perguntava. O esclarecimento é algo que
aprendemos no próprio corpo, assumindo a forma de coisas que nos
acontecem. Por isso é que os estoicos, os epicuristas e os céticos ensinavam
truques, e não preceitos. Os filósofos podem oferecer apenas essa pancada
na cabeça: uma técnica útil, uma aventura do pensamento, ou uma
experiência — no caso de Montaigne, a experiência da leitura de Os
ensaios. O tema por ele ensinado é simplesmente ele próprio, um exemplo
comum de um ser vivo.
Embora Os ensaios apresente uma diferente faceta para cada um, tudo,
nele, converge nessa mesma figura: Montaigne. Por isso é que os leitores
voltam a ele como a poucos outros do seu século, e mesmo a raros
escritores de qualquer época. Os ensaios é o seu ensaio. Testa e dá amostra
de uma mente que é um “eu” em si mesma, como todas as mentes o são.
Haverá talvez quem questione se ainda existe necessidade de um ensaísta
como Montaigne. No mundo desenvolvido do século XXI, as pessoas já são
excessivamente individualistas, além de estarem ligadas umas às outras
num grau muito além dos sonhos mais delirantes de um cultivador de
vinhedos do século XVI. Sua preocupação com o “eu” em todas as coisas
pode ficar parecendo um típico caso de pregação para convertidos, ou
mesmo de fornecimento de drogas a viciados. Mas Montaigne oferece mais
que uma mera indução à autocomplacência. O século XXI teria tudo a
ganhar com uma concepção montaigniana da vida, e, nos momentos mais
conturbados por que passou até agora, verificou-se quão terrivelmente
precisaria de uma política montaigniana. Poderia valer-se da sua
moderação, do seu amor à sociabilidade e à cortesia, de sua ausência de
julgamento e da sutil compreensão por ele demonstrada dos mecanismos
psicológicos envolvidos no confronto e no conflito. Precisa também da sua
convicção de que, no mundo real, nenhuma visão do paraíso, nenhum
Apocalipse imaginário, nenhuma fantasia perfeccionista pode ser mais
importante que a mais minúscula das individualidades. Para Montaigne, é
impensável que alguém jamais pudesse “agradar ao céu e à natureza
cometendo massacres e homicídios, uma crença universalmente abraçada
por todas as religiões”. Acreditar que a vida pudesse exigir coisas assim é
esquecer o que é realmente a existência no dia a dia. Significa esquecer que,
quando seguramos um filhote sobre um balde d’água ou observamos uma
gata querendo brincar, estamos contemplando uma criatura que nos devolve
nosso olhar. Não estão envolvidos princípios abstratos; existem apenas dois
indivíduos, face a face, esperando o melhor um do outro.
É possível, assim, que parte do crédito pela última resposta de
Montaigne deva ser atribuído a sua gata — um indivíduo específico do
século XVI, que levou uma vida agradável numa propriedade rural, com um
dono carinhoso e sem muita concorrência na disputa por atenção. Foi ela
que, querendo brincar com Montaigne num momento impróprio, lembrou-
lhe o que significava estar vivo. Os dois olharam um para o outro e, por um
breve momento, ele deu o salto sobre a distância que os separava, para se
ver pelos olhos dela. De momentos assim — e eles foram incontáveis — é
que derivou toda a sua filosofia.
Lá estão os dois, portanto, na biblioteca de Montaigne. Atraída pelo
ranger de sua pena no papel, a gata ensaia alcançar com a pata o objeto em
movimento. Ele olha para ela, talvez momentaneamente irritado com a
interrupção. Em seguida, sorri, inclina a pena e desliza a extremidade do
penacho pelo papel, para que ela saia correndo atrás. Ela arremete. Com as
patas, mancha de tinta as últimas palavras; algumas folhas de papel caem no
chão. Os dois podem ficar por ali, suspensos no meio de suas vidas sem que
Os ensaios esteja escrito por completo, enquanto nós prosseguimos com as
nossas — sem que Os ensaios esteja completamente lido.
Cronologia

1533 (28
Nascimento de Montaigne
fev.)
1539?-48 Ele frequenta o Collège de Guyenne, em Bordeaux
Revolta contra o imposto do sal em Bordeaux; Montaigne
1548 (ago.)
assiste aos massacres de Moneins
Estudos, provavelmente de direito, provavelmente em
1548-54
Paris e/ou Toulouse
1554 Começa a trabalhar na Cour des Aides em Périgueux
Todos os funcionários de Périgueux são transferidos para
1557
Bordeaux
1558-59 Montaigne faz amizade com Étienne de La Boétie
O Tratado de Câteau Cambrésis põe fim às guerras
1559
externas da França, com consequências desastrosas
1562 Massacres de Vassy: início das guerras civis
Em Rouen com Carlos IX, Montaigne encontra três
tupinambás brasileiros
1563 (18
Morte de La Boétie, tendo Montaigne à cabeceira
ago.)
1565 (23
Montaigne se casa com Françoise de La Chassaigne
set.)
1568 (18
Morte de Pierre Eyquem: Montaigne herda a propriedade
jun.)
1569 Montaigne publica sua tradução da Teologia natural de
Sebond
Seu irmão Arnaud morre num acidente de tênis
1569 ou
início de Montaigne quase morre num acidente de equitação
1570

1570 Retira-se do parlement de Bordeaux


Nasce seu primeiro filho, morrendo com dois meses
Edita as obras de La Boétie
Montaigne faz sua inscrição de aniversário em sua
1571 (fev.)
biblioteca
         (9 set.) Nasce sua única filha que chegaria à idade adulta, Léonor
Montaigne provavelmente começa a trabalhar em Os
1572
ensaios
(ago.) Massacres de São Bartolomeu
1574 Morte de Carlos IX; Henrique III sobe ao trono
Montaigne manda cunhar sua moeda, com escalas e o lema
1576
epokhe
Acometido da primeira crise de pedra nos rins
1580 (jun.) Os ensaios, primeira edição
1581 (nov.) Montaigne viaja pela Suíça, a Alemanha e a Itália
1581 (ago.) Eleito prefeito de Bordeaux
1582 Os ensaios, segunda edição
1583 (ago.) Reeleito prefeito de Bordeaux
1584 (dez.) Henrique de Navarra hospeda-se na propriedade de
Montaigne
Peste na propriedade; Montaigne foge
1587 Os ensaios, terceira edição
Henrique de Navarra novamente na propriedade de
     (out.)
Montaigne
Montaigne vai à missão secreta em Paris, acompanha em
1588 seguida a corte de Henrique III. Conhece Marie de
Gournay
     (mai.) Dia das Barricadas; Henrique III foge de Paris
Os ensaios: a “5ª” edição, muito ampliada (a 4ª, caso tenha
      (jun.)
existido, não deixou traços)
      (10 jul.) Montaigne encarcerado na Bastilha e libertado
      (outono) Recupera-se na Picardia com Marie de Gournay
      (dez.) Henrique III manda assassinar o duque de Guise
1588-92 Montaigne trabalha nos últimos acréscimos a Os ensaios
Assassinato de Henrique III; Henrique IV sobe ao trono,
1589 (ago.)
com legitimidade contestada
1592 (13
Montaigne morre de amigdalite
set.)
Edição de Marie de Gournay de Os ensaios, referência por
1595
três séculos
Morte da mãe de Montaigne, Antoinette de Louppes de
1601
Villeneuve
Sai o “remix” de Pierre Charron, La Sagesse
1603 Os ensaios, a primeira tradução inglesa, por John Florio
1616 Morte da filha de Montaigne, Léonor
1627 Morte da viúva de Montaigne, Françoise de La Chassaigne
1637 Discurso do método, de Descartes
1645 Morte de Marie de Gournay
Morte de Blaise Pascal, que deixa anotações
1662
posteriormente publicadas como as Pensées
Os ensaios no Índex de livros proibidos
1685-86 Tradução inglesa de Os ensaios por Charles Cotton
Os ensaios publicados em francês na Inglaterra pelo
1724
refugiado Pierre Coste
Descoberta do diário de viagem de Montaigne num velho
1772
baú
O “Exemplar de Bordeaux” de Os ensaios, com anotações,
é recuperado num arquivo e usado para autenticar o diário
1789 Revolução Francesa
As autoridades revolucionárias decidem dar novo
1800 sepultamento a Montaigne como herói secular, na
Académie de Bordeaux, mas o plano não dá certo
Publicação das cartas de Montaigne sobre a peste,
1850
causando consternação
1854 Retirada de Os ensaios do Índex de livros proibidos
Reforma e transferência do túmulo de Montaigne para a
1880-86
Universidade de Bordeaux
Publicação do primeiro volume da edição Strowski, com
1906
base essencialmente no “Exemplar de Bordeaux”
1912 Publicação do primeiro volume da edição Armaingaud,
com base essencialmente no “Exemplar de Bordeaux”
Publicação da nova edição Pléiade, com base
2007
essencialmente na edição Gournay de 1595
Agradecimentos

Meus cinco anos de “servidão voluntária” a Montaigne foram uma


extraordinária meia-década, durante a qual aprendi muito — inclusive sobre
a generosidade dos amigos, estudiosos e colegas que me ajudaram de tantas
maneiras.
Quero agradecer particularmente a Warren Boutcher, Emily Butterworth,
Philippe Desan, George Hoffmann, Peter Mack e John O’Brien pelo
caloroso estímulo, a generosidade de sua ajuda e sua disposição de dar de
seu tempo, de seu conhecimento e de sua experiência.
Minha gratidão a Elizabeth Jones pelo fornecimento de fascinante
material do seu documentário The Man Who Ate His Archbishop’s Liver,
assim como a Francis Couturas do Musée d’art et d’archéologie du
Périgord, em Périgueux, Anne-Laure Ranoux do Musée du Louvre, Anne-
Sophie Marchetto do Sud-Ouest e Michel Iturria, pela autorização de uso de
sua caricatura “Enfin! Une groupie!”. Sou também extremamente grata a
John Stafford pela permissão para usar suas fotografias.
Recorri intensivamente a bibliotecas, entre elas a Bibliothèque nationale
de France, a Bibliothèque municipale de Bordeaux, a British Library e a
London Library, e agradeço às equipes de todas elas por sua perícia. Muito
apreciada foi a generosidade da Stanford University Press ao autorizar tão
prontamente a citação da tradução de Donald Frame.
O livro foi concluído com a ajuda de uma subvenção Author’s
Foundation da Society of Authors, além de uma Carlyle Membership da
London Library; quero aqui expressar minha forte gratidão pelas duas.
Como sempre, muitos agradecimentos a minha agente, Zoë Waldie, da
Rogers, Coleridge & White, e a minha editora, Jenny Uglow, assim como a
Alison Samuel, Parisa Ebrahimi, Beth Humphries, Sue Amaradivakara e a
todo mundo na Chatto & Windus que acreditou no livro e ajudou a lhe dar
vida.
Pela leitura do manuscrito em diferentes momentos de desorientação,
aconselhando-me com sabedoria e me garantindo que tudo corria dentro dos
planos por menos provável que parecesse, agradeço a Tündi Haulik, Julie
Wheelwright, Jane e Ray Bakewell e Simonetta Ficai-Veltroni — que
conviveu com Montaigne por tanto tempo e nunca perdeu a fé nele (nem em
mim).
Conheci Montaigne quando, cerca de vinte anos atrás, em Budapeste,
estava tão desesperada por encontrar algo para ler num trem que me
arrisquei numa tradução barata de Os ensaios achada num sebo. Era o único
livro em inglês na prateleira, e tive sérias dúvidas de que viesse a gostar da
leitura. Não tenho ninguém em particular a quem agradecer pelo rumo
então tomado pelas coisas; só ao Acaso e à verdade montaigniana de que as
melhores coisas da vida acontecem quando a gente não consegue aquilo que
pensa que quer.
Notas

Exceto quando especificado em contrário, as referências a textos de Montaigne remetem à tradução


de Os ensaios por Donald Frame, The Complete Works, tr. e ed. D. Frame (Londres: Everyman,
2005). Em cada caso a menção de volume e capítulo é seguida do número de página em Frame.
Informações completas sobre as obras aqui relacionadas apenas por autor ou com títulos
resumidos podem ser encontradas em Fontes.

P. Como viver?
The Oxford Muse: http://www.oxfordmuse.com.
Melão: III:13 1031. Sexo: III:13 1012. Cantar: II:17 591. Debate: II:17 587; III:8 871. Estar vivo:
III:13 1036.
Levin: The Times (2 dez. 1991), p. 14. Pascal: Pascal, Pensées nº 568, p. 131.
“Há invariavelmente uma multidão”: Woolf, V., “Montaigne”, 71. “Ao nos encararmos”: “The Mark
on the Wall”, in Woolf, V., A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (Londres: Vintage,
2003), 79-80.
Tabourot et al.: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Quatrième et cinquième livre des touches
(Paris: J. Richer, 1588), V: f. 65v. Citado in Boase, Fortunes 7-8 e Millet 62-3. Emerson 92. Gide,
A., Montaigne (Londres & Nova York: Blackamore Press, 1929), 77-8. Zweig, “Montaigne” 17.
Leitores da Amazon: http://www.amazon.com/Michel-Montaigne-Complete-Penguin-
Classics/dp/0140446044. Comentários de tepi, Grant, Klurnz, diastolei e lexo-2x.
“Estou me contradizendo?”: Whitman, W., “Song of Myself”, in Leaves of Grass (Brooklyn, 1855),
55.
“Não posso manter meu tema parado”: III:2 740.
A pistola atirava: Saint-Sernin, J. de, Essais et observations sur les Essais du seigneur de Montaigne
(Londres: E. Allde, 1626), f. A6r.
“É em todo o mundo o único livro”: II:8 338.
No próprio traseiro: III:13 1044.
Flaubert: Gustave Flaubert a Mlle Leroyer de Chantepie, 16 de junho de 1857, citado in Frame,
Montaigne in France 61.

1. P. Como viver? R. Não se preocupe com a morte


Rapaz que morreu de febre: I:20 73.
“Filosofar é aprender a morrer”: Cícero, Tusculan Disputations I: XXX, 74. Cícero recolheu a ideia
no Phaedo de Platão (67 e). Montaigne a utilizou no título de seu ensaio: I:20.
Morte de Arnaud, e “Com exemplos tão frequentes e comuns”: I:20 71.
“A cada momento”: I:20 72.
Montaigne imaginando a cena de seu leito de morte: III:4 771.
A morte como um conjunto de alguns maus momentos: III:12 980.
Equitação: não sabemos com exatidão quando o incidente ocorreu, mas Montaigne afirma que foi
durante a segunda ou a terceira das guerras civis, o que significa que se deu entre o outono de
1569 e o início de 1570: II:6 326. Sensação de Montaigne de estar fugindo: III:5 811. Sobre
Montaigne e a equitação, ver Balsamo, J., “Cheval”, in Desan, Dictionnaire 162-4.
Vinhedos distantes: Marcetteau-Paul 137-41.
Especulações de Montaigne: Medula: II:12 507. Rêmora: II:12 417. Gata: I:21 90-1.
O relato do acidente e suas consequências por Montaigne: II:6 326-30. Todas as citações das
próximas páginas provêm desse relato, salvo indicação em contrário.
“Debilitação e estupor”: III:9 914. Petrônio e Tiguilino: III:9 915. Ambos de Tácito: Petrônio de
Annals XIV:19; Tiguilino de Histories I:72. Marcelino: II:13 561-2. A fonte é Sêneca, Letters to
Lucilius, Letter 77. Ed. Loeb II:171-3.
“Eu nunca vi um dos meus vizinhos camponeses”: III:12 980.
“Se você não souber como morrer”: III:12 979.
“Golpeados e escoriados”, “ainda sinto os efeitos” e recuperação da memória: II:6 330.
“Pontos ruins”: III:10 934.

2. P. Como viver? R. Preste atenção


Montaigne se retira: a coisa foi oficializada em 23 de julho de 1570, mas a transferência ao sucessor
fora assinada em abril de 1570, de modo que ele deve ter tomado a decisão antes. Ver Frame,
Montaigne 114-15. Sobre a rejeição de sua candidatura: ibid., 57-8.
Inscrição sobre o fim da atividade política: tradução in Frame, Montaigne 115.
A crise de Montaigne na maturidade, em comparação com Dom Quixote e Dante: Auerbach, E.,
Mimesis, tr. W. A. Trask (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003), 348-9.
Sobre o castelo e a torre da propriedade de Montaigne, ver Gardeau e Feytaud; Willett; Hoffmann 8-
38; Legros 103-26; e Legros, A., “Tour de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 984-7. “Enorme
sino”: I:23 94.
Estantes: III:3 763. Herança de La Boétie: III:12 984.
“Guardo seus manuscritos”: II:18 612. Coleção sul-americana: I:31 187.
Moda das bibliotecas particulares: Hale 397. “Quarto no fundo da loja” e “Infeliz o homem”: III:3
763.
Pinturas de murais: Willett 219; Gardeau e Feytaud 47-8. Citações nas vigas do teto: Legros. Sobre
outras inscrições semelhantes: Frame, Montaigne 9.
Sobre a moda de se retirar: Burke 5. “Devemos nos desvencilhar”: I:39 214.
Advertências de Sêneca: Sêneca, “Da tranquilidade da mente”, in Dialogues and Letters 34, 45.
“Estado de ânimo melancólico”: II:8 337-8. Cavalo desembestado, reflexos na água e outras
imagens: I:8 24-5.
Sobre os devaneios: Morrissey, R. J., La Rêverie jusqu’à Rousseau: recherches sur un topos littéraire
(Lexington, Ky.: French Forum, 1984), esp. 37-43.
O devaneio da escrita: II:8 337-8. “Quimeras e monstros fantásticos”: I:8 25.
A salvação está na plena atenção: Sêneca, Letters to Lucilius, Letter 78, ed. Loeb II:199.
Escrever para a família e os amigos: “Ao leitor”, Essays I p. 2. Sobre os livros de lugares-comuns,
ver Moss, A., Printed Commonplace-Books and the Structuring of Renaissance Thought (Oxford:
Clarendon, 1996). Agradeço a Peter Mack pela sugestão de que Montaigne tenha sido em certa
medida inspirado a escrever Os ensaios pela leitura da tradução de Plutarco por Amyot.
As datas de redação derivam do estudo de Villey in Les Sources: ver Frame, Montaigne 156. Desde
então surgiram discordâncias quanto à datação.
“Cada homem é uma boa educação para si mesmo”: II:6 331. A fonte é Plínio, História natural
XXII: 24.
“É uma tarefa espinhosa”: II:6 331.
“Eu medito sobre qualquer satisfação” e ser despertado: III:13 1040.
Heráclito, Fragmento 50. Heráclito, The Art and Thought of Heraclitus, tr. e ed. C. H. Kahn
(Cambridge: Cambridge Universiry Press, 1979), 53. Fluxo da consciência: James, W., The
Principles of Psychology (Nova York: Henry Holt, 1890), I:239.
Montaigne citando Heráclito: II:12 554. “Ora suavemente, ora violentamente”: II:1 291. Dunas de
areia: I:31 183. “Uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas”: III:6 841. Branloire: III:2
740. Ver Rigolot 203. Sobre o fascínio do século XVI com fluxos e metamorfoses: Jeanneret,
Perpetuum mobile.
Teorias sobre sexo com mulheres aleijadas: III:II 963. A fonte no caso de Aristóteles é Problemata
X: 24, 893b. Ver Screech 156-7.
“Que nossa felicidade não deve ser julgada até depois da nossa morte”: I:19 64-6. As fontes no caso
de Sólon são Heródoto, Histórias I: 86, e Plutarco, “Vida de Sólon”, in Vidas, LVIII.
“Se minha mente pudesse firmar-se com solidez”: III:2 740.
“Eu não retrato o ser”: III:2 740.
“Observar, observar perpetuamente”: Woolf, V., “Montaigne”, 78.
Pássaros estorninhos: Huxley, A., Island (Londres: Chatto & Windus, 1962), 15.
“Não causará nenhuma comoção” e “precisamos beber depressa”: Sêneca, “Da brevidade da vida”, in
Diálogos e cartas 68-9.
“Uma consciência espantada consigo mesma”: Merleau-Ponty 322. Espanto e fluidez: Burrow, C.,
“Frisks, skips and jumps” (resenha de Michel de Montaigne, de Ann Hartle), London Review of
Books 6 nov. 2003.
“Tento aumentar o seu peso”: III:13 1040.
“Quando caminho sozinho” e “quando eu danço, danço”: III:13 1036.

3. P. Como viver? R. Trate de nascer


Seu nascimento: I:20 69, e Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 28 fev. Sobre o apelido de
Micheau: Frame, Montaigne 38. Onze meses: II:12 507-8. “Parece estranho?”: Gargantua, I:3, in
Rabelais, The Complete Works 12-14.
Honestidade: II:11 377. Pedras nos rins: II:37 701.
A “maioria” dos antepassados: III:9 901.
Família e nobreza: Frame, Montaigne 7-8, Lazard 26-9; Supple 28-9. Sobre a família Eyquem:
Cocula, A.-M., “Eyquem de Montaigne (famille)”, e Balsamo, J., “Eyquem de Montaigne
(généalogie ascendante)”, in Desan, Dictionnaire 381-3. Sobre o negócio dos vinhedos:
Marcetteau-Paul.
Nobreza da espada: Supple 27-8.
Nascimento “in confiniis Burdigalensium et Petragorensium”: Montaigne, Le Livre de raison, entrada
de 28 fev.
Contexto em Bordeaux: Lazard 12; Frame, Montaigne 5-6. Importação inglesa de vinhos: Knecht,
Rise and Fall 8.
A maneira como Pierre assinava documentos: ver por exemplo a entrada sobre o nascimento de
Montaigne no livro de registros da família: Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 28 fev. Ver
Lacouture 32.
“Se os outros se examinassem com atenção”: III:9 931.
Ascendência judaica: a maioria dos biógrafos partiu do princípio de que a família de sua mãe era
judia, com a exceção principal de Roger Trinquet (Trinquet, La Jeunesse de Montaigne). Ver
Lazard 41 e Frame, Montaigne 17-20. Montaigne sobre os judeus: I:4 42-3, I:56 282, II:3 311.
O casamento dos pais de Montaigne e a idade da mãe: Frame, Montaigne 29.
Documentos legais de Antoinette e testamentos de Pierre: Lazard 45, e Frame, Montaigne 24-5.
Ela permaneceu até aproximadamente 1587: isto se baseia no fato de que, ao redigir seu próprio
testamento em 19 de abril de 1597, ela aparentemente já vivia afastada do castelo havia cerca de
dez anos. Documento de 30 ago. 1568, e testamento de Antoinette: ambos traduzidos in Frame,
Montaigne 24-7.
A indolência de Montaigne e as melhoras promovidas na casa pelo pai: III:9 882-4. Ver também II:17
60l-2.
O pai de Montaigne: Balsamo, J., “Eyquem de Montaigne, Pierre”, in Desan, Dictionnaire 383-6.
Brantôme: P. de Bourdeilles, seigneur de Brantôme, Oeuvres complètes, ed. L. Lalanne (Paris, 1864-
82), V: 92-3. Citado in Desan, P., “Ordre de Saint-Michel”, in Desan, Dictionnaire 734, e Supple
39.
As histórias de Pierre: I:14 14.
Efeito da Itália sobre os soldados franceses: Lazard 32, 14; Frame, Montaigne 10.
Montaigne descrevendo o pai: II:12 300-1.
Tensões do período de Pierre como prefeito: III:1O 935.
“Quero vender pérolas”: I:35 200.
O diário deixado de lado e a Ephemeris de Beuther encontram-se na Bibliothèque municipale de
Bordeaux. “Sou mesmo um tolo por tê-lo negligenciado”: I:35 201. Uma edição do Beuther em
fac-símile, com transcrições, foi publicada como Montaigne, Le Livre de raison. Ver Desan, P.,
“Beuther”, in Desan, Dictionnaire 100-5, tratando também do diário abandonado. Entre os erros
de datação e numeração de Montaigne estão a idade do irmão Arnaud ao morrer em consequência
do acidente de tênis (I:20 71; Frame, Montaigne 33), sua própria idade ao se casar (II:8 342), a
data de sua detenção em Paris em 1588, que viria posteriormente a corrigir (Montaigne, Le Livre
de raison, entradas de 10 de julho e 20 de julho) e a idade de sua primeira filha ao morrer
(dedicatória de Montaigne na tradução da Lettre de consolation de Plutarco feita por La Boétie,
1570).
Tarefas deixadas pelo meio: III:9 882. Montaigne fingindo indiferença: III:10 935.
Crises de pedras nos rins em Pierre: II:37 701; III:2 746.
Testamentos de Pierre: Frame, Montaigne 14.
“Rematando algum canto numa velha parede”: III:9 882. “Não se deve tentar superar o próprio pai”:
Nietzsche, The Gay Science 142 (s. 210).
Iluminados e oráculos: II:12 387.
Os Eyquem, famosos pela harmonia: I:28 166. “Por respeito à boa reputação”: citado por Montaigne
em sua carta ao pai, publicada em sua edição de La Boétie, La Mesnagerie [etc.], e in Montaigne,
The Complete Works, tr. D. Frame, 1285.
Os irmãos de Montaigne: Balsamo, J., “Frères et soeurs de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 419-
21.
Montaigne convivendo com família de camponeses: III:13 1028; Montaigne tornado extraordinário
pelo que tinha de comum: II:17 584.
Que os filhos “sejam formados pelo destino”: III:13 1028.
Horst: Banderier, G., “Précepteur de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 813.
“Meu pai e minha mãe”, “sem meios artificiais” e elogios dos professores: I:26 156-7.
Inferioridade dos modernos porque aprendiam o latim por meios artificiais: I:26 156.
“Nós jogávamos nossas conjugações”, mas pouco conhecimento, depois, do grego: I:26 157. Ver
também II:4 318.
Despertar ao som de música: I:26 157. Só duas vezes golpeado com uma vara e “sabedoria e tato”:
II:8 341.
Erasmo: Erasmo, D., De pueris statim ac liberaliter instituendis declamatio (Basileia: H. Froben,
1529). “Todas as investigações de que um homem é capaz”: I:26 156-7.
Declínio por falta de prática: II:17 588; exclamação em latim: III:2 746.
O caráter efêmero do francês como fonte de liberdade: III:9 913.
Comuna latina: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Les Bigarrures (Rouen: J. Bauchu, 1591), Livro
IV, ff. 14r-v. Também houve experiências de Robert Estienne and François de La Trémouille. Ver
Lazard 57-8.
Recomendação de Montaigne em matéria de educação: I:26 135-50.
“Não existe ninguém que”: III:2 746.
Montaigne culpa o pai por mudar de ideia: I:26 157. Sobre outras possibilidades: Lacouture 19-21.
Bordeaux na época de Montaigne: Cocula, A.-M., “Bordeaux”, in Desan, Dictionnaire 123-5.
Collège de Guyenne: Hoffmann, G., “Étude & Éducation de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire
357-9. Currículo de Elie Vinet, Schola aquitanica (1583). Sobre o regime escolar: Lazard 62-3;
Trinquet; Porteau, P., Montaigne et la vie pédagogique de son temps (Paris: Droz, 1935).
Montaigne afirma ter esquecido seu latim na escola: I:26 158.
Montaigne ator: I:26 159.
Gouvéa: Gorris Camos, R., “Gouvéa, André”, in Desan, Dictionnaire 438-40.
Revolta contra o imposto sobre o sal: Knecht, Rise and Fall 210-11, 246. Fechamento do Collège:
Nakam, Montaigne et son temps 85.
Morte de Moneins: I:24 115-16.
Sobre Montmorency, a “pacificação” e a perda dos privilégios de Bordeaux: Knecht, Rise and Fall
246-7, Nakam, Montaigne et son temps 81-2.

4. P. Como viver? R. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão
Leituras de Montaigne e o fato de não ter sido desestimulado pelo tutor: I:26 158. Quanto às
hipóteses sobre a identidade do tutor, ver Hoffmann, G., “Étude & éducation de Montaigne”, in
Desan, Dictionnaire 357-9.
Descoberta de Ovídio por Montaigne: I:26 158. Sobre Ovídio e Montaigne, ver Rigolot, e McKinley,
M., “Ovídioe”, in Desan, Dictionnaire 744-5.
Primeiras descobertas de Montaigne e “apesar de tudo isso, ainda era a escola”: I:26 158.
Esgotada a emoção proporcionada por Ovídio: II:10 361. Emulação de seu estilo ainda assim: II:35
688-9. Villey encontra 72 referências a Ovídio em Os ensaios: Villey, Les Sources I:205-6. Ver
Rigolot 224-6. Virgílio suscetível de ser um pouco melhorado: II:10 362.
“Diversidade e verdade” do homem e “variedade das maneiras como ele se forma”: II:10 367. Tácito:
III:8 873-4.
Montaigne sobre Plutarco: “Ele é tão universal”: III:5 809. Ele é “tão cheio de coisas”: II:10 364.
“Pensando bem, isso não é nada mau” e moscas num espelho: Plutarco, “Da tranquilidade
mental”, Moralia VI, 467C e 473E, ed. Loeb VI: 183, 219. Plutarco aponta aonde devemos ir se
quisermos: I:26 140. “Creio conhecê-lo até na própria alma”: II:31 657. Não importa há quanto
tempo uma pessoa amada morreu: III:9 927. Montaigne admirava as duas consagradas traduções
francesas de Plutarco por Jacques Amyot: Plutarco, Vies des hommes illustres (Paris: M. de
Vascosan, 1559), e Oeuvres morales (Paris: M. de Vascosan, 1572), ambas as tr. por J. Amyot. Ver
Guerrier, 0., “Amyot, Jacques”, in Desan, Dictionnaire 33-4.
Sobre a biblioteca de Montaigne: Sayce 25-6. A coleção se dispersou após sua morte; desde então
têm sido feitas tentativas de reconstituir uma listagem. Ver Villey, Les Sources I:273-83: Desan,
P., “Bibliothèque”, in Desan, Dictionnaire 108-11.
Petrarca, Erasmo e Maquiavel: Friedrich 42. A carta de Maquiavel é citada in Hale 190. Cícero: II:10
365: Virgílio: II:10 362.
“Vou percorrendo um livro aqui, outro ali” e “Na verdade, praticamente não faço deles”: III:3 761-2.
“Nós, que pouco contato temos”: III:8 873. “Se encontro dificuldades” II:10 361.
Lucrécio: Screech, M. A., Montaigne’s Annotated Copy of Lucretius (Genebra: Droz, 1998).
“Delicadeza e liberdade”: I:26 157.
“A memória é uma ferramenta maravilhosamente útil”: II:17 598. “Nenhum homem tem”: I:9 25.
Desejo de lembrar ideias e sonhos: III:5 811. “Estou cheio de rachaduras”: II:17 600. A fonte é
Terêncio, O Eunuco, I:105.
Linceste: III:9 893. A fonte é Quintius Curtius Rufus, History of Alexander the Great VII:1 8-9.
Montaigne sobre falar em público: III:9 893-4.
Tupinambás: I:31 193. Morte de La Boétie: carta de Montaigne ao pai, em sua edição das obras de La
Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], e in Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame,
1276-7.
Irritação porque as pessoas não acreditavam nele: I:9 25. Sobre sua capacidade de se lembrar de
citações, ver Friedrich 31, 338. Baudier: de um comentário em prosa apenso a seus versos em
latim, “À nobre heroína Marie de Gournay”, Baudier, D., Poemata (Leyden, 1607), 359-65.
Citado in Millet 151-8, e Villey, Montaigne devant la postérité 84-5. Malebranche: Malebranche
187-8.
Memória fraca requer honestidade: I:9 26-7: II:17 598. Contribui para a concisão das anedotas: I:9
26. Faculta bom-senso: I:9 25. Previne ressentimentos mesquinhos: I:9 27.
Stewart: Stewart, D., Elements of the Philosophy of the Human Mind, in Collected Works, ed. W.
Hamilton (Edimburgo: T. Constable, 1854-60), II:370-1.
“Tenho de solicitá-la de maneira relaxada”: II:17 598. O esforço de lembrança faz esquecer: III:5
811. O empenho de esquecimento faz lembrar: II:12 443.
“Tudo aquilo que faço com naturalidade e facilidade”: II:17 599. “Tão indolente, relaxado e pesado”:
I:26 157.
“Não existe sutileza tão transparente”: II:17 600-1. “Compreensão vagarosa”: I:26 157.
Uma vez entendida alguma coisa, era para valer: II:17 600. “O que eu via, via bem”: II:10 31. “Ideias
ousadas”: I:26 157.
Nadolny, S., Die Entdeckung der Langsamkeit (Munique: Piper, 1983), traduzido por R. Freedman
como The Discovery of Slowness (Nova York: Viking, 1987). Sobre o Movimento Devagar, ver
http://www.slowmovement.com/. Ver também Honoré, C., In Praise of Slow (Londres: Orion,
2005). Existe um World Institute of Slowness: http://www.theworldinstituteofslowness.com/.
“Estou quase sempre no devido lugar”: III:2 746. “Incapaz de se submeter”: I:26 159.
“Não sei qual dos dois”: III:13 1034.
“Lembro-me de que, desde a mais tenra idade”: II:17 582. Apenas “salpicado”: II:17 584.
Sobre “onde reside a pequenez” e Sobre “onde está o senhor?”: III:17 590. Falta de respeito por
causa da altura: II:17 589-90. Truque da montaria: III:13 1025.
Uma constituição forte e sólida: II:17 590. Levando uma bengala: II:25 633. Vestido de preto e
branco: I:36 204. Capa: I:26 155.
Poema de La Boétie: é o segundo de dois poemas dedicados a Montaigne e incluídos na edição
Montaigne das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.], ff. 102r-103r (“Ad Belotium
et Montanum”) e 103v-105r (“Ad Michaëlem Montanum”). Foram publicados in Montaigne
Studies 3, nº 1 (1991) com tradução inglesa de R. D. Cottrell (16-47).
Toulouse: Montaigne afirma ter conhecido lá o médico Simon Thomas (I:21 82) e menciona o
julgamento de Martin Guerre, embora não diga ter comparecido pessoalmente: III:11 959. Paris:
III:9 903.
Montaigne magistrado: ver Almqvist, K., “Magistrature”, in Desan, Dictionnaire 619-22. Sobre os
primeiros anos no Périgueux e a transferência para Bordeaux: Frame, Montaigne 46-51, com a
tradução, por Frame, do relatório do discurso de Montaigne.
O trabalho de Montaigne: chegaram a nós cinco das interpretações de Montaigne. Ver Lazard 89.
“É mais trabalhoso”: III:13 996. Juiz Cabresto de Ganso: Tiers livre, caps. 39-44, in Rabelais, The
Complete Works. Jogando dados: 457.
Casos de injustiça: III:13 998. Montaigne sobre o direito: ver Tournon, A., “Justice and the Law”, in
Langer (ed.), Cambridge Companion 96-117, e “Droit”, in Desan, Dictionnaire 284-6. Sobre
outros críticos contemporâneos do direito, ver Sutcliffe, F., “Montaigne and the European legal
system”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 39-47.
Falibilidade dos juízes: II:12 514. Falibilidade das leis: III:13 1000.
Viagens a Paris: sabe-se que Montaigne fez várias entre 1559 e 1561. Ver Lazard 91, 107.
Henrique II “nunca chamava pelo nome certo”: I:46 244.
Sobre o contexto político e religioso francês nas décadas de 1550 e 1560: ver Holt; Knecht, Rise and
Fall e The French Civil Wars; Nakam, Montaigne et son temps.
“É absurdo”: Michel de L’Hôpital citado in Knecht, Rise and Fall 338. “Todos tivessem o seu Deus”
e “Un roi, une foi, une loi”: Elliott, J. H., Europe Divided 1559-1598 (Londres: Fontana, 1968),
93-4, sendo a primeira uma citação do Compenio y breve relación de la Liga (Bruxelas, 1591) de
Pedro Cornejo, f. 6.
“Grande medo”: Knecht, Rise and Fall 349. Vassy e o início da guerra: ibid., 352-5.
Pasquier a M. de Fonssomme, primavera de 1562: Pasquier, E., Lettres historiques 98-100. Citado in
Holt 50.
“Não creio que Deus”: II:23 628-9.
As histórias de Monluc: Monluc 246-72. Encomendas de mais rodas para esquartejamento e estacas:
Nakam, Montaigne et son temps 144·
Montaigne sobre Monluc: II:8 348.
O desafio de d’Escars e a reação de Montaigne: ver Frame, Montaigne 53-5, que também traduz o
relatório do discurso de Montaigne, com base em Payen, J.-F., Recherches sur Montaigne.
Documents inédits, nº 4 (Techener, 1856), 20. Admiração de Montaigne pela facção Lagebâton:
II:17 609.
“Por meu temperamento, estou sujeito a súbitas explosões”: III:5 824. A resposta é discutida in
Frame, Montaigne 52-5.

5. P. Como viver? R. Sobreviva ao amor e às perdas


La Boétie: ver Cocula; e Magnien, M., Montaigne Studies II (1999) está voltado essencialmente para
La Boétie.
“Tão inteira e perfeita”: I:28 165. “Tão interessados um pelo outro”: I:28 169.
O poema de La Boétie foi incluído na edição Montaigne das obras de La Boétie: La Boétie, La
Mesnagerie [etc.], ff. 103v-105r (“Ad Michaëlem Montanum”). Foi publicado in Montaigne
Studies 3, nº 1, (1991), com tradução inglesa de Robert D. Cottrell (16- -47), estando igualmente
traduzido in Frame, Montaigne 75.
Vontades mergulhando e se perdendo: I:28 170. Sobre a questão do amor e da amizade, ver
Schachrer, M. D., “‘That friendship which possesses the soul’: Montaigne loves La Boétie”,
Journal of Homosexuality nº 41 3-4 (200I) 5-21, e Beck, W.J., “Montaigne face à la
homosexualité”, BSAM 6e sér. 9-10 (jan-jun 1982), 41-50.
Feiura: III:12 986. Ver Desan, P., “Laid-Laideur” in Desan, Dictionnaire 561. Sócrates e Alcibíades:
Platão, Simpósio 102 (216a-b).
“Nossas almas se misturam”, “Se me obrigarem”, e “Nossa amizade não tem outro modelo”: I:28
169. “Muitas vezes eu gostaria”: Platão, Simpósio 102 (216a-b).
Montaigne sobre Da servidão voluntária: I:28 175. O manuscrito original nunca foi localizado, sendo
conhecido apenas através de cópias, das quais a de Henri de Mesmes é considerada a mais
fidedigna. Constitui a base da maioria das edições modernas, entre elas a tradução inglesa aqui
usada, de D. L. Schaefer: La Boétie, “Of Voluntary Servitude” (ver “Fontes”). O Rimbaud da
sociologia política: Lacouture 86. Ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in
Desan, Dictionnaire 272-6.
Nero e Júlio César: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 210-11. A tirania, misteriosa como o amor:
ibid. 194. “Um milhão de homens servindo deploravelmente”: ibid. 192.
“É o amor”: coronel Abdullah Nasur, entrevistado em The Man Who Ate His Archbishop’s Liver,
Channel 4 (Reino Unido), 12 de março de 2004. Agradeço a Elizabeth C. Jones por esta citação.
“Profundo esquecimento da liberdade” e força do hábito: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 201.
Alguns poucos libertados pelo estudo da história: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 205-6.
Objetivos de La Boétie: ver Smith, 53.
“Contr’un”, in Reveille-matin des François (1574) e Goulart, S., Mémoires de l’estat de France sous
Charles IX (1577, e 2ª ed. 1579). Também seria incluído numa obra intitulada Vive description de
la tyrannie. Ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in Desan, Dictionnaire 273-
4, e Smith, M., introdução a sua edição de La Boétie, De la Servitude volontaire (1987), 24-6.
Anti-Dictator: La Boétie, Anti-Dictator, tr. H. Kurz (Nova York: Columbia University Press, 1942).
Entre essas edições posteriores está uma publicação da tradução de Kurz sob o título The Politics
of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude (Nova York: Free Life Editions, 1975), com
introdução do libertário Murray Rothbard, reeditada como The Politics of Obedience and Étiene
de La Boétie (Montreal e Nova York & Londres: Black Rose Books, 2007); e The Will to
Bondage, ed. W. Flygare, com introdução de James J. Martin (Colorado Springs: Ralph Myles,
1974), associando a edição protestante francesa de 1577 com uma tradução inglesa anônima de
1735.
“Revolução anônima e de baixa visibilidade de um homem só”: Martin, James J., introdução a La
Boétie, The Will to Bondage, ed. W. Flygare (Colorado Springs: Ralph Myles, 1974), ix.
Oposição ao sufrágio feminino: Spooner, L., “Against woman suffrage”, New Age, 24 fev. 1877. Este
e outros textos podem ser encontrados em http://www.voluntaryist.com/. A ideia de que é possível
promover uma revolução abstendo-se de votar inspirou um romance do escritor português José
Saramago, Ensaio sobre a lucidez (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).
“Parecia que eu mesmo”: Emerson, 92.
Todos os comentários de Montaigne sobre Da servidão voluntária: I:28 175-6.
Revelação de Montaigne sobre a autoria: ver Magnien, M., “Discours de la servitude volontaire”, in
Desan, Dictionnaire 274-5.
“Em substituição a essa obra tão séria”: I:28 176. “Estes versos podem ser encontrados em outro
lugar”: I:29 177. Os 29 sonetos, traduzidos para o inglês por R. P. Runyon, encontram-se in
Schaefer (ed.), Freedom over Servitude 223-35.
Poetas da Plêiade: La Boétie, “Of Voluntary Servitude”, 214. “Mas, retornando ao nosso tema”: ibid.
208. “Mas, retornando do ponto em que”: ibid. 215.
Atribuição a Montaigne: Armaingaud, A., “Montaigne et La Boétie”, Revue politique et
parlementaire 13 (março de 1906), 499-522 e (maio de 1906), 322-48, posteriormente ampliado
em seu Montaigne pamphlétaire: l’enigme du “Contr’Un” (Paris: Hachette, 1910). Schaefer, D.
L., “Montaigne and La Boétie” in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude 1-30, esp. 9-11; e seu
Political Philosophy of Montaigne. Sobre Schaefer, ver Supple, J., “Davis Lewis Schaefer:
Armaingaud rides again”, in Cameron e Willett (eds.), Le Visage changeant (25er75). Martin, D.,
“Montaigne, author of Sobre Voluntary Servitude”, in Schaefer (ed.), Freedom over Servitude
127-88 (flauta: 137).
Truque contra a impotência: I:21 83-4. Honestidade de Montaigne: I:9 25-30. Falta de talento para
jogos: II:17 600-1.
Montaigne sobre La Boétie: Travel Journal, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1207.
A carta de Montaigne ao pai foi publicada em sua edição das obras de La Boétie: La Boétie, La
Mesnagerie [etc.]; também in The Complete Works, tr. D. Frame, 1276-88, de onde foram
extraídas as citações que se seguem.
“Sua mente fora moldada”: I:28 176.
Discordância entre Montaigne e La Boétie sobre a experiência da morte: II:6 327.
“Uma sombria e escura noite”: I:28 174. “Fui acometido”: “Travel Journal”, in The Complete Works,
tr. D. Frame, 1207 (entrada de 11 de maio de 1581). “Tenho sentido enorme falta de um homem
assim” e “Nenhum prazer tem sabor”: III:9 917.
Sêneca sobre a substituição de amigos: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 9. Ed. Loeb I:45. “Algum
homem de valor”: III:9 911. “Não é uma tolice”: III:3 755.
“Unidas e coladas”: I:39 216.
Inscrição a La Boétie: uma reconstituição hipotética foi incluída na edição Thibaudet das obras de
Montaigne (Montaigne, Oeuvres complètes, Paris: Pléiade, 1962). Traduções inglesas in
Starobinski, Montaigne in Motion, tr. Goldhammer 311 (n. 32) (usada aqui) e Frame, Montaigne
80.
Encontrar um homem admirável: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 12. Ed. Loeb I:63. Viver para os
outros e para um amigo: ibid. Carta 48, I:315.
“Ele continua presente em mim”: Montaigne, epístola dedicatória (a Henri de Mesmes) em sua
edição das obras de La Boétie. La Boétie, La Mesnagerie [etc.], in The Complete Works, tr. D.
Frame, 1291.

6. P. Como viver? R. Recorra a pequenos truques


Sobre a combinação das filosofias helenísticas em Montaigne e de maneira geral, ver Hadot.
Traduções de eudaimonia e ataraxia: Nussbaum 15, exceto ataraxia como “imperturbabilidade” e
estar livre de “ansiedade”, encontrado em Popkin xv.
Pacúvio: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 12. Ed. Loeb I:71. As duas possibilidades de Lucrécio,
citadas por Montaigne: I:20 78. A fonte é Lucrécio, De rerum natura III: 938-42.
Fingir que nunca teve: Plutarco, “Para consolo de sua mulher”, Moralia. Ed. Loeb VII: 610. Fingir
que perdeu: Plutarco, “Da tranquilidade mental”, Moralia. Ed. Loeb VI: 469-70.
Ver o mundo tal como é: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 78. Ed. Loeb II:199.
Perguntas à queima-roupa: Epíteto, Discourses II:16 2-3 e III:8 1-5, citado in Hadot 85. Viver
“adequadamente”: III:13 1037.
“Como é bom”: Marco Aurélio, Meditations, tr. M. Hammond (Harmondsworth: Penguin, 2006), 47
(VI:13). Alçar voo para o céu: ibid. 120 (XII:24).
“Contemple mentalmente”: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 99. Ed. Loeb III: 135.
Eterno retorno: Ideia encontrada em Nemésio, De natura hominis XXXVII: 147-8, Platão, Timaeus
39d, e Cícero, De natura deorum II:20. Ver White, Michael J., “Stoic natural philosophy (physics
and cosmology)”, in Inwood, B. (ed.), Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge:
Cambridge University Press, 2003), 124-52, e Barnes, J., “La Doctrine du retour éternel”, in Les
Stoïciens et leur logique. Actes du colloque de Chantilly 18-22 septembre 1976 (Paris, 1978), 3-
20. A ideia seria desenvolvida por Friedrich Nietzsche: ver por exemplo Nietzsche, The Gay
Science, s. 341, e Stambaugh, J., Nietzsche’s Thought of Eternal Return (Washington, DC: Center
for Advanced Research in Phenomenology & University Press of America, 1988).
“Não queira”: Epíteto, Manual VIII: tal como traduzido e citado in Hadot 136.
“Se eu tivesse de viver de novo”: III:2 751-2.
Crises de asma de Sêneca: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 54. Ed. Loeb I:363-5.
Licas e Trasilau: II:12 444. História de Licas extraída de Erasmo, Adágios nº 1981: “In nihil sapiendo
iucundissima vita”. História de Trasilau extraída de Aeliano, Various Histories IV: 25.
“Um pensamento doloroso”: III:4 770.
Consolar a viúva: III:4 765.
“Fui certa vez atingido”: III:4 769.
“Deixei a paixão em paz”: III:4 769.
“Suavemente contornar”: III:5 775.
Zaleuco: I:43 239. A fonte é Diodorus Siculus, Bibliotheca historica XII: V: 21.
“Não ocupe sua cabeça”: III:12 979. “Nossos pensamentos estão sempre em algum outro lugar” e
“mal chegando a roçar-lhes a crosta”: III:4 768.
Pasquier a A. M. de Pelgé, 1619, in Pasquier, Choix de lettres 45-6, traduzido in Frame, Montaigne
283. Raemond, Erreur populaire 159. Expilly, C, soneto na edição Goulart dos Essais de
Montaigne (1595), e in Poèmes (Paris: A. L’Angelier, 1596), citado in Boase, Fortunes 10.
“Somos, não sei como, duplos em nós mesmo”: II:16 570. A ideia de um La Boétie internalizado foi
explorada pela primeira vez por Michel Butor in Essais sur les Essais (1968).
Montaigne podia ter preferido publicar cartas: I:40 225. Relação senhor/escravo: Wilden, A., “Par
divers Moyens on arrive à pareille fin: a reading of Montaigne”, Modern Language Notes 83
(1968), 577-97, esp. 590.
“Diligentemente reunido”: epístola dedicatória de Montaigne a La Boétie, “Vers François”, em sua
edição das obras de La Boétie: La Boétie, La Mesnagerie [etc.]. A epístola encontra-se in The
Complete Works, tr. D. Frame, 1298.
Tradução de Sebond: II:12 387-8. O original era Sebond, R. de, Theologia naturalis, sive liber
creaturarum (Deventer: R. Pafraet, 1484); traduzido por Montaigne como Sebond, Théologie
naturelle (Paris: G. Chaudière, 1569). Sobre Sebond, ver Habert, M., “Sebond, Raimond”, in
Desan, Dictionnaire 898-900.
“Como na época eu estava por acaso desocupado”: II:12 388. Sobre o tempo levado, ver a epístola
dedicatória de Montaigne ao pai, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1289.
“Apologia de Raymond Sebond”: II:12 386-556. Marguerite de Valois aparentemente solicitou a
Montaigne que a escrevesse em algum momento por volta de 1578-79, depois de ler sua tradução.
Ver E. Naya, “Apologie de Raimond Sebond”, in Desan, Dictionnaire 50-4, esp. 51. Sobre esta
obra, ver Blum, C. (ed.), Montaigne: Apologie de Raymond Sebond: de la “Theologia” à la
“Théologie” (Paris: H. Champion, 1990).
“Como a corda”: Cons, L., Anthologle littéraire de la Renaissance française (Nova York: Holt,
1931), 143, traduzido in Frame, Montaigne 170.

7. P. Como viver? R. Questione tudo


Estienne: ele faz o relato na introdução a sua edição de Sexto Empírico, Sexti Philosophi
Pyrrhoniarum Hypotyposeon libri III, ed. H. Estienne. ([Genebra]: H. Stephanus, 1562), 4-5. O
encontro com Hervet é relatado in Popkin 33-4.
“Eu retenho”: II:12 454. Sobre o ceticismo pirrônico transmitido a Montaigne e por ele, ver Bailey;
Popkin; e Nussbaum.
Grãos de areia: Bailey 21-2.
Três enunciados da epokhe: Sexto Empírico, Outlines of Scepticism 49-51 (Livro I: 196, 197 e 202
respectivamente).
“Se alguém afirma”: II:12 452.
Moore, T., Poetical Works, ed. A. D. Godley (Londres: H. Frowde, Oxford University Press, 1910),
278.
Histórias sobre Pirro: II:29 647-8. A fonte de todos esses relatos, seja sobre sua indiferença ou a
incapacidade de mantê-lo, é Diógenes Laércio, Lives and Opinions of Eminent Philosophers
X:52-4.
“Ele não queria se transformar numa pedra” e “arregimentar, manipular e fixar a verdade”: II:12 454.
Medalhas ou jetons de Montaigne: um exemplar subsiste em coleção particular. A descrição que
delas fez: II:12 477. Ver Demonet, M.-L., A Plaisir: sémiotique et scepticisme chez Montaigne
(Orléans: Editions Paradigme, 2002), esp. 35-77.
“Abrandam e moderam”: III:11 959. Caráter insignificante do conhecimento e assombroso do
mundo: III:6 841. “Modéstia” e “profunda necessidade de se surpreender”: Friedrich 132, 130.
“Minha base é tão instável”: II:12 516-17. Sobre suas mudanças de opinião: II:12 514.
Efeitos da febre, de remédios ou de um resfriado: III:12 515-16. Sócrates delirando: II:2 302 e II:12
500. “Toda a filosofia (...) doida varrida” e “Os filósofos, ao que me parece”: II:12 501.
Visão diferente das cores pelos animais: II:12 550. Podemos precisar de oito ou dez sentidos: II:12
541-2. Nossa natureza pode nos impedir de ver as coisas como são: II:12 553.
“Nós, e nosso julgamento”: II:12 553.
Nos “tornarmos sábios a nossas próprias custas”: II:12 514.
“Realmente devemos empenhar nossa alma”: III:13 1034. Sentir prazer nos lapsos de memória: III:13
1002.
Sobre a aprovação do ceticismo pirrônico pela Igreja: Popkin 3-6, 34.
Uma “infusão extraordinária”: II:12 390. A Igreja tinha o direito de policiar seus pensamentos: I:56
278.
“Caso contrário, eu não conseguiria me impedir”: II:12 521.
Gatos hipnotizando pássaros: na época de Montaigne, o interesse por esses poderes da “imaginação”
não raro coincidia com a descrença em feiticeiras e demônios, pois representava uma explicação
alternativa dos fenômenos estranhos. “Mergulho de cabeça”: III:9 902. Este trecho foi criticado in
Arnauld, A. e Nicole, P., La Logique ou l’art de penser (Paris: C. Savreux, 1662). Ver Friedrich
287. “Não crucifiquem as pessoas”: Quint 74.
Inquisição: “Travel Journal”, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1166. Sobre a providência, ver
Poppi, A., “Fate, fortune, providence, and human freedom”, in Schmitt, C. et al. (eds), The
Cambridge History if Renaissance Philosopby (Cambridge: Cambridge University Press, 1988),
641-67.
Fortificação contra a heresia: Raemond, Erreur populaire 159-60. “Bela Apologia” e “Coisas
estranhas cujas razões desconhecemos”: Raemond, L’Antichrist 20-1. Sobre Raemond, ver
Magnien-Simonin, C., “Raemond, Florimond de”, in Desan, Dictionnaire 849-50.
O peixe-papagaio e outros casos de cooperação: II:12 427-8. Atum matemático: II:12 428. Elefante
arrependido: II:12 429. Martim-pescador: II:12 429-30. Polvos e camaleões: II:12 418.
“Uma lebre sem pele nem ossos”: II:12 430-1.
Bossuet, J.-B., Troisième Sermon pour la fête de tous les saints (1668), citado in Boase, Fortunes
414.
Descartes sobre os animais: O Discurso 5 do seu Discurso do método (1637) é dedicado ao tema. Ver
Gontier, T., De l’Homme à l’animal: Montaigne et Descartes ou les paradoxes de la philosophie
moderne sur la nature des animaux (Paris: Vrin, 1998), e seu “D’un Paradoxe à l’autre:
l’intelligence des bêtes chez Montaigne et les animaux-machines chez Descartes”, in Faye, E.
(ed.), Descartes et la Renaissance (Paris: H. Champion, 1999) 87-101.
“Quando brinco com minha gata”: II:12 401. “Nós nos divertimos com macaquices recíprocas”: II:12
401n. Este trecho foi incluído na edição póstuma de 1595 e excluído de algumas edições
modernas (ver Capítulo 18, acima).
“Todo Montaigne”: Lüthy 28. O artigo: Michel, P., “La Chatte de Montaigne, parmi les chats du
XVIe siècle”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne 29 (1964), 14-18. O verbete do
dicionário: Shannon, L., “Chatte de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 162.
“Essa falha” e “Temos uma compreensão medíocre”: II:12 402.
A crise de Descartes ao pé do fogão: Descartes, Discurso do método 35-9 (Discurso 2).
O argumento de Descartes é apresentado em seu Discurso do método e nas Meditações. “Tudo aquilo
que percebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro”: Meditações 148-9
(Meditação 5).
“A Meditação de ontem”: Descartes, Meditações 102 (Meditação 2).
O demônio do mal: Descartes, Meditações 100 (Meditação 1). Demônios em nuvens e alterando os
filamentos do cérebro: Clark 163. Deus enganoso: Descartes, Meditações 98 (Meditação 1). Ver
Popkin 187.
“Nós somos, não sei por que”: II:16 570. “Não temos comunicação com o ser”: II:12 553.
Anotações de Pascal sobre o “FOGO”, datadas de 1654: citado in Coleman, F. X. J., Neither Angel
nor Beast (Nova York & Londres: Routledge & Kegan Paul, 1986), 59-60.
“Espírito de geometria”: Pascal. B., De l’Esprit geométrique [etc.] (Paris: Flammarion, 1999).
“O grande adversário”: Eliot 157.
Inutilidade de combater o pirronismo: Pascal, Pensées nº 164, p. 41.
“Tudo ele submete a uma dúvida universal” e “tão convenientemente instalado”: Pascal, “Discussão
com M. de Sacy”, in Pensées 183-5.
“Dentre todos os autores”: Eliot 157.
“Não é em Montaigne”: Pascal: Pensées nº 568, p. 131.
Montaigne: “Como choramos e rimos”: I:38 208. Pascal: “Portanto, choramos e rimos”: Pascal,
Pensées nº 87, p. 22. Montaigne: “Eles querem sair de si mesmos”: III:13 1044. Pascal: “O
homem não é anjo nem fera”: Pascal, Pensées nº 557, p. 128. Montaigne: “Ponha-se um filósofo
numa jaula”: II:12 546. Pascal: “Se pusermos o maior filósofo do mundo numa prancha”: Pascal,
Pensées nº 78, p. 17.
“Um caso grave de indigestão”: Bloom, H., The Western Canon (Londres: Papermac, 1996), 150.
Borges, J. L., “Pierre Menard, author of the Quixote”, in Fictions (Harmondsworth: Penguin,
1999), 33-43.
“Temos em tão alta conta”: Pascal, Pensées nº 30, p. 9. “Parece-me”: I:50 268.
“Quem quer que assim olhe para si”: Pascal, Pensées nº 230, pp. 66-7. “Contemplando nossa
cegueira”: ibid. nº 229, p. 65.
“Em que pensa o mundo?”: Pascal, Pensées nº 513, p. 123. “Sensibilidade humana para as coisas
pequenas”: ibid. nº 525, p. 124.
Voltaire: “Sobre as Pensées de Pascal”, em suas Letters On England, tr. L. Tancock (Harmondsworth:
Penguin, 1980), Carta 25, 120-45. “Arrisco-me a defender a humanidade”, ibid. 120. “Quando
vejo Paris”, ibid. 125. “Que esplêndida ideia”: ibid. 139.
“Aceito de todo coração”: III:13 1042.
Não podemos nos elevar acima da humanidade: I:12 556. “É uma absoluta perfeição...”: III:13 1044.
“Conveniência e calma” e risco moral: Pascal, “Discussão com M. de Sacy”, in Pensées 188 e 191.
Malebranche: Malebranche 184-90. “Suas ideias são falsas mas belas”: ibid. 190. “A mente não pode
sentir-se satisfeita”: 184.
Montaigne o “sedutor”: Guizot, Montaigne: Études et fragments, citado in Tilley 275. A “prodigiosa
máquina de sedução”: Mathieu-Castellani, G., Montaigne: l’écriture de l’essai 255.
“Pensamentos que surgem naturalmente”: La Bruyère, J. de, Characters, tr. J. Stewart
(Harmondsworth: Penguin, 1970). Livro I, nº 44, p. 34 (Tradução de Caractères, 1688).
Sobre os libertins, ver Pessel, A., “Libertins – libertinage”, in Desan, Dictionnaire 588-9, e
Montaigne Studies 19 (2007), dedicado ao tema. Sobre Marie de Gournay, ver Dotoli, G.,
“Montaigne et les libertins via Mlle de Gournay”, in Tetel (ed.). Montaigne et Marie de Gournay
105-41, esp. 128-9. Sobre La Fontaine, ver Boase, Fortunes 396-406.
La Rochefoucauld: La Rochefoucauld, F. de, Maxims, tr. L. Tancock (Harmondsworth: Penguin,
1959). “Somos às vezes tão diferentes”: ibid. nº 135, p. 51. “A maneira mais certa de se enganar”:
ibid. nº 127, p. 50. “O acaso e o capricho”: ibid. nº 435, p. 88. “Com frequência indispomos os
outros”: ibid. nº 242, p. 66.
Bel esprit: “alegre, vivaz, cheio de entusiasmo” é a definição de Bohours, Entretiens d’Ariste et
d’Eugène (1671), 194, citado in Pessel, A., “Libertins – libertinage”, in Desan, Dictionnaire 589.
Honnêteté: definição da Académie citada in Villey, Montaigne devant la postérité 339. Ver
Magendie, M., La Politesse mondaine et les théories de l’honnêteté, en France, au XVII siècle
(Paris: Alcan, 1925).
“Um perspicaz coquetismo”: Nietzsche, Human, All Too Human, Aforismo 37, p. 41.
“A mais livre e poderosa” e “O fato de este homem ter escrito”: Nietzsche, “Schopenhauer as
Educator”, in Untimely Meditations 135. “Se tivesse de viver de novo”: III:2 751-2. Sobre
Nietzsche e Montaigne, ver Donellan, B., “Nietzsche and Montaigne”, Colloquia Germanica 19
(1986), 1-20; Williams, W. D., Nietzsche and the French: A Study of the Influence of Nietzsche’s
French Reading on his Thought and Writing (Oxford: Blackwell, 1952); Molner, David, “The
influence of Montaigne on Nietzsche: a raison d’être in the sun”, Nietzsche Studien 22 (1993), 80-
93; Panichi, Nicola, Picta historia: lettura di Montaigne e Nietzsche (Urbino: Quattro Venti,
1995).
O ataque de Arnauld e Nicole: Arnauld, A. e Nicole, P., La logique ou l’art de penser (Paris: C.
Savreux, 1662), e 2ª ed. (Paris: C. Savreux, 1664). Ver Boase, Fortunes 410-11.
Os livros esgotados são mais fáceis de vender: III:5 781.
“Não é em Montaigne”: Pascal, Pensées nº 568, p. 131.

8. P. Como viver? R. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja


“Nunca pude constatar”: III:5 830. “Eu faço investidas”: III:3 755.
Deprimente ser aceito por piedade: III:5 828-9. Não gosta de criar problemas: III:5 800. “Abomino a
ideia” e a história do egípcio frenético: III:5 816. “Na verdade, nesse deleite”: III:5 828.
“Só com metade do traseiro” e “molho de uma imaginação mais agradável”: III:5 817.
“No lugar das partes reais” e “Os danos”: III:5 791. “Mesmo as matronas”: III:5 822. A fonte desta
última é Diversorum veterum poetarum in Priapum lusus (Veneza: Aldus, 1517), nº 72(1), f. 15v.
e nº 7(4-5), f. 4v., adaptado por Montaigne.
“Nossa vida é em parte loucura” e as citações de Bèze e Saint-Gelais: III:5 822-3. Bèze, T. de,
Poemata (Paris: C. Badius, 1548), f. 54v. Saint-Gelais, “Rondeau sur la dispute des vits par quatre
dames”, in Oeuvres poétiques françaises, ed. D. H. Stone (Paris: STFM, 1993), I:276-7.
Françoise de La Chassaigne e sua família: Balsamo, J., “La Chassaigne (famille de)” e “La
Chassaigne, Françoise de”, in Desan, Dictionnaire 566-8. Sobre Françoise e o casamento: Insdorf,
47-58. Montaigne sobre a idade ideal de Aristóteles: II:8 342. A fonte é Aristóteles, Política
VI:16 1335a. Montaigne registrou a data de nascimento de Françoise em seu diário da Ephemeris
de Beuther, assim como a de seu casamento: entradas de 13 dez. e 23 set. respectivamente.
“As esposas sempre têm tendência”: II:8 347.
“Eu advirto (...) minha família”: II:31 660.
Sócrates e o moinho d’água: III:13 1010. A fonte é Diógenes Laércio, Vidas e opiniões de filósofos
eminentes, II:36. Sócrates valendo-se do temperamento da mulher como prática filosófica: II:11
373.
Descrição de Gamaches: Gamaches, C., Le Sensé raisonnant sur les passages de l’Escriture Saincte
contre les pretendus réformez (1623), citado in Frame, Montaigne 87. Sua correspondência com
Dom Marc-Antoine de Saint-Bernard: Frame, Montaigne 87-8.
A torre de Françoise: Gardeau e Feytaud 21.
“Meus pensamentos caem no sono”: III:3 763.
“Marido e mulher devem ter quartos separados”: Alberti, L. B., On the Art of Building, tr. J. Rykwert,
N. Leach e R. Tavernor (Boston, Mass., 1988), 149, citado in Hale 266.
“Aquele que supuser”: I:38 210. Sobre opiniões diferentes a respeito do casamento, ver Lazard 146.
“Que digam o que quiserem” e “Ninguém tenho, creio eu”: epístola de Montaigne a sua mulher pela
tradução da Lettre de consolation de Plutarco por La Boétie, in La Boétie, La Mesnagerie (etc.) e
in The Complete Works, tr. D. Frame, 1300.
Comentários de Montaigne sobre seu casamento: III:5 783-6.
“Muitas vezes ouvi o autor dizer”: comentários de F. de Raemond em seu exemplar de Os ensaios,
citado in Boase, “Montaigne annoté par Florimond de Raemond”, 239, e in Frame, Montaigne 93,
de onde foi extraída esta tradução.
“Um homem (...) deve tocar a esposa com prudência” e coagulação do esperma: III:5 783. Reis da
Pérsia: I:30 179. Sobre essas teorias, ver Kelso, R., Doctrine for the Lady of the Renaissance
(Urbana: University of Illinois Press, 1956), 87-9.
Melhor que a esposa pratique a licenciosidade com outro: I:30 178. É de qualquer maneira o que as
mulheres preferem: III:5 787.
Semelhança entre o casamento ideal e a amizade ideal: III:5 785. Mas falta liberdade de escolha, e as
mulheres carecem de “firmeza”: I:28 167.
“Ferida no coração”: Sand, G., Histoire de ma vie (Paris: M. Lévy, 1856), VIII: 231. Sobre a
educação feminina e Louise Labé: Davis, N. Z., “City women and religious change”, in Davis,
Society and Culture 72-4. Chegou-se a afirmar que Labé seria pseudônimo de um grupo de poetas
do sexo masculino: Huchon, M., Louise Labé: une créature de papier (Genebra: Droz, 2006).
“As mulheres não estão erradas”: III:5 787-8. “Machos e fêmeas provêm”: III:5 831. Duplo critério:
III:5 789. “Somos em quase todas as coisas juízes injustos”: III:5 819.
“Devemos ter esposa, filhos, bens”: I:39 215.
Entradas sobre mortes de crianças: Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 21 fev., 16 mai., 28
jun., 5 jul., 9 set. e 27 dez.
Montaigne sobre a perda dos filhos: I:14 50. Datação de seu acidente de equitação: II:6 326. “No
segundo ano”: epístola dedicatória de Montaigne à mulher, pela tradução da Lettre de consolation
de Plutarco feita por La Boétie, in La Boétie, La Mesnagerie [etc]. e in The Complete Works, tr.
D. Frame, 1300-1.
“Constato outros motivos comuns de aflição”: I:14 50.
Ensaio sobre a tristeza: I:2 6-9. Data de 1572-74 estabelecida por Donald Frame in sua edição de The
Complete Works, p. vii. Níobe: I:2 7. O relato provém de Ovídio, Metamorfoses VI: 304-54
Léonor: ver Balsamo, J., “Léonor de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 575-6.
“O governo das mulheres”, o episódio fouteau e a “compleição acanhada” de Léonor: III:5 790.
Punição com palavras severas delicadas: II:8 341.
“Eu dou as cartas”: I:23 95. O jogo das coisas que se encontram nos extremos: I:54 274.
“É horrível”: III:9 882. “Há sempre alguma coisa”: III:9 880. “Fermentar o vinho”: II:17 601. Sobre
colheitas ruins, a peste e o uso de sua influência para vender vinho: Hoffmann 9-10.
“Eu enfrento bem”: II:17 591. Nunca examinou uma escritura: III:9 884.
“Não sei calcular”: II:17 601.
Catecismo negativo: cf. I:31 186.
Admiração pelo conhecimento prático e específico: III:9 882-3. “Como nunca até hoje me foi
imposto senhor nem governador” e “Extremamente indolente, extremamente independente”: II:17
592. “Liberdade e preguiça”: III:9 923.
Melhor perder dinheiro que contar cada tostão: II:17 592. Os avaros também são enganados: III:9
884. A história do marquês de Trans: II:8 346. Montaigne não o cita nominalmente; ele foi
identificado por Raemond numa nota marginal. Ver Boase, “Montaigne annoté par Florimond de
Raemond”.
“Nada me custa caro” e desejo de um genro: III:9 883-4. “Eu evito submeter-me”: III:9 897. “Tento
não ter necessidade explícita”: III:9 899. “Adquiri um ódio mortal”: III:9 900.
Hípias de Élis: III:9 899. O relato é de Platão, Hípias menor 368 b-d, e Cícero, De oratore III:32 127.
As “pessoas de espírito livre” de Nietzsche: Nietzsche. Human, All Too Human, Aforisma 291, 173-
4.

9. P. Como viver? R. Seja sociável: viva com os outros


“Existem temperamentos secretos, recolhidos e introspectivos” e “Meu padrão essencial”: III:3 758.
Conversa melhor que livros: I:17 59. “A troca vívida e penetrante”: III:8 871. “Um maravilhoso
fulgor”: I:26 140.
“Nenhuma afirmação me espanta”: III:8 855. Gosta de ser contestado: III:8 856-7. Doce conversa:
Raemond, Erreur populaire 159. Nada de “estar sempre atendendo e acompanhando alguém”:
III:3 758.
Entediado com tagarelice: II:17 587. A atenção vagueia: III:3 754. Mas ele enxerga seu valor: I:13
39.
Afabilidade, a arte de bem viver: III:13 1037. “Uma sabedoria alegre e sociável”: III:5 778.
Boa vontade: Nietzsche, Human, All Too Human, Aforisma 49, p. 48.
Família Foix: ver Balsamo, J., “Foix (famille de)”, in Desan, Dictionnaire 405-8. O homem que dava
festas demais: II:8 344. O homem que não usava lenço para se assoar: I:23 96. Florimond de
Raemond, contemporâneo de Montaigne, os identificava como Jean de Lusignan e François de La
Rochefoucauld respectivamente: ver Boase, “Montaigne annoté par Florimond de Raemond”.
Dedicatárias femininas: Diane de Foix, condessa de Gurson (I:26), Marguerite de Gramond (I:29)
e Mme d’Estissac (II:8).
Ele promoveu uma caçada para Henrique de Navarra em 1584: ver Montaigne, Le Livre de raison,
entrada de 19 dez. Sobre as justas: III:8 871. Sobre entretenimentos de salão: I:54 273. Os
enigmas provavelmente eram semelhantes aos descritos na coleção Bigarrures, de seu quase
contemporâneo Tabourot des Accords: Étienne Tabourot, sieur des Accords, Les Bigarrures
(Rouen: J. Bauchu, 1591), [Livro I].
Arremessador de grãos de milhete: I:54 274. Bebê com uma parte sem cabeça de outra criança presa
ao torso: II:30 653-4. Pastor hermafrodita: II:30 654. Homem sem braços: I:23 95. Os “monstros”
contrariam o hábito, não a natureza: II:30 654.
“Não encontrei neste mundo mais evidente monstruosidade”: III:II 958.
Negócios da propriedade: ver Hoffmann 14-15.
Temendo ser morto durante o sono: III:9 901.
Botero: Botero, G., The Reason of State and The Greatest of Cities, tr. R. Peterson e P. J. e D. P.
Waley (Londres, 1956), 279, citado in Hale 426. “Um porteiro de antigos modos e hábitos”: II:15
567.
As casas guardadas sofriam mais ataques, com explicação de Sêneca: II:15 567-8. A fonte é Sêneca,
Lettters to Lucilius, Carta 68. Ed. Loeb II:47. Nenhuma vantagem em assaltar uma casa aberta:
II:15 567. “O seu criado pode estar nas fileiras”: II:15 568.
Soldados desarmados pela franqueza de Montaigne: III:12 988-90.
Ataque na floresta: III:12 990-1. Episódio diferente do assalto por ele sofrido em 1588 a caminho de
Paris, igualmente relatado em Os ensaios.
Relatos de confronto e submissão: I:1 1-5.
O veado: II:11 383. Um crítico, David Quint, considera essa história do veado como uma cena primal
revivida através de Os ensaios mas nunca resolvida. Quint 63.
Pedir e conceder misericórdia sem submissão nem medo: I:5 20. “Pura e límpida confiança”: I:24
115.
“Quando as armas trovejam”: III:1 739. A fonte é Lucan VII:320-2.
Epaminondas: II:36 694-6, I:42 229, II:12 415 e (no caso de “no comando da própria guerra”) III:1
738. Ver Vieillard-Baron, J.-L., “Épaminondas”, in Desan, Dictionnaire 330.
“Cuidemos de privar”: III:1 739.
Cruelmente odiando a crueldade: II:11 379. Ódio a caçadas: II:11 383. Galinha ou lebre: II:11 379.
Sobre Montaigne e a crueldade, ver Brahami, F., “Cruauté”, in Desan, Dictionnaire 236-8, e
Hallie, P. P., “The ethics of Montaigne’s ‘De la cruauté’”: in La Charité, R. C. (ed.), O un amy!
Essays on Montaigne in Honor of Donald M. Frame (Lexington, Ky.: French Forum, 1977), 156-
71.
“Nem mesmo as execuções da lei”: II:11 380-1. “Sou tão melindroso”: III:12 992.
Os franceses e suas outras metades: I:31 193. “É sempre a mesma e única natureza”: 1I:12 416.
“Existe certo respeito” e “Não receio admitir”: II:11 385.
Pascal, alvo de zombaria de Montaigne: Pascal, “Discussion with M. de Sacy”, in Pensées 188.
Leonard Woolf sobre Montaigne e a crueldade, e o afogamento de filhotes: Woolf, L., 17-21.
William James: James, W., “On a certain blindness in human beings”, de Talks to Teachers on
Psychology (Nova York: Henry Holt, 1912), in The Writings of William James, ed. J. J.
McDermott (Chicago: Universiry of Chicago Press, 1977), 629-45. “Deleite e vibração”: 629-31.
Esquecê-lo é o pior erro: 644-5.

10. P. Como viver? R. Desperte do sono do hábito


“Lembro-me de estar deitada”: Woolf, V., Diary I:190 (entrada de 8 set. 1918).
Exemplos de costumes diferentes: I:23 98-9; I:49 263-5; II:12 431-2.
“Este vasto mundo”: I:26 141.
Batatas das Américas: Hale 173.
Perspectivas e aventuras coloniais da França: Knecht, Rise and Fall 287, 297-300 (Brasil), 392-4
(Flórida).
Conversa de Montaigne com os tupinambás: I:31193. Sua coleção de objetos das Américas: I:31 187.
O criado que conhecia o Brasil e outros aos quais apresentou Montaigne: I:31 182-4.
Leituras de Montaigne: López de Gómara, Historia de las Indias, traduzido para o francês por Martin
Fumée em 1568 sob o título Histoire generalle des Indes. Bartolomé de Las Casas, Brevisima
relación de la destruccion de las Indias, traduzido para o francês sob o título Tyrannies et
cruautés des Espagnols... (1579). Thevet, A., Les Singularitez, e Léry, J. de, Histoire d’un voyage
fait en la terre du Brésil (La Rochelle: A Chuppin, 1578). As anedotas de Léry são reproduzidas
da moderna tradução inglesa: Léry, History of a Voyage. Idosos sem cabelos brancos: ibid. 56-7.
Lutar pela honra: ibid. 112-21. Banquetes canibais: ibid. 122-33. O pé humano: ibid. 163-4. Léry
sentindo-se mais seguro: ibid. 169. Canibalismo em Sancerre: Léry, J. de, Histoire mémorable de
la ville de Sancerre ([La Rochelle], 1574). Sobre Léry, ver Lestringant, F., Jean de Léry ou
l’invention du sauvage, 2ª ed. (Paris: H. Champion, 2005).
Incas e astecas: III:6 842.
“Trata-se de uma nação”: I:31 186.
“Houve um tempo em que não havia cobras”: Kramer, S. N., History Begins at Sumer (Nova York,
1959), 222, citado in Levin 10.
Typee: Melville, H., Typee, citado in Levin 68-9.
Estoicos: Sêneca, Letters to Lucilius, Carta 90. Ed. Loeb II: 395-431. Sobre os estoicos e o
primitivismo, ver Lovejoy, A. O. e Boas. G., A Documentary History of Primitivism and Related
Ideas, Vol. I (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1934), 106-7.
Frutas silvestres: I:31 185. As duas canções dos canibais: I:31 191-2. “Poesia puramente e natural”:
I:54 276.
Posteridade da canção de amor canibal: Chateaubriand, Mémoires d’outre-tombe, ed. M. Levaillant e
G. Moulinier (Paris: Gallimard, 1964), 247-8 (Livro VII, cap. 9), citado in Lestringant 189. Kleist,
Herder e Goethe: ver Langer. U., “Montaigne’s ‘couleuvre’: notes on the reception of the Essais
in 18th-century Germany”, Montaigne Studies 7 (1995), 191--202, e Bouillier, La Renommée de
Montaigne en Allemaagne 30-1. Sobre Goethe, ver Bouillier, V., “Montaigne et Goethe”, Revue
de littérature comparée 5 (1925), 572-93. Sobre os fogões alemães: Moureau, F., “Le Manuscrit
du Journal de Voyage: découverte, édition et copies”, in Michel et al. (eds), Montaigne et les
Essais 1580-1980, 289-99, esta citação 297.
“Eles queimam as vítimas vivas”: I:30 181.
“Não lamento”: I:31 189.
Coste: Montaigne, Essais, ed. P. Coste (Londres, 1724, e Haia, 1727). Sobre Coste, ver Rumbold, M.
E., Traducteur Huguenot: Pierre Coste (Nova York: P. Lang, 1991). Espantado por ter de esperar
tanto: por exemplo Nicolas Bricaire de la Dixmerie, Eloge analytique et historique de Michel
Montaigne (Amsterdã & Paris: Valleyre l’aîne, 1781), 2. Ver Moureau, F., “Réception de
Montaigne (XVIIIe siècle)”, in Desan, Dictionnaire 859.
Diderot, D., Supplément au voyage de Bougainville (1796), tradução inglesa de J. Hope Mason e R.
Wokler in Diderot, Political Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), 31-75.
Seguir a natureza para ser feliz: 52-3. Sobre Diderot, ver Schwartz, J., Diderot and Montaigne:
the Essais and the Shaping of Diderot’s Humanism (Genebra: Droz, 1966).
Sobre Rousseau e Montaigne: ver Fleuret, e Dréano. O exemplar de Os ensaios de Rousseau
encontra-se na Biblioteca da Universidade de Cambridge.
Rousseau, Discurso sobre a origem da desigualdade. “Eu vejo um animal”: 26. Condições duras o
fortalecem: ibid. 27. A civilização o torna “sociável e um escravo”: ibid. 31. Os selvagens não se
matam: ibid. 43. Assassinato debaixo da janela de um filósofo: ibid. 47.
Rousseau, Émile. Ver Fleuret 83-121.
“Situo Montaigne em posição de destaque”: este prefácio consta da edição Neuchâtel mas não das
edições modernas baseadas no manuscrito de Paris. Foi incluído como apêndice na tradução de
Angela Scholar: Rousseau, Confessions, 643-9, esta citação 644. “É este o único retrato de um
homem”: prefácio da versão de Paris, Rousseau, Confessions 3.
“Eu conheço os homens”: Rousseau, Confessions 5·
Montaigne “representa a forma inteira da condição humana”: III:2 740.
Acusações contemporâneas: Cajot, J., Plagiats de M. J. J. R[ousseau], de Genève, sur l’éducation
(Haia, 1766), 125-6. Bricaire de la Dixmerie, N., Eloge analytique et historique de Michel
Montaigne (Amsterdã & Paris: Valleyre l’aîne, 1781), 209-76, esta citação 259.

11. P. Como viver? R. Viva com temperança


Sobre reações no início do século XIX, especialmente à amizade de Montaigne com La Boétie, ver
Frame, Montaigne in France 17-23. Sand: Sand, G., Histoire de ma vie (Paris: M. Lévy, 1856),
VIII: 230-1. Lamartine: “Tudo que nele admiro”, “porque é você” e “amigo Montaigne”:
Lamartine a Aymon de Virieu, 21 mai. [1811], 26 jul. 1810 e 9 nov. 1809 respectivamente, in
Lamartine I:290, I:235, I:178.
Sobre visitas à torre, ver Legros. Sobre o estado do castelo antes do século XIX: Willett 221.
Compan e Gaillon: citado in Legros 65-75.
“Não tenho grande experiência”: II:12 520. “Gosto de pessoas de natureza temperada e moderada”:
I:30 177. “Meus excessos não me levam muito longe”: III:2 746. “As vidas mais belas”: III:13
1044.
Lamartine volta-se contra Montaigne: Lamartine a Aymon de Virieu, 21 mai. [1811], in Lamartine
I:290. Sand “não era discípula de Montaigne”: George Sand a Guillaume Guizot, 12 jul. 1868, in
Sand, G., Correspondance (Paris: Garnier, 1964-69), V: 268-9.
Sobre Tasso: II:12 441. A poesia pede “frenesi”: II:2 304. Mas “o arqueiro que atira além do alvo”:
I:30 178.
Não é “um poeta”: Chasles, P., Etudes sur le XVIe siècle en France (Paris: Amyot, 1848), xlix.
“Indiferença estoica”: Lefèvre-Deumier, J., Critique littéraire (Paris: Firmin-Didor, 1825-45),
344. Sobre ambos, ver Frame, Montaigne in France 15-16. “A moderação acha-se bela”:
Nietzsche, Alvorecer 167 (Livro IV, s. 361).
Sobre o êxtase no Renascimento, ver Screech 10.
“Os humores transcendentais me assustam”: III:13 1044.
Mediocridade: III:2 745. Humano e sub-humano: III:13 1044.
Viver adequadamente: III:13 1037. “Não há nada tão belo”: III:13 1039.
West, R., Black Lamb and Gray Falcon (Londres: Macmillan, 1941), II:496-7.

12. P. Como viver? R. Preserve sua humanidade


Quanto a saber quem estaria por trás do atentado a Coligny, ver Holt 83-5. Sobre os massacres de São
Bartolomeu de modo geral, ver Diefendorf, e Sutherland, N. M., The Massacre of Saint
Bartholomew and the European Conflict 1559-72 (Londres: Macmillan, 1972). Montaigne nada
diz sobre os massacres em Os Ensaios, mas pode ter escrito a respeito em seu diário, a Ephemeris
de Beuther — faltam páginas relativas a 24 de agosto e 3 de outubro, as datas dos massacres
respectivamente em Paris e Bordeaux. Talvez se arrependesse do que escrevera e tivesse
arrancado as páginas, ou então isto teria sido feito por seus descendentes. Ver Nakam, Montaigne
et son temps 192.
A história dos Lussault é citada in Diefendorf 100-2. Sobre a purificação pelo fogo e a água: Davies,
N.Z., “The rites of violence”, in seu livro Society and Culture 152-87, esp. 187.
Sobre o número de mortes, ver Holt 94 e Langer, U., “Montaigne’s political and religious context”, in
Langer (ed.), Cambridge Companion 14.
Os massacres de Bordeaux: Holt 92-4. Canto e alaúdes em Orléans: Holt 93. Interpretação do
envolvimento de crianças, escala sobre-humana dos acontecimentos e medalha romana: Crouzet
II: 95-8. Medalhas de Carlos IX: Crouzet II: 122-3.
Jean La Rouvière: citado in Salmon, J. H. M., “Peasant revolt in Vivarais, 1575-1580”, in
Renaissance and Revolt (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), 221-2. Ver Holt 112-14.
Apocalipse iminente: ver Cunningham e Grell 19-91, que também analisa cada “cavaleiro”.
Lobisomem, gêmeos e nova: Crouzet II: 88-91. “Ruína final”: Gournay, Apology for the Woman
Writing [etc.] 138. Postel: Crouzet II: 335.
O derradeiro esforço do Diabo: ver Clark 321-6. Wier: Wier, J., De praestigis daemonum (Basileia: J.
Oporinus, 1564), citado in Delumeau, 251. Bodin e as feiticeiras: Bodin, J., On the Demon-Mania
of Witches, tr. R. A. Scott (Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 1995),
tradução de De la Démonomanie des sorciers (Paris: I. Du Puys. 1580), 200 (“rigor legal”) e 198
(comentários públicos “quase infalíveis”). Sobre a reativação de técnicas medievais como
afogamento e queimaduras: Clark 590-1. O pânico em torno das feiticeiras mantém-se no auge até
aproximadamente 1640, com diferentes picos nos diversos países europeus, causando dezenas de
milhares de mortes. Inutilidade da tortura: II:5 322-3. “Pagar um preço muito alto”: III:II 961.
Anticristo: História África/Babilônia relatada nas Nouvelles admirables d’un enfant monstre (1587)
de Jean de Nury, citado in Crouzet II:370. Raemond: Raemond, L’Antichrist. Ver Magnien-
Simonin, C., “Raemond, Florimond de”, in Desan, Dictionnaire 849-50.
Ardor sagrado: Crouzet II: 439-44.
Entre as publicações protestantes radicais do período estão Francogallia, de Françis Hotman (escrito
basicamente em período anterior, mas publicado em 1573 e tendo alcançado grande popularidade
em meio aos massacres), Du Droit des magistrats sur leurs subiets (1574), de Théodore de Bèze,
e o Vindiciae contra tyrannos de 1579, por Hubert Languet, embora seja atribuído por certas
fontes a Philippe Duplessis-Mornay. Ver Holt 100-1.
Os relatos sobre os excessos comportamentais e de indumentária de Henrique III baseiam-se
sobretudo em Pierre de L’Estoile, memorialista protestante nem sempre confiável. L’Estoile, P. de,
The Paris of Henry of Navarre as vern by Pierre de l’Estoile, ed. N. Lyman Roelker (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1958). Comer com garfo, dormir de camisola, lavar o cabelo:
Knecht, Rise and Fall 489.
Montaigne sobre as procissões de penitência: I:26 140. Sobre o caráter vago das previsões: I:11 34-5.
Caráter imaginário da feitiçaria: III:II 960-1.
Riscos da imaginação: Del Rio, M., Disquisitionum magicarum libri sex (1599) e Lancre, P. 212 De
l’Incrédulité et mescreance du sortilège (1622), ambos citados in Villey, Montaigne devant la
posterité 360, 367-71. Ver Courcelles, D. de, “Martin Del Rio”, e Legros, A., “Lancre, Pierre
Rostegui de”, ambos in Desan, Dictionnaire 243-4, 561-2.
Politiques: Crouzet II:250-2. “Ele veste a pele de um cordeiro”: Dieudonné, R. de, La Vie et
condition des politiques et athéistes de ce temps (Paris: R. Le Fizelier, 1589), 17.
Acusações dos politiques contra os liguistas: ver por exemplo Lettre missive aux Parisiens d’un
Gentilhomme serviteur du Roy ... (1591), 4-5, citado in Crouzet II:561. Montaigne: “Nosso ardor
opera maravilhas” e “Não há hostilidade”: II:12 393-4.
Os politiques achavam que tudo se acalmaria: ver por exemplo De la Tranquillité de l’esprit (1588),
de Louys Le Caron, L’Irenophile discours de la paix (1594), de Saint-Germain d’Apchon, e La
Constance et consolation ès calamitez publiques (1594-5), de Guillaume du Vair. Crouzet II: 555-
7.
Dentre os críticos que consideram que a experiência de Montaigne é dominada pela guerra destaca-se
Frieda Brown: ver Brown, F., Religious and Political Conservatism in the Essais of Montaigne
(Genebra: Droz, 1963). Sobre esta questão, ver Coleman, J., “Montaigne and the Wars of
Religion”, in Cameron (ed.), Montaigne and his Age 107. Montaigne: “Fico impressionado de
constatar” e “Todo aquele que contemplar”: I:26 141. “Será de espantar”:II:16 577. “Não perco
esta esperança”: III:9 892.
Cartas de Lipsius: Justus Lipsius a Montaigne, 30 Ag. 1588 e 18 Set. 1589, citado in Morford, M.
P.O., Stoics and Neostoics: Rubens and the Circle of Lipsius (Princeton, NJ: Princeton University
Press, 1991), 160.
Zweig inicialmente indiferente a Os Ensaios: todas essas observações de Zweig, “Montaigne” 8-9.
O exílio de Zweig: Zweig, World of Yesterday 430-2. “Não me sinto em casa em lugar algum”: ibid.
xviii.
“A semelhança de sua época”: Zweig a Jules Romains, 22 Jan. 1942, citado in  Bravo Unda, G.,
“Analogies de la pensée entre Montaigne et Stefan Zweig”, Bulletin de la Société des Amis de
Montaigne II, nº 2 (1988), 95-106. “Nessa fraternidade”: Zweig, “Montaigne” 10.
A questão para uma pessoa íntegra: Zweig, “Montaigne” 14. “Ele não se sai com as invectivas
exaltadas”: ibid. 15. Montaigne empregando seus defeitos: ibid. 76.
Regras extraídas por Zweig: Zweig, “Montaigne” 55-8.
Mensagem de suicídio: reproduzida em apêndice a Zweig, World of Yesterday 437.
Só restasse a defender um desnudo “eu”: Zweig, “Montaigne” 10. “Só alguém”: ibid. 7. Leonard
Woolf: Woolf, L. 18-19.
Macé-Scaron: Macé-Scaron 76.
Flaubert: Gustave Flaubert a Mlle Leroyer de Chantepie, 16 de junho de 1857, citado in Frame,
Montaigne in France 61.

13. P. Como viver? R. Faça algo que ninguém nunca tenha feito
Detalhes das primeiras edições de Os Ensaios in “Sources”; ver também Sayce e Maskell. Millanges:
ver Hoffmann 66-83. Sobre as duas edições Millanges (1580 e 1582), ver Blum, C., “Dans
l’Atelier de Millanges”, in Blum & Tournon (eds), Editer les Essais de Montaigne (79-97). Sobre
a tiragem da primeira edição: Desan, P., “Édition de 1580”, in Desan, Dictionnaire 297-300, isto
em 300.
La Croix du Maine: La Croix du Maine 329. Os Ensaios também aparecia na bibliografia semelhante
de Antoine Du Verdier, La Bibliothèque d’Antoine Du Verdier, seigneur de  Vauprivas (Lyon,
1585), artigo sobre “Michel de Montaigne”, 872-81. Os Ensaios se desempenhou melhor do que
Montaigne esperava: III:9 895. “Uma peça do mobiliário”: III:5 781.
“Meu Senhor, entãoVossa Majestade também gosta de mim”: La Croix du Maine 329. Cf. a
referência de Montaigne ao próprio livro como “consubstancal com o autor”: II:18 612.
Vinho tinto: Scaliger e Dupuy citados in Villey, Montaigne devant la postérité 73. Do vinho tinto ao
branco: III:13 1031. “Insolência”: Malebranche, La recherche de fa vérité (1674), 369, citado in
Marchi 48. Pascal: Pascal, Pensées nº 534, p. 127.
Pattison: Pattison, M., resenha in Quarterly Review 198 (Set. 1856), 396-415, isto na p. 396.
“Tagarelice”: St. John, B., Montaigne the Essayist (Londres: Chapman & Hall, 1858), I: 316-17.
“O homem em si mesmo”, o “cerne”: Sterling 323-4.
“Volto meu olhar para dentro”: II:17 606. Sobre esta passagem, ver Starobinski 225-6. Ver também
Coleman 114-15, que contesta esta tradução. Sobre o caráter barroco ou maneirista de Os Ensaios,
ver: Buffum; Butor; Sayce, R. A., “Baroque elements in Montaigne”, French Studies 8 (1954), 1-
15; Nakam, G., “Montaigne manieriste”, em seu livro Le dernier Montaigne 195-228; Rigolot, F.,
“Montaigne’s anti-Mannerist Mannerism”, in Cameron e Willett (eds), Le Visage changeant de
Montaigne 207-30. Montaigne: “Grotescos” e “Corpos monstruosos”: I:28 164. Horácio sobre a
poesia: Horácio, Ars poetica 1-23.
Escrever no ritmo de uma conversa: II:17 587. Ele se refere a seu “langage coupé” nas instruções ao
gráfico no exemplar de Bordeaux: ver Sayce 283.
“Dos cem membros”: I:50 266.
“Das carruagens”: III:6 831-49. Sobre o título deste ensaio, ver Tournon, A., “Fonction et sens d’un
titre enigmatique”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne 19-20 (1984), 59--68, e o
verbete “Coches”, in Desan, Dictionnaire 175-6. “Da fisionomia”: III:12 964-92.
Thackeray: ver Dédéyan I:288. “Não raro só o denotam por algum indício” e “palavras num canto”:
IIl:9 925. Ver McKinley, M. B., Words in a Corner: Studies in Montaigne’s Latin Quotations
(Lexington, Ky.: French Forum, 1981).

14. P. Como viver? R. Conheça o mundo


“A perene variedade das formas de nossa natureza”: III:9 904. “Sincera curiosidade”: I:26 139.
Sentimento da presença de seus heróis clássicos: III:9 928. “Polir e lustrar”: I:26 136.
Expulsão das pedras: Diário de Viagem, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1243. O pai, o avô e o
bisavô: II:37 702. Terebintina veneziana: Diário de Viagem 1143. O bode: II:37 718-19. Spas:
II:37 715-16.
Sobre seu percurso e as datas de viagem, ver Diário de Viagem, in The Complete Works, tr. D. Frame.
Mattecoulon envolveu-se em duas mortes em duelos. Só foi livrado da prisão por intervenção direta
do rei da França. Tudo isto, segundo comentava Montaigne, em obediência a um código de honra
que não fazia o menor sentido. II:27 639; Diário de Viagem 1257. Sobre outro jovem que se
desgarrou em Pádua, M. de Cazalis, ver Diário de Viagem 1123.
Sobre as condições de viagem: Heath, M., “Montaigne and travel”, in Cameron (ed.), Montaigne and
his Age 121-32; Hale 145-8. A mudança de rota de Montaigne: Diário de Viagem 1130.
A preferência de Montaigne por cavalgar: III:6 833-4. Sobre as viagens fluviais: III:6 834, Diário de
Viagem, 1092 e 1116. Sobre os enjoos: Diário de Viagem, 1123. Conforto de uma sela durante um
ataque de pedras nos rins: III:6 833-4, III:5 811.
Seguir com o fluxo: III:9 904-5. “Se à direita a coisa parece feia”: III:9 916. Sobre Virginia Woolf:
Woolf, L., Downhill All the Way (Londres: Hogarth, 1968), 178-9. “Se deixar levar
tranquilamente”: II:17 605.
Não havia um caminho: Diário de Viagem, 1115.
Levantar tarde: III:9 905; III:13 1024. Dá preferência aos pratos locais e desejaria ter trazido o
cozinheiro: Diário de Viagem 1077, 1086-7.
Outros viajantes fechados em si mesmos: III:9 9,6-17. “Na verdade, havia em seu julgamento”:
Diário de Viagem 1087.
Redação do diário em italiano: III:5 807. Seu italiano era bom, embora não perfeito, tendo sido
ligeiramente melhorado nas primeiras edições do Diário. Ver Garavini, F., “Montaigne: écrivain
italien?” in Blum e Moreau (eds), Études montaignistes 117-29, e Cavallini, C., “Italianismes”, in
Desan, Dictionnaire 515-16. Lenço em Augsburgo: Diário de Viagem 1096-7.
Batismo: Diário de Viagem, 1094-5. Sinagoga: ibid. 1119. Circuncisão: ibid. 1152-4.
Barba e sobrancelha brancas: Diário de Viagem 1063. Travestismo e mudança de sexo: ibid. 1059-60.
Hábitos de cama e mesa na Suíça: Diário de Viagem 1072, 1077.
Gaiola: Diário de Viagem 1085. Avestruzes: ibid. 1098-9. Espanador de cabelo: ibid. 1096. Portões
com controle remoto: ibid. 1099-100.
Jardim Fugger: Diário de Viagem 1097-8.
Michelangelo: Diário de Viagem 1133.
O Diário de Viagem: ao ser encontrado e publicado, ele foi depositado na biblioteca real e deveria
estar atualmente na Bibliothèque nationale, mas desapareceu. Dispomos hoje apenas da versão
publicada em 1774, além de um exemplar manuscrito com texto diferente. Ver Moureau, F., “La
Copie Leydet du Journal de Voyage”, in Moureau, F. e Bernouilli, R. (eds.), Autour du journal de
voyage de Montaigne (Genebra & Paris: Slatkine, 1982), 107-85; e seu “Le manuscrit du Journal
de Voyage: découverte, édition et copies”, in Michel et al. (eds), Montaigne et les Essais 1580-
1980 289-99; e Rigolot, F., “Journal de voyage”, in Desan, Dictionnaire 533-7. “Três
evacuações”: Diário de Viagem 1077. “Tanto pela frente quanto por trás”: ibid. 1078. “Grande e
longa como um pinhão”: ibid. 1243. Fogões suíços: ibid. 1078.
Sobre o secretário: ver Brush, C. B., “The secretary, again”, Montaigne Studies 5 (1993), 113-38, esp.
136-8. O secretário provavelmente provinha da casa de Montaigne, pois demonstra familiaridade
com as aldeias ao redor da propriedade: Diário de Viagem 1089, 1105. Discursos longos: Diário
de Viagem 1068-9, 1081.
Polônia ou Grécia e “Eu nunca o vi menos cansado”: Diário de Viagem 1115.
Veneza: Diário de Viagem 1121-2. Sobre Franco, ver Rigolot, F., “Franco, Veronica”, in Desan,
Dictionnaire 418.
Ferrara: Diário de Viagem 1128-9. Encontro com Tasso: II:12 441. Esgrima em Bolonha: Diário de
Viagem 1129-30. Jardins de truques: ibid. 1132, 1135-6.
Chegada a Roma: Diário de Viagem ibid. 1141-3.
Funcionários da Inquisição: Diário de Viagem 1166. “Pareceu-me tê-los deixado”: 1178.
Roma intolerante mas cosmopolita: Diário de Viagem 1142, 1173. Cidadania romana: Os ensaios II:9
930; Diário de Viagem 1174.
Sermões, debates e prostitutas: Diário de Viagem, 1172. Biblioteca do Vaticano: ibid. 1158-60.
Circuncisão: ibid. 1152-4.
Audiência com o papa: Diário de Viagem 1144-6.
Procissão de penitentes: Diário de Viagem 1170-1.
Exorcismo: Diário de Viagem 1156. Execução de Catena: ibid. 1148-9; cf. II:11 382 a respeito da
violência com cadáveres.
Alto das muralhas: Diário de Viagem 1142. Alto das colunas: ibid. 1152.
Ruínas de Sêneca e Plutarco: II:32 661. Necessidade de esforço mental: Diário de Viagem 1150-1.
Goethe: Goethe, J. W., Italian Journey, tr. W. H. Auden e E. Mayer (Hatmondsworth: Penguin, 1970;
repr. 1982): “Os sonhos de minha juventude”: 129 (entrada de 1º nov. 1786); “Sinto-me agora
num estado de clareza”: ibid. 136 (entrada de 10 nov. 1786). Freud: Freud, S., “A disturbance of
memory on the Acropolis”, in Works, tr. e ed. J. Strachey (Londres: Hogarth, 1953-74), 22 (1964),
239-48, esta citação em 241. “A Roma e a Paris que tenho na alma”: II:12 430. “Desfrutei de um
estado de espírito tranquilo”: Diário de Viagem 1239.
Loreto: Diário de Viagem 1184-5. La Villa: ibid. 1210, 1240-6.

15. P. Como viver? R. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim
As duas cartas dos juízes e a viagem a Roma: Diário de Viagem 1246-55.
“Eu me desculpei”: III:10 934. A carta do rei: traduzida in Frame, Montaigne 224.
Volta para casa: Diário de Viagem 1270, e Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 30 nov.
Sobre suas tarefas como prefeito e as dificuldades da época: Lazard 282-3; Lacouture 227-8; Cocula,
A.-M., Montaigne, maire de Bordeaux (Bordeaux: Horizon chimérique, 1992). Ouvir a todos sem
julgar: III:8 855.
Sobre Matignon, ver Cooper, R., “Montaigne dans l’entourage du maréchal de Matignon”,
Montaigne Studies 13 (2001), 99-140; e seu “Matignon, Maréchal de” in Desan, Dictionnaire
640-4.
Sobre a exaustão de Pierre com as viagens: III:10 935. As viagens de Montaigne como prefeito:
Frame, Montaigne 230. Seu trabalho no castelo: Nakam, Montaigne et son temps 311.
“Foi o que aconteceu no meu caso”: III:10 934. Sobre sua reeleição, enfrentando oposição: Frame,
Montaigne 230.
Montaigne como intermediário: Frame, Montaigne 212-4.
Rebelião de Vaillac e seu exílio de Bordeaux: Frame, Montaigne 238-40. Cartas de Montaigne a
Matignon: 22 e 27 de maio de 1585, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1323-7.
Admiração dos contemporâneos: Thou, J.-A. de, Mémoires (1714), e Duplessis-Mornay a Montaigne,
25 nov. 1583, traduzido in Frame, Montaigne, 229, 233.
“Ordem” e “suave e discreta tranquilidade”: III:10 953.
“Esmorecimento no empenho” e “Esta é muito boa”: III:10 950. Manter uma cidade sem ocorrências
especiais durante a “inovação”: III:10 953. Verdadeira motivação de um aparente engajamento:
III:10 951.
O que o dever impunha: III:10 954.
Shakespeare, W., King Lear (escrito c. 1603-6). “Odeio mortalmente parecer um lisonjeador”: I:40
225-6.
“Digo-lhes francamente quais são meus limites”: III:1 731. A franqueza torna as pessoas sinceras, e
não ser difícil estar entre duas facções: III:1 730.
Nem todo mundo entendia: III:1 731. “No fim das contas”: III:8 854.
Matignon a Henrique III, 30 de junho de 1585, e a Montaigne, 30 de julho de 1585, ambas traduzidas
in Frame, Montaigne 240.
Cartas de Montaigne aos juízes de Bordeaux, 30 e 31 de julho de 1585, in The Complete Works, tr. D.
Frame, 1328-9.
Decreto proibindo a entrada na cidade: ver Bonnet, P., “Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum
e Moreau (eds), Études montaignistes 59-67, esta citação p. 64.
Crítica da decisão de Montaigne: Detcheverry, Grün, Feugère e Lecomte, todos citados in Bonnet, P.,
“Montaigne et la peste de Bordeaux”, in Blum e Moreau (eds), Études Montaignistes 59-67, esta
citação p. 59-62. As cartas foram inicialmente publicadas in Detcheverry, A., Histoire des
Israélites de Bordeaux (Bordeaux: Balzac jeune, 1850).
“Eu retenho”: II:12 454.
Sobre o niilismo nesse período, ver Gillespie, M. A., Nihilism before Nietzsche (Chicago: University
of Chicago Press, 1995).
Faguet: seus escritos foram reunidos e prefaciados por A. Compagnon em Faguet, Autour de
Montaigne. Champion: Champion, E., Introduction aux Essais de Montaigne (Paris, 1900): ver
Compagnon, A., Prefácio a Faguet 16.
Guizot: Guizot, G., Montaigne: études et fragments. “Ele não nos transformará nos homens que
nosso tempo requer”: ibid. 269. Guizot trabalhou durante 25 anos numa edição de Os Ensaios e
num estudo sobre a vida de Montaigne, sem chegar a concluí-los, mas os fragmentos foram
reunidos pelos amigos após sua morte.
Michelet: Michelet, Histoire de France (1861) VIII: 429 (ideia “fraca e negativa”) e X: 397-8
(“observar a si mesmo sonhando”). Em ambos os casos, citados in Frame, Montaigne in France
42-3.
Church, R. W., “The Essays of Montaigne”, in Oxford Essays contributed by Members of the
University. 1857 (Londres: John Parker, 1857), 239-82. “Da nulidade do homem (...) na ideia do
dever”: ibid. 265. “indolência e falta de tônus moral”: ibid. 280. Sobre Church, ver Dédéyan I:
295-308.
As observações de Halifax são reproduzidas na edição Hazlitt (1842) de Montaigne, The Complete
Works xxxv.
Edição Honoria: Montaigne, Essays, ed. Honoria (1800) (ver “Fontes”). Era um projeto semelhante
ao de Henrietta Maria Bowdler em The Family Shakespeare (1807), que gerou o verbo inglês
“bowdlerise”, significando expurgar ou censurar. “Se este Os ensaios se tornar adequado” e “Ele
também se mostra tão frequentemente desconexo”: introdução de Honoria, xix. Montaigne
criticado por não mencionar o massacre de São Bartolomeu: edição Honoria, 104n. Não acordar
as crianças com música: ibid. 157n. Montaigne organizando a própria vida, seu conformismo e
seus “muitos excelentes sentimentos religiosos”: introdução de Honoria, xviii.
“Não sei se seria decoroso admitir”: III:12 975.
A questão sucessória e a preferência dos politiques: Nakam, Montaigne et son temps 329-32.
Visita de Henrique de Navarra, inclusive a caça ao veado: Montaigne, Le Livre de raison, entrada
relativa a 19 dec., na tradução constante in Frame, Montaigne 235.
Ainda empenhado num acordo: Montaigne a Matignon, 18 jan. 1585, in The Complete Works, tr. D.
Frame, 1314-15.
“Guelfo para os gibelinos”: III:12 972. “Não havia acusações formais”: III:12 972. Assédio de
Castillon: Frame, Montaigne 256.
“Uma carga pesada de nossos distúrbios”: III:12 969. Peste: III:12 976.
Vendo gente cavando o próprio túmulo: III:12 979.
“Eu, que sou tão hospitaleiro”: III:12 976. Sobre a atuação política de Montaigne durante seu período
como refugiado e depois dele: Frame, Montaigne 247.
O convite a Montaigne e sua mulher e a ajuda de custo são mencionados numa carta de Catarina de
Médici a um tesoureiro a 31 dec. 1586: ver Frame, Montaigne 267.
Montaigne trabalhando com Corisande: Frame, Montaigne 269-70.
A missão de Montaigne e as cartas em que é mencionada: Frame, Montaigne 270-3. Preocupação dos
ingleses: ibid. 276.
Ataque na floresta: Montaigne a Matignon, 16 fev. [1588?], in The Complete Works, tr. D. Frame,
1330-1.
Henrique III e Guise em Paris e o Dia das Barricadas: ver Knecht, Rise and Fall 523-4. O comentário
do papa: citado in Neale, J. E., The Age of Catherine de Medici, nova ed. (Londres: Jonathan
Cape, 1957), 96.
“Eu nunca vi: Pasquier a Sainte-Marthe, maio de 1588, in Pasquier, Lettres historiques 286-97.
Detenção e libertação de Montaigne: Montaigne, Le Livre de raison, entradas de 10 e 20 de julho;
esta última traduzida in Frame, Montaigne 281. Como sempre, Montaigne se confundiu nas datas:
escreveu o comentário inicialmente na página de 20 de julho, deu-se conta do equívoco e voltou a
escrevê-lo na página de 10 de julho. A segunda versão é mais sucinta, fosse por achar tedioso
escrever a mesma coisa duas vezes ou porque a revisão favorecesse a concisão. “Nenhuma prisão
jamais me viu”: III:13 999-1000.
Brach: Pierre de Brach a Justus Lipsius, 4 fev. 1593, traduzido in Frame, Montaigne 282. Sobre
Brach, ver Magnien, M., “Brache, Pierre de”, in Desan, Dictionnaire 126-8.
Sobre Marie de Gournay, ver Capítulo 18 acima.
Os conselhos de Pasquier em matéria de estilo e o desinteresse de Montaigne: Pasquier a A. M. de
Pelgé, 1619, in Pasquier, Choix de lettres 45-6, traduzido in Frame, Montaigne 283. “Oh, terrível
espetáculo!”: Pasquier, Lettres historiques 286-97. Sobre Étienne Pasquier, ver Magnien, C.,
“Estienne Pasquier ‘familier’ de Montaigne?”, Montaigne Studies 13 (2001), 277-313.
Pregadores exortando a matar o rei: ver por exemplo Boucher, J., De justa Henrici tertii abdicatione
(ag. 1589). Ver Holt 132.
Uma cidade enlouquecida: L’Estoile e Thou, ambos citados in Nakam, Montaigne et son temps 341-
2.
“Essa questão tão grave”: II:12 392.
“Maneira mais exata que temos”: III:2 971.
Cartas de Montaigne a Henrique IV: Montaigne a Henrique IV, 18 jan. [1590?] e 2 set. [1590?], in
The Complete Works, tr. D. Frame, 1332-6.
“Vejo os nossos reis”: III:1 728.
Sobre os hábitos masculinos de Henrique IV: Knecht, Rise and Fall, 559-61.
Discurso de Henrique IV em 1599: citado in Knecht, Rise and Fall 545-7.

16. P. Como viver? R. Filosofe só por acaso


“Livre e insubordinado”: II:17 587. Halifax: carta incluída na edição original da tradução de Cotton
(1685-86) e reproduzida na edição de 1842 de Hazlitt, folha preliminar sem numeração. Hazlitt:
Hazlitt, W., “Sobre old English writers and speakers”, Ensaio X in The Plain Speaker (Londres:
H. Colburn, 1826), II: 277-307, esta citação 305.
“A mente inglesa”: Woolf, V., “Reading”, in Essays, ed. A. McNeillie (Londres: Hogarth, 1986-),
III:141-61, esta citação 154. “Ao tomar da pena”: Hazlitt 180.
“Filósofo não premeditado e acidental” e explicação do que quis dizer com isto: II:12 496-7.
Sobre Florio: Yates, John Florio; Pfister, M., “Inglese italianato - Italiano anglizzato: John Florio”, in
Höfele, A. e Koppenfels, W. von (eds), Renaissance Go-Betweens: Cultural Exchange in Early
Modern Europe (Berlim & Nova York: Walter de Gruyter, 2005), 31-54. Seus manuais de
conversação e o dicionário: Florio, J., Firste Fruites (Londres: T. Woodcock, [1578]), Second
Frutes (Londres: T. Woodcock, 1591), e A Worlde of Wordes (Londres: E. Blount, 1598). Sua
tradução de Os Ensaios: Montaigne, Essayes (1603): ver detalhes em “Fontes”.
“Aqui atributos vão de acordo”: Montaigne, Essayes (1915-21), I: 2.
“Nossos alemães, afogados em vinho”: II:2 298. “Nossos soldados alemães fanfarrões”: Montaigne,
Essayes (1915-21), II:2 17. “Lobisomens, duendes e quimeras”: I:18 62. “Larvas, duendes,
monstrengos e outros bichos”: Montaigne, Essayes (1915-21), I:17 67. O número de capítulo é
diferente na tradução de Florio porque ela se baseia num texto diferente, o da edição de Marie de
Gournay em 1595. Sobre esta questão, ver Capítulo 18 acima.
Fala de Gonzalo: The Tempest II. i.145-52. A semelhança é com um trecho do ensaio “Dos canibais”:
Montaigne, Essayes (1915-21), I:30 220. Também aqui a numeração dos capítulos é diferente
porque as edições se baseiam em textos diferentes. A semelhança foi constatada por Edward
Capell em seu livro Notes and Various Readings to Shakespeare (Londres: H. Hughs, [1775]),
II:63.
Comparação com Hamlet. “Nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos”: II:16 570. “Tímido,
insolente; casto: II:1 294. Excesso de pensamento imobiliza: II:20 622. Sobre esta questão, ver
Boutcher, W., “Marginal commentaries: the cultural transmission of Montaigne’s Essais in
Shakespeare’s England”, in Kapitaniak e Maguin (eds), Shakespeare et Montaigne, 13-27, e seu
“‘Learning mingled with Nobilitie’: directions for reading Montaigne’s Essais in their
institutional context”, in Cameron e Willett (eds), Le Visage changeant de Montaigne, 337-62,
esp. 337-9; e o livro de Peter Mack a ser lançado, Shakespeare, Montaigne and Renaissance
Ethical Reading. Muito se tem estudado recentemente sobre a datação de Hamlet; acredita-se hoje
que a obra data do fim de 1599 ou do início de 1600, o que gera um problema, se partirmos do
princípio de que Shakespeare leu a tradução de Florio. Mas sabemos que havia cópias manuscritas
desta em circulação muito antes da data de publicação: contemporâneo de Shakespeare, William
Cornwallis dizia em 1599 que elas “passavam de mão em mão”.
Tema compartilhado: Robertson, J. M., Montaigne and Shakespeare (Londres: The University Press,
1891), citado in Marchi 193. Clima comum também discutido in Sterling 321-2.
Bacon escreveu Montaigne: Donnelly, I., The Great Cryptogram: Francis Bacon’s Cipher in the So-
called Shakespeare Plays (Londres: Sampson, Low, Marston, Searle & Rivington, 1888), II: 955-
65, 971-4. “Bacon” e “seios brancos”: Donnelly II: 971. “Mountaines”: II: 972-3. “Alguém seria
capaz de acreditar que tudo isso não passa de mero acidente?” II: 974. Papel de Anthony Bacon:
II:955.
Sobre os irmãos Bacon: ver Banderier, G, “Bacon, Anthony”, e Gontier, T, “Bacon, Francis”, in
Desan, Dictionnaire 89-90. Francis Bacon efetivamente menciona Montaigne em seus Essays,
mas não na primeira edição.
Cornwallis: Cornwallis, W., Essayes, ed. D. C. Allen (Baltimore: Johns Hopkins University Press,
1946).
Burton: Burton, R., The Anatomy of Melancholy (Nova York: NYRB Classics, 2001), I: 17·
Browne: Browne, Thomas, The Major Works (Harmondsworth: Penguin, 1977). Ver Texte, J., “La
Descendance de Montaigne: Sir Thomas Browne”, in Etudes de littérature européenne (Paris: A.
Colin, 1898), 51-93.
Cotton: Montaigne, Essays, tr. Cotton (1685-86): ver detalhes em “Fontes”. Sobre Cotton, ver
Nelson, N., “Montaigne with a Restoration voice: Charles Cotton’s translation of the Essais”,
Language and Style 24, nº 2 (1991), 131-44; e Hartle, P., “Cotton, Charles”, in Oxford Dictionary
of National Biography (http://dx.doi.org/1O.1093/ref:odnb/6410), de onde também foi extraído o
poema.
Pope: citado in Coleman 167.
Spectator: Spectator nº 562 (2 de julho de 1714), citado in Dédéyan I: 28. Fazer de maneira
agradável: Dédéyan I: 29.
O elemento montaignesco: Pater, W., “Charles Lamb”, in Appreciations (Londres: Macmillan, 1890),
105-23, esta citação em 116-17.
Comentário de Leigh Hunt: Montaigne, Complete Works (1842), 41, exemplar da Biblioteca
Britânica (C.61.h.5). Este trecho I:22 95 na edição Frame.
Hazlitt sobre a redação de ensaios: Hazlitt 178-80.
O Montaigne de Cotton revisto por Hazlitt: Montaigne, Complete Works (1842). O Montaigne de
Cotton revisto pelos dois Hazlitt: Montaigne, Essays, tr. C. Cotton, ed. W. Hazlitt e W. C. Hazlitt
(Londres: Reeves & Turner, 1877). Sobre o negócio da família Hazlitt, ver Dédéyan I: 257-8.
Sterne: Sterne, L., Tristram Shandy, ed. I. Campbell Ross (Oxford: Oxford Paperbacks, 1998).
Referências a Montaigne: 38, 174, 289-90 (Vol. I cap. 4, Vol. 2 cap. 4, Vol. 4 cap. 15). Os
diagramas lineares: 453-4 (Vol. 6, cap. 40). Capítulos prometidos: 281 (Vol. 4, cap. 9). “Poderia
um historiador”: 64-5 (Vol. 1, cap. 14).

17. P. Como viver? R. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada


Joyce, J. Finnegans Wake: exemplos reproduzidos in Burgess, A., Here Comes Everybody, ed. rev.
(Londres: Arena, 1987), 189-90.
Montaigne como pessoa diferente no passado: III:2 748-9. “Somos todos uma colcha de retalhos”:
II:1 296.
“Quem não terá percebido... ?” III:9 876.
“Não ao seu fim”: Woolf, V., “Montaigne”, 77.
Edição de 1588: Montaigne, Essais, “5ª ed” (1588): ver “Fontes”.
“É o leitor desatento”: III:9 925.
“De minha parte”: III:8 872.
“Para incluir mais coisas”: I:40 224. O dedo que aponta de Plutarco: I:26 140.
“Ganha força”: anotado na folha de rosto do “Exemplar de Bordeaux”: Montaigne: Essais.
Reproduction en fac-similé. A fonte é Virgílio, Eneida, 4: 169-77.
“Temo estar piorando”: Montaigne a A. Loisel, inscrição num exemplar da edição de 1588 de Os
Ensaios, in The Complete Works, tr. D. Frame, 1332.

18. P. Como viver? R. Abra mão do controle


Sobre Marie de Gournay: Fogel; Ilsley; Tetel (ed.), Montaigne et Marie de Gournay; Nakam, G.,
“Marie Le Jars de Gournay, ‘fille d’alliance’ de Montaigne (1565-1645)”, in Arnould (ed.), Marie
de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne, 11-21. Suas obras reunidas estão em
Gournay, Oeuvres complètes (2002).
“Uma mulher se passando por culta”: Gournay, Apology for the Woman Writing (versão de 1641), na
tradução de Hillman e Quesnel em sua edição de Gournay, Apology for the Woman Writing and
Other Works, 107-54, esta citação em 126.
Emaranhado de intelecto e emoção: Gournay, Peincture des moeurs, in L’Ombre de la demoiselle de
Gournay (1626), citado in Ilsley 129.
Heléboro: Gournay, Prefácio (1998) 27.
“Como é que ele sabia tudo isso a meu respeito?” Levin: The Times (2 dez. 1991), p. 14. “Parece que
ele é o meu próprio eu”: Gide, A., Montaigne (Londres & Nova York: Blackamore Press, 1929),
77-8. “Eis aqui um ‘você’”: Zweig, “Montaigne” 17.
Encontro: Gournay, Prefácio (1998) 27.
Bodkin: I:14 49. No Exemplar de Bordeaux, ele diz apenas “uma menina”, mas a edição da própria
Gournay especifica “uma menina da Picardia” que ele encontrou pouco antes de sua viagem a
Blois.
Trabalhando juntos na Picardia: na verdade, apenas três dos novos acréscimos têm a caligrafia dela.
Montaigne: Essais. Reproduction en fac-similé, ff. 42v., 47r e 290v. Ver Hoffmann, G. e Legros,
A., “Sécretaires”, in Desan, Dictionnaire 901-4, esta citação em 901.
“O homem que tanto me honra chamar de Pai” e “Não posso, Leitor”: Gournay, Prefácio (1998) 27,
29. “Na verdade, se a alguém surpreende”: Gournay, The Promenade of Monsieur de Montaigne,
in Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.], 21-67, esta citação em 29.
Léonor como irmã de Gournay: Ilsley 34.
“E não temo”: Gournay, The Promenade of Monsieur de Montaigne, in Gournay, Apology for the
Woman Writing [etc.] 21-67, esta citação em 32. “Ele foi meu por apenas quatro anos” e “Quando
ele me elogiava”: Gournay, Prefácio a Os Ensaios 99.
“Ela é a única pessoa em quem ainda penso” II:17 610. As suspeitas quanto a este trecho remontam a
Arthur-Antoine Armaingaud, que o questionou em discurso publicado no primeiro Bulletin of the
Société des Amis de Montaigne em 1913. Ver Keffer 129. Ela o eliminou na edição de 1635 de Os
ensaios. Sobre o desaparecimento de tiras coladas, ver por exemplo I:18 63n. e I:21 624n. na
edição D. Frame das Obras Completas. Sobre as novas encadernações do Exemplar de Bordeaux,
ver Desan, P., “Exemplaire de Bordeaux”, in Desan, Dictionnaire 363-8, esta citação em 366.
Cartas a Lipsius: Gournay a Lipsius 25 de abril de 1593 e 2 de maio de 1596, traduzidas in Ilsley 40-
1 e 79-80; Lipsius a Gournay, 24 de maio de 1593, publicada in Lipsius, J., Epistolarum
selectarum centuria prima ad Belgas (Antuérpia: Moret, 1602), I:15, aqui na tradução de Ilsley
42.
O Proumenoir: Gournay, M. de, Le Proumenoir de Monsieur de Montaigne (Paris: A. l’Angelier,
1594), traduzido in Gournay, Apology for the Woman Writing [etc.] 21-67. A origem explicada na
epístola: 25.
Edição de Gournay: Montaigne, Essais (1595): ver “Fontes”.
Sobre as correções de última hora: Sayce e Maskell 28 (entrada 7A); e Céard, J., “Montaigne et ses
lecteurs: l’édition de 1595”, dissertação apresentada em 2002, em debate sobre a edição de 1595,
na Bibliothèque nationale, 1-2, http://www.amisdemontaigne.net/cearded1595.pdf.
Gournay como protetora: Gournay, Preface to the Essays: “Tendo perdido o pai”: 101. “Quando o
defendo”: 43. “Não se pode tratar de grandes questões”: 53. “Quem quer que diga de Cipião”: 79.
“A excelência supera todo limite” e “arrebatar”: 81. Avaliar as pessoas pelo que pensam de Os
ensaios: 31. Diderot: artigo “Pyrrhonienne” na Encyclopédie, citado in Tilley 269.
“Não consigo dar um passo”: Gournay, Preface to the Essays 85. Sobre as contradições entre sua
personalidade e a de Montaigne: Bauschatz, C. M., “Imitation, writing, and self-study in Marie de
Gournay’s 1595 ‘Preface’ to Montaigne’s Essais’, in Logan, M. R. e Rudnytsky, P. L. (eds.),
Contending Kingdoms (Detroit: Wayne State University Press, 1991), 346-64, esta citação em
346.
“Abençoado és de fato”: Gournay, Preface to the Essays 35.
Mudança de ideia a respeito do Prefácio: Gournay a Lipsius, 2 de maio de 1596, citado in McKinley,
M., “An editorial revival: Gournay’s 1617 Preface to the Essais”, Montaigne Studies 7 (1996),
193. O prefácio de dez linhas foi usado em todas as edições do século XVII até 1617, quando a
versão mais longa foi restabelecida em formato revisto: Montaigne: Essais, ed. Gournay (Paris: J.
Petit-pas, 1617). Entrementes, uma versão diferente fora publicada in Gournay, Le Proumenoir
(1599).
Falta de fé: Gournay, Peincture des moeurs, in L’Ombre (1626). Ver Ilsley 129. Sobre Gournay como
secreta libertine: Dotoli, G., “Montaigne et les libertins via Mlle de Gournay”, in Tetel (ed.),
Montaigne et Marie de Gournay 105-41.
Sobre a Académie: Ilsley 217-42. Convicções de Gournay sobre estilo: Ilsley 200-16, e Hohnes, P. P.,
“Mill de Gournay’s defence of Baroque imagery”, French Studies 8 (1954), 122-31, esta citação
122-9.
Epitáfio de Gournay: citado in Ilsley 262. Sobre as oscilações de sua reputação após sua morte: Ilsley
266-77. “Nada poderá equiparar-se”: Niceron, J.-P., Mémoires pour servir à l’histoire des hommes
illustres dans la République des lettres (Paris, 1727-45), XVI:231 (1733), citado in Ilsley 270.
Gournay como parasita: a acusação foi feita notadamente por Chapelain, ligado a uma pretendida
edição rival aos cuidados de Elzevir: ver Boase, Fortunes 54, e Ilsley 255.
“Solteirona grisalha”: Rat, M., introduction a Montaigne, Oeuvres complètes (Paris: Gallimard,
1962), em tradução de R. Hillman in Gournay, Apology for the Woman Writing 18. Villey: Villey,
Montaigne devant la postérité 44.
Reputação refeita: Schiff, M., La Fille d’alliance de Montaigne, Marie de Gournay (Paris: H.
Champion, 1910). Romances baseados em sua vida: Mairal, M., L’Obèle (Paris: Flammarion,
2003), e Diski, J., Apology for the Woman Writing (Londres: Virago, 2008). Entre as novas
edições críticas temos a de suas obras completas: Gournay, Oeuvres complètes (2002).
As guerras editoriais: ver Keffer, inclusive sua tradução das cartas de Cagnieul: 62-3; e Desan, P.,
“Cinq siècles de politiques éditoriales des Essais”, in Desan, Montaigne dans tous ses états (121-
91).
Strowski se jactando: Compagnon, A., “Les Repentirs de Fortunat Strowski”, in Tetel (ed.),
Montaigne et Marie de Gournay 53-77, esta citação em 69. Sobre a datação de Armaingaud:
Keffer 18-19. Sua atribuição da Servitude volontaire: Armaingaud, A., Montaigne pamphlétaire
(Paris: Hachette, 1910). “Só ele o conhece”: Perceval, E. de, artigo in Bulletin de la Société des
Bibliophiles de Guyenne (1936), traduzido in Keffer 163. Sobre Villey: Defaux, G., “Villey,
Pierre”, in Desan, Dictionnaire 1023-4. Sobre a cegueira: Villey, P., “Le Travail intellectuel des
aveugles”, Revue des deux mondes (1 mars 1909), 420-43. Sobre o fato de não ter sido convidado
em 1933: Keffer 21.
Dentre as posteriores edições do século XX que deram prioridade ao Exemplar de Bordeaux está a
edição Pléiade de A. Thibaudet e M. Rat: Montaigne, Oeuvres complètes (Paris: Gallimard,
1962), usada por D. Frame em sua tradução, e a versão revista da edição Villey: Montaigne, Les
Essais, ed. P. Villey e V.-L. Saulnier (Paris: PUF, 1965).
Hipótese de Dezeimeris: Dezeimeris, R., Recherche sur la recension du texte posthume des Essais de
Montaigne (Bordeaux: Gounouihou, 1866). Investigação da logística e sobre esta teoria de
maneira geral: Maskell, D., “Quel est le dernier état authentique des Essais de Montaigne?”,
Bibliothèque d’humanisme et Renaissace 40 (1978), 85-103, e seu texto “The evolution of the
Essais”, in McFarlane e Maclean (eds.), Montaigne: Essays in Memory of Richard Sayce 13-34;
Desan, P., “L’Exemplar et L’Exemplaire de Bordeaux”, in Desan, Montaigne dans tous ses états
69-120; Balsamo, J. e Blum, C., “Édition de 1595”, in Desan, Dictionnaire 306-12; Arnould, J-C.
(ed.), Marie de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne; O’Brien.
A nova edição Pléiade e a edição Tournon: ver detalhes em “Fontes”. A. Tournon e J. Céard,
representando as duas posições, participaram de um debate na Bibliothèque nationale a 9 fev.
2002, “Les deux visages des Essais” (As duas faces de Os ensaios): ver as duas monografias em
http://www.amisdemontaigne.net/visagesessais.htm.
Simplificação: Montaigne, Essays, ed. Honoria (1800).
Charron: Charron, De la Sagesse. Relações dos seres humanos com os animais: 72-86. Sobre
Charron, ver Gontier, E., “Charron, Pierre”, in Desan, Dictionnaire 155-9. “Remontagem”:
Bellenger 188. Charron, Petit traité de la sagesse (Paris, 1625).
Mau copista: Montaigne, Les Essais, ed. Gournay (Paris: Jean Camusat, 1635). Prefácio, citado in
Villey, Montaigne devant la postérité, 162.
Essências purificadas: L’Esprit des Essais de Montaigne (Paris: C. de Sercy, 1677). Pensées de
Montaigne, propres à former l’esprit et les moeurs (Paris: Anisson, 1700), incluindo “Existem
poucos livros tão ruins”: 5.
“Moby Dick deve ter sido leitura difícil”: Ben Hoyle, “Publisher makes lite work of the classics”, The
Times (14 de abril de 2007). “Qualquer resumo de um bom livro é um resumo burro”: III:8 872.
“Diferenciados e ondulantes”: I:15. “Duplos em nós mesmos”: II:16 570.
O subconsciente e o exemplo de Conley: Conley. A observação de Montaigne de que soube da
existência de Roma antes de ouvir falar do Louvre: III:9 927. “Embabuinado”: III:9 928. Conley
remete a Cotgrave, R., A Dictionarie of the French and English Tongues (Londres: A. Islip,
1611): embabouyner significava “enganar, burlar, achar graça, conduzir a um Paraíso de tolos;
mamar em; usar como criança”.
“Aonde devemos ir, se quisermos”: I:26 140.
“O centésimo revisor”: III:13 995. “Veja-se como Platão é manipulado”: II:12 538.
“Já se disse o suficiente sobre este livro”: III:13 995. “Um leitor capaz”: I:24 112. “Eu li em Tito
Lívio”: I:26 140.
“As mentes são entretecidas”: Woolf, V., A Passionate Apprentice: The Early Journals, ed. M. A.
Leaska (Londres: Hogarth, 1900), 178-9. Citado in Lee, H., Virginia Woolf (Londres: Vintage,
1997), 171.

19. P. Como viver? R. Seja comum e imperfeito


“Eu tive uma vida humilde e inglória”: III:2 740.
“Pelo menos esse proveito”: II:37 698. Também, sobre o fato de se habituar às crises de pedra nos
rins e à proximidade da morte: III:13 1019.
“Num declive suave e praticamente imperceptível”: I:20 76. Ver também III:13 1020, III:13 1030.
“Existe algo mais doce”: III:13 1021.
Sentir prazer em plena crise: III:5 775. “É um prazer”: III:13 1019.
“Já estou me acostumando”: II:37 697.
“Um orgulho tolo e decrépito”: III:2 752.
“O nosso ser é cimentado”: III:1 726-7.
“Complicada e obscura” e “não há necessidade”: II:20 621-2.
As cartas de Montaigne a Henrique IV constam de Montaigne, The Complete Works, tr. D. Frame,
1332-6. Sobre os visitantes que recebia: Frame, Montaigne 303-4.
Léonor e seus filhos: esta filha, Françoise, morreu na juventude, mas outra filha de Léonor, num
segundo casamento, Marie de Gamaches, viria a herdar a propriedade de Montaigne, a qual seria
transmitida na família ao longo de séculos. Frame: Montaigne 303-4. Sobre a família Gamaches:
Legros, A., “Gamaches (famille de)”, Desan, Dictionnaire 425-6.

20. P. Como viver? R. Deixe a vida responder por si mesma


Este relato da morte de Montaigne baseia-se sobretudo no de Pasquier: Pasquier, Choix de lettres 48-
9, citado in Frame, Montaigne 304-6. “Criados pálidos e chorosos”: I:20 81-2. Bernard Automne:
Automne, B., Commentaire sur les coustumes générales de la ville de Bourdeaux (Bordeaux:
Millanges, 1621), citado in Frame, Montaigne 305. Uma análise das causas exatas da morte de
Montaigne, promovida pela Société des Amis de Montaigne em 1996, concluiu que ele pode ter
sucumbido a um derrame: Eyquem, A. (et al), “La Mort de Montaigne: ses causes rediscutées par
la consultation posthume de médecins spécialistes de notre temps”, Bulletin de la Société des
Amis de Montaigne, série 8, nº 4 (julho-dez. 1996), 7-16.
O relato de Brach: Pierre de Brach a Justus Lipsius, 4 fev. 1593, citado in Villey, Montaigne devant
la posterité 350-1, e Millet 64-6.
“Seu coração foi levado”: Montaigne, Le Livre de raison, entrada de 13 set. Sobre seu enterro na
igreja, ver Legros, A., “Montaigne, Saint Michel de”, e Balsamo, J., “Tombeau de Montaigne”, in
Desan, Dictionnaire 683-4 e 983-4 respectivamente.
Os Feuillants: Balsamo, J., “Tombeau de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 983-4. Montaigne
sobre os Feuillants: I:37 205.
Inscrições no túmulo: citadas in Millet 192-3; traduzidas in Frame, Montaigne 307-8.
Aventuras póstumas dos restos mortais de Montaigne: Frame, Montaigne 306-7, e Balsamo, J.,
“Tombeau de Montaigne”, in Desan, Dictionnaire 983-4. Novo sepultamento na época
revolucionária: Nicolaï, A., “L’Odyssée des cendres de Montaigne”, Bulletin de la Societé des
Amis de Montaigne, série 2, nº 15 (194-52), 31-45.
“A vida deve ser um objetivo em si mesma”: III:12 980. Virginia Woolf: em seu diário, ela escreveu:
“Cada vez mais eu repito minha própria versão do ‘É a vida que importa’ de Montaigne.” Woolf,
V., Diary III:8 (entrada de 8 de abril de 1925). Ela diria praticamente a mesma coisa em duas
outras entradas: II:301 (5 de maio de 1924) e IV:176 (2 set. 1933), assim como em seu ensaio
sobre Montaigne: Woolf, V., “Montaigne”, in Essays IV: 71-81.
Sem mais necessidade de Montaigne? Para uma análise dessa possibilidade no imediato pós-guerra,
ver Spencer, T. “Montaigne in America”, The Atlantic 177, nº 3 (março de 1946), 91-7. Não
podemos agradar ao céu na Terra cometendo homicídio: I:30 181.
Fontes

Obras escritas, traduzidas ou editadas por Montaigne


La Boétie, E. de, La Mesnagerie de Xenophon, Les règles de mariage de Plutarque, Lettre de
consolation de Plutarque à sa femme. Ed. M. de Montaigne (Paris: F. Morel, 1572 [i.e. 1570]).
Montaigne, M. de, Oeuvres complètes. Ed. A. Thibaudet e M. Rat (Paris: Gallimard, 1962). (Antiga
edição Pléiade)
____ The Complete Works. Tr. C. Corton, ed. W. Hazlitt (Londres: J. Templeman, 1842).
____ The Complete Works. Tr. e ed. D. Frame (Londres: Everyman, 2005). (Publicação original Palo
Alto: Stanford Universiry Press, 1943)
____ Le Livre de raison de Montaigne sur l’Ephemeris historica de Beuther. Ed. J. Marchand (Paris:
Compagnie Française des Arts Graphiques, 1948). (Edição em fac-símile do diário de família de
Montaigne)
____ Essais (Bordeaux: S. Millanges, 1580).
2ª ed. (Bordeaux: S. Millanges, 1582).
3ª ed. (Paris: J. Richer, 1587).
5ª ed. (Paris: A. L’Angelier, 1588).
Uma edição em fac-símile do exemplar de “Bordeaux” anotado desta edição foi publicada sob o
título Montaigne: Essais. Reproduction en fac-similé de l’exemplaire de Bordeaux de 1588. Ed.
R. Bernouilli (Genebra: Slatkine, 1987).
Ed. M. de Gournay (Paris: A. L’ Angelier, 1595).
Ed. P. Coste (Londres: J. Tonson & J. W. Watts, 1724).
Ed. P. Coste (Haia: P. Gosse & J. Nealme, 1727).
Ed. P. Villey e V.-L. Saulnier (Paris: PUF, 1965).
Ed. A. Tournon (Paris: Imprimerie nationale, 1988).
Ed. J. Balsamo, M. Magnien e C. Magnien-Simonin (Paris: Gallimard, 2007) (Pléiade).
____ Essayes. Tr. J. Florio (Londres: V. Sims for E. Blount, 1603).
Tr. J. Florio (Londres: Everyman, 1915-21).
____ Essays. Tr. C. Cotton (Londres: T. Basset, M. Gilliflower, W. Hensman, 1685-86).
Tr. C. Cotton, ed. W. Hazlitt e W. C. Hazlitt (Londres: Reeves & Turner, 1877).
____ Essays, Selected from Montaigne with a Sketch of the Life of the Author. Ed. Honoria (Londres:
T. Cadell, W. Davies & E. Harding, 1800).
____ The Complete Essays. Tr. M. A. Screech (Londres: Penguin, 2004). (Publicação original
Londres: Allen Lane, 1991)
____ Journal de voyage. Ed. M. de Querlon (Roma & Paris: Le Jay, 1774).
Ed. F. Garavini (Paris: Gallimard, 1983).
Ed. F. Rigolot (Paris: PUF, 1992).
____ “Travel Journal”, in The Complete Works (ed. D. Frame), 1047-1270.
Sebond, R. de, Théologie naturelle. Tr. M. de Montaigne (Paris: G. Chaudière, 1569).
Outras obras
Arnould, J.-C. (ed.), Marie de Gournay et l’édition de 1595 des Essais de Montaigne. Actes du
colloque (1995) (Paris: H. Champion, 1996).
Bailey, A., Sextus Empiricus and Phyrrhonian Scepticism (Oxford: Clarendon Press, 2002).
Bellenger, Y., Montaigne: une fête pour l’esprit (Paris: Balland, 1987).
Blum, C. e Moreau, F. (eds.), Études montaignistes en hommage à Pierre Michel (Paris: Champion,
1984).
Blum, C. e Tournon, A. (eds.), Editer les Essais de Montaigne. Actes du colloque tenu à l’Université
Paris IV-Sorbonne les 27 et 28 janvier 1995 (Paris: H. Champion, 1997).
Boase, A. M., “Montaigne annotée par Florimond de Raemond”, Revue du XVIe siècle, 15 (1928),
237-278.
____ The Fortunes of Montaigne: A History of the Essays in France, 1580-1669 (Londres: Methuen,
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