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Resumo: Pretende-se, aqui, colocar alguns pontos a serem discutidos a respeito não só da
antropologia, como do ser humano e sua capacidade de produzir alterações no mundo
mediante intervenções conscientes: ou seja, o trabalho. Disso decorre que o ser humano, por
ser trabalhador, é um ser cultural. A cultura, resultado do trabalho humano e ao lado do
trabalho, é a marca definidora do ser humano. O ser humano não é humano porque pensa, mas
porque trabalha e produz cultura.
Introdução
Texto inicialmente preparado como material complementar às aulas de Antropologia Cultural, ministradas
aos alunos do 2º período de Administração de Empresas, da FAP, durante o primeiro semestre de 2009.
1
Mestre em Educação (UFMS). Especialista em Educação; Especialista em Didática do Ensino Superior;
Especialista em Teologia; Professor de História e Filosofia na rede estadual, em Rolim de Moura – RO.
Filósofo; Teólogo; Historiador; Professor de Filosofia e Ética na Faculdade de Pimenta Bueno (FAP).
Jornalista, produtor e apresentador de programa radiofônico.
animais? O que diferencia o Homem de sua cultura? O que diferencia as diferentes
manifestações culturais?
Temos claro que o conceito de cultura é amplo e complexo. Tanto que permanece sendo um
dos pontos mais polêmicos em várias frentes de investigação das várias ciências sociais e
humanas.
As reflexões aqui apresentadas não se baseiam nesta ou naquela linha de pensamento, ou
pressuposto teórico, são apenas alguns apontamentos que se prestam a um primeiro contato
com a antropologia. Nossa preocupação, portanto, não é a discussão teórica desenvolvida
pelos diversos autores das várias correntes e escolas, mas apresentar alguns apontamentos que
ajudem o leitor a se introduzir na antropologia cultural.
Sabemos que a filiação teórica é um dos elementos essenciais para o pesquisador desenvolver
seu trabalho. Nossa preocupação entretanto, reside na tentativa de colher alguns
apontamentos, procurando mostrar ao leitor alguns caminhos a serem seguidos. Caso o leitor
deseje aprofundamentos eles podem ser buscados não só nas referências das quais nos
utilizamos, mas também nas perspectivas de algumas correntes de pensamento, desde o
evolucionismo, passando pelo difusionismo, pelo funcionalismo, pelo Estruturalismo até
chegar à perspectiva antropológica que se fundamento na leitura marxista das relações sociais.
Em termos de escolas de pensamento antropológico podemos dizer que podem ser
classificadas a partir de três grandes grupos: a escola americana, a britânica e a francesa.2
Aqui, entretanto, nossa preocupação é buscar algumas características do homem, da cultura e
da própria antropologia.
A antropologia
Iniciemos com as reflexões que brotam de uma primeira indagação: O que é antropologia?
É evidente que a resposta não se limita ao que podemos entender da etimologia da palavra.
Dois vocábulos gregos (Anthropos e Logia) que juntos significam estudo sobre o homem.
Como esse significado não resolve nosso problema, devemos buscar a solução entre os
antropólogos, mas aí constatamos que entre os autores não há consenso, nem sobre o que se
pode entender por antropologia, nem sobre seu objeto específico.
Com base nisso já podemos entender que o problema da antropologia não se limita ao seu
campo de ação, mas também à sua identidade. Voltamos, portanto, à indagação: O que é
antropologia? Rabuske (1999) faz uma primeira e básica distinção. Ele considera necessário
“distinguir entre Antropologia Filosófica e as Antropologias Empíricas ou Científicas”
(RABUSKE, 1999, p. 14). Afirma que:
O campo das Antropologias Empíricas é muito amplo, é um continuum de
conteúdos diversos, embora de algum modo interligados. Muitas vezes é dividida
em dois grandes setores: Antropologia Física e Antropologia Social ou Cultural
(RABUSKE, 1999, p. 14)
Visitando o site da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, leremos que “a
Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural”
(ANTROPOLOGIA, 2008). Essa página apresenta uma caracterização da antropologia por
períodos, temas e conceitos, além de apresentar alguns dos principais representantes de cada
escola ou paradigma antropológico. A indagação que pode ser feita, a partir dessa visão,
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Caso o leitor deseje mais informações sobre as correntes e escolas antropológicas elas podem ser buscadas,
em Laplantine (2000), Mello (1982), Rabuske (1999), entre outros.
refere-se às dimensões do homem. O ser humano é só isso: biologia, sociedade e cultural? Ou
outras possíveis dimensões do ser humano não interessam à antropologia?
Outras formas de apresentar a antropologia podem ser vistas em Mello (1982), como também
em Laplantine (2000). E, do ponto de vista da antropologia filosófica podemos mencionar as
obras de Mondin (1981) e de Rabuske, (1999). Podemos dizer que cada autor, a seu modo,
fala da complexidade que é a conceituação e delimitação do campo de estudo desta ciência,
reafirmando, com isso, a complexidade do próprio ser humano.
Um ponto que parece ser inegável é que desde os primórdios o Homem procura entender seu
mundo e a si mesmo. Podemos dizer, inclusive, que as diferentes manifestações religiosas e
míticas – que são manifestações culturais – foram criadas para produzir explicações sobre si
mesmo. Não tendo respostas satisfatórias, e nem sendo capaz de criá-las, o Homem atribui a
um ser transcendente a sua origem e, dessa fora, as explicações sobre as origens. Os mistérios
religiosos podem ser vistos como formas pelas quais o Homem se explica. O mesmo pode ser
dito das diferentes narrativas míticas sobre as origens do Homem e da Natureza. Podemos
observar, inclusive que as divindades, tanto da religião como dos mitos, possuem várias
semelhanças com o ser humano. Além disso as narrativas míticas possuem muitas
semelhanças entre si. Só a título de exemplo, são conhecidas as narrativas mesopotâmicas,
bíblicas e dos indígenas brasileiros que falam de dilúvio. E do ponto de vista religioso, a
narrativa bíblica fala da criação do homem como ser semelhante ao seu criador: “Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os criou” (Gn, 1,
27); além disso as palavras do salmista, falando da grandiosidade divina, são exemplos de
uma antropologia, pois entre outros elementos são uma explicação sobre a essência humana:
Que é o homem, para dele te lembrares,
e um filho de Adão, para que venhas visitá-lo?
E o fizeste pouco menos que um deus,
coroando-o de glória e beleza.
Para que domine as obras de tuas mãos,
sob seus pés tudo colocaste (salmo 8, 5-7, grifos nossos)
O fato é que tanto a explicação religiosa como aquelas dos mitos foram insuficientes. Por isso
a filosofia, sistematizada pelos gregos, procura ao mesmo tempo superar a visão mítico-
religiosa e explicar o ser humano. Essa indagação, entretanto, acompanhou toda a história da
filosofia. Nesse sentido a filosofia é uma antropologia pois as diferentes visões sobre o mundo
e o Homem nada mais são do que tentativas de satisfazer à indagação original. Mas foi
principalmente a partir do século XX3 que a Antropologia se separou da filosofia e se
estruturou com métodos e objetos específicos, ganhando status de ciência; ou pretendendo
assim ser reconhecida. Por esse motivo essa disciplina não se limita a um grupo social “a um
espaço geográfico, cultural ou histórico particular” (LAPLANTINE, 2000, p. 16). Ela vai
além, podendo ser vista como um novo olhar voltado para o homem. Como afirma Mello
(1982)
O que caracteriza a antropologia como disciplina científica não é apenas o objeto
material. Ao contrário, o que, na verdade, caracteriza as disciplinas científicas –
como que dando-lhes forma – é o objeto formal. Como já foi dito, inúmeras
disciplinas tratam do homem e de seu comportamento. No entanto, o que a distingue
das demais ciências sociais e humanas é o objetivo que nutre de estudar o homem
como um todo. (MELLO, 1982, p. 34, grifo nosso)
Da mesma forma que a filosofia, a antropologia se coloca o objetivo de entender o homem em
sua totalidade. Essa também é a afirmação de Laplantine (2000) falando da pretensão de
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LAPLANTINE (2000), em nota, afirma que a antropologia passou a ser ensinada nas universidades
européias a partir do século XX. 1908, na Grã-Bretanha e 1943, na França.
estudar “o homem inteiro” e social ou “em todas as sociedades”, sem as limitações temporais
e espaciais:
Pois a antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em:
a) o estudo do homem inteiro;
b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os
seus estados e em todas as épocas. (LAPLANTINE, 2000, p. 16, grifo nosso)
A afirmação de que a Antropologia pretende “estudar o homem inteiro” pode ser vista como,
uma reformulação da postura filosófica. A diferenciação se dá pela utilização da metodologia
científica, ou seja os antropólogos criaram uma metodologia que implica em desenvolver uma
nova postura e um novo olhar
A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolução
epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica um
descentramento radical, uma ruptura com a idéia de que existe um ‘centro do
mundo’, e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutilação de si mesmo.
(LAPLANTINE, 2000, p. 22, grifo nosso)
O estudo do homem por inteiro, não é saudade da filosofia, mas uma dimensão metodológica
que visa a integridade científica.
Só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que
objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade.
Certamente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observações diretas, bem
como o aperfeiçoamento das técnicas de investigação, conduzem necessariamente a
uma especialização do saber. Porém, uma das vocações maiores de nossa abordagem
consiste em não parcelar o homem mas, ao contrário, em tentar relacionar campos de
investigação frequentemente separados. (LAPLANTINE, 2000, p. 16)
Ou seja, o Homem, para a antropologia, não é um amontoado de partes, mas uma só realidade.
Possui, sim, características e dimensões que podem ser vistas separadamente, mas não são
partes separadas ou estanques; nem uma dessas dimensões explica ou esgota o ser do Homem.
Além disso, quando falamos Homem, nos referimos a uma entidade genérica que só se
concretiza nos homens concretos que são diversos e se agrupam formando sociedades,
evidenciando a grande diversidade humana. Assim sendo, para estudar o Homem a partir e em
sua diversidade “a antropologia não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade.
Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da
humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas.” (IDEM, IBIDEM,
p. 20).
Opinião semelhante é expressada por Mello (1982), referindo-se ao paradoxo da antropologia:
uma disciplina altamente especializada e ao mesmo tempo geral:
Essa nossa disciplina é, com efeito, bastante paradoxal: é uma das disciplinas mais
especializadas e ao mesmo tempo urna das mais gerais. Especializada enquanto trata
apenas assuntos relacionados com o homem e sua experiência; geral, no que
concerne à variedade incrível de aspectos da realidade humana que envolve temas
estudados por geneticistas, psicólogos, sociólogos, biólogos, geógrafos etc.
(MELLO, 1982, p.35, grifos nossos).
Essa especialização e variedade justificam as divisões da antropologia de acordo com as áreas
de atuação. Assim aquela divisão proposta por Rabuske (1999), que mostramos acima, torna-
se mais detalhada agora. Não só Antropologia Filosófica e Científica, mas esta última tem
suas especificidades que vai desde uma Antropologia Física que se volta não só para as
“populações hodiernas, mas também o estudo da evolução da espécie humana” (MELLO,
1982, p. 36). Outro ramo desta ciência é o que se chama de “Antropologia Cultural” a qual se
propõe a estudar “a obra humana” que chamamos de cultura. Destacando que:
Dentro da cultura estão assuntos relacionados com política, religião, arte, artesanato,
economia, linguagem, práticas e teorias, crença e razão, um mundo realmente de
aspectos os mais complexos. Como se não bastasse a amplitude de assuntos a serem
estudados, ainda surgem problemas os mais variados. Exemplos disso são os
seguintes temas que pertencem ao campo da antropologia cultural: onde termina a
biologia humana e se inicia a cultura? Quais as influências da biologia sobre a
cultura e desta sobre a biologia humana? O ambiente tem a ver com a cultura? Que
dizer da influência da cultura sobre o ambiente? (MELLO, 1982, p. 37)
Em vista dessas especificidades é que se fala não só de antropologia, como de suas grandes
áreas de atuação: etnologia, etnografia, antropologia social, arqueologia. Tudo isso é
antropologia cultural, mas com caráter específico para cada atividade humana. Essas
especificidades e ao mesmo tempo amplidão de possibilidades além de mostrar a amplidão de
possibilidades da antropologia, evidencia a complexidade que é o próprio ser humano.
Complexidade que exige um “esforço para ver e fazer ver o que passa a ser e o que exige o
Homem, quando o inserimos, todo inteiro e até o fim, no quadro das aparências” (CHARDIN,
1986, p. 25). Esse será o norte de nossas reflexões seguintes: inserir o Homem no quadro de
nossas indagações; veremos o Homem, essa realidade que se pergunta.
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Já tratamos dessa temática em uma discussão sobre múltiplas inteligências e inteligência musical. Artigo
publicado e disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/6198/1/as-multiplas-inteligencias-e-
inteligencia-musical/pagina1.html>
diverte-se, come, etc. E cada uma destas atividades suscita questões e problemas de
difícil solução. Mas a complexidade acentua-se ainda mais quando se passa do plano
da ação ao do ser. Então nos perguntamos: quem é este indivíduo singular que
chamamos Eu e que qualificamos como pessoa? O que é que permite a seu corpo
explicar as mencionadas atividades, muitas das quais transcendem tão abertamente
os confins da materialidade? (MONDIN, 1981, p. 55)
A resposta do autor é a afirmação do problema: Ele é um “enorme emaranhado de
problemas”. Esse emaranhado de problemas ocorre, entre outros, pelo fato de que o Homem
não se satisfaz. Sendo insatisfeito lança-se, constantemente, em novas experiências a fim de
modificar o que o circunda. E modificando seu ambiente, modifica-se a si mesmo. A partir
disso podemos dizer que, para entendermos o Homem, é necessária a
Compreensão de todas as formas vitais e da natureza da própria vida. Em outras
palavras, faz-se necessário um conhecimento acerca do dinamismo vital que é
comum aos homens e aos animais dos mais simples aos mais complexos. Interessa
ao estudioso da antropologia física conhecer os mecanismos vitais todos, desde os
processos de reprodução e de genética ao da conservação. Não menos importante
para um estudo desse tipo é o conhecimento da geografia O homem é um animal
terrestre e o mundo físico é uma condição síne qua non para sua sobrevivência.
(MELLO, 1982, p. 37)
Isso nos leva a afirmação de que o Homem é diferente de todas as demais realidades. Aliás o
Homem é o único que consegue perceber essa diferença. Ele percebe-se no mundo dando-lhe
significado ou criando significado para a existência dos existentes. E como conseqüência
dessa significação, o homem cria funções e utilizações para as realidades com as quais se
relaciona. Isso implica dizer que o Homem manipula o mundo recriando-o de acordo com as
circunstâncias ou necessidades.
Não é preciso ser um homem para perceber os objetos e as forças ‘em círculo’ ao
redor de si. Todos os animais, como nós mesmos, estão em situação idêntica. Mas é
próprio do Homem ocupar na Natureza uma posição tal, que essa convergência de
linhas não seja apenas visual, mas também estrutural.[...]. Em virtude da qualidade
e das propriedades biológicas do Pensamento, encontramo-nos colocados num ponto
singular, sobre um nó, que domina toda a fração do Cosmo atualmente aberta à nossa
experiência. Centro de perspectiva, o Homem é simultaneamente centro e construção
do Universo. (CHARDIN, 1986, p. 26, grifo nosso)
Ocupando o seu espaço o homem cria o mundo. Ao ponto de Laplantine (2000) dizer que:
“Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, [...] faz tanta
questão, é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de
organização social extremamente diversos.” (LAPLANTINE, 2000, p. 21, grifo nosso).
Organizando o mundo e se recriando o Homem se apresenta a si mesmo como um espetáculo
a ser apreciado. “Ao contrário dos animais que se transformam corporalmente para se
adaptarem às mudanças do meio ambiente em que vivem , nós transformamos os ambientes
em que vivemos para adaptá-los a nós” (BRANDÃO, 2008, p. 27, grifos nossos).
O Homem está no mundo reconhecendo-o. E faz isso porque se sente capaz de agir,
reproduzindo-o. Aliás o mundo só é mundo porque assim o determina o Homem. Embora
com realidade objetiva independente, o mundo só é o que é, deixando de ser apenas natureza,
porque o Homem lhe dá essa significação.
Desde que existe, o Homem se oferece como espetáculo a si próprio. Com efeito, há
dezenas de séculos ele só se olha a si mesmo. E no entanto mal começa a adquirir
uma visão científica de sua significação na Física do Mundo. Não nos admiremos
dessa lentidão no despertar. Muitas vezes, nada é tão difícil de se perceber quanto
aquilo que deveria ‘saltar-nos aos olhos’. Não necessita a criança de urna educação
para separar as imagens que assediam a sua retina recém-aberta? Ao Homem
também, para descobrir o Homem até o fim, foi necessária toda uma série de
‘sentidos’, cuja gradual aquisição, conforme veremos, abrange e expande a própria
história das lutas do Espírito. (CHARDIN, 1986, p. 26).
Inicialmente o Homem toma consciência de si e do fato de estar no mundo.
Conseqüentemente se percebe completamente diferente dos demais existentes; passa, então a
dar sentido à existência dos existentes. Dá sentido porque pensa, porque se socializa e
porque manipula os elementos da realidade; gera cultura e transcende à realidade humana.
Podemos dizer que praticamente todas as correntes de filosofia procuram dar uma explicação
para esta realidade à que se chama Homem. Dessas explicações um ponto parece ser comum e
sobre o qual as vozes se fazem unânimes: o fato do homem ser pensante e a partir disso ser
capaz de manipular o mundo em que se insere. Podemos dizer que essas são características
eminentemente humanas ou distintivas do Homem.
Ressaltemos que o Pensar não é só o que se entende etimologicamente: capacidade de pesar,
avaliar. Pensar refere-se também à capacidade de fazer escolhas o que implica em ser capaz
de agir consciente e responsavelmente – ponto de partida para a criação da moral. Aliás, o
Homem avalia, justamente, para fazer escolhas e poder agir. Portanto o Homem é aquele que
avalia e escolhe, e faz isso a partir de um processo reflexivo que exige uma postura
introspectiva e ativa. A introspecção deriva da capacidade de abstração, capacidade de
representar todas as realidades; e a ação resulta da consciência, sabendo o que e porque
realiza o que faz. Na verdade quando dizemos que o Homem é capaz de pensar pretendemos
afirmar que ele é capaz de se comunicar a respeito das realidades com as quais não está em
contato imediato. Ele pode representá-las, mentalmente no processo de reflexão/abstração.
Essa representação pode ganhar as mais diferentes formas, desde a artística, como a música,
até as ciências e a religião; tudo o que recebe a classificação de cultura.
Outra característica do Homem é a da sociabilidade. A sociabilidade, ou a capacidade de
viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser uma das melhores caracterizações do
Homem. Diferentemente do que ocorre com outras espécies, o Homem não se associa por
instinto, mas por vontade. O Homem não é dependente, mas senhor da sociedade; não está
nela devido aos instintos, mas por que assim o quer.
Entretanto aqui precisa se fazer uma ressalva. Não nos parece que o Homem seja,
essencialmente, um ser social, mas se faz social a partir de suas necessidades e para superar
seus medos. Sendo assim a sociedade humana estaria assentada sobre os pilares do medo e
das necessidades. A vontade de viver em grupo se deve ao fato de que o ser humano é
limitado, o que significa dizer que tem necessidades e tem medo: do que não conhece e do
que já conhece. O medo em relação ao mundo, ao desconhecido provocam no Homem a
consciência de sua limitação e daí a percepção de necessidades. Em razão disso decide-se por
viver em grupo, pois o grupo, a sociedade é um fator de segurança.
Podemos dizer que, embora um ser sectário o Homem se socializa, não por ser sociável, mas
porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por medo de não
sobreviver procura a ajuda dos semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente
egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza
aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Assim sendo a vida social é um meio pelo
qual o Homem tira proveito da fraqueza de outros para se fazer forte. Mas a sociedade é um
caminho para o isolamento, como afirma Nietzsche, dizendo que todo homem : “elite aspira
instintivamente à sua torre de marfim, onde está livre da massa, do povo, da multidão, onde
pode esquecer a regra ‘homem’, sendo ele próprio uma exceção a essa regra” (NIETZSCHE,
[2005] (a), p. 43)
Com isso também podemos dizer que outra característica do Homem é a maldade. Essa
característica recebe o seguinte comentário de Nietzsche: “ver sofrer; faz bem; fazer sofrer
melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso,
humano, demasiadamente humano” (NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64). E o pensador alemão
ainda acrescenta:
É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais
domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representar-se
com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade
primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres; por outro
lado [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a ‘deificação’ da
crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior.
(NIETZSCHE, [2005] (b), p. 64. Grifo nosso).
A partir da referência à “alegria festiva” podemos acrescentar mais uma característica ao
Homem: ser alegre ou festivo. E com isso voltamos à sociabilidade. Desde os primórdios, o
Homem procurou meios de criar artifícios para o agrupamento. Entre eles estão a música, as
artes e a religião, utilizadas em momentos festivos. Os momentos de festa possuem várias
conotações: desde a comemoração pelas colheitas até o ato de tripudiar o inimigo derrotado.
A festa ocorre, portanto não só porque o Homem é capaz de se alegrar, mas como recurso ou
meio para significar algo. Festeja-se a colheita bem sucedida, e isso dá alegria pela certeza da
fartura, ou o inimigo vencido, pela certeza de não ter sido derrotado. Uma demonstração da
festa como comemoração pela derrota do inimigo pode ser lida nos contos 22 e 23 da Ilíada
(HOMERO, [1980?]), quando Aquiles arrasta o corpo de Heitor e clama pela glória de ter
morto o príncipe dos troianos.
O Homem, portanto, caracteriza-se como esse emaranhado de aspectos e dimensões. Não se
esgota ou limita-se a esta ou àquela dimensão, mas é um emaranhado rizomático de
capacidades e possibilidades. Em razão disso podemos dizer que o Homem não é, mas
constrói-se cotidianamente a partir de um elemento que lhe é essencial: a cultura ou as
manifestações culturais.
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No caso específico do Brasil, valeria uma reflexão mais aprofundada o fato de não nos sentirmos agentes de
nossa história e de nossa cultura, visto que, ao longo do processo colonial nosso país – a colônia – era coisa a
ser explorada e região em que vivia não o outro com quem o colonizador pudesse manter relações de
igualdade, mas o índio, o negro; ambos não possuidores de autonomia e que podiam ser subjugados e
explorados. Mesmo o europeu que para o Brasil se dirigia, vinha em busca de riqueza, ansiando voltar logo e
rico para a Europa. Essa relação desigual e dominadora, pode ter produzido a mentalidade da autonegação ou
do não reconhecimento de si como agente de valores e de cultura. Também pode ser visto o estudo de
Roberto DaMata (1997) sobre a prática de invocar o “sabe com quem está falando.
Em outras palavras Mello (1982), reforça a afirmação da capacidade não só criativa, como da
intencionalidade do ato humano que é uma ação distintiva. Por isso que o ninho do passarinho
ou um favo de abelhas nunca serão cultura, por mais belos e bem construídos que sejam. Ao
passo que qualquer obra humana, mesmo que feia ou mal feita, além de ato cultural é
resultado da intencionalidade e está recheada de cultura.
Na realidade, a acultura, em sentido largo, é o conjunto de obras humanas. É a
cultura que distingue o homem dos outros animais. Por mais perfeito que seja um
ninho de passarinho, pouco representa como realização comparado com qualquer
objeto feito pelo homem. A diferença está, ao nosso ver, na inconsciência que
domina a atividade animal e na consciência que está presente ao ato humano.
(MELLO, 1982, p. 41)
Deve-se reforçar que os atos humanos, além de carregados de intencionalidade, e de
consciência recebem, também, uma dimensão simbólica e ritual. Ou seja, o Homem cria
significados para o que faz e para o que cria.
Existem sociedades animais e até formas de sociabilidade animal, que podem ser
regidas por modos de interação antagônicas ou comunitárias, bem como de modos
de organização complexos (em função das faixas de idade, dos grupos sexuais, da
divisão hierarquizada do trabalho...). Indo até mais adiante, existe o que hoje não se
hesita mais em chamar de sociologia celular. Assim, o que distingue a sociedade
humana da sociedade animal, e até da sociedade celular, não é de forma alguma a
transmissão das informações, a divisão do trabalho, a especialização hierárquica das
tarefas (tudo isso existe não apenas entre os animais, mas dentro de uma única
célula!), e sim essa forma de comunicação propriamente cultural que se dá através
da troca não mais de signos e sim de símbolos, e por elaboração das atividades
rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais são capazes de muitas
coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo de aniversário.
(LAPLANTINE, 2000, p. 121).
O professor C. R. Brandão (2008) assim se expressa a respeito de nossa capacidade simbólica
ou da simbologia que caracteriza nossas produções culturais:
Somos seres criadores de diferentes culturas e de tantos modos de vida culturais
porque aprendemos a saltar do sinal (como a fumaça que indica o fogo) ao signo
(como os movimentos da dança nupcial de alguns pássaros, ou de algumas pessoas),
e deles para o símbolo. Sim, o símbolo, uma criação livre e arbitrária do imaginário e
da mente humana, que inventa em uma língua chamada Português a palavra ‘fogo’,
para traduzir uma mesma coisa da natureza, dita e escrita de infinitas maneiras
diferentes em várias línguas. Escrita e cantada com diversos significados, conforme
esteja em um livro de física, em um escrito religioso, em um manual de
sobrevivência na floresta, em um livro de formação de futuros bombeiros ou no
poema com que um jovem apaixonado diz á mulher amada o que ele sente dentro do
coração. (BRANDÃO, 2008, p. 31, grifos no original)
Essa dimensão da simbologia para a obra humana manifesta-se, por exemplo na diferenciação
da habitação. Desde que as abelhas aprenderam fazer suas colméias, as aves seus ninhos, as
aranhas suas teias e as formigas seus formigueiros, mantêm a mesma estrutura. Com o
Homem é diferente. Em um prédio de apartamento ou num conjunto habitacional, que o poder
da produção em série exige produção em série, podemos observar que cada morador imprime
sua marca distintiva em sua habitação. Elas podem ter semelhanças, mas não são iguais. E são
diferenciadas por causa das características que dão especificidade para a cultura.
Tomemos a liberdade de fazer uma longa citação das palavras do professor Brandão (2008),
que nos compara aos demais existentes, mostrando a preponderância não só do ato criativo,
como intencional e prenhe de capacidade transformadora e cultural. Mostra, acima de tudo,
nossa capacidade de aprender. Diz ele:
Claro, alguns bichos também lançam mão das “coisas do mundo” para criarem a
sua maneira de viver em “seu mundo”. Quando os nossos primeiros ancestrais
viviam a esmo e moravam em bandos em qualquer lugar, e não haviam dominado
ainda o fogo, nem aprendido a habitar as cavernas, as abelhas já construíam
colméias cuja sábia arquitetura até hoje nos espanta. E formigas e cupins constroem
de terra e de matéria dc seus próprios corpos verdadeiras cidades quase perfeitas. E
mesmo ninhos de passarinhos – olhe-os com cuidado – como o do João Congo ou a
casa do João de Barro, são verdadeiros prodígios de urna engenharia natural. Mas
todos os animais “construtores” fazem sempre as mesmas coisas do mesmo modo,
geração após geração, corno uma extensão natural de sua biologia. Fazem assim e
sempre assim, com talvez mínimas mudanças ao longo dos milênios. Eles
constroem com o que a biologia dc seus corpos determina que façam.
Nós não. Nós antes não sabíamos fazer e, então, aprendemos. A espécie humana, ao
longo de sua história, foi aprendendo. E cada um de nós, por sua vez, recapitula
esta história em sua biografia. Porque, uma a uma, aprendemos, ao longo da
infância e da vida, todas as coisas que aprendemos. Que aprendemos para ser quem
somos, para viver como vivemos, para sentir e pensar o que sentimos e pensamos,
para criar, fazer e transformar tudo o que a sós ou solidariamente criamos, fazemos
e transformamos. (BRANDÃO, 2008, p. 28, grifos nossos)
Até aqui já assinalamos algumas características da cultura quando dissemos que ela depende
da capacidade interpretativa, re-criativa, simbólica, intencional e consciente dos atos
humanos. Além disso a cultura permite ao Homem dar novo significado e novas formas às
produções já existentes. Isso porque o Homem, por ser cultural, consegue fazer escolhas e
perceber os rituais que existem nas diferentes manifestações culturais. Mello (1982) faz os
seguintes comentários a respeito de algumas características da cultura dizendo que ela é
“simbólica” ou seja, ela recebe um significado que é “conferido por aquele que o utiliza. Este
significado é arbitrário”. (MELLO, 1982, p. 47). Em razão disso ela também é “social” visto
que não existem manifestações culturais isoladas. Um indivíduo pode produzir
individualmente, mas essa produção passa a ter significado pelo e para o grupo quando passa
a ser uma produção significativa para esse grupo.
O autor ainda fala do caráter dinâmico e estável da cultura. Seu dinamismo se manifesta no
processo de recriação e a estabilidade refere-se à “tradição e a institucionalização de padrões
de comportamento”. Além disso, a cultura é “seletiva” pois se desenvolve dentro de “um
processo que implica sempre reformulações” (MELLO, 1982, p. 53) o que corresponde àquilo
que estamos chamando de capacidade re-criativa. Além do mais, o autor fala do caráter
“universal e regional” da cultura, para afirmar que todas as sociedades possuem cultura e que
ela “penetra todo o ser humano. Até a maneira de andar do homem é resultado da
endoculturação” (IDEM, IBIDEM p. 54). Por fim, a caracterização desse autor mostra que a
cultura é “determinante e determinada”, pois molda padrões, mas, ao mesmo tempo, sofre
influências no processo de reformulação.
Em síntese, podemos dizer que a antropologia, uma ciência nova, procura apresentar uma
palavra sobre o ser humano e, ao mesmo tempo, procura entender as manifestações humanas,
suas criações. Da mesma forma que outras ciências, a antropologia quer entender o Homem, o
que pode ser feito a partir de uma das mais claras manifestações do ser humano que é a
cultura. Esse processo e produção humanos concretamente se manifestam em diferentes
modalidades e com diversos rostos, mostrando as diversas faces do ser humano presentes nas
criações humanas. O que implica dizer que o homem pode ser entendido não em si mesmo,
mas a partir e naquilo que produz. Em resumo, só para reafirmar o que já foi dito, o homem se
humaniza ao produzir o mundo; a produção do mundo, as formas de produzir e reproduzir,
criar e recriar, são elementos culturais. Assim sendo o homem se humaniza não porque é
diferente dos animais ou dos outros existentes, mas porque produz e se manifesta na cultura.
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