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Saidon, César Merea

Leonardo Goijman, Osvaldo


Fernando Urribarri

Buscando ampliar em cada nova


edição o intercâmbio com cole-
gas nacionais e internacionais
assim como oferecer aos nossos
leitores o que há de mais atual no
Leonardo Goijman desenvolvimento do pensamento
psicanalítico, este Diálogo trata
de uma discussão que a cada dia
se amplia, inclusive na própria
Osvaldo Saidon IPA. Pela sua importância, con-
tamos com Fernando Urribarri
que escreveu sua introdução, es-
pecialmente para a Revista Psi-
César Merea canálise, da SBPdePA. A ele nos-
so agradecimento.

Comissão editorial
Por Fernando Urribarri

A idéia que me levou a organizar este número de Zona Erógena no


final de 2001 foi abordar as transformações clínicas no campo psicanalíti-
co contemporâneo. Em primeiro lugar para explicitá-las, cartografá-las,
torná-las manifestas e analisáveis. Em segundo lugar, para poder abrir um
verdadeiro debate sobre as conseqüências teóricas profundas que as mes-
mas implicam.
Nesse contexto, a questão da relação psicanálise-psicoterapia é uma
encruzilhada chave. Nela convergem problemas de técnica, discussões
psicopatológicas, lutas político-institucionais (que vão desde o crescente
debate acerca da necessidade de incluir a formação em psicoterapia psica-
nalítica nos Institutos da IPA, até o conflitante problema do estatuto social
da psicanálise em relação com os seguros sociais de saúde).
Mas, essas questões fundamentais devem ser reconhecidas para se-
rem re-organizadas, para não eclipsar o núcleo mais sútil e fundamental do
tema: o das mudanças na praxis psicanalítica. Uma mudança que envolve a
passagem desde a neurose como patologia de referência clássica aos esta-
dos fronteiriços como referência contemporânea. Uma mudança que desa-
fia o método e o enquadre analítico. Uma mudança que implica modifica-
ções no trabalho psíquico do analista: desde sua capacidade para
“sobreviver”(Winnicott) a situações transferenciais e contratransferenciais
limites, até uma maior disposição criativa e imaginativa para resolver as
falhas mais ou menos graves de simbolização.
Este último é o tema do primeiro grupo internacional de investigação
clínica “qualitativa” criado em 2000 por André Green e financiado pela
IPA. Minha participação como membro do mesmo convenceu-me, ao divi-
dir experiências com sete colegas da França, Inglaterra, Argentina e Esta-
dos Unidos, inclusive Otto Kernberg, da importância e vigência do debate
psicanálise-psicoterapia. Mas também o risco de que seu enorme potencial
Saidon, César Merea
Leonardo Goijman, Osvaldo
renovador se veja reduzido a opções ideológicas pré-estabelecidas.
Para evitar esses riscos, e abrir um verdadeiro debate científico multi-
focal e pluralista, esses três artigos foram selecionados por sua riqueza e
sua diversidade. Creio que o seu mérito principal é o de uma
heterogeneidade produtiva que o leva a abrir este tema sem sectarismos
nem dogmatismos, a meu juízo, a única maneira de afrontar as encruzilha-
das atuais e transformá-las em novos horizontes para a psicanálise contem-
porânea, e o melhor modo de construir o futuro da psicanálise.

Leonardo Goijman

A partir de que desencadeantes se propõe, neste momento, a confron-


tação entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica? Em que diferem as con-
siderações que a motivam das que se esboçaram em outras épocas, ou será
que existe um denominador comum recorrente nesta necessidade de escla-
recimento?
É evidente que existem questionamentos comuns entre os analistas de
todas as latitudes acerca desta tarefa, uma vez que a prática da psicanálise
se vê solicitada por idênticas exigências nos âmbitos em que se impôs. Por
um lado, a ampliação do campo de aplicação da psicanálise continuou sem
se deter desde o aparecimento de seu modelo, representado pelo enquadre
e pela técnica empregados no tratamento das neuroses de transferência.
Nessa medida, novos recursos técnicos se desenvolveram, levando, possi-
velmente, aqueles que divergem dessas concepções a propor, pela enésima
vez, a base comum de nossa ciência. Por outro lado, as modificações eco-
nômicas que acompanham a globalização, a grande concorrência das que
se atribuíram o nome de “terapias alternativas”, e a pressão das instituições
seguradoras de saúde para reduzir custos redundam em um crescente cons-
trangimento nas condições de trabalho do analista, o que leva a temer-se
que a progressiva restrição das possibilidades econômicas dos pacientes
coloque em perigo a psicanálise.
Além disso, certas questões não obtêm respostas concludentes, e isso,
talvez, não seja pernicioso. Para alguns, o tema volta a ser a confrontação
do ouro com o cobre, agora não mais da sugestão, mas sim da psicoterapia.
Para outros, em uma postura extrema, não haveria uma só psicanálise se-
não que o tratamento padrão seria só um de seus múltiplos enquadres técni-
cos (BRUSSET, 1991). É frente a esses novos enquadres, recursos técnicos
e modos de condução das terapias que surgem, hoje, inquietações a respei-
to da “pureza” da psicanálise; situações que, ao longo desses cem anos,
motivaram com freqüência a conhecida expressão: “isso não é análise”,
referindo-se, por exemplo, à de crianças e psicóticos. Outros fazem a mes-
ma recriminação aos que realizam tratamentos com enquadres diferentes
do tratamento padrão de quatro ou cinco sessões, no divã e sem um limite
fixo de tempo, etc.
Quando se produziu a ampliação das aplicações da análise aos campos
das psicoses e das perturbações das crianças, incorporou-se,
concomitantemente, a série de recursos técnicos que essas análises reque-
rem. Assim ocorreu com a introdução do jogo, recurso que veio ocupar, em
boa medida, o lugar da associação livre verbal, utilizada com os adultos
neuróticos. Da mesma maneira havia trabalhado Freud quando descobriu
que a associação livre podia muito bem preencher o vazio deixado pelo
abandono da técnica hipnótica, na indagação do material inconsciente. E,
com relação a certos pacientes psicóticos e muitos fronteiriços, o emprego
de modelos de continência, tendências organizadoras do ambiente ou de
cuidado e uma aproximação compreensiva, mais que interpretante – em
uma tentativa imprescindível de favorecer o controle da ansiedade que
transborda –, permitiram o tempo de espera necessário para que esses pa-
cientes pudessem começar a investir com êxito em seus sistemas motores e
lingüísticos, e voltar a conectar-se com o mundo externo.
Há quinze anos abordei, em um trabalho publicado pela Revista de
Psicoanálisis, a controvérsia entre a prática das duas técnicas. Tentei esta-
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belecer diferenças, tendo em conta elementos técnicos, parâmetros numé-
ricos predominantes nos enquadres, objetivos implícitos e explícitos. Os
parâmetros numéricos referiam-se à freqüência semanal de sessões e à du-
ração de cada uma delas e do tratamento em sua totalidade. Quanto aos
objetivos, importava distinguir se o tratamento visava obter uma modifica-
ção sintomática, um apoio egóico, como era esperado da psicoterapia, ou
uma modificação da estrutura do psiquismo, mais própria, estritamente, da
psicanálise.
Também eram importantes os instrumentos empregados, tais como a
interpretação, a construção e o assinalamento, mais comuns na psicanálise,
ou indicações orientadoras, recomendações destinadas a criar um âmbito
protetor, utilizáveis em pacientes mais desorganizados ou em crianças ou
adolescentes nas psicoterapias.
Postulei, então, que se considerassem ambos procedimentos comple-
mentares e que no tratamento de um mesmo paciente pudessem ser assina-
lados períodos em que se recorresse, inevitavelmente, a procedimentos
aparentemente mais superficiais, e outros em que fosse possível utilizar
todo o arsenal da psicanálise. Propus designar ao primeiro deles “momento
psicoterapêutico” e, ao segundo, “momento psicanalítico”. No entanto, o
primeiro era imprescindível para que se pudesse chegar ao segundo. Este, o
da psicanálise em sua plenitude, se desenvolvia predominantemente em
uma situação em que, à mercê do livre emprego desses recursos, um analis-
ta localizava-se plenamente em um campo que facilitava a associação li-
vre, a emergência de lembranças inéditas, o estabelecimento da transferên-
cia e que possibilitava um cenário no qual, com a atuação das inevitáveis
repetições, como expressões de traumas ocorridos em épocas precoces,
fosse possível sua elaboração.
Sigo mantendo, basicamente, minha postura de quase quinze anos,
ainda que durante esse período tenham surgido com maior clareza elemen-
tos que são importantíssimos considerar. Nas últimas décadas, o trabalho
do analista experimentou mudanças relevantes. Assim como a economia
produziu um crescimento dos grandes supermercados e centros de com-
pras em detrimento dos pequenos comerciantes e industriais, as grandes
instituições de seguro e assistência de saúde produziram uma redução das
margens em que se desenvolvem privadamente os profissionais. Há uma
restrição generalizada da disponibilidade econômica da população que
consulta. Pesam sobre os analistas as exigências de um mundo em que
progressivamente a riqueza vai desaparecendo da maioria e se concentran-
do em uma minoria, e em que os tempos se aceleram, tanto na comunica-
ção como na produção e nas expectativas de resultados.
De maneira crescente, a saúde está sob os cuidados de empresas cada
vez mais poderosas, seja atuando como seguradoras nos casos mais favorá-
veis, ou como centros de atendimento, o que impossibilita a livre escolha
do profissional, transformando os conveniados aos seus programas em pú-
blico cativo, que, inevitavelmente, devem recorrer a profissionais designa-
dos e, em grande medida, também a práticas psicoterapêuticas cuja orien-
tação científica é imposta pela direção desses centros. Uma pergunta gene-
ralizada é, então: “Quem pode tratar meus problemas dentro da lista (ou
direção) de minha instituição de seguro médico?”. A consulta ao analista,
em muitos casos, passa a ser uma segunda opção, uma vez esgotada a antes
mencionada.
Isso induz o psicanalista a ter de estar atento às limitações trazidas
pelo paciente, que, invocando sua economia massacrada, pode apresentar-
se à consulta com a expectativa de uma forma de tratamento que resultaria
inválida ao trabalho do analista. Ainda que sempre tenhamos convivido
com as variáveis de tempo e dinheiro em nosso enquadre, o certo é que o
responsável por estabelecê-las é o analista, que deve estar atento para so-
breviver a esse momento de instabilidade sem tornar-se, por isso, inflexí-
vel (M. Baranger).
É-nos imposta a exigência maior de detectar o ponto desde o qual
fortalecer a transferência, elemento fundamental para poder efetuar uma
intervenção de mudança ante uma pessoa que requer respostas desde o co-
meço de seu encontro analítico.
Esse ponto de vista coincide com a observação de Robert Wallerstein
Saidon, César Merea
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(1998), que assinalou com clareza que a restrição econômica geral desta
época e a que é resultante da concorrência com as terapias alternativas de-
terminam que os pacientes disponham de menos dinheiro em seus bolsos
para uma psicanálise. Dito de passagem, essas terapias devem seu nome de
“alternativas” à circunstância de pretender uma outra via com relação à
psicoterapia que é reconhecida como básica e que é, sem lugar a dúvidas, a
psicanálise. E a psicanálise não pode ser estática, um campo fechado: “a
psicanálise não é filha da especulação, senão o resultado da experiência; e,
por esta razão, como todo novo produto da ciência, está inconcluso”
(FREUD, 1913).
A psicanálise vai interatuando com seu tempo. Nessa medida, vai sen-
do influenciada pelas condições externas e também influi sobre elas. Por
sua vez, a cultura recebeu a influência benéfica da psicanálise não só na
psicologia e na concepção de uma visão psicossomática dos padecimentos
do indivíduo, que influi, sem dúvida, na medicina em geral e de modo
especial na psiquiatria e na pediatria, mas também nas artes, especialmente
na literatura e no cinema.
A má utilização da psicoterapia analítica preocupa tanto quanto a defi-
ciente utilização da psicanálise; existe subjacente o temor de que a psica-
nálise se dilua, e a psicoterapia seja difundida como se fosse psicanálise.
Sérios estudos sobre o tema têm concluído que sempre houve
inquestionáveis psicanálises, e outras que não foram eficazes, fossem com
intensa ou menor freqüência, e, por outro lado, também boas e más
psicoterapias, com muita ou pouca freqüência de sessões. “Não se pode
arrazoar sobre os casos extremos, mas sim sobre as proporções e as fre-
qüências: existem análises face a face, assim como psicoterapias em posi-
ção deitada. A análise ideal existe, mas é exceção: o papel do analista está
quase reduzido ao de guardião do enquadre ou ao de suporte da transferên-
cia, porque o paciente faz o trabalho sozinho”, diz Bernard Brusset (1991).
A afirmação de que há psicoterapias face a face e análise em posição deita-
da é de validade universal e, possivelmente, seria subscrita por todos os
analistas. Que uma análise ideal existe, mas é excepcional, certamente se-
ria discutido por mais de um, mas resulta tranqüilizador, uma vez que ali-
via a exigência de que devem cumprir-se sempre os parâmetros do trata-
mento padrão. Que o analista trate de manter-se atento, como um guardião
da manutenção do enquadre, e se esmere para ser fiel à sua missão de servir
de suporte da transferência são duas excelentes recomendações.
Por sua parte, Edward Weinschel (1992) afirma: “Inclusive nas asso-
ciações psicanalíticas norte-americanas e internacionais existem analistas
e sociedades que tomaram a posição de que uma análise satisfatória pode
ser conduzida com menos de 4 ou 5 sessões semanais e durante um período
relativamente breve. Isto não significa dizer que esses conceitos e técnica
não são componentes cruciais de todo trabalho analítico e de toda análise”.
Esse mesmo autor também considera que a apreciação dos tratamentos se
tornou mais “modesta”: em lugar de falar de curas analíticas, fala-se de
mudanças ou novas formações de compromisso; em lugar de “eliminar” o
conflito patológico, contenta-se somente em falar de sua modificação; já
não se espera mais uma análise completa ou resolver completamente as
transferências. E acrescenta: “já não sentimos que podemos ‘vencer’ as
resistências e pensamos mais em analisá-las; já não vemos mais o insight
como o sine qua non da análise e nos dedicamos mais a aumentar a capaci-
dade de autoquestionamento e auto-observação; o sonho não é mais a via
regia para o conhecimento das atividades inconscientes da mente e resgate
das lembranças reprimidas per se, não é nem uma absoluta garantia de uma
análise exitosa nem sequer seu principal objetivo”.
Esse enfoque das expectativas da análise, mais que “modesto”, é be-
néfico, de maneira geral, e também mais realista. A substituição dos obje-
tivos analíticos por outros mais viáveis não só não diminui a importância
do trabalho, mas, ao contrário, respeita os obstáculos. Sempre foi próprio
de nossa prática considerá-los, e não pretender sorteá-los com um subterfú-
gio ou dominá-los onipotentemente. Não obstante, parece-me necessário
manter certas metas como sinais orientadores da tarefa: a tomada de cons-
ciência (insight), o sonho como via regia, o ato falho e o sintoma neurótico,
assim como certas formas de resistência, e ainda as atuações, creio que
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seguem sendo nossos suportes à realidade do inconsciente. Sem uma con-
cepção da tarefa baseada nesses recursos é provável que o trabalho, em seu
conjunto, corra perigo, tanto tratando-se de psicoterapia como de psicanálise.
Transfere-se, então, a discussão para o processo de formação do ana-
lista, ou permanece, afora isso, a necessidade de se avaliar a correta utiliza-
ção dos recursos, seja quanto a sua oportunidade como em relação a sua
intensidade, ainda quando quem os utilize seja um analista bem formado?
Há, em princípio, um bom ponto de acordo: Não é irrelevante que quem
implemente uma psicoterapia tenha uma boa formação analítica e uma boa
análise pessoal.. Isto é irreversível: não há o mesmo resultado se quem
conduz a terapia é um analista ou não. “Ser um analista” não implica so-
mente ter feito uma boa formação e aprofundado seu auto-conhecimento.
Implica, além disso, ter sempre claro o significado de sua condição e refle-
ti-lo em sua tarefa clínica.
Frente àqueles que se afligem pelo possível desaparecimento da psi-
canálise, entendemos o que segue: a psicanálise inaugurou um novo campo
de investigação do psiquismo humano, que é o do inconsciente, e isso é um
fato irreversível. Sua descoberta teve uma importância semelhante à des-
coberta copérnica e marca a diferença, que não será fácil de superar, com as
psicoterapias não-analíticas. A questão não se resolve com revelações
intempestivas acerca de modalidades de conflito constituídas, retiradas de
uma série de prescrições voluntárias. Acredito que as palavras de Freud
(1911) são muito conclusivas e podem constituir o melhor final deste arti-
go: “O fator patógeno não é este não-saber em si mesmo, senão o funda-
mento do não-saber em umas resistências interiores que primeiro o gera-
ram e agora o mantêm”.
“Não se deve empreendê-la antes que se cumpram duas condições.
Em primeiro lugar, que o enfermo tenha sido preparado e ele mesmo já
esteja próximo do reprimido por ele; e, em segundo lugar, que seu apego
ao médico (transferência) tenha chegado ao ponto em que o vínculo afetivo
com ele lhe impossibilite uma nova fuga.
Só cumpridas essas condições se torna possível discernir e dominar
as resistências que levaram à repressão e ao não-saber. Assim, uma inter-
venção psicanalítica pressupõe absolutamente um prolongado contato
com o doente, e a tentativa de surpreendê-lo, em sua primeira visita ao
consultório, mediante a brusca comunicação dos segredos que o médico
inferiu, é reprovável tecnicamente, e com freqüência retribuída com a sin-
cera hostilidade do doente sobre o médico, com o que se elimina toda pos-
sibilidade de futura influência.

BARANGER, M. de. Comunicação pessoal.


BRUSSET, B. (1991) L’or et de cuivre: la psychothérapie peut’elle être et rester
psychanalytique? Revue Française de Psychanalyse, v. 40, n. 3, p. 559-579.
FREUD, S. (1910 [1911]). El psicoanálisis silvestre. A.E., v. 11.
______. (1913[1911]). Sobre psicoanálisis. A.E., v. 12.
GOIJMAN, L. (1984) Psicoanálisis y psicoterapia analítica: antinomia o
complementariedad. Revista de Psicoanálisis, v. 41, n. 2/3.
WALLERSTEIN, R.S. (1998). Psicoanálisis: el futuro de una ilusión? Informati-
vo de la Asociación Psicoanalítica Internacional, v. 7, n. 1.
WEINSCHEL E.M. (1992). Therapeutic technique in psychoanalysis and
psychotherapy. J. Amer. Psychoanal. Assn., v. 40, p. 327-347.

Osvaldo Saidon

Há alguns anos, era freqüente que os psicanalistas, ao escreverem so-


bre as psicoterapias, tratassem de diferenciar-se destas para afirmar a im-
portância de uma teoria consistente e a sustentação do dispositivo analítico
frente ao choque dos pensamentos ilegítimos.
Hoje, em muitos sentidos, a situação inverteu-se, e é freqüente ver os
psicanalistas lembrarem a importância ética dos cuidados e do alívio do
sofrimento para ressaltar a importância da atividade psicoterapêutica. Essa
atitude leva-os, em muitos casos, a oferecer o potencial do pensar psicana-
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lítico a serviço do procedimento terapêutico, seja através da ordem verbal,
corporal ou, inclusive, na orientação dos tratamentos farmacológicos.
Em realidade, o objetivo de estabelecer diferenças e hierarquias entre
a psicanálise e a psicoterapia é tão antigo como a existência dessas práti-
cas. O próprio Freud já alertava sobre a existência da psicanálise silvestre e
o risco de que isso levasse a que seus descobrimentos servissem de argu-
mentos a charlatões e oportunistas em um campo tão delicado da existên-
cia humana.
A dificuldade em estabelecer as diferenças entre a psicanálise e a
psicoterapia deve-se não só a problemas semânticos e teóricos, senão, fun-
damentalmente, ao fato de que por trás dessa questão se movem interesses
institucionais e mercadológicos diversos.
Digamos, ante tudo isso, que essa confusão não só afeta os leigos e os
pacientes, mas instala-se nos debates entre os próprios profissionais.
Nos congressos e reuniões psicanalíticas das mais diferentes tendên-
cias chamou atenção – nos Estados Gerais da Psicanálise, por exemplo –
um certo revigoramento de atitudes em defesa do chamado “ouro puro da
psicanálise” em relação às psicoterapias de cunho diverso que padeceriam
de vícios variados, como a falta de neutralidade, o apelo a saídas mágicas,
a falta de rigor científico, etc. Essa discussão, que não deixa de ter certo
valor teórico, reativa-se hoje na Europa, nos Estados Unidos, e está che-
gando ao nosso país pela necessidade de regular a prática psicoterapêutica
por parte dos seguros de saúde.
Aparece quase uma falta de sentido comum nesses debates quando
comprovamos que, em realidade, a maioria dos psicanalistas do planeta
pratica em seu trabalho cotidiano a psicoterapia, ensinando em escolas de
psicoterapia ou em cadeiras que levam esse nome. Está claro que os psica-
nalistas praticantes realizam o que se chama de psicoterapia psicanalítica,
e nisto se diferenciam de outras escolas psicológicas, como a gestalt, a
sistêmica, a reichiana ou outras que também realizam uma prática
psicoterapêutica que, como a psicanalítica, buscam validar-se em certa tra-
dição científica e universitária.
Para colaborar nessa confusão, digamos que, em nosso país como em
outros, a psicanálise está suficientemente incorporada à ciência, à cultura e
à arte, para que, de algum modo, os postulados básicos da disciplina criada
por Freud estejam, como perspectiva presente, em praticamente todas as
práticas psicoterapêuticas.
Por outro lado, em nosso país existe, desde muitas décadas, um pro-
cesso de institucionalização da prática terapêutica através da formação fun-
dada e conduzida por psicanalistas. Inclusive as chamadas psicoterapias
alternativas – desenvolvidas desde os anos sessenta, e que vão desde expe-
riências místicas até a realização de trabalhos que misturam práticas corpo-
rais com o uso de diversas drogas e com terapias através da palavra –, em
muitos casos compensam seus déficits de compreensão do funcionamento
psíquico usando termos e interpretações de estilo psicanalítico. Algumas
vezes, inclusive, temos discutido as diferenças na prática clínica entre os
psicanalistas institucionalizados e aqueles que saíram das instituições psi-
canalíticas. Diz-se que, definitivamente, não é muito diferente a prática
dos psicanalistas oficiais daqueles que optam por um trabalho mais alter-
nativo. Acabaria se demonstrando, assim, que o alarde que acompanhou as
vicissitudes das rupturas nas instituições psicanalíticas não correspondeu a
uma diferença concreta na própria prática do ato psicanalítico.
Toda essa polêmica entre escolas careceria de sentido, se não estives-
se, na realidade, em jogo a necessidade de contemplar um trabalho
terapêutico que atenda com idoneidade o mal-estar, o sofrimento e a morti-
ficação pelo que os pacientes nos procuram.
Essa tem sido, de alguma maneira, a tarefa que deveriam empreender
as instituições psicanalíticas ou universitárias, mas que, no transcurso des-
te século, impelidas pelas mais diversas conjunturas socioeconômicas e
subjetivas, optaram em muitos casos em limitar-se a fazer uma espécie de
defesa fundamentalista da psicanálise.
G. Deleuze, um renovador não-psicanalista da teoria do inconsciente,
convida-nos a distinguir, nas disciplinas, entre um plano de organização e
um plano de consistência.
Saidon, César Merea
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Na disciplina que aqui nos interessa poderíamos dizer que o plano de
organização é o que se destina a definir uma prática à medida que se adapte
a certos procedimentos ordenados e repetidos. Em nosso caso, tratamentos
prolongados, sessões de 50 minutos várias vezes por semana, manutenção
de certa neutralidade, interpretação estrita da transferência e outras moda-
lidades que definiriam um procedimento correto da psicanálise.
O plano de consistência não se opõe a isso, mas seu interesse centra-se
em outra perspectiva, e se formulam outros tipos de questionamentos.
Trata-se de ver como sermos contemporâneos, hoje, na realização de
uma prática que leve em conta transformações da subjetividade em curso,
como fazer com que a complexidade da teoria se vá construindo para res-
ponder às necessidades clínicas que manifesta a singularidade de cada um
dos pacientes e dos grupos nos quais nos cabem intervir. Definitivamente,
tornar consistente a prática e a teoria psicanalíticas, tanto nos tratamentos
individuais como nas psicoterapias e nas intervenções mais diversas, com
grupos, com famílias, com casais e com instituições.
A clínica, nesse ponto, deve fazer uso daquilo que pode para manter a
função de cuidar que dá sentido a essa prática. Por isso é que, talvez, o que
chamamos plano de consistência não dê conta de todo o processo do traba-
lho clínico, senão de um aspecto, o mais provocador, o que nos dá sentido
para seguir pensando, mas, também, o que nos arrasta para um território
onde devemos nos armar com todos os equipamentos que sejam necessári-
os para dar consistência ao processo e cuidar do paciente e de nós mesmos.
Acredito que é essa perspectiva clínica e de cuidados a que nos faz
insistir no estudo, docência e prática dos conceitos psicanalíticos, apesar
do crescente interesse que novos paradigmas ou novas lógicas nos desper-
tam.
Não se trata de adicionar nossa voz aos que tagarelam sobre a
desatualização do pensamento psicanalítico, anunciando novas técnicas
terapêuticas. Mantemos um saudável pudor frente ao fácil embate que pro-
vocam as técnicas terapêuticas noveleiras, demasiado superficiais em suas
perspectivas teóricas, ou excessivamente místicas em seus objetivos
terapêuticos. Mas não podemos ocultar nosso tédio ante as afirmações pu-
ramente edípicas, familiares ou antropomórficas, que se repetem como
evangelho para dar conta da produção de subjetividade nesta era
massmediática. Os enquadres que utilizamos têm o valor de criar algumas
possibilidades para o trabalho; cada terapeuta tem suas maneiras de atuar,
de falar, de vincular-se com o paciente e seus conteúdos. Somos
maneiristas da maneira que a arte moderna o é no tratamento dos volumes
e da luz. Alberto Moravia, em relação ao maneirismo de Picasso, disse que
este, na arte, é “o que o sincretismo é para a religião e a tecnologia para a
ciência”. Então, a busca de maneiras, de estratégias passageiras, da experi-
mentação, justifica-se hoje porque expressam nossa época sincrética e
tecnológica.
Nesse sentido, a experimentação no trabalho clínico não tem a inten-
ção de promover uma técnica nova ou uma perspectiva de cura diferente.
Ela mesma é a atitude que expressa o modo em que a subjetividade hoje se
produz e a estratégia de desconstrução necessária para possibilitar o adven-
to do inconsciente em sua potencialidade desejante e produtiva. Por isso
que, quando propomos o nome de maneirista para nosso modo de atuar,
estamos nos referindo a uma certa disposição de criar nos dispositivos (ses-
são analítica, sessão de grupo, grupo operativo ou de reflexão, grupo de
estudo) uma atitude clínica. Entendemos atitude clínica como o modo de
mobilizar um pensamento através das experimentações que vão possibili-
tando ou exigindo os processos de afetação em curso. A experimentação
que propiciamos ocuparia o lugar que anteriormente estava tão solenemen-
te reservado à interpretação referente a certa teoria única e que se realizava
com certa técnica. Mas essa atitude, esse estilo reflete-se, fundamental-
mente, em um modo de pensar e em um estilo que se produz nos encontros.
Portanto, não se trata de realização de jogos de relaxamento ou da
busca hedonista que promovem algumas correntes do potencial humano.
Trata-se de uma estratégia do pensamento, segundo o qual se levarão em
conta não só as lógicas significantes, o curso dos discursos, mas todos os
corpos que concorrem ao campo de intensidade que habita nossas existên-
Saidon, César Merea
Leonardo Goijman, Osvaldo
cias. Assim, quando falamos de encontro em lugar de transferência,
estamos nos referindo à possibilidade de facilitar a produção desejante do
inconsciente através dos engendramentos que realiza. Todos temos vivido
esses momentos na relação clínica, nos quais, em algum momento, aparece
o encanto. Esse encanto é o afeto que reflete a riqueza do imaginário, quan-
do este se abre à multiplicidade de sentidos, a sair do próprio deserto para
percorrer outros, gerando combinações e invenções. Acredito que são es-
sas invenções que deveriam incluir-se na possibilidade de um trabalho psi-
canalítico, proporcionando a ocasião de partir para a experimentação.
Nos processos psicoterapêuticos, no que chamamos plano de consis-
tência, trabalhamos com o inconsciente, mas tratamos de enfatizar sua ati-
vidade produtiva, mais que restitutiva, de uma história. Trabalhamos com
o tempo, mas, enquanto podemos, tratamos de deixar-nos arrastar mais por
seus processos de irreversibilidade e auto-organização do que por sua pos-
sibilidade de produzir regressões. Atendemos ao tempo da rememoração,
mas percebemos que um novo campo de pensamento se abre quando
estamos habitando a seta do tempo. Os silêncios, o timing, as escanções do
discurso, as passagens ao ato, o tempo das sessões, as interrupções, cada
vez mais tratamos de observá-las como processos de velocidade e lentidão
em um campo de intensidades. Então, o insight algumas vezes é o
surgimento de uma lembrança, mas, outras vezes, é um sentimento de ver-
tigem, de velocidade do pensamento, de encanto ante uma potência que se
está desdobrando, um desejo que encontrou o modo de expressar-se.

César Merea
O antigo debate sobre a psicoterapia e a psicanálise tornou-se atual-
mente político: trata-se de manter a hegemonia sobre a formação
psicoterapêutica por parte da psicanálise, mas mantendo, ao mesmo tempo,
a psicanálise como algo quimicamente puro, separado da psicoterapia.
Tudo isso frente ao “dilema” dos tributos “sociais” da psicanálise versus
seu regime profissional privado. Frente a isto, minha tese é conceber que
toda ação terapêutica na qual estejam presentes os pilares básicos da psica-
nálise É PSICANÁLISE, sob qualquer enquadre metodologicamente razo-
ável. Isto significa abolir o termo psicoterapia psicanalítica. Então, no
máximo poderiam reivindicar o termo psicoterapia, com a correspondente
complementação, aquelas outras teorias que, tendo uma instrumentação
terapêutica, não estivessem baseadas na psicanálise, como as sistêmicas,
cognitivas, etc.
Portanto, se um terapeuta se forma psicanaliticamente e não repudia
essa teoria, toda a sua prática é psicanálise. Winnicott diz assim: “Fui con-
vidado a falar do tratamento psicanalítico e, em compensação, um colega
foi convidado a falar da psicoterapia individual. Confio em que ambos
partiremos do mesmo problema: Como distinguir uma coisa da outra?
Pessoalmente não me vejo em condições de precisar a diferença. Para
mim, a questão é: O terapeuta teve formação analítica ou não? [...] Se
nosso propósito segue sendo verbalizar a consciência nascente em termos
de transferência, estamos fazendo análise; se não, somos analistas no
exercício de qualquer outra técnica que consideremos adequada para a
ocasião. E por que não?” (Sobre esses temas e o que é formação analítica
me aprofundei mais em um artigo do mesmo nome, de 1999.)
Concentrar-me-ei em uma seleção para esse artigo, em uma lista de
temas a revisar para o cotejo dessas atividades.

O enquadre é, para mim, uma função mental; é a maneira de estabele-


cer um marco na abordagem da organização interna de tempo-espaço sub-
jetivo do paciente e de seu modo de relação com os objetos. E não é – ao
inverso – aquilo com o que pode ser confundido: uma organização de tem-
po-espaço da realidade externa em que deve fazer-se inserir a realidade
subjetiva. Da função formal do enquadre, no máximo admitirei a metáfora
de que é como a demarcação de um campo no qual se irá jogar um jogo.
O enquadre rigoroso da psicanálise foi visto como um impedimento
Saidon, César Merea
Leonardo Goijman, Osvaldo
para o desenvolvimento de uma psicoterapia, sobretudo quanto à freqüên-
cia de sessões e à indeterminação da duração do tratamento. Mas se deve
assinalar que a noção de enquadre foi se cristalizando até converter-se em
alguns usos técnicos, em um fim em si mesmo dentro do tratamento, e sua
manutenção como sinônimo do mesmo e como objetivo terapêutico.
O enquadre, no entanto, desde outras perspectivas teóricas, é um meio
e não um fim, é como o campo e as regras para jogar um jogo – como disse
–, mas não é o próprio jogo. O enquadre é a condição para a apresentação
do fenômeno inconsciente, mas não é a tradução do inconsciente mesmo.
(Isto não quer dizer que, além disso, não tenha um significado particular
para cada paciente ou um tipo de organização psicopatológica.). Portanto,
o melhor rigorismo do enquadre consiste em que o terapeuta tenha sua
função muito clara dentro de sua mente, mais que nos sinais exteriores do
mesmo.
Ver um obstáculo técnico irrecuperável nos diferentes enquadres da
psicanálise e da psicoterapia para a utilização da teoria psicanalítica talvez
implique uma confusão entre o conceito de teoria e o que se levou a chamar
“teoria da técnica”. Esta última consiste em uma teorização direta dos ele-
mentos técnicos e realizada a partir deles; é o que elevaria o status dos
mesmos a constituir-se na origem mesma da teoria.
Freud, ao não confiar puramente no elemento técnico, senão experi-
mentando com ele e teorizando paralelamente no andar da prática clínica,
produz o método de associação livre.
Por esse motivo creio que, tanto para um enfoque da articulação da
psicanálise e da psicoterapia, como para a consideração da psicanálise
mesma, é mais pertinente pensar que só existem a teoria e a clínica. A
clínica, por sua vez, implica na utilização de um método; da interação entre
a teoria preexistente e o método, surgem as ampliações e correções da teoria.
Com esse enfoque, resulta possível conceber melhor os reajustes do
método que podem levar a teoria a estender-se a novos objetos e situações
clínicas, sem perder nem o rigor do método, nem a espessura da teoria.
Para Freud, a transferência é uma “falsa conexão” e um “obstáculo”
terapêutico que deve converter-se em um aliado, mas não pode tratar-se in
absentia nem in effigie. Isso implica que, sendo um fenômeno indesejável
na clínica, também seja insustentável. Então, sua abordagem será obrigató-
ria, mas seletiva. Seguindo a linha da argumentação utilizada no ponto an-
terior, a transferência contém um fragmento estrutural da história do pa-
ciente que não deve ser mais importante que a própria história, ainda que
essa história se repita em seus vínculos transferenciais. É evidente que,
para considerar as relações entre psicanálise e psicoterapia, temos que dis-
tinguir entre a interpretação sistemática “na transferência” e a interpreta-
ção no momento oportuno “da transferência”.
O primeiro uso – admitindo que o paciente o suporte – conduz nos
fatos a uma maior regressão do paciente, o que nos faz perder essa parte
crescida “dona de si” (Freud) que, sob qualquer circunstância (e diagnósti-
co), é essencial para uma psicoterapia. Esse uso também converte o enqua-
dre em um fim para o vínculo transferencial.
No outro esquema teórico-técnico, a transferência não é o vetor pelo
qual se formulam todas as interpretações, senão um vértice afetivo
inapreciável que, assinalado em seu auge – e não durante todo o tempo –
provoca, justamente, o desaparecimento da falsa conexão transferencial, e
isso ocorre em sua apresentação resistencial ou – em outro pólo – como
reforço da vivência atual no aqui e agora do que se está descobrindo da
história.
A uma interpretação transferencial oportuna e certa sobrevém a disso-
lução da falsa conexão transferencial e aparece a lembrança histórica e/ou
material, o que implica – além disso – numa ruptura de qualquer dependên-
cia imaginária que o paciente houvesse criado, aproveitando a existência
de uma relação assimétrica real, em que o poder e a autoridade são atribu-
ídas ao terapeuta.
Saidon, César Merea
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Aceitando, de maneira geral, que seja a manifestação clínica da re-
pressão e que tenha um caráter repetitivo, ela foi constituída como o ele-
mento crucial para definir formas de psicoterapia entre quem diferencia
taxativamente esta da psicanálise. Foi assinalado que, conforme o trata-
mento que se faça dela, definem-se as formas de psicoterapia entre: a) as
que tratam de evitá-la (exemplo paradigmático: a hipnose); b) as que tra-
tam de elaborá-las (exemplo paradigmático: a psicanálise); e c) as que tra-
tam de apoiá-las (exemplo paradigmático: as psicoterapias de apoio). Po-
deria incluir-se uma quarta variedade que talvez seja um subtipo das outras
três em seu conjunto: as que a reconhecem intelectualmente e de alguma
maneira, em parte, a evitam e, em parte, a instrumentam: terapias de escla-
recimento. Esta também pode ser uma vicissitude possível em um trata-
mento “silvestre”.
Se fazemos a tentativa de trabalhar psicanaliticamente as resistências
em um tipo de terapia que, por suas outras características (por exemplo,
pelo número de sessões), não seria chamada facilmente de psicanálise, de-
veríamos manter em mente pelo menos dois importantes assuntos: 1) a
noção freudiana segundo a qual a resistência é tudo o que se opõe ao pro-
gresso da cura; e 2) a descrição de Freud de resistências que provêm de
todos os estratos do aparelho psíquico: do ego (a repressão, a resistência da
transferência, o ganho secundário), do id (a compulsão à repetição) e do
superego (o sentimento inconsciente de culpa). Nesse ponto também se vê
que um terapeuta formado psicanaliticamente não poderia deixar de consi-
derar todas elas ainda em um contexto que, pelo seu enquadre, se chama
psicoterapia. Mas sua interpretação será expressa com a adequação à ma-
neira de intervenção.
Com esses elementos podemos pensar que localizar a forma predomi-
nante de resistência de cada analisando (ainda que saibamos que possa
mudar em diversos momentos) é imperativo, pois talvez seja um dos eixos
que definem a personalização da terapia, além de sua peculiar história.
É necessário lembrar que o resistido é temido principalmente por seu
caráter imaginário, mas que perde seu pretendido temível poder quando é
colocado por palavras no plano de sua significação. Além disso, o resistido
constitui e proporciona uma força para a cura e a resistência não pode ser
analisada independentemente disso.
Finalmente, em nenhum tipo de terapia pode-se esperar a “rendição
final” das resistências, senão que se deve buscar sua aceitação dinâmica
como parte do aparelho mental que o paciente descobre em seu tratamento.
De modo que tampouco nesse campo encontramos o fundamento de uma
diferenciação categórica entre psicanálise e psicoterapia.

Há muito tempo que muitos terapeutas deixaram de considerar a re-


gressão como um objetivo de um tratamento psicanalítico e uma garantia
de cura, que sempre demorava em aparecer. Muita adaptação, muita
iatrogenia e muita infantilização dos pacientes foi criada sob o império de
seu dogma.
Foi, portanto, outro conceito “obstáculo” para pensar a relação entre a
psicanálise e a psicoterapia. É certo, no entanto, que sua existência
empírica pode ser observada. Mas, novamente, seu enfoque clínico depen-
derá, em boa medida, da aproximação teórica com que se a compreenda.
Descreverei – sem ser exaustivo e só para a finalidade deste tema –
duas abordagens possíveis. Uma poderia denominar-se genética. Segundo
ela, o desenvolvimento de uma pessoa implica sucessivos passos, como
fases que se devem cumprir e que, recorridas na análise em sentido inver-
so, levam a sua reatualização sine qua non. Nesse enfoque, todos os obje-
tos da vida adulta são representantes de outros primitivos, e todas as moda-
lidades de relação de objeto remetem à relação com o peito ou com a mãe.
Nesse primeiro enfoque, a regressão é um objetivo terapêutico. Por isso é
que se torna possível seu deslizamento sobre formas de infantilização da
atividade terapêutica.
Outra abordagem que pode se denominar histórica concebe a consti-
tuição psíquica como momentos importantes que se apresentam
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reiteradamente em torno de acontecimentos significativos para o sujeito
(traumas e também identificações), que forjaram algum modo de funciona-
mento mental, configurando, por sua vez, estruturas de comportamento.
Neste segundo enfoque, o regressivo pode ser analisado em conexão direta
com o progressivo que toda estrutura também contém. Portanto, e como no
caso do enquadre e da transferência, o manejo de uma eventual regressão e
sua utilização dependerão da teoria que informe o procedimento do
terapeuta.

Uso deliberadamente um termo genérico, pois me refiro a todas elas,


às interpretativas puras ou às mencionadas acima. Todas se ajustam em
grau e em forma (não digo por seu nível de “profundidade”) ao momento e
aos conteúdos que o paciente apresenta, o que inclui, desde logo, atender a
que se mantenha sua função de principal continente do processo
psicoterapêutico, quer dizer, que não provoquem descompensações no es-
tado do paciente. Poder-se-á argüir que tais intervenções podem requerer
maior experiência no terapeuta formado psicanaliticamente, quando as re-
aliza em um contexto que – por convenção e tradição a meu juízo – chama-
mos psicoterapia. Opino, no entanto, que requerem, mais bem, uma carac-
terística de estilo que inclui um componente narrativo em seu enunciado.
Já se advertirá que eu penso que a todo paciente que se dê e nos dê o
suficiente tempo mental, poderemos dizer tudo que a psicanálise pode di-
zer, não importando o número de sessões que realize nem a seqüência das
mesmas, nem o uso ou não do divã. Pois, finalmente, essas variáveis são as
que vieram a converter-se, por obra de uma tradição regulamentar e
simplificadora, no que se cristalizou como parâmetros que “diferenciam”
psicanálise e psicoterapia. Será necessário, isso sim, levar em conta a ca-
racterística “artesanal” para cada paciente e momento, o que implica que a
interpretação será sempre o elemento continente central de qualquer trata-
mento. Porque a interpretação, vista desde essa distorção, é o que compre-
ende (entende e contém) o grau de verdade que “interessa” e cura e, portan-
to, torna atraente um tratamento. A não ser, claro está, nas reações terapêu-
ticas negativas perseverantes.

Associar livremente não é, na imensa maioria dos casos, um ponto de


partida da técnica que possa ser cumprido como um dever pelos pacientes.
Melhor dito, como todos sabemos, é um ponto de chegada, como resultado
exitoso de uma operação terapêutica. Chamo-a operação para poder distin-
guir imediatamente que me refiro tanto a um longo tratamento – que deixa-
rá a associação livre como uma atitude recuperável mais ou menos perma-
nente frente a uma posterior atitude auto-analítica – como à resposta “ca-
sual” a uma intervenção do terapeuta em qualquer sessão, inclusive preco-
ce, de um tratamento por qualquer motivo breve, que lhes dará, então, a
impressão de um potencial de cura maior dessa pessoa em qualquer con-
texto futuro. Portanto, tampouco o critério da associação livre nos serve
para criar uma divisão entre psicoterapia e psicanálise; ao contrário, deve-
mos trabalhá-la em qualquer contexto terapêutico. Inclusive devemos
solicitá-la com freqüência, segundo minha opinião, quando observarmos
que o paciente não a pode seguir facilmente, com uma atitude de estímulo,
que é uma das “atividades” do método que devemos sustentar nos dois
campos.
Isso é mais visível ainda com a atenção flutuante. Além de resultar em
um grande esforço de imaginação conceber que um terapeuta formado psi-
canaliticamente possa “cindi-la” de sua bagagem metodológica, se supu-
séssemos que teríamos uma escuta diferenciada para casos “de psicanáli-
se”, creio que teríamos uma escuta diferenciada para casos de
“psicoterapia” e outra para casos de “psicanálise”; creio que teríamos ain-
da uma séria complicação ou incoerência teórica, pois a atenção flutuante
não só tem de ver com o material clínico (suas repetições, ritmo analógico,
etc.), senão que também está enlaçada com os três grandes pilares teóricos
que atuam como representações-meta em torno do qual também organiza-
mos o material para intervir.
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Este último ocorre, gostemos ou não, qualquer que seja nossa inclina-
ção técnica, pois a atenção flutuante é o lugar quase impossível entre nos-
sos conhecimentos e nossa neutralidade, assim como a associação livre é o
lugar quase impossível para o paciente entre a repressão e o conhecimento
de seu inconsciente.

Se bem que existam algumas descrições pormenorizadas de processo


que diferenciam essas práticas, a meu juízo não substituem o fato de que
classicamente não houve necessidade dessas descrições por passos, porque
definitivamente tanto em uma como na outra prática produz-se um ciclo
iterativo de resistência e levantamento que, sendo uma característica do
psiquismo, não modifica em um ou outro campo, nem desaparece ainda
depois da psicanálise mais prolixa e prolongada. Portanto, aqui tampouco
se pode fundar uma diferença entre categorias de terapias, baseando-nos
em distintos tipos de processo, pois sempre essa diferenciação dependerá
das teorias que constituam nosso pensamento. Para um olhar psicanalítico,
não é diferente o processo de elaboração, pois sendo uma característica dos
“tempos” (internos) do psiquismo, sua possibilidade está presente em qual-
quer abordagem. É possível que seja diferente o “grau” de processo e ela-
boração, mas não segundo o “tempo” (real exterior) que se dedique à tera-
pia, senão segundo a articulação que de ambos tempos se faça dentro dela.

Naturalmente, o conceito de sugestão resulta sempre questionável


como procedimento exercido pelo terapeuta em qualquer condição de tra-
tamento que possa ser obstaculizado por sua subjetividade. Mas também
sabemos que um grau dela está presente na conduta mais objetiva e neutra
de um/a terapeuta, porque a sugestão é parte componente do valor de refe-
rência que todo humano tem com o semelhante, especialmente se este re-
presente a figura de autoridade e se se está frente à transferência. Essa ques-
tão nos coloca, pois, uma das características da psicoterapia quando dife-
renciada da psicanálise, que é o fato de ela ser diretiva.
No entanto, cabe opor a este raciocínio que o conhecimento que surge
ao longo de um tratamento acerca do que um/a paciente deseja, teme e
realiza, ou evita (pelo menos no campo neurótico e ainda no borderline e
psicossomático), permite ao terapeuta fazer afirmações – que de qualquer
maneira estarão sujeitas à comprovação de seu grau de verdade à prova que
deverá surgir das respostas do paciente – que conterão uma indicação à
ação. Essa indicação, portanto, não surge dos desejos do terapeuta, senão
do conhecimento obtido pelo método, do qual o paciente pode necessitar
fazer e não o faz (ou em outros casos o inverso, necessitar não fazer e o
faz).
A meu ver, existe uma garantia de objetividade que faria desses tipos
de intervenções a única manifestação válida de “técnica ativa”, sem ruptu-
ra da abstinência, e que constitui outra postura teórica e de método que
volta a diluir a fronteira que tenta se instalar entre psicoterapia e psicanáli-
se. Admito, isso sim, que talvez se requeira, para fundamentar melhor essa
postura, um aprofundamento da linha teórica que me leva a este pensamen-
to, baseado em minha conceituação de um Aparelho Psíquico Extenso.
(Ver: La extensión del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1994; e artigos
posteriores sobre a terceira tópica freudiana e sobre o aparelho psíquico
extenso ou quarta tópica).

Pareceria que houvesse sido difundida a idéia de que este requisito


colocado por Freud se referisse ao começo de certos tratamentos potencial-
mente difíceis, ou a situações em que se devesse provar o funcionamento
da dupla paciente-terapeuta. Também parecera ser um conceito velho caído
em desuso. Sustento, no entanto, sua vigência e sua utilização em todos os
casos com o critério – cada vez mais necessário, atualmente, pelo tipo de
demanda que enfrentamos – de facilitar uma mediação fluída entre trata-
mentos que, pensados convencionalmente por seus parâmetros formais
como psicoterapia, tornam-se, por sua natureza e pelo enfoque do
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terapeuta, psicanálise e que, sendo assim, encontram ali sua cabal dimen-
são psicoterapêutica. Este conceito pertence ao campo dos princípios ge-
rais do método e não ao das indicações pontuais da técnica.

Não pode existir um processo terapêutico que alcance graus do que


chamamos “profundo” que não atravesse os sintomas, curando-os simulta-
neamente. Reciprocamente, não pode existir um tratamento centrado na
“superfície” dos mesmos que não os modifique sem atuar, ao mesmo tem-
po, sobre a totalidade do psiquismo. A não ser que nos refiramos a atuações
hipnóticas ou de sugestão selvagem que, como sabemos, tem efeitos de
curtíssima duração. E tudo isso se deve a fundamentais razões teóricas. De
maneira que, é muito difícil dividir as curas entre “sintomáticas” e “estru-
turais”, porque ambos termos estão co-implicados nesse produto
transacional que é o sintoma. E, portanto, também é improvável e inconsis-
tente utilizar esse critério como base de distinção entre psicoterapia e psi-
canálise. Em todo caso, diferentes maneiras de cura podem sobrevir con-
forme se utilizem diferentes teorias, mas não por sua suposta superficiali-
dade ou profundidade.

Diferente de uns 20 ou 25 anos atrás, em que, quando se falava de


psicoterapia, tinha-se em mente a terapia individual com fundamento psi-
canalítico, atualmente, com o nome genérico de psicoterapias, designam-
se operações realizadas não em pacientes individuais em período breve,
senão em objetos clínicos interpessoais muito diversos e complexos. Entre
eles, a família, o casal, os vínculos existentes entre alguns membros identi-
ficados de uma família, como correlato de uma psicanálise individual, ou
terapias vinculares nas análises de crianças. Também os diversos tipos de
terapias grupais que acompanham o tratamento de psicóticos ou grupos
com finalidades não precisamente terapêuticas, como os grupos Balint, ou
a interconsulta médico-psicológica e, certamente, a própria terapia de gru-
pos, além de grupos maiores, como os institucionais, etc. E isto quando não
ocorreu, como já se insinua, que se denominem essas práticas diretamente
como psicanálise.
No primeiro caso, pode-se entender, portanto, que a psicanálise, com
sua teoria mais forte, mais extensa e mais explicativa, se “aplicaria” à
psicoterapia e que esta se constituíra a partir de modificações técnicas des-
tinadas, sobretudo – e não sem certa ilusão de nossa parte – a evitar as
situações produzidas na técnica regrada da psicanálise “pura” pelo enqua-
dre, o processo, a resistência e a transferência (principalmente), e que se
tornam um inconveniente nas psicoterapias mais breves.
Desde outra perspectiva que tento salientar, esses campos
psicoterapêuticos trouxeram novos aportes teóricos, clínicos e
metodológicos para a psicanálise e uma confrontação mais ajustada das
teorias clássicas às relações intersubjetivas reais das pessoas. E isso é as-
sim, tanto no âmbito de certos conceitos delimitados quanto no das con-
cepções mais globais de abordagem teórica e técnica – inclusive de pacien-
tes individuais – que sofrem influência por esse modo de pensar
intersubjetivo. Como se vê, e sublinhando as coisas para melhor destacá-
las, até poder-se-ia falar das psicoterapias “aplicando-se” a psicanálise.

Apesar de todas as dificuldades teóricas e técnicas de que está apare-


lhado o pensar na realização da psicoterapia/psicanálise, penso que as duas
principais fontes de mal-estar nesse campo são: (a) o “tempo” do tratamen-
to em sua relação com o significado da “cura”; e (b) a sustentação de um
espaço criativo e de um contexto de descobrimento atribuído idealmente à
psicanálise, sobre qualquer extensão da mesma em termos do que hoje,
todavia, chamamos psicoterapia.
Habitualmente manejamos em psicanálise duas noções de tempo: uma
cronológica marcada pelo relógio ou pelo calendário, e outra mental, não
sujeita a esses parâmetros e que pode ser o tempo quase sem tempo do
insight ou o tempo inadvertido e subterrâneo do trabalho do sonho ou do
Saidon, César Merea
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trabalho de elaboração ou do luto. Apesar de seus diferenciais, esses dois
tempos não se encontram em relação de oposição radical, senão de
complementaridade, uma relação concêntrica e excêntrica “ao mesmo tempo”.
No entanto, uma exigência proveniente da alienação social do concei-
to de tempo cronológico (o “ter de estar bem”, etc.), tanto quanto de um
onipotente “furor curandis” dos terapeutas, parecem criar-nos uma espécie
de consciência de culpa que nos empurra para abreviar dito tempo.
O tempo mental é o que concebe que a saúde não vem depois da
psicoterapia ou da psicanálise, senão que a saúde é a realização da cura – e,
portanto, o processamento do conflito – e que isto é o que deveria perma-
necer como modelo mental depois de concluída a realização prática de um
tratamento.
Este outro manejo do tempo com inclusão do psíquico no cronológi-
co, além de promover o acesso à temporalidade como fator princeps de
cura é, por outro lado, o único que pode chegar a garantir a manutenção de
uma atitude heurística de criação e descoberta, e romper a dicotomia de
pensar que só a psicanálise poderia dar-nos curas etiológicas, e a
psicoterapia somente curas sintomáticas.

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