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Como formalizar um

caso clínico?
Lêda Guimarães
Introdução

A psicanálise é uma clínica que não existe No momento do ato analítico, o analista não
sem a formalização teórica, assim como a pensa (Lacan, 1967-68), pois o ato irrompe
teoria da psicanálise é essencialmente abruptamente. [...], isso não quer dizer que ele
uma teoria da clínica. seja da ordem [...] de uma intuição do analista,
pois não convém que esse ato seja movido pelas
singularidades da subjetividade do analista;
A Psicanálise consiste numa articulação para isso, é indispensável a análise pessoal na
íntima entre o real da experiência e a teoria formação psicanalítica. [...] é fundamental que o
relativa a esse real. analista esteja bem orientado em seu ato. [...]
Aqui entra a articulação do ato analítico com a
teoria da psicanálise.

(Guimarães, 2007, p. 02)


Introdução
Será a leitura dos dados clínicos, do que ocorre a
cada sessão de análise, utilizando os instrumentos
conceituais da psicanálise para efetivar esta leitura, É um caso que também se presta para
que permitirá ao analista um trabalho constante de discutirmos a temática das neuroses
formulação da direção da cura para cada caso. “histéricas” contemporâneas. Neuroses que
Assim, a teoria da psicanálise instrumentaliza a denominei como “mal-ditas histéricas” [...]
posição analítica para que o analista venha a “Mal-ditas” com a duplicidade homofônica de
operar em seu ato. sentido que esse termo comporta: “mal-
nomeadas” como histéricas, já que suas
Para traçar alguns norteadores para a formalização estruturas subjetivas ainda não estão bem
do caso clínico, utilizarei o caso Karine, publicado amarradas no amor ao pai, como também
sob o título “Um modo de fazer consistir o pai” “malditas” quando são tomadas pela contra-
(Guimarães, 2006). Para suas formulações teóricas, transferência do analista como
esse texto tomou como ponto de mira a “insuportáveis”, exatamente quando ele não
consistência crescente que a função paterna foi se deixar ser ensinado por elas.
alcançando na estrutura subjetiva ao longo da cura
desse sujeito.
(Guimarães, 2007, p. 02)
O início de um atendimento psicanalítico requer a
verificação da abertura subjetiva para o ato
analítico. Conforme [...] primeira clínica de Lacan,
podemos verificar essa abertura por intermédio da
PRIMEIRO demanda do sujeito: o que demanda e como

NORTEADOR: formula sua demanda no campo dos ditos.

AS CONDIÇÕES DE Lacan [...] indica que a demanda já situa no campo


do Outro o que o sujeito quer obter com a sua
ABERTURA PARA O demanda. Assim, a demanda do sujeito também

ATO ANALÍTICO indica a que Outro o sujeito se dirige (Lacan, 1954-


55).
A importância fundamental da verificação da
demanda do sujeito, para a direção da cura poderá
ser articulada com as formulações da segunda
clínica de Lacan acerca do parceiro-sintoma (Miller,
1996-97).
(Guimarães, 2007, p. 02)
PRIMEIRO NORTEADOR: AS CONDIÇÕES DE
ABERTURA PARA O ATO ANALÍTICO

[...]o analista, para a sua orientação, venha a ler no [...]“vim porque sei que preciso muito fazer análise”,
caso clínico alguns dados essenciais que indiquem o “sempre precisei”. Afirmou ainda que levou muito
estatuto da amarração da neurose, formulando uma tempo para reunir toda a coragem e se decidir a dar
hipótese acerca do modo de gozo que o sujeito esse passo. Justificou esse pedido apoiada numa
mantém na sua parceria sexual com o Outro, fixando posição subjetiva de um certo pavor controlado,
o nó de amarração da estrutura. [...] convém dizendo que há mais de cinco anos havia iniciado
perguntar: como o sujeito se impõe ao Outro na sua uma análise na qual só pôde suportar permanecer
demanda? Como exige que o Outro o receba em torno de quatro ou cinco meses, pois se sentia
enquanto parceiro-sintoma? encurralada com o modo de intervenção do analista
e com o fato de fazer as sessões deitada no divã.
Passou a sofrer de uma doença psicossomática que
precipitou sua saída. Karine chegou a considerar que
a doença teria alguma coisa a ver com essa
experiência de análise.

(Guimarães, 2007, p. 03)


PRIMEIRO NORTEADOR: AS CONDIÇÕES DE
ABERTURA PARA O ATO ANALÍTICO

[...] o modo sintomático da relação dessa Karine diz: “vim porque sei que preciso muito
paciente com o Outro [...] “Peço que você me fazer análise”, “sempre precisei”. [...] a
responda, mas que você responda como eu estabilização da sua estrutura não se mantinha
decido. Você tem que me permitir e aceitar que numa homeostase de gozo bem fixada.
eu domine, quer dizer, que eu possa controlá-la [...] o ponto de desestabilização da sua
para que nada do que você disser ou fizer seja estrutura situava-se no campo do amor.
imprevisível para mim. E, sobretudo, nada de
surpresas”. Em síntese a verificação da demanda dirigida ao
analista permitiu: a) indicadores do seu modo
sintomático de parceria com o Outro; b) se na
[...] é importante também verificar uma
estrutura já houve uma estabilização bem fixada
condição estrutural fundamental: Qual foi o
ou não; c) onde a fenda da estrutura se abre
fator mobilizador da demanda? Em que
para intervenção analítica; d) os indicadores de
circunstâncias esse fator emergiu? Desde
suplência que tentam tamponar o ponto de
quando? Isso consiste em delimitar o ponto de
desestabilização da estrutura; e) como opera a
desestabilização da estrutura.
suplência na estrutura?
(Guimarães, 2007, p. 03)
O modo de suplência presente no nó de amarração da
estrutura opera por meio da estratégia do eu, do eu como
absoluto, não aceitando a falta nem o intervalo no qual
pudesse emergir o enigma do desejo do Outro.

SEGUNDO Em lugar de se interrogar acerca da falta relativa à


dimensão do amor no campo do Outro, Karine desdobra
NORTEADOR: seu eu numa estratégia que consiste em completar
permanentemente os outros, sempre se fazendo metade
O MODO DE do outro, a metade imprescindível.

SUPLÊNCIA Ela diz: “Não sei dizer não” nem aos pais, nem aos amigos,
nem aos colegas. Demonstra permanentemente a sua
abnegação, seu zelo, seus dons, todas as virtudes do eu.
Oferece presentes, socorre os amigos emprestando-lhes
dinheiro, é amigável, divertida, agradável. Ela sempre
satisfaz os outros.

(Guimarães, 2007, p. 03)


SEGUNDO
A prevalência do eu na parceria-sintomática
NORTEADOR: de Karine nos permite verificar que esse

O MODO DE sujeito não dispõe na estrutura de sua


neurose de um lastro firme do pai. [...] como

SUPLÊNCIA alienação e separação, ainda


encontraram recursos libidinais suficientes
não

para se fixar firmemente no nó que amarra a


O que quer demonstrar com essa estratégia? Por um lado, estrutura. [...] lhe restou um lastro de gozo
que ela tem. E por outro, que ela pode preencher todas as mais bem fixado na posição de objeto da
faltas. demanda da mãe, que lhe fornece uma
consistência de ser de gozo enquanto dejeto
do Outro, recoberta pela estratégia do eu
Examinar o estatuto da suplência na estrutura consiste em
imaginário.
interrogar a consistência das identificações centrais nos
três registros: Com que recursos simbólicos, imaginários e
fantasmáticos o sujeito conta para sustentar o seu ser no
campo do Outro, como o sujeito se faz ser para o Outro?
(Guimarães, 2007, p. 04)
[...] o Outro privilegiado da parceria sexual desse sujeito
institui-se, de modo mais consistentemente, como
Outro da demanda e não como Outro do desejo. Trata-
se do Outro da demanda imperativa, intransitiva,
SEGUNDO inegociável, como Lacan conceitualiza no texto
“Subversão do sujeito e dialética do desejo” (Lacan,
NORTEADOR: 1960).

O MODO DE
[...] o sujeito situa no analista, em ato na transferência,
SUPLÊNCIA o objeto que ele é para o Outro. [...] na demanda inicial
ao analista, o sujeito situa o Outro em que posição?
Exatamente como objeto da sua demanda massiva,
intransitiva, sem nenhuma negociação, exigindo que o
Outro aceitasse seu controle absoluto.

(Guimarães, 2007, p. 04)


“Será, portanto, em ato que o analista
também poderá traçar a sua estratégia de
modo que esta venha a operar seus
efeitos”.
TERCEIRO
“Logo na primeira entrevista, acolhi
NORTEADOR: imediatamente a demanda de Karine
oferecendo todas as garantias que tudo
A ESTRATÉGIA DO faria para ter a delicadeza necessária para

ANALISTA lhe deixar tranquila”.

NA TRANSFERÊNCIA “[...] pela via do semblante, me fiz dócil à


sua demanda [..] para poder ocupar na sua
subjetividade a função de parceiro-
sintoma”.

(Guimarães, 2007, p. 06)


“[...] o insuportável consistia em deixar QUARTO
aberta qualquer questão que tocasse, de
algum modo, na posição subjetiva central NORTEADOR:
que Karine mantinha com o Outro em sua
vida”. A TÁTICA UTILIZADA
“Buscava logo uma resposta que lhe PELO ANALISTA
fornecesse uma significação fechada”.
“O que é que causava o insuportável para
“Sempre que não se sentia segura da
Karine quando não obtinha uma resposta
resposta obtida durante a sessão, utilizava
rápida?”
o recurso da atuação”.
“Diante dessas condições estruturais da
“Atuação dirigida” – “foi a primeira tática da
parceria sintomática com o Outro, qual foi a
analista para começar a introduzir, de
manobra da analista, articulada à tática da
forma muito sutil, uma pequena fenda no
“atuação dirigida?”.
discurso desse sujeito, dentro dos limites
de sua suportabilidade, para não provocar
(Guimarães, 2007, p. 06-07)
uma desestabilização maior na estrutura”.
QUINTO "Os efeitos terapêuticos operados poderão
ser concebidos como efeitos analíticos,
NORTEADOR: enquanto efeitos de redução do gozo

O IMPERATIVO DO mortificante”.

SUPEREU O dinheiro.

A dívida.
“Como foi introduzida, na direção da cura,
uma leitura para esse seu gozo
“Sujeição extrema aos imperativos de
superegóico?”
gozo” – compulsão alimentar
“Essa estratégia na transferência (“insuportabilidade de esperar qualquer
constituiu-se como fundamental na cura, coisa que tenha a fazer, saber, ou dizer”.
pois só assim o sujeito pôde começar a
aceitar uma surpresa enigmática que
pudesse advir do Outro”. (Guimarães, 2007, p. 07-08)

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