Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
José de Mesquita
Do Instituto Histórico e da Academia
Mattogrossense de Letras
No Tempo da
Cadeirinha
Contos
2
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
PARECER
3 4
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
5 6
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
7 8
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
— Cumprimento com muito respeito a Vossa fardão e seda carmezim, o contenho severo, sob
Excelentíssima... cabeleira fidalga, a figura magestosa do
Não, pensava, assim não está direito. Devo Governador João Carlos.
mostrar um pouco mais de familiaridade, para Pai João, deslumbrado ante aquela, súbita,
verem que somos velhos conhecidos. aparição, que lhe paralizara, as faculdades
— Muito gosto em tornar a ver Vossa pensantes, deixando apenas actuar o instinto atávico
Ilustríssima... que nele dormia, num ímpeto, prostrara-se aos pés
Mas, também assim pode destoar do de Oeynhausen, de mãos postas, cabiscaido como
protocolo oficial. Melhor será dizer com um hotentote ante o seu fetiche, a murmurar, num
simplicidade: assomo de sinceridade em que lhe ia por águas
— Aceite Vossa Senhoria meus abaixo toda a ensaiada perícia dos hábeis
cumprimentos... salamaleques estudados:
Será mesmo este o melhor modo de — SUS CRISTO, meu branco!
cumprimentar uma alta personagem? Ou, antes,
perfilar-se, em rígida continência, (e ele se punha
erecto como uma vara de pálio e com a mão erguida
à altura da lustrosa carapinha) e dizer:
— Salve, ilustre governador que El-Rei
manda para felicidade destes povos...
Era tão bonito, sim, e fora com essas palavras
que o vereador Siqueira saudara Caetano Pinto à
sua chegada.
Mas pai João, coitado! não lhe satisfazia à
mente inquieta nenhuma daquelas fórmulas
pragmáticas. Queria algo de mais expressivo de
mais original, de seu, e enfim, que atraísse a
atenção e a simpatia do Governador. Dava tratos
ainda à bola, quando, inopinadamente, sem que o
precedesse o oficial ajudante ou qualquer outro da
sua comitiva, surge, à porta da sala, no vistoso
9 10
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
11 12
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
13 14
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
15 16
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
TIBARANÉ
A Severino de Queiroz
17 18
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
19 20
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
21 22
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
todo o sertão. Conheceu cidades lindas, e vilarejos tempo, quieto, quieto, com vontade de chorar, mas
humildes. sem lágrimas, que haviam de há muito secado.
Foi às feiras rumorosas, às belas romarias, aos Sentiu que alguém o enlaçava de leve, dizendo lhe;
portos de mar, onde atracam os grandes navios, — Escuta. Lembra-se dessa música ?
vindos de longas terras, aos rincões silenciosos, Vinha da mesma casa a tonadilha leve da
perdidos nas serranias e até as aldeias de índios, em “russiana”, velha de uns trinta anos ou mais.
meio das matas sombrias. Viu, na Corte, as fidalgas Explicou-lhe a mãe, por meias palavras, que era
de “cadeirinha” e, nos campos, as guapas uma neta da “outra” que tocava, não mais ao cravo,
sertanejas, mas na sua mente continuava a viver mas ao piano. Umbelina morrera, deixando uma
aquela que elegera esposa, no fundo do sertão natal. única filha, mãe daquela mocinha que lhe herdara a
Ganhou muito dinheiro, passou muita aventura, te beleza e o nome... .
que um dia, velho, pobre, acabado de fortuna e de Cessara a música, entretanto, e Umbelina,
saúde, voltou, como o filho pródigo, ao lar materno. toda de branco, chegara à janela. Era a mesma, só
Sem uma queixa, sem uma exprobração, recebeu-o não trazia, como trinta anos atrás, o leque de
a mãe, que envelhecera pensando nele todos os plumas... .
instante e pedindo a Deus que lhe devolvesse o Rodrigo revia-se na vida que passa, repassa,
ingrato, que nem uma notícia siquer se lembrara de torna a passar... E, sem sentir, achou-se assobiando
enviar-lhe. E foi como se ele tivesse saído na a “russiana”, quando, num susto, lhe veio à idéia a
véspera daquela casa, donde se afastara havia 30 admoestação materna. Parou, indeciso. Então,
anos... Rodrigo sentara-se à porta, àquela mesma Aquela que o esperara, Aquela cujo carinho
porta onde havia troteado a ária da “russiana”. E infinito, superior ao tempo e ao espaço, indiferente
pôs-se a perguntar pelos conhecidos, um por um. à ingratidão e ao olvido, continuava a ampará-lo,
Percebendo a mãe o empenho dissimulado de saber abraçou-o, orvalhou-lhe de lágrimas o rosto,
de Umbelina, adiantou-se na informação: dizendo-lhe, com a voz estrangulada de soluços :
— Morreu. Você foi muito feliz. Ela não — Pode assobiar, meu filho... Anda.
servia para você... Desabafa. Na nossa idade, o “tibarané”, não vem
Ele nada mais perguntou. Estava já vai não mais...
vai pra escurecer. Rodrigo conservou-se ali longo
Nota ao original: Pode-se dizer que “Tibarané”, trata-se do único mito
brasileiro genuinamente mato-grossense. José de Mesquita foi o primeiro a
registrá-lo, através deste conto, publicado pelo pela primeira vez no jornal “A
Cruz”, nº 867, p.2, de 10 de março de 1929, em Cuiabá, Mato Grosso.
23 24
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
Publicado em 1960 (1° ed.) e, em 1963 (2° ed.), no volume VII, “ESTÓRIAS
E LENDAS DE GOIÁS E MATO GROSSO”, da coleção Antologia Ilustrada
do Folclore Brasileiro, Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda, São Paulo.
A VOLTA DA TROPA
A Antonio de Paula Correa
in memorian
25 26
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
27 28
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
Joaquim, para fazer ,seus estudos. D.a Luisa Sem saber o que significaria aquela ordem,
esperava ansiosa a volta da tropa que lhe deveria intimativa e rija, no dia seguinte a velha fez partir
trazer novas do filho, do seu “caçula” querido, o um “próprio” para a cidade donde, com pouco,
mimoso das suas afeições. Na noite de S. João se vinha o tabelião, que passava, a seu pedido, a
detivera até mais tarde a conversar na varanda, com escritura de alforria do filho de Brites.
o genro, e, por volta de 10 horas, tomando o •
castiçal de prata numa das mãos e sustendo a ••
manga com a outra, deu as boas noites a João Três meses depois chegava a “tropa” de volta
Fernandes e desceu os degraus que levavam, da Corte. Entrou no terreiro já quase ao escurecer.
através de um longo corredor escuro, para os seus, De longe, porém, chamara a atenção a maneira pela
“cômodos”. O inverno entrara de pouco e o sul qual se aproximava: silenciosa, sem o habitual
assobiava nas frichas das portas e janelas do vasto chocalho dos sincerros que soiam acordar, com suas
casarão silente e adormecido. D.a Luisa fez as suas álacres campainha das, os ermos serranos. As
orações e esteve ainda, por algum tempo, banzando, “madrinhas” vinham encobertas de crepe, não se
sem sono, a balançar na rede lavrada. Depois foi lhes vendo as cabeçadas de prata brunida relampear
apagar a vela e deitou-se para dormir. Dali a pouco, o sol morrente do ocaso, nem os arreios metálicos
a filha, cujo quarto ficava na outra extremidade do dos tropeiros, nem a boneca da guia, nem os gritos
vasto e longo corredor, ouviu-lhe a voz, sempre vibrantes dos tocadores, a pé, cada um a frente do
autoritária e forte, desta vez trêmula e num fio: — seu lote. Que seria aquilo? A D.a Luisa pulsou-lhe,
João Fernandes ! João Fernandes ! num rebate improviso, o coração, sob o cabeção de
Acudiram, assustados, filha e genro e deram rendas da camisa. Adiantou-se, num hausto,
com a velha que, de pé, no meio do quarto com as ofegante, até ao meio do terreiro, onde, sobre
feições alteradas, mal podia falar. E quando voltou , grandes couro lavados, secava o açúcar do serviço
a si do espanto, lhes contou que, em bem se do dia :
acomodara, antes que o sono a tomasse, ouvira uma — Nicomedes, o que é isso? Que notícia traz
voz — a voz do Joaquim, perfeita e clara, que lhe de meu filho?
disse, repetindo-o por mais duas vezes : — Forra Um segundo de silêncio, de angustia, de
Gabriel ! tortura infinita... Ninguém ousava falar. O terreiro,
29 30
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
a varanda aberta, se encheram do pessoal do Publicado em 1960 (1° ed.) e, em 1963 (2° ed.), no volume VII, “ESTÓRIAS
E LENDAS DE GOIÁS E MATO GROSSO”, da coleção Antologia Ilustrada
“engenho”, curioso e ansiado. do Folclore Brasileiro, Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda, São Paulo.
— Seu Joaquim... — tatibiteou, sem geito, o
tropeiro, tirando o chapéu de aba larga, — seu
Joaquim, siá Dona, morreu... Não se ageitou com “a
clima” da Corte. Pegou a “amarela” no chegar e foi-
se, no fim de três dias. A PROMESSA DE JOÃO GUALBERTO
— Que dia. Nicomedes ? A Humberto Miranda
— Foi no dia de S. João...
Um grito, convulso partiu do grupo que, no Ia quase a findar o segundo quartel do século
oitão da casa, aguardava o desfecho daquela cena. XIX. Cuiabá, convalescida dos tremendos abalos da
Corre que corre, apanha água, socorro, foi uma década anterior, refazia-se aos poucos, no lento
balbúrdia enorme... E enquanto a velha entrava para esbater das animosidades, que a política jacobina de
a varanda, soluçante, nos braços da filha, os 1830 criara e fizera desencadear em formidando
escravos carregavam, desmaiada, para a senzala, a tufão, varrendo a província de norte a sul. Os
infeliz Brites, que, ao ouvir as palavras do tropeiro, perseguidos tinham volvido serenamente ao seu
caiu para trás, hirta, feita morta, completamente trabalho, irmanados aos algozes que, um decênio
inerte e fria... atrás, lhes desbarataram os haveres, quando não
lhes fora possível tirar-lhes a existência. Entrava-
lhes de prosperar a fazenda, no labor profícuo e
constante dos dias de paz. A própria vida social se
reanimava, do eclipse tremendo em que se
mergulhara. Os “engenhos”, cresciam de número,
pela zona serrana; grandes lotes de escravos vinham
incorporar-se aos já existentes, intensificando o
capital-homem, para a difusão do trabalho e
enriquecimento do “senhor”. Depois da tragédia em
que tombara, com
31 32
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
33 34
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
daquelas eras. João Gualberto andava, nesse tempo, vista obscurecida, como quem fitou de frente o sol
por volta dos seus 30 anos. por algum tempo. Parecia-lhe ouvir, num trilado
Habituado a vida andeja, que sempre fora a de argentino, a gargalhada que ela, soltara, quando,
seu pai, comerciando por Diamantino, Rosário, e perturbado, o vira partir sob a chuva, ainda mais
pelo sertão, no áspero trato dos tropeiros, meses e forte que antes, dizendo, contra a realidade mais
meses, faltava-lhe esse polimento que os salões evidente, que o aguaceiro diminuirá...
trazem ao espírito, e tornara-se, um rústico, um •
tímido, que corava e tremia diante de uma mulher, ••
posto não lhe desse o menor calafrio a aproximação Não houve mais sossegar desde essa hora a
de uma onça ou de uma tempestade, no meio do alma do pobre rapaz. Aquela figura angélica o
campo. Foi, pois, com indissimulável aperto no possuía, dia e noite, acordado ou no sonho,
coração que viu abrir-se a porta da sala e aparecer, trabalhando, velando, meditando. Viveu dias de
encaixilhada no rectângulo do portal, a mais febril e intensa imaginativa, a supor a ventura
formosa visão celeste que jamais imaginara suprema de unir-se àquela creatura pelo amor que
pudessem ver os seus pobres olhos mortais. dura toda a vida, mas era em vão que a buscava, por
Era a menina Mariana Amélia, única filha dos toda a parte, pois em a vendo, não se arriscava a
moradores daquela casa, que estava no florir de dela se abeirar, tal o fluido prestigioso que sentia
suas 13 primaveras, conquanto o seu precoce irradiar daquela menina, tão simples, na idade que
desenvolvimento parecesse dar-lhe três ou quatro os antigos diziam “entre pulo e boléu”.
anos a mais. Num sorriso gentil, convidou-o a Era preciso, entretanto, que desse um passo
entrar, até que parasse a chuva. O moço, porém, qualquer que lhe assegurasse a mão de Mariana
numa grande atrapalhação, agradeceu a afável Amélia, já agora condição de vida ou morte para o
donzela e, pretextando que o temporal amainara, lá seu desatinado coração. Sabia o grande número de
se pôs, rua em fora, todo vexado, todo medroso, pretendentes que rondava a casa da grácil moçoila.
qual se houvesse encontrado aberto o limiar do A sua formosura, sem par naquela época, a situação
paraíso e um anjo (ao contrário do que sucedeu ao da família, a esmerada educação que lhe aprimorara
primeiro par humano) o convidasse a penetrar o o espírito, como a natureza lhe fizera do físico uma
Eden. Sem saber como, achou-se à porta de sua obra de arte, tudo tornava
casa, ainda com o coração fora do lugar, a
35 36
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
aquela nubilidade apetecida e disputada pela flor leite, o tomara para sempre por seu filho d’alma.
dos garções do tempo. Ele a todos, talvez, levava Contou-lhe João, entre choroso e irado, o seu
vantagem nos haveres. Mas uma circunstância o romance.
desfavorecia, impecendo-lhe os ardores e Mãe Luzia condoeu-se do sofrer do seu
esperanças, tal era a falta dos quatro costados de “menino”, como lhe chamava, e levantando-se da
estirpe, ciosos que sempre foram os parentes da sua velha canastra de couro cru, aproximou-se da
escolhida nesse ponto de linhagem limpa e fidalga. cômoda de jacarandá, onde o oratório se ocultava
Que valia todo o dinheiro que seu pai levara a entre palmas bentas, velas e jarros de flores.
reunir numa vida de privações e penoso afan, se não — Quem vai concertar a sua vida é esta... —
bastava a dar-lhe a felicidade única a que aspirava ? disse, apontando uma estampa da Virgem, já
Afrontando o receio, sobranceiro ao ridículo do encardida do tempo. Você vai fazer um voto à
insucesso, cego pela idéia que o dominava, João Nossa Senhora do Muquem, de dar, em cera, o peso
Gualberto, por meio de prestimosa pessoa, muito da de Mariana, se ela for sua mulher.
privança dos Gaudie, pediu a mão da menina. Em ouro que fosse, mãe Luzia... Em ouro que
Sucedeu o que tinha de suceder: veio-lhe de fosse eu daria.
resposta, velado pela delicada excusa da pouca — Louquinho ! Vai, faz a promessa, mas é
idade da moça, um doloroso, um esmagador não, preciso ir fazer no Goiás, lá na capela do Muquem.
que lhe doeu mais que se lhe atirassem com a E logo... que é para mostrar que Você tem fé...
Prainha e o Lavapés por cima. Tudo pode Deus, e faz a quem lhe pede por meio de
Semanas longas, feitas de longuíssimos dias, sua, Mãe Santíssima.
levou o filho do “emboaba” amargando o seu drama João Gualberto não disse uma palavra de
passional, sem que para ele lhe alvitrasse a objecção. Preparou a viagem e uma semana depois,
consciência uma saída. Numa tarde triste de junho, com uma tropa que saia para a Corte, partiu, rumo
garoante e fria, acudiu-lhe ir à casa de sua mãe de da ermida dos milagres.
criação, velha preta avantajada em anos e •
experiência, moradora no alto da Mandioca, num ••
casinholo humilde, de paredes cobertas de registos Voltou, ao cabo de três meses.
de santos. A negra velha recebeu-o com carinho de Chegando a Cuiabá, soube que Mariana
sempre, como quem, tendo-lhe dado o seu Amélia estivera muito doente, entre a vida e a
37 38
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
morte, cerca de duas semanas. No dia da Glória Publicado em 1960 (1° ed.) e, em 1963 (2° ed.), no volume VII, “ESTÓRIAS
E LENDAS DE GOIÁS E MATO GROSSO”, da coleção Antologia Ilustrada
chegaram a esperar o traspasse a qualquer do Folclore Brasileiro, Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda, São Paulo.
momento.
Nesse dia precisamente ele chegara ao
Muquem e fizera o voto. E Mariana entrara desde aí
a melhorar. O DRAMA DO “ARROMBADO”
Os pais — o pai, sobretudo que ficara a pique A Gervásio Leite
de endoidecer — prometeram à Nossa Senhora da
Glória não contrariar o desejo da filha de casar-se I
com João Gualberto, caso ela viesse a sarar. E o
moço em chegando, soube pela mesma activa A tarde fora muito quente e ali por volta de
medianeira, do que se havia passado. cinco horas começou a escurecer. Alexandrina, que
Renovou o pedido, logo aceito “com grande já se preparava para ir à casa do tio ver passar a
satisfação” e, pouco depois, como nas velhas procissão, não pôde esconder o seu desgosto ao ver
novelas, que ainda assim são as melhores, (que o o tempo incerto, ameaçando chuva. Veio até a
digam as moças que me lêem) os dois se casavam, varanda, já calçada e de saia branca, e disse à mãe
numa festa estrondosa, que marcou época e da qual que, sentada numa cadeira de encosto, lia um livro
ainda não faz muito tempo havia entre nós quem se de reza:
lembrasse, referindo-lhe, de segunda outiva, os — Veja a senhora: eu nunca saio de casa e
belos e memoráveis episódios. E logo, passada a lua basta fazer tenção de ir a alguma parte para vir o
de mel, fez-se o nosso herói rumo de Muquem, diabo do tempo atrapalhar os meus projectos.
novamente, afim de cumprir a sua promessa. Irra, que isto até parece perseguição!
E, visivelmente irritada, foi debruçar-se à
janela do terreiro, onde ficou à espera que a velha
dissesse alguma coisa. Esta, porém, como se nada
houvesse, continuou entregue à sua leitura.
Começou Alexandrina a bater com o salto da botina
no piso, dando mostras de impaciência
39 40
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
41 42
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
tenho de ir buscar a Alice para irmos à casa de tio assunto jamais foi causa de querela entre os dois.
Luís. Carmelino era tão tolerante que se casara no
Carlota atravessou a sala de jantar, com uma religioso para satisfazer a noiva e não escandalizar
grande cesta enfiada no braço direito. Era uma a sua rodinha habitual. Era, de resto, um tímido e
cabrocha baixinha, atarracada, bexigosa, que, havia um bom, talvez um pouco estróina quando moço,
cerca de seis meses, vinha cozinhando em casa de apontando-se-lhe muitas rapaziadas que o
D.a Rosa. Tomara-a a mãe de Alexandrina a seu malinguismo de lugar pequeno não esquecia nem
serviço por lhe ter vindo recomendada pela perdoava. Casado, regenerou-se completamente e
comadre Esméria e lhe parecer uma rapariga passou a viver para a família e para a repartição —
sossegada e de bom proceder. O serviço da casa era dois ideais que lhe polarizavam a vida simples e
resumido, pois a família constava apenas das duas, metódica. Morreu de uma congestão, numa noite de
mãe e filha, que, demais, não eram exigentes. aguaceiro forte, ao voltar de um jantar de
Alexandrina, órfão desde os nove anos, andava aniversário em casa dos Souzas. D.a Rosa fez
agora nos seus dezessete. A mãe, D.a Rosa, era uma celebrar uma série de missas por sua alma e não
boa senhora, como se costuma dizer, religiosa, cessou de rezar pela salvação daquele pobre
assídua freqüentadora de missas e novenas, muito coitado, cuja infelicidade fora não ter encontrado, a
inimiga de portas e ajuntamentos. O marido fora tempo, quem o guiasse para o bom caminho.
empregado do governo, não passando de categoria Depois dos sete dias, Alexandrina, toda de preto,
subalterna, posto já tivesse casado maduro e foi levada para a escola, como interna. Tinha então
morrido com seus sessenta e pico. Nunca lhe dera, nove anos e era uma pequena raquítica, enfezadinha
em quinze anos de casados, um só motivo de e feiosa. Pouco mais sabia que a cartilha e o b-a ba.
queixa. Num único ponto divergiam marido e Então, a vida de D.a Rosa, só com.a filha e uma
mulher: era no que diz respeito à religião. criada, na casa tristonha, outrora animada pela
Carmelino era pedreiro livre, o que assaz molestava figura bonanchona do Carmelino, foi de uma
a boa D.a Rosa, que sentia que um homem daquele, monotonia invencível. Daí a facilidade com que o
tão bom, de coração tão bem formado, se desse velho Pedroso, seu compadre e amigo de
conscientemente a essas ridicularias. Ele, Carmelino, conseguiu insinuar-se-lhe na
entretanto, nunca privou a mulher de exercitar a sua intimidade, entrando de freqüentar a casa, primeiro
devoção, às vezes levada ao exagero e esse a pretexto de orientá-la no inventário, e, depois,
43 44
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
sob outros pretextos e até sem pretexto nenhum. A sempre maus! Deixem Alexandrina em casa, que eu
vizinhança rosnava daquelas visitas, mas D.a Rosa saberei, com os meus sermões, fazer dela uma
pouco se lhe dava do que dissessem, pois sabia-se digna mãe de família, se for esse o seu destino. E se
bastante sisuda para se precaver contra qualquer não for, ficará comigo, alegrando a minha velhice...
viuvada. O Pedroso já era um velho, viúvo também,
tendo em sua companhia um casal de filhos, o II
Álvaro, guapo moçoilo, maníaco pelas cavalhadas,
e a Alice, interessante menina, fanática pelos A procissão do enterro deveria sair às 7 horas,
namoricos. A vida de D.a Rosa decorria assim, sem mas o mau tempo fez que só saísse já quase às 8.
grandes alegrias nem pezares profundos. Os Havia desde o escurecer um movimento
primeiros domingos de cada mês a filha passava em extraordinário pela cidade. Grupos, quase sempre
sua companhia, mas a cada separação, em que a envergando trajes escuros, se dirigiam para a
menina punha todo o sentimentalismo doentio que Catedral ou à procura de casas de conhecidos donde
o internato agravara, a pobre senhora sentia pudessem assistir a passagem do cortejo. A porta e
despedaçar-se-lhe a alma em ímpetos de a reter ao pelas janelas do Comendador Luís Aires, tio de
seu lado. Sustinha-a, porém, o receio de que Alexandrina, aglomeravam-se parentes e amigos da
Alexandrina, em casa, pudesse fazer coro com a casa. Pela calçada, passeavam as moças, em cordão.
maledicência, suspeitar de suas relações com o Eram quatro meninas, todas muito de se ver:
Pedroso, perder o respeito que lhe devia, Alexandrina, as duas primas, filhas do Comendador
diminuindo assim a autoridade que pretendia e Alice Pedroso, a amiga íntima, a inseparável
exercer sobre a filha. O tempo, em breve lhe companheira da Xandóca, desde que, há seis meses,
restituiu a menina. O curso terminara e viera para casa, de recolhida do Asilo. Alexandrina
Alexandrina, já mocinha, volveu ao lar. Houve era indiscutivelmente a mais bonita do grupo.
quem aconselhasse a D.a Rosa que a pusesse na Estava uma bela e vistosa moça, que nada fazia
Escola Normal, há pouco criada, mas a boa lembrar do que fora sete ou oito anos passados.
senhora, esconjurando, exclamara : Crescera e deitara corpo. Tinha a pele muito clara,
— Deus me livre! Se eu sou louca de meter a cheia de sinaizinhos que a tornavam mais
minha filha naquele meio de perdição, a conviver interessante. Os seus olhos
com rapazes de costumes duvidosos e quase
45 46
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
castanhos, grandes e pestanudos, boiavam sempre solene e triste, elas ficaram como que dominadas
num mar de meiguices. Posto não fosse um modelo pela majestade e melancolia daquele imenso cortejo
plástico, devido a um começo de adiposidade, era que acompanhava o enterro do Senhor. Passaram,
de irresistível sedução, que mais aumentava aquele primeiro as irmandades, em alas, carregando
arzinho de ingenuidade, natural ou estudado, que tocheiros, num passo lento e comovido. No centro,
ela deixava transparecer nos jeitos e nas maneiras, iam as cruzes e as bandeiras, o guião e o pendão, e
como nos olhares e nas conversas. Usava o cabelo os irmãos fiscalizadores da ordem do cortejo, corre-
em trança grossa, atada na ponta por uma fita, correndo, de roupas verdes, os de S. Miguel,
vindo-lhe bater à altura dos quadris opulentos. encarnadas os de S. Benedito, cor de vinho os do
Nessa tarde escolhera um vestido cor de azeitona, Bom Jesus, mandando cerrar ou abrir as filas,
debruado de cor de rosa, bem fechado, de mangas afastando os importunos que se obstinavam em
compridas, que lhe dava um cunho de distinção e atravessar pelo meio, perturbando a marcha. Vinha
elegância, pondo em realce a sua epiderme muito em seguida o andor de Nossa Senhora das Dores,
alva. As primas eram extremamente parecidas uma no seu manto azul e roxo, alanceada pela dor, e
e outra, com a particularidade de se chamarem logo após, perto da banda, que tocava dolente
ambas Maria — uma do Carmo e outra da Glória. A marcha fúnebre, o caixão do Senhor-Morto, todo
primeira, com ser mais velha, era de menor estatura encoberto de cortinas roxas, de grades de madeira
que a segunda. Alice era a mais feia, ou antes a negra, sobraçado, a passo lento, pelos Irmãos do
menos bonita daquela fieira e supria com a sua Bom Jesus. Fechava o séqüito, atrás da música, a
vivacidade e tagarelice o que lhe faltava em beleza massa compacta, variada e confusa do povo, num
para se fazer digna do conjunto. Quando se burburinho surdo de vozes e de passos. Alexandrina
anunciou a procissão, pelo ruído seco da matraca e e as amigas resolveram acompanhar a procissão até
apareceram na curva da Mandioca as primeiras a igreja e seguiram bem atrás para não serem
tochas rasgando como alfinetes de ouro o sudário atropeladas. Ainda assim Alice, buliçosa e brejeira,
da treva, as meninas correram a postar-se na gritou, chamando a atenção dos que iam perto do
esquina do Beco Alto para verem a passagem do grupo, com um rapazelho atrevido que lhe ferrara
préstito fúnebre. Estavam comovidas e silenciosas. um beliscão no braço.
Quando a procissão começou a passar,
47 48
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
— Seu atrevido! Seu caradura! Veja lá onde àquela aventura de correr os passos ao lado do
está e com quem brinca! Custa crer que há gente namorado. Era para ela um encanto aquela meia
desta laia que vem à procissão para fazer sem- liberdade que só a semana santa lhe trazia, pois a
vergonhices! mãe passava quase todo o tempo na igreja e
O maroto esgueirou-se, desapontado, por uma deixava-a à vontade com as primas. Desceram a
esquina. Houve risotas num grupo que ia adiante e praça, ladeando o passeio pelo lado da esquerda e
as pequenas prosseguiram, pelo meio da rua, mais tomaram pela rua de Baixo, estreita e mal
desafogado que os passeios. iluminada. Álvaro postára-se ao lado de
— Vão até a igreja? Se permitem que as Alexandrina e iam conversando à meia voz
acompanhe... sussurrou uma voz amável e melíflua, enquanto, adiante, as três outras chalreavam,
ao lado delas. Voltaram-se. Era o Álvaro, irmão de alacremente. De um grupo que cruzou com eles,
Alice, que vinha arrastando a asa à Alexandrina. quase no entrar da rua, partiu uma risadinha,
Elas não havia porque não o consentissem. sublinhando a exclamação:
Alice aludiu, com malícia, à casualidade do — Olha esse azeite! Que perigo!
encontro, enquanto apertava o braço de Xandóca, Alexandrina fez um muchocho. Álvaro, que a
que lhe ia ao lado. Seguiram, conversando, em voz observação, longe de enfrear, tornara mais corajoso,
alta, até a esquina do jardim. Álvaro convidou-as a tomou-lhe, sem que encontrasse resistência, uma
visitar os “passos”. das mãozinhas entre as suas.
— Não vai ficar tarde, ponderou Alexandrina,
a mais tímida do grupo, a quem as reprimendas III
maternas atemorizavam.
— Ora, é coisa de meia hora mais. Faça de A caminho de casa, D.a Rosa foi dizendo à
conta que estamos na igreja. Depois nhá Rosa nem filha que lhe não agradavam os modos das
desconfia de nada, pois, antes de acabar o sermão sobrinhas, umas regateiras e estabanadas que
de lagrimas e o Senhor Deus, nós estamos de pareciam não ter juízo algum.
volta... — Não sei como mano Luís permite essas
O argumento venceu o espírito de receio de liberdades! Ah! em minha casa é que eu queria ver
Alexandrina, aliás desde o princípio inclinada isso! Educação moderna... venham com conversa
fiada. Eu educo os meus como quero.
49 50
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
Não, minha filha, aquilo pode parecer muito — Já vem você com bobagens, Não gosto de
bom para essa gente de hoje, que não está ligando a dizedelas, nem chin-chin-chins... Não digo isso,
nada e não tem escrúpulos nem decência. Onde é apesar de que você não poderia fazer melhor o meu
que já se viu uma pequena de dezoito anos, como a gosto do que dessa maneira... Mas eu lhe dei
Carmo, andar de vestidos curtos, mostrando os educação diferente da que seu tio Luís está dando
braços e as pernas a quem os queira ver! E a outra, às suas filhas. Ah! lá isso dei ! Você pode andar
a Glória, que nem tem quinze anos, e já fala em com elas, nunca fará a décima parte do que elas
namorados, vai a quanto baile aparece, anda toda se fazem. Cada um para o que nasceu...
requebrando em saracoteios que, Deus me perdoe, Alexandrina nada disse. Estava nervosa.
nem parece de gente direita... Você, minha filha, se Vinham-lhe impulsos de chorar. Aquelas palavras
Deus quiser, nunca há de me envergonhar, fazendo da mãe a contrariavam bastante, e ela pressentia,
desses papelões. Ah! lá isso não! Para tal não é que através da resistência materna, o ruir de todos os
lhe tenho dado e vivo a dar conselhos todos os seus castelos. A conversa com o Álvaro, a meia
dias... Sabe o que mais? Não fosse parecer soberbia cumplicidade daquela escapada que a mãe não
e pouco, caso nos parentes, eu nem deixava você suspeitara, a intimidade que nessa noite começara a
andar de cima para baixo com aquelas serigaitas... estabelecer-se entre ela e o namorado, tudo fizera
Alexandrina tentava defender as primas dos desvendar-se aos olhos da moça um outro horizonte
juízos maternos, fazendo ver que elas eram até bem de liberdade, ao qual até aí era completamente
comportadas, na vista de outras que ela conhecia. estranha. O seu namoro com, Álvaro datava de uns
— Cruz! Ave Maria! nem diga isso, meu dois meses, tendo começado em casa do tio, que o
coração! será que você quer imitar então essas Álvaro costumava freqüentar. As primas foram as
delambidas que andam por aí mostrando o corpo, primeiras a saber da sua recíproca inclinação e
com a cara cheia de vermelhão e falta de vergonha tornaram-se com pouco as suas naturais
? confidentes, como sempre sucede entre amigas, que
—Eu, não, mamãe. se prestam a servir de medianeiras em negócios
— Pois então? dessa ordem. Nunca tivera outro namorado e este
— Eu fui criada para freira... primeiro amor lhe empolgava a imaginação e
arrebatava os sentidos num êxtase de romance
sublime. No intimo lhe vinha
51 52
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
53 54
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
mais vantajoso na Carmosina, filha do rico visita à D.a Rosa. Havia, porém, um lindo luar,
negociante Olivais, que morria de amores pelo apesar do frio e pareceu-lhe inconveniente entrar a
Álvaro, sem que este lhe cor respondesse. desoras pela porta da rua, pelo que, prevalecendo-se
Cerca de dois messes haviam corrido após de velha combinação existente, se encaminhou pela
aquela noite, que para a moça se tornara rua do oitão, tomando rumo do “arrombado”.
memorável, da visita aos “passos”. O namoro dos Tinham soado dez horas no relógio grande da
dois fizera progressos consideráveis. Iludindo toda varanda, quando a moça, pé ante pé, depois de
a arguta fiscalização de D.a Rosa, encontravam-se apagar a lamparina do seu quarto, deitando um
Álvaro e Alexandrina diariamente, quando ela ia e chale escuro sobre o vestido leve de cassa, tiritante
vinha da oficina de costuras da Maria Caolha, onde de frio e de medo, atravessou o terreiro, pisando de
estava aprendendo corte e trabalhos. Vai uma tarde mansinho para não acordar o “Feroz” que roncava
— tarde fria de junho — o moço lhe disse do seu junto ao muro do galinheiro, A grama úmida de
desejo de apressar o desfecho daquilo que não sereno ensopou-lhe os pés, calçados apenas, à
podia continuar assim. E propôs-lhe francamente, pressa, em uns velhos sapatinhos de entrada baixa e
decidido, fugirem, para assim forçar os velhos a sem salto... E lentamente, dominando a custo a
anuírem ao casamento. comoção que a fazia tremer, encaminhou-se para o
— Que não é só eles que hão de ter direito de lado do muro do oitão, ao fundo do qual, abrindo
viver... disse, irritado, aludindo às relações que não para a rua lateral, que era antes um caminho, de
ignorava existirem entre os dois — o seu pai e a pouco trânsito, havia um “arrombado”. Seguia,
mãe de Xandóca. rente com a taipa velha, de paredão socado, com o
Esta, que, colhida de chofre por aquela idéia, coração a pulsar desordenado, quando, prestes a
para a sua imaginação romântica uma salvação, não chegar ao ponto emprazado, viu que alguém
tivera tempo de reflectir, assentiu imediatamente e galgava a pequena elevação que formava o montão
ficou combinado que daí há três dias — na sexta- de terra do “arrombado” e, sem perceber a sua,
feira — ela sairia, às dez horas da noite, para presença, atravessara o quintal, com rumo à
encontrá-lo no “arrombado”. E assim, de facto, se cozinha, escondida ao fundo de uns velhos
fez. Mas essa noite o compadre Pedroso esteve até cajueiros. Xandóca esteve a
9 e meia no seu gamão em casa do vigário e a essa
hora acudiu-lhe ir fazer uma
55 56
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
ponto de voltar, tal o susto que lhe veio daquele tempos atrás, a sua preocupação, e se não fizera
inesperado e misterioso encontro. ainda levantar o muro era simplesmente por falta de
— Quem seria? pensava. Ladrão, talvez? E a um dinheirinho disponível e, (causa principal, que
mãe, que iria acordar e daria, mais cedo do que ela, se não confessava) por facilitar as visitas
esperavam, por sua falta? extraordinárias do amigo. E quando acendia o
Um assobio, porém, longo, fino, reanimou-a, fogareiro para preparar um chá de erva-cidreira,
falando-lhe da presença de Álvaro lá fora. pois começava a sentir a sua dorzinha no coração,
— Perdido por cem, perdido por mil... O que contou, ligeiramente, a Pedroso, a história do
tem de ser, traz força. Vamos... Se é minha sina: “arrombado”.
onde der que aleije... Sou dele mesmo, custe o que — Aquela casa fora antigamente de um
custar... português rico que morrera na “Rusga”, tanto que
muita gente supunha haver ali ouro e jóias
V enterradas. O certo é que a casa, depois disso, ficou
a modo que amaldiçoada. Contavam que no lugar
Não esperava D.a Rosa, aquela noite, a visita do “arrombado” fora morta uma escrava, por
do Pedroso. Estranhou-lhe, por isso, a chegada e, ciúmes da patroa, viúva do “boava”, a qual,
mais ainda, o modo misterioso, reservado, com que, crudelissimamente, a fizera atar a um poste e
logo ao entrar, o velho a interpelou: queimar-lhe, a ferro de engomar, todo o corpo.
— Temos novidade cá pela vizinhança... se Coisas feias, dos tempos da escravatura... A infeliz,
não é, parece. Ao passar pelo “arrombado” vi um ao expirar, dissera que daquele lugar, tão certo
vulto do lado de fora, embuçado, com jeito assim como ser ela inocente, viriam grandes desgostos a
de esperar por alguém. todos os moradores da casa. E assim tem sido. A
D.a Rosa riu-se, zombando dos vãos temores minha bisavó, que comprou a casa dos herdeiros do
de Pedroso, posto, no íntimo, secreto “boava”, viu o filho mais velho enforcar-se numa
pressentimento a mortificasse e como o compadre árvore que existia ali junto do “arrombado”, Paixão
esgueirasse a vista no rumo do quarto da Xandóca, contrariada, dizem uns: infelicidade no jogo,
sussurrou: afirmam outros... Sei lá uma desgraça enorme é que
— Aquela ? Santinha ! a esta hora, dorme foi, pois o rapaz era uma pessoa muito séria e de
com os anjos... Mas aquele “arrombado” era, de juízo e perdeu a cabeça
57 58
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
de uma hora para outra, entrando nesta casa. Meu E, ameigando a voz, baixinho, só para ele:
avô morreu de um ramo de ar que apanhou de — Seria um horror : pois eles são irmãos...
manhã cedo, junto do “arrombado”, quando ia ver Nessa hora, um grito agudo, fino, estrídulo,
uma briga na esquina. Minha tia Rosa, depois de feriu a noite silenciosa, no rumo do “arrombado”. A
sair pelo “arrombado” com o capitão Teles, que a pobre senhora caiu estatelada, sobre a borda da
abandonou, ficou louca e louca morreu. Minha mãe cama. Pedroso, numa intuição terrível, entreabriu a
adoeceu do peito desde uma vez que saiu, à noite, porta da alcova, que, deserta, ostentava, intacto, o
para tocar uns cachorros que, estavam a fazer leito virginal de Alexandrina.
alarido perto do “arrombado”. Eu... você sabe, foi Correu o velho até à janela que dava para o
por ali que começamos. O “defunto” era vivo: essa terreiro. Um frio intenso e cortante vinha de fora. A
noite houve serão” no serviço e... crescente, em forma falcular, subia, por trás do
— Uma noite como a de hoje, fria e de luar morro fronteiro. Fundo, mortal silêncio pairava em
— interrompeu, evocativo, Pedroso. Há quanto todo o arredor.
tempo! Apenas, longe, além do “arrombado”, onde
— É a idade da Xandóca, um ano mais... havia umas poças de água de chuva, se ouvia, lento
esclareceu D.a Rosa. E sabe ? dizem que toda a vez e monótono, o coaxar das rans e o melancólico tan-
que uma desgraça acontece na casa, ouve-se um tan dos sapos leiteiros...
grito — o grito da moça — no lugar onde ela foi
injustamente torturada...
Pedroso, no intuito de mudar o rumo à
conversa, que lhe não agradava, perguntou à
comadre :
— E Xandóca, Rosinha, já desvaneceu do
Álvaro?
— Se não desvaneceu, há de desvanecer, meu
velho. Demais, você bem sabe, eles não podem
casar um com o outro.
59 60
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
61 62
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
63 64
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
65 66
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
67 68
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
69 70
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
71 72
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
73 74
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
os joelhos se tocaram, entre assustados e tímidos, e que, mais dia menos dia, a pediria em casamento,
como se alguém lhes fizesse ver que naquele “siá” Felismia se impressionou deveras e pensou
entendimento houvesse algo de reprovável. Mas num meio de afastar de qualquer forma a filha
reconheceram-se irmãos daqueles pés, daquelas daquele casamento desproporcionado. E ocorreu-
canelas, daquelas pantorrilhas, que se entendiam tão lhe logo lançar mão de uma velha amiga, a “siá”
bem, embaixo da mesa. Cá em cima, os donos dos Venância, fértil em “mandingas” e capaz de
joelhos é que não pareciam enxergar mais nada. As destorcer o caso mais embrulhado. Tocou-se, logo
pedras do loto dançavam-lhes diante dos olhos, depois do almoço, chalinho ao ombro, chinelinhos
como fantasmagorias. As cadeiras já estavam quase treque-treque na ponta do pé, para as bandas do
coladas à mesa. Gueda abaixou-se para, apanhar Rosário, onde morava a afamada negra. Venância
uma pedra que caíra. Estava vermelha como uma ouviu-lhe a exposição, tomou informações
pitanga bem madura. Nessa hora, “siá” Felismina minuciosas acerca da “coisa” e pediu-lhe que lhe
deu um espirro tonitroante, um daqueles seus trouxesse, nesse dia mesmo, três fios do cabelo de
formidáveis esternutos que parecia terem o poder Gueda, um pouco de água, resto do que ela tivesse
de abalar a casa. bebido e um punhado de paina do travesseiro em
— Deus a ajude! gritou o Manoel, que ela dormia. E, à saída, ainda disse, como para
levantando-se, todo desconcertado, a endireitar os mostrar o seu extraordinário prestígio,
punhos, a concertar o plastrão, que saia pelo impressionando a crédula Felismina:
colarinho alto, a repuxar a calça, como que — Eu estou com um serviço importante para
procurando, no desalinho da indumentária, disfarçar amanhã. Mas é justamente o contrário do que a
o desalinho que lhe ia pela alma. Gueda, entretanto senhora me encomendou... Conhece aquela senhora
— o que são mulheres ! — já calma, depôs sobre a bonita, mulher do telegrafista que chegou? Pois
mesa a pedra que tinha caído e, risonha, dizia: olhe — aqui para nós, que ninguém fique sabendo
— É o 35... Loto! Eu não disse que esta — ela saiu daqui pouco antes da senhora chegar e
partida era minha? me encomendou um trabalho fino, com a diferença
que o seu é para desfazer amores e o dela é para
III atar... Mas olhe lá, não vá contar nada a ninguém,
porque eu sou uma creatura
Quando os vizinhos começaram a falar que o
Manoel “Chamusco” arrastava a asa à Agueda
75 76
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
muito de confiança e incapaz de sair difamando rumo à casa da Venância. Aquela desgraçada,
quem se vale de meus serviços... ladrona, havia de pagar-lhe! Então para isso que
“Siá” Felismina foi-se embora, certa de que, servira a “mandinga”? Entrou como um pé de vento
antes de oito dias, conforme lhe assegurou a preta, no casebre da negra. Esta veio ao seu encontro, com
Gueda estaria desvanecida do Manoel. E pagou, uma serenidade surpreendente, como se nada
com prazer, os 7$000 da garrafada que, no dia houvesse acontecido. E antes que ela dissesse
seguinte, a Venância lhe levou, cheia de cautelas, qualquer coisa, explicou-lhe:
ao escurecer, recomendando-lhe que propinasse — Já sei o que a senhora vem falar! Foi
uma porção cada dia na água que a filha tivesse de mesmo um desastre, coisa que nunca me aconteceu.
beber de manhã em jejum. E se assim lhe foi Imagine que eu preparei tudo direitinho, mas na
recomendado, melhor ela o executou. hora de entregar o seu vidro e o da dona Leonidia,
No oitavo dia, Agueda saiu de casa, com o troquei as beberagens... E deu tudo às avessas do
pretexto de ir ao porto levar umas costuras, e não que devia dar. A pobre moça saiu daqui agorinha:
voltou. Era um sábado. Escureceu e nada da console-se com ela. O “cujo” que ela queria
menina. Já ansiosa, “siá” Felismina se dispunha a prender, voou hoje daqui, de auto, com uma
sair à cata da filha, quando um rapazinho, descalço sujeitinha que chegou há um mês do sertão... Foi
e em manga de camisa, parou à sua porta, um desastre, mesmo, “siá” Felismina, mas sua filha
indagando: tem um remédio fácil, é casar e está tudo arranjado.
— É aqui que mora “siá” Felismina? Console-se, que, com a minha burrada, a outra
— Sou eu mesma, meu filho. O que é que perdeu muito mais, perdeu tudo...
você quer — perguntou-lhe, não sem uma batida “Siá” Felismina não teve o que dizer. A culpa
diferente no coração, como no pressentimento de era da sorte. Foi saindo quieta, devagar, quase
alguma desgraça. bestificada, que nem ouviu a outra que, cerrando a
— É seu Manoel “Chamusco” que manda porta, dizia entre dentes:
dizer p’ra senhora que a sua filha, está lá com ele, e — Forte velha rabugenta... Deixe que os
pede sua licença para casarem amanhã cedo p’ra outros sejam felizes. Pois, entonces, eu é que havia
remediar o que já ,está, feito... de fazer mal ao meu Manoelzinho?
“Siá” Felismina não ouviu mais nada. Tonta,
quase sem ar, saiu assim mesmo como estava,
77 78
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
IV
79 80
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
Era a primeira revolução que estalava, fuzilaria irrompia violenta, de parte a parte,
imprevista, embora os antecedentes já viessem continuando por alguns minutos, incessante e
preparando os espíritos para aquele desfecho furiosa, numa ânsia terrível, num desvario trágico,
sinistro, e a entrada dos patriotas na cidade, a 7 de como a querer precipitar o fim. Depois, caía de
maio, rompendo um statu quo que se sentia novo o silêncio pesado e morno e, só de tempo em
insustentável, trouxera um grande terror no meio tempo, um ou outro ruído cortava aquela quietude
daquela gente incauta e receosa. triste, feita de uma vigilância recíproca, desconfiada
Cuiabá, centro do poder político e e tenaz.
administrativo, e, por isso, alvo das ambições e Sobre a cidade irradiava a beleza daqueles
rivalidades partidárias, sofreu desde logo os efeitos dias claríssimos de maio, lindos e fúlgidos, como
daquela luta que se esboçava tremenda, como o um sarcasmo da natureza diante daquela grande
prólogo de um ciclo de vinditas e represálias tragédia fratricida. Raro, pelas ruas desertas, a
futuras. lembrar um velho burgo medieval abandonado, um
Muito antes, alarmadas, grande número de soldado passava a galope, ou um ou outro temerário
famílias tinham deixado a Capital, fugindo para o que se arriscava a sair, esgueirando-se junto aos
interior ou buscando a calma acolhedora dos sítios, muros, forçado pela necessidade àquelas perigosas
onde apenas chegavam os ecos amortecidos da sortidas.
deflagração belicosa. As famílias, segregadas no interior das casas,
Os patriotas, aliciados entre os valentes apenas se comunicavam discretamente pelos muros,
caipiras do Norte e os vaqueiros poconeanos, de e o tiroteio cerrado punha chiliques de terror nas
tradicional bravura, sitiavam a capital, e, a despeito mulheres nervosas que se abrigavam, chorando ou
da defesa, organizada à última hora, com os rezando, nas alcovas onde ardiam, em frente ao
recursos extremos do momento, pelas forças oratório, as velas das promessas ao Senhor Bom
federais que ocupavam a cidade, já as fitas Jesus, para que aquilo acabasse; ou então se
vermelhas dos revolucionários poncistas, ganhando reuniam, a conversar, no aposento mais protegido
terreno dia a dia, dominavam os pontos mais da casa, como se a idéia daquele aconchego as
estratégicos e avançavam, num claro e iniludível animasse e encorajasse.
prenúncio da vitória final. As meninas tinham ataques e as velhas, de
Às vezes, em certas horas do dia, em que rosário na mão, tremulas como nos dias de
profundo silêncio envolvia a cidade deserta, a aguaceiro
81 82
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
83 84
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
85 86
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
87 88
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
89 90
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
91 92
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
entretanto jamais lhe ouvira a menor alusão, mesmo Nervosa, mostrara à mãe que lhe disse serem
velada, que autorizasse as versões que por aí manchas das chamadas “melancolia”.
andavam. — Alguma coisa preocupa você, filha, Por
— Chi! Nhôrinha. Tá quente que agora não que não abre o coração à sua mãezinha? Mágua que
passa desta festa... se conta, fica repartida, dói pela metade.
— O que é? — Nada, nha mãe, não é nada — e descendo
— O nhô Luís lhe pedir. a manga do casaco que arregaçara, Nhôrinha foi
— Cala a boca, minha nega. Donde é que saindo para o terreiro, a dissimular um gesto furtivo
você tirou isso? Aquilo é amizade de família. Você com que limpava, nas costas da mão, uma lágrima
não sabe que um irmão dele, o Zébinho, é casado teimosa que lhe escorria pelas faces. Era aquela a
com a prima Nenê? primeira vez que chorava por um homem...Que
— Sim. Morde aqui, minha sonsa. vergonha!
E assim toda a hora. Todo o dia.Cinco, dez •
vezes no dia. A pobre da moça já se limitava a ••
sorrir quando lhe vinham com aquela conversa. Tudo aquilo lhe passava e repassava pela
Sorria, para disfarçar a mágua que lhe ia dentro memória, enquanto no seu quarto, em frente ao
d’alma pelo protelar indefinido do acto que deveria espelho do lavatório, se preparava para a
decidir do seu destino. E já começava a emagrecer a iluminação. Já vestida, se pôs a empoar, muito ao
ponto de dar na vista. Os vestidos lhe esvoaçavam de leve, o arminho mal a esflorar-lhe a pele
flácidos e frouxos sobre o corpo. Não tinha apetite e veludosa o rosto, o pescoço, os ombros e os braços,
pouco dormia, custando-lhe conciliar o sono, as as axilas glabras e rosadas. Do lado de fora, já por
vezes já com o primeiro cantar dos galos. duas vezes, o pai a chamara, insistente:
Acordava, com olheiras violetas, que lhe — Nhôrinha, vamos. Olhe que vai ficando
vinham ao meio do rosto moreno-pálido. Por tarde e nós precisamos voltar mais cedo porque sua
último, deram para lhe aparecer, pelos braços e pelo mãe está incomodada.
colo, umas manchas escuras, que depois iam Cerca de sete e meia saíram, e, quando
ficando pardacentas, até sumirem, para brotarem puseram o pé na rua, ouviram o estralejar da
mais adiante. girândola que anunciava o fim da reza. Viraram a
esquina da rua da Igreja, toda cheia de arcos,
93 94
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
95 96
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
97 98
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
99 100
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
tapar a boca dos que andam dizendo que você está Uma luminária bruxoleava, nos supremos
gira, apaixonada, sofrendo da cabeça... por causa arrancos da agonia, antes de apagar-se na grande
daquele miserável. treva circunjacente.
A muito empenho do pai, a moça vestiu-se e Planava sobre o vale adormecido, como
o acompanhou, num passo, lento de abúlica, dando descendo do céu e dos morros de em torno, uma
a impressão de uma sonâmbula. Toda a rua, larga, grande, comovida tristeza.
ascendendo para a igreja, constelava-se de luzes. Nhôrinha lembrou-se de um ano atrás, quando
Num duplo renque, as “luminárias”, de casca de por ali passara, àquela mesma hora, acompanhada
laranja azeda umas, outras de barro, com recheio de do Luís, risonha, irradiando esperança e ventura...
cebo e morrões de fio de algodão, sobre rústicas Muitas eram então as luminárias que ainda
estacas, formavam um conjunto pitoresco. Pelo crepitavam ao estrugir dos últimos foguetes.
meio, em vai-e-vem, desfilava o povo em Hoje — e o seu pensamento indominável ia
alacridade festiva. Ao chegar a esquina, viraram tão longe, tão longe, Tombador acima, até a cidade
para o lado do Capim-Branco, pois ao Moutinho distante — hoje, na noite velha do seu desolado
entrara a cocegar-lhe o espírito o desejo de uma abandono, somente via brilhar, — extrema
partida de gamão com a comadre. lucilação de um sonho perdido, derradeira ilusão
Uma roda se havia formado à porta, mas prestes a morrer no desalento — supremo aquela
Nhôrinha preferiu entrar para poupar-se à última luminária, que, dentro de alguns momentos,
bisbilhotice dos presentes. E quedou-se, passiva e se apagaria na grande sombra, em que morrem e
inerte, a ver decorrer a partida do gamão, desaparecem todas as coisas boas da vida...
entrecortada das gargalhadas da comadre Tinóca e
dos impropérios de Moutinho, que perdia
obstinadamente aquela noite. Já as visitas todas se
haviam retirado, quando o velho deu sinal de partir.
Nhá Tinóca insistiu ainda por um cafezinho com
biscoitos, e, lá por volta de dez horas, quando
saíram, já a iluminação havia acabado.
Apenas na rua da Igreja, esquina da casa do
Fanché, como quem desce para o Quilombo.
101 102
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
103 104
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
105 106
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
107 108
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
109 110
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
111 112
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
113 114
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
115 116
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
117 118
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
119 120
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
das próximas bodas da doidivanas com um oficial rumo à sua vila natal, através de cerca de cem
de milícia recém-chegado à Capitania. Estavam léguas quase desertas. E nos “pousos” armados à
marcados os esponsais para dezembro, coincidindo beira dos córregos, junto aos capões floridos,
com a quadra em que, pelo seu cálculo, João Pedro ouvindo o vento ciciar nas folhas das umburanas,
deveria chegar a Cuiabá. O destino compraz-se, às sentindo o acre olor das resinas selvagens, vendo
vezes, nessas inconscientes ironias. Apressou o abrir-se, no ar pardo do crepúsculo, a flor do
mancebo a partida, como si, no coração presago, embirussú, alva e linda como uma grinalda de
alguma esperança entreluzisse ainda. E ei-lo de noiva, a sua imaginação esvoaçava, como aqueles
novo, mas em fora, num frágil veleiro, ao fulgor tristes bacuraus que entrevoejavam ao lado do
dos dias assoleados, nas calmarias do Equador, ou rancho, num mole espanejar de azas tontas,
nos esplendores plenilunares, mágicos e evocativos desferindo arrancos semi-doidos na meia treva do
— com o coração precipite a bater-lhe nas arcas do entre-dia.
peito, em marulho de inquieto alvoroço, mais •
inquieto certamente que o do infinito pélago que o ••
cercava e cujos vagalhões via quebrar-se na proa Quando a madrinha, toda enfeitada.
elo navio, donde alongava olhos saudosos para a chocalhante de guisos, assomou no alto da
fímbria longínqua dos horizontes, como no “Mandioca”, e as primeiras casas do povoado
descortino alucinante de uma visão inatingível... branquejavam numa curva da estrada, João Pedro
• sentiu que o coração se lhe apertava estranhamente.
•• Teria de passar pela casa de Lizarda, que ficava
Não regressou pelo Norte, ínvio e povoado numa esquina, no voltear para a Praça Real, em
ele angustiosos pesadelos, de rios imensos e ponto que de longe se divisava, dada a sua
florestas quase intransitáveis. Preferiu o caminho proeminência. Se atalhasse, daria na vista, seria
do sertão, a estrada das tropas, varando por São peor.
Paulo, Minas e Goiás, com direcção ao porto do — Vá, que tem? — disse-lhe o coração você
Rio Grande, onde, pelo Passavinte, se encaminhou não tem culpa nenhuma de tudo o que aconteceu.
Não deve incomodar-se com isso...
E se fosse aquele o dia do casamento? Bem
podia ser. Véspera de Natal, e, mais sábado...
121 122
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
123 124
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
tristes, que ama colher em botão as flores mais Nota de pesquisa - Outras publicações:
belas da vida... 1) REVISTA DAS ACADEMIAS DE LETRAS, por
E aí está como a morte de alguém que muito Federação das Academias de Letras do Brasil, 1941, p. 7.
amamos, de alguém estremecida com todas as veras
d’alma, de alguém cuja lembrança viveu dentro de
nós longamente, nos anseios da ausência, pode
trazer-nos alívio e até mesmo consolação...
125 126
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
127 128
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
129 130
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
131 132
NO TEMPO DA CADEIRINHA JOSÉ DE MESQUITA
Era apenas uma revoltada, que se consumia Não pensou, uma vez, na mulher, do que teria
no seu suplício lento. sido feito dela no meio daquele horror.
Na véspera da partida, Ramos veio à Um dia, uma clara manhã de agosto, Ramos
Camarinha despedir-se. se levantou sentindo qualquer coisa de anormal, um
A linda moça que ele havia trazido para a sua peso estranho no coração.
esposa, era quase uma múmia. Morria aos poucos, Que seria? Prenúncio de novas tragédias?
sem moléstia nenhuma. Ao vir do banheiro, ele, entrando no quarto,
— Quer alguma coisa da Corte Sinhá? — viu claramente, de pé junto à mesinha do bidê,
perguntou Ramos, como era seu costume. Custódia toda de branco, que o olhava fixamente,
— Quero, disse ela, num fio de voz. Leve num misto de tristeza e de piedade.
“aquilo” — e apontou um embrulho sobre o Sentiu-se vítima de uma alucinação mas sem
toucador — para o altar de Nossa Senhora das coragem de avançar para ela.
Dores da “Igreja da Glória... É uma oferta minha. A visão esvaiu-se como a neve ao sol...
Ramos abriu, desconfiado, o invólucro: era um Ramos notou que sobre a mesa se achava o
lindo ramo de flores, imitando mármore branco, embrulho das flores — abriu-o.
que ele dera à noiva no dia do casamento. As flores níveas, cor de jaspe, estavam
Despediu-se secamente, com um beijo frio na inteiramente negras.
testa, e partiu. A essa hora, numa remota cidade, no mais
No Rio ele soube da tremenda deflagração de fundo dos sertões, havia parado, na suprema
30 de maio. síncope libertadora, o coração dolorido de uma
Mataram-lhe o sogro, velho e trôpego, um pobre mártir...
concunhado, o Tte. Manoel Pinheiro de Almeida, e
muitos dos seus paisanos morreram, vítimas da
sanha dos nativistas embriagados de ódio e de
cobiça.
Ele mesmo sofreu a perda de boa parte de
seus haveres, saqueadas as suas casas de Cuiabá e
Diamantino.
133 134