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Índice
O autor
Capítulo 1 — Polêmicas e paradoxos
Capítulo 2 — A caminhada de um solitário
Capítulo 3 — Sociedade versus natureza
Capítulo 4 — As peripécias da desigualdade
Capítulo 5 — Liberdade e igualdade
Capítulo 6 — Repercussões

O autor

A reportagem que transcrevemos abaixo foi publicada pelo jornal Folha de S. Paulo do dia
5 de agosto de 1987, com o título "Morre aos 50 anos o filósofo Salinas Fortes". Nela pode-
se sentir a corrente de energia que Salinas captava e transmitia, e que está presente nas
páginas deste livro.

Morreu ontem aos 50 anos, pouco depois da zero hora, o professor Luiz Roberto Salinas Fortes,
do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Salinas, como era conhecido
na universidade, onde lecionava Ética e História da Filosofia desde 1965, sofreu um enfarto
do miocárdio. O corpo foi velado das 12 às 16h no salão nobre do prédio da Administração
da Faculdade de Filosofia, de onde foi conduzido para Araraquara (273 km a noroeste de
São Paulo), sua cidade natal. O enterro está previsto para as 9h de hoje. "A grande descoberta do
Salinas foi desmontar uma interpretação sobre Rousseau que durava três séculos", dizia
Marilena Chauí, 45, professora de Filosofia da USP, visivelmente emocionada no velório.
"Ele mostrou que tanto o Rousseau político quanto o literato são uma única pessoa",
explicava, referindo-se à tese de livre-docência de Salinas, batizada de "Paradoxo do
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Espetáculo (Política e Poética em Rousseau)", defendida em 1983. Nos últimos meses, Salinas,
que também trabalhou como jornalista, estava reescrevendo a tese para publicá-la em forma
de livro.
Teatro e filosofia
Antes de derrubar um mito que perdurou por três séculos, na análise de Chaui, Salinas
viveu alguns momentos importantes dos anos 60 e 70 — o existencialismo, o teatro Oficina
e a experiência da repressão política (ver abaixo trecho da autobiografia "Retrato Calado"
escrita no período 75/77 em Paris). Estudante da Faculdade de Direito da USP, onde se
diplomou em 1960, Salinas foi ator da primeira montagem do Oficina, "A Ponte", de Carlos
Queiroz Telles, em 1958. Longe do palco, acabou se tornando uma espécie de ideólogo do
Oficina, fermentando entre os atores discussões filosóficas que não costumavam freqüentar
o meio teatral. "O Oficina, antes de ser um grupo de teatro, era um grupo de discussão
filosófica", lembra o jornalista e analista econômico Marco Antonio Rocha, 51, ator do Oficina
nos anos 60. "E o principal formulador dos debates era o Salinas . "
Como professor da USP, onde se tornou bacharel em Filosofia em 1964, Salinas iniciou em
1965 uma série de três estágios que fez na França. De 65 a 67, estudou em Rennes, onde
começou a pesquisa que desembocaria em sua tese de doutorado —"Teoria e Prática na Obra de
Jean-Jacques Rousseau", defendida em 1974, e que resultou no livro "Rousseau: da Teoria à
Prática", editado pela Afica em 1976, ainda em catálogo. De 75 a 77, aproveitou-se de uma
bolsa na École de Hautes Études et Sciences Sociales, de Paris, para fugir de "veladas
perseguições da repressão militar", como diz Rubens Rodrigues Torres Filho, 45, professor de
Filosofia da USP. Em 78 ele voltaria à mesma escola para um semestre de estágio. Não era a
primeira vez que Salinas sentira a intolerância do regime militar — em 1970 foi preso duas
vezes, uma no Dops e outra no DOI-Codi. "Numa das vezes ele ficou 24 horas em um 'pau-
de-arara', passou a ter problemas vasculares e flebite, o que resultou na amputação de um
dedo do pé", recorda Chauí. Nesse estágio na França, Salinas trabalhou com o filósofo Claude
Lefort, de quem traduziu para o português o livro "Formas da História", editado pela
Brasiliense em 1979 e fora de catálogo. Considerado um grande tradutor do francês,
realizou, ainda, a v er são de " A Imaginação" , de Jean-Paul Sartre, publicada em 1964 e
esgotada, e de "A Lógica dos Sentidos", de Giles Deleuze, editada em 1974 pela Perspectiva e
esgotada.
Ligado ao existencialismo quando o movimento estava em voga nos anos 60, Salinas, junto
com o professor Fausto Castilho, ciceroneou Sartre no Brasil em 1968. O livro "Sartre no
Brasil — Conferência de Araraquar a", edit ado pela Paz e Terra em 1981, que está em sua
segunda edição, é um outro trabalho do Salinas como tradutor. "O Iluminismo e os Reis
Filósofos", uma obra de iniciação publicada pela Brasiliense em 81 e esgotada, mostra outra
faceta do domínio que Salinas tinha da filosofia francesa. "Ele encontrou uma linguagem
para o público leigo sem rifar o rigor", analisa Torres Filho.
Rigor e invenção
"Em seu trabalho filosófico ele sabia conjugar muito bem o rigor com a invenção", define
Antonio Candido, 70, professor aposentado da USP e amigo de Salinas desde quando ele era
garoto. "Ele era um talento filosófico, um talento como escritor e tradutor", diz Gérard Lebrun,
57, professor do departamento de Filosofia da USP. "O Brasil e a Universidade perdem um dos
seus mais sérios investigadores em História da Filosofia", acredita Celso Favaretto, 46,
professor da Faculdade de Educação da USP.
O rigor que Salinas imprimia às suas pesquisas filosóficas, uma herança de professores
como Bento Prado Jr., Gilda de Melo e Souza e Ruy Fausto, foi uma das vertentes que o
conduziu à abordagem original sobre Rousseau. "Não era uma questão de reabilitar
Rousseau. Ele ia ao texto e encontrava material para reflexão", diz Torres Filho. A esse rigor,
ainda segundo Torres Filho, Salinas unia frieza e emoção.
"Ele conseguia que a Filosofia fosse um instrumento de leitura do presente", afirma Franklin
Leopoldo e Silva, 39, chefe do Departamento de Filosofia da USP. A partir da idéia de
representação — um conceito comum no mundo poético e político —, Salinas organizou neste
ano, junto com o professor Milton Meira do Nascimento, um colóquio sobre o Congresso
constituinte, que resultou no livro "A Constituinte em Debate", editado pela Sofia Editora. No
livro, Salinas assina dois ensaios —"Democracia, Liberdade e Igualdade" e "Rosa de
Luxemburgo e a Constituinte de 1917". Salinas deixou dois filhos — André, 21, do seu
casamento com Ana Maria Cerqueira Leite, e Marina, 6, com Maria Alice Rufino.
"O magricela sorri dentro do elevador. Sorri o magricela, irônico, dentro do elevador. O
sorriso irônico acompanha o pequeno grupo no qual, obviamente contrafeito, desempenho
o papel de paciente ao longo do trajeto tortuoso pelos corredores que ligam a sala da
recepção da Ordem Social ao pequeno compartimento usado como câmara de tortura,
alguns andares acima no velho edifício do largo General Osório. Antes de chegar ao destino
então ignorado, iludo-me, embalo-me com a esperança de que o cortejo só vai me
acompanhar até uma cela, onde, como pouco antes me assegurara um dentre os eficientes
agentes de segurança, na pior das hipóteses, ficarei 'detido', como se diz, por alguns dias, tal
como — espero — ocorrera da outra vez, na OBAN, de onde há alguns meses fora liberado
depois de dez dias de detenção. Mas as coisas agora seriam bem diferentes e logo, logo seria
dado ao protagonista que vos fala, a ocasião única, o privilégio imerecido de vir a conhecer
o famoso instrumento de tortura já há muitos anos corriqueiramente utilizado por nossas forças
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policiais em toda a vastidão do território nacional.


Só quando chegamos percebo, de repente, o que me espera e entendo o sorriso. É que o tal do
magricela nervosinho e gozador me mandara carregar, envolto em jornais, para disfarçar,
nada mais, nada menos do que o aparelho de choque a cujas iluminações, dali a pouco,
paudiararizado, viria eu a ser submetido graciosamente. O grupo explode em gargalhadas
quando o pacote é desembrulhado, deixando a descoberto aquela sorte de pequeno realejo,
cubo de madeira com uma manivela pendurada de um dos lados. E eu, atônito, catatônico,
arremessado de repente em meio ao inferno, transferido de súbito para esta dimensão nova
onde tudo se passa velozmente, embora dure uma eternidade e embora se propague pela
eternidade afora.
Cessados os efeitos da piada, o mesmo frenético funcionário ordena:
— Tira a roupa!!!
— Como, por quê?...
— Tira a roupa! — vocifera. Fera.
— Mas, por que, será mesmo preciso?...
A insólita pergunta tem como efeito imediato irritar o tira que, redundante, exclama ainda:
— Tira a roupa, porra!"
(Retrato Calado, São Paulo, ed. Marco Zero, 1988.)
"Rousseau, o bom selvagem" é um livro póstumo. Foi escrito com a intenção original de apresentar a
iniciantes o pensamento do filósofo suíço. Este propósito levou-nos a incluir a obra na coleção "Prazer
em Conhecer", fato que a engrandece.
(Nota do Editor)
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Rousseau é, por excelência, o autor sobre o qual todo mundo se julga apto a
discutir, sem se dar ao trabalho de er de fato sua obra. Quem fez essa observação,
por volta de 1912, foi o filósofo francês Henri Bérgson (1859-1941). Ainda hoje
muito se discute acerca de Rousseau, como ocorreu em 1750, data da
publicação de seu primeiro livro — Discurso sobre as ciências e as artes
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— e mais ainda depois que ele foi transformado no principal profeta dos
revolucionários franceses do século XVIII, a começar pelo próprio
Robespierre (1758-1794), chamado " O incorruptível ", que foi o grande lí-
der da Revolução Francesa. Desde então Rousseau não cessou de provocar
uma acalorada controvérsia. Associado definitivamente ao destino da
Revolução Francesa, o filósofo desperta o ódio de alguns e a veneração de
outros. Nessas condições, uma multidão de idéias preconcebidas dificulta
o trabalho daqueles que se dispõem a ir ao encontro de seus textos.
Mas novas dificuldades nos esperam, numerosas dúvidas nos assaltam. Como
classificar essa vasta obra? Estaríamos diante de um texto filosófico
propriamente dito? Há quem duvide, já que, na sua aparência, ele não tem
muito a ver com obras tradicionalmente classificadas como "filosóficas",
pois Rousseau cultivou os gêneros mais variados.
Logo depois de seu primeiro livro, ele compôs uma ópera, intitulada O adivinho
da aldeia. Escreveu, mais tarde, dois dicionários: um de música e outro de
botânica. Em sua juventude, aventurou-se pelo terreno do teatro,
escrevendo a peça Narciso ou O amante de si mesmo. Bem mais tarde,
escreveu um romance, Júlia ou A nova Heloísa, um diálogo à maneira de Platão,
e o livro de Confissões à maneira de santo Agostinho. [Platão (428-348 a.C.):
filósofo grego, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, é autor de
diálogos filosóficos, particularmente a República, o Fedro, o Fédon. Santo
Agostinho (354-430), bispo de Hipona, teólogo e filósofo. Obras principais: A
cidade de Deus, Confissões.]
O próprio livro Emílio ou Da educação talvez a mais importante de suas
obras, parece gozar de um estatuto híbrido, anfíbio: começa como um
sisudo tratado de pedagogia e acaba como um romance de amor.
Como se isso não bastasse, o recurso constante ao paradoxo e uma aparente
variação no pensamento não comprometeriam a unidade dessa obra ou sua
coerência? Com efeito, são muito freqüentes as teses inusitadas e muitas
parecem idéias opostas ou até contraditórias. "Prefiro ser homem de
paradoxos a ser homem de preconceitos" — dizia Rousseau. De fato, todos
os seus textos estão repletos de frases chocantes, de teses esdrúxulas, pouco
comuns, que já no seu tempo indispunham contra ele o leitor impaciente.
Um exemplo? Tal é a eloqüência com que Rousseau investe contra a
civilização e suas conquistas, que ele ficou visto por boa parte de seus
leitores — a começar pelo ilustre Voltaire, que contra ele logo se
posicionou — como um intolerável detrator das Luzes e defensor da barbárie,
querendo apenas escandalizar. O século XVIII é chamado de Século das Luzes
graças ao notável movimento de idéias de que foi palco e que se costuma
designar por Iluminismo ou Ilustração, devido à sua entusiasmada
valorização dos poderes da razão humana.
A grande Enciclopédia, editada por Diderot e d'Alembert em Paris e cuja
publicação se estende por mais de vinte anos, é a imagem mais completa do
espírito filosófico da época. Daí a designação "enciclopedistas" atribuída aos
filósofos do século XVIII.
Ao ler o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens, depois de tê-lo recebido das mãos do próprio Rousseau,
Voltaire escreveu com ironia ao autor: "Nunca se empregou tanto espírito
em querer nos tornar bichos. A gente fica com vontade de andar de quatro
ao ler vosso livro". Voltaire (1694-1778), cujo nome verdadeiro era François
Marie Arouet, era filósofo, poeta, dramaturgo e um dos principais nomes do
século XVIII. Dezoito anos mais velho do que Rousseau, era por este
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considerado o grande mestre de sim geração


Outros comentadores acreditaram ver uma contradição entre as teses desse
Discurso sobre a desigualdade e a obra intitulada Do contrato social.
Na primeira, o autor parece defender um individualis mo r adical,
fazendo da s ocieda de a f ont e dos ma les de q u e p a d e c e o h o m e m .
N a s e g u n d a , a o contrário, parece defender um coletivismo, à medida
qu e pr omove, p or ex emplo, a idéia da ex celência da pátr ia e do
inter esse coletivo, que deve prevalecer s obr e o int er es s e i ndi vi du a l.
A dis tâ ncia ent r e a mb os p ar ece t ã o gr a nde q u e É m i l e F a g u et ,
p r o f es s o r e c r í t i c o fr ancês do s écu lo X IX, s e espa ntava: "O
Co ntrato so cial é um tratado do Estado déspota escrito por um anarquista".
Se não temos necessidade, aqui, de aderir aos paradoxos de Rousseau,
podemos, ao menos, acompanhá-lo no repúdio aos preconceitos. Embora
reconhecendo as dificuldade dessa obra e a ambigüidade de um texto que não
tem a nitidez e 1: nearidade dos tratados filosóficos convencionais, não
fiquemos com a idéia superficial de que nos achamos diante de um simples
caluniador da cultura, de um defensor das trevas ou de um "profe ta dark
antiiluminista". É mais correto considerá-lo como o crítico ou o pré-crítico
das Luzes, muitas vezes até excessivo em su polêmica, mas também
especialmente clarividente.
Se alguma autoridade nos é necessária, fiquemos com a d grande filósofo
Emmanuel Kant, que era um admirador de Rousseau e o chamou de "Newton
da moral". Kant dizia ser necessário lê-lo várias vezes, pois só depois de
termos deixado de nos seduzi pela magia de seu belo estilo, é que podíamos de
fato apreciar profundidade de seus pensamentos. [Emmanuel Kant (1724-1804;
filósofo alemão do século XVIII, autor da Crítica da razão pura Isaac
Newton (1642-1727), matemático, físico, astrônomo e filósofo britânico. Em
1687, formulou a teoria da atração universal entre os corpos.]
Quanto às contradições e incoerências, passemos a palavra Rousseau:

Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre nos mesmos princípios:


sempre a mesma moral, a mesma crença, as mesmas máximas e, se
quiserem, as mesmas opiniões.
(Carta a Beaumont)

Por que não abrir para ele, logo de início, um crédito de confiança?

Textos selecionados

Os fundamentos

Na Carta a Beaumont, Rousseau se defende das acusações de impiedade e irreligião, lançadas


pelo arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, ao censurar o livro Emílio através de uma
condenação solene, um mandemento, datado de 20 de agosto de 1762. Nessa carta, Rousseau
também resume, em várias passagens, os princípios centrais de sua filosofia.
O princípio fundamental de toda moral sobre o qual raciocinei em todos os meus escritos e
que desenvolvi neste último com toda a clareza de que era capaz, é de que o homem é um ser
naturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração
humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. Fiz ver que a única
paixão que nasce com o homem, a saber, o amor de si, é uma paixão em si mesma
indiferente ao bem e ao mal, que não se torna boa ou má a não ser por acidente e segundo
as circunstâncias nas quais se desenvolve. Mostrei que todos os vícios que se imputam ao
coração humano não lhe são naturais; disse a maneira segundo a qual eles nascem; segui, por
assim dizer, sua genealogia e fiz ver como, pela alteração sucessiva de sua bondade natural, os
homens se tornam afinal o que são.
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Expliquei ainda o que entendia por essa bondade original, que não parece deduzir-se da
indiferença ao bem e ao mal, natural ao amor de si. O homem não é um ser simples; ele é
composto de duas substâncias. Se nem todo mundo está de acordo com isso, nós dois, o
senhor e eu, estamos e tentei prová-lo aos outros. Isso provado, o amor de si não é mais
uma paixão simples, mas tem dois princípios, a saber: o ser inteligente e o ser sensitivo, cujo
bem-estar não é o mesmo. O apetite dos sentidos tende ao do corpo e o amor da ordem, ao
da alma. Este último amor, desenvolvido e tornado ativo, traz o nome de consciência, mas
a consciência não se desenvolve e não age a não ser com as luzes do homem. É somente por
essas luzes que ele chega a conhecer a ordem e é somente quando a conhece que a
consciência o leva a amá-la. A consciência é, pois, nula nohomem que nada comparou e que
não viu suas relações. Nesse estado, o homem só conhece a si mesmo; ele não vê seu bem-
estar oposto nem conforme ao de ninguém; não odeia nem ama nada; limitado exclusivamente
ao instinto físico, é nulo, é animal; foi o que fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade.
[Ambição]
Quando, por um desenvolvimento, de que mostrei o progresso, os homens começam a lançar
os olhos sobre seus semelhantes, começam também a ver suas relações e as relações das coisas,
a adquirir idéias de conveniência, de justiça e de ordem: o belo moral começa a tornar-se sen-
sível, e a consciência age. Então eles têm virtudes, e se também têm vícios, é porque seus
interesses se cruzam e sua ambição desperta à medida que suas luzes se estendem. Mas
enquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes, os homens são
essencialmente bons. Eis o segundo estado.
Quando, afinal, todos os interesses particulares agitados se entrechocam, quando o amor de si
posto em fermentação se torna amor-próprio, tornando o universo inteiro necessário a cada
homem, torna-os todos inimigos natos uns dos outros e faz com que ninguém encontre seu
bem a não ser no mal de outrem. Então a consciência, mais fraca do que as paixões
exaltadas, é abafada por elas e não fica na boca dos homens mais do que uma palavra feita
para se enganarem mutuamente. Cada qual finge então sacrificar seus interesses aos do
público, e todos mentem. Ninguém quer o bem público a não ser quando concorda com o seu;
assim, esse acordo é o objeto do verdadeiro político que busca tornar os povos felizes e bons.
Mas é aqui que começo a falar uma língua estranha, tão pouco conhecida do leitor quanto de
vós.

Eis, monsenhor, o terceiro e último termo, para além do qual nada resta a fazer, e eis como o
homem, sendo bom, os indivíduos tornam-se malvados. É a buscar como seria preciso fazer
para impedi-los de assim se tornar que consagrei meu livro. Não afirmei que na ordem atual a
coisa fosse absolutamente possível, mas afirmei de fato e afirmo ainda que não há, para
chegar ao fim buscado, outros meios além daqueles que propus.
*****
Tenho grande vontade, senhor, de adotar aqui meu método ordinário e de dar a história de
minhas idéias como resposta a meus acusadores. Acredito não poder melhor justificar tudo
o que ousei dizer a não ser dizendo ainda tudo o que pensei.
Assim que estive em condições de observar os homens, olhava-os fazer e os escutava falar;
depois, vendo que suas ações não se pareciam com seus discursos, buscava a razão dessa
dissemelhança e encontrava que ser e parecer, sendo para eles duas coisas tão diferentes
quanto agir e falar, esta última diferença era a causa da outra e tinha ela própria uma causa
que me restava buscar.
Encontrava essa causa na nossa ordem social, que, em todos os pontos contrária à natureza
que nada destrói, tiraniza-a sem cessar e a faz sem cessar reclamar seus direitos. Segui essa
contradição em suas conseqüências e vi que ela explicava sozinha todos os vícios dos homens
e todos os males da sociedade. De onde concluí que não era necessário supor o homem
malvado por sua natureza, quando era possível marcar a origem e o progresso de sua
maldade. Essas reflexões me conduziram a novas pesquisas sobre o espírito humano
considerado no estado civil e eu encontrava que então o desenvolvimento das luzes e dos
vícios se fazia sempre na mesma proporção, não nos indivíduos, mas nos povos — distinção
que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais foi capaz de
conceber.
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Nasci enfermiço e doente; custei a vida a minha mãe, e meu nascimento


foi a primeira das minhas infelicidades.

É nesse tom melodramático, tão ao gosto de Rousseau, qu e el e s e


r ef er e, e m s u a s a u t ob i o gr á f ica s C o n f i s s õ e s , a o s eu na s ci ment o e
à mor t e da mã e c o mo c o ns eqü ên cia d o p a r t o . N a s c i d o a 2 8 d e
j u n h o d e 1 7 1 2 , em G e n eb r a , f ilh o d e I s a a c R ou s s ea u e d e
S u za nn e B er na r d, J ea n - J a cques, segundo filho do casal, ficará marcado
pelo acontecimento trágico. O recém-nascido Jean-Jacques foi entregue aos
cuidados de uma tia, Suzanne Rousseau, que, ajudada pelo pai dele, encar-
regou-se de sua primeira educação. Seu irmão, François, sete anos mais
velho, depois de abandonar a casa paterna em 1721, nunca mais deu notícias
à família.
Do pai, relojoeiro de profissão e cidadão orgulhoso, Jean-Jacques herdou a
veneração pela mãe, o respeito pela cidade natal e a paixão pelos livros. A
insuperável saudade da esposa fazia Isaac Rousseau pedir ao filho, de
apenas seis anos de idade, que lesse em voz alta, antes de dormir, velhos
romances da biblioteca da mãe, religiosamente conservados. Aos oito
anos, servindo-se da biblioteca paterna, Rousseau lê historiadores e moralistas,
particularmente o escritor grego Plutarco (50-125 d.C.), autor de Homens
ilustres.
Em 1722, em conseqüência de um violento desentendimento com um capitão
da reserva, Isaac Rousseau deixou Genebra e foi morar em Nyon, também na
Suíça. Jean-Jacques, com dez anos, ficou sob a tutela do tio Bernard e,
com o primo Abraham, foi enviado como pensionista em casa do pastor
Lambercier, em Bossey, nas cercanias de Genebra. Até sua saída definitiva
da cidade natal, em 1728, ele se entediava nos lugares em que era colocado
como aprendiz, inclusive no ateliê de um mestre gravador com o qual,
surpreendido lendo às escondidas durante o período de trabalho,
desentendia-se freqüentemente. Num domingo, depois de ter saído a
passeio com amigos pelos arredores da cidade, ao voltar encontrou fechadas
suas portas e decidiu, então, tentar a vida mundo afora. Tinha apenas
dezesseis anos de idade. Este foi o início de sua vida nômade.
Tendo obtido uma carta de recomendação do padre de Confignon, dirigiu-
se a Annecy, na França, onde pediu proteção e asilo a madame de Warens,
personagem que teve influência decisiva sobre ele: "Esta época de minha vida
decidiu o meu caráter".
Madame de Warens, protestante de origem, recentemente convertida ao
catolicismo, matinha, graças ao auxílio de Vitor-Amadeu II, duque de
Sabóia e rei da Sardenha, uma espécie de pensão para jovens
desencaminhados, aos quais, além de catequizar, dava abrigo. Jean-
Jacques, também protestante de origem, tornou-se logo o seu predileto, e
não apenas se converteu ao catolicismo como passou a nutrir por ela uma
paixão que, embora intensa, nunca deixou de ser platônica. Sob a proteção
de "Maman", como a apelidou, Jean-Jacques entregou-se aos estudos,
complementando sua formação de autodidata. É nessa época que desponta
e se firma também a sua outra grande paixão e primeira vocação: a música.
Nesse período, Jean-Jacques fez pequenas viagens, inclusive com uma
rápida passagem por Paris, mas sempre retornando a Annecy, para perto de
"Maman", e depois para Chambéry, para onde ela se mudou.
Aqui começa, desde minha chegada a Chambéry até minha partida para
Paris em 1741, um intervalo de oito ou nove anos durante o qual minha vida
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foi tão simples quanto doce.


Confissões - Livro II

Em 1734, por um curto período, foi a Besançon, onde estudou composição


musical com o abade Blanchar. De volta a Chambéry, onde se instalou com
madame de Warens em uma casa de campo chamada Charmettes, sofreu um
acidente quando se dedicava a experiências de Física, e quase ficou cego. Foi,
então, a Montpellier para se submeter a um tratamento médico. Ao
retornar, uma enorme desilusão o esperava: sua querida "Maman" estava
viv end o ma r ita lment e c o m u m jo v em s u íço . Pr ofu nda men te ferido,
decidiu ir embora, apesar de madame de Warens insistir em que ficasse,
garantindo-lhe que todos os seus direitos se conservavam. Jean-Jacques
dirigiu-se primeiro a Lyon, onde foi preceptor durante um ano. Depois,
carregando consigo numerosas cartas de recomendação e um projeto de
inovação da notação musical, foi tentar a sorte na capital.

Em Paris, as primeiras obras (1741-1754)

Não se passou muito tempo até que, graças às recomendações de que


dispunha, Rousseau conseguisse que a Academia de Ciências tomasse
conhecimento de seu projeto, em r elação ao qual parecia nutrir grande
expectativa. Mas a Academia não o julgou favoravelmente.
Rousseau dava lições de música para sobreviver. Ao mesmo tempo travou
relações com algumas das personalidades mais influentes do então
efervescente mundo cultural parisiense. Freqüentou madame Dupin, o
teatrólogo Marivaux e o escritor Fontenelle. Tornou-se amigo de Diderot,
que já era um escritor conhecido embora ainda não se tivesse dedicado à
grande empreitada de sua vida: a organização e edição da Enciclopédia
francesa. Essa obra é o monumento intelectual do Século das Luzes, no
qual melhor se materializa a verdadeira revolução cultural, já em curso
antes da chegada de Rousseau.
Paris era a grande metrópole européia, o epicentro das novas idéias. Era ali
que se forjavam os instrumentos ideológicos de que a burguesia, classe em
ascensão, se serviria na investida contra os privilégios feudais da aristocracia
em decadência. Ali se fixou o destino do escritor Rousseau. Antes disso,
porém, ele permaneceu por mais de um ano em Veneza como secretário da
embaixada francesa, voltando a Paris depois de um desentendimento com o
embaixador.
Em 1745, conheceu Thérèse Levasseur, com a qual, embora sem nutrir
grande paixão, viveu de 1749 até o fim da vida, chegando a ter cinco filhos.
Rousseau os abandonou, um a um, em um orfanato parisiense, alegando
não ser capaz de educá-los por falta de condições econômicas. O fato não
apenas foi fonte incessan te de remorsos para ele, como também muito
explorado mais tar de por seus inimigos. É também desse período sua
primeira ópera: As musas galantes.
Em 1749, o importante filósofo e matemático d 'Alembert, colaborador de
Diderot na direção da Enciclopédia, convidou Rousseau — e ele aceitou — a
escrever para essa obra os verbetes sobre música. Nesse mesmo ano, depois de
provocar escândalo nos meios conservadores e devotos, com sua Carta sobre
os cegos, Diderot ficou aprisionado durante três meses no castelo de Vincennes,
nos arredores de Paris. Por ocasião de uma de suas visitas ao amigo,
Rousseau leu no jornal Mercure de France o enunciado da questão proposta pela
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Academia de Dijon para o prêmio de "Moral" do ano de 1750.


Profundamente instigado pela questão — "Se o restabelecimento das ciências e
das artes contribuiu para purificar os costumes" — ele compôs
imediatamente um texto que ficou famoso, a Prosopopéia de Fabrício.
Fabrício foi um cônsul romano entre 282 e 278 a.C. e ficou célebre por sua
simplicidade de costumes. Em sua Prosopopéia (figura de retórica que significa
"personificação"), Rousseau empresta a palavra a Fabrício e, por seu in-
termédio, lamenta a corrupção de costumes que, a seu ver, é característica da
civilização. Mostrou-o a Diderot, que o encorajou a dar seqüência a suas
idéias e a participar do concurso; nasceu assim o primeiro Discurso, que
obteve o primeiro prêmio.

Escritor da moda

Logo publicado, o Discurso explodiu como uma bomba, transformando seu autor
em escritor da moda. Fugindo do sucesso — sua incontornável timidez dificultava
a freqüência aos salões da aristocracia, onde triunfavam seus colegas
enciclopedistas — Jean-Jacques entregou-se, solitário, a um ofício que, pelo resto
da vida, assegurou sua sobrevivência copista de partituras musicais.
Ao mesmo tempo em que polemizava com autores que se lançaram à
refutação de seu Discurso, compôs outra ópera, O adivinho da aldeia.
Representada em 1752 em Fontainebleau perante o próprio rei Luís XV, obteve
sucesso total. Impressionado, o rei o convocou para uma audiência,
prometendo-lhe uma pensão. Atacado por um acesso de inibição, Jean-
Jacques não compareceu e, em conseqüência, perdeu a pensão. Seus amigos,
especialmente Diderot, começaram a se impacientar diante de suas
esquisitices e de sua desatenção às conveniências mundanas.
Ainda em 1752, Rousseau provocou novamente uma polêmica enorme, ao
escrever a Carta sobre a música francesa, em que exalta a música italiana
e critica a francesa. Publicou ainda uma peça teatral escrita na juventude,
Narciso ou O amante de si mesmo, acompanhada de um importante prefácio.
A Academia de Dijon, em 1753, forneceu nova ocasião para a elaboração
de outra obra de envergadura: o Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, com o qual concorre
também ao prêmio da Academia. Dessa vez, não obteve o primeiro lugar. O
novo Discurso, porém, é incomparavelmente superior ao primeiro, em
importância.
Em dezembro desse mesmo ano, ferida pelas críticas de Rousseau, a Ópera de
Paris retira a permanente que lhe concedera.

Cidadão de Genebra

Acompanhado por Thérèse, nosso autor se distanciou de Paris: pela primeira


vez, depois da sua "fuga", retornou a Genebra. Calorosamente recebido em 1754,
abjurou o catolicismo e foi reintegrado solenemente tanto na religião
protestante quanto em sua condição de cidadão genebrino. No ano seguinte,
de retorno a Paris, entregou aos editores o manuscrito do Discurso sobre a desi-
gualdade, ornamentado por uma inspirada Dedicatória a Genebra, redigida
durante a viagem e assinada: J.-J. Rousseau, cidadão de Genebra. Publicado,
esse novo Discurso reacendeu as paixões polêmicas. Rousseau o enviou a
Voltaire, pois o considerava o grande mestre de sua geração. Voltaire não
12

apreciou o livro e o comentou sarcasticamente. A resposta de Rousseau, por


sua vez, foi bastante polida, mas a partir daí as relações entre ambos, até
então amenas, embora distantes, converteram-se em hostilidade aberta. No
ano seguinte retornou a Paris, protegido por uma das grandes estrelas dos
salões, madame d'Epinay, instalou-se em uma residência chamada
L'Ermitage, situada em Montmorency, nos arredores de Paris. Uma série de
mal-entendidos contribuiu para opô-lo cada vez mais a seus ex-amigos
filósofos, também chegados a madame d'Epinay, com a qual ele acabou por
se desentender, sendo obrigado a mudar de casa. Foi aí, em meio às
dificuldades crescentes de relacionamento com os antigos companheiros, que
produziu outras de suas obras mais importantes. Em 1758 redigiu a Carta
a d'Alembert sobre os espetáculos, que contém uma crítica contundente ao
teatro francês e marca propriamente sua ruptura definitiva com Diderot e os
enciclopedistas. Aí também redigiu Júlia ou A nova Heloísa, Do contrato
social e Emílio ou Da educação.

Exílio e perseguição

Logo depois de impresso na Holanda, em 1762, Emílio foi condenado


pelo Parlamento de Paris à fogueira, e seu autor à prisão. Aconselhado e
auxiliado por amigos que permaneceram fiéis, decidiu fugir. Foi para a
Suíça, onde imaginou que seria bem acol hi d o. Ma s es ta va mu it o
en ga na do. D a p equ ena a ld eia d e Môthiers-Travers, onde se instalou,
também foi obrigado a fugir depois que camponeses enfurecidos ameaçaram
depredar a "morada do ímpio". Em 1766 refugiou-se na Inglaterra a convite do
filósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776), autor dos Ensaios sobre
o entendimento humano. Enquanto iss o, no cont inent e, suas obras
continuavam sendo hostilizadas pelas autoridades civis e eclesiásticas, protestantes
e católicas. O Contrato social, também publicado em 1762, foi condenado em
Genebra e Emílio foi queimado em praça pública, em Paris. Considerado ofensivo
à religião católica, foi condenado também pelo arcebispo de Paris, Christophe de
Beaumont. Voltaire escreveu contra Rousseau uma violenta sátira intitulada Carta
do Sr. Voltaire ao Dr. J. -J. Pansofo. A partir de então, sob o ferrão da
perseguição, começaram a acentuar-se seus sentimentos persecutórios e
ele acabou por se indispor também com Hume, imaginando-se alvo de
uma grande conspiração internacional comandada pelos filósofos.
Em 1767 voltou à França, instalando-se provisoriamente em Trye.
Desejoso de voltar a Paris, depois de acalmados os ânimos contra ele,
escreveu ao ministro Choiseul, que lhe concedeu autorização para voltar.
Instalado em um pequeno apartamento da rua Platrière, decidiu escrever
as Confissões para defender-se de seus acusadores. Esse texto foi lido por
ele mesmo no salão de madame de Egmont, mas a reação do público foi
de indiferença.
Dedicando-se sempre à cópia de partituras musicais, escreveu várias
obras, dentre elas os Diálogos, nos quais faz novamente sua defesa, e
Devaneios de um caminhante solitário, texto em prosa poética que
contém algumas de suas mais belas páginas.
Nos últimos anos de vida, dedicou-se com intensidade crescente a outra
paixão antiga: a botânica. Desde o retorno a Paris, sua saúde e a
inflamação da bexiga, de que sofreu por toda a vida, pioraram
consideravelmente. A 2 de julho de 1778 morreu subitamente, em
13

circunstâncias não inteiramente esclarecidas.


Em 1793, depois da Revolução Francesa, a Convenção, órgão
revolucionário máximo, decidiu a solene transferência dos restos mortais
de Rousseau da ilha de Choupos, onde fora enterrado, para o Panteão de
Paris, monumento dedicado aos heróis da pátria.

Obras

Desta relação omitimos as peças de teatro — com exceção da principal —


assim como as obras musicais.

1750 — Discurso sobre as ciências e as artes. O autor rejeita a idéia de que o Renascimento
das artes e das ciências — que se costuma datar dos séculos XV e XVI — tenha contribuído
para o aperfeiçoamento moral dos homens. Defende a tese da influência perniciosa do cultivo
das artes e das ciências sobre os costumes. Publicado no volume Rousseau da coleção Os
pensadores, Nova Cultural.
1755 — Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. A
desigualdade de condições que se observa entre os homens em nossa sociedade não é natural
ao homem, mas decorre da própria evolução social, especialmente a partir da instituição da
propriedade privada. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.
1756 — Cartas sobre a Providência. Polêmica de Rousseau com Voltaire a respeito da
interferência da Providência Divina nos assuntos humanos e a propósito do terremoto de
Lisboa, ocorrido em 1755. Não há tradução para o português.
1758 — Carta a d'Alembert sobre os espetáculos. Resposta de Rousseau ao verbete da
Enciclopédia sobre Genebra, redigido por d'Alembert, que propõe a introdução naquela
cidade de um teatro nos moldes franceses. Rousseau rejeita a idéia e critica o teatro francês,
apontando os malefícios que sua introdução acarretaria para a República de Genebra. Obras
completas, Ed. Globo.
1761 — Júlia ou A nova Heloisa. Cartas trocadas entre dois personagens — Júlia e Saint-Preux
— ligados por uma paixão poderosa, mas separados pelos preconceitos. Não há tradução.
1762 — Do contrato social. Uma comunidade autêntica é aquela na qual a vontade geral,
extensão da vontade dos cidadãos livres, é a autoridade soberana. Publicado no volume
Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.
Emílio ou Da educação. Acompanhando desde a infância a formação de um personagem
imaginário, Emílio, Rousseau reconstitui a imagem do homem natural, critica a instituição
pedagógica vigente e assenta as bases de uma nova educação. Publicado em português pela
Difusão Européia do Livro.
1763 — Carta a Christophe de Beaumont — Resposta ao arcebispo de Paris que condenou o
Emílio. Não há tradução.
1764 — Cartas escritas da montanha. Resposta de Rousseau às Cartas escritas do campo,
do procurador-geral genebrino Tronchin, na qual ele se defende das acusações contra o
Contrato e o Emílio.
1765 — Projeto de Constituição para a Córsega. A pedido de Buttafucco, personagem
importante na política da ilha de Córsega, Rousseau se faz de legislador.
1768 — Dicionário de música.
1772 — Considerações sobre o governo da Polônia. A convite de nobres poloneses surretos,
Rousseau propõe um projeto de reforma do governo e das leis polonesas, aplicando os
princípios do Contrato. Publicado em edição bilíngüe pela Brasiliense.

Obras publicadas postumamente:


1782 e 1790 — Confissões. Penetrante estudo autobiográfico ou auto-analítico. 1782 —
Devaneios de um caminhante solitário.
1790 — Diálogos. Rousseau juiz de Jean-Jacques.
1805 — Cartas sobre a Botânica.
1924 a 1937 — Correspondência geral. 20 volumes.
Ensaio sobre a origem das línguas. Estudando a origem e a evolução das línguas,
Rousseau investiga também a evolução da música. Escrito por volta de 1759. Publicado no
volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.
Os textos selecionados deste livro foram retirados das edições brasileiras. Os
não editados em português são de responsabilidade do autor. (NE)
14

Cronologia
28 de junho de 1712 — Nascimento de Rousseau, em Genebra, Suíça.
1714-1727 — Na Inglaterra, reinado de Jorge I. Criação do parlamentarismo moderno,
baseado no poder da maioria.
1715 — Morte de Luís XIV, que representou o auge do absolutismo na França. 1719 —
Publicação do Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, que ilustra algumas idéias que serão
retomadas por Rousseau.
1722 — Jean-Jacques passa a estudar na casa do pastor Lambercier.
1723 — Fim da regência do duque de Órleans e início do reinado de Luís XV na França.
1728 — Rousseau foge de Genebra, encontra a madame de Warens em Annecy, França, e
converte-se ao catolicismo.
1741 — Rousseau chega a Paris.
1745 — Jean-Jacques liga-se a Thérèse Levasseur, sua companheira de toda a vida e com
quem teve cinco filhos.
1749 — O filósofo redige o Discurso sobre as ciências e as artes, publicado no ano seguinte.
1752 — Apresentação da ópera O adivinho da aldeia perante Luís XV, que convida Rousseau
para uma audiência, a que o filósofo não comparece. A Enciclopédia é condenada pela
primeira vez.
1754 — O filósofo visita Genebra e abraça de novo o protestantismo.
Publica o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
1756 — Rousseau passa a morar nos arredores de Paris. Começa a escrever o romance Júlia
ou A nova Heloísa, publicado em 1761.
Início da Guerra dos Sete Anos, entre França e Inglaterra.
1760 — Inicia-se na Inglaterra a era do maquinismo e da grande indústria.
1762 — Recém-publicados, o Emílio e o Contrato social são condenados pelas autoridades
francesas e suíças. Rousseau busca refúgio em várias localidades européias e acaba
estabelecendo-se, em 1766, na Inglaterra, com David Hume.
1767 — Estabelece-se em Paris.
1774 — Começa o governo de Luís XVI.
1776 — Independência dos EUA.
Rousseau escreve os Devaneios de um caminhante solitário, publicado em 1782.
2 de julho de 1778 — morre Rousseau, e é enterrado na ilha de Choupos. Durante a
Revolução Francesa, em 1793, seus restos mortais são colocados no Panteão de Paris,
dedicado aos heróis da pátria.
1789 — Começa a Revolução Francesa.
Entrada em vigor da Constituição americana, que segue inspiração rousseauniana.
Conjuração Mineira, no Brasil, cujos participantes utilizaram especificamente as obras de
Rousseau.

Textos selecionados

Autoconhecimento

Uma dimensão relevante da obra rousseauniana é o autoconhecimento, que se exprime


especialmente nas Confissões, nos Diálogos e nos Devaneios. Nessas obras, Rous - seau volta-
se a si mesmo e tenta compreender-se, buscando acompanhar, especialmente nas Confissões, a
gênese de sua carreira literária e de seus males. Nota-se como se reproduz na tentativa de
auto-interpretação, de conhecimento de si, o mes mo esquema — u m "natural " bom
corrompido pel a vida em sociedade — que vimos atuando em outros planos.
Os dois textos foram extraídos respectivamente dos livros I e VIII das Confissões.

[Quem sou!]
Lanço-me em uma empreitada que nunca teve nenhum exemplo e cuja execu ção não terá
imitador algum. Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade da
natureza; e esse homem serei eu mesmo. Apenas eu. Sin to meu coração e conheço os
homens. Não sou feito como nenhum daqueles que vi; ouso acreditar que não sou feito como
nenhum daqueles que existem. Se não valho mais, ao menos sou outro. Se a natureza fez bem
ou mal em quebrar c molde no qual me lançou, é sobre o que não se pode julgar a não ser
depois de eu ser lido.
Que a trombeta do Juízo Final soe quando quiser; virei com este livro na mão apresentar-
me diante do soberano juiz. Direi altivamente: eis o que fiz, c que pensei e o que fui. Disse o
bem e o mal com a mesma franqueza. Não cale nada de mal, nada acrescentei de bom, e se me
ocorreu empregar algum ornamento indiferente, foi apenas para preencher um vazio
15

ocasionado por minha falte de memória; eu pude supor verdadeiro o que eu sabia ter podido
sê-lo, jamais c que sabia ser falso. Mostrei-me tal qual fui, desprezível e vil quando o fui, bom
generoso, sublime, quando o fui: desvelei meu interior tal como tu próprio o vis. te. Ser
eterno, reúna à minha volta a inumerável multidão de meus semelhantes que escutem minhas
confissões, que gemam de minhas indignidades, que se ruborizem com minhas misérias. Que
cada qual descubra, por sua vez, seu coração aos pés de teu trono com a mesma sinceridade;
e, depois, que um só te diga, se ousar: fui melhor do que este homem (...)
[O primeiro Discurso]
Neste ano de 1749, o verão foi de um calor excessivo. Contam-se duas léguas de Paris a
Vincennes. Sem condições para pagar fiacres, às duas horas da tarde eu ia a pé quando
estava só e ia depressa para chegar mais cedo. As árvores da estrada, sempre desbastadas à
moda da região, não davam quase sombra alguma e freqüentemente, esmagado de calor e de
cansaço, eu me estendia no chão não podendo mais continuar. Eu procurava, para
moderar meus passos, ler algum livro. Um dia peguei o Mercure de France e, enquanto an-
dava, percorrendo-o com os olhos, topei com a seguinte questão proposta pela Academia de
Dijon para o prêmio do ano seguinte: Se o progresso das ciências e das artes contribuiu
para corromper ou purificar os costumes.
No instante dessa leitura vi um outro universo e me tornei um outro homem. Embora eu tenha
uma lembrança viva da impressão que recebi, os detalhes me escaparam desde que os
depositei em uma das minhas quatro cartas ao Sr. de Malesherbes.
(...) O de que me lembro bem distintamente dessa ocasião é que, chegando a Vincennes, eu
estava numa agitação que era quase delírio. Diderot percebeu; eu disse a causa e li para ele
a Prosopopéia de Fabrício, escrita a lápis sob um carvalho. Ele me exortou a desenvolver
minhas idéias e concorrer ao prêmio. Eu o fiz, e a partir desse instante eu me perdi. Todo o
resto de minha vida e de minhas infelicidades foi o efeito inevitável desse instante de desvio.
Meus sentimentos se alçaram com a mais inconcebível rapidez ao tom de minhas idéias. Todas
as minhas pequenas paixões foram esmagadas pelo entusiasmo da verdade, da liberdade, da
virtude, e o que há de mais espantoso é que essa efervescência se manteve em meu coração
durante mais de quatro ou cinco anos a um grau tão alto talvez quanto o tenha jamais estado
no coração de um outro homem.

Os Espetáculos

No século XVIII a arte do teatro passa por uma extraordinária expansão e discute-se muito
sobre as virtudes do teatro, se ele é ou não uma boa escola de moral e bons costumes e a ele
os philosophes dão grande importância. Na sua famosa Carta a d'Alembert sobre os
espetáculos, Rousseau toma partido em relação ao teatro e condena o teatro à francesa,
examinando a questão dos espetáculos a partir de uma ótica eminentemente política. Os dois
trechos seguintes são extraídos dessa longa Carta:
Perguntar se os espetáculos são bons ou maus em si mesmos é formular uma questão muito
vaga; é examinar uma relação antes de ter fixado os termos. Os espetáculos são feitos para o
povo e é somente por seus efeitos sobre ele que se pode determinar suas qualidades absolutas.
Pode haver espetáculos de uma infinidade de espécies; há de povo a povo uma prodigiosa
diversidade de costumes, de temperamentos, de caracteres. O homem é uno, confesso-o; mas
o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos
preconceitos, pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que não se deve mais procurar
entre nós o que é bom aos homens em geral, mas o que é bom para eles em tal tempo ou em
tal país. Assim, as peças de Menandro, feitas para o teatro de Atenas, estavam deslocadas no
de Roma; assim, os combates de gladiadores, que, sob a república, animavam a coragem e o
valor dos romanos, não inspiravam, sob os imperadores, ao populacho de Roma, mais do
que o amor do sangue e a crueldade: com o mesmo objeto oferecido ao mesmo povo em
diferentes tempos, ele aprendeu primeiro a desprezar sua vida e, depois, a brincar com a de
outrem. (...)
[Festas públicas]
Como! Não deve haver, então, nenhum espetáculo em uma república? Ao contrário, deve
haver muitos. É nas repúblicas que eles nasceram, é em seu seio que os vimos brilhar com
um verdadeiro ar de festa. A que povos convém melhor reunir-se freqüentemente e formar
entre si os doces laços do prazer e da alegria do que àqueles que têm tantas razões para se
amar e para permanecer para sempre unidos? Já temos várias dessas festas públicas;
tenhamos mais ainda e só ficarei mais encantado. Mas não adotemos esses espetáculos
exclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas em um antro obscuro;
que os mantêm temerosos e imóveis no silêncio e na inação; que não oferecem aos olhos mais
do que clausuras, pontas de ferro, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade.
Não, povos felizes, não são estas as vossas festas! É em pleno ar puro, é sob os céus que
deveis vos reunir e vos entregar ao doce sentimento de vossa felicidade.
(...) Mas quais serão, afinal, os objetos desses espetáculos? O que é que se mostrará neles?
Nada, se quiserem. Com a liberdade em toda parte, onde reina a afluência o bem-estar
também reina. Plantai no meio de uma praça um mastro coroado de flores, reuni em torno o
povo e tereis uma festa. Fazei ainda melhor: dai os espectadores em espetáculo; tornai-os eles
16

próprios atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, a fim de que todos sejam
melhor unidos...

O segundo Discurso, que trata da desigualdade, tão mal rec e b i d o p o r


V o l t a i r e , é e n t u s i a s t i c a m e n t e s a u d a d o p o r u m d o s g r a n d es
p en s a d o r es d o s éc u l o X X , C l a u d e L é v i S t r a u s s ( n a s c i d o e m
B r u x el a s , 1 9 0 8 ) , c o mo o l i v r o q u e f u n d o u a a n t r o p o l o g i a
o c i d e n t a l . O q u e é e n t ã o o h o mem segundo o autor do Discurso?
Tomemos a tese central. Segundo mostra nossa experiência cotidiana, os homens
17

são maus, inimigos uns dos outros, buscando o tempo todo a melhor
for ma de tirar partido, ou de fazer mal ao semelhante. Teria então razão
o filósofo inglês Thomas Hobbes, ao dizer que "o homem é o lobo do
homem" e vive em guerra permanente com seus semelhantes? [Hobbes
(1588-1679), autor do Leviatã, conduziu a filosofia política a um momento
elevado de reflexão.]
Rousseau concorda em certo sentido, mas se permite introduzir uma
corr eção no ensinamento de Hobbes. Os homens são maus, mas não
intrinsecamente, não enquanto portadores dos atributos da espécie homem. A
essência, a natureza do homem é essencialmente boa; o que vemos diante de nós é
uma degradação, uma degenerescência dessa natureza originária, em si mesma
límpida e rica em potencialidades. Deformado, o homem de hoje pouco tem
a ver, a não ser talvez a mera aparência, com o homem selvagem ou com os
homens da Antigüidade clássica, os gregos e os romanos. Como explicar essa
alteração? Em que consiste a corrupção?
Para penetrar no conteúdo das teses de Rousseau sobre o homem, vamos
antes recorrer ao Emílio, a última de suas "grandes obras".
Segundo Rousseau, para melhor apreender a ordem entreseus escritos, é
necessário começar pelos últimos, pois só nestes é que ele chega até os
princípios fundamentais de seu "sistema". Referindo-se à própria obra, Rousseau
escreveu:
Eu tinha sentido desde minha primeira leitura que estes escritos
caminhavam em uma certa ordem que era preciso encontrar para seguir a
cadeia de seu conteúdo. Acreditei ver que esta ordem era inversa à de sua
publicação e que o autor, elevando-se de princípio em princípio, não tinha
atingido os primeiros a não ser em seus últimos escritos. Era preciso, pois,
para caminhar por síntese, começar pelo final. E foi o que fiz, atendo-me
primeiro ao Emílio.

Uma profissão de fé

No Emílio, inserido no corpo de seu livro IV (ao todo são cinco livros), há
um opúsculo famoso: Profissão de fé do vigário de Sabóia. Texto notável
e autônomo no interior do livro, ele pode ser lido assim como uma espécie
de Discurso do método de Rousseau. [O Discurso do método foi escrito
pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) que é considerado o
fundador do nacionalismo moderno.] Na Profissão de fé, tomando posição
com relação a várias questões filosóficas tradicionais, o autor nos expõe
os princípios mais gerais sobre os quais se fundamenta o conjunto das
suas proposições sobre o homem.
O problema de que parte Rousseau é o mesmo de Descarte: sobre o que de
sólido é possível apoiar nossas certezas e nossa idéias sobre as coisas? Mas
ele adotou um caminho totalmente d verso para resolvê-lo. Para Rousseau as
evidências serão de ordem diferente daquelas em que se apóia seu colega do
século anterior Para Descartes as bases são apenas intelectuais; o critério para
avaliar a certeza de uma idéia é a clareza e distinção. Rousseau reclama outro
critério de certeza: age como os empiristas, que valorizam as evidências e a
experiência dos sentidos. [O principal representante do empirismo é o inglês John
Locke (1632-1704).] Mas tomando um caminho diferente dos empiristas,
Rousseau convoca uma dimensão do homem para além do intelecto e dos
sentidos é preciso levar em conta o homem em sua totalidade, como
coração, como sensibilidade moral:
18

Trazendo, pois, em mim o amor da verdade no lugar de toda filosofia, e por


método uma regra fácil e sim pies que me dispensa da vã sutileza dos
argumentos, reto mo, pois, a partir dessa regra o exame dos conhecimentos
que me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aqueles aos quais
na sinceridade de meu coração eu não poderia recusar o meu consentimento;
co mo verdadeiras, todas aquelas que me parecerão ter um ligação necessária
com estas primeiras e deixar todas a outras na incerteza, sem rejeitá-las nem
admiti-las e sem me atormentar em esclarecê-las quando não levam a na da
de útil para a prática.

Nesse texto, assistimos a um duplo deslocamento no modo tradicional de tratar as


questões filosóficas.
Em primeiro lugar, a atividade de conhecimento não é mai deixada com
exclusividade ou ao puro intelecto ou às impressões sensíveis. No
conhecimento acha-se comprometido o homem na sua totalidade e,
portanto, também o seu sentimento e suas "paixões". Trata-se, pois, de uma
recusa do intelectualismo e do racionalismo...
Em segundo lugar, também o âmbito da investigação sofre uma alteração.
As questões sobre as quais podemos exercer nossa curiosidade dizem respeito à
esfera da "prática", aos nossos deveres e à nossa conduta. Antecipando-se
a Kant, Rousseau partiu da convicção de que é limitada a capacidade
humana de conhecimento. Orgulhoso, o homem quer "tudo penetrar, tudo
conhecer" e se esquece de perguntar em primeiro lugar pela potência de sua
faculdade de conhecer:
Pequena parte de um grande todo, (..) somos bastante vãos para querer
decidir o que é este todo em si mesmo e o que somos em relação a ele.
Então, o que é possível conhecer? Até onde podemos nos aventurar? Guia-nos
uma bússola segura, fornecida por nossa própria natureza: trata-se do
"interesse", palavra tomada no sentido mais amplo possível e que inclui a
dimensão moral. Tudo aquilo que diz respeito à nossa sobrevivência, ao
nosso bem-estar e à nossa conduta em relação aos semelhantes, é suscetível
de ser conhecido com segurança. As questões que realmente interessam e são
dignas de nossa atenção não são, pois, questões puramente especulativas, sem
relação com a prática da vida e que só alimentam um delirante orgulho ou uma
pretensão descabida.

Ordem e caos

Com base nesse método, Rousseau chega a algumas verdades fundamentais. Em


primeiro lugar, partindo da observação do universo que o circunda, chega à
idéia de Deus, concebido como uma causa primeira que move o universo e anima
a natureza:

Quanto mais observo a ação e a reação das forças da natureza agindo umas
sobre as outras, mais acredito que de efeitos em efeitos é preciso sempre
remontar a alguma vontade como primeira causa, pois supor um progresso
das causas ao infinito é não supor nenhum.

Existe, pois, uma causa primeira do universo, ao que se convencionou chamar de


Deus, uma vontade criadora. Rousseau se utiliza aqui da tradicional prova
da existência de Deus percebida através dos efeitos de sua ação. Só que, na
sua perspectiva, a prova vem reforçada pela aceitação do coração.
19

A partir daí, poderá ser estabelecida uma segunda verdade relativa à


natureza. Como o universo que nos circunda mostra-se harmonioso, como
um vasto conjunto de correspondências e simetrias, devemos concluir pelo
caráter inteligente da causa que o produziu: "Se a matéria movida me
mostra uma vontade, a matéria movida segundo certas leis me mostra uma
inteligência".

Ao contrário das pretensões da metafísica, não há como penetrar mais além


na natureza mais profunda dessa realidade primeira. Mas também não há
motivo para se inquietar com isso, uma vez que tal aprofundamento nada
acrescenta à nossa conduta na vida. O que importa reter a partir dessas
verdades primeiras é a idéia do universo como uma ordem inteligente,
como uma vasta cadeia de seres que se interligam e onde cada um ocupa um
lugar bem preciso, que melhor se coaduna com os desígnios impenetráveis,
da boa vontade inteligente, criadora do todo.
Voltando-se, em seguida, para o próprio homem, Rousseau coloca o
problema de saber qual a posição destinada a esse ser particular nesta
vasta cadeia da ordem universal. E aqui um primeiro choque ou um grande
espanto nos espera. O universo físico nos impressiona pela constante
regularidade, pela inalterável harmonia reinante entre as partes componentes
do todo. O exemplo mais notório disso são os coordenados movimentos
astronômicos. Bem diferente, porém, é o espetáculo das coisas humanas,
em que domina a mais completa desordem:

O quadro da natureza não me oferecia senão harmonia e proporções, o do


gênero humano não me oferece senão confusão e desordem! O concerto
reina entre os elementos, e os homens estão no caos! Os animais são
felizes, só o seu rei é miserável! Ó sabedoria, onde estão tuas leis? Ó
Providência, é assim que reges o mundo? Ser benfazejo, que foi feito do
teu poder? Vejo o mal sobre a terra.

Observe-se que Deus é também "bondade". Num trecho anterior, Rousseau


junta ao nome de Deus as idéias de inteligência, de potência, de vontade, às
quais reuniu a bondade, sua conseqüência necessária.
Como explicar a existência do mal, se o Criador é bondade? É nesse ponto
que se estabelecerá a terceira verdade fundamental. Em termos bastante
tradicionais e em contraste com o materialismo em voga no seu século,
Rousseau afirma a liberdade do homem. [Os materialistas, que negam a
existência de Deus, afirmam a matéria como a única causa e única realidade
substancial. No século XVIII, além de Diderot, os principais defensores do
materialismo foram Helvétius e o barão d'Holbach .]
Não há verdadeira vontade nem verdadeira ação sem uma liberdade, que é
seu princípio eficiente. E é esse atributo distintivo do homem que, se por
um lado é motivo de orgulho, por outro responde pela própria existência
do mal sobre a Terra. Se há desordem, se há caos é porque os homens são
livres e podem fazer um uso ou abuso da liberdade que os leva a exorbitar, a
ir para fora ou para além da órbita normal que lhes é própria. Logo no pri-
meiro parágrafo do Livro I do Emílio, Rousseau escreve: "Tudo é bem,
saindo das mãos do autor das coisas; tudo degenera entre as mãos do
homem".
O próprio homem, portanto, é o responsável último pelos seus males. Estes, por
outro lado, são definidos como um desregramento, como desordem ou caos,
20

por contraste com a ordem universal, que é essencialmente o bem ou o


supremo valor. É nesse âmbito que se inscreve a tragicomédia humana. Mas
estamos ainda diante de uma resposta muito geral. Quais seriam, mais
precisamente, os mecanismos responsáveis pelos desvios, os fatores que propiciam
esse abuso que o homem faz de sua liberdade?

A marcha da contradição
Essa primeira incursão pelo universo dos textos rousseaunianos permite-nos
perceber que o problema do homem ocupa um papel central em sua filosofia.
Mas se nos limitássemos à leitura dessas idéias, ficaríamos em um plano
abstrato e deixaríamos de levar em conta o elemento fundamental a partir
do qual a alteração da essência do homem será entendida como um processo rico
em contradições e cheio de dinamismo: trata-se da sociedade. É a contradição
dinâmica entre natureza e sociedade que comanda o processo e as
dificuldades do convívio forçoso com seus semelhantes, que levará o homem a
entrar em contradição com suas disposições naturais.
É na perspectiva dessa contradição primordial que veremos esse pensamento
na plenitude do seu vigor. É a partir daí que perceberemos a novidade dos
objetos de estudo a que ele se propõe e dos novos terrenos de investigação
que inaugura: a questão da sociedade e a questão da história. Ao lado de
Montesquieu, Rousseau foi considerado precursor da Sociologia pelo
sociólogo francês Émile Durkhein (1858-1917). De fato, nosso filósofo
chama a atenção de modo inusitado para o problema das relações sociais
entre os homens, para a questão da sociabilidade e da complexidade da vida
social ou para a lógica inscrita na sua trama de relações. Por outro lado, a
questão da história passa a adquirir um estatuto e uma dignidade filosófica,
embora não tenha atingido ainda a clareza que teve mais tarde com Kant e
com Hegel (1770-1831) este filósofo alemão criou a moderna concepção de
dialética e foi autor sobretudo da Grande Lógica, Fenomenologia do Espírito e
Princípios do Direito.
Rousseau não procedeu a uma investigação abstrata sobre os atributos
que constituem o homem. Ele interpretou a evolução desde os primórdios
da humanidade até os dias de hoje. O que interessa desvendar é a lógica
própria ao desenvolvimento dos homens através de sua história. Trata-se de
uma investigação "arqueológica", que buscará reconstituir estágios perdidos
na evolução do homem para definir como era ele em seus primórdios e
como teriam ocorrido as alterações. Teremos a reconstituição dinâmica e
dramática que oporá um "estado de natur eza" a um "estado de sociedade"
e recriará imaginariamente os sucessivos cenários intermediários que conduziram
de um termo a outro.
Rousseau trabalhou segundo um esquema dicotômico — estado de natureza
ou estado de sociedade — que o aproximou muito mais dos filósofos
políticos do que dos metafísicos. Ele se aproximou de Hobbes e dos
jurisconsultos da Escola do Direito Natural (Hugo Grotius, Samuel
Puffendorf, Barbeyrac, Burlamaqui, Wollf). O filósofo pretendeu imaginar
como seria o homem antes da passagem para a vida em sociedade, para
saber distinguir entre aquilo que ele deve a seu próprio fundo primitivo e
natural, e aquilo que ele recebeu artificialmente ou deve ao livre — e,
portanto, falível — uso das suas faculdades.
Vejamos como se faz essa reconstituição do homem natural.
21

Os dois discursos

A ocasião para o desenrolar pleno do novelo foi fornecida por uma


circunstância bastante convencional.
A Academia de Dijon formulou uma grave questão para o seu Concurso
de Moral do ano de 1753: "Qual é a fonte da desigualdade entre os
homens? Ela é autorizada pela lei natural?" Questão, como vemos, que
parece ter sido feita sob medida para Rousseau, que alguns anos antes
havia ganho o primeiro prêmio em concurso promovido pela mesma academia.
Provocado por essas questões, Rousseau desenvolveu suas teses em dois
Discursos de dimensões e importância desiguais. A essas obras aplica-se a
inversão entre a ordem lógica e a ordem cronológica: o primeiro Discurso,
sobre a ciência e as artes, redigido e publicado alguns anos antes do
segundo, é apenas um desenvolvimento deste; as teses expostas no
primeiro Discurso abordam apenas um aspecto derivado de uma questão
muito ampla que somente no segundo ganhou o aprofundamento devido.
Aqui o autor refere-se aos dois textos:

Se só o [primeiro] Discurso de Dijon excitou tantos murmúrios e causou


escândalo, o que teria acontecido se eu tivesse desenvolvido desde o
primeiro instante toda a extensão de um sistema verdadeiro mas aflitivo,
do qual a questão tratada neste [segundo] Discurso não é senão um
corolário?

O curioso é que o primeiro Discurso, apesar do prêmio conquistado, é


julgado severamente pelo próprio autor, que o considera carente de lógica e
de ordem e, dentre as suas obras, "a mais fraca de raciocínio". Por que então
ela provocou tanto escândalo, despertando intermináveis polêmicas e
celebrizando o seu autor logo no início da carreira?
A explicação está em que a tese defendida foi pouco palatável nesse século
tão orgulhoso de seus progressos e do refinamento de seus costumes.
Inesperadamente, eis que Rousseau investe com eloqüência e ousadia contra
esse "preconceito favorável" que seus contemporâneos têm a respeito de si
mesmos. Para o filósofo, não foi positiva a influência das Luzes ou dos
progressos nas artes e nas ciências a partir do Renascimento. Não é verdade,
diz, que os homens mais cultivados ou as nações em que as artes e as
ciências mais se aprimoraram sejam necessariamente melhores do ponto de
vista moral.
Nesse segundo Discurso é feito um virulento ataque contra a civilização: o
excesso de ciência e arte acaba por corromper o homem, tornando-o
hipócrita, acentuando e generalizando seu egoísmo, jogando uns indivíduos
contra os outros e, nessa corrida insaciável por mais comodidades, levando-
os a se enredar em uma cadeia infernal de relações de submissão. Nascidas do
orgulho humano e da humana ociosidade, as ciências e as artes acabam por
consolidar esses vícios, ensinando aos homens não o cumprimento de seus
deveres, mas a se enganarem mutuamente e melhor dissimularem suas
intenções puramente egocêntricas.
O principal resultado de todo o processo civilizatório consiste assim numa
cisão entre a região do ser e a do parecer. Os homens aparentarão, urbana
e polidamente, todas as virtudes sociais para melhor perseguir, por debaixo
do pano, seus objetivos puramente egoístas ou para melhor suplantar seus
22

rivais na eterna luta pela satisfação do seu amor próprio exclusivista.


Questionando nesses termos o papel das ciências e das artes, Rousseau
estabelece uma correlação necessária entre elas e a decadência dos costumes.

A radicalização da questão

Desafiado mais tarde por uma nova questão, Rousseau aprofundou essa
crítica da civilização. Depois de se referir aos princípios expostos no primeiro
Discurso, prossegue:

Logo tive ocasião de desenvolvê-los inteiramente numa obra de maior


importância; pois foi, acredito, neste ano de 1753 que apareceu o programa
da Academia de Dijon sobre a origem da desigualdade entre os homens.
Impressionado diante dessa grande questão, fiquei surpreso por ter essa
Academia ousado propô-la; mas, já que ela tivera essa coragem, podia eu
muito bem ter a de tratá-la e foi o que fiz.

Nessas condições — como diz um comentador, comparando as duas


questões e as duas respostas — "de um enunciado a outro o problema se
aprofunda", pois a "colocação em questão atinge a sociedade como tal, o
recurso à história se generaliza, o critério de juízo torna-se universal", de
tal maneira que o "segundo problema radicaliza o primeiro". O segundo
Discurso é considerado uma apresentação circunstanciada e raciocinada da
convicção que o primeiro Discurso proclamava com mais calor do que
clareza. Como se deu essa radicalização?
É o fato da desigualdade existente entre os homens que se propõe então
como objeto de meditação. A desigualdade é, com certeza, uma marca tão
saliente em nossa civilização que não dá para escondê-la. Em primeiro
lugar, os homens são diferentes, vivendo sob condições variadas e
formando povos distintos, com costumes e línguas próprios. Mas há, no
interior de cada sociedade, uma diferença muito mais notável, a que se
denomina desigualdade. Por exemplo: alguns são ricos e ostentam grande
fortuna; outros são pobres e até miseráveis. Há os que gozam de muitos
privilégios, de direitos exclusivos — como os nobres — simplesmente em
virtude de terem nascido dentro de uma determinada família. Há, ainda,
alguns que desempenham as mais altas funções de mando e pesam sobre as
decisões de interesse global, enquanto a outros — em geral a grande maioria
— está reservado o papel passivo de "governados".
Estamos pois, diante de um fato crucial em nossas sociedades. Um fato dotado
de valor estratégico do qual dependem todos os outros. Como diz
Rousseau: "A primeira fonte do mal é a desigualdade". Trata-se de u m
fato "natural" ou, ao contrário, será a desigualdade algo historicamente
contingente, que poderia não ter existido? Seriam os homens desiguais por
natureza, como pretendia Aristóteles (para quem alguns nasciam para
comandar e outros para obedecer)?
De acordo com Rousseau, a desigualdade não é um fato natural, ela não é
"autorizada" pela lei natural. Considerado em sua condição natural, o
homem não mantém relações de desigualdade com seus semelhantes. A
desigualdade, portanto, é socialmente produzida no decorrer da evolução
histórica da humanidade. É até possível marcar o momento de sua aparição
e determinar sua causa com precisão. O que Rousseau fez nesse Discurso foi
traçar a gênese da desigualdade, mostrar como ela se formou pouco a
23

pouco através de diferentes etapas, qual sua origem e como tudo isso se
relaciona com os demais fatos e fenômenos característicos da vida em
sociedade.

Objeto e método

Precedido por três importantes escritos introdutórios — dedicatória, prefácio


e exórdio — o "corpo" do Discurso divide-se em duas partes nitidamente
separadas. Completando argumentações em alguns pontos cruciais, temos
dezenove notas de rodapé, algumas bastante longas, nas quais são melhor
explicitadas algumas idéias principais.
Os dois escritos introdutórios cumprem função similar: o prefácio, escrito
depois de concluída a obra, funciona como uma avaliação geral; o exórdio
anuncia os desenvolvimentos posteriores. Em ambos se fixa a questão,
definindo-se o objeto do Discurso e se determina qual o método seguido.
O objeto é o estudo do homem. Para Rousseau, é preciso ir até a essência do
homem para poder julgar sua condição atual.
Em ambos os textos, conhecer o homem em sua natureza essencial é ir
além do existente daquilo que está historicamente dado, e ir em busca de
um estado inexistente. Seguindo os jurisconsultos da Escola do Direito
Natural e de Hobbes, o filósofo fala em estado de natureza, concebido como
uma condição pré-social, primitiva e originária.
Mas nosso autor faz uma crítica importante aos seus predecessores quanto
a seu método. De acordo com Rousseau, eles não foram suficientemente
radicais, e se detiveram a meio caminho na tentativa de reconstituir a
condição pré-social. Ao transportar para o homem primitivo atributos
próprios do homem que vive em sociedade, embora pensando que
desenham o retrato do homem natural, estão construindo uma projeção de
si mesmos. Sem perceber, pintam o seu auto-retrato. Quase todos, diz
Rousseau,. "falando sem cessar em carecimento, avidez, opressão, desejos e
orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tiraram da
sociedade" e, "falando do homem selvagem", estavam pintando "o homem
civil".
Era necessário mudar o procedimento. Deixemos de lado, propõe o autor, os
livros pretensamente científicos ou os fatos pretensamente estabelecidos e
voltemo-nos sobre nós mesmos. Guiados pelo princípio crítico da
radicalidade que postula o primitivo como o Outro absoluto em relação ao
homem civil, façamos um esforço para superar o fascínio narcísico pela
imagem do próprio ego. Meditando sobre as "primeiras e mais simples
operações da alma humana" — cujos vestígios ainda carregamos em nós
—, busquemos reconstituir a imagem perdida do primeiro homem. Na
primeira parte do Discurso, o autor se dedicou justamente à reconstrução
hipotética desse estado primitivo, enquanto na segunda buscou acompanhar o
processo que conduz até o estado atual.

Textos Selecionados

Moral e Religião

Os textos seguintes fazem parte da Profissão de fé do vigário de Sabóia.


Depois de ter assim deduzido, da impressão dos objetos sensíveis e do sentimento interior que
me induz a julgar as causas segundo minhas luzes naturais, as principais verdades que me
24

importava conhecer, resta-me procurar que máximas devo tirar disso para minha conduta e
que regras devo prescrever me para realizar meu destino na terra, segundo a intenção de quem
nela me colocou. Sempre seguindo meu método, não tiro essas regras dos princípios de uma
alta filosofia, mas as encontro no fundo de meu coração escritas pela natureza em caracteres
indeléveis. Basta consultar-me acerca do que quero fazer; tudo o que sinto ser bem é bem,
tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência. E é somente
quando negociamos com ela que recorremos às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos
os cuidados é o de si mesmo; no entanto quantas vezes a voz interior nos diz que, fazendo
nosso bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e
lhe resistimos; ouvindo o que diz a nossos sentidos, desprezamos o que diz a nossos corações; o
ser ativo obedece, o passivo comanda. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do
corpo. Será de espantar que amiúde essas vozes se contradigam? E que linguagem cumpre
então ouvir? Vezes demais a razão nos engana, temos mais do que o direito de recusá-la; mas a
consciência não engana nunca; ela é o verdadeiro guia do homem: está para a alma como o
instinto pai a o corpo; quem a segue obedece à natureza e não receia perder-se. Este ponto
importante, continuou meu benfeitor, vendo que eu ia interrompê-lo: deixai que eu me
detenha um pouco mais em esclarecê-lo.
Toda a moralidade de nossas ações está no julgamento que temos de nós mesmos. Se é
verdade que o bem seja bem, é preciso que se ache no fundo de nossos corações como em
nossas obras, e a primeira recompensa da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondade
moral está de conformidade com a nossa natureza, o homem não pode ser são de espírito nem
bem constituído senão à medida que é bom. Se não o é, e o homem é naturalmente mau, não
o pode deixar de ser sem se corromper, e a bondade não passa nele de um vício contra a nature
za. Feito para prejudicar seus semelhantes, como o lobo para esganar sua presa um homem
humano seria um animal tão depravado quanto um lobo piedoso; somente a virtude nos
deixaria remorsos.
Reflitamos, meu jovem amigo. Examinemos, pondo de lado qualquer interesse pessoal, a que
nos levam nossas inclinações. Que espetáculo nos agrada mais, o dos tormentos ou o da
felicidade alheia? Que nos é mais agradável fazer e nos deixa uma impressão mais
confortadora por o ter feito, um benefício a um ato de maldade? Por quem vos interessais
em vossos teatros? São os crime que vos dão prazer? São os autores punidos que vos
arrancam lágrimas? Tudo nos é indiferente, dizem, à exceção de nosso interesse; mas, ao
contrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos em nossas penas: e mesmo
en nossos prazeres, nós nos sentiríamos demasiado sós, demasiado miseráveis se não tivéssemos
com quem os partilhar. Se não há nada de moral no coração do homem, de onde lhe vêm
esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esse arroubos de amor pelas grandes
almas? Esse entusiasmo da virtude, que relação tem com nosso interesse particular? Por que
desejaria ser Catão rasgando as entranhas, de preferência a César triunfante? Tirai de nossos
corações esse amo ao belo e tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas vis paixões
abafaram em sua alma estreita esses sentimentos deliciosos; aquele que, à força de se
concentrar em si, chega a não amar senão a si mesmo, não tem mais transportes, seu co ração
gelado não palpita mais de alegria; uma doce ternura não umedece mais seus olhos; não
aprecia mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais; já está morto.

[Solidariedade]

Mas, por grande que seja o número dos maus na terra, há poucas almas tornadas insensíveis,
fora de seu interesse, a tudo o que é justo e bom. A iniqüidade só satisfaz à medida que nos
aproveitamos dela; no restante, ela quer que c inocente seja protegido. Se vemos na rua ou
num caminho qualquer um ato de violência e de injustiça, de imediato um movimento de
cólera e indignação se ergue do fundo de nosso coração e nos leva a tomar a defesa do
oprimido: mas um dever mais forte nos retém, e as leis nos tiram o direito de proteger a
inocência. Ao contrário, se presenciamos algum ato de clemência ou de generosidade, que
admiração, que amor nos inspira! Quem não se diz: gostaria de fazer o mesmo? Importa-nos
certamente muito pouco que um homem tenha sido mau ou justo há dois mil anos; e, no
entanto, o mesmo interesse nos afeta na história antiga, tal qual se tudo se passasse em
nossos dias. Que me importam os crimes de Catilina? Tenho medo de ser sua vítima? Por
que então tenho dele o mesmo horror que teria se fosse meu contemporâneo? Nós não
odiamos os maus apenas porque nos prejudicam, odiamo-los porque são maus. Não
somente queremos ser felizes, como queremos a felicidade alheia, e quando essa felicidade
não custa nada à nossa, ela a aumenta. Temos enfim, independentemente de nossa vontade,
piedade dos desgraçados; quando somos testemunhas de seu mal, sofremos. Os mais
perversos não podem perder inteiramente essa tendência que, amiúde, os põe em contradição
consigo mesmos. O ladrão que despoja os transeuntes ainda é capaz de cobrir a nudez do
pobre; e o mais feroz dos assassinos ampara um homem que desfalece.
Fala-se do grito dos remorsos, que pune em segredo os crimes ocultos e os põe tantas vezes
em evidência. Em verdade, quem dentre nós não ouviu nunca esta voz importuna? Falamos por
experiência; e desejaríamos abafar esse sentimento tirânico que nos dá tanto tormento.
Obedeçamos à natureza, e veremos com que doçura ela reina, e que encanto encontramos,
depois de a ter escusado, em darmos um bom testemunho de nós mesmos. O mau teme a si
25

próprio e de si foge; alivia-se jogando-se fora de si; deita em derredor olhares inquietos e
busca um objeto que o distraia; sem a sátira amarga, sem a zombaria insultante, estaria
sempre triste; o riso de escárnio é seu único prazer. Ao contrário, a serenidade do justo é
interior; seu riso não tem maldade e sim alegria; carrega-lhe a fonte em si mesmo; está tão
alegre sozinho como numa roda; não tira seu consentimento dos que se aproximam dele, e
sim lhos comunica.

[Justiça inata]

Deitai os olhos em todas as nações do mundo, percorrei todas as histórias.


Em meio a tantos cultos inumanos, e estranhos, em meio a essa prodigiosa diversidade de
costumes e de caracteres, encontrareis por toda parte as mesmas idéias de justiça e de
honestidade, as mesmas noções do bem e do mal. O antigo paganismo engendrou deuses
abomináveis, que teríamos punido aqui como celerados, e que só ofereciam para quadro da
felicidade supremos crimes a se cometerem e paixões a se satisfazerem. Mas o vício, armado
de uma autoridade sagrada, descia em vão de seu ambiente eterno, o instinto moral rejeitava-
o do coração dos humanos. Celebrando as orgias de Júpiter, admirava-se a continência de
Xenócrates; a casta Lucrécia adorava a impudica Vênus; o intrépido romano sacrificava ao
medo; invocava o deus que mutilou seu pai e morria sem murmurar nas mãos do dele; as mais
desprezíveis divindades foram servidas pelos maiores homens.
santa voz da natureza, mais forte que a dos deuses, fazia-se respeitar na terra, parecia relegar
ao céu o crime com os culpados.
Há portanto no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude de acordo com o
qual, apesar de nossas próprias máximas, julgamos boas ou más nossas ações e as alheias
e é a esse princípio que chamo consciência.
Encarando o ponto a que eu chegara como o ponto comum de que partiam rodos os crentes
para chegar a um culto mais esclarecido, não encontrava nos dogmas da religião natural
senão os elementos de qualquer religião. Eu considerava essa diversidade de seitas que reinam
sobre a terra e que se acusam mutuamente de mentira e de erro; eu me perguntava: qual a
boa? Cada qual me respondia: a minha. Cada qual dizia: só eu e meus partidários pensamos
certo; todos os outros erram. E como sabeis que vossa seita é a boa? Porque Deus o disse. E
quem vos disse que Deus o disse? Meu pastor que o sabe muito bem. Meu pastor disse-me de
acreditar assim e assim acredito: ele assegura-me que todos os que dizem de outra maneira
mentem, e eu não os escuto.
Como, eu pensava, não é a verdade uma só? E o que é verdade para mim pode ser falso para
vós? Se o método de quem segue o bom caminho e o de quem se perde é o mesmo, que mérito
tem ou que erro comete um mais do que outro? Sua escolha é efeito do acaso; imputar-lha é
iniqüidade, é recompensar ou punir por ter nascido em tal ou qual país. Ousar dizer que Deus
nos julga assim é ultrajar sua justiça.

[Religiões]

Ou todas as religiões são boas e agradáveis a Deus, ou, se há alguma que ele prescreva aos
homens e os castigue por desconhecê-la, ele lhe deu sinais certos e manifestos para ser
distinguida e conhecida como a única verdadeira. Esses sinais são de todos os tempos e de
todos os lugares, igualmente sensíveis a todos os homens, grandes e pequenos, sábios e
ignorantes, europeus, índios, africanos, selvagens. Se houvesse uma religião na terra, fora da
qual só houvesse pena eterna, e que em qualquer lugar do mundo um só mortal de boa-fé não
fosse impressionado por sua evidência, o deus dessa religião seria o mais iníquo e o mais
cruel dos tiranos.
Procuramos então sinceramente a verdade? Não concedamos nada ao direito do berço nem à
autoridade dos pais e dos pastores, mas submetamos ao exame da consciência e da razão
tudo o que nos ensinaram desde a infância. Podem gritar-me: submete tua razão; o mesmo
pode dizer-me quem me engana: preciso de razões para submeter minha razão.
Toda a teologia que posso adquirir de mim mesmo pela inspeção do universo, e pelo bom
emprego de minhas faculdades, limita-se ao que vos expliquei aqui. Para saber mais
cumpre recorrer a meios extraordinários. Tais meios não podem ser a autoridade dos homens,
porquanto nenhum homem sendo de espécie diferente da minha, tudo o que um homem
conhece naturalmente eu também o posso conhecer, e outro homem pode enganar-se tanto
quanto eu; quando acredito no que diz, não é porque o diz e sim porque o prova. O
testemunho dos homens não é portanto senão o de minha própria razão e nada acrescenta aos
meios naturais de conhecer a verdade, que Deus me deu.

Crítica da Vida em Sociedade

A política e a vida em sociedade ocupam um lugar central em todo o pensamento de Rousseau.


Como diz o filósofo nas Confissões, tudo se prende "radicalmente à política". O modo como os
homens vivem em sociedade e se relacionam uns com os outros e o modo como eles governam
26

ou regulam seus negócios e assuntos comuns é decisivo sob todos os pontos de vista e
determina sua felicidade ou infelicidade.
Os textos que seguem são extraídos do Discurso sobre a desigualdade, do Contrato social, do
Emílio e da Carta a d'Alembert sobre os espetáculos.
[Desigualdade]

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes:
"Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos e que a terra não pertence a ninguém!" Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas
já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa idéia
de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só poderiam ter nascido sucessi-
vamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazerem-se muitos
progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para
geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as
coisas de mais longe ainda e esforcemo-nos por ligar, de um único ponto de vista, em sua
ordem mais natural, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos(...)

[Acordos]

Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças o de suas


necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de
propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos,
as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de to dos, abafando a piedade natural e a
voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre
o direito do mais forte e o d primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e
assassinatos
A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano,
aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições
infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha,
abusando das faculdades que o dignificam(..
Não é possível que os homens não tenham, afinal, refletido sobre tão miserável situação e as
calamidades que os afligiam. Os ricos, sobretudo, com certeza logo perceberam quanto lhes
era desvantajosa uma guerra perpétua cujos gasto só eles pagavam e na qual tanto o risco da
sua vida como o dos bens partícula res eram comuns. Aliás, qualquer que fosse a
interpretação que pudessem da às suas usurpações, sabiam muito bem estarem estas
apoiadas unicamente num direito precário e abusivo e que, tendo sido adquiridas apenas pela
força, est. mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem que pudessem lamentar-se. Os enriquecido só
pela indústria não podiam basear sua propriedade em melhores títulos. Por mais que
dissessem: "Fui eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com meu trabalho", outros
poderiam responder-lhes: "Quem vos deu as demarcações por que razão pretendeis ser pagos
a nossas expensas, de um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de
vossos irmãos perece e sofre a necessidade do que tendes a mais e que vos seria necessário um
consentimento ex prenso e unânime do gênero humano para que, da subsistência comum, vos
apropriásseis de quanto ultrapassasse a vossa?" Destituído de razões legítimas para
justificar-se e de forças suficientes para defender-se, esmagando com facilidade um
particular, mas sendo ele próprio esmagado por grupos de bandidos, sozinho contra todos e
não podendo, dados os ciúmes mútuos, unir-se com seus iguais contra os inimigos unidos
pela esperança comum da pilhagem, o rico, forçado pela necessidade, acabou concebendo o
projeto que foi o mais excogitado que até então passou pelo espírito humano. Tal projeto
consistiu em empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, fazer de seus
adversários seus defensores, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes outras instituições que lhe
fo sem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural.
Com esse desígnio, depois de expor a seus vizinhos o horror de uma situação que os armava, a
todos, uns contra os outros, que lhes tornava as posses tão onerosas quanto o eram suas
necessidades, e na qual ninguém encontrava a segurança, fosse na pobreza ou na riqueza,
inventou facilmente razões especiosas para fazer com que aceitassem seu objetivo: "Unamo-
nos", disse-lhes, "para defendei os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a
cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos
quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que,
submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os
caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos,
reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e
defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham
em concórdia eterna" (...)
27

[Direito político]

O direito político está ainda por nascer, e é de se presumir que não nascerá nunca. Grotius,
o mestre de todos os nossos sábios na matéria, não passa de uma criança e, o que é pior,
de uma criança de má-fé. Quando ouço erguerem Grotius às nuvens e cobrirem Hobbes de
execração, vejo como poucos homens sensatos lêem ou compreendem tais autores. A verdade é
que seus princípios são exatamente semelhantes; eles só diferem quanto a expressões.
Diferem também pelo método. Hobbes apóia-se em sofismas, e Grotius nos poetas; o resto é-
lhes comum.
O único moderno em condições de criar essa grande e inútil ciência fora o ilustre
Montesquieu. Mas ele teve o cuidado de não tratar dos princípios do direito político;
contentou-se com tratar do direito positivo dos governos estabelecidos; e nada no mundo é
mais diferente do que esses dois estudos.
Entretanto quem quer julgar sensatamente os governos, como existem, é obrigado a reunir
ambos: é preciso saber o que deve ser para bem julgar o que é. A maior dificuldade para
esclarecer essas importantes matérias está em interessar um particular em discuti-las, em
responder a estas duas perguntas: que importa? e que posso fazer? Pusemos nosso Emílio em
condições de responder a ambas. (...)
Antes de observar, é preciso criar regras para as observações; é preciso uma escala para as
medidas que tomamos. Nossos princípios de direito político são essa escala. Nossas medidas
são as leis políticas de cada país.
28
29

C
omo ser ia então o homem natural? Há, no homem, uma
parte inata, que nasce com ele, que pertence a seu fundo
natural. Há também outra parte adquirida, produzida no
decorrer de sua evolução e em decorrência dela. C o m o
d i s t i n g u i r u m a d a o u t r a ? Para responder a essas questões
e reconstituir o retrato do homem em estado natural, "tal como deve ter
saído das mãos da natureza", Rousseau considerou três aspectos na
primeira parte do segundo Discurso. O homem será retratado
p
rimeiramente do ponto de vista físico, em seguida do ponto de vista
metafísico (palavra usada no sentido etimológico de "além do físico") e,
finalmente, do ponto de vista moral. Primeiro pergunta-se como poderia
ser o homem do ponto de vista da conformação de seu corpo e de suas
condições puramente materiais de vida. Em seguida, sobre as qualidades
ou atributos de sua "alma" e, afinal, sobre suas qualidades "psíquicas"
(como diríamos hoje) relativas à sua conduta diante dos semelhantes.

Do físico ao metafísico

Do ponto de vista físico, Rousseau vê o homem primitivo dotado de um


corpo vigoroso, menos forte do que alguns animais, porém mais ágil do
que outros e, no conjunto, organizado de maneira "vantajosa". Do ponto de
vista de suas condições de vida, ele o vê submetido a necessidades bastante
elementares, encontrando, por exemplo, seu "leito ao pé da mesma árvore"
que lhe fornece a refeição. Necessidades poucas e pouco esforço para a sua
satisfação: eis a condição primitiva.

Rousseau imagina o homem primitivo disperso ao longo da terra.


Poucos e espalhados pela vastidão do planeta, os homens quase não
mantêm entre si alguma espécie de contato. Achamo-nos diante de um
animal comparável aos outros, que vive em uma "solidão na abundância".
Ele vive em estado de isolamento e sem ter necessidade de recorrer a
qualquer esforço para arrancar de uma natureza pródiga os frutos necessários
à sua sobrevivência.

É somente quando ultrapassamos esse nível material e tentamos


penetrar no interior do homem que começamos a discernir as
características que lhe são específicas e o distinguem dos outros animais.
Tradicionalmente, a racionalidade do homem é considerada como a sua
diferença específica, aquilo que qualifica esse animal de maneira
exclusiva, distinguindo-o dos demais. Rousseau não negará que o homem
pensa, mas atribuirá à sua Razão um estatuto diferente do tradicional. A
capacidade de conceber idéias sobre as coisas não se acha dada em sua
plenitude; desde o início ela só se constituirá ao longo de um processo
laborioso. No homem primitivo, essa Razão de que tanto nos orgulhamos e
essa inteligência de que tanto dependemos só se encontram em estado
"virtual", como algo que ainda não se manifestou plenamente e que necessi-
ta de estímulo para se "atualizar", ou passar de uma condição como de sono
para a plena vigília. Quais seriam então as características realmente distintivas do
homem? Rousseau vê duas: a liberdade e a perfectibilidade.
Ora, o que significa dizer que o homem é livr e? Esta é a terceira
verdade fundamental a que nos conduz a Profissão de fé. Já no Discurso
30

essa qualidade aparece como um atributo humano por excelência. No caso do


animal, que atua de acordo com um mecanismo fixo, é como se a natureza
fizesse as suas operações. Livre, por ém, o homem concorre com a
natureza. O animal não pode afastar -se da "lei que lhe é prescrita, mes-
mo quando seria vantajoso fazê-lo"; já o homem, dado seu poder de
escolha, pode transgredir as leis, "mesmo em seu prejuízo":

A natureza comanda a todo animal, e a besta obedece. O


homem experimenta a mesma sensação, mas ele se reconhece livre
para aquiescer ou para resistir; e é sobretudo na consciência dessa
liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma...

A liberdade é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que revela


nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos.
Mas há ainda outra característica distintiva do homem que, combinada à sua
liberdade, vai levá-lo para longe da condição animal. É a faculdade de se
aperfeiçoar: a perfectibilidade. Essa faculdade, diz nosso autor, "com a
ajuda das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside
entre nós tanto na es p écie quanto no indivíduo, ao passo que um animal é, no fim
de
alguns meses, o que será durante toda a vida, e sua espécie, ao término de
mil anos, será o que ela era no primeiro ano desses mil anos". A fixidez da
espécie e do indivíduo no reino animal contrapõe-se à capacidade humana de
variação. Capaz de adquirir conhecimentos e de aprimorar ou sofisticar seu
equipamento básico —por exemplo, inventar a linguagem — o homem é um
ser peculiar que pode não apenas aquiescer ou não às prescrições da
natureza, mas, além disso, pode se autocriar, construir para si mesmo uma
segunda natureza, distante da primeira. E é fácil perceber que essa
faculdade "quase ilimitada" é a grande fonte, ao lado da liberdade, de
todas as infelicidades do gênero humano. Graças à perfectibilidade o
homem se afasta cada vez mais da tutela da natureza e acaba por desviar-se,
aventurando-se por caminhos que lhe serão funestos.

Amor de si e compaixão
Até aqui a "alma" humana foi considerada em r elação às suas
faculdades, por assim dizer, superiores, tal como eram qualificadas pela
filosofia desde Platão: a Razão e a vontade livre. Agora, Rousseau volta-se
para a consideração da energia propulsora, daquilo que faz o homem agir.
Quais seriam os apetites, os impulsos, os desejos primordiais, em uma
palavra, as paixões primitivas do homem?
Ao lado de sua inteligência potencial e da sua vontade livre, os homens
são ainda dotados de disposições que os impulsionam em determinadas
direções. É para atender às deter minações de suas paixões que o homem
age. Rousseau analisa a alma humana seguindo a mesma analogia que
vemos sintetizada de maneira tão precisa num verso do poeta inglês
Alexander Pope (1688-1744): "Se a razão é uma bússola, as paixões são os
ventos."
Que ventos conduzem, então, o homem primitivo?
31

São duas, segundo Rousseau, as paixões primitivas, que levam o homem a


agir. Em primeiro lugar, "meditando sobre as mais simples operações da
alma", é possível distinguir no homem um instinto de autoconservação que
o leva a buscar invariavelmente aquilo que lhe parece capaz de garantir sua
persistência na vida e evitar aquilo que lhe pode ser prejudicial: é o "amor de
si". Conceito central em toda a filosofia de Rousseau, o amor de si se
contrapõe ao "amor-próprio", sentimento ausente no coração do homem
primitivo e que é uma perversão do amor de si originário.
Ao lado do amor de si, há outro combustível natural da ação. É o que
Rousseau chama de pitié ou compaixão. É nessa paixão primitiva que
reside a fonte de todas as futuras virtudes sociais. Posteriormente desenvolvida,
uma vez consumado o laço social, ela se transformará na consciência ou no
instinto moral. Capacidade de sair de si e de se identificar com o outro é
por sua presença em nós que podemos, livrando-nos de nosso egoísmo de
civilizados, nos lançar na reconstrução da imagem do homem primitivo:

Há (...) um outro princípio (...) que, tendo sido dado ao


homem para amenizar, em certas circunstâncias, a ferocidade de
seu amor-próprio ou o desejo de se conservar, antes do
nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem por seu
bem-estar com uma repugnância inata em ver sofrer seu
semelhante.

(Aqui se nota certa imprecisão na terminologia. Em seguida, Rousseau


apresenta uma nota em que distingue rigorosamente o amor de si do amor-
próprio.)
A compaixão que vemos até mesmo nos animais, e que não se
confunde com o instinto de sociabilidade, leva cada indivíduo não a uma
associação ativa com o outro, mas a evitar causar-lhe um sofrimento que
repercutiria sobre si mesmo. Assim como o amor de si leva à conservação
do indivíduo, a pitié, faculdade de compartilhar o sofrimento alheio, é uma
espécie de instinto de conservação mútua da espécie.
Ao lado dessas duas paixões centrais, o autor considera outra: o instinto
de reprodução, ou impulso sexual. Sem desenvolver especialmente a questão,
Rousseau postula que, no estado primitivo, esse sentimento é puramente
físico. Nada vincula um indivíduo de um sexo a outro a não ser o puro
impulso momentâneo que, uma vez satisfeito, leva novamente cada qual
para seu lado e restitui o isolamento anterior. É só com o desenvolvimento dos
vínculos
sociais que esse sentimento, refinado, será acompanhado de preferência e
exclusividade e estará na origem de um vínculo constante. Mas é também
somente com a passagem para a sociedade que ele adquirirá uma
extraordinária intensidade, constituindo-se também na ocasião para tensões e
conflitos inteiramente ignorados até então.
Eis, pois, traçado o retrato por inteiro do homem natural. Vivendo
ociosamente e espalhado pela vastidão do planeta, cada indivíduo terá com
outro da mesma espécie contatos raros e passageiros. Não há como falar em
sociedade ou associação entre esta multiplicidade dispersa de existências
solitárias. Não há, também, como falar em desigualdade, já que todos, vivendo
sob condições praticamente idênticas, não têm nem mesmo possibilidade de
32

desenvolver aquelas diferenças — de forças, de habilidade, de idade — que


seriam de fato naturais, mas só poderão se exercer depois de abandonada a
inércia dessa condição primitiva.
Temos respondida uma primeira parte da pergunta formulada pela
Academia de Dijon. De acordo com a reconstituição da condição primitiva,
Rousseau, conclui que a desigualdade não é autorizada pela lei natural. Resta
indicar a fonte das desigualdades: é o que foi feito na segunda parte deste
segundo Discurso.

Antes e depois da propriedade


Fixado esse grau zero na evolução da espécie, cabe agora reconstituir o
processo ambivalente de transformações que, mediante a ação da
perfectibilidade, conduzirá a um desenvolvimento brilhante das faculdades
humanas e, ao mesmo tempo, a uma perversão de suas disposições
primitivas. De uma condição de integração com a natureza circundante e de
independência de seus semelhantes, o homem evoluirá para uma situação
de independência da natureza e de dependência em relação a outro homem.
Ao longo desse processo veremos, sob os pontos de vista físico, metafísico e
moral, o retrato já traçado sofrer uma desfiguração gradativa até se ajustar
às aparências do civilizado.
Por que o homem primitivo deixa seu útero, por que abandona seu
paraíso? É preciso supor a atuação de fatores externos a essa condição ou a
atuação de um acaso catastrófico que produz a alteração do estado de equilíbrio
anterior. (Imaginemos a ocorrência de grandes inundações ou tremor es de
terra que, ao mesmo tempo em que alteram as condições de vida na
região, levam a uma nova correlação entre os homens.) Colocando obstáculos
à sua sobrevivência e aproximando os homens uns dos outros, a catástrofe
cósmica funcionaria como desencadeadora de todo o processo. Sob o estímulo
dessas novas condições ambientais e em r esposta a elas, o mecanismo
da perfectibilidade foi acionado e os indivíduos encontraram a ocasião
propícia para o despertar de suas potencialidades. Eli-
minada a abundância primitiva, o indivíduo passou a ser abandonado às
próprias forças e sob o aguilhão das dificuldades de sobrevivência, viu-se
obrigado a um trabalho por meio do qual tentou extrair do meio circundante
os bens necessários que outrora eram gratuitamente colocados à sua disposição.
Entre o puro estado de natureza e o atual estado de civilização — os
dois termos de que agora dispomos — resta definir os graus intermediários
que marcaram momentos particularmente significativos nessa caminhada. Quais
seriam?
Rousseau fixou a origem da desigualdade dividindo a linha da
evolução em dois segmentos de iguais dimensões.
"O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto
é meu, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil". A instituição da
propriedade privada: eis o momento inaugural da sociedade e a primeira
fonte das desigualdades. Assim é que, antes desse momento inaugural,
temos um primeiro período que conduz do puro estado de natureza até a
sociedade e depois teremos um novo período no qual se fixam as diferentes
etapas da evolução da sociedade. Tanto nesse antes quanto nesse depois
serão fixados três graus principais que corresponderão, em cada período, a
33

três grandes revoluções.

O primeiro período
Nesse primeiro período, o homem ainda não atingiu o estado
propriamente social, mas, já afastado do equilíbrio estático primitivo,
resvalou para uma condição na qual é empurrado gradativamente para a
sociedade. É o período que alguns comentadores propõem que se denomine
estado de natureza histórico, que não deve ser confundido com o estado de
natureza descrito na primeira parte.

Surgidas então as primeiras dificuldades, o indivíduo deve recorrer à


própria iniciativa ou exercitar sua criatividade para aprender a vencê-las.
A altura das árvores, por exemplo, ou a concorrência dos outros animais,
levou-o a exercícios corporais. As condições climáticas — os longos
invernos ou os longos verões — levaram-no a uma nova indústria: alguns
inventaram a pesca, e outros, em condições diferentes, a caça.
Se considerarmos a figura do próprio homem, vamos perceber
alterações. Ao animal limitado às puras sensações que era o primitivo
puro, vemos suceder um indivíduo novo, que já é capaz de estabelecer
relações entre as coisas e que já se acha dotado de uma espécie de
reflexão ou "uma prudência maquinal que lhe indica precauções as mais
necessárias à sua segurança". Surge, portanto, um conhecimento maior de si
mesmo e concomitante conhecimento maior de seu semelhante enquanto tal.
Finalmente, quanto às relações entre os homens, com base nas
observações que o indivíduo agora é capaz de fazer sobre seu semelhante, criam-
se as condições para a instauração de um verdadeiro vínculo. Na condição
anterior, o que predominava era a ausência de vínculos.

Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o


único móvel das ações humanas, ele se encontrou em estado de
distinguir entre as ocasiões raras em que o interesse comum devia
fazê-lo contar com a assistência de seus semelhantes e aquelas
mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer com que
desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou,
quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não
obrigava ninguém e só durava tanto quanto a necessidade
passageira que a reunira.
34

Este é então o primeiro momento neste período e pode ser definido


como o das associações livres: nele vemos o esboço ou o germe de uma
sociedade.
Mas ainda nos achamos muito longe de um vínculo social efetivo, já que
a ligação, além de descompromissada, é inteiramente fugaz, esgotando-se
com a própria realização do objetivo para o qual se estabeleceu.
Daí por diante, com base nos desenvolvimentos anteriores, os progressos
se acumularão e darão lugar a uma nova revolução e a uma segunda etapa.
Trata-se a princípio de uma revolução técnica: a construção de cabanas. Ela
é concomitante e correlativa a uma mudança no vínculo social: graças às
condições materiais constituídas pela construção de cabanas, criam-se as
famílias. À dispersão, que comandava o relacionamento até mesmo entr e
pais e filhos, sucederá um vínculo mais duradouro entre indivíduos que
passam a compartilhar de um mesmo espaço de habitação. Novas "luzes" e
novos sentimentos — como o amor conjugal e o amor paterno — vão compondo
um novo figurino humano.
A terceira etapa será caracterizada como a da sociedade começada.
Levadas por circunstâncias fortuitas e vivendo numa permanente
vizinhança, as famílias acabam por se reunir e formar bandos mais
permanentes e, afinal, uma nação particular, unida por costumes e não por
regulamentos e leis. Esse momento de juventude do mundo, que
corresponde mais ou menos ao grau em que chegou a maioria dos povos
selvagens que nos é conhecida, constitui a época mais feliz e melhor para o
homem, já que se situa em um justo meio entre a indolência do estado
primitivo e a petulante atividade de nosso amor-próprio.
Reconstituindo assim o primeiro segmento, já vemos instalado o
processo de diferenciações, mas não ainda a desigualdade. Sua origem só se
dará a partir de agora.

Transição para o estado civil


É com a introdução da propriedade que esse estado de juventude será
destruído. E começa a ser elaborada a idéia de propriedade, de que algo me
pertence com exclusividade, de que posso dispor de algo em condições
absolutas, com exclusão de todos os demais. Estas também me excluem da
posse e do uso dos bens de que se imaginam proprietários. A noção de
propriedade não é uma idéia inata que acompanha o homem desde os
tempos primitivos, mas é uma idéia adquirida, resultante de um
aperfeiçoamento das "luzes". A partir de deter minado momento, os
homens que nada possuíam de seu e tudo partilhavam no seio da tribo,
passaram a manter sob seu domínio exclusivo os frutos de seu trabalho ou a
terra que trabalham.

Enquanto se dedicavam a uma economia de subsistência que


não necessita do concurso uns dos outros, os selvagens viviam não
só felizes como se bastavam a si mesmos e ignoravam a propriedade.
Essa situação não pôde persistir diante do aparecimento de
novos obstáculos ou da acumulação de novas "luzes". Uma no-
va revolução tecnológica teve lugar: a invenção da agricultura e a
da metalurgia. O ferro e o trigo é que "civilizaram os homens e
35

perderam o gênero humano". Da invenção dessas artes, medianteas quais se


intervém de maneira insuspeitada no curso dos processos naturais, brotou
como conseqüência inevitável a divisão do trabalho e a propriedade privada,
"pois desde que foram necessários homens para fundir e forjar o ferro,
foram necessários outros homens para nutrir aqueles". Para subsistir, os
indivíduos passaram a depender do trabalho alheio. O novo vínculo se
constitui mediante a troca dos produtos que são objeto de uma apropriação
exclusiva. Mas é também dessa apropriação excludente que as disparidades
vão se nutrir e a partir dela é que poderão fortalecer-se as desigualdades,
apoiadas nas próprias variedades ambientais e nas diferenças naturais entre
os proprietários. Alguns, por exemplo, serão capazes de acumular mais
riquezas do que outros.

São essas transformações, conseqüência da apropriação privada dos


meios de produção e dos frutos do trabalho, que exigirão e conduzirão
inevitavelmente ao ingresso propriamente dito na sociedade civil. Esse
momento de transição é caracterizado por Rousseau em ter mos próximos
aos de Hobbes, como um "estado de guerra" generalizado, que ameaça a
própria sobrevivência da humanidade. (Para Hobbes, esse estado de guerra
é um estado natural.) Com a instituição da propriedade privada e
conseqüente desigualdade, cria-se entre ricos e pobres um estado permanente
de desavença e uma verdadeira "luta de classes". (Rousseau na() utilizou
essa expressão.)
Elevava-se entre o direito do mais forte e o direito do
primeiro ocupante, um conflito perpétuo que não terminava a não
ser por meio de combates e de assassínios. A sociedade nascente
deu lugar ao mais horrível estado de guerra: o gênero humano,
envilecido e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às
aquisições infelizes que fizera, e trabalhando somente para sua
vergonha, para o abuso das faculdades que o honram, pôs-se a
si mesmo nas vésperas de sua ruína.

Para pôr fim a essa guerra generalizada e impedir a ruína, surge


entre os homens a idéia de um acordo, um "pacto social", que estabeleça
leis e regulamentos que todos se obriguem igualmente a respeitar. Eis então
instituída a sociedade. Eis constituída uma ordem social que, acima dos
interesses antagônicos, deverá resguardar os interesses superiores de todos
os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem
e o acordo, substitui a guerra pela paz social. Isso, ao menos,
teoricamente. Na realidade, a instituição de uma ordem legal, ao mesmo
tempo em que promove a paz, legitima a propriedade privada e dá respaldo
às desigualdades existentes.
A partir daí e seguindo o mesmo mecanismo já apontado, mais duas
etapas caracterizam a evolução das relações sociais e conduzem até o ponto
em que nos encontramos:

Se seguirmos o avanço das desigualdades nessas diferentes


revoluções, verificaremos que seu primeiro termo se constituiu no
estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição do
governo é o segundo termo; o terceiro e último termo é a
transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o
36

estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de


poderoso e de fraco, pela segunda; pela terceira, o de senhor e
escravo, que é o último grau da desigualdade e o termo em que
todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam
completamente o governo ou o aproximem da instituição legítima.
Ao término dessa genealogia vemos como o autor responde de maneira
sistemática e completa à questão sobre a desigualdade. Mas ele vai além da
questão e propõe uma complexa hipótese teórica a respeito da gênese e do
desenvolvimento das relações sociais. Mostrando como os progressos da
desigualdade são concomitantes e correlativos aos progressos da vida em
sociedade, Rousseau nos fornece uma teoria da sociedade e uma visão da
história.
Agora podemos apreciar melhor o sentido das críticas de Rousseau à
civilização: o progresso das "luzes", o aumento das desigualdades e a
corrupção das paixões primitivas são partes de um só processo. O "amor-
próprio", paixão que acaba por predominar no homem civilizado, é a
grande criação, considerando-se o ponto de vista moral. É essa paixão
destruidora que responde, em última instância, pelo estado de verdadeira
alienação, de saída de si e da própria órbita que caracterizará a vida na sociedade
"civilizada". Transformando-se em verdadeiro "furor de se distinguir", essa
paixão leva o civilizado a prezar acima de tudo as honrarias, a reputação e a
opinião alheia. Retomando uma fórmula expressiva do filósofo: enquanto o
selvagem "vive em si mesmo", o "homem sociável", sempre fora de si, só
sabe viver baseando-se na opinião dos demais.
37

Textos selecionados

Desigualdade natural ou política

Nos trechos seguintes, vemos operando, de


maneira mais pormenorizada, a mesma lógica que
opõe incessantemente os termos natureza e
sociedade. Estamos sempre às voltas com a idéia
de um fundo original constitutivo do homem e da
corrupção e da alteração que lhe é imposta ao longo
do tempo pela consolidação das ligações sociais
entre os homens. Os textos são extraídos do
Discurso sobre a origem da desigualdade.

Deixando de lado, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens
como eles se fizeram, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma
humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa
profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação, e outro nos inspira uma
repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos
semelhantes. Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois
princípios, sem que seja necessário nela imiscuir o da sociabilidade, parecem-me decorrer
todas as regras do direito natural, regras essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer
com outros fundamentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega a ponto de
sufocar a natureza.

*******

(...) É do homem que devo falar e a questão que examino me diz que vou falar a homens,
pois não se propõem questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade.
Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que me
convidam a fazê-lo, e não ficarei descontente comigo mesmo se me tornar digno de meu assunto
e de meus juízes.
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou
física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde,
das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; outra, que se pode chamar de
desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e é estabelecida ou,
pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de
que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e home-
nageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles.
Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural, porque a resposta estaria
enunciada na simples definição da palavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de
qualquer ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras palavras, seria
perguntar se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem e se a
força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude sempre se encontram, nos mesmos
indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza: tal seria uma boa questão para discutir
entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres,
que procuram a verdade.
De que se trata, pois, precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das coisas,
o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar
por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a
comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real.
Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade
de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou até lá. Uns não hesitaram em
supor no homem, nesse estado, a noção do justo e do injusto, sem preocupar-se em mostrar
que ele deveria ter essa noção, nem que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural,
38

que cada um tem, de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por
pertencer. Outros, dando inicialmente ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, logo
fizeram nascer o governo, sem se lembrar do tempo que deveria decorrer antes que pudesse
existir entre os homens o sentido das palavras autoridade e governo. Enfim, todos, falando
incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o
estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem
e descreviam o homem civil. Não chegou mesmo a surgir, no espírito da maioria dos nossos,
a dúvida quanto a ter existido o estado de natureza, conquanto seja evidente, pela leitura
dos livros sagrados, que, tendo o primeiro homem recebido imediatamente de Deus as luzes e
os preceitos, não se encontrava nem mesmo ele nesse estado e que, acrescentando aos escritos
de Moisés a fé que lhes deve todo filósofo cristão, é preciso negar que, mesmo antes do
dilúvio, os homens jamais se tenham encontrado no estado puro de natureza, a menos que
não tenham tornado a cair nele por causa de qualquer acontecimento extraordinário —
paradoxo bastante difícil de defender e completamente impossível de provar.

Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão. Não
se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste assunto, como verdades
históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a
esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem e semelhantes àquelas
que, todos os dias, fazem nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer
que, tendo o próprio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da Criação, são
eles desiguais porque assim o desejou; ela não nos proíbe, no entanto, de formai conjeturas
extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se
teria transformado o gênero humano se fora abandona do a si mesmo. Eis o que me
perguntam e o que me proponho a examinar neste Discurso. Interessando meu assunto ao
homem em geral, esforçar-me-ei por em pregar uma linguagem que convenha a todas as
nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares para só pensar nos homens a quem
falo, supor-me-ei no Liceu de Atenas, repetindo as lições de meus mestres, tendo os Platões e os
Xenócrates como juízes e o gênero humano como ouvinte.
Ó, homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, ouve-me; eis
tua história como acreditei tê-la lido não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos,
mas na natureza, que jamais mente. Tudo o que estiver nela será verdadeiro; só será falso
aquilo que, sem o querer, tiver misturado de meu. Os tempos de que vou falar são muito
distantes; como mudaste! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que vou descrever de
acordo com as qualidades que recebeste, e que tua educação e teus hábitos puderam falsear,
mas não puderam destruir. Há, eu sei, uma idade em que o homem individual gostaria de pa-
rar; de tua parte, procurarás a época na qual desejarias que tua espécie tivesse parado.
Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz posteridade
maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de retrogradar. Tal desejo deve
constituir o elogio de teus primeiros antepassados, a crítica de teus contemporâneos e o temor
daqueles que tiverem a infelicidade de viver depois de ti.

[Instinto e liberdade]

(...) Até aqui levei em consideração somente o homem físico; esforcemo-nos por encará-lo,
agora, em seu aspecto metafísico e moral.
Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu
sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto
tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem
executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro, por um ato
de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo
quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, freqüentemente se afasta
dela. Assim, um pombo morreria de fome perto de um prato cheio das melhores carnes, e
um gato sobre um monte de frutas ou de sementes, embora tanto um quanto outro
pudessem alimentar-se muito bem com o alimento que desdenham, se fosse atilado para
tentá-lo; assim, os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte,
porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade ainda fala quando a natureza se cala.
Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até
certo ponto, e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns
filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do
39

que entre um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento quanto a
qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção
específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre
a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na
consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo
modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer,
ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente
espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica.

[Perfectibilidade]

Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um
instante de causar discussão sobre diferença entre homem e animal, haveria uma outra
qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver
contestação: é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias,
desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto
no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida,
e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por
que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado
primitivo e — enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder,
fica sempre com seu instinto — o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros
acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais
baixo do que a própria besta? Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que essa
faculdade, distintiva e quase ilimitada, fonte de todos os males do homem, seja ela que,
com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranqüilos e inocentes; que
seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus
vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter
de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco
o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo menos, lhes
asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.
O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez,
compensado do que lhe falta por faculdades capazes de a princípio supri-lo e depois elevá-lo
muito acima disso, começará, pois, pelas funções puramente animais. Perceber e sentir será
seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não querer,
desejar e temer serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma, até que novas
circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos.

*******

Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si
qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem
maus ou possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando essas palavras num sentido físico,
se considerem como vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria
conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderia
chamar de mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza.
Sem nos afastarmos do senso comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos
fazer de uma tal situação e desconfiar de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se
tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados; ou se suas
virtudes são mais proveitosas do que funestos seus vícios; ou se o progresso de seus
conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se causam mutuamente à
medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não estariam, na melhor
das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a esperar de
ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a receber
tudo daqueles que nada se obrigam a lhe dar.

[Hobbes]

Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia da
bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a
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virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes serviços que não crê dever-lhes; nem
que, devido ao direito que se atribui com razão relativamente às coisas de que necessita,
loucamente imagine ser o proprietário do universo inteiro. Hobbes viu muito bem o defeito
de todas as definições modernas de direito natural, mas as conseqüências, que tira das
suas, mostram que o toma num sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os
princípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele
no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era,
conseqüentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz
justamente o contrário por ter incluído, inoportunamente, no desejo de conservação do
homem selvagem a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da
sociedade e que tornaram as leis necessárias. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta
saber se o homem selvagem é uma criança robusta. Mesmo que se concordasse com ele, que
se concluiria? Que, sendo esse homem, quando robusto, tão dependente dos outros quanto
quando fraco, não haveria espécie alguma de excessos a que não se entregasse; que bateria
em sua mãe quando tardasse muito a dar-lhe o peito, que estrangularia um de seus irmãos
mais moços quando o incomodasse, que morderia a perna de um semelhante quando
estivesse ferido ou perturbado. Constituem, porém, duas suposições contraditórias ser, no
estado de natureza, robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente e, antes de
ser robusto, se emancipa. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de
usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impede também de abusar de suas
faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são
maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento
das luzes, nem o freio da lei, mas a tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício que os
impedem de proceder mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his
cognitivo virtutis.

[Piedade]
Há, aliás, outro princípio que Hobbes não percebeu: é que, tendo sido dado ao homem, em
certas circunstâncias, suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou o desejo de conservação
antes do nascimento desse amor, tempera, com uma repugnância inata de ver sofrer seu
semelhante, o ardor que consagra ao seu bem-estar. Não creio ter a temer qualquer
contradição, se conferir ao homem a única virtude natural que o detrator mais acirrado das
virtudes humanas teria de reconhecer. Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão
fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil
ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias
bestas às vezes são dela alguns sinais perceptíveis. Sem falar da ternura das mães pelos
filhinhos e dos perigos que enfrentam para garanti-los, comumente se observa a repugnância
que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de
um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os
mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível
espetáculo que o impressiona. Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das abelhas forçado a
reconhecer o homem como um ser compassivo e sensível, sair, no exemplo que nos dá, de seu
estilo frio e sutil para oferecer-nos a imagem patética de um homem aprisionado que descobre
lá fora uma besta feroz arrancando um filho do seio de sua mãe, estraçalhando com os dentes
assassinos seus fracos membros e rasgando com as unhas as entranhas palpitantes dessa
criança. Que agitação tremenda não experimenta essa testemunha de um acontecimento pelo
qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústias não sofre com esse espetáculo, sem
poder levar socorro algum à mãe desfalecida ou à criança moribunda!
Tal o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força da
piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir,
porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se e chorar por causa
das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo que, se estivesse no lugar do tirano,
agravaria ainda mais os tormentos de seu inimigo, como o sanguinário Sila, tão sensível
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aos males que não tinha causado, ou aquele Alexandre de Fers, que não ousava assistir à
representação de uma tragédia, temendo que o vissem chorar com Andrômaca e Príamo,
enquanto ouvia sem emoção os gritos de tantos cidadãos que, por sua ordem, eram
degolados cada dia.

Mollissima corda
Humano generi dare se natura fatetur, Quae
lacrymas dedit.

"A natureza, dando-lhe lágrimas, reconhece que deu ao gênero humano corações
muito ternos." Juvenal, Sátira XV, verso 131.

Mandeville compreendeu muito bem que, com toda a sua moral, os homens jamais
passariam de uns monstros se a natureza não lhes tivesse conferido a piedade para apoio da
razão; não compreendeu, no entanto, decorrerem somente dessa qualidade todas as virtudes
sociais que quer contestar nos homens. Com efeito, que são a generosidade, a clemência, a
humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie humana em
geral? Até a benquerença e a amizade são, bem entendidas, produções de uma piedade
constante fixadas num objeto especial, pois desejar que alguém não sofra não será desejar que
seja feliz? A ser verdadeiro que a comiseração não passa de um sentimento que nos coloca no
lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas
fraco no homem civil, que importará tal idéia para a verdade do que digo, senão para dar-lhe
mais força? A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais
intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é evidente que
essa identificação deve ser infinitamente mais íntima no estado de natureza do que no estado
de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem
voltar-se sobre si mesmo; separa-o de quanto o perturba e aflige. É a filosofia que o isola;
por sua causa, diz ele, em segredo, ao ver um homem sofrendo: "Perece, se queres; quanto a
mim, estou seguro". Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranqüilo
do filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar um seu semelhante sob sua
janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para
impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que se assassina. O
homem selvagem de modo algum possui esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de
razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimentode humanidade.
Nos motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a canalha, as
mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se
degolarem mutuamente.

Surge a sociedade
Até agora nos foi mostrado o homem tal como é essencialmente, em seu estado original,
antes das alterações por ele sofridas uma vez abandonada essa condição primitiva. A seguir,
Rousseau nos mostra as sucessivas alterações que ocorrem a partir do momento em que as
relações sociais se estabilizam.
O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, sua primeira preocupação a de
sua conservação. As produções da terra forneciam-lhe todos os socorros necessários, o
instinto levou-o a utilizar-se deles. Como a fome e outros apetites o fizessem experimentar
sucessivamente novas maneiras de existir, houve um que o convidou a perpetuar sua espécie,
e essa tendência cega, desprovida de qualquer sentimento do coração, não engendrou senão
um pacto puramente animal; uma vez satisfeita a necessidade, os dois sexos não se
reconheciam mais e o próprio filho, assim que pôde viver sem a mãe, nada mais significava para ela.
Essa foi a condição do homem nascente; essa foi a vida de um animal limitado
inicialmente às sensações puras que, tão-só se aproveitando dos dons que a natureza lhe
oferecia, longe estava de pensar em arrancar-lhes alguma coisa. Mas logo surgiram dificuldades
e impôs-se aprender a vencê-las; a altura das árvores, que o impedia de alcançar os frutos, a
concorrência dos animais que procuravam nutrir-se deles, a ferocidade daqueles que lhe
ameaçavam a própria vida, tudo o obrigou a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso
tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos
de árvore e as pedras, logo se encontraram em sua mão. Aprendeu a dominar os obstáculos da
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natureza, a combater, quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com
os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. (...)

!Primeiras ligações]

Tudo começa a mudar de aspecto. Até então errando nos bosques, os homens, ao
adquirirem situação mais fixa, aproximam-se lentamente e por fim formam, em cada região,
uma nação particular, una de costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas, sim,
pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima. Uma
vizinhança permanente não pode deixar de, afinal, engendrar algumas ligações entre as
famílias. Jovens de sexo diferente habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro, exigido
pela natureza, logo induz a outro, não menos agradável e mais permanente, pela freqüentação
mútua. Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente,
adquirem-se idéias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força
de se verem, não podem mais deixar de novamente se verem. Insinua-se na alma um
sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso; com o amor surge o
ciúme, a discórdia triunfa e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano.

À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram


em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se estendem e os laços
se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma
árvore grande; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a
distração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um
começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima
pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o
mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo
tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de
um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação
determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à
inocência.

*******

Descobrindo e seguindo, desse modo, os caminhos esquecidos e perdidos que levaram


o homem do estado natural ao estado civil, restabelecendo, com auxílio das posições
intermediárias que acabo de assinalar, aqueles que o tempo premente me fez suprimir ou a
imaginação não me sugeriu, qualquer leitor atento deverá impressionar-se com o espaço
imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão de coisas que encontrará a
solução de uma infinidade de problemas de moral e de política, que os filósofos não podem
resolver. Compreenderá que o gênero humano de uma época não sendo o gênero humano de
outra, esta é a razão por que Diógenes não encontrava um homem, pois ele procurava entre
seus contemporâneos o homem de uma época já passada. Catão, dirá ele, pereceu com Roma
e com a liberdade, porque se encontrava deslocado no seu século e o maior dos homens
simplesmente surpreendeu o mundo que deveria ter governado quinhentos anos antes. Em
uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas, alternando-se insensivelmente,
mudam, por assim dizer, de natureza; por que nossas necessidades e nossos prazeres mudam
de objeto com o decorrer dos tempos; por que, desaparecendo gradativamente o homem
natural, a sociedade só oferece aos olhos do sábio uma reunião de homens artificiais e de
paixões factícias que são obra de todas essas relações novas e não têm nenhum fundamento na
natureza.

[O selvagem e o civilizada]

O que a reflexão nos ensina a esse propósito a observação o confirma perfeitamente: o


homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto
nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao
desespero. O primeiro só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na
ociosidade, e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença por
qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se
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sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no
seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a
imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para
obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção
deles, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de
partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um caraíba os trabalhos penosos e invejados de
um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente, ao
horror de uma tal vida que freqüentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem
proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras
poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de
homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos
mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. Tal, com efeito, a verdadeira causa
de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de
si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria
existência quase que somente pelo julgamento destes. Não cabe no meu assunto mostrar
como de uma tal disposição nasce tamanha indiferença pelo bem e pelo mal, com tão belos
discursos sobre a moral; como, reduzindo-se às aparências, tudo se torna artificial e
representado, seja a honra, a amizade, a virtude, freqüentemente mesmo os próprios vícios
com os quais por fim se encontra o segredo de se glorificar; como, em uma palavra,
perguntando sempre aos outros o que somos e não ousando jamais interrogar-nos a nós
mesmos sobre esse assunto, em meio a tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas
sublimes, só temos um exterior enganador e frívolo, honra sem virtude, razão sem sabedoria
e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado não ser esse, em absoluto, o estado original do
homem e que unicamente o espírito da sociedade e a desigualdade, que ela engendra, é que
mudam e alteram, desse modo, todas as nossas inclinações naturais.

Esforcei-me por expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o


abuso das sociedades políticas, quanto possam essas coisas deduzir-se da natureza do homem
unicamente pelas luzes da razão e independentemente dos dogmas sagrados, que dão à
autoridade soberana a sanção do direito divino. Conclui-se dessa exposição que, sendo quase
nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas
faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças
ao estabelecimento da propriedade e das leis. Conclui-se, ainda, que a desigualdade moral,
autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não
ocorre, juntamente e na mesma proporção, com a desigualdade física — distinção que
determina suficientemente o que se deve pensar, a esse respeito, sobre a espécie de
desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da
natureza, seja qual for a maneira por que a definamos, uma criança mandar num velho, um
imbecil conduzir um sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto
à multidão faminta falta o necessário.
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45

N
ão há dúvida de que uma visão como a de Rousseau sob r e a
h is t ór ia hu ma na é p r o f u nda ment e n ega t i va . P ois o qu e
é, a f ina l, es s e long o pr oces s o de ev olu çã o s enã o a
gên es e d e nos s os víci os e d os nos s os ma les e a nos s a
hist ór ia, s enã o u m movi ment o de qu eda, ta l como no r e-
lato bíblico? Expulso do Paraíso, o homem está condenado a ser o lobo do
homem. Todo esse pessimismo histórico, pelo menos, salva o homem e sua
natureza essencial. O próprio homem enquanto homem é absolvido ao
término de todo esse laborioso exame crítico. Ao pessimismo histórico
contrapõe-se um otimismo antropológico. Significa então que nem tudo está
perdido? De fato, se é ao mau uso da liberdade humana no convívio com os
semelhantes que podemos atribuir o desvio constatado, não será possível
tentar um recomeço, construir uma nova história? Não seria possível, ao
menos em teoria, imaginar uma sociedade diferente, conceber outros pactos,
outras instituições sociais, outras leis, outras formas de governo, outras
relações de produção que conduzissem o homem a um reencontro consigo
mesmo? É para algumas dessas questões que, depois da parte negativa da
sua obra, Rousseau se viu impelido. Do esforço para resolvê-las brotaram
algumas outras obras-primas, e o século XVIII viu surgirem algumas das
instituições filosóficas que mais decisivamente marcaram a história política
do Ocidente.

No ano de 1762 foram publicadas, e logo anatematizadas pelas


autoridades do Antigo Regime, as duas outras obras principais de Rousseau,
nas quais, depois da crítica demolidora, ele se consagra às propostas de
reconstrução: o Contrato social e o Emílio. De dimensões diferentes, elas
abordam aspectos diferentes do problema. No Contrato, o problema é a
organização política global da sociedade; o Emílio trata das possibilidades
pedagógicas de livrar um indivíduo da corrupção circundante. As duas
perspectivas se articulam e se completam.

O direito político
O Contr ato é um "pequeno tr atado" extr aído
de u ma obra bem mais vasta que se intitularia
Instituições po]íticas, com a qual o autor diz ter
sonhado a vida toda, mas que não chegou a
completar e acabou por destruir, dela
conservando apenas esse pequeno extrato.
Provocando muita repulsa e grande controvérsia, e
após ter sido proibido em Paris e queimado em
Genebra, o livro não cessou de ampliar sua influência,
ganhando sucessivas edições e acabando por se
converter no grande evangelho dos revolucionários
de 1789.
Dividido em quatro partes — que o autor
chamou de "livros" — o Contrato tem como
subtítulo: "Princípios do direito político". Nele
encontramos uma determinação da essência da
sociedade política justa e eficaz, uma caracterização de
suas formas principais e uma definição das leis
essenciais do seu funcionamento. Quais os princípios, os critérios fundamentais a
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partir dos quais podem ser avaliados e julgados os governos, a conduta dos
governantes e as relações dos homens entre si em uma sociedade? Se o grande
problema das sociedades que temos diante de nós é a desigualdade e a opressão, a
questão agora poderia ser formulada assim: "Em que condições é possível
existir uma sociedade na qual se realize o máximo de liberdade e o máximo
de igualdade?". Esses dois valores, porém, só se explicitarão depois.
No início do Contrato o problema é definido em termos diferentes:
Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de
administração legítima e segura, tomando os homens como são e as
leis como podem ser.
Os "princípios do direito político" serão assim um instrumento de
medida que nos permitirá avaliar as sociedades políticas existentes. No
primeiro livro, constituído de nove capítulos, é definida essa regra
fundamental. Nos livros subseqüentes é mostrado como a regra funciona, ou
como são extraídas conseqüências quanto à estrutura ou ao funcionamento do
corpo político.
Este é um problema análogo ao do segundo Discurso: assim como antes
se procurava determinar a essência do homem para bem julgar a respeito
de seu "estado presente", pretende-se agora captar a essência da sociedade
política para bem julgar a respeito das sociedades existentes. Mas atenção:
Rousseau não se dedica apenas ao problema teórico da justiça, mas está
preocupado em ver de que modo justiça e utilidade podem ser
conciliadas. Não se trata de ver em termos ideais como seria uma
sociedade concebida segundo a justiça, mas de conciliá-la com o plano do in-
teresse, sabendo-se que os homens, tais como são, governam-se pelo princípio
da utilidade ou do amor de si. Não se trata de conceber uma sociedade
apenas segundo os imperativos do "dever ser" ou da moral pura, mas uma
sociedade humanamente viável que sintetize de maneira harmoniosa as
exigências da justiça com as exigências materiais de bem viver.

O poder político em questão

"O homem nasceu livre", lemos no início do Contrato. Mas "por toda
parte ele se acha sob grilhões". Essa contradição é o motor principal da
investigação. Posta agora em termos políticos, ela continua operando por meio
do jogo entre dois termos que se contrapõem: a natureza, definida como espaço
de liberdade, e a sociedade, denunciada como uma vasta rede, uma ampla teia
de relações de dependência. "Como se deu essa mudança? Ignoro-o. O que
é que pode torná-la legítima? Eu acredito poder resolver essa questão".
Uma problemática preliminar: como explicar esse fato, à primeira vista
chocante, da dependência generalizada? Em que condições é possível
conceber uma dependência legítima? O que legitima uma autoridade
política? Qual é o fundamento do poder político? Sob que títulos poderá
uma autoridade exigir respeito? Sob que títulos a obediência a uma
autoridade política pode ser justificada? Questões explosivas que se renovam
desde os albores do pensamento político e que, desde o século XVII, adquiriram
aguda intensidade. Com efeito, é a partir do século anterior ao de Rous-
seau, em particular com Locke, que começam a se questionar radicalmente as
bases do poder político: é o "assalto contra o absolutismo". A autoridade
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monárquica, que até então parecia impor-se naturalmente, deve agora ser
fundada na Razão. Mesmo em um autor como Hobbes, que não pode ser
classificado entre os campeões do anti-absolutismo, é radical o
questionamento das bases do poder à medida que ele postula uma convenção
primeira capaz de justificar a obediência de um conjunto de indivíduos a
determinadas regras de convivência. Rousseau seguiu o esquema do
"contratualismo", mas introduziu grandes novidades na concepção desse
pacto fundador da sociedade política.

De acordo com Rousseau, a ordem social é descontínua em relação à


ordem natural: ela "não vem da natureza", mas está "fundada em
convenções". Nesse primeiro livro do Contrato, o filósofo tenta justificar
essas proposições iniciais, mostrando como a sociedade não provém da
natureza e quais as convenções sobre as quais se funda. Rousseau refuta
diferentes teses que tentam apoiar a autoridade seja na família, seja na força
ou sobre um suposto direito de escravidão. (As teses que tentam naturalizar a
obediência ou a autoridade política são refutadas por Rousseau nos
capítulos II, III e IV do Livro I.) Detenhamo-nos agora na idéia rousseauniana da
convenção primitiva: em que termos a concebeu? Embora acompanhe os
contratualistas, ele introduz modificações.

O pacto primitivo
Os autores costumam distinguir dois momentos no pacto ou até mesmo
dois pactos: de associação, mediante o qual os pactuantes concordam em
fazer parte de uma mesma sociedade; de submissão, em que as partes
concordam em se submeter a um mesmo governo. Rousseau elimina essa
segunda idéia, deixando de conceber a instituição de um governo segundo
o esquema contratual e fala apenas em um pacto, o de fundação da
sociedade. Esse pacto constituinte é o ato pe]o qua] um povo é um povo,
aquilo que faz com que um povo se diferencie de um agregado caótico de
indivíduos.
É no capítulo VI do Livro I, centro de todo o tratado, que são fixados
os termos do pacto. Supondo que os homens atingiram um estágio de
evolução no qual já não podem dispensar o auxílio dos semelhantes, Rousseau
formula o problema em termos de uma conjugação de esforços que não venha a
ser prejudicial à liberdade, este dom natural que nos define como homens.
O problema se resume em "encontrar uma forma de associação que defenda
e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela
qual cada um unindo-se a todos não obedeça contudo senão a si mesmo e
permaneça tão livre quanto antes". Em que termos terá de ser estipulado tal
pacto para que essas exigências, aparentemente contraditórias, venham a ser
igualmente atendidas?
Um tal contrato terá de ter como cláusula central: a alienação total de
cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. O que
significa isso? Como, de uma alienação, ou entrega total a outrem, poderá
resultar a liberdade? Aqui, a formulação rousseauniana inova
radicalmente. A entrega de si e de seus bens e a submissão total não serão
estipulados em favor de um outro indivíduo que viria a se constituir na
autoridade política, árbitro encarregado por todos de dirimir os conflitos.
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Esse despoja-mento se fará em favor da própria comunidade como um


todo. Esse é um ponto essencial, em relação ao qual toda a atenção é
pouca, pois essa inovação fará toda a originalidade do pacto rousseauniano.
Segundo os termos desse pacto, cada associado concorda em se colocar
"sob a suprema direção da vontade geral". Vontade geral... Eis anunciado
e enunciado pela primeira vez um conceito-chave. Quando concordamos
em nos submeter, todos os outros pactuantes concordam também em se
colocar sob a direção, suprema, não de uma vontade alheia, mas da
vontade coletiva da própria comunidade, daquela vontade que visa acima de
tudo ao interesse coletivo. É somente a autoridade da comunidade como um
todo e as leis que dela emanam que devem ser reconhecidas como politicamente
legítimas: eis o que estipula a cláusula do pacto. Falar em suprema direção
da vontade geral é outra maneira de defini-la como a autoridade soberana.
Esse outro conceito-chave da filosofia política, que Rousseau também
buscou em Hobbes, embora lhe conferindo um estatuto radicalmente novo,
logo aparecerá: o capítulo VI define como é o soberano. Mais adiante, a
soberania é definida como o "exercício da vontade geral". Haverá autêntica
comunidade quando a vontade geral prevalecer soberana e invariavelmente diante
dos interesses individuais eventualmente conflitantes. O soberano deixa de ser
identificado com a figura do monarca: passa a ser a própria comunidade, surgida
em função do pacto.
Eis definida a regra suprema que Rousseau se propunha a buscar. A
vontade geral é esse critério último, a partir do qual deverá ser julgada,
ordenada e conduzida toda a vida coletiva. Suprema regra de administração,
é ela que deve prevalecer em quaisquer circunstâncias. É ela que deverá
orientar o comportamento de todos os associados no cumprimento de suas
respectivas e diferenciadas funções sociais e políticas até agora ainda não
discriminadas.

Dicionário político
Com o pacto, cria-se uma nova realidade. Rousseau procede à cerimônia de
batismo desse recém-nascido corpo coletivo e convencional fixando, ainda no
capítulo VI, alguns dos termos principais do seu vocabulário político. En-
contramos no último parágrafo do capítulo um pequeno dicionário político
rousseauniano, onde termos usuais, mas ambíguos e equívocos, ganham uma
extrema precisão técnica:

A partir desse momento, no lugar da pessoa particular de cada


contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo
composto de tantos membros quantos a assembléia tem de votos, o qual
recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade. Essa pessoa pública que assim se forma pela união de todos
os outros tomava outrora o nome de cidade e toma agora o de república
ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado
quando é passivo, de soberano quando é ativo, e potência, comparando-a
a seus semelhantes. Em re]ação aos associados, eles tomam
coletivamente o nome de povo e se chamam em particular cidadãos,
enquanto participantes da autoridade soberana, e súditos, enquanto
submetidos às leis do Estado.
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Como vemos, a mesma entidade é nomeada por três séries de três


termos que a definem segundo pontos de vista diferentes. Do ponto de
vista, por exemplo, do cientista político, a comunidade pode ser dita:
cidade, república ou corpo político. Pelos seus membros, ela é chamada
de: estado, soberano, potência. Finalmente, considerando-se o conjunto dos
associados que a compõem, eis outros três nomes diferentes: povo, cidadãos e
súditos.
Através dessa sutil rede terminológica, acha-se não apenas batizada,
mas determinada a comunidade política na complexidade de suas relações,
ou se acha ordenada a multiplicidade de relações que os elementos
constitutivos desse todo mantêm entre si. Falar em "r epública" ou
"corpo político", por exemplo, é o mesmo que se referir à comunidade
regida pela vontade geral soberana. Passando para o lado dos indivíduos
integrantes do todo, podemos designar essa comunidade como sendo o
povo e falar, no lugar de soberania da vontade geral, em soberania do
povo. Em suma: uma república é o corpo político no qual o soberano é o
povo.
Com essa nomenclatura, termos do vocabulário político usual, marcados
por profunda ambigüidade e inteiramente gastos, ganham uma precisão
quase matemática. Mas sobretudo a própria doutrina política sofre uma
revolução notável. Inflamado por sua ousadia teórica e por sua paixão
democrática, Rousseau desaloja a soberania do seu lugar tradicional, não
só na teoria dos doutos, mas na prática dos tiranos e na imaginação dos
ingênuos, transferindo-a para o povo. Não tardará para que o eco de um
tal gesto se faça ouvir na dimensão turbulenta e profunda dos
acontecimentos históricos.
Não contente em atribuir a soberania ao povo, nosso autor também
forneceu dessa entidade uma definição rigorosa. O que é povo? Povo, diz
o cidadão de Genebra, é o conjunto dos cidadãos designados enquanto
formam uma comunidade.
Mas o que é um cidadão?

Cidadania e autonomia
O cidadão, diz o dicionário, é o associado considerado "participante da
autoridade soberana". O que significa isso? Se nos lembrarmos das condições do
pacto, veremos claramente que a vontade geral soberana, ou o corpo coletivo, é
composto por todos aqueles que nele têm voz. Da formação dessa vontade
coletiva devem participar, com voz e voto, todos os associados. Na acepção
rigorosa do termo, é cidadão aquele que produz a vontade coletiva, mediante sua
atuação legislante. Essa vontade é uma resultante do conjunto das vontades dos
associados. Não uma soma de suas vontades enquanto indivíduos que visam
apenas a seu interesse particular, mas uma expressão da vontade de cada
indivíduo quando imbuído do interesse coletivo e visando ao bem comum.
É somente nessas condições que os indivíduos que se entregam à
comunidade serão tão livres quanto antes. Submetendo-se enquanto súditos à
vontade geral, os membros da associação se submeterão à sua própria
vontade enquanto cidadãos que participam da formação da vontade
coletiva. Somos livres, diz Rousseau, quando nos submetemos à "lei que
nós próprios nos prescrevemos" (Livro I, capítulo VIII). Submetendo-me
à vontade geral, submeto-me, por conseguinte, à minha própria vontade:
50

"A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não estar
submetido à de outrem". Kant retoma essa idéia e batiza com o termo au-
tonomia (do grego autós — próprio — e nomos — lei) a liberdade no
plano moral. À idéia de autolegislação contrapõe-se a noção de
heteronomia, condição em que a vontade é determinada por algo que lhe é
exterior.
Mas a entidade política, criada com o pacto, pode ser designada ainda
por outro nome que aparece freqüentemente em todo o restante da obra. É
o termo pátria, sinônimo de corpo político, e que o designa de um ponto
de vista afetivo. Uma comunidade autêntica é uma pátria cujos modelos
constantes são, além de Genebra, a cidade de Esparta e a República de
Roma. Desse ponto de vista, o cidadão é o indivíduo cuja paixão predominante
é o amor a pátria. Ao contrário, deixa de haver comunidade e pátria, quan-
do o interesse privado comanda e a paixão predominante dos indivíduos
passa a ser o amor-próprio.

Contra o filósofo-Rei
A partir dessa regra — a vontade geral — e de sua "suprema
direção", será deduzida uma série de conseqüências, ao mesmo tempo em
que se enriquece o dicionário político aqui elaborado. Fixada a regra, cabe
perguntar: por meio de que mecanismos e de que expedientes poderá, em
uma sociedade qualquer, cumprir-se o exercício da vontade geral? É da
contradição entre a vontade geral e as dificuldades da vida coletiva que
surgem os novos problemas e a nova dimensão de questões.
Aos homens — sendo falíveis e corruptíveis, tendendo a usar mal sua
liberdade e se perdendo pelos descaminhos do amor-próprio — torna-se
difícil a realização dos valores. A comunidade artificial, dado o fato de não
ser um hiperorganismo dotado de coesão absoluta como o organismo
animal, está permanentemente ameaçada de corrosão, já que é formada
pelos particulares que a compõem, os quais tendem permanentemente à
auto-afirmação exclusiva. Voltamos, assim, a nos defrontar com a
contradição fundamental entre o indivíduo natural e as exigências da vida
coletiva: todo indivíduo é, ao mesmo tempo, homem e cidadão. Ele estará
permanentemente dilacerado entre as imposições desses dois opostos.
Num plano abstrato, considerando a sociedade em geral e não esta
ou aquela, encontram-se diferentes dificuldades na manifestação da
vontade geral. A primeira delas é que, não sendo identificável à vontade de
um organismo vivo, a vontade geral precisa ser fixada através de um
conjunto de leis escritas. Mediação necessária entre a vontade e sua
efetivação, a lei é definida como a declaração expressa da vontade geral.
Por outro lado, a elaboração das leis em qualquer sociedade é uma tarefa
bastante complexa; além de reclamar de seu executor a capacidade de se
elevar a um ponto de vista universal, deve ser capaz de abranger a vida coletiva
em sua vertiginosa multiplicidade de relações. A elaboração das leis exige
"luzes" especiais. Raramente esclarecido, na maior parte das vezes, o povo só
assume sua verdadeira identidade por obra da pedagogia das instituições e,
portanto, no término do processo. Necessita, assim, de guias, de líderes,
verdadeiros parteiros capazes de assisti-lo na tarefa de dar à luz sua própria
vontade, de traduzi-Ia por um sistema de leis. Os intérpretes competentes
51

dos anseios populares são necessários, e o democratismo de Rousseau não o


leva a uma cegueira em relação à realidade das condições de existência do povo e
de suas possibilidades.
Esse guia é chamado de "legislador", a cuja conceituação é dedicado
todo o capítulo VII do Livro I.
Os grandes modelos de legislador são Moisés, (do povo hebreu),
Licurgo (de Esparta) e Numa Pompílio (2° rei legendário de Roma).
Segundo Rousseau, para esses verdadeiros filósofos que devem ser os
legisladores, não será reivindicado nenhum poder dentro do Estado, ao
contrário do ideal do rei-filósofo, reavivado pelo Iluminismo. (Ver, de nossa
autoria, O Iluminismo e os reis-filósofos, Brasiliense.)
O legislador não tem, ou não deve ter, nenhum direito legislativo e o
povo mesmo não pode, ainda quando o quisesse, despojar-se desse direito
incomunicável, porque, segundo o pacto fundamental, só a vontade geral
pode obrigar os particulares e não podemos nunca nos assegurar de que
uma vontade particular é conforme à vontade geral senão depois de tê-la
submetido aos sufrágios livres do povo.
Admitir a necessidade de mediação desse redator das leis não significa
renunciar ao princípio da soberania popular.

Governo e desgoverno
Os dois últimos livros do Contrato são dedicados ao funcionamento do
corpo político. A questão central é: "por meio de que mecanismos o corpo
político assegura sua autoconservação?". Se tomarmos como modelo o
organismo individual, que dispõe de diferentes instrumentos — órgãos,
membros, sentidos — para assegurar sua sobrevivência e reprodução, poderíamos
indagar quais seriam os instrumentos de que o "organismo político" dispõe
para sua autoconservação.
Aqui Rousseau raciocina diretamente inspirado na comparação com o
indivíduo livre. Para que um agente livre possa agir, é preciso que tenha
vontade de agir. Mas ele também necessita de forças para isso; por
exemplo, que suas pernas estejam aptas a levá-lo até o objeto do querer.
Além da vontade, é possível distinguir no corpo político a força. Ao lado
de um poder legislativo, que pertence soberanamente ao povo, cabe
distinguir um poder executivo, encarregado da mera execução da vontade
soberana. Esse poder nosso filósofo designa pelo nome de governo. Que
é, pois, o governo?
Governo, diz Rousseau, é "um corpo intermediário estabelecido entr e
os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da
execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quanto política"
(capítulo I do Livro III). Esse corpo intermediário é denominado "suprema
administração"; não é um poder supremo dentro do Estado, mas é um
poder encarregado de uma função hierarquicamente inferior e submetida à
autoridade soberana. Os membros do governo, governantes ou príncipes, são
definidos como meros funcionários do soberano.
Essa caracterização do poder executivo como uma instância subordinada
dentro da comunidade política é também uma das grandes teses novas de
Rousseau. [É verdade que já o teólogo italiano Marsílio de Pádua (1275-1343)
estabelecera, embora sem a mesma sistematicidade, a distinção entre poder
52

legislativo soberano e poder executivo subordinado em seu livro Defensor da


paz.]
Ao lado da determinação da soberania como atributo pertencente ao
conjunto dos cidadãos e em estreita vinculação com ela, essa definição de
governo ocupa o lugar central em torno do qual se articula toda a
construção do Contrato. O governo não se confunde com o soberano e, na
instituição do governo, não prevalece o modelo do contrato. Trata-se de
uma função subordinada. Os governantes serão instituídos por
determinação do soberano, ou seja, por um ato de livre escolha dos cidadãos
reunidos.
Definida a função executiva, Rousseau define as formas de governo tão
debatidas desde Platão e Aristóteles. Rousseau segue a distinção aristotélica
entre as três formas de governo: a monarquia (governo de um só), a
aristocracia (governo de alguns) e a democracia (governo de todos).
Importante: para o filósofo, essas três formas só são consideradas
legítimas quando o governo opera como executante da vontade coletiva, e
não da própria vontade. Quando isso não ocorre, temos a degeneração do
corpo político, consumada através da usurpação do poder legislativo por
parte do poder executivo. É este, aliás, o risco permanente da vida política.
Para o mecanismo dessa degenerescência do corpo político Rousseau dedica
os capítulos finais do Livro III. Às três formas legítimas de governo
correspondem três formas degeneradas: a democracia degenera em
ociocracia (governo de massa), a aristocracia em oligarquia e a monarquia
em tirania ou despotismo. Note-se que aqui "democracia" é vista apenas
como uma das três formas legítimas de governo; não é um termo que
designa a substância mesma do Estado.

Contra a representação
Aqui também prevalece uma visão "pessimista"; a tendência à
usurpação, no limite, é incontornável e acaba por conduzir à degradação até
mesmo o corpo político mais bem constituído — como Esparta ou Roma.
Inevitável, essa degeneração pode ser, no máximo, retardada, e cabe ao
político tentar fazê-lo. Como deve ele proceder?
Aqui Rousseau enfrenta um dos temas mais importantes para o
pensamento político da sua época e também da atualidade: a representação. Para
contrabalançar o poder dos governantes, imaginou-se (sobretudo Locke e
Montesquieu) a constituição de uma Câmara de Deputados cujos membros,
representantes do povo e incumbidos de fazer ouvir a vontade dele, poderiam
neutralizar e contrabalançar o poder dos governantes. Com seu Parlamento,
a Inglaterra apresentava-se como o grande modelo histórico daquilo que
posteriormente convencionou-se chamar de democracia representativa.
Rousseau investiu veementemente tanto contra o modelo inglês quanto
contra os teóricos defensores da representação. Segundo nosso autor, a
instituição parlamentar é um engodo e acaba por afastar ainda mais o povo
do exercício da soberania, a seu ver inalienável e indivisível e, por conseguinte,
não pode ser representada. A partir do momento em que elege
representantes, o povo deixa de ser livre, já que seus representantes, dotados
de poder decisório, acabarão invariavelmente por decidir em causa própria
sob a aparência de estarem legislando em favor do povo.
53

O único remédio possível contra a tendência à usurpação, embora


também não propicie a cura definitiva, é a presença constante do soberano,
a reunião freqüente do povo em praça pública. Confiante na participação
direta nos assuntos públicos, Rousseau propõe a realização periódica de
assembléias que reúnam o conjunto dos cidadãos, seja para decidir sobr e
questões graves, seja para vigiar a atuação dos governantes. Tais assembléias
renovariam permanentemente, em um processo de criação contínua, o momen-
to da constituição da comunidade, de forma a adaptá-la a situações não
previstas e a realidades novas.

A chama comunitária
O último livro do Contrato trata das condições de permanência no tempo
da chama viva da comunidade. O problema não é mais considerado do
ponto de vista abstrato e estritamente político-institucional. A partir do exemplo
concreto da Roma republicana são estudados os alicerces do edifício
político: a dimensão moral ou afetivo-ideológica. Rousseau refere-se a ela
como a região da "opinião"ou dos "costumes e das crenças do povo", que
"formam a verdadeira constituição do Estado" e constituem os elementos
mobilizadores da ação do povo, sua energia motora.
São passadas em revista várias instituições políticas da história
romana: os sufrágios, as eleições, os comícios, o tribunato, a ditadura e a
censura. Todos esses procedimentos são avaliados em função de sua
eficácia para a manutenção dos costumes patrióticos, a conservação do
espírito público.
Esse ideal de saúde coletiva, uma das questões mais importantes
debatidas ao longo do século, é o tema do penúltimo capítulo do Contrato.
Nele, Rousseau trata das relações entre religião e política e propõe uma
religião civil. Fazendo uma severa crítica ao cristianismo, tanto por sua
intolerância quanto por ser uma religião funesta ao espírito cívico (já que
divide o homem entre sua pátria real e um outro mundo espiritual), o
filósofo propõe a idéia de um culto religioso à própria pátria cujos artigos de fé
— "não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de
sociabilidade" — seriam fixados pelo soberano e teriam como principal
objetivo sacramentar o pacto social.
Os dogmas positivos dessa religião seriam: a existência de Deus, a
vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos maus e, principalmente, a
santidade do contrato social. O mais importante, porém, é o dogma
negativo, isto é, o repúdio à intolerância. Sempre que uma religião no
interior do Estado se afirmar como o único caminho para a salvação, o
soberano estará ameaçado, os padres serão os verdadeiros senhores, e os reis,
seus funcionários.
A idéia de uma religião civil, se obteve uma notável repercussão
durante a Revolução Francesa, foi e continua sendo rejeitada por muitos
leitores de Rousseau que a vêem como uma manifestação injustificada de
xenofobia, uma perigosa exaltação do mito nacional. Em favor de Rousseau,
é preciso observar que sua religião, além de se opor à intolerância,
respalda um patriotismo que não pode, de forma alguma, ser confundido com
os nacionalismos expansionistas que fizeram tantos estragos em nosso século.
54

Fazer o homem ou o cidadão


Quais são as possibilidades históricas de realização do ideal político
exposto no Contrato? O que é possível fazer concretamente? Como passar
da realidade social corrompida, que temos diante de nós, para a sociedade
concebida segundo os valores da liberdade e da igualdade? As respostas de
Rousseau estão longe de ter a clareza das que formulou para as questões
anteriores. Mas dispomos de algumas pistas.
Em um famoso texto, logo no início do Emílio, ele declara: "É preciso
optar entre fazer um homem ou fazer um cidadão; não se pode fazer ambos
ao mesmo tempo". Junto com essa disjuntiva, o autor nos propõe, com
notável concisão, uma importante chave para se decifrar a articulação entre o
Contrato e o Emílio.
Bertrand de Jouvenel, estudioso contemporâneo do pensamento de
Rousseau, comentou essa passagem:

O que está perdido está perdido; é preciso salvar aquilo que é


salvável. Ora, o que é que é salvável? Na grande sociedade cor-
rompida, é o indivíduo. E Rousseau escreve o Emílio. Na pequena
sociedade que não está ainda muito avançada em direção à perdição, é
a própria sociedade. E Rousseau escreverá sobre o governo de Genebra,
sobre a constituição da Córsega e sobre a reforma da Polônia
(Rousseau trata do governo de Genebra em Cartas escritas da montanha).

É na perspectiva dessa disjunção — que propõe soluções apropriadas para


momentos e situações distintas — que o problema da realização do ideal
político ou do ideal pedagógico rousseauniano ganha sua localização adequada.
E é, por outro lado, o quadro histórico fornecido pelo segundo Discurso que
fornece o solo real sobre o qual se desenha a alternativa.
Nessas condições, não se deve tomar a idéia de comunidade que
decorreria das páginas do Contrato como algo a ser aplicado em quaisquer
circunstâncias de tempo e de lugar. É somente em condições muito
especiais que o ideal resultante da regra da vontade geral poderá passar para
a prática. A rigor isto só é possível em pequenas comunidades e no
momento de sua "juventude", quando ainda não se implantou o
irreversível processo de corrupção, de que o agigantamento das nações e
das cidades é sintoma inequívoco. Ao contrário do que imaginavam os
revolucionários de 1789, não seria possível esperar que uma grande
sociedade corrompida, como a França do século XVIII, pudesse
transformar-se na virtuosa Esparta mediante uma revolução regeneradora.
Dos povos que lhe são contemporâneos, o único que Rousseau julga
capaz de ser organizado segundo o imperativo da vontade geral é a ilha da
Córsega, para a qual redigiu um projeto de constituição. Mesmo a
Polônia, esse grande Estado para o qual Rousseau foi também chamado a
legislar, não era inteiramente "legislável" ou absolutamente conformável aos
princípios do direito político. Por isso o projeto de reforma proposto nas
Considerações — texto importante que complementa as teses abstratas
55

do Contrato — busca uma permanente adaptação às circunstâncias.


O que é salvável nas grandes sociedades corrompidas é o indivíduo ou
alguns indivíduos que tenham a sorte de permanecer um pouco à sua
margem. Emílio, esse personagem de ficção, simboliza esse indivíduo.
Posto desde o nascimento em contato íntimo com a natureza, tomando-a
sempre como guia, ele é educado para conviver e suportar a vida em uma
grande sociedade corrompida, onde já não há perspectivas de salvação
global porque já não tem nem leis, nem pátria, nem corpo político. Toda sua
educação, caracterizada como "educação negativa", visa a mantê-lo
imune aos vícios circundantes. É bem-sucedida a educação que conseguir
fazer o indivíduo em formação acompanhar a "marcha da natureza",
reprimida pela marcha enlouquecida das educações vigentes. Além de ser
um tratado pedagógico crítico, o Emílio é também um tratado sobre a bondade
natural do homem, ao reconstituir as etapas naturais de formação do indivíduo
humano, assim como o Discurso o fez em relação à espécie.

Escrita e música
Cabe uma última observação sobre alguns aspectos não secundários, mas
menos explicitados. Além das incursões nos domínios da Antropologia
política, do Direito político e da Pedagogia, Rousseau também se aventurou
em outros gêneros. E eis-nos diante de um novo paradoxo: como entender
que alguém que tanto criticou os malefícios das artes se dedique com tanto
apetite ao cultivo da arte da escrita, que ele manipula com maestria ímpar,
a ponto de ocupar um dos primeiros postos na galeria dos escritores
franceses de todos os tempos? Encontraremos tanto no prefácio à peça
teatral Narciso quanto no prefácio a A nova Heloísa, os elementos para
uma resposta. De acordo com esses textos, o recurso à arte da escrita
justifica-se pelo fato de que, vivendo em uma sociedade já corrompida pelas
artes e ciências ou por um mau emprego do saber, aquele que se propõe
como restaurador dos valores naturais não tem outro expediente senão o de
usar a linguagem própria do século, tentando fazer o remédio a partir do
próprio mal.
A escrita e a arte da escrita ocupam um lugar central e constituem um
tema de importância primordial para nosso autor. Mais do que a escrita,
a forma especial de comunicação, é a própria linguagem que merece por
parte do autor uma atenção constante. No segundo Discurso, ao desenhar o
retrato do homem natural, não deixa de inserir uma longa digressão sobre um
dos problemas mais debatidos pela filosofia no século XVIII: a origem das
línguas. Como teria o homem adquirido a linguagem? Esse problema se
confunde com o da própria origem da sociedade, já que, diz Rousseau, a
linguagem é tão necessária à constituição de um vínculo social quanto a
sociedade é necessária para a invenção da linguagem.
O problema é tão importante para Rousseau que a ele foi dedicado um
tratado especial, Ensaio sobre a origem das línguas, onde também se fala da
imitação musical. Desde sua publicação póstuma, esse importante estudo
atrai a atenção dos estudiosos do problema da linguagem. Nele o autor
procede com relação à linguagem de forma análoga à que adotou ao tratar da
desigualdade. Vemos as línguas se diferenciando segundo um jogo de opostos: de
um lado, temos línguas que falam mais ao coração, mais persuasivas e mais
56

próximas da natureza; de outro, línguas mais artificiais e que se dirigem mais à


Razão. A evolução das línguas é vista como uma degradação da força de
persuasão; do grito natural até as linguagens mais abstratas como a das
matemáticas, elas acompanharão a trajetória da perfectibilidade e da decadência.
Como o título do tratado sugere, essa genealogia das línguas é
complementada por uma genealogia da música, indissoluvelmente ligada à
primeira. Assim como a viva voz e a poesia ocupam um lugar
proeminente com relação à escrita e à prosa, também a música está no
primeiro lugar entre as artes.
Escritor genial e músico não desprovido de talento, é mediante o recurso
a essas duas linguagens — a escrita e a música — que Rousseau busca
incessantemente uma compensação para as frustrações da vida social e para o
"inferno" da comunicação com os outros.
É com a ajuda terapêutica desses diferentes veículos de expressão (que de
alguma forma se unem na prosa musical de seu último livro, Os
devaneios do caminhante solitário) que, cada vez mais isolando-se do
convívio humano, como o homem primitivo, Rousseau realiza
imaginariamente um simulacro de felicidade, e conquista sua precária
integridade.
57

Textos selecionados
Do contrato social (trechos)

"Objeto deste primeiro livro"

O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a


ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais
escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o.
Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.

Se considerasse somente a força e o efeito que dela


resulta, diria: "Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que
pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo
mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retomá-la ou não o tinham de
subtraí-la". A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros.
Tal direito, no entanto, não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções. Trata-
se, pois, de saber que convenções são essas. Antes de alcançar esse ponto, preciso deixar
estabelecido o que acabo de adiantar.
Livro I, capítulo 1

"Do pacto social"

Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua


conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada
indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode
subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.
Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e
orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por
agregação, um conjunto de forças que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um
só móvel, levando-as a operar em concerto.
Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos; sendo, porém, a força e a
liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele
empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa
dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue:
"Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada
associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece
contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes." Esse, o problema
fundamental cuja solução o contrato social oferece.
As cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a
menor modificação as tornaria vãs e sem nenhum efeito, de modo que, embora talvez jamais
enunciadas de maneira formal, são as mesmas em toda a parte, e tacitamente mantidas e
reconhecidas em todos os lugares, até quando, violando-se o pacto social, cada um volta a
seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela
qual renunciara àquela.
Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a alienação total
de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro
lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição
igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os demais.
Ademais, fazendo-se a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto possa ser e a
nenhum associado restará algo mais a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos
particulares, como não haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e
o público, cada qual, sendo de certo modo seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo de todos; o
estado de natureza subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.
58

Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado


sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o
equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem.
Se se separar, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua essência, ver-se-á que
ele se reduz aos seguintes termos: "Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu
poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo".
Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada
contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade.
Essa pessoa pública, que se forma desse modo, pela união de todas as outras, tomava
antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado
por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando
comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome
de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e
súditos enquanto submetidos às leis do Estado. Esses termos, no entanto, confundem-se
freqüentemente e são usados indistintamente; basta saber distingui-los quando são empregados
com inteira precisão.
Livro I, capítulo VI

"Do governo em geral"

Toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção: uma moral, que é a
vontade que determina o ato, e outra física, que é o poder que a executa. Quando me dirijo a
um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me
levem até lá. Queira um paralítico correr e não o queira um homem ágil, ambos ficarão no
mesmo lugar. O corpo político tem os mesmos móveis. Distinguem-se nele a força e a
vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder executivo. Nada nele se
faz, nem se deve fazer, sem o seu concurso.
Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e não pode pertencer senão a ele. Fácil é
ver, pelo contrário, baseando-se nos princípios acima estabelecidos, que o poder executivo não
pode pertencer à generalidade como legisladora ou soberana, porque esse poder só consiste
em atos particulares que não são absolutamente da alçada da lei, nem conseqüentemente da
do soberano, cujos atos todos só podem ser leis.
Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que a reúna e ponha em ação
segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva à comunicação entre o Estado e o
soberano, que de qualquer modo determine na pessoa pública o que no homem faz a
união entre a alma e o corpo. Eis qual é, no Estado, a razão do governo, confundida
erroneamente com o soberano, do qual não é senão o ministro.
Que será, pois, o governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o
soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto civil como política.
Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto é, governantes, e o corpo em
seu todo recebe o nome de príncipe. Têm muita razão aqueles que pretendem não ser um
contrato, em absoluto, o ato pelo qual um povo se submete a chefes. Isto não passa, de modo
algum, de uma comissão de um emprego, no qual, como simples funcionários do soberano,
exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositários, e que pode limitar, modificar e
retomar quando lhe aprouver. Sendo incompatível com a natureza do corpo social, a
alienação de um tal direito é contrária ao objetivo da associação.
Chamo, pois, de governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder
executivo, e de príncipe ou magistrado o homem ou o corpo encarregado dessa administração.
Livro III, capítulo I

"Dos abusos do governo e da sua tendência a degenerar"

Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o governo
despende um esforço contínuo contra a soberania. Quanto mais esse esforço aumenta, tanto
mais se altera a constituição, e, como não há outra vontade de corpo que, resistindo à do
59

príncipe, estabeleça equilíbrio com ela, cedo ou tarde acontece que o príncipe oprime, afinal, o
soberano e rompe o tratado social. Reside aí o vício inerente e inevitável que, desde o
nascimento do corpo político, tende sem cessar a destruí-lo, assim como a velhice e a morte
destroem, por fim, o corpo do homem.

Há duas vias gerais pelas quais um governo degenera, a saber: quando ele se contrai, ou
quando o Estado se dissolve.

O governo se contrai quando passa do grande para o pequeno número, isto é, da


democracia para a aristocracia e da aristocracia para a realeza. Tal a sua inclinação natural.
Se retrocedesse do pequeno número para o grande, poder-se-ia dizer que ele se afrouxa, mas
esse progresso inverso é impossível.
Com efeito, um governo não muda de forma senão quando seu mecanismo já gasto o
deixa muito enfraquecido para poder conservar sua forma. Ora, se ele ainda mais se
afrouxasse, distendendo-se, sua força tornar-se-ia totalmente nula e ele haveria, ainda menos,
de subsistir. É preciso, pois, reforçar e contrair o mecanismo à medida que for cedendo; caso
contrário, o Estado, que ele sustenta, tombaria em ruínas.
De dois modos pode dar:se o caso da dissolução do Estado.
Primeiro, quando o príncipe não mais administra o Estado de acordo com as leis e
usurpa o poder soberano. Dá-se, então, uma mudança notável que consiste em contrair-se
não o governo, mas o Estado; quero com isso dizer que o grande Estado se dissolve, que se
forma outro dentro dele, composto unicamente de membros do governo, o qual, em relação
ao resto do povo, não passa de senhor e tirano. Desse modo, no momento em que o governo
usurpa a soberania, rompe-se o pacto social e todos os simples cidadãos, repostos de direito
em sua liberdade natural, estão forçados, mas não obrigados a obedecer.
Acontece também o mesmo caso quando os membros do governo usurpam isoladamente o
poder, que não devem exercer senão enquanto corpo, o que não é menor infração das leis e
produz desordem ainda maior. Têm-se então, por assim dizer, tantos príncipes quantos
magistrados, e o Estado, não menos dividido do que o governo, perece ou muda de forma.
Quando o Estado se dissolve, o abuso do governo, qualquer que seja, toma o nome de
anarquia. A distinguir-se: a democracia degenera em ocIocracia, a aristocracia em oligarquia;
acrescentarei que a realeza degenera em tirania, mas essa palavra é equívoca e exige
explicação.
No sentido vulgar, um tirano é um rei que governa com violência e sem levar em
consideração a justiça e as leis. No sentido preciso, um tirano é um particular que se arroga a
autoridade real, sem ter direito a isso. Assim os gregos entendiam a palavra tirano; aplicavam-
na indiferentemente aos bons e maus príncipes, cuja autoridade não fosse legítima. Desse
modo, tirano e usurpador são duas palavras perfeitamente sinônimas.
A fim de dar nomes diferentes a coisas diferentes, chamo tirano ao usurpador da
autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. O tirano é aquele que se
intromete, contra as leis, a governar segundo as leis; o déspota é aquele que se coloca acima
das próprias leis. Assim, um tirano pode não ser um déspota, mas um déspota é sempre um
tirano.
Livro III, capítulo X

"Da morte do corpo político"

Tal é a tendência natural e inevitável dos governos, mesmo dos mais bem constituídos. Se
Esparta e Roma pereceram, que Estado poderá durar para sempre? Se quisermos formar uma
instituição duradoura, não pensemos, pois, em torná-la eterna. Para ser bem sucedido não é
preciso tentar o impossível, nem se iludir com dar à obra dos homens uma solidez que as
coisas humanas não comportam.
O corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento e traz em
si mesmo as causas de sua destruição. Mas um ou outro podem ter uma constituição mais ou
menos robusta e capaz de conservá-lo por mais ou menos tempo. A constituição do homem é
obra da natureza, a do Estado, obra de arte. Não depende dos homens prolongar a própria
vida, mas depende deles prolongar a do Estado pelo tempo que for possível, dando-lhe a
melhor constituição que possa ter. O mais bem constituído chegará a um fim, porém mais
tarde do que outro, se algum acidente imprevisto não determinar seu desaparecimento antes do
tempo.
60

O princípio da vida política reside na autoridade soberana. O poder legislativo é o coração


do Estado; o poder executivo, o cérebro que dá movimento a todas as partes. O cérebro
pode paralisar-se e o indivíduo continuar a viver. Um homem torna-se imbecil e vive, mas,
desde que o coração deixa de funcionar, o animal morre.
O Estado de forma alguma subsiste pelas leis, mas sim pelo poder legislativo. A lei de
ontem não obriga hoje, mas o consentimento tácito presume-se pelo silêncio e presume-se
que o soberano confirma incessantemente as leis que, podendo, não ab-rogou. Tudo o que uma
vez declarou querer, quererá sempre, a menos que o revogue.
Por que, então, se confere tanto respeito às antigas leis? Justamente por serem antigas.
Deve-se crer que só a excelência das vontades antigas poderia conservá-las por tão longo
tempo. Se o soberano não as tivesse reconhecido como constantemente salutares, ele as teria
revogado mil vezes. Eis por que, em todo Estado bem constituído, as leis, longe de se
enfraquecerem, ganham continuamente nova força; o preconceito da antiguidade as torna cada
dia mais veneráveis, enquanto, onde as leis ao envelhecer se enfraquecem, isso prova não
haver mais poder legislativo e não mais estar vivendo o Estado.

Livro III, capítulo XI

"Dos deputados e representantes"

Desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles
preferem servir com sua bolsa a servir com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da
ruína. Se lhes for preciso combater, pagarão tropas e ficarão em casa; se necessário ir ao
conselho, nomearão deputados e ficarão em casa. À força de preguiça e de dinheiro, terão,
por fim, soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la.
É a confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse do ganho, é a frouxidão e o
amor à comodidade que trocam os serviços pessoais pelo dinheiro. Cede-se uma parte do
lucro para aumentá-lo à vontade. Dai ouro, e logo tereis ferros. A palavra finança é uma
palavra de escravos, não é conhecida na pólis. Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos
fazem tudo com seus braços e nada com o dinheiro; longe de pagar para se isentar de seus
deveres, pagarão para cumpri-los por si mesmos. Distancio-me bastante das idéias comuns,
pois considero as corvéias menos contrárias à liberdade do que os impostos.
Quanto mais bem constituído for o Estado, tanto mais os negócios públicos sobrepujarão
os particulares no espírito dos cidadãos. Haverá até um número menor de negócios
particulares, porque a soma da felicidade comum fornecendo uma porção mais considerável
à felicidade de cada indivíduo, restar-lhe-á menos a conseguir em seus interesses particulares.
Numa pólis bem constituída, todos correm para as assembléias; sob um mau governo,
ninguém quer dar um passo para ir até elas, pois ninguém se interessa pelo que nelas
acontece, prevendo-se que a vontade geral não dominará, e porque, enfim, os cuidados
domésticos tudo absorvem. As boas leis contribuem para que se façam outras melhores, as
más levam a leis piores. Quando alguém disser dos negócios do Estado: Que me importa?,
pode-se estar certo de que o Estado está perdido.
A diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados,
as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados
ou representantes do povo nas assembléias da nação. É o que em certos países ousam chamar
de Terceiro Estado. Desse modo, o interesse particular das duas ordens é colocado em primeiro
e segundo lugares, ficando o interesse público em terceiro.
A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada,
consiste essencialmente na vontade geral e a vontade absolutamente não se representa. É ela
mesma ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser, seus
representantes; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É
nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa
ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez
estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso
que dela faz mostra que merece perdê-la.
A idéia de representantes é moderna; vem-nos do governo feudal, desse governo iníquo e
absurdo no qual a espécie humana só se degrada e o nome de homem cai em desonra. Nas
antigas repúblicas, e até nas monarquias, jamais teve o povo representantes, e não se
conhecia essa palavra. É bastante singular que em Roma, onde os tribunos eram tão
reverenciados, não se tenha sequer imaginado que eles pudessem usurpar as funções do povo
61

e que, no meio de tão grande multidão, nunca tivessem tentado decidir por sua conta um
único plebiscito. Pode-se julgar, no entanto, qual o embaraço que às vezes a multidão
causava, pelo que aconteceu no tempo dos Gracos, quando uma parte dos cidadãos deu seu
sufrágio do alto dos telhados.
Onde o direito e a liberdade são tudo, os inconvenientes nada são. No seio desse povo
prudente, tudo era colocado em sua medida certa: deixavam seus litores fazer o que seus
tribunos não teriam ousado; não temiam que os litores quisessem representá-los.
No entanto, para explicar como os tribunos algumas vezes o representavam, basta
conceber como o governo representa o soberano. Não sendo a lei mais do que a declaração da
vontade geral, claro é que, no poder legislativo, o povo não possa ser representado, mas tal
coisa pode e deve acontecer no poder executivo, que não passa da força aplicada à lei. Tal fato
leva-nos a ver que, se examinarmos bem as coisas, muito poucas nações possuem leis. De
qualquer modo, é certo que os tribunos, não tendo qualquer parcela do poder executivo,
jamais puderam representar o povo romano baseando-se nos direitos de seus cargos, mas so-
mente usurpando-os do senado.
Entre os gregos, tudo o que o povo tinha de fazer, fazia-o por si mesmo; encontrava-se
freqüentemente reunido na praça. Residia num clima ameno, não era de modo algum ávido, os
escravos executavam seu trabalho e sua grande ocupação era a liberdade. Não possuindo mais
as mesmas vantagens, como conservaríamos os mesmos direitos? Vossos climas mais
agressivos vos impõem maiores necessidades; seis meses por ano, a praça pública não é
suportável; vossas línguas insonoras não podem fazer-se ouvir ao ar livre; preferis o vosso
ganho à vossa liberdade, e temeis muito mais a miséria do que a escravidão.
Quê! A liberdade só se mantém com o apoio da servidão? Talvez. Os dois excessos se
tocam. Tudo o que, de qualquer modo, não está na natureza, apresenta seus inconvenientes; a
sociedade civil mais do que todo o resto. Tais posições infelizes estabelecem-se naqueles
lugares em que só se pode conservar a própria liberdade a expensas da de outrem, e onde o
cidadão só pode ser perfeitamente livre quando o escravo é extremamente escravo. Essa era a
situação de Esparta. Quanto a vós, povos modernos, não tendes escravos, mas o sois; pagais a
liberdade deles com a vossa. Acreditais certo enaltecer essa preferência; nela encontro mais
covardia do que humanidade.
De modo algum entendo, por tudo isso, que se devem possuir escravos, nem
que seja legítimo o direito de escravidão, uma vez que demonstrei o contrário; fá-
lo somente das razões pelas quais os povos modernos, que se crêem livres, têm representantes,
e porque os povos antigos não os tinham. De qualquer modo, no
momento em que um povo se dá representantes, não é mais livre; não mais existe.
Examinando tudo cuidadosamente, não vejo como seja doravante possível ao soberano
conservar entre nós o exercício de seus direitos, salvo se a pólis for muito pequena. Mas, se for
muito pequena, será subjugada? Não. Logo adiante demonstrei como se pode reunir o poder
exterior de um grande povo à polícia fácil e à boa ordem de um pequeno Estado.
Livro III, capítulo XV

Emílio
O tema da educação ocupa também um lugar central e a ele é dedicado especialmente o
tratado intitulado Emílio ou Da educação. Surgido no mesmo ano do Contrato, esta é uma
das suas grandes obras. Mas Rousseau não se ocupou apenas com a educação "doméstica"
ou com a educação do indivíduo: ao lado dela, ele distingue a educação cívica, formadora
do cidadão.

[Os três mestres]


Amanham-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem nascesse
grande e forte, seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles
servir-se. Ser-lhe-iam prejudiciais, impedindo os outros de pensar em assisti-lo e, abandonado
a si mesmo, ele morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades. Deplora-se o
estado da infância; não se vê que a raça humana teria perecido se o homem não começasse
sendo criança.
Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos
necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao
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nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação.


Essa educação nos vem da natureza ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento
interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos
ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria
experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas.
Cada um de nós é, portanto, formado por três espécies de mestre. O aluno em quem as
diversas lições desses mestres se contrariam é mal-educado e nunca estará de acordo consigo
mesmo; aquele em quem todas visam aos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai
sozinho a seu objetivo e vive em conseqüência. Somente esse é bem-educado.
Ora, dessas três educações diferentes, a da natureza não depende de nós; a das coisas só
em certos pontos depende. A dos homens é a única de que somos realmente senhores e
ainda assim só o somos por suposição, pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras
e as ações de todos os que cercam uma criança?
Sendo, portanto, a educação uma arte, torna-se quase impossível que alcance êxito total,
porquanto a ação necessária a esse êxito não depende de ninguém. Tudo o que se pode fazer
à força de cuidados é aproximar-se mais ou menos da meta, mas é preciso sorte para atingi-
la.
Que meta será essa? A própria meta da natureza; isso acaba de ser provado. Dado que a
ação das três educações é necessária à sua perfeição, é para aquela sobre a qual nada
podemos que cumpre orientar as duas outras. Mas talvez esta palavra natureza tenha um
sentido demasiado vago; é preciso tentar defini-lo com exatidão.
A natureza, dizem-nos, é apenas o hábito. Que significa isso? Não há hábitos que só se
adquirem pela força e não sufocam nunca a natureza? É o caso, por exemplo, do hábito
das plantas cuja direção vertical se perturba. Em se lhe devolvendo a liberdade, a planta
conserva a inclinação que a obrigaram a tomar; mas a seiva não muda, com isso, sua
direção primitiva; e se a planta continuar a vegetar, seu prolongamento voltará a ser vertical.
O mesmo acontece com as inclinações dos homens. Enquanto permanecemos no mesmo
estado, podemos conservar as que resultam do hábito e que nos são menos naturais. Mas
desde que a situação mude, o hábito cessa e o natural se restabelece. A educação não é cer-
tamente senão um hábito. Mas não há pessoas que esquecem e perdem sua educação e outras
que a conservam? De onde vem essa diferença? Se devemos restringir o nome de natureza
aos hábitos conformes à natureza, é de se poupar este galimatias.
Nascemos sensíveis e desde nosso nascimento somos molestados de diversas maneiras
pelos objetos que nos cercam. Mal tomamos, por assim dizer, consciência de nossas sensações
e já nos dispomos a procurar os objetos que as produzem ou a deles fugir, primeiramente
segundo nos sejam elas agradáveis ou desagradáveis, depois segundo a conveniência ou a
inconveniência que encontramos entre esses objetos e nós, e, finalmente, segundo os juízos
que fazemos deles em relação à idéia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece.
Essas disposições se estendem e se afirmam à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais
esclarecidos; mas, constrangidas por nossos hábitos, elas se alteram mais ou menos sob a
influência de nossas opiniões. Antes dessa alteração, elas são aquilo a que chamo em nós a
natureza.

O Cristianismo
A seguir destacamos dois trechos do capítulo VIII do Livro IV do Contrato.
Dizem que um povo de verdadeiros cristãos formaria a sociedade mais perfeita que se
poderia imaginar. Contra essa suposição só vejo uma grande dificuldade — uma sociedade de
verdadeiros cristãos não mais seria uma sociedade de homens.
Afirmo até que essa suposta sociedade, com toda a sua perfeição, não seria nem a mais
forte, nem a mais duradoura, pois, à força de ser perfeita, faltar-lhe-ia coesão, estando seu
vício destruidor na sua própria perfeição.
Cada um desempenharia seu dever, o povo estaria submetido às leis, os chefes seriam
justos e ponderados; os magistrados, íntegros e incorruptíveis; os soldados desprezariam a
morte, não existiria nem vaidade, nem luxo. Tudo isso está muito bem, mas passemos
adiante.
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O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, preocupada unicamente com as


coisas do céu, não pertencendo a pátria do cristão a este mundo. É verdade que ele cumpre o
seu dever, mas o faz com uma indiferença profunda quanto ao bom ou mau sucesso de seus
trabalhos. Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, pouco lhe importa se tudo vai
bem ou mal cá embaixo. Se o Estado está florescente, dificilmente ousa gozar da felicidade
pública, teme orgulhar-se da glória de seu país; se o Estado perece, bendiz a mão de Deus
que pesa sobre seu povo.
Para que fosse pacífica a sociedade e para que se mantivesse a harmonia, seria preciso que
todos os cidadãos, sem exceção, fossem igualmente bons cristãos, mas se, por infelicidade,
encontrar-se entre ele um único ambicioso, um único hipócrita — por exemplo, um Catilina,
um Cromwell —, certamente esse único faria tábua rasa de seus piedosos compatriotas. A
caridade cristã não permite facilmente que se pense mal do próximo. Desde que ele, por
qualquer artimanha, aprenda a arte de impor-se e de apoderar-se de uma parte da autoridade
pública, será um homem constituído em dignidade — Deus quer que o respeitem. Logo mais,
ei-lo uma potência — Deus quer que ele seja obedecido. O depositário desse poder abusa? —
é o açoite com o qual Deus pune seus filhos. Toma-se como obrigação de consciência expulsar
o usurpador: ter-se-á de perturbar a calma pública, usar de violência, verter sangue — tudo
isso não condiz com a doçura do cristão e, depois, que importa ser livre ou escravo neste vale
de misérias? O essencial é alcançar o paraíso, e a resignação não passa de mais um meio para isso.

(Servidão)

Sobrevém uma guerra estrangeira, os cidadãos marcham sem dificuldade para o combate,
nenhum deles pensa em fugir; cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; melhor
sabem morrer do que vencer. Que importa sejam vencidos ou vencedores? A Providência não
sabe, melhor do que eles, o que lhes convém? Pode-se imaginar o partido que um inimigo
orgulhoso, impetuoso e apaixonado pode tirar desse estoicismo! Colocai-lhes à frente esses
povos generosos a quem devora o amor ardente da glória e da pátria, suponde vossa república
cristã à frente de Esparta e de Roma: os cristãos piedosos serão dominados, esmagados,
destruídos, antes de conseguirem tempo de se dar conta, ou, então, deverão sua salvação
somente ao desprezo que o inimigo lhes dedicar. A meu ver, foi um belo discurso o dos
soldados de Fábio — eles não juraram morrer ou vencer, juraram voltar vencedores e
cumpriram seu juramento. Jamais cristãos teriam feito semelhante juramento, pois
acreditariam estar tentando a Deus.
Engano-me ao aludir a uma república cristã, pois cada um desses dois termos exclui o
outro. O cristianismo só prega servidão e dependência. Seu espírito é por demais favorável à
tirania, para que ela cotidianamente não se aproveite disso. Os verdadeiros cristãos são feitos
para ser escravos; sabem-no e não se comovem absolutamente, porquanto esta vida curta
pouco preço apresenta a seus olhos. (...)
Deixando de parte, porém, as considerações políticas, voltemos ao direito e fixemos os
princípios sobre esse importante ponto. O direito, que o pacto social dá ao soberano sobre os
súditos, não ultrapassa, como já o disse, os limites da utilidade pública. Os súditos, portanto,
só devem ao soberano contas de suas opiniões enquanto elas interessam à comunidade. Ora,
importa ao Estado que cada cidadão tenha uma religião que o faça amar seus deveres; os
dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus membros, a não ser
enquanto se ligam à moral e aos deveres que aquele que a professa é obrigado a obedecer em
relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem que
o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não chega sua competência ao outro
mundo, nada tem a ver com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons
cidadãos nesta vida.
Ensaio sobre a origem das línguas (trechos)
A palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si — não se
sabe de onde é um homem antes de ter ele falado. O uso e a necessidade levam cada um a
aprender a língua de seu país, mas o que faz ser essa língua a de seu país e não a de um
outro? A fim de explicar tal fato, precisamos reportar-nos a algum motivo que se prenda ao
lugar e seja anterior aos próprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira instituição
social, só a causas naturais deve sua forma.
Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e
64

semelhante a ele próprio, o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e


pensamentos fizeram-no buscar meios para isso. Tais meios só podem provir dos sentidos,
pois estes constituem os únicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre outro. Aí
está, pois, a instituição dos sinais sensíveis para exprimir o pensamento. Os inventores da
linguagem não desenvolveram esse raciocínio, mas o instinto sugeriu-lhes a conseqüência.
Limitam-se a dois os meios gerais por via dos quais podemos agir sobre os sentidos de
outrem: o movimento e a voz. A ação do movimento pode ser imediata, no tato, ou mediata,
no gesto. A primeira, encontrando seu limite no comprimento do braço, não pode transmitir-se
à distância, mas a outra alcança tão longe quanto o raio visual. Restam, pois, somente a vista
e o ouvido como órgãos passivos da linguagem entre homens dispersos.
Apesar de serem as linguagens do gesto e da voz igualmente naturais, a primeira,
todavia, parece mais fácil e depende menos de convenções, porquanto um maior número de
objetos impressiona antes nossos olhos do que nossos ouvidos, e as figuras apresentam maior
variedade do que os sons, mostrando-se também mais expressivas e dizendo mais em menos
tempo. O amor, dizem, foi o inventor do desenho; pôde também inventar a palavra, porém
com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para
exprimir-se. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer traçava a sua sombra! Que
sons poderia empregar para traduzir esse movimento do braço!
Nossos gestos nada significam além de nossa inquietação natural, mas não é desses
gestos que desejo falar. Só os europeus gesticulam quando falam; dir-se-ia que toda a força de
sua linguagem reside nos braços e acrescentam-lhe ainda a dos pulmões, de nada lhes
servindo tudo isso. Enquanto um francês se agita e martiriza o corpo dizendo muitas palavras,
um turco tira por um momento o cachimbo da boca, diz a meia-voz duas palavras e esmaga-o
com uma sentença.
Depois aprendemos a gesticular, esquecemo-nos da arte das pantomimas, pelo mesmo
motivo por que, possuindo muitas belas gramáticas, não entendemos mais os símbolos dos
egípcios. O que os antigos diziam com maior vigor não exprimiam com palavras, mas com
sinais. Não o diziam, mostravam-no.
Abri a História Antiga e a encontrareis cheia desses meios de convencer os olhos, que
nunca deixam de produzir efeito mais seguro do que o de todos os discursos que se poderiam
colocar em seu lugar. O objeto oferecido antes da palavra acorda a imaginação, excita a
curiosidade, mantém o espírito em suspenso e na expectativa do que se vai dizer. Observei que
os italianos e os provençais, entre os quais comumente o gesto precede o discurso, encontram
assim um meio de fazer-se ouvir melhor e até com mais prazer. Entretanto a linguagem mais
expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale. Tarqüínio, Trasíbulo,
decepando os botões de papoula, Alexandre apondo seu selo à boca do favorito, Diógenes
passeando diante de Zenão, não falavam melhor do que com palavras? Qual o conjunto de
palavras que teriam exprimido tão bem as mesmas idéias? Dario, com seu exército na afia,
recebe do rei dos citas uma rã, um pássaro, um rato e cinco flechas. O mensageiro entrega
silenciosamente o presente e parte. O terrível discurso foi compreendido, e Dario só se
preocupou em alcançar, com a maior rapidez possível, seu país. Substituí esse sinais por
uma carta
— quanto mais ameaçadora for, menos intimidará. Não passaria de uma fanfarronada da
qual Dario só teria de rir.
Quando o levita Efraim quis vingar a morte de sua mulher, não escreveu às tribos de
Israel; dividiu-lhe o corpo em doze pedaços, que enviou a elas. À horrível visão, empunharam
rapidamente as armas, gritando todos a uma só voz:
— Não! nunca tal coisa aconteceu em Isracl, desde o dia em que nossos pais saíram do Egito
até hoje. E a tribo de Benjamin foi exterminada.
Em nossos dias, o assunto, transformado em arrazoados, em discussões, até mesmo em
brincadeiras, arrastar-se-ia e permaneceria impune o mais tremendo dos crimes. O rei Saul,
voltando da lavoura, também despedaçou os bois de seu arado e serviu-se de um sinal
semelhante para fazer Israel socorrer a cidade de Jabés. Os profetas dos judeus, os legisladores
dos gregos, oferecendo freqüentemente ao povo objetos visíveis, falavam-lhe melhor com esses
objetos do que o teriam feito com longos discursos, e o modo pelo qual Ateneu conta como o
orador Hipérides fez absolver a cortesã Frinéia, sem alegar em sua defesa uma única palavra,
constitui ainda uma eloqüência muda, cujo efeito, em todos os tempos, não é raro.
Assim se fala aos olhos muito melhor do que aos ouvidos. Não há uma pessoa que não
reconheça a verdade do juízo de Horácio a tal respeito. Compreende-se mesmo que os
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discursos mais eloqüentes são aqueles em que se introduz o maior número de imagens e os
sons nunca possuem maior energia do que quando fazem o efeito das cores.
Temos coisa totalmente diversa, contudo, quando se trata de comover o coração e
inflamar as paixões. A impressão sucessiva do discurso, que impressiona por meio de golpes
redobrados, proporciona-vos emoção bem diversa da causada pela presença do próprio objeto,
diante do qual, com um só golpe de vista, tudo já vistes. Suponde uma situação de dor
perfeitamente conhecida: vendo a pessoa aflita, dificilmente vos comovereis até o pranto; dai-
lhe, porém, tempo para dizer-vos tudo que sente, e logo vos desmanchareis em lágrimas.
Assim, as cenas de tragédia conseguem efeito. Somente a pantomima, sem o discurso, deixar-
vos-á quase tranqüilos, e o discurso, sem o gesto, arrancar-vos-á lágrimas. As paixões
possuem seus gestos, mas também suas inflexões. aue nos fazem tremer.
e essas inflexões a cuja voz não se pode fugir penetram por seu intermédio até o fundo do
coração, imprimindo-lhe, mesmo que não queiramos, os movimentos que as despertam e
fazendo-nos sentir o que ouvimos. Concluamos que os sinais visíveis tornam a imitação mais
exata e que o interesse melhor se excita pelos sons. (...)

"Como degenerou a música"

À medida que a língua se aperfeiçoou, impondo-se a si mesma novas regras,


insensivelmente perdeu algo de sua antiga energia e substituiu o cálculo dos intervalos pela
delicadeza das inflexões. Foi assim, por exemplo, que aos poucos se aboliu a prática do gênero
enarmônico. Quando os teatros se apresentaram mais regularmente, só se cantou em modo
prescrito e, à medida que se multiplicavam as regras de imitação, a língua imitativa se
enfraquecia.
Tendo o estudo da filosofia e o progresso do raciocínio aperfeiçoado a gramática,
excluíram também da língua aquele tom vivo e apaixonado que a princípio a tornara tão
cantante. Desde os tempos de Menalípides e de Filóxeno, os sinfonistas, que a princípio eram
mantidos por poetas e só executavam sob sua direção e, por assim dizer, sob seu ditado,
tornaram-se independentes, e dessa libertação é que a música se lastima tão amargamente
numa comédia de Ferécrates, em trecho citado por Plutarco. Assim, a melodia, começando a
não permanecer tão intimamente ligada ao discurso, insensivelmente tomou uma existência à
parte e a música se tornou mais independente das palavras. Cessaram, então, também, pouco
a pouco, esses prodígios que produzira quando não passava de acento e de harmonia da
poesia e que lhe dava, sobre as paixões, o império que, depois, a palavra deixou de possuir
sobre a razão. E, desde que a Grécia se encheu de sofistas e de filósofos, não conheceu mais
nem poetas, nem músicos célebres. Cultivando a arte de convencer, perdeu a de comover. O
próprio Platão, enciumado de Homero e de Eurípedes, difamou um e não pôde imitar o outro.
Logo a servidão juntou sua influência à da filosofia. A Grécia sob grilhões perdeu aquele
fogo que só anima as almas livres e não encontrou mais, para louvar seus tiranos, o tom com
o qual cantara seus heróis. A mistura dos romanos enfraqueceu ainda mais o que restava de
harmonia e de acento na linguagem. O latim, língua mais surda e menos musical, fez mal à
música ao adotá-la. O canto empregado na capital pouco a pouco alterou o das províncias.
Os teatros de Roma prejudicaram os de Atenas. Quando Nero ganhava prêmios, a Grécia dei-
xara de merecê-los e a mesma melodia, dividida entre duas línguas, conveio menos a uma do
que à outra.
Por fim, aconteceu a catástrofe que destruiu os progressos do espírito humano sem afastar
os vícios que eram obra sua. A Europa, inundada de bárbaros e subjugada por ignorantes,
perdeu ao mesmo tempo suas ciências, suas artes e o instrumento universal tanto de umas
quanto de outras, isto é, a língua harmoniosa e aperfeiçoada. Esses homens grosseiros,
engendrados pelo norte, habituaram insensivelmente todos os ouvidos à rudeza de seus
órgãos: sua voz, dura e destituída de acentuação, era ruidosa, sem ser sonora. O imperador
Juliano comparava o falar dos gauleses ao coaxar das rãs (...)
Esse canto ruidoso, juntando-se à inflexibilidade do órgão, obrigou esses recém-chegados
e os povos subjugados que os imitaram a alongar todos os sons para fazer-se compreendidos.
A articulação penosa e os sons reforçados concorreram também para expulsar da melodia
qualquer sentimento de medida e de ritmo. Como a passagem de um som a outro era sempre
a mais difícil de pronunciar, não se podia fazer nada melhor senão deter-se em cada um
deles o mais que se podia, ampliá-lo e levá-lo a produzir o maior ruído possível. O canto
logo passou a ser somente uma seqüência aborrecida e lenta de sons arrastados e gritados,
66

sem doçura, cadência e graça, e, se alguns sábios afirmavam a necessidade de observar-se no


canto latino as longas e as breves, é certo pelo menos que se cantaram os versos como se
fossem prosa e não mais se cuidou de pés, de ritmo ou de qualquer outra espécie de canto
medido.

Despojado de qualquer melodia e formado unicamente pela força e pela dureza dos sons, o
canto sugeriu por si mesmo, finalmente, o meio de tornar-se ainda mais sonoro com o auxílio
das consonâncias. Várias vozes, incessantemente arrastando em uníssono sons de uma dureza
ilimitada, encontraram por acaso 21- guns acordes que, pelo reforço do ruído, passou a lhes
parecer agradável — assim se iniciou a prática do descanto e do contraponto.
Ignoro durante quantos séculos os músicos giraram em torno de questões inúteis
suscitadas pela ignorância do efeito conhecido de um princípio. O leitor mais infatigável não
suportaria, em Jean de Muris, o palavrório de oito ou dez capítulos para saber se, no
intervalo de oitava dividido em duas consonâncias, é a quinta ou a quarta que deverá ficar no
grave e, quatrocentos anos depois, ainda encontramos em Bontempi não menos tediosas
enumerações de todos os baixos que devem comportar a sexta em lugar da quinta. A
harmonia, no entanto, tomou insensivelmente a direção que a análise lhe prescrevia, até que
por fim a invenção do modo menor e das dissonâncias introduziu aquele elemento arbitrário
de que está cheia e que somente o preconceito nos impede de perceber.
Esquecida a melodia e voltando-se inteiramente a atenção do músico para a harmonia,
aos poucos tudo se dirigiu para esse novo objeto. Os gêneros, os modos, a escala, tudo enfim
adquiriu novos aspectos e as sucessões harmônicas passaram a regular o movimento das
partes. Tendo o movimento usurpado o nome de melodia, não se pôde com efeito
desconhecer nessa nova melodia os traços da mãe e, tornando-se assim gradativamente
harmônico nosso sistema musical, não é de admirar que o acento oral com isso tenha sofrido
e a música perdido quase toda a sua energia.
Eis como o canto aos poucos se tornou uma arte inteiramente separada da palavra, da
qual se origina, como as harmônicas dos sons determinaram o esquecimento das inflexões da
voz e como, por fim, limitada ao efeito puramente físico do concurso de vibrações, viu-se a
música privada dos efeitos morais que produzira quando era a voz da natureza.
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difícil acompanhar em toda a sua riqueza e amplitude a


repercussão de uma obra que encontrou um eco profundo em
toda a posteridade e até hoje continua viva, como fonte
permanente de inspiração.
A presença desse pensamento verdadeiramente inovador se faz sentir
não apenas no plano das idéias e das teorias, como também se impõe como
idéia-força de seu tempo, marcando definitivamente a avassaladora onda
política revolucionária que tomou conta das três últimas décadas do século
XVIII.

Na política

A influência do pensamento político de Rousseau, contido especialmente no


Discurso sobre a desigualdade e no Contrato social, não se manifestou
apenas na Revolução Francesa. Também é notável a presença inspiradora
das principais teses republicanas c igualitárias de Rousseau na guerra de
independência norte-americana. É visível a influência das idéias do Contrato
sobre a Declaração de Independência, a qual, redigida por Thomas
Jefferson (1743-1826) e proclamada a 4 de julho de 1776, marca a ruptura
revolucionária com a metrópole e constitui uma verdadeira "declaração dos
direitos dos cidadãos americanos". São também dignos de nota, embora
menos conhecidos, os reflexos dessas idéias sobre as constituições que cada
uma das treze ex-colônias inglesas, convertidas em estados confederados,
elaboraram na ocasião. Isso é particularmente observável na Constituição do
Estado de Massachusets, redigida por John Adams (1735-1826), cujos artigos
reproduzem quase literalmente passagens do Contrato.

Quanto à Revolução Francesa de 1789, é tão grande o prestígio das


idéias de Rousseau entre seus grandes líderes como Marat (1743-1793),
Robespierre (1758-1794) e Saint-Just (1767-1794), assim como sua notável
disseminação entre o povo em geral, que é justo considerá-lo como o seu
grande "profeta". O Clube dos Jacobinos, um dos principais instrumentos
dessa revolução da burguesia, ao qual pertenceu o próprio Robespierre,
proclama solenemente Rousseau como "modelo e guia nos seus trabalhos",
em declaração pública de 1794. O filósofo também influenciou a ala re-
volucionária mais radical liderada por Babeuf (1760-1797), chefe da
Conspiração dos Iguais. Durante o inverno de 1790, ficaram famosas as
conferências do abade Fauchet sobre o Contrato, que atraíam uma multidão
entusiasmada de ouvintes. As edições do Contrato, relativamente poucas até
1789, intensificaram-se de forma extraordinária a partir daí.
Identificado com a Revolução, Rousseau despertou ódios e paixões ao
longo do século seguinte e até hoje. Criticado por liberais como Benjamin
Constant (1767-1830) e Émile Faguet, mais tarde ele foi acusado de
coletivista e até autoritário. Contraditoriamente foi tachado de anarquista
pelos conservadores, a exemplo do pensador francês tradicionalista
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Maurice Barrès (1862-1923). Em nosso século a presença rousseauniana


continua atuante: Fidel Castro, líder da Revolução Cubana de 1959, gostava
de declarar que combateu a ditadura de Batista "com o Contrato social
no bolso". Parafraseando o escritor russo Léon Tolstói (1828-1910),
também outro grande admirador e seguidor de Rousseau, podemos dizer
que seu pensamento, ao invés de envelhecer com o transcurso do tempo,
rejuvenesce cada vez mais.

Na filosofia

No plano propriamente filosófico, veremos como a repercussão desse


pensamento é igualmente aguda. A começar pelo filósofo Emmanuel Kant,
a obra de Rousseau é vista como um verdadeiro marco na história das
idéias. É o que verificamos numa passagem de um dos seus escritos:

Newton foi o primeiro a discernir ordem e regularidade em


combinação com grande simplicidade, onde antes dele os homens
encontravam desordem e diversidade sem relação. Desde Newton
os cometas seguem órbitas geométricas. Rousseau foi o primeiro a
descobrir, entre as formas variáveis que assume a natureza
humana, a essência profundamente oculta do homem e as leis se-
cretas de acordo com as quais a Providência é justificada por suas
observações.

Fragmentos VIII, 630

Referindo-se à conceituação de Estado, presente no Contrato, Hegel


diz:

Rousseau teve o mérito de estabelecer um princípio que, não


somente em sua forma (..) mas também em seu conteúdo, é um
pensamento e, a bem dizer, o pensamento nele mesmo, pois que
coloca a vontade como princípio do Estado.
Princípios da Filosofia do Direito, § 258
Dada a importância da reflexão sobre a constituição do social e de
sua gênese histórica na obra de Rousseau, é possível afirmar que ele não
apenas está nas origens do pensamento sociológico como fornece os
elementos para a grande revolução teórica realizada por Hegel (1770-1831) e
por Karl Marx (1818-1883), que colocam em bases inteiramente novas o
estudo da história social dos homens. Já Friedrich Engels (1820-1895),
em sua obra Anti-Dühring, via elementos do método dialético — que fora
sistematizado por Hegel — já na genealogia exposta no Discurso sobre a de-
sigualdade. Segundo Rousseau, a evolução da humanidade, caminha na
base da contradição entre termos opostos.
Se avançamos até nosso século e sem esquecer o debate político atual
em torno da questão da democracia, que coloca o pensament o
rousseauniano novamente na ordem do dia, acompanhemos Lévi-
Strauss, que no artigo "J.-J. Rousseau, fundador das ciências do homem"
ressalta com precisão toda a importância de Rousseau para o pensamento
antropológico:
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Rousseau não se limitou a prever a etnologia: ele a fundou.


Em primeiro lugar, de maneira prática, escrevendo esse Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, que coloca o problema das relações entre a natureza e a
cultura e onde podemos ver o primeiro tratado de etnologia geral; e,
em seguida, no plano teórico, distinguindo, com uma clareza e
uma concisão admiráveis, o objeto próprio do etnólogo, do
moralista e do historiador. Quando se quer estudar os homens —
afirma Rousseau — é preciso olhar perto de si; mas para estudar
o homem é preciso aprender a levar sua vista para longe; é
preciso primeiro observar as diferenças para descobrir as
propriedades. (Ensaio sobre a origem das línguas)

O caminhante solitário
Apresentamos dois textos extraídos dos Devaneios do caminhante solitário. O primeiro
é da "primeira caminhada"— termo usado por Rousseau para qualificar as divisões da
obra — e o segundo faz parte da "sétima caminhada". As "caminhadas" dessa obra
inacabada são em número de dez.
[Resignação]

Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão próximo,
amigo, companhia. O mais sociável e o mais amável dos humanos dela foi proscrito por um
acordo unânime. Procuraram nos refinamentos de seu ódio que tormento poderia ser o
mais cruel para minha alma sensível e quebraram violentamente todos os elos que me
ligaram a eles. Teria amado os homens a despeito deles próprios. Eles só conseguiram se
furtar a minha afeição deixando de sê-lo. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, nulos,
afinal, para mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado deles e de tudo, o que sou? Eis o
que me falta procurar. Infelizmente esta pesquisa deve ser precedida de um exame da
minha posição. É uma idéia pela qual é preciso necessariamente que eu passe para chegar
deles até mim.
Após quinze anos e até mais que me encontro nessa estranha posição, ela me parece
ainda um sonho. Imagino sempre que uma indigestão me atormenta, que tenho um pesadelo
e que vou acordar entre meus amigos, aliviado da minha dor. Sim, sem dúvida, sem o
perceber devo ter dado um salto da vigília ao sono, ou antes, da vida para a morte.
Arrancado não sei como da ordem das coisas, eu me vi precipitado em um caos
incompreensível em que não percebo absolutamente nada e, quanto mais penso em minha
situação presente, menos posso compreender onde estou.
Oh! como teria podido prever o destino que me esperava? Como posso concebê-lo até
mesmo hoje quando a ele estou entregue? Podia eu no meu bom senso supor que, um dia,
eu, o mesmo homem que era, o mesmo que sou ainda, passaria, seria tido sem a menor
dúvida por um monstro, um envenenador, um assassino, que me tornaria no horror da raça
humana, no joguete da canalha, que toda a saudação que me fariam os passantes seria a de
escarrar sobre mim, que toda uma geração, de comum acordo, se divertiria enterrando-me
ainda vivo? Quando se deu essa estranha revolução, tomado de surpresa, senti-me a princípio
transtornado. Minhas agitações, minha indignação mergulharam-me num delírio que não
precisou de menos de dez anos para se acalmar e, nesse intervalo, tendo caído de erro em
erro, de engano em engano, de tolice em tolice, forneci com minhas imprudências aos
diretores de meu destino outros tantos instrumentos que eles habilmente puseram em ação
para fixá-lo irremediavelmente.
Debati-me por muito tempo tão violenta quanto inutilmente. Sem habilidade, sem
perícia, sem dissimulação, sem prudência, franco, aberto, impaciente, arrebatado, debatendo-
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me, não fiz outra coisa senão deixar-me enlaçar ainda mais e dar-lhes continuamente novos
poderes, que não negligenciaram. Sentindo, afinal, todos os meus esforços inúteis e me
atormentando inutilmente, tomei a única decisão que me restava: submeter-me à minha
sorte, sem mais resistir contra o destino. Encontrei nessa resignação a compensação a todos
os meus males, pela tranqüilidade que ela me traz e que não podia aliar-se ao trabalho
contínuo de uma resistência tão penosa quanto infrutífera.(...)

[Botânica]
A coletânea de meus longos sonhos apenas começou e já sinto que chega ao fim. Uma
outra distração lhe sucede, me absorve e me tira até mesmo o tempo de sonhar. Entrego-me
a ela com um entusiasmo que chega às raias da extravagância e que a mim mesmo faz rir
quando reflito no assunto; mas não deixo de a ela me entregar, pois na situação em que
me encontro não tenho outra regra de conduta a não ser a de seguir, em tudo, minha
inclinação sem constrangimento. Nada posso contra meu destino, tenho somente
inclinações inocentes e todos os julgamentos dos homens sendo, de agora em diante,
inexistentes para mim, a própria sabedoria quer que, no que permanece ao meu alcance,
faça tudo o que me agrada, seja em público, seja a sós, sem outra regra senão a minha
fantasia, sem outra medida além das poucas forças que me restaram. Eis-me, portanto,
reduzido a meu feno como alimento e à botânica como ocupação. Já velho, tomara por ela
o primeiro gosto na Suíça, junto ao Dr. d'Ivernois e herborizara bastante bem, durante
minhas viagens para adquirir um conhecimento passável do reino vegetal. Mas, tendo-me
tornado mais do que sexagenário e sedentário em Paris, as forças começando a me faltar
para as grandes herborizações e, aliás, entregue o suficiente à minha cópia de música para
não ter necessidade de outra ocupação, abandonara essa distração que não me era mais
necessária: devolvera meu herbário, vendera meus livros, contente por rever, algumas vezes,
as plantas comuns que encontrava ao redor de Paris em minhas caminhadas. Durante esse
intervalo, o pouco que sabia desapareceu quase completamente de minha memória e bem
mais rapidamente do que levara para se fixar.
De repente, com mais de sessenta e cinco anos, privado da pouca memória que tinha e
das forças que me restavam para percorrer o campo, sem guia, sem livros, sem jardim, sem
herbário, eis-me possuído de novo por essa loucura, mas com mais ardor ainda do que tive
quando a ela me entreguei pela primeira vez; eis-me seriamente ocupado com o sábio
projeto de aprender de cor todo o Regnum vegetabile, de Murray, e de conhecer todas as
plantas conhecidas da Terra.
(...) Não procuro justificar a decisão que tomo de seguir essa fantasia; acho-a
muito razoável, persuadido de que, na situação em que me encontro, entregar-me aos
divertimentos que me agradam é uma grande sabedoria e mesmo grande virtude: é a
maneira de não deixar germinar em meu coração nenhum fermento de vingança ou de ódio,
e, para encontrar ainda em meu destino algum gosto por uma diversão, é preciso
seguramente ter um natural bem depurado de todas as paixões irritantes. Isso significa
vingar-me de meus perseguidores à minha maneira, não poderia puni-los mais cruelmente do
que sendo feliz apesar deles.
Sim, sem dúvida, a razão me permite, me prescreve mesmo entregar-me a toda
inclinação que me atrai e que nada me impede de seguir; mas ela não me ensina por que
essa inclinação me atrai e que atrativo posso encontrar em um vão estudo feito sem
proveito, sem progresso e que, embora sendo um velho, tonto, já caduco e pesado, sem
facilidade, sem memória, me reconduz aos exercícios da juventude e às lições de um
escolar. Ora, é uma extravagância que gostaria de explicar a mim mesmo; parece-me que,
bem elucidada, ela poderia lançar alguma nova luz sobre esse conhecimento de mim mesmo,
a cuja aquisição consagrei meus últimos lazeres.
Algumas vezes, pensei com bastante profundidade, mas raramente com prazer, quase
sempre contra minha vontade e como à força: o devaneio me descansa e me diverte, a
reflexão me cansa e me entristece; pensar foi sempre para mim uma ocupação penosa e sem
encanto. Algumas vezes meus devaneios acabam pela meditação, mas mais freqüentemente
minhas meditações acabam pelo devaneio, e durante tais divagações minha alma vagueia e
plana no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que ultrapassam qualquer outro
gozo.
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