Você está na página 1de 599

Copyright © Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, 2020

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998.


Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os
meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
A publicação do presente livro foi viabilizada pela utilização dos recursos concedidos
ao projeto "Governança e o direito à cidade: conhecimento, inovação e ação para
o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro" (Proc. E-26/203.026/2016) na
forma de bolsa Cientista de Nosso Estado (Edital nº 09/2016) pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), a quem agradecemos
o seu amparo e apoio. Ressalta-se a continuidade e permanência deste apoio,
de caráter fundamental à Ciência brasileira, em parceria ainda com outras
instituições de financiamento de pesquisa, no nível federal, cuja existência está
vinculada à sustentação de toda pesquisa desenvolvida em território nacional.
Desse modo, registramos em complemento nosso agradecimento também às agências
CAPES e CNPq, responsáveis igualmente pela construção e permanência de
nosso programa INCT Observatório das Metrópoles.

Editor João Baptista Pinto


Capa Rian Narcizo Mariano
Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães
Revisão Rita Luppi

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R369m
Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz, 1947-
As metrópoles e o capitalismo financeirizado / Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
- 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital : Observatório das Metrópoles, 2020.
600 p. : il. ; 15,5x23cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7785-730-2
1. Ciências sociais. 2. Urbanização - Brasil. 3. Capitalismo. Política urbana - Brasil.
I. Título.
20-64362 CDD: 307.760981
CDU: 316.334.56(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Observatório das Metrópoles - IPPUR/UFRJ


Coordenação Geral: Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Av. Pedro Calmon, 550, sala 537, 5º andar – Ilha do Fundão
Cep 21.941-901 – Rio de Janeiro, RJ
Tel/Fax 55-21-3938-1950
www.observatoriodasmetropoles.net

Letra Capital Editora


Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781
letracapital@letracapital.com.br
Conselho Editorial
Coleção Metrópoles
Dr. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro – IPPUR/UFRJ
Presidente do Conselho
Dr. Adauto Lucio Cardoso – IPPUR/UFRJ
Dra. Ana Lucia de Paiva Britto – PROURB/UFRJ
Dra. Ana Lúcia Rodrigues – PPGCS/UEM
Dra. Andrea C. Catenazzi – UNGS/Argentina
Dr. Aristides Moysés – PUC-Goiás
Dra. Celene Cunha Monteiro Antunes Barreira – IESA/UFG
Dr. Emilio Pradilla Cobos – UAM
(Universidade Autonoma Metropolitana), México
Dr. Eustógio Wanderley C. Dantas – PPGG/UFC
Dr. Frederico Rosa Borges de Holanda – FAU/UNB
Dr. Gilberto Corso Pereira – FAU/UFBA
Dra. Inaiá Maria Moreira de Carvalho – PPGCS/UFBA
Dr. José Borzacchiello da Silva – PPGDMA/UFC
Dr. Juliano Pamplona Ximenes Ponte – FAU/UFPA
Dra. Jupira Gomes de Mendonça – FAU/UFMG
Dra. Livia Izabel Bezerra de Miranda – FAU/UFCG
Dra. Lúcia Maria Machado Bógus – PPGCS/PUC-SP
Dra. Luciana Correa do Lago – IPPUR/UFRJ
Dra. Luciana Teixeira Andrade – PPGCS/PUC Minas
Dr. Luciano Joel Fedozzi – Dept. Sociologia/UFRGS
Dr. Luís Renato Bezerra Pequeno – FAU/UFC
Dra. Madianita Nunes da Silva – FAU/UFPR
Dra. Marcia da Silva Pereira Leite – IFCS/UERJ
Dr. Manuel Villaverde Cabral – Universidade de Lisboa
Dr. Marcelo Gomes Ribeiro – IPPUR/UFRJ
Dra. Maria Angela de Almeida Souza – FAU/UFPE
Dra. Maria Clélia Lustosa Costa – Dept. Geografia/UFC
Dra. Maria do Livramento Miranda Clementino – NAPP/UFRN
Dra. Marinez Villela Macedo Brandão – UNIFESP
Dra. Maura Pardini Bicudo Véras – PPGCS/PUC São Paulo
Dra. Olga Firkowski – Dept. Geografia/UFPR
Dr. Orlando Santos Junior – IPPUR/UFRJ
Dr. Pablo Silva Lira – FAU/UVV
Dr. Paulo Roberto Rodrigues Soares – Dept. Geografia/UFRGS
Dr. Roberto Kant de Lima – INCT-InEAC/UFF
Dr. Rômulo José da Costa Ribeiro - PPG-FAU/UNB
Dra. Rosa Moura – IPARDES/PR
Dra. Rosetta Mammarella – FEE/RS
Dr. Sergio de Azevedo – CCH/UENF
Dra. Suzana Pasternak – FAU/USP
Sumário

Nexos Financeirização/Urbanização: construindo


um marco teórico........................................................................... 7
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Igor Pouchain Matela
Nelson Diniz
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Parte I – Financeirização, Capitalismo e Dependência


Crise de sobreacumulação global iniciando
uma crise de civilização........................................................ 63
François Chesnais
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos
geopolíticos no século XXI: uma visão prospectiva........... 89
Carlos Eduardo Martins
Financierización en América Latina: implicancias
de la integración financiera subordinada ........................ 119
Annina Kaltenbrunner
Juan Pablo Painceira
Parte II – Financeirização, Capitalismo e Território
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos
sistêmicos de acumulação e de urbanização..................... 167
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Nelson Diniz
Circuitos de extração: valor em processo
e o nexo mineração/cidade............................................... 219
Martín Arboleda
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?... 245
Neil Brenner
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana
em tempos de reemergência das finanças globais............ 275
Jeroen Klink
A metrópole para além da nação: globalização e
crise urbana......................................................................... 311
Maurilio Lima Botelho
Urbanización del capital y difusión de ideologías
urbanas en América Latina: la ciudad como
máquina de crecimiento económico.................................. 339
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Marcelo Rodríguez Mancilla
Parte III – Os Ajustes Regulatórios da Ordem Urbana Brasileira
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem
urbana brasileira: explorando algumas hipóteses............ 371
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Capitalismo sob dominância financeira e a
terra urbana – uma análise do caso brasileiro
a partir da regulação fundiária.......................................... 419
Tarcyla Fidalgo Ribeiro
A financeirização do Estado por meio da
securitização de ativos no Brasil........................................ 443
Igor Pouchain Matela
Nelson Diniz
Parte IV – Estudos de Caso
Grupos econômicos e acumulação
urbana na cidade do Rio de Janeiro: Odebrecht e
Carvalho Hosken................................................................ 489
Lucas Faulhaber
Hipolita Siqueira
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária
e a (re)produção da metrópole.......................................... 519
Alexandre Yassu
Parceria público-privada para construção de moradia
popular: fundamentos institucionais para a expansão
do mercado de habitação em São Paulo........................... 551
Alvaro Luis dos Santos Pereira
Gabriel Maldonado Palladini
Parte V – Roteiro de leituras a partir da experiência
do Grupo Metrópole, Estado e Capital: bibliografia
comentada................................................................................... 583
Nexos Financeirização/Urbanização:
construindo um marco teórico

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro


Igor Pouchain Matela
Nelson Diniz
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

O presente livro reúne os resultados do trabalho coletivo


de pesquisa e reflexão realizado pelos integrantes do
Grupo de Pesquisa Metrópole, Estado e Capital, criado em
2015, no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Observatório das Metrópoles. Na origem, a principal justifica-
tiva para a criação deste grupo deveu-se ao interesse dos seus
integrantes em estabelecer um diálogo teórico e analítico entre
a matriz teórica braudeliana-arrighiana1 e o pensamento crítico
presente no campo dos estudos urbanos e regionais. Ao fazê-lo,
buscávamos alternativas de interpretação sobre as conexões
entre as transformações do capitalismo, em curso desde os anos
1970, e os processos de reestruturação urbana-regional em suas
variadas dimensões, como a econômica, social, política e cultural.
Os capítulos resultam da produção dos seus integrantes e
de autores e autoras com quem mantivemos interações intelec-
tuais, diretas ou indiretas, compartilhando indagações, análises e
inquietações teóricas.
A unidade do livro é dada pelos marcos teóricos, analíticos e
empíricos construídos pelo grupo a partir da leitura e discussão
sistemáticas de vasta bibliografia, nacional e internacional, em

1
Por matriz teórica braudeliana-arrighiana entendemos as correntes consti-
tuídas em torno do conceito de capitalismo histórico, inspiradas pelas obras
de Fernand Braudel e cujos mais renomados expoentes são Giovanni Arrighi,
Immanuel Wallerstein, Samir Amin, Janet Abu-Lughod, André Gunder Frank,
entre outros. No Brasil e na América Latina, são conhecidos representantes
dessa matriz teórica Theotônio dos Santos, Carlos Eduardo Martins, Marcelo
Arend, entre outros. Mais adiante explicitamos a maneira pela qual manejamos
essa matriz teórica em nossa investigação.

7
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

torno da dimensão financeira da atual lógica rentista do capita-


lismo. Bibliografia que considera, ainda, as possíveis expressões
dessa lógica na dinâmica da produção do espaço urbano. Portanto,
os textos aqui reunidos dialogam com as várias correntes do
pensamento crítico organizado em torno da hipótese da finan-
ceirização do capitalismo pós-1970. Segundo a literatura sobre o
tema, a financeirização não se resume à esfera da economia, mas
atinge em múltiplas escalas os domínios da vida social, política e
mesmo cotidiana. É isso que sugere, por exemplo, o argumento
de Aalbers (2015), cuja obra tem grande influência nesse debate
e no campo dos estudos urbanos, ou de Braga (1997), para quem
a financeirização representa o padrão sistêmico de riqueza do
capitalismo contemporâneo2.
A literatura sobre financeirização se multiplicou e se diversi-
ficou em suas abordagens após a crise de 2007-2009, passando a
ter enorme influência em diversas disciplinas das ciências sociais
e promovendo incontestáveis avanços na investigação dos atri-
butos do capitalismo contemporâneo. Até então era um tema
pouco presente na agenda de pesquisa do campo dos estudos
urbanos, tanto no Brasil quanto nos demais países da América
Latina. É pioneira a pesquisa de Fix (2007) sobre os fundamentos
financeiros da conversão de São Paulo em uma cidade global,
mas até então a financeirização urbana, propriamente dita, era
uma questão marginal e pouco teorizada. Por outro lado, as
principais investigações sobre a reestruturação das cidades lati-
no-americanas e sua correspondência com as características
do capitalismo contemporâneo pautavam-se, muito mais, pelos
2
Aalbers (2015) define a financeirização do seguinte modo: “Dominância cres-
cente de atores, mercados, práticas, medidas e narrativas financeiras, em múlti-
plas escalas, resultando na transformação estrutural das economias, das corpo-
rações (incluindo instituições financeiras), dos Estados e das famílias” (p. 214,
tradução nossa). Braga (1997), por sua vez, considera a financeirização como
o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo porque “ela não
decorre apenas da práxis de segmentos ou setores – o capital bancário, os ren-
tistas tradicionais –, mas, ao contrário, tem marcado as estratégias de todos os
agentes privados relevantes, condicionando a operação das finanças e dispên-
dios públicos, modificando a dinâmica macroeconômica” (p. 196). Enfim, para
o autor, a financeirização é intrínseca à configuração contemporânea do capita-
lismo, manifestando-se “nas finanças das famílias (até porque seus rendimentos
provenientes do trabalho vêm sofrendo limitações), nas finanças empresariais,
na rentabilidade dos financistas e nas finanças do Estado” (p. 227).

8
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

processos de globalização e neoliberalização. O que não significa


que a problemática da dominância financeira estivesse comple-
tamente ausente, uma vez que temas e termos tais como globali-
zação financeira já eram objeto de atenção.
Como observa Lapavitsas (2013), o fenômeno sublinhado
pelo conceito de financeirização remete a alguns dos atributos
mais importantes da globalização, a exemplo do alcance global
dos mercados de capitais, dos fluxos de empréstimos e da esfera
de atuação das instituições financeiras. Ao mesmo tempo, as refle-
xões sobre o neoliberalismo dificilmente escapam da alusão à
proeminência dos capitais de aplicação financeira, como é o caso
da abordagem de Duménil e Lévy (2014) ou de Harvey (2008b).
Enfim, como sugerem autores como Epstein (2005) e
Foster (2007), globalização, neoliberalização e financeirização
formam uma tríade de conceitos/processos inter-relacionados
que indicam os traços gerais da atual fase de desenvolvimento
do capitalismo. Mas, como defendido por Christophers (2015),
podemos constatar na literatura sobre as transformações do
capitalismo produzida nos anos 1990, 2000 e 2010 a sucessão da
predominância de cada um desses conceitos.
Assim, diga-se novamente, apenas depois da crise de 2007-
2009, trabalhos como os de Royer (2009), Fix (2011), Sanfelici
(2013), Pereira (2015), Rolnik (2015), Shimbo (2016) e Rufino
(2017) passaram a utilizar, com mais frequência, o conceito
de financeirização para interpretar as dinâmicas recentes da
produção social do espaço urbano no Brasil. Trabalhos dedicados
sobretudo aos mercados imobiliários residenciais e ao tema dos
chamados grandes projetos de reestruturação urbana impulsio-
nados, principalmente, pelo intenso ciclo dos megaeventos espor-
tivos. Ao mesmo tempo, surgem os primeiros esforços de revisão
e sistematização da literatura nacional e internacional sobre a
financeirização, como, por exemplo, os de Klink e Barcelos de
Souza (2017) e de Ribeiro e Diniz (2017), ambos inseridos em uma
edição de Cadernos Metrópole especialmente dedicada ao debate
sobre a dominância financeira. Cabe destacar, ainda, a obra orga-
nizada por Schimbo e Rufino (2019), que consiste numa seleção
de trabalhos apresentados no seminário internacional “Financei-
rização e estudos urbanos: olhares cruzados Europa e América

9
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Latina”, realizado em maio de 2018 no Instituto de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP).
Nos demais países da América Latina ocorreu algo seme-
lhante, uma vez que os primeiros estudos aludindo mais frequen-
temente à financiarización urbana são posteriores à crise de 2007-
2009. Dentre eles, podemos ressaltar, por exemplo, os de Pineda
(2011), Daher (2013a; 2013b; 2014), Cetre (2015), De Mattos
(2014; 2016), Martínez-Toro (2016) e Socoloff (2019). Estudos
apresentados em um contexto que, na escala continental, acom-
panhou a expansão da literatura internacional sobre a financeiri-
zação em geral e a urbana em particular.
Em articulação com esse movimento acadêmico, nosso
Grupo de Pesquisa Metrópole, Estado e Capital resolveu desdo-
brar o investimento anterior realizado em torno dos temas da
globalização e da neoliberalização. Para tanto, nos emprenhamos
em compreender teoricamente o tema da financeirização, seus
impactos e possíveis desdobramentos nas dinâmicas urbanas e
metropolitanas. Partíamos de um relativo incômodo intelectual
a respeito do modo como a hipótese da financeirização vinha
sendo absorvida na América Latina e no Brasil.
Por exemplo, à semelhança do que ocorreu com a globali-
zação, achávamos existir certo mecanicismo na maneira como
as reflexões acerca da financeirização eram transferidas para o
contexto periférico. Em geral, a dominância financeira tendia a
ser interpretada como uma ideia autoevidente e uma transfor-
mação do capitalismo cuja amplitude e profundidade modificava
direta e plenamente o funcionamento da economia, a reprodução
da sociedade e a reestruturação das cidades e dos territórios lati-
no-americanos. O que, em nossa opinião, exigia, no mínimo, a
construção de mediações teóricas e históricas.
Além disso, nosso incômodo foi reforçado pelo contato com
os argumentos de Christophers (2015), para quem a influência
crescente do conceito de financeirização, apesar dos avanços,
também resultou em uma relativa imprecisão, em termos de deli-
mitação do fenômeno. Segundo o autor, o balanço da vasta, cres-
cente e diversificada literatura sobre o tema indica a existência
de uma espécie de buzzword. Ou seja, tanto a emergência de um
“chavão”, de um “lugar-comum” nas formas de compreensão da

10
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

dominância financeira, quanto uma “bagunça” conceitual que,


no extremo, pode diminuir a capacidade de mobilizar essa ideia
para oferecer uma crítica do capitalismo e uma explicação de
distintos processos societários.
Em sua revisão da literatura anglo-saxônica, Christophers
(2015) faz alusão aos limites analíticos, teóricos, estratégicos,
ópticos e empíricos da financeirização.
Os limites analíticos correspondem aos riscos de frag-
mentação do conceito, de comprometimento de sua coerência
básica e redução de seu poder explicativo, especialmente em
virtude de sua acelerada e demasiada expansão, sem maiores
rigores em termos da definição e do alcance desse mesmo
conceito. Os limites ditos teóricos referem-se à maior ou
menor profundidade de insights genuinamente novos produ-
zidos pelo discurso em torno da financeirização. Os limites
estratégicos, por sua vez, apontam que os retornos positivos
do investimento nesse discurso devem diminuir rapidamente,
tendo em vista, por exemplo, que as pesquisas acerca da finan-
ceirização desencorajaram e obstruíram outras investigações
sobre as finanças de importância igual ou, talvez, maior, como
as que concernem aos seus fundamentos monetários e aos
seus vínculos com os poderes estatais e territoriais. Os limites
ópticos assinalam que as escalas espaço-temporais acionadas
para compreender a financeirização costumam exagerar a
magnitude e a novidade histórica desse processo. Por fim, os
limites empíricos ressaltam que as narrativas sobre a domi-
nância financeira tendem a designá-la como uma tendência
linear, ininterrupta e inelutável.
O investimento do Grupo de Pesquisa Metrópole, Estado
e Capital, na forma de leitura da bibliografia, produção de
dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicação de
artigos e apresentação de comunicações em eventos científicos
– culminando no presente livro –, teve como objetivo contribuir
nesse debate teórico e conceitual, buscando a construção de
marcos de reflexão sobre a dominância financeira que ajudassem
a superar aqueles limites. Nesse sentido, começamos a mapear
e compreender as distintas matrizes teóricas que dão sentido
à financeirização, como as leituras marxistas, keynesianas,

11
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

pós-keynesianas, regulacionistas, histórico-estruturais, as análises


do sistema-mundo, dentre outras. Algumas das quais foram
incorporadas, ao longo do tempo, à nossa própria maneira de
compreendê-la, marcadamente influenciada pelo contato com a
matriz braudeliana-arrighiana.
No decorrer da nossa investigação, incorporamos também,
como marco teórico orientador das nossas reflexões, o debate
sobre a característica rentista assumida pela atual fase da
expansão do capitalismo. Fizemos isso em razão da sua afini-
dade com aquela matriz teórica e por oferecer um quadro de
compreensão mais amplo do fenômeno da financeirização. Expli-
citemos os fundamentos dessa escolha.

Capitalismo histórico, rentismo e financeirização


Em consonância com Paulani (2013), podemos dizer que
a definição do capitalismo financeirizado, apesar do que possa
parecer, não é dada, prioritariamente, por sua dimensão espe-
culativa. Isso porque a especulação generalizada deveria ser
compreendida, ao contrário, como “um subproduto derivado
da recorrente formação de bolhas de ativos provocada pelo cres-
cimento descontrolado da riqueza financeira” (p. 254). Assim,
em que pese a importância dessa dimensão, a autora destaca o
rentismo, e não a especulação, como a mais decisiva caracterís-
tica da etapa atual de desenvolvimento do capitalismo. Perspec-
tiva semelhante à de Braga (1997), que reconhece que o “jogo e
a especulação se tornaram sistêmicos”, mas que sublinha, princi-
palmente, a institucionalização do rentismo, “no sentido de que
parece responder a necessidades sociais básicas (urdidas pelo
dinheiro como capital), identificável em códigos de conduta,
com caráter de relativa permanência” (p. 227).
Acompanhando os pressupostos da economia política
marxista, em particular os que se encontram no Livro III de
O capital, a interpretação de Paulani (2013) sugere que os
rendimentos obtidos pelo capital podem ser divididos em duas
categorias. De um lado, os que derivam da propriedade, isto é,
do capital que está fora do processo de produção e busca retornos
na forma de juros, rendas e dividendos. De outro, os que são

12
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

formados dentro do processo de produção, assumindo a forma do


lucro propriamente dito.
O primeiro caso refere-se, por exemplo, aos empréstimos
concedidos pelos proprietários do dinheiro aos capitalistas
funcionantes – tal como Marx denominou os agentes que operam
diretamente na esfera da produção –, aos retornos oriundos da
propriedade da terra, de ações, de títulos, dentre outros ativos. O
segundo, à organização e controle de processos produtivos deter-
minados, quer dizer, à combinação da propriedade dos meios de
produção com a exploração do trabalho, resultando na criação
de excedentes na forma de mais-valia (lucro).
Atualmente, haveria uma centralidade dos mecanismos de
acumulação que se baseiam na lógica descrita para o primeiro
caso. Ou seja, no que tange às atividades dos principais agentes
capitalistas, os rendimentos derivados da propriedade estariam
se tornando cada vez mais importantes, em detrimento dos que
se originam na produção. Em outras palavras, hoje, o poder
capitalista estaria “crescentemente articulado em torno a paga-
mentos de rendas, sejam elas provenientes da exploração de
recursos naturais, da criação de monopólios, da existência de
diferenciais de produtividade, ou das mais diferentes formas de
rent seeking” (PAULANI, 2016, p. 526). A autora chega mesmo
a afirmar que “o capital terceirizou a exploração, delegou a
outrem o trabalho de comandar a expropriação, deixou de lado
o lucro e instalou-se confortavelmente nos espaços sociais que
lhe garantem ganhos” (p. 533-534).
Note-se que, à semelhança de leituras como a de Chesnais
(2002; 2016), a autora sustenta que a financeirização não anula
o trabalho social como fundamento do valor, e, portanto, não
deixa de considerar o juro e a renda como categorias distribu-
tivas da mais-valia, criada na esfera da produção. Sua análise
apenas indica uma predominância cada vez maior da externali-
dade, do comando da acumulação capitalista de fora do processo
de produção, permitindo-lhe defender, diga-se novamente, que o
rentismo, “definido como o movimento de valorização do valor
que tem como causa a mera propriedade” (PAULANI, 2013 p.
254), é a chave fundamental de compreensão das dinâmicas do
capitalismo contemporâneo.

13
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Essa forma de definir a centralidade contemporânea do


rentismo tornou-se fundamental para o desenvolvimento de
nossas investigações, uma vez que passamos a considerar, à luz
da matriz braudeliana-arrighiana, que o capitalismo é a camada
superior não especializada da vida econômica, cujo fim é trans-
formar dinheiro em mais dinheiro (D-D’), seja na forma de
lucro ou renda. Quer dizer, hoje, e talvez isso seja verdadeiro
para outros momentos, o rentismo é “constitutivo do processo
de acumulação, e não um ‘pecado contra a acumulação’, como
chegou a ser interpretado pela economia política quando de
seu nascimento” (PAULANI, 2016, p. 526). Ainda que continue
sendo necessário encontrar as atuais correspondências entre o
que ocorre na esfera da busca e captura de rendas e o que é
próprio da esfera da produção.
No que concerne à financeirização, constatamos que
as distintas abordagens podem ser classificadas, a princípio,
segundo duas maneiras básicas de enfrentar o debate. Por um
lado, existem as perspectivas mais comprometidas com uma
espécie de teoria geral das atuais transformações do capitalismo.
Por outro, há as que se referem a essas transformações como algo
dado e que não precisa, necessariamente, ser problematizado
em termos teóricos. Desde o início, procuramos escapar desse
segundo viés. Nossas primeiras aproximações ao debate, sobre-
tudo a partir do contato com a literatura a respeito da financeiri-
zação urbana, indicaram, precisamente, a necessidade de maior
rigor teórico e conceitual.
Tal como ressaltou Christophers (2015) sobre os limites do
debate da financeirização, sustentamos não só o imperativo de
ampliar a teorização acerca desse conceito, mas também a possi-
bilidade de o tratar segundo alguns âmbitos de análise funda-
mentais, como o da financeirização da governança corporativa,
da vida cotidiana, do Estado e da propriedade imobiliária. Inte-
ressa-nos, acima de tudo, esse último âmbito, uma vez que nossas
preocupações centrais giram em torno dos impactos da domi-
nância financeira nas dinâmicas urbanas e metropolitanas.
Ademais, nossas pesquisas têm sido pautadas por outras
questões básicas, referidas, por exemplo, às narrativas e ideo-
logias legitimadoras da financeirização, aos modos como ela se

14
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

realiza na periferia do sistema-mundo e às relações entre mercan-


tilização e financeirização. Todas elas mediadas, repita-se, pela
ênfase nas dimensões da produção social do espaço, do uso e da
apropriação dos territórios.
Enfim, levando em conta o que foi dito até aqui, o prin-
cipal objetivo desta publicação é apresentar os resultados da
nossa investigação teórica, supondo que isso possa contribuir
com o desenvolvimento do debate sobre a financeirização, em
especial no campo dos estudos urbanos. Esse objetivo explica,
por exemplo, o fato de incluirmos, ao final do livro, resumos dos
artigos e obras que foram objeto dessa investigação. Com esses
resumos e com o que é dito a seguir, oferecemos um mapa do
nosso percurso e do repertório de ideias, conceitos e análises
presentes no debate em questão.

Mapa do percurso: à busca de fagulhas inspiradoras


Em nossa opinião, a compreensão mais delimitada e precisa
da financeirização depende do que entendemos como capita-
lismo no campo do pensamento crítico, fundado, notadamente,
na perspectiva marxista3. Nesse aspecto em particular, há ao
menos três posições distintas, ainda que relativamente conver-
gentes. Posições expressas nos seguintes conceitos: i) de modo
de produção, que remonta à obra do próprio Marx; ii) de regime
de acumulação e de modo de regulação, elaborados, original-
mente, pela escola da regulação francesa, mas utilizados por
autores marxistas, como Chesnais (2002); e iii) de capitalismo
como sistema histórico mundial, de viés braudeliano e trazido
para o debate sobre a dominância financeira contemporânea por
Arrighi ([1994] 2003).
O reconhecimento dessas três posições também foi um
ponto de partida de nossa pesquisa, tendo sido mobilizados
autores e obras representantes de cada uma delas. Tomamos
como referência básica o diálogo entre essas vertentes, mas
3
A alusão ao marxismo não é arbitrária, pois, como observa Lapavitsas (2013):
“A financeirização [...] tem origens marxistas e suas marcas de nascença per-
maneceram evidentes mesmo quando o termo foi empregado por diferentes
tradições intelectuais” (p. 19, tradução nossa).

15
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

assumindo a centralidade da matriz teórica braudeliana-arri-


ghiana, em virtude de afinidades eletivas com as concepções
e interesses teóricos dos integrantes do grupo e por permitir
pensar o capitalismo como sistema de produção, circulação
e distribuição em sua relação com a história e a sociedade. A
partir dessa escolha, nossa intenção foi a de identificar paisa-
gens teóricas e conceituais, considerando textos que tratam
direta ou indiretamente da financeirização, e construir um
repertório por intermédio do qual poderíamos interpretar
o fenômeno e sua incidência nas dinâmicas territoriais. Ou
seja, pretendíamos formular um ponto de vista coerente com a
nossa opção teórica e axiológica, mas legitimado pelo diálogo
sistemático com outras abordagens.
Nos animava, igualmente, a atitude intelectual de David
Harvey, mencionada na famosa entrevista à New Left Review
e traduzida na metáfora da busca de inspiração pelo ato de
friccionar rochas distintas, blocos conceituais, para produzir
fagulhas, “fogo intelectual”, com capacidade de induzir movi-
mentos de inovação dentro de um arcabouço teórico4.
Ao mesmo tempo, assumimos que a financeirização deveria
ser entendida como um fenômeno de afirmação e ampliação, e
não de deformação, da lógica do capital como forma de produção,
circulação e distribuição de mercadorias, bem como de repro-
dução da vida social. Fato que se expressaria nas respostas dos
principais agentes capitalistas às contradições acumuladas em
fases de desenvolvimento anteriores, sintetizadas na referência à
crise do fordismo, muito corrente na literatura e acompanhada
pela ascensão do debate em torno da globalização e da neolibe-
ralização. Em virtude dessa orientação, nossos primeiros inves-
timentos de análise correspondiam à busca por alternativas de
leitura para essas duas problemáticas fundamentais. Problemá-
ticas que, ao longo dos últimos anos, permearam os debates no
campo do planejamento e dos estudos urbanos.
No que tange à globalização, existia, entre os integrantes do
grupo, uma inquietação quanto às formas mais difundidas de
utilização desse conceito e seus correlatos para discutir questões
urbanas e territoriais da passagem do século XX ao XXI. Um
4
Cf. Harvey (2005a).

16
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

incômodo, por exemplo, em torno de algumas teses do advento


das cidades globais.
Como sugere Brenner (2019), ao menos desde os anos 1980,
pesquisadores urbanos identificaram a ascensão de inúmeras
cidades globais “como os principais nós espaciais da economia
mundial, os pontos de base locais para a acumulação de capital
em uma era de integração geoeconômica intensificada” (p. 115,
tradução nossa). Desde então, a teoria das cidades globais, emer-
gentes no contexto da globalização, teria se transformado em um
dos quadros de referência mais influentes nas investigações sobre
a urbanização contemporânea e as mudanças na organização
territorial do capitalismo5.
Os avanços do debate a respeito das cidades globais são
incontestáveis, notadamente em termos de explicação das atuais
dinâmicas de reestruturação espaço-temporal e pela capacidade
de penetração em outros campos. Pode-se dizer, a título de ilus-
tração e ainda de acordo com Brenner (2019), que ele encorajou
autores e autoras da economia política internacional e analistas
do sistema-mundo, dentre outros, a levar em conta “as variegadas
geografias subnacionais do capitalismo, que são produzidas por
intermédio dos processos de urbanização” (p. 116, tradução
nossa). O que é igualmente verdadeiro para a consideração das
geografias supranacionais, onde quer que elas tenham sido negli-
genciadas. Nesse sentido, ao relacionar a nova formação escalar
da hierarquia urbana mundial às mais recentes estratégias de
acumulação, esse debate contribuiu para superar a herança esta-
docêntrica e o nacionalismo metodológico característicos de
diversas abordagens em ciências sociais6.
5
A agenda inicial de pesquisa acerca das cidades globais remonta aos textos se-
minais de Friedmann e Wolff (1982) e Friedmann (1986). Note-se, ainda confor-
me Brenner (2019), que os termos “cidade global”, “cidade mundial” e “cidade
globalizada” são facilmente intercambiáveis, sem maiores prejuízos à coerência
teórica e analítica. Ainda que o último seja mais preciso, na medida em que
“ressalta que as cidades em questão não são um ‘tipo’ estático, mas estão pas-
sando por processos específicos de transformação que exigem mais especifica-
ções com referência à dinâmica da globalização” (p. 114, tradução nossa).
6
Referindo-se às elaborações de Ulrich Beck, Maciel (2013) afirma o seguinte
sobre a manifestação do nacionalismo metodológico no âmbito da sociologia
e das reflexões a respeito das desigualdades sociais: “O nacionalismo metodo-
lógico é a percepção da desigualdade social como uma questão estritamente

17
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

No entanto, também há limites nesse debate. Dentre


eles, Brenner (2019) destaca a tendência de minimização da
continuada importância da escala nacional para explicar o papel
dos processos de acumulação, regulação e contestação social na
mediação tanto de padrões globais de urbanização quanto de
trajetórias de desenvolvimento urbano local. Para o autor, as
pesquisas sobre as cidades globais deram lugar ao que poderia ser
chamado de um jogo de soma zero na conceituação das escalas:
“O significado crescente de uma escala geográfica implicando, por
definição, na marginalização, fragmentação ou erosão de outras”
(p. 117, tradução nossa). Tudo isso resultando na difusão mais ou
menos explícita de argumentos sobre o declínio dos poderes dos
Estados nacionais e territoriais, em virtude da predominância de
dinâmicas que operam em escala global, conectadas diretamente
às configurações espaciais locais e regionais7.
Em nossa opinião, tanto o nacionalismo metodológico
quanto a tendência de minimizar a importância explicativa da
escala nacional devem ser questionados, o que temos feito na
forma da alusão à escala sistêmica dos processos globais de
acumulação de poder e capital e da adesão ao arcabouço teórico
braudeliano-arrighiano. Arcabouço capaz de ser mobilizado para
problematizar, ainda, a própria definição da globalização, e sobre-
tudo da financeirização, como fenômenos inéditos na história do
capitalismo. Temos lidado sistematicamente com esse segundo
aspecto, procurando novos horizontes de análise diante das expli-
cações “presenteístas” da atual fase de desenvolvimento do capi-
talismo. Presenteísmo entendido como o exagero da novidade
histórica das tendências que caracterizam o capitalismo contem-
porâneo. O que se manifesta, frequentemente, por intermédio
nacional, o que ignora suas formas globais de produção e reprodução. [...] Este
movimento teórico e político, com seu enfoque exclusivo nos Estados nacionais
como objeto de estudo, torna opacas na análise as forças supranacionais que
conformam as desigualdades sociais” (p. 86).
7
Brenner (2019) resume esse tipo de argumento referindo-se à “suposição du-
vidosa de que o poder do Estado nacional está erodindo sob as condições da
globalização acelerada” (p. 117, tradução nossa). Dardot e Laval (2016), por sua
vez, referem-se à “tese pós-moderna da morte da soberania do Estado e do sur-
gimento de novas formas de poder mundial” (p. 287). Tese equivocada, na pers-
pectiva dos autores, uma vez que não estaríamos diante da erosão dos poderes
do Estado, mas de mudanças em seu formato e em suas modalidades de ação.

18
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

da ênfase em mudanças pretensamente inauguradas após a crise


econômica dos anos 1970.
Grande parte da dinâmica recente de reestruturação socioes-
pacial, responsável por modificar as paisagens urbanas e metro-
politanas tanto no centro quanto na periferia do sistema-mundo,
foi interpretada nos termos do presenteísmo. Mas seria esse o
enquadramento temporal mais adequado para compreender essa
modificação? A cidade e a metrópole contemporâneas resultam
de mudanças totalmente inéditas na história do capitalismo? A
globalização impulsionou, de fato, o completo deslocamento dos
poderes estatais e territoriais em favor das redes e dos fluxos
econômicos dirigidos por agentes econômicos globais, como as
empresas multinacionais?
Por fim, além de não nos parecerem adequados tanto o presen-
teísmo quanto o nacionalismo metodológico, típico dos estudos
urbanos e perpetuado apesar das mudanças advindas da globali-
zação, buscávamos alternativas ou, no mínimo, mediações para as
tendências de transferência, para realidades periféricas, de teorias
formuladas com ênfase no caso dos países centrais. Tendências em
descompasso com a necessidade de uma abordagem não só multies-
calar, mas também histórica e geograficamente contextualizada.
Essas e outras inquietações nos conduziram à obra de
Giovanni Arrighi. A partir dela, desejávamos encontrar respostas
inovadoras para pensar não só a globalização, mas, especialmente,
suas relações com a transformação das cidades e a reestruturação
dos territórios. Em geral, apesar desse autor pensar o capitalismo
como o resultado das articulações sempre tensas e conflituosas
entre dinâmicas de acumulação do capital e do poder territorial,
a sua produção tem sido pouco utilizada no âmbito dos estudos
urbanos. Assim, nos empenhamos numa leitura sistemática de O
longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo, livro mais
importante do autor, ao mesmo tempo em que recorríamos aos
textos que o sucederam, como Caos e governabilidade no moderno
sistema mundial, organizado em parceria com Beverly J. Silver, e
Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI.
No curso da familiarização com a obra de Arrighi, não apenas
assimilamos a teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação, que,
grosso modo, sugere a recorrência de fases de expansão finan-

19
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

ceira do capitalismo e sua coincidência com crises hegemônicas,


como também estabelecemos contato mais rigoroso com a
matriz de pensamento braudeliana que lhe dá sustentação. Nesse
sentido, exploramos tanto as contribuições teóricas de Fernand
Braudel quanto de outros autores cujas perspectivas se identi-
ficam com elas, a exemplo dos aportes de Immannuel Wallerstein
e, no Brasil, de José Luís Fiori. Contribuições reunidas em torno
de um campo unificador que, em linhas gerais, propõe alterna-
tivas ao nacionalismo metodológico e a ampliação dos horizontes
espaço-temporais de análise do capitalismo. O que é verdadeiro
a despeito das diferenças encontradas quando se comparam as
elaborações de cada um desses autores8.
Como dito, o apelo às abordagens do capitalismo histórico
como sistema mundial e ao que se poderia chamar de marxismo
braudeliano nos desviou da ênfase na escala nacional, em favor
da escala sistêmica dos processos de acumulação de poder e
de capital. Ao mesmo tempo, consolidou, entre os integrantes
do grupo, a ideia de que as mudanças políticas e econômicas
contemporâneas possuem determinações que, efetivamente, não
se limitam aos acontecimentos pós-1970. Isso porque há, nessas
abordagens, um modo qualitativa e quantitativamente singular
de enquadrar as dinâmicas temporais de desenvolvimento do
capitalismo e do sistema interestatal.
Do ponto de vista qualitativo, recorre-se à diferença, estabe-
lecida por Braudel, entre os tempos curtos (dos eventos), médios
(das conjunturas) e longos (das estruturas). Quantitativamente,
priorizam-se as oscilações cíclicas e os tempos longos, de mais
de um século, ou seja, a longa duração (longue durée). Algo que,
evidentemente, também atribui ao tempo qualidades distintas9.
8
Para uma síntese das diferenças entre as perspectivas de Giovanni Arrighi
e Immanuel Wallerstein, cf., por exemplo, Arrighi e Silver (2001). No que se
refere às diferenças de abordagem existentes entre Giovanni Arrighi e José Luís
Fiori, cf. Fiori (2008).
9
Uma referência clássica a respeito das temporalidades diferenciais braudelia-
nas pode ser encontrada em Braudel ([1958] 1990). Para uma síntese desse e
de outros aspectos fundamentais da obra do autor, cf. Rojas (2013). Cumpre
mencionar, ainda, que Wallerstein (2006) tomou não só esses três tempos, mas
também o que Braudel designou como o tempo longuíssimo (très longue dureé),
da história dos sábios (l’histoire de savants), com o objetivo de “alegar que para
cada um desses tempos há um espaço correlato” (p. 163). Ao fazê-lo, propôs o

20
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

Para autores como Arrighi ([1994] 2003), por exemplo, fases


de expansão material e fases de expansão financeira do capita-
lismo se sucederam e se alternaram ao menos desde o século
XIV. E esse é outro argumento básico de sua teoria: juntas, essas
duas fases constituem um completo ciclo sistêmico de acumu-
lação. A passagem de uma fase à outra caracterizada, de um lado,
por situações periódicas de sobreacumulação, definidas como
momentos em que há mais capitais disponíveis do que oportuni-
dades de reinvesti-los com lucro na produção. De outro, por um
recrudescimento da competição interestatal e intercapitalista.
Arrighi ([1994] 2003) identificou quatro ciclos sistêmicos
de acumulação, quais sejam: i) o ciclo genovês (do século XV
ao início do século XVII); ii) o ciclo holandês (do fim do século
XVI até a maior parte do século XVIII); iii) o ciclo britânico (da
segunda metade do século XVIII até o início do século XX); e
iv) o ciclo norte-americano (do final do século XIX até o período
contemporâneo). Cada um dos quais, com exceção do primeiro,
esteve vinculado a uma hegemonia no sistema interestatal insti-
tuído a partir de 1648, com o Tratado de Vestefália. Hegemo-
nias desafiadas e superadas nas fases de expansão financeira, ou
melhor, ao longo das crises que as encerraram10.

conceito de TempoEspaço, sublinhando a existência do espaço geopolítico ime-


diato, do espaço ideológico, do espaço estrutural e do espaço eterno.
10
Note-se que, segundo o argumento de Arrighi ([1994] 2003), a hegemonia
holandesa foi responsável por constituir o próprio sistema interestatal moderno
e que a hegemonia dos Estados Unidos vem sendo questionada desde os anos
1970, mas ainda não passou por sua crise terminal. Entre elas, predominou a
hegemonia britânica. O autor reconstruiu a ascensão, o pleno desenvolvimento
e a queda das hegemonias anteriores precisamente para explorar o que haveria
de específico e de recorrente na derrocada da hegemonia norte-americana. Res-
salte-se, ainda, que essa forma de explicar as relações entre as fases de expansão
financeira do capitalismo e as sucessões hegemônicas no sistema interestatal já
estava presente nas elaborações anteriores de Fernand Braudel. Como observa
Lapavitsas (2013): “O insight original da teoria de Arrighi [...] remonta à aná-
lise de Fernand Braudel da longue durée do capitalismo. No segundo volume
de Civilização material, economia e capitalismo, Braudel propôs um padrão de
ascensão histórica recorrente das finanças, baseado principalmente no exame
da expansão do comércio mundial capitalista desde o início da era moderna.
Em todas as ocasiões em que as finanças emergiram como atividade capitalista
ascendente, o ‘sinal do outono’ marcou o poder do Estado que assumiu a lide-
rança no desenvolvimento financeiro. Nessa perspectiva, a financeirização de
uma formação social é um presságio de seu declínio” (p. 22, tradução nossa).

21
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Assim, como já antecipado, essas abordagens nos aproxi-


maram não só do debate sobre a centralidade das finanças para
o desenvolvimento do capitalismo, sugerindo uma mudança de
ênfase, da globalização para a financeirização, mas também nos
colocaram no caminho do que Fiori (2014) define como “uma
teoria do poder e da acumulação do poder e de suas relações
com o capital e a acumulação de capital” (p. 16). Definição que se
apoia em uma constatação central de Braudel (1987), segundo a
qual o “capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado,
quando ele é o Estado” (p. 25).
Destaque-se, ainda a respeito dessas abordagens, que a obra
de Arrighi ([1994] 2003) propõe, justamente, uma interdepen-
dência entre as lógicas capitalista e territorialista do poder, e
que, mais recentemente, autores como Harvey (2011; 2014)
assumiram essa proposição para sublinhar a existência do nexo
Estado-finanças, quer dizer, da fusão entre essas duas lógicas, em
distintos arranjos institucionais, na longa geografia histórica do
capitalismo11. Hoje, por exemplo, essa fusão e esses arranjos se
expressariam na capacidade crescente de coordenação do sistema
de crédito desempenhada pelos bancos centrais, em especial
pelo banco central norte-americano (FED). Algo que, diga-se de
passagem, ao menos desde os anos 1980, tem sido objeto das
investigações de autores e autoras brasileiros, como Tavares
(1997) e Tavares e Melin (1997), ao apontarem que a crise e a
retomada da hegemonia norte-americana deve ser analisada, a
um só tempo, em termos do poder militar dos Estados Unidos e
da chamada diplomacia do dólar forte12.

11
Embora existam afinidades entre as abordagens de G. Arrighi e de D. Harvey
a esse respeito, há, contudo, distinções importantes entre os autores. Com
efeito, enquanto para Harvey a lógica territorialista corresponde às políticas
impulsionadas pelo Estado e a lógica capitalista à racionalidade da produção, das
trocas e da acumulação, para Arrighi ambas lógicas são assumidas pelo Estado.
Consultar, a esse respeito, Arrighi (2008), em especial o Capítulo 8, no qual o
autor incorpora na análise das sucessões dos ciclos sistêmicos de acumulação a
teoria de D. Harvey sobre as soluções espaciais das crises de sobreacumulação.
12
O artigo de Tavares (1997) foi publicado, numa primeira versão, em 1985.
Grosso modo, a diplomacia do dólar forte indica a capacidade dos Estados
Unidos de manipular sua moeda, como dinheiro mundial não conversível, em
benefício dos principais agentes e estruturas que sustentam o poder econômico
e político norte-americano.

22
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

Em suma, trata-se de uma armação teórica que implica em uma


compreensão do capitalismo e, consequentemente, do fenômeno
da financeirização do capital, fundamentalmente distinta das
formas de explicação predominantes no campo marxista. Ao iden-
tificar o capitalismo como um sistema histórico, sujeito simulta-
neamente a padrões sistêmicos de repetição e a transformações
históricas, essa vertente contrapõe-se à própria ideia do capita-
lismo como modo de produção, impulsionado, em sua evolução,
por uma dinâmica contraditória interna. Isso porque, de acordo
com essa perspectiva, o que define o capitalismo e a ação dos
agentes capitalistas e estatais, na longa duração, não é a rigidez
de uma configuração determinada, inaugurada com a Revolução
Industrial e a subsunção real do trabalho ao capital, nos termos
de Marx ([1863] 1978), mas sim a liberdade e a flexibilidade para
assumir diferentes arranjos, ora territorializando-se, ora desterri-
torializando-se; ora especializando-se na produção material, ora na
expansão financeira, e assim por diante.
Ademais, ainda de acordo com essa perspectiva, para entender
o capitalismo, em sua evolução e dinâmica na longa duração, é
importante considerar como, em cada momento ou ciclo, uma
configuração específica de arranjos institucionais de atores empre-
sariais e estatais desencadeou lógicas sistêmicas de acumulação
ilimitada de poder e capital. Por outro lado, esses ciclos contêm,
como dito, fases de expansão material e de expansão financeira, em
função dos efeitos de sobreacumulação gerados pela concorrência
entre os capitais. Quando a rentabilidade da expansão material
diminui, os capitais buscam as formas líquidas de existência, para
manter a sua essência, que é o poder de escolha na aplicação. E é
exatamente isso que leva à definição da financeirização do capital
como um fenômeno cíclico da evolução do capitalismo.
Mas como utilizar a matriz teórica braudeliana-arrighiana,
e mais especificamente a teoria dos ciclos sistêmicos de acumu-
lação, para compreendermos o processo de urbanização em
escala mundial e suas múltiplas expressões nas diversas escalas
espaço-temporais do sistema-mundo capitalista? Essa pergunta
nos interessa, particularmente, para construirmos um quadro
teórico que nos permita dialogar com a hipótese da chegada à
cidade da lógica da financeirização do capitalismo.

23
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Capitalismo histórico e a produção do espaço


A dimensão espacial da constituição do sistema-mundo capi-
talista e da explicação de seus ciclos de longa duração não foi
objeto de elaboração sistemática pelos expoentes desse campo
teórico de compreensão do capitalismo, fato reconhecido por
Giovani Arrighi em seu já citado Adam Smith em Pequim: origens
e fundamentos do século XXI13. Encontramos algumas referências
nas obras seminais de Fernand Braudel, em especial na trilogia
Civilização material, economia e capitalismo e no seu pequeno livro
de síntese, intitulado A dinâmica do capitalismo14. Trata-se de refe-
rências à produção do espaço por indicações a respeito do papel
de algumas grandes metrópoles e das redes de cidades na consti-
tuição das conexões de troca e na articulação das hierarquias das
zonas que conformam “o esquema espacial da economia-mundo”
(BRAUDEL, 1996a, p. 16). Esquema que, por sua vez, expressa a
organização e sustenta a dinâmica da economia-mundo.
Braudel também enunciou regras para a compreensão das
tendências de conformação, evolução e diferenciação dos tipos
de economias-mundo. Regras conforme as quais o espaço surge
como dimensão importante. A primeira indica que o espaço varia
no tempo lentamente, tem uma permanência, uma inércia, em
relação às outras camadas da civilização, como o próprio capita-
lismo, entendido em termos de camada superior da hierarquia
da vida econômica e como sistema histórico. A segunda regra
sugere que há sempre uma cidade dominante em cada grande
ciclo de desenvolvimento capitalista, com os primados urbanos
se sucedendo no tempo. A terceira aponta que as capacidades de
dominação das cidades se diferenciaram, ao longo da história,
em função dos seus distintos poderes econômicos e políticos.
Por último, o autor assinala que, em todas as etapas da evolução

13
Na referida obra, Arrighi (2008) observa o seguinte a respeito da negligência
em relação à dimensão da produção social do espaço: “Uma das características
mais essenciais (e teoricamente negligenciadas) do capitalismo histórico é a
‘produção de espaço’. Esse processo não só foi essencial para a sobrevivência
do capitalismo em conjunturas especialmente difíceis, como defendeu Henri
Lefebvre, como também foi condição fundamental para a formação e o aumento
do alcance global do capitalismo como sistema social histórico” (p. 225).
14
Cf. Braudel (1987; 1996a; 1996b; 1996c).

24
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

da economia-mundo capitalista, existiu um hinterland, na forma


da justaposição de zonas organizadas em uma estrutura espacial
centro-periferia.
Cumpre destacar que a referência a algum tipo de estru-
tura centro-periferia está presente nas obras dos mais diversos
autores e autoras vinculados às análises do sistema-mundo e ao
que chamamos de matriz braudeliana-arrighiana. Está na base,
por exemplo, da concepção do sistema capitalista mundial como
constelação de metrópoles-satélites, de André Gunder Frank
(1967), segundo a qual os satélites periféricos, especializados em
atividades primário-exportadoras, giram ao redor dos centros
desenvolvidos, fornecendo-lhes grande parte de seus excedentes.
Encontra-se, igualmente, nas ponderações de Arrighi (1997)
sobre o centro, a semiperiferia e a periferia, respectivamente,
como “andares” superior, intermediário e inferior do capitalismo
como sistema histórico mundial.
Uma de nossas principais hipóteses com a qual pretendemos
orientar o desdobramento da nossa pesquisa buscará explorar
as relações dos ciclos de acumulação sistêmica com o que pode-
ríamos denominar como ondas de produção do espaço urbano
na longa duração do capitalismo. Ao fazê-lo, pretendemos arti-
cular os aportes da matriz braudeliana-arrighiana aos sentidos
atribuídos e consagrados à produção social do espaço na obra
de Henri Lefebvre ([1974] 2013). Sentidos que, mais recente-
mente, alimentaram o debate em torno das chamadas teses da
urbanização planetária. Interessa-nos, em particular, construir
um quadro teórico que nos permita dialogar criticamente com a
hipótese amplamente difundida no campo dos estudos urbanos e
regionais, a respeito da chegada à cidade da lógica da financeiri-
zação do capitalismo. O que, consequentemente, levaria a novas
dinâmicas e padrões de crescimento urbano, quando compa-
rados àqueles constituídos com a industrialização.
Considerada essa hipótese, nossa intenção é incentivar
pesquisas em três direções. A primeira delas corresponde à
própria elaboração teórica das ondas de produção do espaço
urbano, na longa duração do capitalismo, problematizando a
relação dessas ondas com os ciclos sistêmicos de acumulação,
suas fases alternadas (material e financeira) e sua historicidade.

25
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Nos parece que, justamente em função dessa historicidade, essas


ondas poderiam resultar da predominância tanto de lógicas
territorialistas quanto de lógicas capitalistas de poder, tendo
como consequência tendências à diversificação dos processos
de produção do espaço urbano. Diversificação que, em última
instância, é revelada pela própria historicidade e espacialidade
específicas das distintas ondas de urbanização que se sucederam
no tempo e se materializaram no espaço.
Poderíamos assumir que o sentido das ondas ou seu efeito
agregado, na longa duração, seria exatamente o da consti-
tuição do que hoje é entendido como urbanização planetária,
remetendo às formulações seminais de Henri Lefebvre sobre
a sociedade urbana e a revolução urbana. Para tanto, também
pode-se partir da análise feita por Arrighi (2008) sobre a relação
entre os ciclos sistêmicos de acumulação e a teoria dos ajustes
espaço-temporais, de David Harvey. Teoria desenvolvida ao
longo de toda a obra do autor e que enfatiza a necessidade de
periódicos ajustes espaciais (spatial fix) para resolver as crises
que interferem na continuidade da “acumulação interminável
de poder e capital”, para utilizar os termos da matriz braude-
liana-arrighiana. Essa seria a chave para colocar nesse quadro
teórico a hipótese da urbanização planetária. Mas, para tanto,
seria necessário ampliar a apropriação feita por Arrighi (2008),
incorporando a ideia da implosão-explosão do espaço e da
relação entre a produção do espaço e a reprodução das relações
sociais, como faz Lefebvre ([1974] 2013), particularmente em A
produção do espaço. O que evolve mencionar as teses que sugerem
que a produção capitalista do espaço é impulsionada, simulta-
neamente, pelas lógicas da hierarquização, da homogeneização
e da fragmentação do espaço. Seria importante, igualmente,
explorar as relações entre os espaços percebido, concebido e
vivido, isto é, entre as práticas espaciais, as representações do
espaço e os espaços de representação.
A segunda direção é a da discussão das relações entre finan-
ceirização e mercantilização, vinculada ao debate sobre a neoli-
beralização e o neoliberalismo como modalidade de governança
urbana. A terceira, por fim, é a da problemática mais recente
sobre o neoextrativismo, que aponta para a atuação desse

26
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

processo como força propulsora das ondas de produção do


espaço urbano na periferia e semiperiferia, sobretudo em razão
da dinâmica de acumulação oriunda da ascensão da China como
centro da expansão material do sistema-mundo capitalista em sua
atual fase de desenvolvimento.

Ondas de urbanização e ciclos sistêmicos de


acumulação
Já existem pesquisas históricas e comparativas sobre os
processos de urbanização ocorridos no centro, na semiperiferia e
na periferia do sistema-mundo capitalista que buscam algum tipo
de conexão entre esses processos e o desenvolvimento cíclico do
capitalismo na longa duração.
Por exemplo, Taylor et al. (2010) propõem a construção de
um panorama global e comparativo utilizando a teoria do sistema-
mundo capitalista para problematizar mudanças econômicas nas
cidades. Os autores buscam identificar essas mudanças a partir
da análise da demografia urbana. Trata-se, mais precisamente, de
identificar cidades com crescimento excepcional, a demografia
sendo utilizada como uma ferramenta para entender as trans-
formações econômicas que poderiam explicar modificações na
dinâmica da urbanização. Os autores testam a hipótese clássica,
formulada por Jane Jacobs, sobre o vínculo intrínseco entre o
crescimento das cidades e o desenvolvimento econômico. Ao
fazê-lo, contrapõem essa hipótese a uma interpretação das ondas
de urbanização que parte das conexões espaço-temporais entre
os territórios dos sucessivos núcleos, semiperiferia e periferia do
sistema-mundo e os ciclos de acumulação gerados pela expansão
desse sistema, segundo a formulação de Immanuel Wallerstein.
De fato, como mencionamos anteriormente, já nos traba-
lhos seminais de Fernand Braudel faz parte da elaboração da
teoria da economia-mundo capitalista a consideração da consti-
tuição de uma geografia histórica que participa da formação das
características de cada etapa da sua evolução. Por outro lado, a
importância da dimensão espacial retorna na obra de Giovanni
Arrighi, sobretudo quando o autor constrói o conceito de capi-
talismo como a fusão das lógicas de acumulação do poder e do

27
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

capital, e ao diferenciar os ciclos sistêmicos de acumulação em


função das condições históricas e dos arranjos institucionais
que articularam atores estatais e capitalistas em cada um deles.
Observamos, portanto, na formulação de Arrighi ([1994] 2003),
um avanço na consideração da dimensão espacial, na medida
em que a acumulação do poder implica na expansão territo-
rial como força propulsora do sistema. Em outras palavras, os
ciclos sistêmicos de acumulação têm como fundamento do seu
dinamismo a capacidade de aquisição de territórios como meio
de acumular capital, e essa capacidade depende do cálculo dos
custos de incorporação espacial frente à rentabilidade do capital,
variável importante na medida em que surge um sistema interes-
tatal competitivo, dirigido por um Estado hegemônico a partir
de Vestefália, abrangendo o vasto espaço europeu e regulando a
força territorial expansiva do capitalismo.
A expansão espacial do sistema gerou uma trajetória em
pêndulo, que regula os padrões institucionais e as dinâmicas
territoriais dos ciclos sistêmicos de acumulação. Tais padrões têm
a ver com a lógica que presidiu a dinâmica expansiva do capita-
lismo. Quando predominou a lógica capitalista, o cálculo econô-
mico entre rentabilidade e custos de incorporação de território
tendeu a prevalecer. Ao contrário, quando prevaleceu a lógica
territorialista do poder, a racionalidade econômica foi substi-
tuída pela racionalidade política e assistimos à emergência de
uma dinâmica expansiva na qual o Estado atuou como vanguarda
da expansão do capital.
Nesse sentido, os ciclos sistêmicos de acumulação não
se diferenciam apenas em fases de expansão material e finan-
ceira, mas também de acordo com as lógicas que presidiram a
expansão territorial do sistema capitalista em sua longa duração.
Martins (2011) observa que essas lógicas foram ser conceituadas
por Arrighi ([1994] 2003) em cosmopolitas-imperialistas e corpo-
rativas-nacionalistas. A primeira refere-se ao advento de regimes
sistêmicos de acumulação extensivos e conquistadores, em que
o aumento de produtividade está fortemente ligado à incorpo-
ração de uma nova base demográfica e territorial à economia-
mundo, redefinindo os seus paradigmas de gestão. A segunda,
por seu turno, corresponde a regimes de acumulação intensivos e

28
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

consolidadores. Os regimes corporativos-nacionalistas sucedem


os primeiros e vinculam o aumento de produtividade a mudanças
qualitativas da gestão institucional da economia-mundo existente,
sem implicar em maiores alterações de seus limites geográficos.
Os ciclos genovês e inglês foram do tipo cosmopolita-imperia-
lista; o holandês e norte-americano, do segundo tipo.
Essas e outras indicações tornam ainda mais relevantes
a ideia de que há distintos esquemas espaciais da evolução do
sistema-mundo capitalista e nos ajudam a compreender as
lógicas e dinâmicas da expansão territorial desencadeada pelos
sucessivos ciclos sistêmicos de acumulação. Elas podem ser úteis
para a elaboração de uma agenda de pesquisa e de um quadro
teórico que permita delinear o que poderíamos chamar de ciclos
sistêmicos de urbanização ou mesmo de ciclos sistêmicos de
produção do espaço, impulsionados por aquelas lógicas e dinâ-
micas territoriais.
Considere-se, a título de ilustração, as grandes interven-
ções urbanas na América Latina, na passagem do século XIX ao
XX, que corresponderam à fase de expansão financeira do ciclo
sistêmico de acumulação britânico e ao que Lênin ([1917] 2011)
chamou, na ocasião, de exportação de capitais do centro para a
periferia do capitalismo. Ou seja, capitais excedentes, sob a forma
financeira, foram canalizados para os países latino-americanos,
viabilizando operações de embelezamento e o estabelecimento
de serviços urbanos e infraestruturas em geral, de transporte, de
comunicação etc. Hoje, um volume gigantesco de capitais, sob a
mesma forma e em busca de alternativas de valorização, é comu-
mente investido na produção do ambiente construído, não só na
América Latina, mas em todas as partes do mundo, em especial
na China e no Sudeste Asiático.
Seja como for, nos dois casos citados acima há uma explícita
correspondência entre fases de expansão financeira e a transfe-
rência de grandes volumes de capital para o domínio dos inves-
timentos financeiro-imobiliários, indicando um ajuste de tendên-
cias de crise em virtude de excesso de capital, que não encontra
possibilidades lucrativas de inversão na esfera da produção.
Mas ajustes das condições espaciais da acumulação interminável
de capital também ocorreram em fases de expansão material,

29
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

quando grandes volumes de capital também foram imobilizados


no espaço, dando suporte a essa mesma expansão. Poderíamos
falar, nesse caso, do padrão de suburbanização prevalecente
nos Estados Unidos e do rodoviarismo típicos do pós-Segunda
Guerra Mundial e de grandes projetos modernistas de criação
de cidades, a exemplo da construção de Brasília.
Esses e outros casos contribuem para esboçar a ideia dos
ciclos sistêmicos de urbanização ou de produção do espaço
urbano. Contribuem, igualmente, para esse esboço, os argu-
mentos tanto de Harvey (2005b) quanto de Arrighi (2008) sobre
o duplo sentido da palavra fix, que compõe o conceito de spatial
fix: o sentido literal, de fixação no espaço das condições indis-
pensáveis à acumulação interminável de capital; e o sentido meta-
fórico, de “ajuste”, “conserto”, “reparo” das contradições dessa
mesma acumulação.
Enfim, as etapas de expansão material, fases DM, nos termos
de Arrighi ([1994] 2003), seriam marcadas por um momento
de acentuada produção/fixação no espaço das infraestruturas
físicas e sociais que dão suporte à expansão material, ampliando
e revolucionando a geografia do sistema. Nas etapas de expansão
financeira, fases MD, a geografia anterior da acumulação é nova-
mente revolucionada. Dessa vez, por intermédio de uma série
de ajustes ou soluções espaciais para o problema subjacente da
sobreacumulação, na forma da transferência massiva de recursos
para a esfera dos investimentos financeiro-imobiliários.
Tudo indica que, em fases de expansão material, predomina
a lógica territorialista do poder. É ela que funciona como motor
fundamental da revolução da geografia do sistema. E que, em
fases de expansão financeira, prevalece a lógica capitalista. Há
que se considerar, ainda, que os regimes sistêmicos de acumulação
cosmopolitas-imperialistas, o genovês e o britânico, tenderam a
impulsionar a expansão espacial propriamente dita do sistema.
Enquanto os regimes corporativos-nacionalistas, o holandês e
o norte-americano, promoveram a consolidação da geografia
histórica do capitalismo. De todo modo, o efeito agregado são os
saltos ou o incremento da escala e do alcance espacial do sistema.
O que, mais recentemente, poderia ser interpretado, em nossa
opinião, à luz da concepção da urbanização planetária.

30
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

Acompanhando as elaborações de Brenner (2013; 2014),


Arboleda (2015) ressalta que, no contexto da urbanização plane-
tária, “vastos territórios estão sendo operacionalizados, redese-
nhados, fechados e integrados à divisão internacional do trabalho
por um tecido urbano em expansão” (p. 4, tradução nossa). O
que ocorreria segundo uma dinâmica que vincula a conformação
desse tecido, em diversos níveis e escalas, ao processo de financei-
rização15. Tudo isso dando lugar a um movimento de implosão/
explosão urbana, tal como proposto no argumento seminal de
Lefebvre ([1970] 2008). Um movimento contraditório em que
“a aglomeração nas cidades (uma implosão) é invariavelmente
associada à provisão de infraestruturas para o turismo, comuni-
cações, logística, disposição de resíduos e extração de recursos
(uma explosão) através do espaço” (ARBOLEDA, 2015, p. 6,
tradução nossa). Além disso, o autor sustenta que essa implosão/
explosão só foi possibilitada por “uma combinação de estruturas
de governança neoliberal, capitais financeirizados e inovações
tecnológicas sofisticadas” (p. 6, tradução nossa).
O desenvolvimento da ideia dos ciclos sistêmicos de urbani-
zação ou de produção do espaço urbano se deve à tentativa de
articular as contribuições teóricas de Giovanni Arrighi às de David
Harvey, amplamente difundidas no campo dos estudos urbanos.
Nos inspirava, como dito acima, o desejo de friccionar blocos
conceituais. Além disso, na medida em que explorávamos a matriz
braudeliana-arrighiana, a lembrança de que Harvey ([1989] 2008a)
já havia reconhecido a possibilidade das finanças assumirem uma
posição hegemônica na determinação dos ritmos e da lógica da
acumulação nos levou não só à reconsideração de seus argumentos
em Condição pós-moderna, mas, principalmente, à leitura sistemá-
tica de sua obra mais importante, Os limites do capital, escrita ao
longo dos anos 1970 e originalmente publicada em 198216.

15
Arboleda (2015) oferece, por exemplo, “um relato da financeirização dos
recursos naturais que explora as densas interconexões entre o sistema financeiro
internacional, as geografias da extração de recursos e a produção de ambientes
urbanos cotidianos no vale Huasco, uma região no norte do Chile que está
sendo reconfigurada em um distrito de mineração” (p. 4, tradução nossa).
16
O livro Os limites do capital só foi publicado, no Brasil, em 2013, e não há
dúvida de que foi muito menos influente, no debate brasileiro, do que outras
obras do autor.

31
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Ressalte-se, aqui, a aparente contradição dessa escolha,


ao menos em relação ao que podemos chamar de nosso input
inicial: a perspectiva braudeliana-arrighiana do capitalismo como
sistema histórico. Harvey ([1982] 2013) postula uma concepção
do capitalismo muito distinta dessa perspectiva, isto é, uma
concepção do capitalismo como modo de produção. Sem dúvida,
o autor não minimiza as consequências da construção de um
marco teórico abstrato que negligencia, por exemplo, a história
e o papel concreto do Estado. Mas, em sua opinião, é necessário
deixar de lado esses aspectos em nome de uma leitura que privi-
legia o motor econômico do capitalismo, os processos gerais de
acumulação do capital. Há, portanto, não apenas contradição,
mas uma aguda diferença teórica em relação aos pressupostos da
abordagem de Arrighi ([1994] 2003).
Na perspectiva de Harvey ([1982] 2013), o capitalismo
como modo de produção possui uma racionalidade interna
que precisa ser desvendada antes de se considerar o que lhe
é externo. Primeiro, explicam-se as determinações intrínsecas
do modo de produção. Em seguida, elementos como o terri-
tório, o Estado, a cultura, dentre outros, entram em jogo. Por
sua vez, nosso input original, incorpora, desde o início, tais
elementos como centrais para a explicação do desenvolvi-
mento capitalista na longa duração. Do mesmo modo, tudo na
obra de Harvey ([1982] 2013) tem como compromisso manter
de pé a teoria marxista do valor. O que não é verdadeiro, em
última instância, no que concerne à matriz braudeliana-arri-
ghiana, mesmo que seja possível designá-la como uma espécie
de marxismo braudeliano.
A despeito das diferenças fundamentais entre as aborda-
gens de David Harvey e Giovanni Arrighi, prosseguimos com
a tentativa de relacionar e friccionar suas perspectivas. Ao
fazê-lo, consideramos o fato de que, tanto para Harvey ([1982]
2013) quanto para Arrighi ([1994] 2003), o capitalismo tende,
em função de sua própria dinâmica interna, a evoluir para
uma situação em que as finanças se autonomizam e adquirem
proeminência. A diferença residindo na constatação de que,
para Arrighi ([1994] 2003), a dinâmica da competição pelo
poder no sistema interestatal é igualmente importante para

32
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

explicar essa evolução. Algo que, ao menos em Os limites do


capital, foi negligenciado por seu autor.
Mas, se Harvey ([1982] 2013) minimiza a dimensão do
poder, Arrighi ([1994] 2003) não oferece a necessária teoria
da circulação do capital. E, do nosso ponto de vista, quando
não se recorre a essa teoria, a análise da financeirização fica
comprometida.
Dentre as principais contribuições de Harvey ([1982]
2013), sobressai a ênfase na descrição do capital enquanto fluxo
e movimento. Trata-se de pensar o capital como um processo
de circulação ininterrupto – as interrupções indicando limites,
contradições e possíveis crises. Nessa perspectiva, nem tudo
que é indispensável à acumulação capitalista está circunscrito
à fábrica e/ou à esfera da produção. Deve-se levar em conta,
com igual importância, a circulação, antes e depois do processo
produtivo, assim como as circunstâncias de realização do capital.
Desse modo, o capital só existe como processo orientado ao
crescimento infinito, num movimento permanente cujo sentido
é a autoexpansão. Note-se que isso não é produto de ganância,
autointeresse, egoísmos etc. É, ao contrário, uma realidade estru-
tural, determinada por um processo objetivo e incontornável.
Ainda conforme essa perspectiva, uma série de condi-
ções são imprescindíveis para que a autoexpansão do capital se
perpetue. Condições extremamente contraditórias, que colocam
limites para que isso aconteça. Os capitalistas tentam superar
esses limites, mas, ao fazê-lo, os recolocam de maneira ampliada.
O primeiro e mais importante limite à autoexpansão ilimi-
tada do capital resulta, dialeticamente, do seu próprio movi-
mento. Movimento que, em geral, provoca as já citadas situa-
ções periódicas de sobreacumulação. Como não é a lógica das
necessidades sociais que governa a acumulação capitalista, e sim
a racionalidade do valor de troca, esse fenômeno é recorrente
e assume formas como a da superprodução de mercadorias, de
capital ocioso dentro do processo de produção, de capital mone-
tário excedente etc.
Para que a tendência à sobreacumulação seja parcial e/ou
temporariamente superada, os capitalistas precisam responder
não apenas aos limites que estão na esfera da produção, mas,

33
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

igualmente, aos que correspondem à esfera da circulação. Além


do mais, é preciso que o que foi produzido e entrou na esfera da
circulação encontre oportunidades de realização. Se isso não for
possível, o único ajuste viável advém da desvalorização e/ou da
destruição do capital. O que equivale, para Harvey ([1982] 2013),
ao primeiro corte ou recorte da teoria da formação da crise no
capitalismo.
Mas, enfim, como o capital supera esses limites? Segundo o
autor, há um conjunto de formas de controle e coordenação que
contribuem para ajustar os movimentos do capital no tempo e
no espaço.
Harvey ([1982] 2013) destaca, em primeiro lugar, o papel
do crédito e do capital financeiro, oferecendo uma concepção
renovada em relação às formulações clássicas do marxismo, tal
como as de Hilferding ([1910] 1985) e Lênin ([1917] 2011). O
autor não concebe o capital financeiro apenas como um bloco
de poder ou uma configuração de alianças fracionárias no
interior da burguesia, mas, prioritariamente, como um tipo parti-
cular de processo de circulação do capital que se concentra no
sistema de crédito. O que o leva ao resgate e à atualização da
teoria do dinheiro, dos juros e do capital fictício de Marx. Com
efeito, Harvey ([1982] 2013) propõe que o sistema de crédito,
absolutamente funcional e indispensável à existência do capita-
lismo, funciona como uma espécie de sistema nervoso central,
que resolve parcialmente, na dimensão do tempo, as contradi-
ções entre produção, distribuição, circulação e consumo. Há,
portanto, nesse caso, um deslocamento para a frente, no tempo,
do problema da sobreacumulação. Trata-se do segundo corte ou
recorte da teoria da formação das crises capitalistas, do ajuste
temporal das contradições do capitalismo por intermédio do
sistema de crédito.
Por fim, Harvey ([1982] 2013) examina de que maneira a
formação do capital fixo e a produção de configurações espaciais
contribui para solucionar, parcial e transitoriamente, os limites
que impedem a articulação equilibrada e a unidade das relações
entre produção, distribuição, circulação e consumo. Nesse
sentido, o autor sustenta que estruturas materiais, dentro e fora
das fábricas, são erguidas não somente para que as mercadorias

34
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

e o valor em geral circulem de maneira ininterrupta, mas, simul-


tânea e/ou sucessivamente, como uma forma de absorver capitais
excedentes. O recurso ao capital fixo e às configurações espaciais
constituem outras saídas que jogam para frente as contradições
do capital e criam fronteiras de acumulação, ao revolucionar as
relações espaciais e o uso do território. No entanto, esse processo
não está isento de contradições, tendo em vista que o capital
fixo e as configurações espaciais tornam-se, posteriormente, um
limite ampliado. Isso porque o capital, que é definido pelo movi-
mento permanente, se imobiliza. Sobrevém, então, a necessidade
de desvalorização do capital fixo. Tudo isso corresponde, nos
termos de Harvey ([1982] 2013), ao terceiro corte ou recorte da
teoria da formação das crises capitalistas, ao ajuste espacial das
contradições do capitalismo.
Não se deve perder de vista, ainda, que o argumento geral
de Harvey ([1982] 2013), em torno da importância analítica da
circulação do capital, dos ajustes espaço-temporais e das condi-
ções de formação e solução das crises capitalistas, é o mesmo
que está na base de sua interpretação da urbanização do capital e
das ondas longas de investimento no meio ambiente construído
(HARVEY, 1985a; 1985b). De acordo com essa interpretação, as
contradições do capitalismo podem ser mediadas e parcialmente
resolvidas à medida que o capital superacumulado é deslocado
do circuito primário (produtivo) para os circuitos secundário
(financeiro-imobiliário) e terciário (ligado às atividades cientí-
ficas, tecnológicas e à criação de infraestruturas sociais, como
as de educação e saúde, que, não raro, também envolvem dinâ-
micas de territorialização). Deslocamento que resulta, assim, na
periódica reestruturação das paisagens urbanas e configurações
espaciais. Ressalte-se, por fim, que todo esse raciocínio permite
falar de uma teoria da transferência de capitais (capital switching,
no original em inglês).
Conforme Harvey ([1982] 2013), para que a transferência
de capitais em direção ao circuito secundário seja bem-sucedida,
é necessário que se consolide e amplie uma tendência básica do
capitalismo: a de que a terra seja tratada não só como merca-
doria, mas, principalmente, “como um bem financeiro que é
comprado e vendido segundo a renda que ele produz” (p. 448).

35
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

E, nesses termos, a terra e os elementos do ambiente construído


passam a funcionar como equivalentes do capital fictício.
No Livro III de O capital, Marx ([1984] 1986a; [1984]
1986b) analisou o capital fictício como um desdobramento
dialético do capital portador de juros. Desdobramento cujo
atributo fundamental é a transformação de direitos sobre fluxos
de renda futuros em títulos transacionáveis. Seus exemplos
clássicos foram o das ações e o dos títulos da dívida pública.
Mas, segundo Harvey ([1982] 2013), o mesmo é válido para
a terra, uma vez que quaisquer fluxos de rendimento, como
a renda fundiária, podem ser considerados o juro sobre um
capital fictício. Em outras palavras, o autor afirma que, para
os investidores em geral, a renda da terra aparece como o juro
advindo de sua aquisição, passível de ser convertido em título
negociável, não diferindo de “investimentos semelhantes na
dívida do governo, nas ações e quotas das empresas, na dívida
do consumidor e assim por diante” (p. 447). E é precisamente
esse mecanismo que facilita a transferência de capitais para o
circuito da produção de bens imobiliários, vinculando-o forte-
mente aos canais do sistema de crédito.
O reconhecimento da tendência de conversão da terra e
dos elementos do ambiente construído em ativos financeiros, tal
como descrita por Harvey ([1982] 2013) e sintetizada acima, nos
levou ao estudo sistemático das obras de autores e autoras que
vinculam a financeirização à dominância da lógica de valorização
do capital fictício, a exemplo dos trabalhos de Fine (2014), Carca-
nholo (2015), Carcanholo e Nakatani (2015a; 2015b), Carca-
nholo e Sabadini (2015) e Paulani (2016). Ao mesmo tempo, nos
conduziu ao estudo das contribuições que atualizam a teoria da
transferência de capitais para problematizar a financeirização
urbana, dentre as quais se destacam as de Gotham (2006) e as
de Christophers (2011). E, finalmente, aos argumentos clássicos
e contemporâneos acerca das condições de criação e disputa
por rendas fundiárias, como os de Topalov (1973; 1984), Ward e
Aalbers (2016) e Andreucci et al. (2017).
Enfim, todo esse esforço nos tornou ainda mais sensíveis ao
debate em relação à mercantilização urbana, pois, como visto,
o tratamento da terra como ativo financeiro pressupõe sua

36
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

conversão em mercadoria e, além disso, procurávamos, desde


o início, alternativas teóricas para lidar com a problemática da
neoliberalização.

Financeirização e mercantilização da cidade


Como já antecipado, existe uma estreita conexão não só entre
os conceitos de globalização e financeirização, mas também de
neoliberalização. Não há dúvidas, por exemplo, de que a domi-
nância financeira contemporânea resultou da radicalização das
reformas neoliberais, da desconstrução dos arcabouços de regu-
lação monetária internacional, com o fim dos acordos de Bretton
Woods, nos anos 1970, e, posteriormente, da desregulamentação
dos sistemas bancários e financeiros nacionais. Como observam
Dardot e Laval (2016), “foi o Estado que, nos anos 1980, por suas
reformas de liberalização e privatização, constituiu uma finança
de mercado” (p. 202). Foi nesse sentido que a questão da neoli-
beralização se tornou igualmente importante para o desenvolvi-
mento de nossa pesquisa.
De fato, nos marcos da conjuntura pós-1988, viveu-se, no
debate sobre o planejamento urbano e regional no Brasil, uma
experiência na contramão do neoliberalismo. Desde então, a
maioria dos autores e autoras ofereceu perspectivas e estimulou
ações no sentido da regulação territorial, do incremento das
políticas de regularização fundiária, de provisão de habitação e
serviços públicos, enfim, de expansão das redes e mecanismos
de proteção e participação social. No entanto, já nos anos 1990,
mas sobretudo em virtude da realização de megaeventos no país,
dentre os quais se destacaram a Copa do Mundo de Futebol de
2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, esse mesmo debate passou
por uma inflexão. Ele foi deslocado, crescentemente, para a
crítica das modalidades de produção e reestruturação do espaço
urbano então inauguradas e/ou aprofundadas. Modalidades
caracterizadas pela proeminência da lógica mercantil, como
no caso das parcerias público-privadas (PPP’s), e por um acen-
tuado componente de violência e despossessão. Daí a ênfase em
conceitos como cidade neoliberal e em temas como o dos grandes
projetos urbanos, o das remoções e o da gentrificação. Tudo isso

37
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

contribuindo para identificar e problematizar a tendência geral


de mercantilização dos diversos aspectos, formas e domínios da
vida urbana.
Seja como for, o contato com o arcabouço teórico de viés
braudeliano, notadamente o de Arrighi ([1994] 2003), nos levou a
uma apropriação relativamente diferenciada, melhor dito, a uma
reinterpretação dos conceitos e temas vinculados a esse debate e
à questão da neoliberalização.
Dialogando com uma tendência presente no nosso campo,
resgatamos a teoria do duplo movimento, de Karl Polanyi, e
incorporamos, em nossas referências, os aportes de autores e
autoras que reinterpretam essa teoria à luz da atual fase de desen-
volvimento do capitalismo, como Fiori (2000), Bienefeld (2007),
Harvey (2008b) e Silver e Arrighi (2014). Ao fazê-lo, preten-
díamos, em consonância com essa tendência, refletir sobre a
crescente penetração da lógica mercantil nos territórios urbanos.
Desse modo, recorremos ao argumento básico polanyiano: a
expansão do princípio do liberalismo econômico e dos mercados
autorregulados conduz, necessariamente, ao desenraizamento, à
desarticulação e, no extremo, à ruptura do substrato social, e
mesmo natural, que dá suporte às relações econômicas. Um risco
que, ainda segundo esse argumento, desencadearia contramovi-
mentos baseados no princípio da proteção social. E esses contra-
movimentos conteriam, em especial, a mercantilização da terra,
do trabalho e do dinheiro, os três entendidos como mercadorias
fictícias, ou seja, que não foram originalmente produzidas para a
venda, ao contrário do que ocorre com os demais bens mercantis.
Nos termos de Polanyi ([1944] 2012), terra, trabalho e
dinheiro – e, em nossa opinião, outros elementos da vida material
e simbólica, como as cidades – não são, nem deveriam ser tratados
apenas como mercadorias. Tratamento que ameaça a reprodução
social e que, no caso particular das pesquisas urbanas, permite
falar da “mercantilização das cidades”, no sentido da produção,
apropriação e uso do espaço urbano por classes e frações de
classes que se apoiam na expansão das forças de livre mercado.
As leituras mais difundidas da mercantilização urbana
também costumam enfatizar as mudanças do capitalismo desde,
aproximadamente, a década de 1970. Trata-se de investigações

38
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

que, frequentemente, ressaltam as modificações nas formas como


as cidades são produzidas e organizadas tendo em vista a crise do
fordismo-keynesianismo e o advento do neoliberalismo. O que é
feito, em geral de maneira heurística, recorrendo aos termos da
teoria da regulação, em especial às ideias de regime de acumu-
lação e modo de regulação.
De um ponto de vista amplo, sustenta-se que, diante de uma
crise de sobreacumulação, o regime de acumulação fordista se
esgotou e começou a ser substituído. Tornou-se clássica, por
exemplo, a proposta de Harvey ([1989] 2008a), que afirmou, no
final dos anos 1980, que o fordismo tenderia a ser suplantado
por um regime de acumulação flexível. Regime caracterizado,
principalmente, por processos de reestruturação produtiva, pela
ascendência do poder das finanças e pela emergência do que o
autor denominaria, em obra posterior, que já incorpora a teoria
do duplo movimento, como a virada neoliberal (HARVEY,
2008b). Antes disso, havia estabelecido uma forte conexão entre
o declínio do fordismo-keynesianismo e o advento de novas
formas de empreendedorismo urbano (HARVEY, 1989).
Aí está a moldura abrangente que envolve o debate acerca da
transição de um período histórico em que predominava a cidade
de tipo fordista, relativamente desmercantilizada, para outro, no
qual sobressaem as distintas formas de manifestação da cidade
neoliberal e do neoliberalismo como modalidade de governança
urbana17. Debate atravessado, dentre outras vertentes, pela recu-
peração dos argumentos polanyianos, tal como descritos acima.
Quer dizer, o neoliberalismo, assim como suas repercus-
sões nos domínios da urbanização, do urbanismo, do planeja-
mento e da gestão urbana, passou a ser interpretado como uma
nova rodada de expansão dos mercados autorregulados. E, nesse
sentido, estava aberto um novo modo de compreender o que
vinha sendo designado como a mercantilização das cidades.
Mas, como dito, nossa adesão à perspectiva braudeliana-
arrighiana apontava uma direção pouco explorada até então.
17
Cf., a esse respeito, Brenner e Theodore (2002). Trata-se de uma obra
que reúne um conjunto de artigos sobre os espaços do neoliberalismo e a
reestruturação urbana contemporânea. Ela é útil para identificar os traços
gerais do debate, ainda que, em termos empíricos, concentre-se em casos da
América do Norte e da Europa Ocidental.

39
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Polanyi ([1944] 2012) elaborou sua teoria do duplo movimento


levando em conta o que chamou de a “Grande Transformação”.
Expressão com a qual o autor se refere às consequências da
Revolução Industrial. Portanto, suas formulações dizem respeito
aos marcos temporais que Arrighi ([1994] 2003) associa ao ciclo
sistêmico de acumulação e à hegemonia britânica.
Considerando o arcabouço teórico braudeliano-arrighiano
e o modo como Silver e Arrighi (2014) o mobilizam para rein-
terpretar a teoria do duplo movimento, estabelecemos um dos
pressupostos mais importantes que orientam nossa pesquisa: o
que Polanyi ([1944] 2012) descreve como a expansão do prin-
cípio do liberalismo econômico e dos mecanismos da autorregu-
lação mercantil deve ser histórica e geograficamente contextuali-
zado. E esse é, diga-se de passagem, um pressuposto inspirado na
contribuição de Fiori (2000), que assinala não só a necessidade
de contextualização espaço-temporal do duplo movimento, mas,
igualmente, o imperativo de decompô-lo, na verdade, em quatro
movimentos: dois de liberalização e dois de proteção social. Cada
um dos quais correspondendo, em sua opinião, à contradição
entre capital e trabalho e à contradição entre a globalidade dos
fluxos econômicos e a territorialidade de sua gestão política.
Em síntese, o duplo movimento não opera, da mesma maneira,
no centro e na periferia do sistema-mundo, não funcionou, do
mesmo modo, ao longo do tempo e, por fim, se refere tanto aos
conflitos capital-trabalho quanto aos conflitos interestatais.
Portanto, quando se fala da mercantilização da terra, do
trabalho e do dinheiro, isto é, de sua transformação em merca-
dorias fictícias, deve-se ter em vista que, na formulação original
de Polanyi ([1944] 2012), o impulso fundamental no sentido da
mercantilização se encontrava na expansão produtiva e comercial
correspondente à fase de expansão material do ciclo sistêmico de
acumulação britânico. O que, grosso modo, pode ser identificado
com o advento e o desenvolvimento da Revolução Industrial, a
partir da Europa da segunda metade do século XVIII.
Sendo assim, que forças desencadearam, no período contem-
porâneo, a nova rodada de expansão dos mercados autorregu-
lados, ou seja, de mercantilização dos mais diversos domínios e
elementos da vida social? Nossa hipótese indica que, uma vez que

40
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

os eventos pós-1970 coincidem com a fase de expansão financeira


do ciclo sistêmico de acumulação norte-americano, as respostas
a essa indagação deve ser buscadas no debate sobre a financei-
rização. Hoje, a dominância financeira seria um dos principais
fatores de pressão no sentido da autorregulação mercantil, da
liberalização e da mercantilização, interessando-nos, acima de
tudo, seus impactos urbano-territoriais.
Em nossa perspectiva, esse tipo de relação, entre financeiri-
zação, difusão da lógica mercantil e transformações urbanas, abre
caminho para se sustentar que, em cada onda de urbanização do
capital, ocorrem inovações fundamentais. Note-se que, em fases
de expansão material, o impulso dessas transformações e inova-
ções não foi dado pela dominância financeira, mas pela tendência
de racionalização da ordem urbana, consonante com os próprios
imperativos da expansão produtiva. O que significou, inclusive, a
ascendência de contramovimentos no sentido da desmercantili-
zação das cidades, como no caso da fase de expansão material do
ciclo sistêmico de acumulação norte-americano, no pós-Segunda
Guerra Mundial.
Enfim, tudo isso também ilumina a construção da ideia dos
ciclos sistêmicos de urbanização e pode ser ilustrado quando se
consideram as seguintes inovações.
i) Inovações financeiras: todas as ondas de urbanização
do capital estiveram associadas a inovações financeiras. Como
indica o relato de Harvey (2015), esse foi o caso, por exemplo,
do papel cumprido pelos irmãos Pereire na reforma de Paris por
Haussmann. Hoje, assumiram proeminência sofisticados instru-
mentos e técnicas fundados no mercado de capitais, em especial
a securitização, os contratos de derivativos e os demais meca-
nismos geridos por fundos imobiliários. Instrumentos e técnicas
que expressam, de um modo ou de outro, a dominância da lógica
de valorização do capital fictício.
ii) Inovações tecnológicas: nesse aspecto em particular,
pode-se mencionar a centralidade dos novos meios de trans-
porte e comunicação, como a ferrovia e o telégrafo, nas ondas
de urbanização do final do século XIX e início do século XX.
Atualmente, não restam dúvidas de que tanto o funcionamento
dos mercados globais de capitais quanto a chamada urbanização

41
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

planetária seriam inviáveis sem a revolução técnica, científica e


informacional, baseada, por exemplo, em sistemas computacio-
nais integrados à Internet e a todo tipo de tecnologias georrefe-
renciadas. O que é especialmente válido para a expansão mais
recente da economia de plataforma (platform economy) e para
tendências como a uberização (uberization) do trabalho.
iii) Inovações de escala: é possível identificar um movimento
progressivo de ampliação e complexificação das escalas espaço-
temporais por intermédio das quais as ondas de urbanização do
capital se realizam. Algo que se torna evidente quando se levam
em conta a renovação e a expansão das áreas centrais, a partir,
por exemplo, do caso paradigmático das reformas de Hauss-
mann; a suburbanização das cidades americanas, inspiradas na
experiência de Nova York e pelos projetos de Robert Moses; e,
por fim, o papel das novas cidades chinesas nas redes, nas cadeias
de valor globais e na divisão territorial do trabalho típica do capi-
talismo contemporâneo.
iv) Inovações regulatórias: na forma de intervenção do
Estado nas cidades (como o empreendedorismo urbano e as
modalidades de governança urbana neoliberal, fundadas, por
exemplo, em parcerias público-privadas); na legislação urbanís-
tica (que, hoje, tende a operar segundo uma lógica ad hoc e de
exceção, ao contrário das iniciativas totalizantes e abrangentes
predominantes em momentos anteriores); nas posturas munici-
pais (atualmente orientadas, segundo os princípios neoliberais,
para a regulação, marginalização e repressão das atividades infor-
mais e dos usos não mercantis dos espaços urbanos, tanto no que
tange ao trabalho quanto à reprodução social); e, finalmente, nas
formas de tratamento da propriedade imobiliária (que tendem,
do mesmo modo, a deslocar modalidades de apropriação não
mercantis e a estimular a conversão da terra em ativos financeiros).
Ressalte-se que, em períodos anteriores, como na passagem do
século XIX ao XX, todo um ideário de reforma urbana, calcado
em princípios “civilizatórios”, “sanitaristas”, de “ordem” e “racio-
nalidade”, também estimulou o advento de modos de regulação
urbanística específicos.
v) Inovações de produto e de estilos de vida: quanto a esse
tipo de inovação, podemos mencionar, por exemplo, a invenção

42
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

norte-americana da casa suburbana e o estilo de vida familiar


próprio da classe média fordista, correspondentes à predomi-
nância do urbanismo extensivo. Hoje, ao lado da expansão dos
condomínios fechados, nas mais diferentes regiões do planeta,
sobretudo as mais violentas e desiguais, é possível citar as formas
de moradia e de consumo dos espaços urbanos advindas do
urbanismo intensivo e associadas a processos de gentrificação.
Formas de moradia e de consumo que expressam o imaginário
cosmopolita de parcelas das classes médias e os novos conceitos
de família e de sociabilidade.
vi) Inovações nas ideologias urbanas: para cada onda de
urbanização, pode-se identificar a emergência do que pode-
ríamos chamar de “ideologias urbanas”. São narrativas e disposi-
tivos intelectuais que ajudam a construir e difundir determinadas
“questões urbanas”. Isto é, questões a respeito dos “problemas
sociais” que se manifestam nas cidades e exigem uma resposta
da sociedade e do Estado com foco nessas mesmas cidades.
Questões, enfim, tratadas por diferentes modalidades de urba-
nismo e paradigmas de planejamento (sanitarista, embelezador,
modernizador, empreendedor, sustentável, dentre outras desig-
nações mais ou menos em voga). Para nós, o mapa dessas narra-
tivas e dispositivos intelectuais é passível de elaboração tendo em
vista, por exemplo, os ideais de construção do Estado-nação, da
ordem industrial (fordista) e da sociedade de mercado (gover-
nança neoliberal).
Cabe sublinhar, por último, o modo como temos problema-
tizado a penetração da lógica mercantil e financeira na camada
da vida material. Ao definir o capitalismo como a camada não
especializada da hierarquia econômica, Braudel (1987) sugeriu
que ela se eleva sobre duas outras camadas: a da economia de
mercado e, na base, a da vida ou civilização material. A primeira
é a esfera das trocas mercantis horizontais, e não das trocas verti-
cais e monopólicas, beneficiadas pela proximidade com o poder
estatal e características do capitalismo. A segunda, constitui a
esfera da vida cotidiana, social e mesmo biológica, orientada pela
lógica do valor de uso. De acordo com o autor, apesar de sua
posição superior, o capitalismo depende das demais camadas e
não conseguiria penetrar, completamente, na civilização material.

43
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Do nosso ponto de vista, diante da financeirização contem-


porânea, o que está em curso é, precisamente, esse movimento,
de capilarização e aprofundamento da racionalidade mercantil-
financeira, que invade e coloniza todos os domínios e dimen-
sões da vida. Isso explicaria, por exemplo, a emergência de novas
formas de expropriação financeira, tal como designadas por
Lapavitsas (2013), que permitem converter rendas, vencimentos,
ativos e passivos de indivíduos, das classes trabalhadoras e
médias, em fontes de lucro financeiro. Ou, ainda, a formação do
que Sanfelici (2013) denomina de ethos financeirizado, no sentido
da subjetivação da lógica financeira.
Em traços gerais, o que foi dito até aqui indica como,
partindo das problemáticas da globalização e da neoliberali-
zação, passamos à ênfase cada vez maior em torno da financei-
rização. Esperamos que o mapa do nosso percurso contribua
com esforços subsequentes de pesquisa. Em todo o caso, antes de
apresentarmos, sumariamente, os capítulos que constituem esta
obra, cumpre apontar alguns dos desdobramentos mais recentes
da nossa exploração do debate sobre a dominância financeira.

Financeirização periférica, urbanização


dependente e neoextrativismo
Mais recentemente, iniciamos um esforço no sentido de
resgatar o debate clássico, constituído ao longo dos anos 1960-
1970, acerca da urbanização dependente na América Latina,
atualizando-o à luz das hipóteses contemporâneas do capitalismo
sob dominância financeira e da predominância do rentismo.
Buscava-se, naquele momento, evidenciar as especificidades
históricas da relação entre a industrialização tardia e os padrões
de urbanização explosiva característicos do continente latino-a-
mericano. Padrões de urbanização cujos índices de crescimento
se acentuaram, principalmente, a partir dos anos 1950 e que,
para muitos analistas, não reproduziam a dinâmica, as formas
e as relações sociais que presidiram expansão das cidades nos
países centrais.
Destacavam-se, no âmbito desse debate, as várias matrizes
teóricas instituídas, na origem, em virtude da adesão e/ou das

44
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

críticas ao arcabouço cepalino elaborado por Raul Prebisch. Refe-


rimo-nos às elaborações e às contribuições teóricas de Fernando
Henrique Cardoso e Enzo Falleto, Paul Singer, Lucio Kowarick,
Aníbal Quijano, Ruy Mauro Marini, dentre tantos outros e outras.
Esse debate foi concretizado em inúmeros eventos, seminários,
simpósios etc., realizados em diversos países, e teve como marca
fundamental a publicação, em 1973, da clássica coletânea orga-
nizada por Manuel Castells, intitulada Imperialismo y Urbanización
en América Latina.
O retorno a essa discussão, e aos seus termos mais impor-
tantes, decorre de duas constatações centrais. De um lado, da
evidência de que os temas da financeirização e do rentismo
foram amplamente absorvidos nos meios acadêmicos latino-ame-
ricanos, tornando-se uma espécie de novo paradigma teórico que
orienta as interpretações sobre as atuais transformações urbanas.
Hoje, grande parte da literatura crítica produzida no continente
tem como ponto de convergência a aceitação de que a financeiri-
zação não é apenas a hipertrofia da lógica do capital financeiro,
mas uma das principais expressões das mudanças estruturais do
capitalismo, em curso desde os anos 1970. De outro lado, pouca
atenção tem sido dada ao fato de que a financeirização, sendo um
fenômeno global, corresponde às novas modalidades de hierar-
quia, subordinação e dominação no sistema interestatal, como
propõem, por exemplo, Belluzzo (1997), Christophers (2012;
2015), Paulani (2013), Lapavitsas (2013), Kaltenbrunner e Pain-
ceira (2017).
Além disso, embora parte da literatura venha sugerindo o
imperativo de refletir sobre o caráter variegado da financeiri-
zação, não se têm avançado, necessariamente, na construção de
um quadro teórico apropriado, que supere a simples descrição
de singularidades empíricas, como as que marcam o advento da
dominância financeira nos países latino-americanos. Para nós,
essa superação passa, fundamentalmente, pelo reconhecimento
e pela ênfase nas relações de poder18.
18
Cf., a esse respeito, os argumentos de Lapavitsas (2013), conforme os quais a
financeirização “varia sistematicamente entre países desenvolvidos e em desen-
volvimento. A financeirização nos países em desenvolvimento [...] foi impulsio-
nada pela abertura de contas de capital, pelo acúmulo de reservas cambiais e
pelo estabelecimento de bancos estrangeiros. Mais fundamentalmente, ela tem

45
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Acreditamos que, à semelhança do momento e do debate


anterior, a investigação dos vínculos entre a financeirização e
a urbanização na América Latina deve partir das relações de
dependência e subordinação do capitalismo latino-americano às
lógicas de poder que regem o capitalismo global. Se países como
o Brasil têm sido convertidos, como observa Paulani (2013), em
plataformas de exportação de commodities e, ao mesmo tempo,
em plataformas de valorização financeira, acentuando sua depen-
dência, essa conversão é viabilizada por novos mecanismos de
subordinação econômica, marcadamente distintos dos predomi-
nantes na etapa de industrialização tardia.
Hoje, como defendem Lapavitsas (2013) e Kaltenbrunner e
Painceira (2017), a financeirização periférica corresponde a relações
de subordinação que refletem o modo como, por exemplo, os países
latino-americanos absorveram o excesso de liquidez internacional,
típico da fase mais recente de consolidação do dólar como dinheiro
mundial. Nesses termos, a expansão das reservas latino-americanas
de dólares, que, a princípio, pareceu atuar no sentido do incremento
da soberania e da autonomia dos referidos países, funcionou, ao
contrário, para reforçar sua integração dependente e assimétrica no
sistema monetário e financeiro internacional.
Segue pertinente, então, a afirmação de Castells (1973),
exposta na apresentação da coletânea supramencionada: é neces-
sário delimitar os diferentes processos sociais que constituem
os países da América Latina, em sua variedade e complexidade,
mas, do mesmo modo, é indispensável ressaltar o que os “une
em termos de processo econômico-político”, quer dizer, a “simi-
litude no lugar que ocupam no sistema de relações do imperia-
lismo” (p. 1, tradução nossa). No entanto, não há dúvidas de que
as determinações e os fatores que definem esse lugar mudaram
ao longo do tempo, exigindo um esforço de atualização.

sido diretamente conectada ao funcionamento do dinheiro mundial nas últimas


décadas, particularmente o dólar americano. Existe uma base monetária para
a financeirização nos países em desenvolvimento, que determinou seu caráter
subordinado em relação à financeirização nos países desenvolvidos” (p. 39).
Apesar de sua abordagem geral da financeirização, deduzida do caso dos países
centrais, ser relativamente negligente em relação às questões do poder, a análise
de Lapavitsas (2013) da financeirização dos países em desenvolvimento coloca
essas mesmas questões no cerne da explicação.

46
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

Assim, temos acompanhado as hipóteses de alguns dos


principais autores e autoras que, por exemplo, no âmbito
da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), publicaram, recentemente, a obra Estudios sobre
financierización en América Latina (ABELES et al, 2018). Nesse
aspecto em particular, nos interessa corroborar a ideia, igual-
mente defendida nessa publicação, de que os fenômenos
típicos da financeirização estão determinados, em economias
dependentes e periféricas, por sua integração subordinada ao
sistema monetário e financeiro internacional. Pretendemos
associar a abordagem sobre as hierarquias monetárias inter-
nacionais, presente em parte da referida obra, ao arcabouço
teórico-conceitual braudeliano-arrighiano, para construir, no
momento oportuno, as devidas conexões entre financeirização
periférica e urbanização dependente.
Temos explorado, ainda, outro corpo de literatura recente,
as perspectivas que buscam expandir as noções de extração e de
extrativismo, dando ensejo ao conceito de neoextrativismo. Pers-
pectivas que animaram parte do debate em torno dos processos
contemporâneos de acumulação do capital na América Latina,
como é o caso dos argumentos de Svampa (2015), mas que vêm
assumindo o aspecto de uma reflexão mais abrangente sobre
a natureza do capitalismo, como indicam as contribuições de
Gago e Mezzadra (2017) e Mezzadra e Neilson (2013; 2015; 2017;
2019), a respeito das relações entre extração, logística e finanças.
Para esses autores e autoras, se é verdade que a ideia de
uma espécie de Consenso das Commodities, em oposição ao
Consenso de Washington, ajuda a entender as atuais configu-
rações da dependência latino-americana, também é possível, e
desejável, radicalizar e ampliar a própria noção de extrativismo.
Nesse sentido, sugerem que o debate deve ir além da centrali-
dade dos mercados de commodities minerais e agrícolas, além
do sítio propriamente dito de extração, buscando seus vínculos
com as atividades e a racionalidade características das esferas da
logística e das finanças. É nesse sentido que se fala do neoextra-
tivismo, apontando que as interconexões entre extração, logís-
tica e finanças permitem que todo um conjunto de operações do
capital sejam identificadas como operações de extração. Gago e

47
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Mezzadra (2017) remetem, dentre outros exemplos, aos rendi-


mentos extraídos de complexas cadeias de produção do agrone-
gócio, à mineração de dados (data mining, no original em inglês),
à extração de rendas de classes populares, por intermédio do
endividamento, assim como à captura de rendas urbanas, no
contexto de processos de gentrificação.
Em resumo, o conceito expandido de neoextrativismo
envolve uma série de “operações de extração do capital”: de
recursos, de rendas, de excedentes etc. Operações cujos atri-
butos complexos indicam, conforme Gago e Mezzadra (2017),
que: i) a extração não pode ser reduzida a operações ligadas a
matérias-primas, transformadas em commodities em nível global;
ii) o conceito de extração supõe certa exterioridade do capital ao
trabalho vivo, à cooperação social – o que, para Paulani (2016),
é próprio do rentismo em geral; e iii) a extração não pode ser
associada, unilateralmente, à paisagem rural ou não urbana.
Trata-se de argumentos semelhantes aos de Paulani (2016),
para quem, na atual fase de desenvolvimento do capitalismo,
a exterioridade do rentismo em geral se manifesta em formas
particulares: captura de rendas e excedentes via exploração de
recursos naturais, de diferenciais de produtividade e localização,
de preços de monopólio e através de operações nos mercados
financeiros. Tudo isso mediado, teoricamente, pelo resgate das
categorias de rendimento derivadas da teoria marxista do valor:
salário, lucro, sobrelucro, renda diferencial, renda absoluta,
renda de monopólio, juros e dividendos. Há, portanto, uma
estreita relação entre rentismo e neoextrativismo, com a qual
estamos começando a lidar.
Esse tipo de abordagem nos parece promissora porque
permite levantar as seguintes questões: de que maneira as lógicas
que governam a produção dos territórios urbanos e metropoli-
tanos latino-americanos estão subordinadas ao impulso geral de
extração de recursos, rendas e excedentes que é típico da atual
fase de expansão financeira e de predominância do rentismo?
Será possível dizer que as inúmeras operações de reestruturação
urbana em curso na América Latina funcionam como “operações
de extração do capital”, no sentido dado pelo debate ampliado
sobre o neoextrativismo? É mesmo pertinente falar em extrati-

48
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

vismo urbano, como propõem os textos compilados por Duplat


(2017)? De que modo essa subordinação e essas operações reco-
locam e atualizam os termos da urbanização dependente na
América Latina?
Estamos nos referindo, por exemplo, à possibilidade de
refletir sobre as operações urbanas como expressão e territoria-
lização das múltiplas maneiras por meio das quais os proprietá-
rios do capital portador de juros, como os investidores institu-
cionais, buscam incrementá-lo capturando rendas urbanas. Isto
é, diante da flexibilidade e da mobilidade crescentes do capital
em geral, é plausível assumir que as operações neoextrativistas,
em territórios urbanos, ao lado das que ocorrem nos espaços
da mineração e da agricultura, dentre outros, compõem uma
espécie de portfólio à disposição desses investidores. O terri-
tório, ele mesmo, funciona como um portfólio de negócios.
Aqui, nos parece, há uma chave de interpretação dos vínculos
entre financeirização periférica e urbanização dependente que,
doravante, deveria ser tomada como uma referência central no
campo dos estudos urbanos.

Apresentação dos capítulos


Dado todo o percurso desenhado nas páginas anteriores, o
livro foi estruturado em cinco partes, na tentativa de sintetizar os
pontos mais importantes da trajetória intelectual do grupo.
A organização do livro parte de uma visão mais ampla e
teórica sobre o fenômeno da financeirização, passando por um
olhar sobre as peculiaridades latino-americanas e brasileiras
até chegar à apresentação de alguns estudos de caso, sempre
buscando uma relação com sua configuração espacial.
Para tanto, o livro está estruturado em 15 capítulos, orga-
nizados em conformidade com o sentido da exposição acima
definido: de aspectos teóricos e mais gerais do fenômeno até
estudos de caso buscando suas especificidades e territoriali-
dades. Abaixo, uma breve apresentação de cada um deles a
fim de guiar o leitor no percurso anunciado, do teórico e mais
geral às especificidades e territorialidades do fenômeno da
financeirização.

49
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

O primeiro capítulo, “Crise de sobreacumulação global


iniciando uma crise de civilização”, de François Chesnais, traz
um ensaio sobre a crise econômica e financeira que vem se
prolongando neste século. O autor defende que essa crise se
apresenta, na verdade, como um dos aspectos de uma crise civi-
lizatória mais ampla.
O segundo, “O sistema-mundo capitalista e os novos alinha-
mentos geopolíticos no século XXI: uma visão prospectiva”, de
Carlos Eduardo Martins, analisa as principais características
da conjuntura mundial contemporânea a partir de tendências
cíclicas e seculares e dos novos alinhamentos geopolíticos que
apontam para uma bifurcação do poder no sistema mundial.
No terceiro capítulo apresentamos o texto “Financierización
em América Latina: implicancias de la integración financiera
subordinada”, de Juan Pablo Paincera e Annina Kaltenbrunner,
que busca compor o cenário específico da dominância financeira
na América Latina, considerando suas peculiaridades geopolíticas
e econômicas. Os autores apontam que a financeirização
subordinada estabelece uma nova forma de vulnerabilidade
externa dos países latino-americanos e que esse processo
tem consequências diretas no comportamento dos principais
agentes econômicos nesses países, como os bancos, as empresas
e as famílias.
No quarto capítulo, “Financeirização e mercantilização à luz
dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização”, Luiz César
Ribeiro e Nelson Diniz apresentam uma proposta de leitura do
fenômeno financeiro a partir da abordagem arrighiana dos ciclos
sistêmicos de acumulação e suas relações com as transformações
históricas do espaço urbano.
Em seguida, o livro inclui a reflexão teórica sobre os
“Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração-
cidade” elaborada por Martin Arboleda, na qual propõe um
quadro teórico para a compreensão das cadeias transnacionais
de valor que articulam as atividades extrativas, de suprimento e
de produção social do espaço construído urbano e não urbano, a
partir do qual é possível entender as formas pelas quais as indús-
trias extrativas estão refazendo paisagens urbanas, financeiras e
logísticas à sua própria imagem.

50
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

O sexto capítulo, “Máquinas de crescimento urbano – mas


em que escala?”, traz uma reflexão de Neil Brenner sobre as
dimensões multiescalares do fenômeno urbano ao fazer uma
releitura crítica, metodologicamente não localista, da teoria da
máquina de crescimento urbano.
No sétimo capítulo temos o texto “Metrópole, moeda e
mercados: a agenda urbana em tempos de reemergência das
finanças globais”, de Jeroen Klink, que trata das articulações entre
a dimensão financeira e as metrópoles no capitalismo contem-
porâneo, sugerindo uma agenda de pesquisa articulada em três
eixos: (i) Estado, fundo público e financiamento em tempo de
austeridade metropolitana; (ii) neoliberalização e reestruturação
da governança metropolitana e (iii) planejamento urbano-metro-
politano: de planos a modelos.
O oitavo capítulo conta com a contribuição de Maurilio
Lima Botelho, com o texto denominado “A metrópole para
além da nação: globalização e crise urbana”, que discute o papel
das grandes cidades e metrópoles na economia mundial. O
autor defende que a emergência de cidades-globais implode as
economias tradicionais ao reorganizar as articulações escalares.
Portanto, sugere que as questões metropolitanas atuais deveriam
ser analisadas como parte de uma crise econômica global.
O nono conta com o texto “Urbanización del capital y
difusión de ideologías urbanas en América Latina: la ciudad
como máquina de crecimiento económico”, de autoria de Luiz
César Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla, que analisa criti-
camente as conexões entre a urbanização do capital, a difusão
do atual ciclo de ideologias urbanas e sua tradução na defi-
nição de políticas urbanas que dinamizam os processos de
neoliberalização. Com isso, o capítulo sustenta que as ideolo-
gias urbanas atuais estão orientadas no sentido de favorecer os
processos de acumulação financeirizados e de mercantilização
das cidades.
No décimo capítulo, Luiz César de Queiroz Ribeiro reflete
sobre os possíveis impactos da inflexão ultraliberal sobre as
metrópoles brasileiras no sentido da aceleração de sua inserção
no atual ciclo de dominância financeira do capitalismo, no texto
“Financeirização e os ajustes da ordem urbana brasileira”.

51
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

O 11º capítulo conta com o texto “Capitalismo sob domi-


nância financeira e a terra urbana – uma análise do caso brasi-
leiro a partir da regulação fundiária”, de Tarcyla Fidalgo, no qual
a autora busca refletir sobre o papel da regulação na capilari-
zação da dominância financeira no espaço urbano a partir do
estudo de caso da mais recente lei sobre a regularização fundiária
aprovada em nível federal.
O 12º capítulo traz o texto “A financeirização do Estado
por meio da securitização de ativos no Brasil”, de Igor Pouchain
Matela e Nelson Diniz, que trata de como as práticas e racionali-
dades financeiras também se fazem presentes no nível da gestão
dos aparelhos estatais. Os autores trazem exemplos brasileiros
de securitização de ativos públicos para fazer uma reflexão sobre
as relações intrínsecas entre os processos de financeirização e de
acumulação por despossessão.
O 13º capítulo conta com a contribuição de Lucas Faulhaber
e Hipolita Siqueira no texto “Grupos econômicos e acumulação
urbana na cidade do Rio de Janeiro: Odebrecht e Carvalho
Hosken”, que aborda os principais elementos para a análise dos
grupos econômicos e sua contribuição para os estudos sobre
acumulação urbana. Então, são examinadas as trajetórias histó-
ricas e as estratégias de acumulação dos grupos Odebrecht e
Carvalho Hosken na cidade do Rio de Janeiro.
O 14º capítulo traz o texto “Arranjos multiescalares da ativi-
dade imobiliária e a (re)produção da metrópole”, de Alexandre
Yassu, que trata do caso das transformações imobiliárias, residen-
ciais e logísticas em Cajamar, Região Metropolitana de São Paulo.
O artigo revela as relações entre os agentes financeiros globais,
o poder público e os agentes locais numa análise dos arranjos
multiescalares na produção do meio ambiente construído.
Por fim, no 15º capítulo apresentamos estudo de caso sobre
a capilarização da financeirização no mercado de habitação em
São Paulo por meio do texto de Álvaro Luís dos Santos Pereira e
Gabriel Maldonado Palladini denominado “Parceria público-pri-
vada para construção de moradia popular: fundamentos institu-
cionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo”.
Em suas reflexões, os autores apresentam o projeto de parceria
público-privada de produção de moradia popular levado a cabo

52
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

pela Agência Casa Paulista, do governo estadual e suas configura-


ções institucionais alinhadas aos paradigmas da neoliberalização
e financeirização.
A última parte do livro traz um roteiro de leituras a partir
do percurso do grupo de pesquisa “Metrópole, Estado e Capital”
anteriormente exposto. A proposta é apresentar ao leitor uma
breve síntese das leituras mais relevantes, realizadas coletiva-
mente, de modo a sugerir caminhos para aprofundamento nos
diversos temas abordados ao longo dos capítulos.
Assim, espera-se que, a partir da seleção de textos e do
roteiro de leituras proposto ao final da obra, seja possível dar
ao leitor um panorama das discussões e complexidades que
envolvem o fenômeno da financeirização, desde sua construção
teórica até o seu rebatimento espacial nas cidades. Conside-
rando o número relativamente pequeno de obras sobre o tema
no país, espera-se contribuir para a fixação de bases comuns
que permitam o aprofundamento do debate, estimulando novas
pesquisas sobre o tema.

Referências
AALBERS, Manuel. The potential for financialization. Dialogues in Human
Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015.
ABELES, Martín; CALDENTEY, Esteban Pérez; VALDECANTOS,
Sebastián (Ed.) Estudios sobre financierización en América Latina. Santiago:
CEPAL, 2018.
ANDREUCCI, Diego; GARCÍA-LAMARCA, Melissa; WEDEKIND, Johan;
SWYNGEDOUW, Erik. “Value grabbing”: a political ecology of rent.
Capitalism Nature Socialism, v. 28, n. 3, p. 28-47, 2017.
ARBOLEDA, Martín. Financialization, totality and planetary urbanization
in the Chilean Andes. Geoforum, v. 67, p. 4-13, 2015.
ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio
de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 2003.
______. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São
Paulo: Boitempo, 2008.
ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly J. Caos e governabilidade no
moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora
Unesp, 2001.

53
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Dinheiro e as transfigurações da riqueza. In:


TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma
economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
BIENEFELD, Manfred. Suppressing the double movement to secure the
dictatorship of finance. In: BUGRA, Ayse; AGARTAN, Kaan. Reading Karl
Polanyi for the Twenty-First Century: market economy as a political project.
New York: Palgrave Macmillan, 2007.
BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global – O padrão sistê-
mico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
______. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
______. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano, volume 1. São Paulo: Martins Fontes. 1996a.
______. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII:
os jogos das trocas, volume 2. São Paulo: Martins Fontes. 1996b.
______. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII:
o tempo do mundo, volume 3. São Paulo: Martins Fontes, 1996c.
BRENNER, Neil. Theses on urbanization. Public Culture, v. 25, n. 1 (69),
p. 85-114, 2013.
______. Introduction: urban theory without an outside. In: BRENNER,
Neil (Ed.). Implosions/Explosions: towards a study of planetary urbanization.
Berlim: Jovis, 2014.
______. New urban spaces: urban theory and the scale question. New York:
Oxford University Press, 2019.
BRENNER, Neil; THEODORE, Nik (Ed.). Spaces of neoliberalism: urban
restructuring in North America and Western Europe. Oxford: Blackwell, 2002.
CARCANHOLO, Reinaldo de A. O capital especulativo e a desmateriali-
zação do dinheiro. In: GOMES, Helder (Org.). Especulação e lucros fictícios.
São Paulo: Outras Expressões, 2015.
CARCANHOLO, Reinaldo de A.; NAKATANI, Paulo. O capital
especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o conceito de capital
financeiro, característico da globalização. In: GOMES, Helder (Org.).
Especulação e lucros fictícios. São Paulo: Outras Expressões, 2015a.
______. Capitalismo especulativo e alternativas para a América Latina.
In: GOMES, Helder (Org.). Especulação e lucros fictícios. São Paulo: Outras
Expressões, 2015b.
CARCANHOLO, Reinaldo de A.; SABADINI, Maurício de S. Capital
fictício e lucros fictícios. In: GOMES, Helder (Org.). Especulação e lucros
fictícios. São Paulo: Outras Expressões, 2015.

54
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

CASTELLS, Manuel. Presentación. In: CASTELLS, Manuel. Imperialismo


y urbanización en América Latina. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1973.
CETRE, Moisés. La financiarización como una de las transformaciones de
las ciudades latinoamericanas. Revista Republicana, n. 18, p. 113-133, 2015.
CHESNAIS, François. A teoria do regime de acumulação financeirizado:
conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n.
1 (18), p. 1-44, jan./jun. 2002.
______. Finance capital today: corporations and banks in the lasting global
slump. Boston: Brill, 2016.
CHRISTOPHERS, Brett. Revisiting the urbanization of capital. Annals of
the Association of American Geographers, v. 101, n. 6, p. 1.347-1.364, 2011.
______. Anaemic geographies of financialisation. New Political Economy,
v. 17, n. 3, p. 271-291, 2012.
______. The limits to financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5,
n. 2, p. 183-200, 2015.
DAHER, Antonio. Territorios de la financiarización urbana y de las crisis
inmobiliarias. Revista de Geografía Norte Grande, Santiago, n. 56, p. 7-30, 2013a.
______. Fondos inmobiliarios y riesgo urbano. Revista de Urbanismo, n. 29,
p. 32-45, 2013b.
______. Impactos territoriales de la financiarización pública poscrisis.
Revista de Ciencias Sociales, n. 25, p. 13-26, 2014.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DE MATTOS, Carlos. Gobernanza neoliberal, financiarización y metamorfosis
urbana en el siglo XXI, 2014. Disponível em: https://flacso.edu.ec/cite/
media/2016/02/De-Mattos-C_2014_Gobernanza-neoliberal-financiariza-
cion-y-metamorfosis-urbana-en-el-siglo-XXI.pdf. Acesso em: 1º mar. 2020.
______. Financiarización, mercantilización y metamorfosis planetaria: lo
urbano en la valorización del capital. Sociologias, Porto Alegre, v. 18, n. 42,
pp. 24-52, 2016.
DUMÉNIL, Gerard; LÉVI, Dominique. A crise do neoliberalismo. São Paulo:
Boitempo, 2014.
DUPLAT, Ana María Vásquez (Comp.). Extractivismo urbano: debates para
una construcción colectiva de las ciudades. Buenos Aires: Fundación Rosa
Luxemburgo; Ceapi; El Colectivo, 2017.
EPSTEIN, Gerald. Introduction: financialization and the world economy.
In: EPSTEIN, Gerald. Financialization and the world economy. Northampton:
Edward Elgar, 2005.
FINE, Ben. Financialization from a marxist perspective. International
Journal of Political Economy, v. 42, n. 4, p. 47-66, 2014.

55
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

FIORI, José Luís. A propósito de uma construção interrompida. Economia e


Sociedade, Campinas, v. 9, n. 1, p. 1-19, jun. 2000.
______. O sistema interestatal capitalista no início do século XXI.
In: FIORI, José Luís; MEDEIROS, Carlos; SERRANO, Franklin (Org.).
O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2008.
______. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capita-
lismo. São Paulo: Boitempo, 2014.
FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma
miragem. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no
Brasil. 288 f. Tese (doutorado em Desenvolvimento Econômico) – Instituto
de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2011.
FOSTER, John Bellamy. The financialization of capitalism. Monthly Review,
v. 58, n. 11, 2007. Disponível em: https://monthlyreview.org/2007/04/01/
the-financialization-of-capitalism/#fn1. Acesso em: 1º fev. 2020.
FRANK, André Gunder. Capitalism and underdevelopment in Latin America:
historical studies of Chile and Brazil. New York: Monthly Review Press, 1967.
FRIEDMANN, John. The world city hypothesis. Development and change, v.
17, n. 1, p. 69-83, 1986.
FRIEDMANN, John; WOLFF, Goetz. World city formation: an agenda for
research and action. International Journal of Urban and Regional Research, v.
6, n. 3, p. 309-344, 1982.
GAGO, Verónica; MEZZADRA, Sandro. A critique of the extractive opera-
tions of capital: toward an expanded concept of extractivism. Rethinking
Marxism: a Journal of Economics, Culture & Society, v. 29, n. 4, p. 574-591,
2017.
GOTHAM, Kevin Fox. The secondary circuit of capital reconsidered:
globalization and the U.S. real estate sector. American Journal of Sociology, v.
112, n. 1, p. 231-275, 2006.
HARVEY, David. Consciousness and the urban experience. Oxford: Blackwell,
1985a.
______. The urbanization of capital: studies in the history and theory of capi-
talist urbanization. Oxford: Blackwell, 1985b.
______. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume Ed., 2005a.
______. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005b.
______. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo: Loyola, 2008a.
______. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008b.
______. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo,
2011.

56
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

______. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.


______. Para entender o capital: livros II e III. São Paulo: Boitempo, 2014.
______. Paris, capital da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transfor-
mation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler, v. 71, n.
1, p. 3-17, 1989.
HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
KALTENBRUNNER, Annina; PAINCEIRA, Juan Pablo. Subordinated
financial integration and financialisation in emerging capitalist economies:
the Brazilian experience. New Political Economy, v. 23, n. 3, p. 290-313, 2017.
KLINK, Jeroen; BARCELOS DE SOUZA, Marcos. Financeirização: conceitos,
experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro.
Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 379-406, 2017.
LAPAVITSAS, Costas. Profiting without producing: how finance exploits us
all. London: Verso, 2013.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
______. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing, 2013.
LÊNIN, Vladimir. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas:
FE/UNICAMP, 2011.
MACIEL, Fabrício Barbosa. Ulrick Beck e a crítica ao nacionalismo metodo-
lógico. Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política, v. 12, n. 25, 2013.
MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e o neoliberalismo. São
Paulo: Boitempo, 2011.
MARTÍNEZ-TORO, Pedro Martín. El conjunto residencial cerrado como
tipología urbanística instrumentalizada por la financiarización. Prospectiva:
Revista de Trabajo Social e Intervención social, n. 21, p. 25-55, 2016.
MARX, Karl. O capital: Livro I, Capítulo VI (inédito). São Paulo: Livraria
Editora de Ciências Humanas Ltda., 1968.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Volume 2. O processo
de circulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1986a.
______. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 1.
O processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986b.
______. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 2.
O processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986c.
MEZZADRA, Sandro; NEILSON, Brett. Extraction, logistics, finance:
global crisis and the politics of operations. Radical Philosophy, v. 178, p.
8-18, 2013.
______. Operations of capital. The South Atlantic Quarterly, v. 114, n. 1, p.
1-9, 2015.

57
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Igor Pouchain Matela, Nelson Diniz e Tarcyla Fidalgo Ribeiro

______. On the multiple frontiers of extraction: excavating contemporary


capitalism. Cultural Studies, v. 31, n. 2-3, p. 185-204, 2017.
______. The politics of operations: excavating contemporary capitalism.
Durham e Londres: Duke University Press, 2019.
PAULANI, Leda. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo:
observações sobre o caso brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n.
77, p. 237-261, 2013.
______. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx
para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São
Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016.
PEREIRA, Alvaro Luis dos Santos. Intervenções em centro urbanos e conflitos
distributivos: modelos regulatórios, circuitos de valorização e estratégias
discursivas. 308 f. Tese (doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação
em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2015.
PINEDA, Rodrigo Andrés Cattaneo. Los fondos de inversión inmobiliaria y la
producción privada de vivienda en Santiago de Chile: ¿Un nuevo paso hacia la
financiarización de la ciudad? Eure, Santiago, v. 37, n. 112, p. 5-22, 2011.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; DINIZ, Nelson. Financeirização, mercan-
tilização e reestruturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque
dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento.
Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 351-377, 2017.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Fernand Braudel e as ciências humanas.
Londrina: Eduel, 2013.
ROLNIK, Raquel. A guerra dos lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.
ROYER, Luciana de Oliveira. 194 f. Financeirização da política habitacional:
limites e perspectivas. Tese (doutorado em Arquitetura e Urbanismo),
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2009.
RUFINO, Maria Beatriz Cruz. Financeirização e metropolização: um olhar
sobre a atuação das grandes incorporadoras da RMSP. In: Anais: Desenvol-
vimento, crise e resistência: quais os caminhos do planejamento urbano e
regional. São Paulo: FAU/USP, 2017. Disponível em: http://anpur.org.br/
xviienanpur/principal/publicacoes/XVII.ENANPUR_Anais/SL_Sessoes_
Livres/SL%2024.pdf. Acesso em: 1º mar. 2020.
SANFELICI, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil:
uma contribuição ao debate. Eure, Santiago, v. 39, n. 118, p. 27-46, 2013.
SHIMBO, Lúcia. Sobre os capitais que produzem habitação no Brasil. Novos
Estudos CEBRAP, v. 35, n. 2, p. 119-133, 2016.
SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria Beatriz Cruz. Financeirização e estudos
urbanos na América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019.

58
Nexos Financeirização/Urbanização: construindo um marco teórico

SILVER, Berverly J.; ARRIGHI, Giovanni. “O duplo movimento” de


Polanyi: comparação da hegemonia da belle époque britânica e estaduni-
dense. Emetropolis: Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais, n.
16, 2014.
SOCOLOFF, Ivana. Financiarización de la producción urbana: el caso
argentino en perspectiva. Scripta Nova, v. 23, n. 616, p. 1-26, 2019.
SVAMPA, Maristella. Commodities consensus: neoextractivism and enclo-
sure of the commons in Latin America. The South Atlantic Quarterly, v. 114,
n. 1, p. 66-82, 2015.
TAYLOR, Peter J. et al. Explosive city growth in the modern world-system:
an initial inventory derived from urban demographic changes. Urban
Geography, n. 31, v. 7, p. 865-884, 2010.
TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-ameri-
cana. In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro:
uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
TAVARES, Maria da Conceição; MELIN, Luiz Eduardo. Pós-escrito 1997:
A reafirmação da hegemonia norte-americana. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
TOPALOV, Christian. Capital et proprieté foncière: introduction a l’étude des
politiques foncières urbaines. Paris: Centre de Sociologie Urbaine, 1973.
______. Ganancias e rentas urbanas: elementos teóricos. Madrid: Siglo XXI
de España, 1984.
WALLERSTEIN, Immanuel. Após o liberalismo: em busca da reconstrução
do mundo. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Impensar a ciência social: os limites dos paradigmas do século XIX.
São Paulo: Ideias e Letras, 2006.
WARD, Callum; AALBERS, Manuel. “The shitty rent business”: what’s the
point of land rent theory? Urban Sudies, v. 53, n. 9, p. 1.760-1.783, 2016.

59
Parte I

Financeirização,
Capitalismo e Dependência
Crise de sobreacumulação global iniciando
uma crise de civilização1

François Chesnais2

A atual crise econômica e financeira é uma das “crises


graves” para as quais convergem muitos processos (3).
Será longa porque se baseia numa sobreacumulação das capa-
cidades de produção. Isto assume a forma de uma significa-
tiva sobreprodução localizada em setores e países específicos.
Mas o âmbito é a economia globalizada. A sobreacumulação
das capacidades de produção é acompanhada por uma imensa
acumulação de capital fictício, reivindicações a serem feitas
(“droits à valoir”) sobre o valor e a mais-valia e “produtos finan-
ceiros derivados”. Foi na esfera financeira que a crise começou.
Nesse sentido, essa crise é a do regime de acumulação predo-
minantemente financeiro ou financeirizado estabelecido no final
da década de 1980. Ela também coloca um fim ao período de
hegemonia global absoluta dos Estados Unidos a partir do final
da década de 1980 e 1992 em particular. Tudo tem sido e conti-
nuará a ser implementado pelo governo dos Estados Unidos para
tentar assegurar a sustentabilidade tanto da hegemonia norte-a-
1
Capítulo publicado originalmente no Imprecor.fr N° 556-557, janeiro , 2010.
(http://www.inprecor.fr/inprecor?numero=556-557).
2
François Chesnais, economista, professor associado da Universidade de Paris-
Nord 13 Villetaneuse, membro do conselho científico da ATTAC, dirige o cole-
tivo Carré Rouge (http://www.carre-rouge.org) e é um ativista do Novo Partido
Anti-Capitalista Francês (NPA). Publicou, entre outros, La Mondialisation du ca-
pital (Syros, Paris 1994 e 1997 – edição aumentada), Mondialisation et impéria-
lisme (com Odile Castel, Gérard Duménil et al., Éd. Syllepse, Paris 2003), La
finance mondialisée – racines sociales et politiques, configuration, conséquences (sob
a sua direção, La Découverte, Paris 2004) e La finance capitaliste (com Suzanne
de Brunhof, Gérard Duménil, Michel Husson e Dominique Lévy, Actuel Marx
Confrontation, PUF, Paris 2006).
3
A crise de 1929, que retrocedeu até 1933 e que experimentou seu “fim de cri-
se” com gastos em armamentos e a Segunda Guerra Mundial, foi o arquétipo.
Ver Isaac Johsua, La crise de 1929 et l’émergence américaine, Actuel Marx Confron-
tation, Presses Universitaires de France, Paris, 1999.

63
François Chesnais

mericana como da dominação de Wall Street, dos bancos e dos


fundos de investimento financeiro. A atual retomada é apenas
um momento, talvez curto, de um processo de crise econômica
que se estende por muitos anos.
O longo curso da crise econômica e financeira ocorrerá em
um contexto histórico no qual será um dos aspectos de uma crise
muito mais ampla, uma crise de civilização. Os trabalhadores, os
explorados e os dominados já estão pagando o preço e o farão cada
vez mais. De maneira imediata são confrontados com um conjunto
de medidas de governos e empresas cujo objetivo não é apenas
transferir o fardo da crise de volta para eles, mas também utilizar
a mudança nas relações de poder a favor do capital resultante do
aumento do desemprego para agravar, ainda mais, as condições
de exploração. Num horizonte temporal mais distante, os explo-
rados e os dominados terão de enfrentar a interpenetração, cujas
primeiras expressões podem ser vistas na África e na Ásia, entre a
crise econômica global, a crise alimentar que afeta populações alta-
mente vulneráveis e os impactos sociais de uma crise de mudança
climática, entendida como uma crise das condições de reprodução
social ligadas aos ecossistemas globais e à degradação da biosfera.

Movimento do capital sem fim e sem limites,


preservação da dominação social da burguesia a
todo custo
Qualquer discussão sobre a crise, especialmente em uma
definição baseada em uma interpenetração global desse tipo,
requer uma reconsideração da compreensão do capitalismo
como tal. O capitalismo não é simplesmente um sistema desigual
e injusto, um sistema marcado por contradições internas porque
se baseia na propriedade privada e na apropriação maciça do
trabalho não remunerado, principalmente sob a forma de uma
mais-valia emergente na empresa capitalista. Devemos nos
precaver contra qualquer economicismo, mesmo baseado em
categorias teóricas marxistas, que nos levariam a ver as contra-
dições do capitalismo de uma forma distanciada. Um trabalho
permanente de valorização, por assim dizer filosófica, do capi-

64
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

talismo é necessário, assim como a obrigação de colocar a luta


de classes no centro da análise.
O capitalismo não é simplesmente um “sistema econômico”.
É também um sistema de dominação social em benefício das
burguesias oligárquicas e oligarquias burocrático-capitalistas,
hierárquicas a nível mundial, cuja atividade é inteiramente orien-
tada para a preservação e aumento da sua riqueza e, portanto, do
poder que é a sua condição. Não há necessidade de explicar a elas
que “a história da sociedade até hoje não foi nada mais que a da luta
de classes”. Para elas, há algo nos genes da esmagadora maioria
de cada um dos seus membros. Há momentos em que o reflexo
da dominação social a preservar a todo o custo é evidente. Este é,
com certeza, o caso das revoluções – a revolução alemã de 1918,
a revolução de 1936 na Espanha, a no Chile em 1971. Mas essa
dimensão também reaparece em tempos de grave crise econô-
mica e financeira. Salvar o sistema a todo o custo foi, portanto, o
reflexo desde o colapso do Lehmann Brothers, em setembro de
2008, que ameaçou destruir todo o sistema financeiro mundial.
Cada geração lê e relê Marx, tanto pela evolução histórica
como pela sua própria experiência. Hoje, o Marx que deve
ser relido como ativista-pesquisador é, parece-me, aquele que
escreve nos Manuscritos de 1857-58 que “o capital, como representa
a forma universal da riqueza – o dinheiro – é a tendência ilimitada
e incomensurável de ultrapassar o seu próprio limite” (4). Ou aquele
que diz em Le Capital que “a circulação do dinheiro como capital tem
sua finalidade em si mesma, pois só através deste movimento sempre
renovado é que o valor continua a ser valorizado. Por conseguinte,
o movimento de capitais não tem limites. É como um representante,
e é como um apoio consciente deste movimento que o proprietário do
dinheiro se torna um capitalista”. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso,
é o ponto de partida do dinheiro e seu ponto de retorno. O
conteúdo objetivo da circulação A—M—A’ (“argent—marchandise—
davantage d’argent”) [dinheiro—mercadoria—mais dinheiro], ou
seja, a mais-valia gerada pelo valor, é o seu propósito subjetivo
e íntimo. Só na medida em que a apropriação cada vez maior
da riqueza abstrata se torna a única razão determinante de
suas operações é que ela funciona como capitalista, ou, se
4
Marx, Manuscrits de 1857-58, Editions Sociales, Paris, 1980, volume I, p. 273.

65
François Chesnais

preferir, como capital personificado, dotado de “consciência e


vontade” (5). Este é o ponto de partida para a análise da crise
atual. Devido à duração excepcional da fase de acumulação,
que no caso dos Estados Unidos remonta à preparação da sua
entrada na guerra em 1942 e no caso da Europa e do Japão
à reconstrução dos anos 1950, e que não sofreu interrupções
reais, a acumulação de “dinheiro que circula como capital” ou que
aspira a ele é absolutamente gigantesca. Este efeito dimensional,
multiplicado pela liberdade de movimento global provocada
pela liberalização e desregulamentação, significa que o dinheiro
que se tornou capital se ergue agora diante da sociedade como
um poder com seus próprios objetivos e movimento. Mesmo
diante da sobreacumulação e da superprodução, situações em
que a massa de mais-valia produzida pelas empresas não pode
ser atingida, procurará satisfazer sua sede ilimitada de mais-
valia. Os obstáculos encontrados só irão exacerbá-la.
A chamada financeirização é caracterizada pelo lugar que
ocupam os grandes bancos, seguradoras e fundos de pensão na
configuração interna da burguesia dos países capitalistas centrais
e em seu peso na determinação cotidiana das políticas econô-
micas. Como somos lembrados diariamente, hoje os líderes das
Goldman Sachs e das Morgan Stanley são os primeiros “represen-
tantes, que apoiam conscientemente o movimento de valorização ilimi-
tada”. O capital sempre foi marcado por sua profunda indiferença
ao uso social dos bens produzidos ou à finalidade dos investi-
mentos. Vimos o que isso conseguiu durante a Segunda Guerra
Mundial e na criação das condições tecnológicas para o Holo-
causto. Quando o capital assume a forma de “riqueza abstrata”
e as instituições que afirmam valorizar seus ativos tomando
emprestado o “ciclo abreviado AA’” dominam o movimento de
acumulação nos países mais poderosos, essa indiferença permeia
a economia e a política, mesmo em “tempos de paz” como o nosso
é oficialmente. Assistimos assim à exploração ilimitada, até ao
esgotamento, das “duas fontes das quais brota toda riqueza, a
terra e o operário” (6).

5
Marx, Le Capital, livro I, Editions sociales, t. 1, pp. 156-157.
6
Marx, Le Capital, Editions Sociales, livro I, tomo 2, pp. 181-182.

66
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

Antagonismo contra os trabalhadores, pilhagem


dos recursos naturais, degradação da biosfera
No caso de um país como a França, os suicídios no trabalho,
ou melhor, os assassinatos, como Hélène Cixous os caracterizou
(7), vieram para nos lembrar a profundidade do antagonismo do
capital contra aqueles que devem vender sua força de trabalho,
seja como “meros empregados” ou como gestores. Esse antago-
nismo é inseparável do capitalismo. Está enraizado na procura
da máxima plus-valia e é impulsionado pela concorrência. O
legado da crise da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial
obrigou as empresas a moderá-la, tanto devido às suas próprias
prioridades para restaurar as suas capacidades de produção como
devido às relações de poder bastante favoráveis ao trabalho. As
políticas neoliberais e a mudança na identidade dos proprietários
do capital desencadearam esse antagonismo irredutível. Ele foi
ainda mais exacerbado pela crise. Os trabalhadores enfrentam-
no em condições particularmente dificultadas pela globalização
do capital. Um efeito, se não o mais importante da liberalização
e da desregulamentação, tem sido a concorrência direta de país
para país de trabalhadores com produtividade laboral crescente,
mas tendo conhecimento das relações políticas e sociais locais
que permitem às empresas pagar-lhes num país 5, 10 ou 15
vezes mais barato do que noutro e negar-lhes a despesa salarial
indireta com a proteção social concedida noutro país. Em 1848,
foi à conjuntura nacional que Marx e Engels se referiram quando
constataram no Manifesto do Partido Comunista que “a organi-
zação do proletariado como classe” era “constantemente destruída pela
competição entre os trabalhadores”. Hoje, as condições históricas em
que se completou a constituição do mercado mundial, ou seja,
o colapso da URSS e a incorporação da China ao capitalismo
mundial, levaram a um salto qualitativo na intensidade dessa
competição, facilitando a implementação de novos padrões de
“gestão de recursos humanos”.
As crises de sobreprodução foram apresentadas no século
XIX como crises de subconsumo, causadas pela insuficiência dos
7
Hélène Cixous, intervenção em um debate em Ce soir (ou jamais) de FR3 e
entrevista dada a L’Humanité em 30 de setembro de 2009.

67
François Chesnais

salários pagos e do poder de compra dos trabalhadores. Marx


foi, portanto, confrontado com essa interpretação. Obviamente,
a superprodução é apenas relativa, pelo que reflete sempre
o subconsumo. O capitalismo precisa dos empregados como
força de trabalho, pois é a partir do valor de uso dessa força
de trabalho que nasce o excedente que está na raiz do lucro.
Ele também precisa dela como consumidor. O reflexo de cada
empresa, limitada pela procura de lucro e concorrência, é ver
nos trabalhadores apenas um custo que deve ser reduzido. Ao
fazê-lo, contribui para “serrar o galho” sobre o qual as empresas
estão sentadas coletivamente. Situada no coração da relação entre
capital e trabalho, essa contradição tem, de forma objetiva e
permanente, o caráter de um antagonismo irredutível. A necessi-
dade de tomar a questão a partir desse ponto é filosófica e política.
Mesmo que isso signifique, uma vez mais, incorrer na censura do
dogmatismo, passo a citar: “A produção é produção para o capital e
não o contrário: os meios de produção não são meros meios de dar forma,
alargando-os constantemente, no processo da vida em benefício da socie-
dade dos produtores. Os limites que servem de quadro intransponível
para a conservação e desenvolvimento do valor do capital baseiam-se na
expropriação e empobrecimento dos produtores. Os limites que servem de
quadro intransponível para a conservação e desenvolvimento do valor
do capital baseiam-se na expropriação e empobrecimento dos produtores.
Por conseguinte, contradizem constantemente os métodos que o capital
deve utilizar para os seus próprios fins, que tendem a fazer da produção
um fim em si mesmo”. É uma ilusão pensar que tal sistema pode
ser remediado por uma melhor distribuição. Foram apenas as
circunstâncias históricas excepcionais do período pós-Segunda
Guerra Mundial que permitiram que prevalecesse uma partilha
transitória do valor acrescentado, o que deu aos trabalhadores a
oportunidade de “ajudar o capital” a alcançar valor e mais-valia.
No contexto da globalização, a produção ressurgiu plenamente
como “uma produção para o capital”. A relação capital-trabalho
voltou a ser radicalmente antagônica.
Em seguida há o antagonismo do capital em relação à
“natureza”. Os “produtores associados”, após sua vitória sobre o
capitalismo, saberão “combinar e controlar racionalmente suas trocas
de matéria com a natureza”. O capitalismo não pode. O período

68
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

que se abriu será dominado pelo entrelaçamento entre as dimen-


sões social e ecológica da devastação causada pelo movimento de
valorização do capital. É indiferente ao capital que a mudança
climática em curso já esteja desafiando as condições de repro-
dução social em um número crescente de partes do mundo
(8). É muito difícil dizer hoje quais serão os impactos na taxa
de lucro e na taxa de acumulação. O esgotamento progres-
sivo e o aumento progressivo dos preços dos recursos básicos
críticos estão atualmente afetando os países capitalistas, sejam
eles centrais ou emergentes, de forma diferenciada. São fatores
que afetam as respectivas capacidades competitivas. Provocam
guerras e várias ações imperialistas, cujos interesses em jogo são
o petróleo e os minerais raros. É provável que, num horizonte
temporal mais curto, os efeitos das alterações climáticas se façam
sentir de forma brutal em todo o mundo. Por enquanto, seus
efeitos sociais são desiguais e diferenciados no espaço global,
representando um grande desafio político. O impacto das altera-
ções climáticas afeta diretamente as pessoas que vivem em países
específicos do “Sul”, os mais pobres e mais vulneráveis. O “capita-
lismo verde” vê as alterações climáticas e as “energias alternativas”
como uma oportunidade para os mercados e os lucros (9). Os
principais protagonistas são os próprios grupos do setor ener-
gético que estão no centro dos padrões de produção e consumo
responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa.
Para o anticapitalismo, o importante é poder explicar diante
do “decréscimo” como são as relações de produção capitalistas
que estão em jogo. O valor e a mais-valia criados no decurso
da exploração do trabalho assumem a forma de mercadorias,
algumas das quais, mesmo com serviços e “o intangível”, são
bens materiais. O movimento interminável de capitais implica
a sua produção e venda ilimitadas. “Produtivismo” e “consu-
mismo” são inseparáveis do capital e das mercadorias. Para que
8
Ver François Chesnais e Claude Serfati, «Les conditions physiques de la repro-
duction sociale», em J-M. Harribey e Michael Löwy (sob a direção de), Capital
contre nature, Actuel Marx Confrontation, Presses Universitaires de France, Pa-
ris, 2003. Nesse trabalho se reconhece a grande demora na crítica marxista até
recentemente e se busca uma explicação.
9
Michel Husson demonstra isso em «É possível um capitalismo verde?»
Contretemps, nova série, n°1, setembro-dezembro de 2009.

69
François Chesnais

a autorreplicação do capital seja eficaz, o ciclo de avaliação deve


se fechar com “sucesso” e os bens devem ser vendidos. Para que
os acionistas fiquem satisfeitos, é preciso que uma grande quanti-
dade de bens que cristalizam o trabalho abstrato contido no valor
seja despejada no mercado. É absolutamente irrelevante se esses
bens representam realmente “coisas úteis”. Para o capital, a única
“utilidade” é aquela que permite gerar lucros e continuar o inter-
minável processo de valorização. As empresas são especialistas
em demonstrar aos que têm poder de compra que os produtos
que oferecem são “úteis”. Se falharem, então, do ponto de vista
do capital, “o trabalho que contêm é gasto desnecessariamente” (10). Se
as empresas conseguem, como é em grande parte o caso, vender
às pessoas mercadorias que elas vão empilhar em casa quase sem
as utilizar, enquanto centenas de milhares de pessoas (para ficar
com a França) vivem na pobreza, então é do ponto de vista dos
trabalhadores como uma classe, mas também da sociedade como
uma entidade distinta do capitalismo, dissociada dele, que há
uma despesa desnecessária, um desperdício social de trabalho.
A valorização do capital através da produção e venda
de bens que atendam simultaneamente às necessidades
“manufaturadas” representa um gasto desnecessário de recursos
do solo e do subsolo. Os danos cada vez mais graves à biosfera
e aos ecossistemas muito frágeis refletem-se no valor do capital.
Desde que não afetem as condições de acumulação através de
processos de feedback, o capital e seus representantes políticos
não se importam. É por isso que, pelo menos por enquanto, no
caso dos gases de efeito estufa, as advertências dos cientistas
apenas conduziram a medidas políticas, sobretudo de fachada,
para acalmar a opinião pública em parte dos países ricos
(principalmente na Europa). Trata-se de medidas “favoráveis ao
mercado”, cujo peso financeiro recairá sobre os trabalhadores,
abrindo novas oportunidades de investimento especulativo no
caso do mercado dos direitos de poluição (11).

10
« Nenhum objeto pode ser um valor se não for uma coisa útil », se for « inútil, o
trabalho que contém é gasto desnecessariamente e consequentemente não cria valor »,
Marx, Le Capital, Editions Sociales, livro I, tomo 1, p. 56.
11
Ver Daniel Tanuro, « Rapport sur le changement climatique et les tâches des
anticapitalistes », Inprecor, julho-agosto de 2009, ponto 17.

70
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

Situar a atual crise econômica e financeira numa


história mais longa
É essencial situar a crise numa história mais longa. A
segmentação seria política, com rupturas na forma de guerras
e grandes mudanças nas relações capital/trabalho (12). Outras
contribuições neste número desta revista se concentram na
teoria das ondas longas de Ernest Mandel. Mesmo que estas
sejam atribuídas a fatores externos relacionados com fenômenos
extra econômicos não sistêmicos e não periódicos, o termo onda
longa não mantém, no entanto, um elemento de ambiguidade
em relação aos ciclos longos de Kondratiev marcados por um
movimento endógeno. A posição que defendo é a de falar de
períodos de expansão da acumulação de capital (acumulação
no sentido estrito) que terminam quando o capitalismo é mais
uma vez “apanhado” por suas contradições, confrontado com as
“barreiras” que cria para si mesmo. Esta abordagem é inspirada
na passagem do Livro III de O Capital, onde Marx escreve que
“a produção capitalista tende constantemente a ultrapassar os limites
que lhe são imanentes, mas só consegue usar os meios que, novamente, e
numa escala mais imponente, erguem as mesmas barreiras diante dela”
(13). As fases de expansão da acumulação seguem a emergência de
“novos campos de acumulação” (no sentido de Rosa Luxemburgo da
indústria de armamento na véspera da Primeira Guerra Mundial).
Joseph Schumpeter associou-os a momentos de profunda reno-
vação do aparelho de produção na sequência da chegada coletiva
de grandes inovações ou da abertura de novos grandes mercados.
Estamos lidando principalmente com dois tipos de “modos de
superar barreiras” e a partir de uma ruptura durante o século XX
e o início do mesmo. Em primeiro lugar, há as grandes guerras,
que destroem em grande escala os meios de produção, as infraes-
truturas e a habitação, cujo principal exemplo foi a Segunda
Guerra Mundial. Em seguida, há a abertura de novos mercados
12
Essa é a posição defendida por Bernard Rosier. O autor invocou a necessidade
de uma « reversão do materialismo histórico » (o de uma certa vulgata que
pouco tinha a ver com Marx). Ver Bernard Rosier e Emmanuel Dockès, Rythmes
économiques: crises et changement social, une perspective historique, coll. Economie
critique, La Découverte/Maspéro, Paris, 1983, p. 178.
13
Marx, Le Capital, livro III, tomo 6, Editions Sociales, Paris, 1957, p. 263.

71
François Chesnais

importantes resultantes de amplas ações políticas, lideradas por


um ou mais Estados dominantes para impor mudanças institu-
cionais e “transformações organizacionais” (14) exigidas pelo capital
na ordem interna das economias nacionais, bem como no campo
internacional. Na abordagem que defendo, para compreender o
momento e os desafios da atual crise, temos de levar em conta três
dessas rupturas: a Segunda Guerra Mundial, a contrarrevolução
neoconservadora de Thatcher e Reagan, iniciada em 1978 e sobre-
tudo mais próxima de nós, o início da aplicação das políticas neoli-
berais na Índia em 1992 e a aceleração a partir desse mesmo ano
da plena integração da China ao funcionamento do capitalismo
mundial, cujo resultado foi a sua adesão à OMC em 2001.
Foi a Segunda Guerra Mundial, tanto em termos do fim defi-
nitivo da crise de 1929 para os Estados Unidos mediante investi-
mentos militares muito elevados como, especialmente na Europa
e no Japão, em termos da imensidão da destruição e da escala dos
investimentos de “reconstrução e modernização”, para usar o termo
da Comissão Francesa de Planejamento, que constituiu o ponto
de partida para a longa fase de expansão da acumulação que se
extinguiu no início dos anos 1970, pouco antes da chamada “crise
do petróleo”, e terminou com a recessão de 1974-75. Sem a Segunda
Guerra Mundial, não teria havido os “Trinta gloriosos” na Europa,
nem no Japão, embora o Japão também tenha se beneficiado da
retomada dos gastos militares americanos durante a Guerra Fria e
depois a Guerra da Coreia. Os “Trinta Gloriosos” deram um impulso
à acumulação que durou para além da recessão de 1974-75. Mas
isso é um divisor de águas. Marca o início de um longo processo
de desaceleração do investimento global, calculado como uma
percentagem do Produto Interno Bruto acumulado de todos os
países. O movimento é mostrado no gráfico anexo do FMI muito
recente. A curva geral é impulsionada pelo forte declínio do inves-
timento nos países industrializados (os antigos países capitalistas).
No final do período, foi contrariada pela emergência dos novos
países industrializados a partir de 2000 (o surto de meados dos
anos 1990 foi perturbado pela crise asiática).

14
É o termo neutro cunhado pelos economistas neoschumpeterianos, que
impede que muitos deles tomem partido nos efeitos políticos e sociais dessas
« transformações ».

72
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

Poupança global, investimento e contas de curto prazo


(em % do PIB global)

Poupança Investimento Contas de curto prazo


Todos os países. (escala da esquerda)

Todos os países

Mercados emergentes e países produtores de petróleo*

Fontes: Base de dados analíticos da OCDE. Indicadores de Desenvolvimento


Mundial (2006) e cálculos do pessoal do FMI. Noruega incluída.

Fala-se muitas vezes de “regulamentação fordista”. Dois


fatores explicam o seu “sucesso”. Em primeiro lugar, a dimensão
das necessidades de acumulação associadas à reconstrução
exigida pela Segunda Guerra Mundial, bem como pela moder-
nização após duas décadas de subinvestimento. Os investimentos
públicos e administrados pelo crédito têm sido a espinha dorsal.
Em segundo lugar, as relações políticas relativamente favoráveis
ao trabalho após a Segunda Guerra Mundial, de que as revolu-
ções e guerras de libertação nacional foram o aspecto comple-
mentar do que há muito se designa por Terceiro Mundo. Assim
que a expansão da acumulação se esgotou, a regulação fordista
entrou em crise.

73
François Chesnais

A segunda ruptura, a de 1978-82, criou as condições polí-


ticas e econômicas para a contrarrevolução antitrabalhador e
neoimperialista. Não resulta num aumento do investimento. As
políticas neoliberais restauraram o poder dos mercados finan-
ceiros e começaram a fazer uma redistribuição muito significa-
tiva do rendimento para os detentores de obrigações e depois
para os detentores de ações. O que é captado em nível macroeco-
nômico como uma mudança na distribuição global entre capital
e trabalho baseia-se tanto em políticas públicas de “transferência
inversa”, serviço de juros sobre a dívida e reduções fiscais, como
em mecanismos que permitem aos acionistas apropriarem-se de
montantes mais elevados de mais-valias (governança das socie-
dades e valor para os acionistas). Por outro lado, dentro da
parte do rendimento nacional que vai funcionar, nunca se deve
esquecer que existe um fosso crescente entre os níveis salariais,
uma vez que as opções de compra de ações e os bônus são conta-
bilizados como “salários”.
Quando o movimento de investimento global se inclinou na
direção do aumento após 2001, isso ocorreu devido aos países
recém-industrializados. A mudança de rumo é, portanto, o resul-
tado da abertura da Índia e da China como campos de acumu-
lação e como mercados, bem como do efeito cascata da acumu-
lação desses países, em particular da China, sobre as economias
vizinhas da Ásia e sobre as principais economias exportadoras de
matérias-primas da América Latina, com o Brasil e a Argentina a
liderarem o processo. Assim, o avanço mais importante do capi-
talismo, o único capaz de suportar uma nova fase de expansão
da acumulação ao longo de um determinado período de tempo
é a reintegração plena da China, por enquanto sem problemas
sociais, no mercado mundial.

Diminuição do investimento, movimento na taxa


de lucro, sobreacumulação
O declínio do investimento, durante quase 25 anos em
nível global e mais de 30 anos no caso dos países capitalistas
centrais, não reflete a imagem de um sistema em expansão, mas
antes um sistema que nós, ou alguns de nós, teríamos dito uma

74
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

vez que tinha “completado a sua missão histórica de desenvolver


as forças produtivas”, para ser apenas um sistema marcado nas
palavras de Lenine pelo “parasitismo e putrefação”. Mais prosai-
camente, o gráfico levanta a dupla questão da relação entre a
diminuição do investimento e a evolução da taxa de lucro, por
um lado, e a sobreacumulação de capital sob a forma de capa-
cidades de produção, por outro.
A questão da taxa de lucro, da sua mensuração e, portanto,
da sua diminuição ou aumento, é tratada em pormenor
noutros artigos. Sempre foi uma questão teórica que provoca
grandes polêmicas dentro do marxismo. O longo declínio do
investimento parece refletir uma diminuição das oportunidades
de investimento com um nível suficiente de rentabilidade aos
olhos dos detentores de capital. Pode, portanto, estar relacionada
com o longo declínio da taxa de lucro calculada por Robert
Brenner (15) e outros economistas cujo trabalho foi sintetizado
por Chris Harman. Também não contradiz a observação de
Michel Husson de que, mesmo quando há um ajuste na taxa
de lucro em seu método de cálculo, o investimento continua a
diminuir. Temos de medir a extensão do seu longo declínio e
as suas implicações sociais e humanas. Estamos diante de um
sistema caracterizado por uma sede ilimitada de mais-valia,
dificultado pela falta de investimento, que é sua própria causa (16).
Quando uma força é tão poderosa quanto o capital é hoje e está
incorporada em formas altamente concentradas de organização
capitalista –empresas transnacionais, grandes fundos de pensão
e investimento coletivo e o aparato político e militar do Estado
que defende seus interesses –, ela só pode resultar em barbárie
sob muitas formas.
No que diz respeito à diminuição da taxa de lucro,
as “causas que frustram a lei” e, portanto, sua identificação
tão precisa quanto possível, são tão importantes quanto

15
Ver, entre outros, para o período 1950-2000, Robert Brenner, The Economics
of Global Turbulence, New Amplified Edition, Verso, 2006, Figura 15.8, página
312, que mostra muito bem para os Estados Unidos a diminuição da taxa de
lucro e o efeito das medidas implementadas para combatê-la.
16
Ver Marx, Le Capital, livro III, capítulo XV, fim do II: «A verdadeira barreira
da produção capitalista é o próprio capital».

75
François Chesnais

a própria tendência (penso que é do nosso interesse aban-


donar a palavra “lei” com tudo o que ela sugere em analogia
com as leis físicas). Tomemos as seis causas examinadas no
Capítulo XIV do Livro III do Capital, às quais poderíamos,
sem dúvida, acrescentar outras. Vamos começar sem seguir
a ordem de Marx com “comércio exterior”. Sob este subtítulo,
Marx se situa obviamente no contexto do momento em que
escreve. Ele explora hipóteses em vez de identificar uma causa
que ele possa dizer com certeza que contraria o declínio da
tendência. A análise deve ser retomada no contexto atual.
No que diz respeito à “queda do preço dos elementos do capital
constante”, é certo que a partir de agora o aumento dos
preços do petróleo e de muitas matérias-primas, devido à
sua escassez, porá fim às expectativas de efeitos benéficos
desse fator, porque esse aumento não será compensado
pela queda do preço dos equipamentos e máquinas. Quanto
ao “aumento de capital por ação”, pode ter sido um fator de
recuperação da taxa de lucro mediante sua inf luência na
centralização e concentração de capital (tese da “funcionali-
dade das finanças” discutida a seguir), antes de se tornar uma
fonte específica de contradições. Isto leva-nos às três causas
que dizem respeito ao trabalho, “o aumento do grau de explo-
ração do trabalho”, “a redução dos salários abaixo do seu valor”
devido à concorrência entre empregados de “superpopu-
lação relativa”. Essas três causas têm trabalhado arduamente
nos últimos 20 anos para uma recuperação parcial da taxa de
lucro, devido ao uso de tecnologias de informação e comu-
nicação (TICs) e, acima de tudo, à globalização do exército
industrial de reserva. No contexto da concorrência feroz que
a crise tornou ainda mais aguda, as empresas irão utilizá-las
mais do que nunca.
O longo declínio do investimento contradiz a noção
de sobreacumulação de capital? Considerada no nível mais
geral, a sobreacumulação é sempre relativa, comparada com
as possibilidades de absorção de uma demanda moldada
por relações de distribuição capitalistas. A sobreacumulação
tem automaticamente o lado “inverso”, por assim dizer, do
subconsumo. Repito que a escolha do termo é importante.

76
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

O termo sobreacumulação coloca mais diretamente a


necessidade de transformar as relações de produção e criar o
contexto para uma primazia do valor de uso sobre o valor. O
subconsumo pode conduzir a uma “recuperação do crescimento”
num contexto inalterado. A análise implica uma nova etapa.
Em qualquer crise grave, a sobreacumulação das capacidades
de produção e a sobreprodução são principalmente as de
setores e indústrias específicos. O nível de análise relevante é
setorial e, muitas vezes, nacional. Em países específicos, certos
setores (imobiliário e construção nos Estados Unidos, Reino
Unido, Irlanda e Espanha) ou certas indústrias (automóveis
nos antigos países produtores da Europa e dos Estados Unidos)
são claramente sobrecapacidades, tanto devido à saturação
quase mecânica como devido às políticas nacionais. Em outros,
podem existir, por sua vez, sobrecapacidades e sobreprodução
(por exemplo, a máquina-ferramenta alemã). A globalização do
investimento e do comércio conduz a processos de propagação
cuja velocidade não só reflete a interconexão das economias,
mas também a extensão da “sobreacumulação relativa global”,
cujo núcleo está agora na China.

Uma acumulação gigantesca de capital fictício


Isto leva ao que se chama “financeirização”. No meu enten-
dimento, o termo se refere ao processo de centralização e
“acumulação” específico da forma de capital que Marx chama
de “capital remunerado” (17) e que ele analisa no Livro III do
Capital. Essa forma de “acumulação” deve ser distinguida
da própria acumulação (de capital constante e de capital
variável), sobre a qual, no entanto, tem fortes impactos. Aqui a
acumulação é a de títulos financeiros, ações, títulos do tesouro
e títulos de dívida pública, obrigações de empresas, créditos
bancários, que têm o caráter de “direitos a serem reivindicados”

17
Para uma explicação mais completa, ver François Chesnais, « La préémi-
nence de la finance au sein du ‘capital en général’, le capital fictif et le mou-
vement contemporain de mondialisation du capital », em Séminaire d’Etudes
Marxistes, La finance capitaliste, Collection Actuel Marx Confrontations, Presses
Universitaires de France, Paris, 2006.

77
François Chesnais

(“droits à valoir”) (18), reivindicações sobre a apropriação do


valor e da mais-valia atuais e futuros (o que é conhecido em
inglês como “claims on future production” [créditos sobre a
produção futura]). Iniciada em meados da década de 1960,
com uma forte aceleração a partir de 1980, essa acumulação
financeira conheceu apenas alguns momentos de desacele-
ração. O choque do crash do mercado de ações de outubro
de 1987 foi eliminado em poucas semanas. Durante a crise
asiática de 1997-98, e especialmente o colapso da Nasdaq em
2001, as políticas monetárias e “sociais” (todos os americanos
devem ser capazes de possuir sua própria casa), tornaram
possível impulsionar imediatamente a acumulação financeira
através do crédito hipotecário.
Várias fontes passaram a alimentar-se primeiro lenta-
mente e depois cada vez mais rapidamente, a centralização
do dinheiro buscando valorizar-se como capital nas mãos dos
bancos, bem como nas dos fundos de pensão e de investimento
financeiro. São os lucros que as empresas não reinvestem,
aqueles lucros que realizam nas suas economias nacionais no
seu mercado interno, mas também os que resultam da repa-
triação de dividendos e royalties na sequência de investimentos
diretos no estrangeiro (os IDE). Há os fluxos de juros da dívida
do Terceiro Mundo, aos quais se somam os dos empréstimos
bancários internacionais a países em rápida industrialização
no Sudeste Asiático. Em seguida há as somas acumuladas por
indivíduos ou famílias muito ricas e colocadas nos mercados.
Em alguns casos, trata-se de montantes que resultam de inves-
timentos anteriores bem-sucedidos, de especulações realizadas
com êxito. Em outros, eles recebem esses valores do aluguel
do solo ou subsolo e de fontes de energia. Por último, existem
os montantes centralizados no sistema financeiro em fundos
de pensões e fundos de investimento financeiro (Organisme de
18
Este é o termo apropriado usado por Michel Husson em « Le capitalisme
toxique », Inprecor, setembro-outubro de 2008, p. 22. No entanto, Husson subs-
titui o termo marxiano capital fictício por « capitais livres », expulsando da
análise tudo o que a teoria do capital fictício contém. Também não associa o
termo «capitais livres» à teoria keynesiana dos mercados financeiros e à « liqui-
dez », tal como atualizada por André Orléan (ver André Orléan, Le Pouvoir de
la finance, Albin Michel, 1999).

78
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

Placement Collectif en Valeurs Mobilières/OICVM, conhecidos


como Mutual Funds nos Estados Unidos). Após um longo
processo de centralização inicial que passou quase desperce-
bido, esses fundos tornaram-se a espinha dorsal da acumu-
lação financeira a partir de 1980-84. Durante a década de
1990, os empregados estadunidenses foram forçados a fazer
uma mudança no sistema previdenciário (19). O sistema de
“prestações definidas” deu lugar ao chamado sistema de “contri-
buições definidas”. São os fundos relacionados com esse sistema
que sofrem os maiores “danos colaterais” da crise atual. Um dos
meus pontos de discórdia com Michel Husson é o de relatar
apenas uma fonte de acumulação do que ele chama de “capital
livre”, ou seja, os lucros não reinvestidos das empresas (20).
A única referência que ele faz aos planos de poupança dos
empregados é a sua utilização de acordo com as modalidades
francesas dos últimos dez anos como substituto dos salários.
Outro ponto de desacordo é fazer da financeirização a conse-
quência da modificação na partilha do valor acrescentado,
enquanto a reconstituição do poder do capital que gera juros
é um dos fatores, pelo contrário, na própria origem do that-
cherismo e da mudança nas relações de poder entre capital e
trabalho.
O termo marxiano correto, para designar o que é gene-
ricamente chamado de “finanças”, é “capital remunerado” (21).
Três características específicas desse capital devem ser desta-
cadas. A primeira é que os “direitos a serem reivindicados”
[“droits à valoir”] são um “capital” para aqueles que os possuem
e administram, mas não do ponto de vista do movimento de
acumulação de capital no sentido pleno. Os títulos financeiros
são uma “sombra” do capital já instalado ou gasto. No caso das
ações, escreve Marx, sua natureza econômica é a de “duplicata
do capital real, trapos de papel, como se um certificado de carrega-
mento pudesse ter um valor próximo ao carregamento, e ao mesmo
19
Ver Catherine Sauviat, « Les fonds de pensions et les fonds mutuels: acteurs
majeurs de la finance mondialisée et du nouveau pouvoir actionnarial », em
François Chesnais (coordenador), La finance mondialisée, racines politiques et so-
ciales, configuration, conséquences, Editions La Découverte, Paris, 2004.
20
Também em Inprecor, setembro-outubro de 2008, p. 22.
21
Ver François Chesnais, « La prééminence de la finance... », op. cit, nota 1.7.

79
François Chesnais

tempo que ele” (22). A segunda característica do capital com juros


é o que Marx chama de “exterioridade da produção”. Uma de suas
expressões é o “curto prazo”, o horizonte muito curto imposto
pelos financiadores às empresas. Deixa cada vez menos tempo
para criar as condições para a produção de mais-valia ao longo
do tempo, impulsionando assim tudo relacionado com o que
David Harvey chamou de “acumulação por desapropriação”, cuja
principal forma, nos países capitalistas avançados, é a privati-
zação dos serviços públicos e do setor sem fins lucrativos. A
terceira é a forma específica de fetichismo que ele gera sobre
as fontes de otimização de recursos através de empréstimos,
investimentos e especulação de preços. Com o capital que gera
juros, “o capital parece ser a fonte misteriosa, criando juros por si
só, seu próprio crescimento. (...) É no capital portador de juros que o
fetiche robô é muito evidente: um valor que se valoriza a si próprio,
o dinheiro que gera dinheiro; nesta forma, já não tem as marcas da
sua origem”.

Valor de mercado das ações globalmente listadas e da produção global


(em mil milhões ou trilhões de dólares).

Fonte: Leda Paulani USP. Ativos PNB.

22
Marx, Le Capital, livro III, cap. XXIX, Editions Sociales, t. 7, p. 129.

80
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

Estados Unidos da América.


Dívida total e por setor institucional. 1980-2008
(em % do produto interno bruto ou PIB).

Setor
Famílias
Empresas não financeiras
Empresas financeiras
Estado
Total

Fonte: Michel Aglietta com base nas estatísticas do Banco da Reserva Federal.
Flow of Funds (conferência realizada em 6 de março de 2009 no Arc2, disponível
em www.arc2.fr)

No entanto, o único substrato para o capital remune-


rado é o fluxo de dividendos e juros sobre empréstimos a
governos, empresas e famílias, cuja origem são as punções
sobre a substância econômica real, valor e superprodução,
através da mediação de impostos sobre a chamada renda
“primária”. Os mecanismos através dos quais essas punções
são efetuadas (impostos destinados a servir à dívida pública,
lucros não reinvestidos, dividendos “excepcionais”, recompra
de ações no mercado de ações, impostos cobrados pelo serviço
da dívida, salários centralizados nos fundos de pensões dos
mercados financeiros e, portanto, deduzidos do consumo
salarial, salários sobre os quais incidem os reembolsos de
empréstimos hipotecários e prêmios de cartões de crédito etc.
etc.) retardaram a acumulação (pesando sobre o “crescimento”
para usar a formulação atual), enquanto, ao mesmo tempo,
a massa de “direitos a serem reivindicados” estava crescendo.
A maior parte do “fruto” das punções permaneceu dentro
do sistema financeiro. Assim, o capital fictício foi reinves-
tido em operações em que parece ter sua própria capa-
cidade de crescimento. O aumento no valor nominal de
títulos no mercado de ações (capitalização de mercado) é
uma das expressões clássicas. O gráfico em anexo (Valor de
mercado das ações cotadas globalmente e produção global)

81
François Chesnais

dá uma ideia da dimensão desse crescimento endógeno do


mercado de ações e da dimensão do diferencial em relação ao
PNB global como indicador da produção de valor e da mais-
valia do capital.

Disposições financeiras em pura levitação e


“funcionalidade financeira”
Os mercados financeiros parecem ter a capacidade não só
de extrair valor e mais-valia da economia “real”, mas também
de parecer “criar valor” por si mesmos. Quanto mais longa for
a duração da acumulação capitalista sem uma ruptura real,
mais forte será o emaranhamento entre esses dois processos,
mais cresce a massa de “capitais” que procuram valorizar-
se através de transações financeiras e aumenta o seu caráter
fictício. Como o fluxo de valor e mais-valia do capital é restrin-
gido pelos limites do ciclo completo do capital (A-M-P-M’-A’),
ou seja, pelo movimento efetivo de produção e comerciali-
zação, a corrida para novos mecanismos de valorização fictícia
(as “inovações financeiras”) se intensificou. Paralelamente a
esses títulos com uma ligação identificável à produção e comer-
cialização de mercadorias, desenvolveu-se durante a década
de 1990 e, mais ainda, na década de 2000, uma acumulação
ainda mais profundamente fictícia de montantes considerados
“capital”, cujas repercussões titularizadas foram a expressão
mais completa. Colocaram-nos na presença de mecanismos de
avaliação especulativos situados em pura levitação em relação
à economia real. O complexo pacote financeiro das hipo-
tecas subprime baseou-se exclusivamente nos baixos e precá-
rios salários dos trabalhadores mais pobres e nas casas muito
baratas que os bancos apreenderam e já não podem revender.
Foi nesse contexto que ocorreram a crise do crédito e a securi-
tização e que as transações de cavalaria ao estilo de Bernard
Madoff puderam florescer. Uma das expressões desse fato
tem sido o crescente endividamento das próprias empresas
financeiras, ou seja, o emaranhado de dívidas mútuas. Essa
dívida “endógena” ao sistema financeiro aumentou entre 2000

82
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

e 2008 a um ritmo ainda mais rápido do que o das famílias.


As fases sucessivas da crise financeira entre julho e agosto de
2007 e setembro de 2008 caracterizaram-se pela apreensão do
crédito interbancário (que começa no final de agosto de 2007),
seguida do colapso dos acordos mais arriscados até ao colapso
do Lehmann Bank.

Rentabilidade das empresas financeiras e não financeiras nos EUA


(lucro/estoque líquido de capital fixo).

Financeiras
Não financeiras

Fonte: Financeiras. Não financeiras.

Os dois gráficos acima, um desenvolvido por Charles Micha-


loux e outro pela Monthly Review, fornecem expressões do que
chamamos como “lucros financeiros” nos Estados Unidos, que
fornecem todas as estatísticas necessárias para calculá-los. Um dá
a relação entre os lucros e o stock de capital líquido das empresas
financeiras e não financeiras; o outro dá o peso dos lucros finan-
ceiros no lucro total. Estes incluem uma gama longa e heterogênea
de diferentes ganhos (23): juros e dividendos, ganhos provenientes
de todos os tipos de especulação própria, comissões pela realização
de operações de fusões e aquisições e todos os tipos de consultoria

23
Bottonwood, « The profit puzzle », The Economist, 15 de setembro de 2007,
p. 88.

83
François Chesnais

Lucros financeiros em % dos lucros totais no mercado interno A participação dos lucros financeiros no lucro total

Fonte: Tabela B-91, Lucros Empresariais por Indústria 1959-2007, Relatório


Econômico do Presidente, 2008.

financeira. Para caracterizar os lucros financeiros, a noção


de “lucros fictícios” foi proposta por um grupo de economistas
brasileiros da Universidade Federal do Espírito Santo – Reinaldo
Carcanholo, Paulo Nakatani e Mauricio Sabadini – que estão
entre os poucos que trabalham com o conceito de capital fictício
(24). O seu trabalho é estimulante. Discordei da ideia de que “lucros
fictícios” teriam sido um “novo fator poderoso para contra-arrestar
a tendência ao declínio da taxa de lucro”(25). Apenas os fatores
que afetam a taxa de exploração ou o preço dos componentes
do capital constante têm esse poder. Mas os dois economistas
brasileiros puseram o dedo na necessidade de examinar de
perto e decompor os lucros das empresas financeiras. A The
Economist estimou em 2008 que os “lucros” das comissões e outras

24
Seus artigos podem ser encontrados em espanhol no site da revista Herramienta
(www.herramienta.com.ar).
25
Reinaldo Carambolo e Paulo Nakatani, “Captalismo espectaculativo e
alternativas” para América Latina, Herramienta n° 35. Buenos Aires, junho 2007,
pp. 34-35.

84
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

comissões de gestão de especulação financeira representavam


27% dos lucros das 500 empresas do índice Standard & Poor.
Contrariamente ao que argumenta Michel Husson, trata-se de
lucros virtuais resultantes da avaliação de ativos financeiros e não
de transferências efetivas de mais-valia para o setor financeiro.

Estender o “modelo” o máximo de tempo possível


As molas do “modelo neoliberal” estão quebradas. Nos
Estados Unidos, no Reino Unido e em muitos países há um endi-
vidamento maciço das famílias com um “modelo anglo-saxão”;
uma especulação imobiliária desenfreada, que deixa para trás
nos Estados Unidos, mas também em países como a Espanha ou
a Irlanda, um elevado número de casas vazias. Nos países indus-
trializados, as medidas de “estímulo” que estão tendo impacto
no presente se baseiam em níveis muito altos de dívida para
todos os governos. Perguntam-se quando poderão obrigar os
trabalhadores a suportar os encargos, uma vez que é sobre eles
que pesa a tributação, sem enfraquecer o consumo. Desde 2001,
a acumulação industrial tem sido impulsionada por investi-
mentos na China e, de um modo mais geral, na Ásia, orientados
em última análise para as exportações, que tiveram um efeito
cascata em alguns países produtores de produtos de base. Essa
configuração é insustentável. Semana após semana, as principais
publicações financeiras em Nova York e Londres têm se preo-
cupado com a capacidade e a disposição dos líderes chineses de
assegurar que a demanda interna do consumidor aumente. Isso
implicaria um aumento acentuado nos salários, daí a introdução
do direito de organização sindical e a legalização de greves para
consegui-lo pela luta contra a nova oligarquia capitalista, o que
por sua vez levaria ao questionamento do monopólio político do
Partido Comunista Chinês (PCC).
Os resgates bancários, a assistência a grandes grupos indus-
triais e, sobretudo, os enormes investimentos reais da China em
infraestruturas ferroviárias e rodoviárias, criaram o piso para
que os governos e os meios de comunicação anunciem o “fim da
recessão”. Foi neste contexto que o G20 de Pittsburgh realizou a
sua reunião com uma agenda provisória para manter o status quo

85
François Chesnais

ante tanto quanto possível. A institucionalização do G20 permite


integrar esse tête-à-tête a um quadro mais amplo que salve as
aparências dos capitalismos europeus, enquanto permite que o
Brasil e a Índia, em particular, reivindiquem a vitória. É à custa
dos países europeus que terá lugar a mudança dos direitos de
voto no FMI. Aconteça o que acontecer, a atual crise irá acelerar
o declínio da Europa no âmbito do capitalismo global. A questão
que se coloca aos trabalhadores e aos jovens europeus é a de se
deixarem ou não arrastar para a decadência social que acompa-
nhará cada vez mais a queda do capitalismo europeu.
Quanto ao resto, a reunião de Pittsburgh mostra que as
posições de capital financeiro permanecem muito fortes. O apoio
maciço prestado aos bancos e aos fundos de investimento em
setembro-outubro de 2008 já refletiu a força social e política dos
acionistas-proprietários de bancos e empresas, gestores de fundos
e gestores industriais pagos em opções de ações. O sucesso do
resgate permitiu-lhes manter o seu domínio. A adoção pelo G20
das novas “regras” dos EUA, e não as propostas ligeiramente mais
“vinculativas” da Alemanha e da França sobre a remuneração
dos comerciantes, é a expressão mais simbólica desse fato. Os
paraísos fiscais saem ilesos. Apenas 5% deles assinaram acordos
de cooperação. E não os comprometem muito porque os bancos
e os fundos de retorno absoluto não serão impedidos de realizar
operações que envolvam fraude e evasão fiscais. A publicidade
em torno das contas da União de Bancos Suíços (UBS) não deve
esconder o fato de que mesmo para a Suíça o sigilo bancário
permanece praticamente intocado.
Existe um consenso, inclusive nos círculos financeiros,
quanto à formação de novas bolhas especulativas. A perspectiva
de ter de lidar com a sobreposição entre uma crise econômica
muito longa e manifestações graves da crise climática deve ser
integrada ao pensamento revolucionário. Este é o propósito
do relatório elaborado por Daniel Tanuro (ver nota 11 acima).
Também é o do livro de Isabelle Stengers (26). Dirige-se “àqueles

26
Isabelle Stengers, Au temps des catastrophes. Résister à la barbarie qui vient, Edi-
tions Les Préêcheurs de penser en rond/La Découverte, Paris 2009. Minha
apresentação pode ser encontrada na seção «ecologia» da revista Contretemps
(www. contretemps.eu).

86
Crise de sobreacumulação global iniciando uma crise de civilização

que nunca estão sujeitos à evidência da sociedade capitalista, para


quem a sociedade capitalista, como produtora de exploração, guerras
e crescentes desigualdades sociais, já define a barbárie” (p. 18). Esses
ativistas e combatentes da resistência devem agora acrescentar
a isso as ameaças específicas da barbárie que surgem do fato de
que as diversas manifestações da mudança climática, tão graves
socialmente como as outras, ocorrerão em um contexto marcado
do começo ao fim pelas relações de classe capitalistas e imperia-
listas. Diante de uma dada pergunta, diz ela, o que importa é a
capacidade de produzir coletivamente respostas. “Uma resposta
não pode ser reduzida à simples expressão de uma convicção. Ela se
fabrica” (p. 135). Essa é a tarefa. Trata-se em primeiro lugar de
dizer o que é (“só a verdade é revolucionária”), depois de desen-
cadear o poder de experimentação coletiva dos trabalhadores-
cidadãos, qualquer que seja a estrutura (associação, agrupa-
mento ainda mais informal ou partido político) em que tenham
optado por investir. Este é um dos caminhos para essa indis-
pensável “construção de uma convicção coletiva” da necessidade e
“viabilidade” da emancipação nas condições do século XXI, cuja
realização continuará a enfrentar a questão da propriedade e,
portanto, do Estado.

87
O sistema-mundo capitalista e os novos
alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva1

Carlos Eduardo Martins2

E m nossos trabalhos, temos nos dedicado a analisar a


conjuntura mundial contemporânea a partir da perspec-
tiva da longa duração, que interpreta o tempo concreto como a
combinação simultânea de três temporalidades distintas que se arti-
culam: a estrutural, cíclica e a do dia a dia. A singularidade de nosso
tempo não pode ser compreendida sem analisarmos a articulação
específica entre os tempos estrutural e cíclicos que se desenvolvem
hodiernamente. O tempo estrutural é cumulativo e irreversível, e
as repetições cíclicas incidem sobre suas configurações concretas
singulares, assumindo também formatos individualizados.
Quanto maior a capacidade de as ciências sociais descreverem os
processos estruturais e cíclicos em marcha e as formas concretas
que assumem no tempo imediato, maior será a sua possibilidade
de desenvolver um pensamento estratégico capaz de apontar as
forças hegemônicas; as contra-hegemônicas; os arranjos de poder
de longo, médio e curto prazo que resultam das guerras de posição
e de movimento; e as bifurcações históricas que poderão dar lugar
a uma ampla reconfiguração hierárquica do sistema-mundo e das
suas expressões de poder globais, regionais e nacionais.
Neste artigo, apontamos as principais características da
conjuntura mundial contemporânea, suas tendências cíclicas
e seculares, as configurações de poder dominantes, as forças
antissistêmicas, os novos alinhamentos geopolíticos a que dão
lugar e a bifurcação de poder que se desenha para os próximos

1
Capítulo publicado originalmente nos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 20,
n. 43, p. 673-696, dezembro 2018.
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais e
Defesa, Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil. cadu.m@uol.com.br. https://orcid.org/0000-0003-1333-6737

89
Carlos Eduardo Martins

anos. Desde 1994, vivenciamos uma fase de expansão do ciclo de


Kondratiev que se articula a dois movimentos descendentes de longa
duração: a fase B do ciclo sistêmico estadunidense, marcada pela
crise dessa hegemonia, iniciada em 1970; e a crise civilizatória do
modo de produção capitalista, a partir do surgimento da revolução
científico-técnica, como nova estrutura de forças produtivas que
impulsiona cada vez mais o desenvolvimento material da economia
mundial. Tal combinação traz características muito específicas
para o ciclo longo de expansão que vivenciamos: de um lado, a
financeirização do capital, a crise de hegemonia do eixo atlantista
da economia mundial e o declínio das potências marítimas, que
tradicionalmente dirigiram a civilização capitalista, centradas,
principalmente, no norte da Europa Ocidental e, atualmente, sob
direção estadunidense; e, de outro, o deslocamento do dinamismo
econômico para a China e para o Leste Asiático, a ascensão dos
regionalismos e dos hinterlands como novo possível fundamento
geopolítico da economia mundial e da construção de um sistema-
mundo multipolar.
Dividiremos este texto em duas partes: na primeira, anali-
saremos as principais características do ciclo de Kondratiev
vigente e os fundamentos da crise da hegemonia atlantista sobre
a economia mundial; na segunda, analisaremos a ascensão da
China e dos Brics e seus possíveis impactos geopolíticos.

O ciclo longo atual e a economia mundial


Os ciclos ou ondas longas têm sido estudados por diversos
autores desde os anos 1910 e 1920. Entre eles, destacam-se
Jacob Van Gelderen, as décadas de Nicolai Kondratiev, Joseph
Schumpeter, Ernst Mandel, Christopher Freeman, Carlota Perez
e Theotonio dos Santos. Por questões de espaço, não voltaremos
a esse debate teórico que analisamos em profundidade em nosso
livro Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina
(MARTINS, 2011b), mas utilizaremos aqui os principais instru-
mentos analíticos para a compreensão do funcionamento desses
ciclos na economia mundial contemporânea.
Os ciclos longos, ou ciclos de Kondratiev – autor russo
que, por seus estudos, deu o nome a esses processos –, são uma

90
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

forma de expressão razoavelmente sistemática do funcionamento


da economia capitalista, concentrando-se nos países centrais
desde o surgimento da Revolução Industrial no fim do século
XVIII. Expressam a combinação e os desajustes entre paradigmas
tecnológicos e organizacionais a estes relacionados. Rupturas
tecnológicas radicais dão lugar a inovações primárias, secundárias
e terciárias que confrontam estruturas e inércias organizacionais
e abrem o espaço para inovações institucionais que se combinam
com as tecnológicas para desenvolvê-las. Em linhas gerais, esses
ciclos dividem-se em fases: a) de alto crescimento e b) de baixo
crescimento e podem ser medidos pelas oscilações da taxa de
crescimento do PIB per capita e da taxa de lucro. As fases de alto ou
baixo crescimento influenciam os ciclos mais curtos, transmitindo-
lhes seu ritmo, e sofrem, por sua vez, a influência de movimentos
mais amplos. Os períodos de alta expansão e os de baixo
crescimento dividem-se em subfases: os primeiros em retomada,
prosperidade e maturidade; e os últimos em recessão, depressão
e recuperação. A passagem para cada subfase é intermediada por
uma pequena crise ou curta inflexão descendente.
Desde 1994, podemos situar a emergência de uma nova
fase de expansão do ciclo longo na economia mundial, o
que se observa pelos movimentos da taxa de crescimento
do PIB per capita mundial e da taxa de lucro, que se elevam
significativamente ante os patamares alcançados entre
1974-1993. Essa fase expansiva se inicia com a retomada entre
1994-1998, apresentando uma moderada inflexão no seu ritmo
de crescimento em 2001, para retomar sua forte expansão
na prosperidade que se estabelece entre 2002-2007. A crise
de 2008-2009 é uma inflexão aguda que produz crescimento
negativo durante um curto período de tempo, abrindo espaço
para a subfase de maturidade que se inicia a partir de 2010.
Esse período de crescimento longo, que provavelmente ingressa
em sua última subfase e deverá se esgotar nesta década,
apresenta características abaixo elencadas.

a) Menor intensidade de expansão em relação ao período


1950-1973, em razão de outros movimentos mais amplos
de caráter descendente que atuam sobre ele.

91
Carlos Eduardo Martins

b) Crescente deslocamento do dinamismo econômico para o


Leste Asiático, em particular à China, com encadeamentos
para as regiões que com ela se articulam.
c) Crise de hegemonia do eixo atlantista da economia
mundial – e das periferias e semiperiferias a este articu-
ladas – que avança com a sequência das subfases e de suas
inflexões.
d) Lento e progressivo estabelecimento de uma bifurcação
entre a hegemonia atlantista das potências marítimas e a
ascensão de regionalismos e dos hinterlands.

A análise empírica baseada no PIB per capita mundial,


sistematizado pela série formulada por Angus Maddison e
seus seguidores, permite-nos visualizar os ciclos de Kondratiev
desde meados dos anos 1870, quando começam efetivamente
a se mundializar, com a difusão da grande indústria e com a
organização de uma divisão internacional do trabalho a ela
articulada, ainda que possam ser visualizados para os principais
países industrializados, como a Grã Bretanha ou França, desde
o fim do século XVIII, utilizando-se, como base estatística,
o PIB per capita nacional3. Se tomarmos o crescimento do
PIB per capita como critério, podemos observar que, entre
1994-2010, a expansão anual atingiu 2,4%, um salto drástico em
relação à fase de estagnação relativa que a precedeu, quando ele
alcançou apenas 1,2% a.a. entre 1974-1993, mas ainda abaixo
dos 2,9% do período de anos dourados da economia mundial,
quando convergiram as fases expansivas do ciclo de Kondratiev
e do ciclo sistêmico estadunidense da economia-mundo. Outro
critério de mensuração é a taxa de lucro, cujos dados empíricos
disponíveis são muito menos abrangentes e compreendem
séries mais limitadas cronologicamente. Aqui utilizamos
apenas as taxas de lucro dos Estados Unidos. Entretanto o peso
desse país na economia mundial, como PIB ou como mercado
mundial, e a profunda associação das oscilações da taxa de
lucro estadunidense com as do crescimento econômico do PIB

3
A série estatística pode ser visualizada a partir do seguinte endereço eletrôni-
co: http://www.ggdc. net/maddison/maddison-project/home.htm. Acesso
em: 10 jan. 2018.

92
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

global nos permitem utilizar esse indicador como evidência


probabilística desses ciclos.4
Além da taxa de lucro haver subido significativamente
nos Estados Unidos a partir de 1994, diante do patamar que
manteve, entre 1974-1993, a massa de lucros das corporações
estadunidenses não financeiras oriundas do exterior se elevou
dramaticamente, indicando o caráter internacional do movi-
mento de elevação das taxas de lucro. Entre 1991-1994, a taxa de
lucros subiu abruptamente nos Estados Unidos, em movimento
similar, mas inverso ao de 1967-1970, quando caiu 52%, saltando
do patamar de 6,4%, entre 1968-1993, para atingir a média de
9,1% entre 1994-2013, nível próximo ao de 1959-1968, quando
se nivelou em 10,3% (Gráfico 1). A massa de lucros oriunda do
exterior das corporações estadunidenses, por sua vez, elevou-
se da faixa de 5%-10%, entre 1967-1970, para 15%-20%, entre
1994-2000 e 2000-2005, e 20%-30% entre 2008-2013 (Gráfico 2).
A dificuldade de muitos cientistas sociais em perceber o ciclo
de expansão, para além de problemas analíticos, pode ser atribuída
à mediocridade do desempenho da Europa Ocidental, dos Estados
Unidos e do Japão nessa fase de expansão, em que o crescimento
econômico é fortemente deslocado para o Leste Asiático, em
particular para a China. Estados Unidos e Europa Ocidental
apresentam crescimento do PIB per capita de 1,5% a.a. entre 1994-
2010, bem próximo à taxa de crescimento mundial na longa fase
recessiva que precedeu ao período atual. Tal desempenho medíocre
vem se aprofundando durante a trajetória dessa fase expansiva. De
1980-2000, os Estados Unidos cresceram bem acima da economia
mundial, utilizando a elevação das taxas de juros e a sobrevalorização
do dólar como instrumentos de reação contra a deterioração produtiva
de sua hegemonia, bloqueando o dinamismo econômico mundial.
Nesse período, o PIB per capita estadunidense expandiu-se em 2,2%
contra 1,4% do PIB per capita mundial. Entretanto, os desequillbrios
4
Segundo o OECD Economic Outlook 2014, os Estados Unidos representavam
aproximadamente 12% das importações mundiais e 9% das exportações em
2012, ao passo que em 1998 representavam 16,3% e 13,8%, respectivamente.
Segundo a série estabelecida por Angus Maddison, em 2008, os Estados
Unidos representavam 18,6% do PIB mundial e, em 1994, 21,5%. A crise de
2008-2010 baixou ainda mais o patamar do PIB estadunidense, aproximando-o
de 17% em 2010.

93
Carlos Eduardo Martins

financeiros e cambiais provocados e a elevação da competividade


trazida pelo restabelecimento da fase expansiva evidenciaram, cada
vez mais, os limites e as contradições da estratégia de financeirização
do capital, obrigando os estados que a adotam a redefinir os seus
termos, o que não os impediu de serem arrastados crescentemente
ao parasitismo e à crise econômica, social, política e ideológica.

Gráfico 1 – Taxa de lucro nos Estados Unidos

Fonte: elaborado pelo autor a partir do Council of Economic Advisers (2014).

Gráfico 2 – Massa de lucros das corporações


estadunidenses vindas do exterior

Fonte: elaborado pelo autor a partir do Council of Economic Advisers (2014).

94
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

Se, entre 1994-2000, Estados Unidos e Europa Ocidental


ainda suplantavam o crescimento do PIB per capita mundial, a
partir de então a relação se inverte: o PIB mundial passa a crescer
cada vez mais, quanto maior a mediocridade dos desempenhos
estadunidense e europeu. Entre 2001-2010, o PIB per capita anual
dos Estados Unidos e o da Europa Ocidental cresceram 0,6% e
0,8%, respectivamente, enquanto o PIB per capita mundial o fez
em 2,6%, articulando-se cada vez mais à dinâmica chinesa (BOLT
e VAN ZADEN, 2014). Se a economia mundial se recuperou da
crise de 2008-2010 e manteve, entre 2011-2017, a sua trajetória de
crescimento instituída entre 1994-2010, de 2,4% ao ano, os Estados
Unidos expandiram-se em apenas 1,3% a.a.5 Essa frágil recuperação
estadunidense é ainda inferior ao precário desempenho obtido
por esse Estado após a crise de 2000-2001, quando se expandiu
em 1,6% a.a. Em 1994, o PIB dos países avançados representou
58% do PIB mundial; em 2007 representou 50% e, em 2017,
41%.6 Tais indicadores evidenciam que a trajetória do ciclo de
Kondratiev vigente aprofunda, portanto, a crise do eixo atlantista
que se inicia desde os anos 1970.

A crise de hegemonia atlantista: fundamentos e


dimensões
A crise de hegemonia atlantista estabelece-se desde os anos
1970 e tem sua origem no esgotamento do pacto keynesiano
que vinculou o aumento do gasto público ao estabelecimento
do pleno emprego. Tal pacto se esgota com a ameaça estrutural
que o pleno emprego passou a exercer sobre a taxa de lucros
a partir da mundialização da revolução científico-técnica. Esta
transforma o valor da força de trabalho no fundamento central da
produtividade, ao estabelecer o conhecimento e a subjetividade

5
Cálculos do autor a partir do World Economic Outlook, publicado em abril de
2018 e dos dados do Banco Mundial sobre crescimento da população mundial.
A série do FMI apresenta distinções metodológicas em relação à apresentada
pelos seguidores da obra de Maddison em 2013, devendo ser usada apenas
como aproximação a esta.
6
Veja-se http://www.imf.org/external/datamapper/PPPSH@WEO/OEMDC/
ADVEC/WEOWORLD. Acesso em: 10 jan. 2018.

95
Carlos Eduardo Martins

como os principais elementos das forças produtivas. Inverte-se


a lógica da Revolução Industrial na qual a produtividade
era a expressão da desvalorização da força de trabalho ante a
maquinaria, impulsionando o protagonismo da mais-valia relativa
e da subsunção real do trabalho ao capital.7 A crise da subsunção
real expressou--se nos movimentos de massa que se iniciaram de
forma explosiva em 1968 e avançaram pelos anos 1970, unindo
estudantes, trabalhadores e amplas minorias para confrontar a
autocracia, o despotismo institucional da burocracia, a separação
entre trabalhadores manuais e intelectuais, o colonialismo
interno, os limites da democracia representativa, o imperialismo,
a guerra e a destruição ecológica do planeta.
Essa ofensiva avança pela década de 1970, perdendo sua
força explosiva, sendo confrontada pelo neoliberalismo, a partir
da virada para os anos 1980, que substitui o keynesianismo,
tornando-se um instrumento regulatório decisivo do capital para
conter os novos movimentos sociais, refundar o Estado e criar as
condições para o restabelecimento da taxa de lucro, impondo um
mercado de trabalho com altos níveis de desemprego, fundado na
queda dos preços da força de trabalho por debaixo de seu valor,
estendendo aos grandes centros a superexploração do trabalho
e destravando os obstáculos para a retomada dos processos de
acumulação produtiva.
A experiência neoliberal iniciou-se no Chile de Pinochet,
estendendo-se para os Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido
7
Temos mostrado em um conjunto de trabalhos os efeitos da mundialização da
revolução científico-técnica sobre o processo de trabalho, a formação do valor e
os processos de acumulação de capital. Ao tornar o valor da força de trabalho, em
particular, a sua qualificação, o elemento central das forças produtivas, a revolução
científico-técnica impulsiona a redução da diferença entre o valor do trabalho e o
valor da força de trabalho pressionando negativamente a taxa de mais-valia. A este
contexto qualificamos de crise civilizatória e se aproxima ao de era revolucionária
descrito por Marx no prefácio à contribuição à crítica da economia política, quando
uma nova estrutura de forças produtivas entra em contradição com as relações de
produção e suas formas de propriedade. Para apropriar-se da revolução científico-
técnica, o capital necessita estabelecer políticas de superexploração do trabalho,
reduzindo os preços da força de trabalho por debaixo de seu valor, o que o leva,
nos países centrais, a romper o pacto keynesiano com os trabalhadores e a deslocar
parte do seu circuito de valorização para a acumulação financeira ou para outras
regiões do mundo, onde a relação entre o valor do trabalho e o valor da força de
trabalho lhe seja mais favorável.

96
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

e para o conjunto da Europa Ocidental no início dos anos 1980.


Para eliminar o pleno emprego e estabelecer a superexploração
do trabalho, o neoliberalismo impôs a financeirização do
capital que deslocou parte da acumulação do setor produtivo ao
financeiro, impulsionando a dívida pública e a competição pelo
capital circulante, bem como a relocalização dos investimentos
produtivos através da abertura comercial e liberalização dos
fluxos de capital. A dívida pública passou a mover-se buscando
a geração de capital fictício e não mais a produção de empregos
e a elevação da produtividade. O neoliberalismo não significou
a redução do Estado, mas a sua ampliação mediante o uso do
monopólio da violência, direcionando os gastos públicos para
sustentar os processos financeiros de acumulação e a competição
armamentista, além de conter os gastos em bem-estar-social. A
relocalização dos investimentos, associada às novas tecnologias de
produção para mercados mundiais, permitiu descentralizar parte
da indústria, utilizando as vantagens competitivas da força de
trabalho no mundo para redirecionar os fluxos de investimento
produtivo. Ambos os processos reduziram a taxa de investimento
nos países centrais, contribuindo, em médio e longo prazos para
o parasitismo e o desmonte da engrenagem de crescimento
virtuoso do eixo atlantista.
Inicialmente a sobrevalorização do dólar significou
acentuada elevação da riqueza da burguesia estadunidense,
todavia a forte aceleração dos déficits comerciais, da dívida
pública e sua internacionalização entraram em contradição com
os baixos estoques que apresentavam no início dos anos 1980,
acumulando-se e colocando em xeque a diplomacia do dólar
forte. Se durante o ciclo de Kondratiev recessivo a elevação
das taxas de juros estadunidenses e a sobrevalorização do
dólar impuseram-se sobre a economia mundial, sacrificando-a
em função de sua dinâmica parasitária, ainda que sem impedir
a formação de novos centros produtivos, a partir de 1994 é
cada vez menor a capacidade de Estados Unidos e União
Europeia imporem ao mundo a valorização de suas moedas e
a sua política monetária. Entre 1979-1994, a elevação das taxas
de juros estadunidenses aumentou dramaticamente os níveis
de endividamento internacionais provocando o colapso dos

97
Carlos Eduardo Martins

projetos de modernização acelerada na periferia – baseados


na dependência financeira externa, em particular na América
Latina, Leste Europeu e África –, a forte redução das taxas
de crescimento econômico mundiais e a drástica redução
dos preços do petróleo. Nesse período, os Estados Unidos
incrementaram de 417% para 458% seus níveis de renda per
capita em relação à média da economia mundial, e o Norte
da Europa somado à Itália o fez em menor escala, de 306%
a 329%.8 As contradições da diplomacia do dólar forte no
âmbito do atlantismo foram resolvidas no início dos anos 1990,
mediante o acentuado ajuste do iene e do marco, reduzindo
o saldo comercial dessas economias com os Estados Unidos,
mas também o seu dinamismo econômico, provocando o nício
da longa estagnação japonesa.
A crise de hegemonia do atlantismo iniciou-se por
razões internas. Até 1979 não havia desafio significativo a sua
competitividade por outras regiões do mundo. A hegemonia
estadunidense permanecia sólida no interior do atlantismo e
neutralizava a ofensiva econômica japonesa, impondo-lhe o
ajuste das políticas cambiais nos anos 1990. É a necessidade de
prolongar a confrontação com sua classe trabalhadora, iniciada
em fins dos anos 1960, mediante a conversão da superexploração
do trabalho em uma política estrutural dos centros atlantistas,
para além das inflexões cíclicas, que impulsionará essa crise.
Sua implementação manteve os principais fundamentos da
financeirização em período de crescimento longo da economia
mundial e acelerou a relocalização dos investimentos produtivos.
Tal ponto converge com as análises de Arrighi e Silver (2001)
que apontam que na atual crise de hegemonia as contradições
intraestatais seriam determinantes em relação às interestatais,
diferentemente do período precedente no longo século britânico.9
Entre 1994-2010 a renda per capita dos Estados Unidos caiu de
458% para 390% da economia mundial e no Norte da Europa,

8
Cálculo do autor a partir da série estabelecida pelos discípulos de Angus
Maddison em 2013, atualizando sua metodologia, e que pode ser acessada em
https://www.rug.nl/ggdc/ historicaldevelopment/maddison/releases/maddi-
son-project-database-2013. Acesso em: 10 jan. 2018.
9
Ver Arrighi e Silver (2001).

98
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

incluída a Itália, de 329% para 278%. Nesse período, a China


– que havia aproveitado a drástica elevação do iene, entre 1991-
1994, para fazer o movimento oposto, desvalorizando fortemente
sua moeda, atrelando-a ao dólar, e levando ao fracasso a gestão
trilateral das contradições da financeirização estadunidense10 –
elevou sua participação no PIB mundial de 5,1%, em 1979, para
8,2%, em 1991; 10%, em 1994; e 17%, em 2010.11
A crise de hegemonia do atlantismo apresenta diversas
dimensões que se aprofundam nesse ciclo longo: a financeirização
da economia, a queda das taxas de investimento, o aumento da
dívida pública, o deslocamento para o exterior dos investimentos
produtivos, a perda de competitividade internacional, a perda
da autonomia da política monetária, o alto nível de desemprego,
a contenção ou redução dos salários reais, o aumento da
desigualdade, o aumento das assimetrias regionais e a
substituição do liberalismo pelo neoliberalismo, gerando a crise
do bipartidarismo. Vejamos esses aspectos em detalhe.
A financeirização da economia atlantista apresenta dois
estágios: o primeiro impulsionado pelo aumento das taxas
de juros, estimuladas pelo Federal Reserve Board (FED), o
sistema de bancos centrais dos Estados Unidos, para a disputa
do capital circulante, que se expressa num aumento drástico
da dívida pública. Esse estágio predomina durante a fase
recessiva do ciclo de Kondratiev, quando as taxas de juros reais
são significativamente superiores às taxas de crescimento do
PIB e implicam um peso significativo e crescente dos juros no
orçamento público. Cria-se uma regulação da economia que
eleva significativamente o gasto público em relação ao período
keynesiano clássico, mas direciona-o, em grande parte, para a
valorização do capital fictício. No segundo período, iniciado
a partir da fase expansiva do ciclo de Kondratiev, as taxas de

10
Desta forma, a China transfere para si o saldo comercial com os Estados
Unidos, apropriando-se de grande parte do mercado interno estadunidense,
elevando os déficits em conta corrente e endividamento externo desse país via
internacionalização de sua dívida pública, na qual os chineses terão participação
crescente.
11
Cálculo do autor a partir da série estabelecida por Angus Maddison e seus
discípulos: http://www. ggdc.net/maddison/maddison-project/home.htm.
Acesso em: 10 jan. 2018.

99
Carlos Eduardo Martins

juros reais caem abaixo das taxas de expansão do PIB, mas a


dívida pública e os gastos públicos permanecem crescendo a
partir da intervenção do Estado no mercado privado de títulos
financeiros, garantindo a liquidez de ativos podres quando
este colapsa. A financeirização implica, ainda, uma queda
significativa na taxa de investimento dos centros atlantistas que
se associa a um duplo fenômeno que se desenvolve na formação
dos lucros de suas corporações multinacionais: parcelas
crescentes da massa de lucros originam-se no setor financeiro
e no exterior – oriundas, nesse caso, dos investimentos de
filiais dessas corporações. A perda de competitividade das
economias atlantistas faz-se evidente na redução das taxas de
crescimento econômico, na diminuição da parcela do PIB ou
do comércio mundiais que representam – atualmente infladas
pela sobrevalorização de suas moedas –, no crescimento
de seus déficits comerciais, na internacionalização de suas
dívidas públicas e na vulnerabilidade de seus balanços de
pagamentos. O alto nível de endividamento público e a
vulnerabilidade de seus balanços de pagamentos lhes vão
retirando crescentemente a autonomia de suas políticas
monetárias e cambiais pelos efeitos explosivos que podem
exercer sobre o gasto público e o equilíbrio macroeconômico.
Esses processos desenvolvem-se em maior ou menor grau entre
os países atlantistas, apresentando-se, nos Estados Unidos, sua
principal potência, com maior intensidade e nitidez. Na União
Europeia a Alemanha utiliza a contenção dos salários internos
como um dos pilares da sua competividade, auferindo um
expressivo saldo comercial com os países da zona do euro
– o que contribui decisivamente para aprofundar as suas
assimetrias internas e as desigualdades sociais e regionais – e
com os Estados Unidos e o Reino Unido, países que mantêm
suas moedas sobrevalorizadas – sem evitar, todavia, a queda
de sua participação relativa no comércio mundial.
Os Gráficos 3 e 4 mostram o significativo aumento dos gastos
públicos e da dívida pública nos Estados Unidos, na zona do euro,
e de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), que se elevou drasticamente na
década de 1980, em função do incremento dos juros e de seu

100
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

Gráfico 3 – Gastos públicos/PIB (%)

Fonte: elaborado pelo autor a partir de OECD (1998), (2001), (2010) e do Council
of Economic Advisers (2014).

Gráfico 4 – Dívida bruta do governo/PIB

Fonte: elaborado pelo autor a partir de Economic Outlook 2014.1 e do Council of


Economic Advisers (2014).

peso no orçamento público e, posteriormente, a partir da crise


de 2008, em função da compra, por parte do Estado, de títulos
podres, sustentando expectativas de lucros extraordinários sem
liquidez. Entre 2008-2014/3, nos Estados Unidos, o governo
federal comprou US$ 4,2 trilhões em dívidas hipotecárias no

101
Carlos Eduardo Martins

mercado privado, e as instituições financeiras privadas, por sua


vez, desfizeram-se de US$ 4,5 trilhões que tinham sob controle,
o que indica o alto nível de rentabilidade dessas operações.12
Na zona do euro, a ajuda dos governos europeus aos bancos
alcançou ∉4,5 trilhões, aproximadamente 36,7% do PIB europeu,
dos quais foram usados ∉1,6 trilhões entre 2008-2010. Entre
dezembro de 2011 e fevereiro de 2012, dois novos programas de
refinanciamento de longo prazo emprestaram ∉1,1 trilhões aos
bancos europeus, com liquidez de ∉520 bilhões. Desenvolve-se
um capitalismo monopolista de Estado que sustenta lucros
extraordinários fortemente desvinculados do progresso
tecnológico e dos investimentos produtivos nos países centrais.
O processo de financeirização vincula-se à queda das taxas
de investimento nos países centrais que pode ser estimada por um
conjunto de indicadores: a queda nas taxas de investimento nos
Estados Unidos (Gráfico 5), a queda nas taxas de poupança na Europa
Ocidental e Japão (Gráfico 6), o aumento dos lucros de origem
financeira (Gráfico 7) e dos lucros obtidos no exterior na massa
geral de lucros das corporações estadunidenses. O aumento do

Gráfico 5 – Taxa de investimento EUA/PIB (Percentual)

Fonte: elaborado pelo autor, a partir do Council of Economic Advisers (2014).

12
Conferir em http://www.federalreserve.gov/econresdata/releases/mortout-
stand/current.htm. Acesso em: 10 jan. 2018.

102
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

Gráfico 6 – Taxa de poupança/PIB (Percentual)

Fonte: elaborado pelo autor, a partir do OECD (2014).

Gráfico 7 – Lucros das Corporações Financeiras/Lucros totais


das Corporações (Estadunidenses)

Fonte: elaborado pelo autor, a partir de Council of Economic Advisers (2014).

estoque externo de capital estrangeiro/PIB entre os principais


países europeus, os Estados Unidos e o Japão sinaliza para a relo-
calização do circuito produtivo do capital das potências atlan-
tistas (Gráfico 8). Tais fatores promovem um lento deslocamento
do eixo de poder na divisão internacional do trabalho, manifesta
na significativa perda de competividade no comércio interna-
cional de Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Itália
e Japão. A perda de competitividade apresenta-se principalmente
na redução da participação relativa nas exportações mundiais13,

13
Entre 2000-2017 a participação agregada de Estados Unidos, Alemanha,

103
Carlos Eduardo Martins

podendo apresentar-se como forte déficit comercial, caso dos


Estados Unidos, mas não, necessariamente, caso da Alemanha14.

Gráfico 8 – Estoque de investimento direto externo/PIB

Fonte: UNCTAD.

O saldo comercial da Alemanha saltou de 2,9% do PIB, em


2000, para alcançar 8% em 2007. Foi obtido 65% no interior da
Europa, fonte mais dinâmica do saldo que o expandiu no período
em 230% contra 186% das regiões fora da Europa, cuja principal
origem era os Estados Unidos, de onde provinham mais 50% do
superávit comercial extraeuropeu. O seu grande determinante foi
a contenção salarial que, combinada à alta tecnologia, permitiu à
Alemanha impulsionar dramáticos desequilíbrios comerciais, na

Itália, França, Grã--Bretanha e Japão nas exportações mundiais caiu de 42,6%


para 31,4%. Ver The Economic Outlook, 2018.1, publicado pela OCDE.
14
Os Estados Unidos após forte escalada do déficit comercial que atingiu seu
pico em 2008, o reduzem significativamente em função da desvalorização
do dólar, da diminuição do déficit da conta-petróleo e da apreciação do
yuan. A diminuição do déficit da conta-petróleo vincula-se principalmente à
substituição da importação de petróleo pela produção local e pelo gás de xisto
– com fortes impactos ecológicos. Todavia é cada vez menor o espaço para o
impacto dessa redução no resultado global da balança comercial, uma vez que o
déficit da conta-petróleo cai de 47% para 7,6% do déficit total entre 2008-2017,
e aquela continua a ser pressionada pela competitividade de outras regiões do
mundo, principalmente a chinesa. Ver: https://www.census.gov/foreigntrade/
statistics/historical/petro.pdf. Acesso em: 10 jan. 2018.

104
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

zona do euro, que provocaram a crise do balanço de pagamentos


e da dívida soberana de Grécia, Espanha e Portugal, revertendo
a tendência à convergência da renda média europeia que se
estabelecia lentamente. As variações positivas de compensação
salarial entre a zona do euro e a Alemanha, desde o início de 1990
até 2008, foram muito superiores às de produtividade entre a
Alemanha e a zona do euro, que quase se aproximam a 1. No caso
da Alemanha, a variação das compensações salariais foi inferior
aos índices de inflação para a década de 2000. A Grécia, que
apresentou, no período, uma variação de produtividade muito
superior à alemã, mas também uma expansão salarial bastante
acima daquela variação, foi estrangulada em seu processo de
convergência. Entre 2001-2013, se a Alemanha passou de 116
a 124 da renda média da União Europeia, a Itália caiu de 119
para 98, a França de 116 para 108, a Espanha de 98 para 95, a
Grécia de 87 para 75 e Portugal de 81 para 7615. Essencial para
a contenção salarial dos trabalhadores alemães foi a unificação
alemã com a destruição de empresas e incorporação de milhões
de trabalhadores à Alemanha Ocidental. Utilizando-se do
mercado comum europeu em jogo de soma zero, lançando mão
de sua vantagem histórica em produtividade, combinando-a com
a redução salarial, a Alemanha manteve taxas de investimento
bastante superiores à média da União Europeia, fortalecendo-se
como espaço de acumulação produtiva, mantendo altos níveis
de desemprego, que caem à metade entre 2005-2013, para
alcançar 5,5% e atravessar a crise em tendência inversa à da
região. Todavia, nem mesmo se do mercado regional para
produzir assimetrias a Alemanha consegue deter seu processo
de declínio, pois a crise europeia e mediterrânea restringe a sua
expansão sustentada, o PIB per capita alemão passa de 338% para
264% da média da economia mundial entre 1994-2010 (BOLT e
VAN ZANDEN, 2014).
Limitada historicamente em sua expansão pelas potências
atlantistas que impediram a sua afirmação territorial e marítima
no século XX, a Alemanha reunificada adota o enfoque neoliberal
impulsionado desde os principais centros atlantistas – Estados

Ver http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/.
15

Acesso em: 10 jan. 2018.

105
Carlos Eduardo Martins

Unidos e Reino Unido. Ao fazê-lo, articula a financeirização na


Europa com a criação de um mercado regional regulado por
altas taxas de desemprego. Entra, assim, em contradição com sua
vocação de longo prazo para afirmar-se como hinterland europeu,
capaz de vincular-se a um novo alinhamento geopolítico mundial
no qual as potências territoriais e os mercados internos poderão
jogar um papel fundamental.
As políticas de superexploração do trabalho elevam forte-
mente a desigualdade nos países centrais e colocam em xeque
o centrismo político, expresso no sistema bipartidário. Nos
Estados Unidos, a participação dos 10% mais ricos no PIB se
eleva de 33,4% a 47,9% entre 1970-2010; e, na Europa, de 27,6%
a 34,7% entre 1979-2010, chegando a 36,9%, caso não se inclua
a Suécia. Na Europa, o salto na concentração da renda se dá
principalmente no Reino Unido, que evolui de 32,6%, em 1980,
para 41,6%, em 2010, mas, também, é expressiva na Alemanha,
passando de 32,6% para 36,1% no mesmo intervalo temporal16.
As taxas de desemprego mantêm-se em altos níveis nos Estados
Unidos e na Europa, atingindo principalmente a juventude, e os
salários reais mantêm-se comprimidos, situando-se, nos Estados
Unidos, em níveis inferiores aos de início dos anos 1970.17
Na Europa, a crise do bipartidarismo pode ser aferida por dois
fatores: pela queda da participação dos dois principais partidos
no Parlamento europeu e pelo aumento das abstenções. Desde
1999, a participação das duas principais coalizões partidárias no
Parlamento europeu, de centro-direita e centro-esquerda, caiu
de 66% das cadeiras para 54,8% em 2014. Também, a taxa de
participação do eleitorado vem se reduzindo progressivamente
desde 1979, passando de 62% para 42,5% em 2014. Nos Estados
Unidos, o sistema bipartidário é bastante mais sólido, mas também

16
Ver Council of Economic Advisers (2014) e Piketty (2014).
17
Nos Estados Unidos, as taxas de desemprego aparentemente mais baixas
vinculam-se tanto à maior capacidade de sustentar no longo prazo a
sobrevalorização da moeda nacional quanto à invisibilização do trabalho
precarizado que cresceu. Embora as taxas de desemprego aberto tenham se
reduzido, ainda que lentamente, após a crise de 2008-2010, os trabalhadores
de tempo completo representam 82% do total em 2017, quando eram 86,5%
deste em 1968. Veja-se a série de longo prazo em https://fred.stlouisfed.org/
graph/?category_id=&graph_ id=308940. Acesso em: 10 jan. 2018.

106
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

sofre desgaste. Pesquisas do Gallup apontam que a parcela da


população que considera necessária a criação de um terceiro partido
subiu de 40%, em 2003, para 61% em 201718. O mesmo instituto
assinala que a confiança no poder Executivo não ultrapassou a
faixa dos 30% a partir de 2006 – excetuando o primeiro ano do
mandato de Obama, quando atingiu 51% –, alcançando o seu pico
de 37%, em 2012 e 2018, e o eu ponto mais baixo de 26% em 2006.
Tais índices são muito inferiores aos alcançados entre 1975 e 2005,
quando oscilaram entre 72%, durante a Guerra do Golfo, a 38%
em 1994, permanecendo a maior parte do tempo em torno dos
50%. Queda mais drástica sofre o poder Legislativo, cuja confiança
cai de 42%, em 1973, para 30%, em 2004, e 11%, em 2018. A
confiança na Suprema Corte também é afetada: entre 1973-2006 o
seu indice de confiança médio foi de 46%, enquanto, entre 2006-
2018 este caiu para 32,5%19.
A eleição de Obama, um presidente negro, o mais votado
da história dos Estados Unidos, motivando, em 2008, a maior
participação eleitoral estadunidense desde 1968, reforça a
desconfiança com as elites tradicionais anglo-saxãs e o desejo de
mudança, o que se acentua com a sua queda de popularidade
e incapacidade de restabelecer a confiança no sistema político.
A queda contínua de brancos entre os eleitores – que passam
de 89% do total, em 1976, para 71%, em 2016 –, o aumento da
participação de latino-americanos, negros e asiáticos, a elevação
da desigualdade social e a financeirização pressionam o sistema
político para a polarização, reduzindo o espaço estrutural
de legitimidade de uma política centrista. O formato que isso
poderá tomar nos Estados Unidos nas próximas décadas é
imprevisível: poderá o Partido Democrata inclinar-se à esquerda
e o Republicano à direita, atendendo a essa polarização? Ou,
no limite, esses partidos poderão ainda cindir-se, criando-se
um partido à esquerda do Partido Democrata e outro à direita
do Partido Republicano? A eleição de Donald Trump, em forte
contradição com a oligarquia do Partido Republicano, e o

18
Veja-se em https://news.gallup.com/poll/219953/perceived-need-third-ma-
jor-party-remains-high.asp. Acesso em: 10 jan. 2018.
19
Veja-se em https://news.gallup.com/poll/1597/confidence-institutions.
aspx. Acesso em: 10 jan. 2018.

107
Carlos Eduardo Martins

expressivo desempenho da candidatura de Bernie Sanders são


indicativos das profundas tensões que se desenvolvem no sistema
bipartidário estadunidense. Não surpreende que a gestão de
Trump assuma com muita ênfase as políticas de banimento de
imigrantes e principalmente contra mexicanos, uma vez que o
eleitorado branco estaduniden-se perde o seu poder relativo,
sobretudo, para os latinos, e estes têm concentrado o seu voto
nos candidatos do Partido Democrata.

A ascensão da China e os Brics: formação de um


novo bloco histórico?
Entre o século XIX e metade do século XX, a queda da
participação da Ásia no produto mundial foi drástica e se deu em
benefício da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Entre 1820-
1950, a participação da Ásia caiu de 56,2% para 15,5% do PIB
mundial, enquanto a da Europa Ocidental e Estados Unidos se
elevou de 25,4% até 56,9% no mesmo período. Especificamente a
China sofreu uma queda de 32,9% para 4,5% que foi interrompida
em 1950, elevando-se discretamente para 4,6% em 1973, enquanto
a participação da Índia continuou a cair, reduzindo-se de 4,2% para
3,1% entre 1950-1973, tomando-se como referência o patamar de
16%, em 1820. A industrialização per capita caiu drasticamente no
século XIX, cerca de 6 vezes na Índia, 3 vezes no terceiro mundo
e 2 vezes na China, ao passo que se multiplicou por 4 no Reino
Unido entre 1830-1900. O auge da civilização capitalista ocidental
atlantista deu-se entre 1820-197020.
A Revolução Socialista maoísta interrompeu essa queda,
impulsionando a industrialização, a reforma agrária, os
investimentos em saúde e educação e um processo de acumulação
sem despossessão. Todavia, a excessiva centralização administrativa
dos processos produtivos pelo Estado, a tentativa de impor
grandes escalas de produção sem base tecnológica correlata,
a coletivização forçada e a forte transferência de excedentes do
campo à indústria geraram má utilização e enormes desperdícios
de recursos, limitando o alcance do desenvolvimento chinês.

20
Ver Kennedy (1987) e Maddison (2001).

108
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

A ofensiva da Revolução Cultural contra a burocratização do


Estado e a monopolização do poder político foram reprimidas,
mas encontraram uma resposta no período de Deng Xiao Ping
na descentralização administrativa dos processos produtivos, que
ampliou a autonomia decisória das populações locais, transferindo
poder empresarial do Estado às comunidades, mantendo-se,
todavia, a estrutura centralizada do poder político.
Arrighi (2008), ao analisar o processo de ascensão da China
na economia mundial em Adam Smith em Pequim, indica como
chave para isso a revolução industriosa. Esta, diferentemente da
Revolução Industrial que separava o trabalhador dos meios de
produção, substituindo-o pelo capital fixo e a maquinaria, investiu
na elevação das qualificações e num arranjo tecnológico intensivo
em uso do trabalho. A revolução industriosa articulou-se com a
longa duração da Revolução Socialista chinesa que se fundamentou
no campesinato e na linha de massas do Partido Comunista e em
investimentos sociais, como saúde e educação, mas necessitou
da autonomia gerencial para desenvolver-se. O estabelecimento
do sistema de responsabilidade familiar na agricultura, a criação
das towership and villages enterprises (TVEs) – empresas comunais
agrícolas e industriais – produziram os estímulos para o uso do
trabalho qualificado e o desenvolvimento da atividade gerencial
com relativa autonomia. A isso articularam-se a promoção, pelo
Estado, da internalização dos capitais da diáspora chinesa, o
desenvolvimento por este de setores estratégicos e de joint ventures
com o capital estrangeiro para transferência de tecnologia,
mediante participação significativa no controle decisório. O PIB
chinês subiu de 5,1% a 7,2% do PIB mundial entre 1978-1986
e, desde então, a China aprofundou sua vinculação ao mercado
internacional, elevando as exportações de 10% para 39% do PIB
entre 1986-2006.
Durante esse período, a China aproximou-se fortemente
dos Estados Unidos, aspirando à condição de G-2. Desvalorizou
sua moeda e a fixou ao dólar; aproveitando-se da elevação do
valor do iene, criou gigantescos superávits comerciais, financiou
uma parte crescente da dívida norteamericana, comprando
títulos do FED, e desenvolveu processos de acumulação por
despossessão mediante a diminuição radical do emprego público

109
Carlos Eduardo Martins

e a expropriação da terra, tornando-a urbana por determinação


estatal. O coeficiente de Gini elevou-se de 0,30, em 1978, para
0,49, em 2008, e a participação da China no PIB mundial alcançou
17,4% neste último ano. A economia chinesa assumiu forte perfil
industrial, respondendo por 15% da indústria mundial e 50%
do PIB nacional21. Estruturou-se um setor produtivo baseado
num segmento estatal que compreende aproximadamente 30%
do PIB industrial (telecomunicações, petróleo e gás, geração
e distribuição de energia, aviação civil, construção naval e
defesa); um segmento de joint ventures sob forte presença do
Estado mediante participação acionária, presença nos conselhos
decisórios, controle do crédito, encadeamentos tecnológicos
(maquinarias, automóveis, tecnologias da informação, P&D,
química, metais básicos, aço e exploração geológica); e outro
segmento de pequenas e médias empresas em que se destacam
as TVEs, que foram quase totalmente privatizadas, resultando
em casos de insider privatization, em que os gerentes se tornaram
seus proprietários, a partir de estímulos governamentais22.
Todavia, a crise mundial de 2008 colocou em xeque
esse modelo e sinalizou seus importantes limites estruturais:
a vinculação prioritária ao mercado norteamericano tornou
a China cada vez mais vulnerável às suas instabilidades,
arriscando-se a importar suas crises; a elevação da desigualdade
pressionou no sentido da busca permanente de níveis elevados
de crescimento econômico para reduzir as tensões sociais que
vão se acumulando; o alto grau de concentração industrial elevou
a dependência de commodities aumentando a vulnerabilidade
externa e a exposição ao seu ciclo de preços, ao tempo que
impulsionou os desequilíbrios macroeconômicos internacionais;
e o alto nível de poluição provocado pela concentração industrial
e altas taxas de crescimento degradou as condições de vida e
violou o desenvolvimento sustentável. A ameaça de internalização
da crise mundial de 2008, com epicentro no eixo atlantista, fez o
governo chinês iniciar uma revisão desse modelo de expansão,
priorizando o mercado interno. Para isso, estabeleceu um pacote
fiscal anticrise equivalente a 9% do PIB, que impulsionou gastos
21
Veja-se OECD (2013).
22
Veja-se Martins (2013).

110
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

públicos orientados à infraestrutura, inovação, habitação, apoio à


agricultura, saúde e seguridade social; valorizou o yuan para conter
as exportações; elaborou o 12º plano quinquenal que se propõe a
impulsionar a transição de uma economia industrial baseada no
crescimento quantitativo para outra de crescimento qualitativo,
fundada na construção de uma economia de serviços vinculada
à alta tecnologia industrial, à ciência, à promoção do bemestar, à
diminuição da concentração de renda, à sustentabilidade e redução
do uso de combustíveis fósseis; e formalizou o estabelecimento do
Brics, que criou outro foco de expansão para a política externa
chinesa que se vincula à construção de uma força internacional
centrada na aliança entre países com forte vocação continental e
com grande projeção para o Sul, com expectativas e potencialidade
de afetar em médio ou em longo prazo o alinhamento geopolítico
internacional e suas estruturas de poder.
A Carta de Fortaleza, resultado da VI Cúpu la dos Brics,
afirmou que esses países estão empenhados na construção de um
marco intergovernamental inclusivo, transparente e participativo,
com uma agenda de desenvolvimento universal e voltada para a
erradicação da pobreza. Estabeleceu a criação de um novo banco
de desenvolvimento, dedicado a ultrapassar os problemas de
financiamento que os países emergentes e em desenvolvimento
enfrentam para resolver questões de infraestrutura. Respaldou o
acordo de comércio e investimento em moedas locais, formalizado
pelos Brics, em 2012, e propôs swaps de divisas como mecanismo
para limitar o uso do dólar. Afirmou a importância das empresas
estatais, da cooperação e do intercâmbio internacional entre elas,
bem como das pequenas e médias empresas, para a promoção
do desenvolvimento. Assumiu particular preocupação com o
desenvolvimento de infraestrutura e da indústria na África.
Estabeleceu, ainda, um fundo de estabilização contra ataques
especulativos internacionais e fez fortes críticas ao Banco Mundial
e ao FMI por não democratizarem suas estruturas decisórias e
seus sistemas de cotas, considerando a meta de erradicação da
pobreza extrema inalcançável nesses termos. Propôs a reforma
do Conselho de Segurança para que Brasil, Índia e África do
Sul pudessem jogar um papel mais decisivo nas Nações Unidas.
Afirmou que a segurança é um bem coletivo e que nenhum Estado

111
Carlos Eduardo Martins

deve fortalecer sua segurança em detrimento dos demais. A Carta


assumiu posições antiimperialistas, defendendo uma solução
não militar para a crise política na Síria, o estabelecimento de
uma zona livre de armas nucleares e de destruição em massa
no Oriente Médio e a soberania de um Estado Palestino com
base nas linhas de 4 de junho de 1967, convivendo pacificamente
com Israel. Assumiu a preocupação com as crises humanitárias e
políticas na África, no Oriente Médio e no Afeganistão, propondo
a mediação das Nações Unidas e de mecanismos negociados e
consensuais de solução.
Abre-se, portanto, um espaço de acumulação de poder capaz de
retomar o espírito de Bandung, ancorado em bases materiais muito
mais poderosas, impulsionado pela ascensão chinesa na primeira
década do século XXI, como já mencionava Arrighi (2008 e 2010)
ao analisar a emergência dos países do Sul23. Os Brics apresentam
uma agenda que: a) propõe um giro dos investimentos financeiros
para os produtivos, o que, no limite, pode ameaçar os lucros
monopólicos ao pressionar para baixo os preços das mercadorias;
b) constrói marcos intergovernamentais que envolvem diretamente
40% da humanidade e que podem ampliar-se para o Sul, criando
possibilidades muito menos assimétricas de relação entre os poderes
econômicos e sociais que as impulsionadas globalmente pelas
potências marítimas; c) fortalece um padrão de desenvolvimento
fortemente apoiado em empresas estatais e pequenas e médias
empresas, de caráter inclusivo e universalista; d) questiona a
hegemonia atlantista na economia mundial materializada no
controle do sistema de Bretton Woods e ONU, no monopólio
financeiro e tecnológico de suas burguesias e no imperialismo;
e) impulsiona um padrão de política externa anti--imperialista,
baseado nos princípios da soberania, autodeterminação dos povos,
solução negociada de conflitos.
Entre os fatores que impulsionam os Brics, como embrião
de um novo bloco histórico territorialista capaz de disputar o
poder no sistema mundial, num período de caos sistêmico,
estão: a posição similar de sua população em termos de renda
per capita, próxima da média da economia mundial; o seu amplo
potencial de mercado interno e regional como fator de expansão;
23
Ver Arrighi (2008 e 2010).

112
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

o fato de terem sido alvos da expansão imperialista das potências


atlantistas, o que limitou sua vocação regional; a forte presença do
nacionalismo e das esquerdas como fator interno de legitimação
popular desses Estados e no conjunto dos países periféricos e
semiperiféricos; e o interesse dessas forças nacionalistas e de
esquerda em quebrar os monopólios tecnológicos, financeiros e
comerciais mundiais. Tais elementos respondem pelo alto grau de
convergência histórica desses países nas votações na Assembleia
das Nações Unidas; cerca de 80% delas, entre 1974-2008, em
particular em temas como multilateralismo, defesa da soberania
nacional, direitos de autodeterminação e democratização dos
poderes internacionais24.
Todavia o que impulsiona o bloco territorialista são as lutas
internas dentro de cada Estado. São elas que poderão fazê-lo
cumprir ou não a sua vocação estratégica no sistema mundial.
Se, na transição para a hegemonia britânica, as lutas intraestatais
foram condicionadas e precedidas pelas lutas interestatais, na
transição para a hegemonia estaduniden-se, articularam-se a estas,
desempenhando a polarização fascismo ou socialismo um papel
importante nesse processo. Numa futura transição para outro
sistema de poder, as lutas intraestatais tendem a ser protagônicas
e condicionantes em relação às lutas intraestatais, sendo
decisivas para suas formas e desenvolvimento25. A explicação
para tal mudança está no papel crescente que desempenham
os trabalhadores e os movimentos sociais na longa duração do
desenvolvimento capitalista, pressionando o Estado e o sistema
político. Portanto, será a luta de classes no interior desses Estados
e das potências marítimas que darão o formato da transição e
da bifurcação que precede o novo sistema de poder. As crises
sinalizadoras – indicadas por Arrighi como típicas do esgotamento
da fase de expansão – são os momentos em que se configuram
os fundamentos de um futuro bloco de poder a disputar a
transição sistêmica. Na crise sinalizadora britânica se evidenciou
a emergência dos protecionismos (Guerra da Secessão, unificação
alemã e Revolução Meiji) que disputariam posteriormente a
sucessão britânica, panorama ao qual se acresceria o peso decisivo
24
Veja-se Ferdinand (2014).
25
Ver Arrighi (1994), Arrighi e Silver (2001), Martins (2011b).

113
Carlos Eduardo Martins

da Revolução Soviética; na crise sinalizadora estaduniden-se se


evidenciou, a partir da derrota norte--americana no Vietnã, a
aliança entre povos do sul e os movimentos de massa no principal
centro atlantista para derrotar politicamen-te o projeto de
dominação militar imperialista e afirmar uma revolução social
na periferia. Tal precedente histórico indica que o territorialismo
poderá se afirmar como um bloco histórico que articule as lutas
dos trabalhadores das periferias, semiperiferias e centros contra a
produção de riqueza oligárquica, assimetrias e guerras no sistema
mundial. Seu epicentro deverá estar na periferias e semiperiferias,
em particular nas potências emergentes que as articulem, mas
deverá se desdobrar aos grandes centros europeus e atlantistas,
alcançando as massas de trabalhadores superexplorados, os
migrantes e os setores médios que sofrem com o avanço da
desigualdade, que deverá se aprofundar nesta década, caso se
esgote efetivamente, como postulamos, a fase expansiva do ciclo
de Kondratiev. Ao priorizar os mercados internos, a erradicação
da pobreza, os regionalismos, suas alianças e a democratização
do poder mundial, o territorialismo constitui-se como uma força
com alto potencial de contradição com a dinâmica do lucro
extraordinário na economia mundial que estrutura a civilização
capitalista.
Entretanto, é preciso ter cuidado e evitar os determinismos
que não exprimem a complexidade dos períodos caóticos de
bifurcações históricas para os quais nos aproximamos: caso
prevaleçam os interesses competitivos e oligárquicos de grupos
e frações de classe que dirigem os Estados mais dinâmicos dos
Brics, como China e Rússia; e caso prevaleçam as burguesias
dependentes e sua presença na estrutura estatal de Brasil,
África do Sul e Índia; dificilmente esse bloco histórico poderá se
formar. Nesse contexto, a ascensão da China representará uma
reacomodação num sistema de produção de riqueza oligárquica,
que funciona como um jogo de soma zero, regulando ascensões
e descensos, cuja resultante lógica, como compensação, poderá
ser a queda de países semiperiféricos e periféricos para as
profundezas da periferia.
O golpe de Estado no Brasil, o cerco político e econômico
aos governos nacionais-populares da região impulsionados pela

114
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

ofensiva neoconservadora na América Latina e sua articulação


ao grande capital estadunidense fragilizam a alternativa
geopolítica global lançada pelos Brics, a partir de 2009, quando
realizaram sua primeira conferência internacional, mas não
configuram uma vitória definitiva. A ofensiva neoconservadora
na América Latina aprofunda a crise do capitalismo dependente
da globalização neoliberal e se inscreve em um período mais
amplo de confrontações que configuram o caos sistêmico que
deverá predominar nas próximas décadas, quando as lutas sociais
deverão se agudizar e assumir forte dimensão internacionalista,
com os cenários nacionais em disputa, alcançando alto grau de
interpenetração e influência recíproca.

Conclusão
Neste artigo, buscamos apontar as especificidades da
conjuntura contemporânea a partir da análise das tendências
de longa duração da economia mundial. Destacamos a crise de
hegemonia do eixo atlantista da economia mundial liderado pelos
Estados Unidos, que se estende ao centro e ao norte da Europa
Ocidental. Essa crise se aprofunda durante a fase expansiva do
ciclo de Kondratiev vigente, iniciada em 1994 e que deverá se
esgotar nos próximos anos. Consideramos que a fase expansiva
do atual ciclo de Kondratiev tem sido chave para amortecer as
contradições impulsionadas pela revolução científico-técnica e
pela crise de hegemonia dos Estados Unidos. O seu esgotamento
deverá abrir um período de caos sistêmico e de crise da civilização
capitalista, e sua principal expressão, o liberalismo político
global, que impulsionará as lutas de classes em âmbito nacional
e transnacional.
Esse período de caos sistêmico que se avizinha lança imensas
incertezas e projetos políticos em confronto. Entre eles, podemos
destacar o da restruturação do velho eixo atlantista a partir do
fortalecimento do imperialismo político para controlar as pressões
competitivas oriundas da globalização e as da organização da
classe trabalhadora; e o da projeção da China como um dos pilares
de uma nova ordem mundial que se dirige aos hinterlands e ao
Sul global para a formação de um novo eixo geopolítico, capaz

115
Carlos Eduardo Martins

de refundar o sistema mundial na direção de uma civilização


planetária, comprometida com a pluralidade, maior centralização
política e a imposição de fortes controles estatais sobre a acumulação
de capitais. De grande importância serão a organização e as lutas
da classe trabalhadora para que esses controles se exerçam para
impulsionar os serviços públicos em saúde, educação, lazer,
infraestrutura e preservação dos ecossistemas. Esses grandes
alinhamentos tendem a definir limites e as possibilidades que o
Brasil e a América Latina encontrarão nos próximos anos para
desenhar seus caminhos. A soberania e a democracia popular e
participativa tornam-se cruciais para os escolhermos.

Referências
ARRIGHI, G. O longo século XX de Giovanni. São Paulo: Editora Unesp,
1994.
______. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008..
______. Zhang Lu Beyond the Washington consensus: a new Bandung? 2010.
Disponível em: http:// krieger.jhu.edu/arrighi/wp-content/uploads/
sites/29/2012/08/Arrighi_and_Zhang_New-Bandung_3-16-09_version.
pdf. Acesso em: 10 jan 2018.
ARRIGHI, G.; SILVER, B. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial.
Rio de Janeiro: Contraponto (edição original de 1999, por Minnesotta
Press), 2001.
BOLT, J.; VAN ZANDEN, J. L. The Maddison Project: collaborative research
on historical national accounts. Maddison Project Datyabase, version 2013.
The Economic History Review, v. 67, n. 3, pp. 627-651, working paper, 2014.
CASSIOLATO, J. E.; VITORINO, V. BRICS and Development Alternatives.
Londres: Anthen Press, 2011.
COUNCIL OF ECONOMIC ADVISERS. Economic Report of The President.
Washington: United States Government Printing Office. 2014.
FERDINAND, P. Rising powers at the UN: an analysis of the voting beha-
viour of the BRICS in the General Assembly. Journal Third World Quarterly,
v. 35, n. 3, pp. 376-391, 2014. Disponível em: https:// www.tandfonline.
com/doi/abs/10.1080/01436597.2014.893483. Acesso em: 10 jan. 2018.
JIADONG, C. et al. The trend of the Gini coeficient em China. Manchester:
BWPI Working Paper Center, 2010.
KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1987.

116
O sistema-mundo capitalista e os novos alinhamentos geopolíticos no século XXI:
uma visão prospectiva

KUNG, J.; LIN, Y. The decline of towership and village enterprise in


China`s economic transition. World Development, v. 35, n. 4, Elsevier, 20-7.
MARTINS, C. E. “A América Latina e a conjuntura mundial: conjuntura,
desenvolvimento e prospectiva”. In: VIANA, A.; BARROS, P.; CALIXTRE,
A. (Orgs.). Governança global e integração na América do Sul. Brasília: Ipea,
2011a.
______. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São
Paulo: Boitempo, 2011b.
______. “A Geopolítica Mundial e a economia política no século XXI: hege-
monia, BRICS e América Latina”. In: FLORES, C. S.; MARTINS, C. E.
Nuevos escenarios para la integracion en América Latina. Santiago de Chile:
Editorial Arcis, 2013.
MADDISON, A. The World Economy. Paris: OECD, 2001.
McNALLY, C. (Org.). China's emerging political economy: capitalism in the
dragon's lair. Nova York: Routledge, 2008.
MORAES, I. N. Desenvolvimento econômico, distribuição de renda e pobreza
na China contemporânea. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2011.
NATIONAL BUREAU OF STATISTICS OF POPULAR REPUBLIC OF
CHINA. China Statistical Yearbook. China Statistics Press. Oct. 2010, 1032
(China Statistical Yearbook Series).
OECD. Historical Statistics: 1960-1997. Paris: OECD, 1998.
______. Historical Statistics: 1970-2000. Paris: OECD, 2001.
______. OECD Economic Surveys: China. Paris: OECD, 2010.
______. OECD Economic Surveys: China. Paris: OECD, 2013.
______. OECD Economic Outlook, v. 2014, n. 1. Disponível em: https://
www.oecd-ilibrary.org/ economics/oecd-economic-outlook-volume-
2014-issue-1_eco_outlook-v2014-1-en. Acesso em: 10 jan. 2018.
PIKETTY, T. Capital in the Twenty-First Century. Cambridge: Harvard Univer-
sity Press, 2014.
UNCTAD – UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVE-
LOPMENT. Disponível em: https:// unctad.org/en/Pages/statistics.aspx.
Acesso em: 10 jan. 2018.
YONGQIANG, L. An overview of township and village enterprises in
China during 1949-2009. Proceedings of the 2nd International Confe-
rence on Corporate Governance, 2009. Disponível em: http://www.
une.edu.au/business-school/research/corp-gov-conf/papers/li-tves.pdf.
Acesso em: 10 jan. 2018.

117
Financierización en América Latina:
implicancias de la integración
financiera subordinada1

Annina Kaltenbrunner2
Juan Pablo Painceira3

Introducción

E n este capítulo se analiza el surgimiento de nuevas


prácticas, comportamientos y relaciones financieras en
las economías capitalistas emergentes utilizando el ejemplo de las
economías latinoamericanas, en particular el Brasil. Se argumenta
que en las economías capitalistas emergentes, estas recientes
transformaciones financieras, que revelan tendencias similares a
los fenómenos de financierización observados en las economías
capitalistas centrales, están determinadas fundamentalmente por
su integración subordinada a un sistema monetario y financiero
internacional financierizado y estructurado. Por otra parte, esas
mismas tendencias de financierización refuerzan la integración
financiera subordinada de las economías capitalistas emergentes
y sus asimetrías con las economías capitalistas centrales.
En este capítulo se realizan cuatro aportes a la literatura
sobre financierización, haciendo hincapié en la posición de los
países emergentes.
En primer lugar, si bien hay numerosos trabajos sobre
financierización en las economías capitalistas centrales, los
análisis sistemáticos de las distintas manifestaciones y el carácter

1
Capítulo publicado originalmente no livro “ Estudios sobre fnancierización
en América Latina” , editado por Martín Abeles, Esteban Pérez Caldentey y
Sebastián Valdecantos. Libros de la CEPAL, N° 152 (LC/PUB.2018/3-P),
Santiago, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2018.
Available from https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/435
96/6/S1700173_es.pdf.
2
Escuela de Negocios de la Universidad de Leeds (Inglaterra).
3
Banco Central del Brasil.

119
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

posiblemente distintivo de las tendencias de financierización en


las economías capitalistas emergentes aún son escasos. En un
número pequeño pero cada vez mayor de estudios se documentan
cambios en las prácticas y las relaciones financieras de los agentes
económicos de las economías capitalistas emergentes similares a
los observados en las economías capitalistas centrales (ERTÜRK,
2003; DEMIR, 2009a Y 2009b; PAINCEIRA, 2008; RETHEL,
2010; DOUCETTE y SEO, 2011; ARAÚJO, BRUNO y PIMENTEL,
2012; CORREA, VIDAL y MARSHALL, 2012; ERGÜNEŞ,
2012; LEVY-ORLIK, 2012; BONIZZI, 2013; GABOR, 2013;
POWELL, 2013; PROYECTO FESSUD, 2015; KARACIMEN,
2014). Sin embargo, no muchos de esos aportes se concentran
explícitamente en las posibles diferencias que la financierización
presenta en ambos tipos de economías. Lapavitsas (2009a,
2009b y 2014), Painceira (2011) y Powell (2013) señalaron la
naturaleza posiblemente subordinada de la financierización en
las economías capitalistas emergentes. Becker y otros (2010) y,
más recientemente, Rodrigues, Santos y Teles (2016) destacaron
la naturaleza específica de los procesos de financierización en la
semiperiferia. Este trabajo contribuye a esa literatura emergente.
En lugar de preguntar si el fenómeno observado en las economías
capitalistas emergentes puede de hecho clasificarse como
financierización y, de ser así, si asume una forma característica,
en este trabajo se pone de relieve el proceso que dio lugar a las
recientes transformaciones financieras en dichas economías. Se
argumenta que la financierización ofrece una valiosa herramienta
analítica para establecer un punto de referencia general de
las transformaciones financieras, cuyas manifestaciones,
especificidades y contradicciones pueden analizarse en contextos
institucionales, macroeconómicos, espaciales y sociales
específicos. En esta línea, se sigue la interpretación relativamente
amplia de Lapavitsas (2014), que define la financierización como
los cambios estructurales en las relaciones, prácticas y necesidades
financieras de los agentes económicos clave: bancos, hogares
y corporaciones no financieras. Se afirma que este proceso es
diferente en las economías capitalistas emergentes, debido a la
mayor importancia de la economía internacional y a la manera
específica en que esas economías se integran en ella.

120
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

En segundo lugar, al subrayar el papel impulsor de la


economía internacional en la determinación de las recientes
transformaciones financieras en las economías capitalistas
emergentes, en este trabajo se responde a las peticiones
de integración de los análisis de la financierización con los
estudios sobre la globalización financiera y los flujos de capital
transfronterizos (GUTTMANN, 2008; MONTGOMERIE, 2008;
FRENCH, LEYSHON y WAINWRIGHT, 2011; CHRISTOPHERS,
2012). Christophers (2012) muestra los cambios potencialmente
fundamentales que una perspectiva internacional aporta al
análisis de la financierización y señala la importancia de tener
en cuenta la posición de los países en los flujos internacionales
de valor. Este análisis sigue esa línea4. Asimismo, se destaca la
relación bidireccional entre esos dos procesos. Mientras que
la integración internacional transforma el sistema financiero
nacional en las economías capitalistas emergentes, esas mismas
transformaciones facilitan y profundizan aún más la integración
financiera internacional.
En tercer lugar, para analizar la relación entre la integración
financiera subordinada de las economías capitalistas emergentes
y la financierización se recurre al marco analítico de las
jerarquías monetarias internacionales. Se presenta un debate
multidisciplinario de la literatura sobre este tema y se muestra
que diferentes disciplinas, en particular la economía política
internacional y la economía heterodoxa, pueden contribuir
a la comprensión de los procesos financieros y monetarios
asimétricos. Al basar el análisis en las relaciones monetarias
internacionales, se proporciona un fundamento monetario
explícito para el estudio de la financierización — un elemento que
curiosamente falta en gran parte de los trabajos sobre el tema
(CHRISTOPHERS, 2015). Por último, se presentan más detalles
sobre la tesis de que la financierización consolida y exacerba
el desarrollo desigual (BOND, 1998; PIKE y POLLARD, 2010;
4
Sin embargo, este análisis difiere del de Christophers (2012). En lugar de
analizar la interconexión mundial entre la oferta y la demanda y los flujos in-
ternacionales de valor, se examina la forma en que las estructuras económicas
y financieras nacionales están condicionadas por su integración asimétrica en
el capitalismo financierizado. Más que la creación de valor, el foco principal de
este trabajo es el sistema financiero en sí (la esfera de circulación).

121
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

SOKOL, 2017). Tradicionalmente, el papel de la integración


internacional en la exacerbación de las diferencias espaciales
se ha analizado en el contexto de la economía real, a saber, los
procesos de comercio e inversión extranjera directa. En este
caso, se procura extender dichos estudios a la nueva realidad de
los mercados internacionales financierizados.
Para ilustrar este argumento se presentan las características
generales de dos procesos mediante los cuales la creciente
integración financiera internacional y su naturaleza subordinada
en los países latinoamericanos han determinado los recientes
cambios en las prácticas y las relaciones financieras de los agentes
económicos. El primer canal corresponde al fenómeno de la
acumulación de reservas y la manera en que ha modificado el
comportamiento de los bancos y los hogares. El segundo es la
constante vulnerabilidad de América Latina a los grandes y
repentinos movimientos de capitales y del tipo de cambio (en gran
medida independiente de las condiciones económicas nacionales),
que tuvo considerables repercusiones en la interacción de las
empresas latinoamericanas con los mercados financieros.
El capítulo se divide en tres secciones, además de esta
introducción. En la primera se reseña brevemente la literatura
sobre financierización y el sistema monetario internacional —
donde existen distintas jerarquías.
En la segunda sección se describe el estado de la integración
financiera de América Latina, en particular del Brasil. Asimismo
se detalla la manera en que esta integración financiera
internacional y su naturaleza subordinada han condicionado
el comportamiento financiero de los agentes económicos en
algunos países latinoamericanos, especialmente en el Brasil. En
la tercera y última sección se presentan las conclusiones.

A. Financierización y dinero mundial:


la naturaleza jerárquica del sistema monetario
internacional
En la actualidad existe una amplia literatura sobre
financierización en las economías capitalistas centrales. Los

122
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

fenómenos investigados incluyen el incremento de la tenencia


de activos financieros y la financiación del mercado por las
grandes corporaciones no financieras (STOCKHAMMER, 2004;
ORHANGAZI, 2008), la importancia de la creación de valor para
el accionista (LAZONICK y O’SULLIVAN, 2000), la participación
cada vez mayor de los hogares en relaciones de deuda predatorias
(AALBERS, 2008; MONTGOMERIE, 2009; DYMSKI, 2010), el
cambiante patrón de ingresos de los bancos — al pasar de depósitos
y préstamos a honorarios y comisiones — (ERTÜRK y SOLARI,
2007; DOS SANTOS, 2009), el aumento de la financiación de los
bancos mediante los mercados en lugar de la toma de depósitos
(LAPAVITSAS, 2009a y 2009b) y la financierización de la vida
diaria (LANGLEY, 2008). Algunos autores también han señalado
la diversidad de estas nuevas prácticas y relaciones financieras
(ENGELEN, KONINGS y FERNANDEZ, 2010; LAPAVITSAS y
POWELL, 2013).
Tradicionalmente, el análisis de la financierización de las
economías capitalistas centrales se ha realizado en el marco del
Estado-nación. Esto se aplica tanto a los elementos característicos
de la financierización como a los factores que los han determinado5.
Con respecto a los primeros, sorprende la escasez de análisis
del aspecto internacional de la financierización, que con mayor
frecuencia se asocia con la globalización financiera, que a su
vez se equipara a un incremento en los flujos transfronterizos
internacionales (STOCKHAMMER, 2010)6. Con respecto a
los últimos, las fuentes de la financierización se han situado
principalmente en eventos económicos nacionales, ya sea en el
estancamiento del capitalismo tardío, la decreciente rentabilidad
y la consiguiente contracción de la demanda — que requerían
5
Algunos autores han señalado el papel de la creciente volatilidad del tipo de
cambio en la articulación cada vez mayor de los agentes económicos en los mer-
cados financieros (entre ellos Helleiner, 1994). No obstante, esas observaciones
no se enmarcan en un análisis sistemático de la manera en que la integración
financiera internacional determina los procesos de financierización nacionales.
6
Sin embargo, esto plantea preguntas sobre la novedad del proceso. Varios au-
tores han argumentado que nos encontramos en una segunda o tercera ola de
globalización. Además, al tratar la globalización financiera como una dimensi-
ón meramente cuantitativa se descuidan los cambios cualitativos fundamentales
que se han registrado en los mercados financieros y destacado en la literatura
sobre financierización.

123
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

una serie de actividades financieras para la continuación del


sistema — (MAGDOFF y SWEEZY, 1972 y 1987; ARRIGHI, 1994;
BRENNER, 2004) o las medidas gubernamentales desreguladoras
que desataron las fuerzas de la finanza y condujeron a un aumento
sin precedentes de los mercados y los actores financieros (BOYER,
2000; AGLIETTA y BRETON, 2001; DUMÉNIL y LÉVY, 2004;
STOCKHAMMER, 2004; CROTTY, 2003; ORHANGAZI, 2008).
Sin embargo, siguiendo a Christophers (2012), solo se podrá
comprender la financierización en forma precisa si se aborda la
naturaleza internacional de las finanzas capitalistas. Según este
autor, toda identificación de cambios estructurales fundamentales
en el capitalismo, como la financierización, debe enmarcarse
a escala internacional — o, como minimo, debe examinar
criticamente toda la gama de flujos internacionales de capital en
los que se insertan las economias nacionales individuales, como
los Estados Unidos (pág. 279).
El análisis de Christophers hace eco de trabajos anteriores
de Montgomerie (2008), Guttmann (2008) y French, Leyshon y
Wainwright (2011), quienes señalaron la falta de una consideración
explicita del papel del sistema financiero internacional y las redes
financieras mundiales en los fenómenos de financierización.
French, Leyshon y Wainwright (2011) afirman que, al priorizar el
Estado-nación como ámbito de la actividad económica, no se tiene
en cuenta de manera adecuada el importante papel desempeñado
por el surgimiento en la década de 1980 de un nuevo sistema
financiero internacional, basado en el capitalismo financiero
desintermediado y securitizado, y dirigido principalmente a
través de Nueva York y Londres (pág. 11). Montgomerie (2008)
deja muy claro que, cuando se tienen en cuenta las redes
financieras mundiales dentro y a través de las cuales tiene lugar la
financierización, las relaciones de poder y desigualdad — es decir
las condiciones en que la inclusión en esas redes se lleva a cabo —
cobran protagonismo. De acuerdo con la autora, los Estados Unidos
y el Reino Unido son poderosos centros financieros mundiales
que ocupan un lugar único dentro de la economia mundial. Lo
que ocurre en los mercados financieros angloamericanos tiene
profundas ramificaciones en el resto del mundo, un punto que a
menudo no se tiene en cuenta en la literatura sobre financierización.

124
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Por ejemplo, los diferentes complejos politicos e institucionales


permiten que las finanzas globales proliferen mediante relaciones
desiguales entre los nuevos mercados emergentes y los centros
financieros mundiales bien establecidos (pág. 248).
En comparación con la numerosa serie de trabajos sobre la
financierización en las economias capitalistas centrales, el análisis
de dicha tendencia en las economias capitalistas emergentes
todavia es relativamente limitado. En la literatura emergente se
señalan transformaciones financieras similares a las observadas
en las economias capitalistas centrales. Por ejemplo, Rethel
(2010), Powell (2013), Akkemik y Özen (2014) y Correa, Vidal
y Marshall (2012) muestran el aumento de la participación de
las corporaciones no financieras de las economías capitalistas
emergentes en los mercados financieros. Kalinowski y Cho (2009)
y Seo, Kim y Kim (2012) destacan la importancia de la creación de
valor para el accionista en la República de Corea. Gabor (2010) y
Karacimen (2016) examinan la creciente integración de los hogares
de las economías capitalistas emergentes en los mercados de
crédito mediante préstamos al consumo y a la vivienda. Por último,
algunos autores han observado un cambio en el comportamiento
de los bancos de las economías capitalistas emergentes, que han
sustituido los depósitos (de los hogares) por las financiación del
mercado (DOS SANTOS, 2009; PAINCEIRA, 2011; BPI, 2015).
Sin embargo, en esos trabajos se investigan sobre todo
fenómenos de financierización específicos y no los posibles
factores que impulsan y determinan esas tendencias7. Algunos
autores mencionan el importante papel de la inserción de las
economías capitalistas emergentes en la economía mundial, pero
no examinan de manera explícita y sistemática la manera en que
dicha inserción interactúa con los fenómenos de financierización
nacionales. Asimismo, muy pocos autores estudian explícitamente
si la financierización en las economías capitalistas emergentes
difiere de aquella en las economías capitalistas centrales y, de
ser así, en qué consisten las diferencias. Entre las excepciones se
7
Akkemik y Özen (2014) constituyen una excepción, pues investigan explícita-
mente los determinantes de la financierización en Turquía y muestran el impor-
tante papel que desempeña el ambiente macroeconómico de gran incertidum-
bre. Sin embargo, no vinculan este resultado con la posición asimétrica de las
economías capitalistas emergentes en el sistema capitalista mundial.

125
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

encuentran Lapavitsas (2009a, 2009b y 2014), Becker y otros (2010),


Painceira (2011) y Powell (2013), quienes señalan la naturaleza
peculiar y posiblemente subordinada de la financierización en las
economías capitalistas emergentes. Por ejemplo, Becker y otros
(2010) destacan los modelos de acumulación financierizada en las
economías capitalistas emergentes, que se basan en la dependencia
del capital financiero (a corto plazo), las altas tasas de interés y los
tipos de cambio sobrevaluados. Los autores también subrayan las
contradicciones de esos modelos, que se caracterizan por crecientes
déficits de cuenta corriente, deuda externa, desaceleración del
sector productivo y, en última instancia, crisis financieras. Más
recientemente, Rodrigues, Santos y Teles (2016) mostraron la
naturaleza específica de la financierización en la semiperiferia
europea mediante el ejemplo de Portugal.
Tradicionalmente, la integración internacional subordinada
y asimétrica de las economías capitalistas emergentes, que limita
las estrategias nacionales de desarrollo y autodeterminación
(FISCHER, 2015), se ha analizado en el contexto de las relaciones
comerciales y la inversión extranjera directa (al centro de las
cuales se encontraba la capacidad de desarrollar procesos
autónomos de innovación tecnológica) conforme tradiciones
teóricas como la teoría de la dependencia y el estructuralismo
(latinoamericano) (BARAN y SWEEZY, 1966; FRANK, 1967;
DOS SANTOS, 2003; MARINI, 1973; FURTADO, 1962;
PREBISCH, 1949)8. Sin embargo, estas relaciones económicas
“reales” han sido complementadas, si no superadas, por el
crecimiento de los mercados financieros internacionales y la
integración de las economías capitalistas emergentes en ellos.
Al igual que su integración en los mercados de productos,
estas relaciones financieras se han caracterizado por la
dependencia, la subordinación y las jerarquías9. Como destacan

8
Se trata de una literatura muy amplia que no puede abordarse de manera sa-
tisfactoria en este capítulo. Véanse resúmenes excelentes y debates críticos en,
por ejemplo, Chilcote (1978), Palma (1978), Vernengo (2006), Amaral (2012) y
Fischer (2015).
9
Algunos trabajos interesantes en los que se aborda la interacción entre las
relaciones de poder internacionales y las transformaciones financieras se en-
marcan en la literatura sobre el imperialismo estadounidense (por ejemplo,
HARVEY, 2003; PANITCH y KONINGS, 2009; PANITCH Y GINDIN, 2012).

126
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

los estructuralistas latinoamericanos, las vulnerabilidades y


limitaciones de las periferias son históricas, pues necesariamente
cambian y evolucionan con el tiempo en sinergia con el cambio
y la evolución en los centros (FISCHER, 2015, pág. 710).
Para analizar estas relaciones financieras internacionales
subordinadas, se recurre a la literatura sobre la estructura
jerárquica del sistema monetario internacional, a partir del
concepto de dinero mundial en la economía política marxista.
Después de abordar el dinero mundial, se pasa a la economía
política internacional y luego al enfoque poskeynesiano.
En la economía política marxista, la jerarquía monetaria
internacional y sus consecuencias pueden entenderse mediante la
categoría de dinero mundial (LAPAVITSAS, 2009a, 2009b y 2014;
PAINCEIRA, 2011; POWELL, 2013). De hecho, el dinero mundial
es un paso necesario en la evolución del dinero en el mercado
capitalista mundial (MARX, 1967; ITOH y LAPAVITSAS, 1999).
De acuerdo con Marx (1976), este “funciona como medio general
de pago, como medio general de compra y como materialización
social absoluta de la riqueza en general”. Los países acumulan un
medio de pago aceptable a nivel internacional para poder participar
y competir en los mercados internacionales (de comercio y de
capital). Esta categoría es importante para destacar que el acceso,
mediante operaciones comerciales o financieras, significa poder
en el mercado financiero mundial. En la historia del desarrollo
capitalista, la jerarquía en el sistema monetario internacional ha
sido apoyada (o respaldada) por la existencia del dinero mundial.
Cabe destacar que, en la tradición marxista, existe un vínculo
orgánico entre la producción y las operaciones financieras,
pues la acumulación de capital tiene en cuenta las esferas de
producción y circulación como un todo, en el que hay una relación
de interdependencia y dialéctica entre esos dominios. Está bien
establecido que, para Marx (1987), el sistema de crédito fortalece
el poder de concentración y centralización de capital, acelerando la
circulación de los productos básicos y el proceso de reproducción
Sin embargo, esos autores no analizan el impacto en las economías capitalistas
emergentes, sino la manera en que las transformaciones financieras recientes
han sido determinadas por el poder imperial estadounidense y lo han reforzado
(aunque está menos interesado en las transformaciones financieras recientes en
las economías capitalistas emergentes, Rude (2009) constituye una excepción).

127
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

en general. Además, la noción o concepto de desarrollo capitalista


desigual y combinado puede relacionarse directamente con
este aspecto en el sistema de crédito a escala mundial10. A este
respecto, se puede decir que hay una relación ontológica entre el
desarrollo del sistema monetario internacional (en particular, la
forma del dinero mundial) y el desarrollo desigual y combinado
en la acumulación capitalista mundial. En consecuencia, las
relaciones monetarias se vinculan con la acumulación capitalista,
ya sea a nivel nacional o internacional. Cuanto más se difunde
la acumulación capitalista en la economía mundial, más países
necesitan acceder a las reservas de dinero mundial (o, en su defecto,
a reservas internacionales) y esto, a su vez, tiene repercusiones en
las condiciones financieras nacionales (PAINCEIRA, 2011). Así,
en la economía política marxista el dinero mundial es un paso
necesario para (y de) la acumulación de capital internacional y su
acumulación una condición necesaria para participar en ella.
El dinero mundial apoya el mercado mundial y proporciona el
ímpetu organizador para la estructura institucional de la que carece
el mercado mundial. El mercado mundial es estructuralmente
diferente del mercado nacional. Tiene menos mecanismos
homogeneizadores de derecho, práctica institucional, costumbre y
regulación que el mercado nacional e incorpora relaciones de poder
y explotación nacional (LAPAVITSAS, 2006)11. En consecuencia,
el papel del dinero en el mercado mundial tiene un peso, una
significatividad y un sentido muy importantes. Por la misma razón,
el dinero mundial cristaliza las tensiones presentes en el mercado
internacional y se vuelve el foco de las crisis globales. En tiempos
de crisis, la contradicción entre los sistemas monetario y de crédito
se revela a medida que aumenta la demanda de dinero (como
dinero, no como capital). En palabras de Marx, “En tiempos de
10
Sobre la base del nuevo material de Marx (MEGA), Pradella (2013) argumen-
ta que la competencia capitalista a nivel mundial y la tendencia al desarrollo
desigual pueden inferirse directamente de los escritos de Marx. En este sentido,
la acumulación capitalista y la categoría de capital reflejan la tendencia del ca-
pital de los Estados principales al dominio universal (pág. 120), que es la base
de la teoría marxista del imperialismo desarrollada a comienzos del siglo XX,
principalmente con los aportes de Lenin y Hilferding.
11
El mercado mundial es la esfera universal de circulación del capital y de la fi-
nanza en particular. Permite la relación e interacción entre mercados nacionales
y es el lugar donde ocurren las crisis financieras en la era de la financierización.

128
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

estrechez, cuando el crédito se contrae o cesa del todo, el dinero se


contrapone súbitamente a las mercancías como único medio de pago
y verdadera existencia del valor” (MARX, 1987). Por ejemplo, las
crisis financieras de la década de 1990 en las economías capitalistas
emergentes se manifestaron como problemas de liquidez o
solvencia en dinero mundial, pues los países no podían cumplir con
sus obligaciones externas pendientes. Dado que no pueden emitir
dinero mundial, las economlas capitalistas emergentes asumen un
papel subordinado con respecto a la finanza internacional.
La configuración actual de las relaciones monetarias
internacionales se complica porque la moneda de un Estado-
nación (el dólar estadounidense) — y no el oro (como en la época
de Marx) — asume un estatus de dinero cuasimundial12. En
contraste con el patrón oro, en el que el oro era el dinero mundial
y las crisis capitalistas globales se caracterizaban por cambios
repentinos en las reservas de ese metal, en el sistema financiero
internacional contemporáneo la tenencia de dinero mundial
desempeña un papel más complejo. El oro (dinero mercancla) se
ha convertido en un instrumento de reserva de último recurso,
mientras que el dólar funciona como dinero cuasimundial. Este
papel del dólar resulta particularmente evidente en los momentos
de crisis. En el orden monetario internacional actual se observa
un incremento en la demanda de activos denominados en
dólares (dinero bancario), sobre todo de títulos de deuda pública
estadounidenses, que ha sustituido la demanda de oro.
El papel del dólar como dinero cuasimundial crea un vínculo
directo entre la esfera nacional del país emisor y la esfera financiera
internacional. La crisis de 2007-2008, por ejemplo, se convirtió en
una crisis financiera global debido a la relación entre las operaciones
financieras realizadas dentro del sistema financiero estadounidense
y el sistema financiero mundial. Así, a diferencia de los movimientos
en la época del oro, cuando no habla un grupo evidente de
12
Se utiliza el término dinero cuasimundial (en lugar de dinero mundial) para
describir al dólar porque no hay un acuerdo formal, como el que habla en la
época del oro, para que el dólar sea la reserva de valor global. Además, no exis-
te un mecanismo claro de ajuste internacional como el que se aplicaba durante
la vigencia del patrón oro. De acuerdo con Itoh (2006), uno de los principales
retos para la economía polltica ha sido, de hecho, explicar plenamente el papel
del dólar como dinero mundial.

129
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

beneficiarios en el sistema monetario internacional, en el orden


actual hay básicamente un solo país emisor del dinero mundial13.
Esto tiene considerables repercusiones en el funcionamiento de
la economía internacional y, aún más importante, ha servido para
mantener la naturaleza jerárquica del sistema monetario global. Sin
embargo, no hay en la economía política marxista un análisis claro
sobre el modo en que la posición de cada moneda nacional puede
variar en el sistema monetario internacional.
La noción de que las distintas monedas soberanas tienen
un estatus variable en el sistema monetario internacional es un
concepto central de la economía política internacional (COHEN,
1998; McNAMARA, 2008; HELLEINER y KIRSHNER, 2009).
Por ejemplo, Strange (1971) distingue entre divisas superiores,
maestras, negociadas y neutrales. Mientras que la divisa superior
es la líder indiscutible del sistema monetario internacional debido
a su atractivo económico, las divisas maestras y negociadas
mantienen un papel prominente a nivel internacional, ya sea
mediante coacción directa (por ejemplo, mediante relaciones
coloniales) o incentivos financieros y políticos. Las divisas
neutrales son económicamente atractivas pero no tienen los
medios para convertirse en divisas superiores (STRANGE, 1971;
HELLEINER, 2008; OTERO-IGLESIAS y STEINBERG, 2013)14.
En la literatura sobre economía política internacional se
muestran el exorbitante privilegio económico y la libertad de
acción que acompañan la posición de una divisa en la cima de
la jerarquia. El país con la divisa superior puede diferir el ajuste
13
A comienzos de la década de 1970 se registró una modificación en la forma
del dinero mundial: el sistema monetario internacional se desvinculó definiti-
vamente del oro y este cambio creó un sistema más inestable y propenso a las
burbujas financieras. Véase McNally (2009).
14
En la literatura sobre economía política internacional se abordan distintos
factores determinantes de la posición monetaria internacional de una divisa.
Mientras que en los enfoques basados en el mercado se destaca el atractivo de
una divisa para los actores económicos privados debido a la estabilidad de su
valor interno (que obedece en primer lugar a fundamentos macroeconómicos
sólidos), su liquidez y redes transaccionales (HELLEINER, 2008; HELLEINER
y KIRSHNER, 2009), en los enfoques instrumentales y geopolíticos se hace
hincapié en las decisiones económicas y políticas de los gobiernos extranjeros
(MINH, 2012). En los enfoques institucionales (por ejemplo, EICHENGREEN,
2010) se ponen de relieve la buena voluntad y la capacidad del emisor de una
moneda para salvaguardar su atractivo basado en el mercado.

130
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

externo y permitirse desequilibrios externos que en cualquier


otro lugar provocan una respuesta disciplinaria fulminante de
los mercados financieros internacionales (KIRSHNER, 2008,
pág. 424). Así, el estatus de divisa superior está acompañado por
un espacio de política macroeconómica incomparable, que se
extiende por la falta de alternativas y por una estabilidad de valor
superior (COHEN, 2006; McNAMARA, 2008). En la literatura
sobre economía política internacional también se señala el
beneficio financiero de emitir la divisa superior al valor nominal
a bajo costo, es decir, sobre la base del señoreaje.
Si bien hay un amplio debate sobre las ventajas (y los costos)
de ser la divisa superior, se dice muy poco sobre las repercusiones
de encontrarse en el nivel más bajo de la jerarquía. Aunque algunas
de las ventajas de la divisa superior pueden representar desventajas
análogas para las monedas que se encuentran en el extremo
inferior, esto no es necesariamente cierto. Los emisores de monedas
subordinadas pueden enfrentar sus propias limitaciones (o incluso
ventajas), que no necesariamente pueden inferirse de las condiciones
peculiares de la divisa superior15. Asimismo, se ha debatido
relativamente poco sobre las repercusiones que la posición de una
divisa en la jerarquía monetaria internacional tiene en la estructura
de la economía en si. Pese a que la literatura sobre economía política
internacional comprende numerosos estudios sobre la manera en
que las características estructurales de una economia influyen en
el estatus monetario, los análisis sobre la situación contraria son
escasos. Para los fines de este estudio, esto tiene particular interés
con respecto a la estructura del mercado financiero. Los mercados
financieros profundos y líquidos son fundamentales para sostener
la posición superior de una divisa (KENEN, 2012; MAZIAD y
otros, 2011). Al mismo tiempo, sin embargo, esa posición superior
determina las relaciones financieras mundiales y con ello las
asimetrías monetarias internacionales16.
15
Si bien algunos autores estudian el “pecado original” de las economias capita-
listas emergentes, es decir, su incapacidad de endeudarse en su propía moneda
(EICHENGREEN, HAUSMANN y PANIZZA, 2005), esta afirmación no está
directamente vinculada con la literatura sobre jerarquías monetarias.
16
Por ejemplo, Guttmann (2008) señala que la denominación en dólares de una
parte considerable del capital financiero mundial ayuda a los Estados Unidos a
mantener los mercados financieros más profundos y líquidos del mundo.

131
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

La literatura poskeynesiana comprende otros trabajos sobre


la posición de las economías capitalistas emergentes en la jerarquía
monetaria internacional y las repercusiones de esa posición en la
política macroeconómica, la acumulación de capital y la estructura
financiera (HERR, 1992; DOW, 1999; FRITZ, 2002; HERR y
HÜBNER, 2005; PRATES y ANDRADE, 2013; De CONTI,
PRATES y PLIHON, 2014; FRITZ, PRATES y de PAULA, 2014;
KALTENBRUNNER, 2015). Refiriéndose explícitamente al
análisis del dinero en la economía cerrada de Keynes, esos autores
sostienen que la posición diferencial de las divisas en el sistema
monetario internacional está determinada por la evaluación de los
actores económicos de su propia prima de liquidez internacional
con respecto a otras divisas. Al igual que en el enfoque basado en el
mercado de la economía política internacional, los poskeynesianos
afirman que la prima de liquidez internacional está determinada
por la capacidad de las divisas de actuar como reservas de valor y
unidades de cuenta internacionales17.
Estas diferencias en las primas de liquidez internacional de
las monedas, a su vez, tienen importantes repercusiones en la
autonomla de la política monetaria, la vulnerabilidad externa y la
estructura financiara, en particular para las economías capitalistas
emergentes. Al igual que en la economía cerrada de Keynes,
“el dinero lleva la batuta”. Esto significa que las condiciones
monetarias en el país con la prima de liquidez más alta (en la época
de Keynes, la libra esterlina, en la actualidad el dólar) influirán
en las condiciones monetarias en todo el mundo. El impacto será
mayor en las divisas con menores primas de liquidez, es decir,
las monedas de las economías capitalistas emergentes. En forma
análoga, un cambio en la preferencia de liquidez internacional
17
El enfoque de los poskeynesianos en la incertidumbre fundamental los vuelve
más propensos a concentrarse en las funciones de reserva de valor y unidad
de cuenta del dinero, en lugar de en las funciones de medio de intercambio
o medida de valor. Al igual que en la literatura sobre economía política
internacional, los determinantes de la prima de liquidez internacional de las
monedas varlan. Mientras Fritz, Prates y de Paula (2014) destacan la capacidad
de las economías capitalistas emergentes para mantener superávits sostenibles
en cuenta corriente, De Conti (2011) y Kaltenbrunner (2015) subrayan el
importante papel de factores institucionales del mercado. Kaltenbrunner
(2015) también pone de relieve la importancia de la posición de las divisas en
las relaciones internacionales entre deudores y acreedores.

132
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

puede llevar a importantes movimientos de capital y del tipo


de cambio en gran medida independientes de las condiciones
económicas, pues los inversionistas buscan protección en la
moneda con la prima de liquidez más alta. La prima de liquidez
más baja de las monedas de las economías capitalistas emergentes
también requiere que estas ofrezcan tasas de interés más altas,
movimientos ventajosos del tipo de cambio o ambas cosas para
mantener la demanda de los inversionistas. Por último, en términos
de estructura financiera, los poskeynesianos argumentaron que,
más que un resultado de su pasado inflacionario (como en muchas
interpretaciones económicas neoclásicas), la incapacidad de las
economías capitalistas emergentes de emitir deuda en su propia
moneda es un resultado directo de su posición subordinada en la
jerarquía monetaria internacional.
Estas características peculiares de la dinámica monetaria de
las economías capitalistas emergentes condicionan la naturaleza
de su acumulación de capital y estructura financiera, que a su
vez perpetúa su subordinación monetaria. Mientras que las
altas tasas de interés inciden en la demanda y el crecimiento
de la inversión interna, la volatilidad de los flujos de capital y
el tipo de cambio minan la capacidad de las monedas de las
economías capitalistas emergentes de desempeñar funciones
monetarias internacionales. La prevalencia de la deuda en
moneda extranjera tiene un efecto similar, pues cualquier
variación en el tipo de cambio aumentará la carga de deuda real
de las economías capitalistas emergentes. Este resultado puede
conducir no solo a preocupaciones de liquidez y solvencia a
corto plazo, sino que requiere la generación futura de divisas y
con ello un tipo de cambio devaluado, que reduce aún más las
primas de liquidez internacional de esas monedas (problema de
las transferencias de Keynes).
En síntesis, en esta sección se mostró el importante papel que
se atribuye en diferentes disciplinas a la existencia de asimetrías
monetarias internacionales para el ajuste externo, la autonomía de
la política económica, la estructura económica y la distribución de
los costos de las crisis financieras. Hasta ahora, en ningún trabajo
se relacionaron sistemáticamente esas asimetrías monetarias
internacionales con la reciente transformación financiera observada

133
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

en las economías capitalistas emergentes. Eso es lo que se hace a


continuación, con el acento en la experiencia latinoamericana.

B. De la integración financiera subordinada a la


financierización interna
Los flujos de capital hacia las economías capitalistas
emergentes han aumentado en la última década, superando
con creces las olas anteriores. De acuerdo con el Instituto de
Finanzas Internacionales (IFI), las entradas totales de capital
en las economías capitalistas emergentes pasaron de 200.000
millones de dólares en 2000 a 1,1 billones de dólares en 2014
(IFI, 2015). En términos de reservas, Akyüz (2015) registra que en
el período 2000-2013 el activo y el pasivo internacionales brutos
de las economías capitalistas emergentes crecieron alrededor de
un 15% y un 12,5% anuales, respectivamente, y que sus balances
generales brutos se quintuplicaron con creces.
En los gráficos I.1 y I.2 se muestra el incremento sin
precedentes en los flujos de capital a corto plazo (inversiones de
cartera y otras) en algunos países latinoamericanos.

Gráfico I.1
Brasil: flujos netos de capital a corto plazo y balanza por cuenta corriente
(En millones de dólares)

Fuente: Banco Central del Brasil, “Balancetes”, Brasília, 2015 [en línea] http://
www4.bcb.gov.br/fis/cosif/ balancetes.asp.

134
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Gráfico I.2
Chile, Colombia y México: flujos netos de capital a corto plazo
(En millones de dólares)

Fuente: Fondo Monetario Internacional (FMI), Base de datos International


Financial Statistics (IFS), Washington, D.C., 2016 [en línea] http://data.imf.
org/?sk=5DABAFF2-C5AD-4D27-A175-1253419C02D1.

En el Brasil, los flujos de capital a corto plazo acumulados de


12 meses aumentaron de una salida de 8.000 millones de dólares
a comienzos de 2000 a más de 60.000 millones de dólares y 50.000
millones de dólares a fines de 2007 y 2010, respectivamente. En
junio de 2008, justo antes de la quiebra de Lehman Brothers,
el pasivo externo a corto plazo pendiente del Brasil ascendía a
679.000 millones de dólares, equivalentes al 46,1% del producto
interno bruto (PIB), mientras que antes de la crisis brasileña
de 1999 correspondía solo al 28% del PIB. En marzo de 2011,
antes de un nuevo empeoramiento de la crisis en la eurozona,
el pasivo externo a corto plazo del país era de 883.000 millones
de dólares o el 39,7% del PIB. Esta misma tendencia se observa
en otros países latinoamericanos. En Chile, los flujos de capital
a corto plazo acumulados de 12 meses (flujos de inversiones de
cartera y otras) se incrementaron de una salida de 2.000 millones
de dólares en 2001 a 5.500 millones de dólares a mediados de
2008 y alcanzaron un máximo de 14.600 millones de dólares a
comienzos de 2011. En Colombia, estos pasaron de una salida
de 1.000 millones de dólares en el primer trimestre de 2002 a
un máximo de 12.100 millones de dólares a comienzos de 2011.
En Mexico, ese aumento fue de una salida de 3.000 millones de

135
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

dólares en 2002 a más de 55.000 millones de dólares en 2011 y


alcanzó un máximo de 64.000 millones de dólares a mediados de
2014 (FMI, 2016).
Como se puede observar en los gráficos I.1 y I.2, los flujos de
capital en estos países latinoamericanos se han caracterizado por
una marcada volatilidad, que deriva en gran parte de los cambios
en las condiciones del mercado internacional. En el Brasil, por
ejemplo, los flujos de capital a corto plazo empezaron a crecer a
comienzos de 2003 a medida que la liquidez volvía a los mercados
financieros internacionales, aumentaron en la primera etapa
de la crisis financiera internacional, cuando los inversionistas
internacionales diversificaron sus inversiones mediante activos
líquidos y de alto rendimiento de las economías capitalistas
emergentes, y se contrajeron drásticamente cuando la quiebra
de Lehman Brothers condujo a un crisis de liquidez mundial.
Durante la crisis de la eurozona se observaron patrones similares,
pues la incertidumbre inicial llevó a una nueva búsqueda de
diversificación en las economlas capitalistas emergentes, seguida
de una abrupta contracción cuando las condiciones empeoraron.
Estas dinámicas fueron exacerbadas por condiciones monetarias
extraordinariamente flexibles en las economlas capitalistas
centrales, que estimularon a los inversionistas internacionales a
buscar rendimientos mayores en clases de activos alternativas. Los
efectos de los factores externos son particularmente evidentes en
el último ciclo de los flujos de capital, debido a que los primeros
anuncios de retirada gradual de estímulos (tapering) del Sistema
de la Reserva Federal de los Estados Unidos en mayo-junio
de 2013 se tradujeron en una nueva retirada de fondos de las
economías capitalistas emergentes (EICHENGREEN y GUPTA,
2013; MISHRA y otros, 2014)18.
Además de un incremento en su volumen, los flujos
de capital hacia las economías capitalistas emergentes han

18
En el Brasil, este último ciclo de flujos de capital ha sido mucho más pro-
nunciado en los flujos bancarios que en los de cartera. Esto se debe a dos
razones. En primer lugar, los inversionistas de cartera han cubierto su riesgo
de cambio cada vez más en el mercado nacional en lugar de retirar los fondos.
En segundo lugar, los flujos bancarios se han exacerbado por las posiciones
de los bancos nacionales, que incrementaron sus operaciones internacionales
en los últimos años.

136
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

registrado importantes cambios cualitativos en los últimos años.


Desde el punto de vista de las inversiones, a los inversionistas
tradicionales de las economías capitalistas emergentes (como
los bancos y los fondos dedicados) se ha sumado una gran
variedad de otros actores, incluidos inversionistas institucionales
(fondos de pensiones, de inversión colectiva y de seguros) y
nuevos tipos de inversionistas de fondos de inversión colectiva,
como los fondos de inversión cotizados (exchange-traded funds) y
los macrofondos de inversión libre (macro-hedge funds) (ARON,
LEAPE y THOMAS, 2010; JONES, 2012; YUK, 2012). En virtud
del enorme tamaño de estos inversionistas financieros, incluso
una pequeña reasignación de sus activos de cartera puede
tener un efecto considerable en los flujos de capital hacia las
economías capitalistas emergentes. Asimismo, estos diferentes
actores tienen distintas estrategias de inversión y patrones de
financiación, que aumentan significativamente la complejidad de
la inversión extranjera. Desde el punto de vista de los activos,
estos inversionistas quedaron expuestos a una compleja serie de
activos en moneda nacional, incluidos bonos soberanos, acciones,
derivados y la moneda en sí, como en el notorio fenómeno de las
operaciones de acarreo de divisas (carry-trade), que se aborda en la
próxima sección con respecto a las economías latinoamericanas19.
Así, en la última década, el capital extranjero ha permeado
áreas completamente nuevas de la vida económica latinoamericana
y, al hacerlo, ha cambiado drásticamente la estructura económica
y financiera de la región. Para ilustrar el poder transformador del
capital extranjero y la posición subordinada de América Latina
con respecto a este, con especial atención al caso del Brasil, en
las subsecciones siguientes se analizan los recientes cambios en
las prácticas financieras de los agentes económicos clave: los
bancos (y sus repercusiones en los hogares) y las corporaciones
no financieras.
19
La naturaleza cambiante y la creciente complejidad de los flujos de capital
internacionales llevan a preguntarse si estamos ante un proceso de financieri-
zación “internacional” distinto, que va más allá de un mero incremento en los
movimientos de flujos de capital transfronterizos. Se puede decir que, así como
la financierización nacional es más que un mero incremento en el tamaño de las
operaciones financieras, las recientes transformaciones en los flujos de capital
internacionales son más que una cuarta ola de globalización financiera.

137
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

Acumulación de reservas y financierización de los bancos


y los hogares
Uno de los cambios más importantes en las relaciones
financieras internacionales desde el milenio es la vasta
acumulación de reservas de divisas por las economías
capitalistas emergentes. Las reservas totales de esas economías
aumentaron vertiginosamente de 0,5 billones de dólares en
2000 a 8,1 billones de dólares en 2014. Esta misma tendencia
se registró en los países latinoamericanos. Por ejemplo, las
reservas de divisas en Chile, Colombia y Mexico aumentaron
de 16.000 millones, 13.000 millones y 64.000 millones
de dólares a 40.000 millones, 47.000 millones y 196.000
millones de dólares, respectivamente, entre fines de 2004 y
2014 (FMI, 2016). En el gráfico I.3 se muestra el incremento
de las reservas de divisas en el Brasil, que aumentaron de
50.000 millones de dólares en 2004 a 364.000 millones de
dólares en 2014.

Gráfico I.3
Brasil: reservas de divisas y operaciones de esterilización monetaria
(pactos de recompra o repos)
(En millones de dólares y miles de millones de reales)

Fuente: Banco Central del Brasil, “Historical series of the balance of payments.
Balance of payments and international investment position manual. 6th edition
(BPM6)”, Brasília, 2015 [en línea] http://www. bcb.gov.br/ingles/economic/
seriehist_i_bpm6.asp; “Nota para a imprensa”, Brasília, mayo de 2015 [en línea]
http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/demab/ma201505/index.asp.

138
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Esta vasta acumulación de reservas (sobre todo en dólares)


es una consecuencia directa de la creciente integración financiera
de las economías capitalistas emergentes y de su naturaleza
subordinada. Independientemente de sus saldos de cuenta
corriente, las economías capitalistas emergentes fueron receptoras
netas de entradas de capitales hasta 2013, condición que se tradujo
en un exceso de divisas en esos países20. En lugar de permitir
que ese exceso se absorbiera en la economía nacional, los bancos
centrales de las economías capitalistas emergentes acumularon
un “tesoro de guerra” de reservas de divisas. En primer lugar, la
ola de entradas de capitales masiva y sin precedentes con respecto
al tamaño de los mercados financieros nacionales creó presiones
insostenibles en la liquidez interna, los precios de los activos y
el tipo de cambio. Mediante la acumulación de reservas (y las
consiguientes operaciones de esterilización) se procuró contener
dichas presiones. En segundo lugar, como se mencionó en la
sección anterior, al estar en los niveles más bajos de la jerarquía
monetaria internacional, las economías capitalistas emergentes
deben estar preparadas para hacer frente a grandes y repentinas
fugas de capitales hacia divisas con primas de liquidez más altas
(o hacia el dinero mundial), que a menudo no guardan relación
con los fundamentos económicos. La acumulación de reservas es
una precaución necesaria para satisfacer esta demanda y evitar
un impacto excesivo en la economía nacional.
Sin embargo, esta acumulación de reservas, como una
de las manifestaciones de la financierización subordinada
de las economías capitalistas emergentes, tuvo importantes
repercusiones en la estructura y el comportamiento del sistema
bancario nacional brasileño. Para controlar la expansión
monetaria por sus compras de divisas (y en consecuencia las
potenciales presiones inflacionarias), el banco central brasileño
20
La acumulación de reservas puede originarse en la cuenta corriente, la cuenta
de capital o ambas. A diferencia de lo que sostendría la teoría económica neoclá-
sica, los recientes flujos de capital hacia las economías capitalistas emergentes han
superado con creces las necesidades de esos países de financiar deficits en cuenta
corriente. Por el contrario, los mayores receptores eran aquellos con superávits en
cuenta corriente, lo que condujo a un exceso de reservas en muchas economías capi-
talistas emergentes. Esto cambió desde 2013, cuando la combinación de restricción
monetaria en las economías capitalistas centrales, disminución de los precios de los
productos básicos y desaceleración en China derivó en salidas de capital.

139
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

realizó numerosas operaciones de esterilización monetaria. Es


decir, llevó a cabo una gran cantidad de pactos de recompra
(repos) utilizando títulos de deuda interna con el sistema bancario
para drenar el exceso de reservas bancarias21. Como puede
observarse en el gráfico I.3, los repos en circulación registrados
por el Banco Central del Brasil aumentaron de 58.000 millones
de reales en 2004 a 858.000 millones de reales en 2014. Además,
su dinámica se relacionaba estrechamente con los movimientos
de los flujos de capital internacionales.
A diferencia del dinero efectivo, los repos — que son activos
con intereses — ofrecen una rentabilidad mayor. Al mismo
tiempo, se caracterizan por una gran liquidez, pues los bancos
pueden convertirlos en efectivo en el banco central a un costo
muy bajo y prácticamente en cualquier momento. Esta promesa
de liquidez en el activo de sus balances, que es particularmente
importante en los momentos de crisis, fomentó la confianza de
los bancos para incrementar sus propios pasivos. Mediante sus
técnicas de gestión de cartera, los bancos brasileños utilizaron
estos activos a corto plazo del banco central como garantía
para emitir nuevas obligaciones. Este comportamiento
bancario es coherente con el enfoque poskeynesiano de los
bancos, pues en primer lugar están prestando dinero (reservas
bancarias) al banco central. Para emparejar sus posiciones
de activos repo, estas emisiones asumieron sobre todo la
forma de títulos a corto plazo, principalmente certificados
de depósitos22.
En el gráfico I.4 se muestra que los repos registrados en el
banco central se reflejaban en las posiciones interfinancieras de
liquidez de los bancos, esencialmente repos del banco central.

21
En estas operaciones de esterilización el banco central ofrece al sistema ban-
cario títulos de deuda pública (con un pacto de recompra futura) en cambio de
dinero efectivo. Al operar en el marco institucional de un regimen de metas de
inflación, el banco central brasileño está institucionalmente obligado a realizar
estas operaciones de esterilización para reducir las presiones inflacionarias que
derivan de la expansión de la oferta monetaria en virtud de sus compras de
divisas. Así, se podría argumentar que un regimen de metas de inflación insti-
tucionaliza la dinámica de financierización descrita en este capítulo.
22
Este análisis del comportamiento bancario se basa en Painceira (2012).

140
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Gráfico I.4
Brasil: principales activos del sistema bancario
(En millones de reales)

Fuente: Banco Central del Brasil, “Balancetes”, Brasília, 2015 [en línea] http://
www4.bcb.gov.br/fis/cosif/ balancetes.asp.
Nota: Los datos bancarios analizados incluyen todo el sistema bancario, excepto los
bancos de desarrollo.

Estas posiciones interfinancieras también variaron


significativamente en línea con el ciclo de los flujos de capital
internacional. Después de un aumento inicial hasta la crisis
financiera mundial de 2008 y una contracción posterior, la
tenencia de repos en los bancos volvió a aumentar a medida que
el desarrollo de la crisis en la eurozona y las expectativas de la
retirada gradual de estímulos por parte de los Estados Unidos
condujeron a una nueva ola de flujos de capital. Las operaciones
de crédito totales (operaciones de crédito y otras partidas del
haber) también registraron un aumento constante. En principio,
este incremento debería ser beneficioso para la acumulación de
capital pues las empresas son tradicionalmente los principales
demandantes de préstamos bancarios. Sin embargo, como se
verá más adelante, la estructura del crédito bancario en el Brasil
cambió considerablemente en los últimos años.
De alguna manera, este incremento de los activos líquidos y las
operaciones de crédito en la composición de los activos bancarios
tuvo lugar en otros países latinoamericanos. Los préstamos y
los títulos de deuda pública nacional (sobre todo para fines de

141
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

transacción, similares a los repos) han sido los principales activos


bancarios en México desde 2004 (BUREAU VAN DIJK, 2016).
En Chile y Colombia, los créditos al sector privado (sobre todo
préstamos a entidades no financieras) han sido la posición de
activos bancarios dominante desde 2004 (FMI, 2016).
En el gráfico I.5 se muestra la manera en que los bancos
brasileños utilizaron estos activos de gran liquidez (y con
intereses) para apalancar e incrementar su propia financiación.
En cierta medida, el mismo proceso se registró en el sistema
bancario mexicano, pues hubo un aumento de los activos líquidos
(títulos de deuda para transacciones) y de la financiación bancaria
mediante repos (BUREAU VAN DIJK, 2016).

Gráfico I.5
Brasil: tipos de depósitos bancarios
(En millones de reales)

Fuente: Banco Central del Brasil, “Balancetes”, Brasília, 2015 [en linea] http://
www4.bcb.gov.br/fis/cosif/ balancetes.asp.
Nota: Los depósitos bancarios son el item principal del pasivo de los bancos
brasileños (alrededor de 1,8 billones de reales a fines de 2014). Las otras categorias
son: obligaciones repo (aproximadamente 1,4 billones de reales a fines de 2014),
otras obligaciones (esencialmente varios tipos de obligaciones y obligaciones en la
cartera en moneda extranjera — no se incluyen los préstamos en divisas —, alrededor
de 1 billón de reales a fines de 2014) y obligaciones con préstamos y transferencias
(esencialmente préstamos en divisas y transferencias gubernamentales, poco más de
660.000 millones de reales a fines de 2014).

Los depósitos a plazo, que se componen principalmente


de certificados de depósitos, aumentaron considerablemente

142
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

con respecto a otras categorías de depósitos. Los certificados


de depósitos son títulos emitidos por los bancos que pueden
clasificarse como obligaciones propias de los bancos. Todos los
depósitos son obligaciones bancarias en la medida en que los
bancos tienen obligaciones con los depositantes. Sin embargo,
solo las obligaciones emitidas por bancos, como los certificados
de depósitos o las obligaciones financieras, pueden considerarse
propias de los bancos, porque su emisión está determinada
principalmente por las decisiones de cartera del banco (mientras
que las otras obligaciones son en gran medida decididas por los
acreedores o clientes de los bancos). En el gráfico I.5 también se
observa que estos depósitos aumentaron simultáneamente con
el crecimiento en las entradas de capital y los repos del banco
central en los balances de los bancos.
Este endeudamiento adicional, a su vez, permitió a los
bancos incrementar la columna del activo de sus operaciones.
En otras palabras, los bancos brasileños utilizaron los bonos de
esterilización, emitidos por el banco central, para afrontar las
consecuencias adversas de la acumulación de reservas y ampliar
sus propios balances. Vista la naturaleza a corto plazo de esos
bonos y, por lo tanto, el endeudamiento de los bancos, sus nuevos
activos también se mantuvieron relativamente a corto plazo.
Esto llevó a que los préstamos a largo plazo (riesgosos) al sector
productivo fueran desplazados por préstamos a los hogares
(menos riesgosos) a corto plazo.
En el gráfico I.6 se ilustra la manera en que el cambio en
el patrón de financiación de los bancos influyó en su asignación
de crédito. Se evidencia el drástico cambio en la asignación del
crédito, al pasar de préstamos “productivos” a la industria a
la financiación de la vivienda y el consumo a más corto plazo,
contribuyendo de ese modo a la creciente financierización
de los hogares. Este cambio habría sido aún más pronunciado
si se descartara el aumento en la financiación a la industria
proporcionada por el Banco Nacional de Desarrollo Económico
y Social (BNDES), que es una de las más importantes fuentes de
préstamos industriales en el Brasil desde 200923.
23
Obviamente, el cambio en la estructura de financiación de los bancos no fue
la única razón para el incremento en los préstamos al consumo. El crecimiento

143
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

Vista la reducción del plazo de las obligaciones bancarias, los


bancos trataron de emparejar el vencimiento de su financiación
con sus posiciones de activos. El crédito a los hogares, que
generalmente tiene un vencimiento más corto que el crédito
a la industria, les permitió hacerlo. En los últimos años, el
estancamiento en el crédito al consumo se ha compensado con
creces mediante los préstamos inmobiliarios, principalmente
mediante la provisión de hipotecas a los hogares. De alguna
manera, esta tendencia en el comportamiento bancario, en la
que se destacan el incremento de los activos líquidos y la mayor
dependencia de la financiación del mercado con efectos en la
asignación del crédito, también se registró en menor medida
en México. Entre 2004 y 2014, los préstamos a los hogares
aumentaron del 11% al 20% de los préstamos bancarios totales.

Gráfico I.6
Brasil: principales ítems de asignación de crédito en el sistema financiero
(En porcentajes)

Fuente: Banco Central del Brasil, “Balancetes”, Brasília, 2015 [en línea] http://
www4.bcb.gov.br/fis/cosif/ balancetes.asp.

El cambio en las carteras de los bancos a favor de los


préstamos a los hogares también se refleja en el endeudamiento de

económico, el aumento del salario mínimo real y la rentabilidad de esos présta-


mos también contribuyeron a esta tendencia. Sin embargo, sin la expansión de
los balances mediante las operaciones de esterilización del Banco Central del
Brasil y la reducción de su estructura de financiación, satisfacer la creciente de-
manda de crédito a los hogares habría sido mucho más difícil para los bancos.

144
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

los hogares en el Brasil, que pasó del 7,2% a fines de 2003 al 24,7%
del PIB a fines de 2014. La deuda de los hogares también creció en
todas las economías latinoamericanas (IFI, 2016). Por ejemplo, en
el mismo período, esta se incrementó del 9,5% al 14,7% en México,
del 23,6% al 38,2% en Chile y del 2,6% al 5,7% en la Argentina.
Los bancos también han sido la principal fuente de financiación
en la región latinoamericana (MATOS, 2017). En este sentido,
incluso en presencia de otros factores singulares, los bancos han
desempeñado un papel importante en el aumento de la deuda de
los hogares en las principales economías latinoamericanas. En las
economías capitalistas emergentes (las 20 economías principales),
el endeudamiento de los hogares aumentó del 17,9% al 32,2% del
PIB entre 2003 y 2014 (IFI, 2016).
Hasta ahora se describió la forma en que la integración
financiera subordinada del Brasil, que se manifiesta en la
gran acumulación de reservas, indujo a los bancos a ampliar
sus balances generales, depender en mayor medida de la
financiación de mercado y sustituir los préstamos a las empresas
por préstamos a los hogares, transformaciones similares a los
fenómenos de financierización señalados en la literatura. Este
proceso de resume en el diagrama I.1.

Diagrama I.1
De la acumulación de reservas a la financierización de
los bancos y los hogares

Fuente: Elaboración propia.

145
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

Al mismo tiempo, fueron esas mismas transformaciones las


que facilitaron la creciente integración financiera del Brasil. Los
activos financieros a corto plazo en los balances de los bancos
nacionales, que podían revenderse fácilmente a bajo costo,
proporcionaron margen de maniobra a los bancos y de esa manera
redujeron el riesgo de actuar de los inversionistas extranjeros. Este
fue particularmente el caso durante las turbulencias del mercado,
cuando los repos permitieron a los bancos acceder fácilmente a
la liquidez del banco central mediante operaciones de mercado
abierto. Esta reducción en el riesgo de balance de los bancos los
volvió más capaces y dispuestos a captar recursos extranjeros,
estimulando de ese modo nuevas entradas de capital24.
Por último, existen dos mecanismos importantes mediante
los cuales los procesos descritos anteriormente podrían haber
contribuido a exacerbar el desarrollo desigual y a consolidar la
posición (monetaria) internacional subordinada de las economías
capitalistas emergentes. En primer lugar, la acumulación de reservas
supone una constante transferencia de recursos de las economías
capitalistas emergentes a las economías capitalistas centrales.
Mientras que los bancos centrales de las economías capitalistas
emergentes tienen bonos soberanos de bajo rendimiento, seguros y
líquidos de las economías capitalistas centrales, los flujos de capital
extranjero generan considerables rendimientos que se repatrían
al extranjero (PAINCEIRA, 2008). De hecho, como muestra Yuk
(2012) para el caso de China, las economías capitalistas emergentes
están en última instancia muy limitadas en la forma en que
pueden utilizar esas reservas internacionales, vista la necesidad de
los bancos centrales de emparejar, lo más posible, los activos en
reservas extranjeras en sus balances con sus obligaciones internas
(incluidos los títulos de deuda), que tienen que emitir (o utilizar)
para comprar esas reservas. En segundo lugar, la sustitución de
préstamos productivos por préstamos a los hogares perjudica la
acumulación de capital, afectando negativamente el potencial de
crecimiento de las economías capitalistas emergentes.

24
Esto también muestra el importante papel que desempeñan las instituciones
públicas en los procesos de financierización. En muchos casos, es la capacidad
de tener activos de corto plazo y relativo bajo riesgo, es decir bonos del gobier-
no, que permite a las instituciones financieras aumentar sus balances.

146
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Vulnerabilidad externa y financierización


de las corporaciones no financieras
La segunda manifestación de la integración financiera
subordinada de las economías capitalistas emergentes es su
vulnerabilidad ante grandes y repentinos movimientos de
capital y del tipo de cambio, con frecuencia independientes de
las condiciones económicas internas. Como se mencionó en la
sección anterior, esta vulnerabilidad externa se ha analizado
tradicionalmente en el contexto de la incapacidad de las
economías emergentes de endeudarse en su propia moneda, su
“pecado original”, que llevó a los inversionistas internacionales a
desconfiar de su capacidad de reembolso.
Para los teóricos neoclásicos, ese “pecado original”
obedecía a políticas económicas desacertadas, que causaron
asimetrías de información y riesgo moral (KRUGMAN, 1999;
MACKINNON y PILL, 1998), a instituciones nacionales débiles
(BURGER y WARNOCK, 2006) o a ambas cosas a la vez. En
consecuencia, el mantenimiento de fundamentos económicos
sólidos, el desarrollo de instituciones nacionales creíbles
y la retirada del Estado del mercado en general deberían
reducir la vulnerabilidad externa de las economías capitalistas
emergentes. Al mismo tiempo, se pensaba que la conversión de
la deuda en moneda extranjera a deuda en moneda nacional,
un alto nivel de reservas de divisas y el desarrollo de mercados
financieros nacionales ayudarían a estabilizar los flujos de
capital internacional (CABALLERO, COWAN y KEARNS,
2004; GOLDSTEIN y TURNER, 2004).
En los gráficos I.1 y I.2 se mostró que esto no fue así. Además
de su incremento masivo, los flujos de capital se caracterizaron
por una extrema volatilidad, en gran medida determinada por
las condiciones en los mercados financieros internacionales. En
el caso del Brasil, Kaltenbrunner y Painceira (2015) muestran
que esto tuvo lugar no obstante los fundamentos sólidos del país,
la acumulación masiva de reservas de divisas y la conversión de
la deuda en moneda extranjera a deuda en moneda nacional.
De hecho, aunque el Brasil se había convertido en un acreedor
neto en moneda extranjera, continuaba sujeto a los violentos
movimientos del capital extranjero. En cierta medida, el mismo

147
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

proceso puede observarse en otras economías capitalistas


emergentes, entre ellas México.
Las consecuencias fueron casi tan violentas como los
movimientos del tipo de cambio. En el gráfico I.7 se muestran
el real brasileño y el índice VIX, una medida de la volatilidad
implícita de las opciones del índice S&P 500, que constituye un
indicador de las condiciones del mercado internacional utilizado
ampliamente.

Gráfico I.7
El real brasileño y el índice VIX

Tipo de cambio brasileño (real/dólar) (eje derecho) Índice VIX Fuente: Elaboración
propia sobre la base de Bloomberg.

Como puede observarse en el gráfico I.7, el real brasileño


sufrió una apreciación al pasar de casi 3,6 reales por dólar a
comienzos de 2003 a casi 1,5 reales por dólar en agosto de
2008, pero luego perdió alrededor del 60% una vez más hasta
el inicio de diciembre de 2008, durante el peor período de la
crisis financiera internacional. El real brasileño recuperó la
mayor parte de esa pérdida a mediados de 2011, para luego
depreciarse un 16% durante el empeoramiento de la crisis
de la eurozona en septiembre de ese año. Esta depreciación
se aceleró a mediados de 2013, con las primeras señales de
normalización de la política monetaria estadounidense, y
aún más a fines de 2014, debido a una marcada contracción

148
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

de los precios de los productos básicos y un aumento de la


incertidumbre política y económica interna. En el gráfico I.8
se muestra que el real brasileño, el peso mexicano y el peso
colombiano presentaron la misma tendencia en los últimos
años, en particular cuando cambiaban las condiciones de
financiación internacional.

Gráfico I.8
América Latina (países seleccionados): tipos de cambio

Fuente: Elaboración propia sobre la base de Bloomberg.


Nota: Para fines de presentación, el real brasileño y el peso chileno se multiplicaron
por tres.

Al igual que la acumulación de reservas, la constante


vulnerabilidad externa del Brasil obedece a su creciente
integración financiera subordinada. Por una parte, las reservas
masivas de capital extranjero en el país significaron que los
cambios en las condiciones del mercado internacional y la
reasignación de las carteras internacionales tenían grandes
repercusiones en la economla brasileña. Por otra, la naturaleza
de esas inversiones extranjeras continuaba estando determinada
por la posición subordinada del Brasil en el sistema financiero
y monetario internacional. En primer lugar, aunque estaban
denominadas en moneda nacional (en un aparente alejamiento
del pecado original de las economías capitalistas emergentes),
esas inversiones se mantuvieron a muy corto plazo y se
concentraron en clases de activos volátiles y de alto rendimiento.

149
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

Por ejemplo, aunque se está prolongando, el vencimiento


medio de la deuda pública nacional del Brasil era de alrededor
de 4,3 años en 2014. Teniendo en cuenta las operaciones de
esterilización monetaria (repos) del Banco Central del Brasil, el
vencimiento medio disminuye aún más a 2,7 años. Las inversiones
en valores y derivados son inherentemente más a corto plazo,
pues sus principales réditos provienen de las transacciones y la
consiguiente ganancia de capital. Esta naturaleza a corto plazo
es el resultado de la posición subordinada de las monedas de
las economías capitalistas emergentes en la jerarquía monetaria
internacional, pues los inversionistas internacionales no están
preparados para comprometer fondos a más largo plazo. Los
vencimientos breves permiten la reventa rápida y fácil en caso de
cambios en el ambiente de riesgo internacional, “compensando”
la posición internacional inferior de las monedas de las economías
capitalistas emergentes.
En segundo lugar, la mayoría de las inversiones en las
economías capitalistas emergentes continúan financiadas en las
monedas de las economías capitalistas centrales, en particular el
dólar. Debido a su posición en la cima de la jerarquía monetaria
internacional, el dólar es la moneda de financiación más importante
del mundo. Su alta prima de liquidez internacional permite a los
agentes estadounidenses ofrecer bajas tasas de interés y asegura
la estabilidad de su valor en períodos de creciente incertidumbre.
Al mismo tiempo, los mercados financieros profundos y
líquidos de los Estados Unidos ofrecen una amplia gama de
instrumentos. Sin embargo, el papel del dólar como la principal
moneda de financiación mundial significa que el deterioro de las
condiciones de liquidez internacionales y, en consecuencia, de
las limitaciones a la financiación llevarán a un incremento de su
demanda. Por otra parte, las monedas de inversión como algunas
monedas latinoamericanas, en particular el real brasileño, están
sujetas a presiones de depreciación latentes pues el deterioro de
las condiciones del mercado internacional provocará presiones
de venta.
Sin embargo, esta vulnerabilidad a los grandes
movimientos de capital y del tipo de cambio, que a menudo
son imprevisibles, básicamente determinan las relaciones

150
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

de los agentes económicos con los mercados financieros. En


ese sentido, las corporaciones no financieras en América
Latina (Brasil, Chile, Colombia, México y Perú) han sido
relativamente más vulnerables a la inversión de las condiciones
de financiación, en particular la financiación externa, debido
al incremento en la exposición neta de las obligaciones en
moneda extranjera. En general, las relaciones entre la deuda
y el activo han aumentado desde la crisis financiera mundial
(GONZÁLEZ-MIRANDA, 2012).
Algo aún más importante desde una perspectiva
de desarrollo es que, en los últimos años, las (grandes)
corporaciones no financieras latinoamericanas se han vuelto
muy activas en los mercados financieros, tanto en la columna del
activo como en la del pasivo de sus balances. Por ejemplo, para
protegerse de los movimientos adversos del tipo de cambio,
las corporaciones no financieras exportadoras brasileñas
han comenzado a operar en el mercado local de derivados
para cubrir sus ingresos de exportación o déficits esperados.
Debido a las posibles ganancias con los tipos de cambio, esas
operaciones se han vuelto especulativas en algunos casos,
llevando a considerables pérdidas y a situaciones cercanas a la
bancarrota durante la crisis financiera internacional (FARHI
y BORGHI, 2009). Desde el punto de vista del pasivo, las
corporaciones no financieras latinoamericanas, en particular
brasileñas y mexicanas, han incrementado su endeudamiento
en moneda extranjera en mercados transnacionales desde
2011. Entre el primer trimestre de 2011 y el último trimestre
de 2015, la deuda denominada en dólares como porcentaje del
PIB en el Brasil y México aumentó del 8,5% y el 6% al 19,1%
y el 12,5%, respectivamente, mientras que en Chile creció
del 22,3% al 38% (IFI, 2016). Además, el Banco de Pagos
Internacionales (BPI) muestra que estas obligaciones externas
estaban parcialmente relacionadas con operaciones de acarreo
de divisas. Las corporaciones no financieras brasileñas se
endeudaron en dólares en el extranjero para invertir en activos
en moneda nacional, aprovechando tanto las altas tasas de
interés como los movimientos favorables del tipo de cambio.
Otras corporaciones no financieras latinoamericanas de la

151
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

Argentina, Chile, Colombia, México y el Perú presentaron el


mismo comportamiento (BRUNO y SHIN, 2015)25.
En general, la región latinoamericana ha sido un objetivo
para las operaciones de acarreo de divisas (carry trade) por
los principales inversionistas internacionales, entre ellos los
inversionistas en dinero real y fondos de inversión libre (BPI, 2015).
Una vez más, la integración financiera subordinada de los países
latinoamericanos, en particular el Brasil, no solo determinó el
comportamiento de las corporaciones no financieras nacionales,
sino que las operaciones de esas empresas sustentaron nuevas
entradas de capital. En la experiencia brasileña, las posiciones de
las corporaciones no financieras actuaron como contrapartidas
de las operaciones de los actores financieros, permitiéndoles
ampliar aún más sus posiciones. En el caso de las posiciones
de divisas “especulativas” los bancos nacionales actuaron como
contrapartes con mayor frecuencia. En este caso, los bancos
incurrirían en pérdidas sobre el tipo de cambio pero obtendrían
ganancias considerables sobre el margen de la tasa de interés
al pedir préstamos de moneda extranjera en el extranjero y
prestaría a su vez a empresas nacionales. Los bancos nacionales
podrían cuadrar estas posiciones nuevamente con inversionistas
extranjeros, especulando sobre el tipo de cambio. En el caso
de las posiciones “de cobertura”, eran los bancos o incluso
los inversionistas extranjeros los que asumían la contraparte,
aprovechando los movimientos favorables del tipo de cambio.
Por último, las operaciones financieras de las corporaciones
no financieras ofrecen los ejemplos más claros de la manera
en que la financierización posiblemente consolida y exacerba
el desarrollo desigual. Demir (2009a) examina el caso de la
Argentina, México y Turquía y muestra que las inversiones
financieras han desplazado a las inversiones reales, reduciendo
así la acumulación de capital. En forma análoga, las pérdidas de
las corporaciones no financieras durante las turbulencias del
25
Otra razón por la cual las corporaciones no financieras brasileñas acuden a
los mercados de capital internacionales se relaciona estrechamente con la su-
bordinación monetaria en sí. Debido a las altas tasas de interés y al corto plazo
de los activos brasileños en moneda nacional, las corporaciones no financieras
recurren al endeudamiento principalmente en el mercado internacional en mo-
neda extranjera.

152
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

mercado financiero han afectado negativamente el crecimiento.


Incluso aunque algunas fracciones del capital productivo nacional
pueden aprovechar la mayor penetración financiera, es posible
que otras no logren hacerlo. En ese sentido, la financierización
puede llevar a una división del mundo de las corporaciones no
financieras, de modo que las empresas grandes y más preparadas
pueden aprovechar las nuevas oportunidades financieras,
mientras que las empresas medianas y pequeñas carecen de los
conocimientos y los recursos financieros necesarios para “jugar”
el juego de manera eficaz (Powell, 2013). Esta implicación hace
eco de viejos argumentos de que la desintermediación financiera
(es decir, el pasaje de la financiación bancaria a la financiación
del mercado de capital) exacerbará la desigualdad del crédito y
aumentará las dinámicas de inclusión y exclusión (FRENCH y
LEYSHON, 2004; BOYER, 2007; RETHEL, 2010).
Además de esas repercusiones en la economía “real”,
se puede decir que la financierización también consolida las
jerarquías monetarias internacionales existentes y la posición
subordinada de las economías capitalistas emergentes dentro
de ellas. Mientras que el papel del dólar como la moneda de
financiación más importante del mundo le garantizan una
considerable estabilidad de valor, ocurre lo contrario en el caso
de las monedas de inversión financierizadas que se enfrentan
a presiones latentes de depreciación y a la probable pérdida de
valor considerable y repentina en los períodos de turbulencias
del mercado. Estas presiones latentes de depreciación hacen que
los inversionistas (internacionales) sean reacios a comprometer
fondos a largo plazo en estas monedas o incluso a utilizarlas como
moneda de financiación, consolidando su posición subordinada
en la jerarquía monetaria internacional.

C. Conclusiones
En este capítulo se argumentó que los recientes cambios
en las prácticas y las relaciones financieras de los actores
económicos latinoamericanos, en particular en el Brasil, han sido
básicamente determinados por su integración en la economía
mundial y por la naturaleza subordinada que esta integración

153
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

ha asumido. Para ilustrar este argumento se presentaron dos


procesos. El primero consiste en la acumulación de reservas y
la financierización de los bancos y los hogares, mientras que
el segundo corresponde a la constante vulnerabilidad externa
de las economías capitalistas emergentes, que ha intensificado
la financierización de las corporaciones no financieras. El
marco analítico subyacente a este análisis fue el concepto de
jerarquías monetarias internacionales, que es central para la
economía política marxista, la economía política internacional
y la poskeynesiana.
Al efectuar ese análisis, se procuró realizar varios
aportes a la literatura sobre financierización. En primer
lugar, se presentaron nuevas ideas sobre la naturaleza y los
procesos diferenciados de la financierización fuera del núcleo
anglosajón. En lugar de examinar sus diversas manifestaciones,
se hizo hincapié en los procesos y mecanismos diferenciales
mediante los cuales se ha desarrollado la financierización. En
segundo lugar, se ampliaron los análisis de la relación entre
la financierización y los flujos de capital transfronterizos.
A diferencia de los trabajos existentes, se puso el acento
en los receptores de capital y en las repercusiones de la
financierización internacional en las estructuras financieras y
económicas nacionales. En tercer lugar, al subrayar la estrecha
relación entre las constelaciones monetarias internacionales y
la financierización, el estudio se insertó en un análisis crítico
del dinero, un aporte que curiosamente falta en la mayor parte
de la literatura sobre financierización. Por último, y tal vez
más importante, se mostró que la financierización no solo está
básicamente determinada por la posición subordinada de las
economías capitalistas emergentes en la economía financiera
internacional, sino que la misma financierización consolida
dicha posición y exacerba el desarrollo desigual. Esto funciona
tanto a través de las consecuencias reales de la financierización
como de los procesos de autorrefuerzo dentro de los propios
mercados financieros.

154
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

Bibliografía
AALBERS, M. “The financialization of home and the mortgage market
crisis”. Competition and Change, vol. 12, N° 2, Thousand Oaks: SAGE
Publishing, junio, 2008.
AGLIETTA, M.; BRETON, R. “Financial systems, corporate control and
capital accumulation”. Economy and Society, vol. 30, N° 4, Abingdon: Rout-
ledge, 2001.
AKKEMIK, K.; ÖZEN, Ş. “Macroeconomic and institutional determinants of
financialisation of non-financial firms: Case study of Turkey”. Socio-Economic
Review, vol. 12, N° 1, Oxford: Oxford University Press, enero, 2014.
AKYÜZ, Y. “Internationalization of finance and changing vulnerabilities
in emerging and developing economies”. Research Paper, N° 60, Ginebra:
Centro del Sur, enero, 2015.
AMARAL, M. “Teorias do imperialismo e da dependência: a atualização
necessária ante a financeirização do capitalismo”. Tesis de doctorado, São
Paulo, Universidad de São Paulo, 2012. [en línea] http://www.teses.usp.
br/teses/disponiveis/12/12140/ tde-09102012-174024/pt-br.php.
ARAÚJO, E.; BRUNO, M.; PIMENTEL, D. “Financialization against indus-
trialization: a regulationnist approach to the Brazilian Paradox”. Revue de
la Regulation, N° 11, Grenoble: Universidad Pierre Mendès France, 2012.
ARON, J.; LEAPE, J.; THOMAS, L. “Foreign portfolio investment and
capital markets in South Africa”. Documento presentado en la Conferencia
Anual 2010 del Centro de Estudios de Economía Africana (CSAE), Oxford,
St. Catherine’s College, 21-23 de marzo, 2010.
ARRIGHI, G. The Long Twentieth Century: Money, Power, and the Origins of
Our Times. Londres/Nueva York: Verso, 1994.
Banco Central del Brasil. “Balancetes”, Brasília, 2015a [en línea] http://
www4.bcb. gov.br/fis/cosif/balancetes.asp.
______. “Historical series of the balance of payments. Balance of payments
and international investment position manual. 6th edition (BPM6)”.
Brasília, 2015b [en línea] http://www.bcb.gov.br/ingles/economic/
seriehist_i_bpm6.asp.
______. “Nota para a imprensa”, Brasília, mayo, 2015c [en línea] http://
www.bcb.gov.br/htms/infecon/demab/ma201505/index.asp.
BARAN, P.; SWEEZY, P. Monopoly Capital: An Essay on the American
Economic and Social Order. Nueva York: Monthly Review Press, 1966.
BECKER, J. y otros. “Peripheral financialization and vulnerability to
crisis: a regulationist perspective”. Competition and Change, vol. 14, N° 3-4,
Thousand Oaks: SAGE Publishing, diciembre, 2010.
BOND, P. Uneven Zimbabwe: A Study of Finance, Development, and Under-
development. Asmara/Trenton: Africa World Press, 1998.

155
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

BONIZZI, B. “Financialization in developing and emerging countries”.


International Journal of Political Economy, vol. 42, N° 4, Abingdon: Rout-
ledge, 2013.
BOYER, R. “Assessing the impact of fair value upon financial crises”. Socio-
Economic Review, vol. 5, N° 4, Oxford: Oxford University Press, octubre, 2007.
______. “Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism?
A preliminary analysis”. Economy and Society, vol. 29, N° 1, Abingdon: Rout-
ledge, 2000.
BPI (Banco de Pagos Internacionales). “What do new forms of finance
mean for EM central banks?”. BIS Papers, N° 83, Basilea, noviembre, 2015.
BRENNER, R. “New boom or new bubble”. New Left Review, vol. 25,
Londres, enero-febrero, 2014.
BRUNO, V.; SHIN, H. S. “Global dollar credit and carry trades: a firm-level
analysis”. BIS Working Papers, N° 510, Basilea, Banco de Pagos Internacio-
nales (BPI), agosto, 2015.
BUREAU VAN DIJK. Base de datos Bankscope. 2016. [en línea] https://
www.bvdinfo.com/en-us/our-products/company-information/internatio-
nal-products/bankscope.
BURGER, J.; WARNOCK, F. “Local currency bond markets”. NBER
Working Paper, N° 12.552, Cambridge: Oficina Nacional de Investigaciones
Económicas, octubre, 2006.
CABALLERO, R.; COWAN, K.; KEARNS, J. “Fear of sudden stops: lessons
from Australia and Chile”. NBER Working Paper, N° 10.519, Cambridge:
Oficina Nacional de Investigaciones Económicas, mayo, 2004.
CHILCOTE, R. “A question of dependency”. Latin American Research
Review, vol. 13, N° 2, Pittsburgh: Asociación de Estudios Latinoamericanos
(LASA), 1978. CHRISTOPHERS, B. “The limits to financialization”.
Dialogues in Human Geography, vol. 5, N° 2, Thousand Oaks: SAGE
Publishing, julio, 2015.
______. “Anaemic geographies of financialisation”. New Political Economy,
vol. 17, N° 3, Abingdon: Routledge, 2012.
COHEN, B. “The macrofoundations of monetary power”. International
Monetary Power, D. Andrews (Ed.) Ithaca: Cornell University Press, 2006.
______. The Geography of Money. Ithaca: Cornell University Press, 1998.
CORREA, E.; VIDAL, G.; MARSHALL, W. “Financialization in Mexico:
trajectory and limits”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. 35, N° 2,
Abingdon: Taylor & Francis, 2012.
CROTTY, J. “The neoliberal paradox: the impact of destructive product
market competition and impatient finance on non-financial corporations
in the neoliberal era”. Review of Radical Political Economics, vol. 35, N° 3,
Thousand Oaks: SAGE Publishing, septiembre, 2003.

156
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

DE CONTI, B. “Políticas cambial e monetária: os dilemas enfrentados por


países emissores de moedas periféricas”. Tesis de doctorado, Campinas:
Universidad Estadual de Campinas, febrero, 2011.
DE CONTI, B.; PRATES, D.; PLIHON, D. “A hierarquia monetária e suas
implicações para as taxas de câmbio e de juros e a política econômica dos
países periféricos”. Economia e Sociedade, vol. 23, N° 2, Campinas: Univer-
sidad Estadual de Campinas, agosto, 2014.
DEMIR, F. “Financial liberalization, private investment and portfolio choice:
financialization of real sectors in emerging markets”. Journal of Development
Economics, vol. 88, N° 2, Amsterdam: Elsevier, marzo, 2009a.
______. “Capital market imperfections and financialization of real sectors in
emerging markets: private investment and cash flow relationship
revisited”. World Development, vol. 37, N° 5, Amsterdam: Elsevier,
mayo, 2009b.
DOS SANTOS, P. “On the content of banking in contemporary capitalism”.
Historical Materialism, vol. 17, N° 2, Leiden: Brill, junio, 2009.
______. La teoría de la dependencia: balance y perspectivas. Buenos Aires: Plaza &
Janes Editores, 2003.
DOUCETTE, J.; SEO, B. “Limits to financialization? Locating financializa-
tion within East Asian exportist economies”. Working Paper, N° 21, Tokio:
Universidad Hitotsubashi, septiembre, 2011.
DOW, S. “International liquidity preference and endogenous credit”. Foun-
dations of International Economics: Post Keynesian Perspectives, J. Deprez y J.
Harvey (Eds.) Londres: Routledge, 1999.
DUMENIL, G.; LEVY, D. Capital Resurgent: Roots of the Neoliberal Revolu-
tion. Cambridge: Harvard University Press, abril, 2004.
DYMSKI, G. “Why the subprime crisis is different: a Minskyian approach”.
Cambridge Journal of Economics, vol. 34, N° 2, Oxford: Oxford University
Press, marzo, 2010.
EICHENGREEN, B. Exorbitant Privilege: The Rise and Fall of the Dollar and
the Future of the International Monetary System. Oxford: Oxford Univer-
sity Press, noviembre, 2010.
EICHENGREEN, B.; GUPTA, P. “Tapering talk: the impact of expectations
of reduced federal reserve security purchases on emerging markets”. Vox,
Londres: Centro de Investigación sobre Políticas Económicas (CEPR), 19
diciembre, 2013. [en línea] http://www.voxeu.org/article/fed-tapering-an-
d-emerging-markets.
EICHENGREEN, B.; HAUSMANN, R.; PANIZZA, U. “The mystery of
original sin”. Debt Denomination and Financial Instability in Emerging Market
Economies, B. Eichengreen y R. Hausmann (Eds.) Chicago: University of
Chicago Press, febrero, 2005.

157
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

ENGELEN, E.; KONINGS, M.; FERNANDEZ, R. “Geographies of financial-


ization in disarray: the Dutch case in comparative perspective”. Economic
Geography, vol. 86, N° 1, Worcester: Clark University, enero, 2010.
ERGÜNES, N. “Global integration of middle-income developing countries
in the era of financialisation: the case of Turkey”. Financialisation in Crisis,
C. Lapavitsas (Ed.), Leiden: Brill, 2012.
ERTÜRK, I. “Governance or financialisation: the Turkish case”. Competition
and Change, vol. 7, N° 4, Abingdon: Routledge, 2003.
ERTÜRK, I.; SOLARI, S. “Banks as continuous reinvention”. New Political
Economy, vol. 12, N° 3, Abingdon: Routledge, septiembre, 2007.
FARHI, M.; BORGHI, R. “Operações com derivativos financeiros das
corporações de economias emergentes no ciclo recente”. Estudos Avançados,
vol. 23, N° 66, São Paulo: Universidad de São Paulo, 2009.
FISCHER, A. “The end of peripheries? On the enduring relevance of struc-
turalism for understanding contemporary global development”. Develop-
ment and Change, vol. 46, N° 4, Hoboken: Wiley, julio, 2015.
FMI (Fondo Monetario Internacional) Base de datos International Finan-
cial Statistics (IFS), Washington, D.C., 2016. [en línea] http://data.imf.
org/?sk=5DABAFF2-C5AD-4D27-A175-1253419C02D1.
FRANK, A. Capitalism and Underdevelopment in Latin America: Historical
Studies of Brazil and Chile. Nueva York: Monthly Review Press, 1967.
FRENCH, S.; LEYSHON, A. “The new, new financial system? Towards a
conceptualization of financial reintermediation”. Review of International
Political Economy, vol. 11, N° 2, Abingdon: Routledge, mayo, 2004.
FRENCH, S.; LEYSHON, A.; WAINWRIGHT, T. “Financializing space,
spacing financialization”. Progress in Human Geography, vol. 35, N° 6,
Thousand Oaks: SAGE Publishing, julio, 2011.
FRITZ, B. Entwicklung durch wechselkurs-basierte Stabilisierung? Der Fall
Brasilien. Marburgo: Metropolis, 2002.
FRITZ, B.; PRATES, D.; DE PAULA, L. “Keynes at the periphery: currency
hierarchy and challenges for economic policy in emerging economies”.
Anais do XLII Encontro Nacional de Economia, N° 110, Rio de Janeiro, Asocia-
ción Nacional de los Centros de Posgrado en Economia (ANPEC), 2014.
[en linea] https://www.anpec.org.br/encontro/2014/submissao/files_I/
i77db2c867ef1f3165be933e8ed03fd87f.pdf.
FURTADO, C. Formación económica del Brasil. Ciudad de Mexico: Fondo de
Cultura Económica, 1962.
GABOR, D. “The financialisation of the Romanian economy: from central
bank-led to dependent financialization”. Studies in Financial Systems, N° 5,
Leeds: Proyecto FESSUD, julio, 2013.
______. Central Banking and Financialization. A Romanian Account of how
Eastern Europe became Subprime. Londres: Palgrave Macmillan, 2010.

158
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

GOLDSTEIN, M.; TURNER, P. Controlling Currency Mismatches in Emerging


Markets. Washington, D.C.: Instituto Peterson de Economia Internacional,
abril, 2004.
GONZÁLES-MIRANDA, M. “Nonfinancial firms in Latin America: a
source of vulnerability?”. IMF Working Papers, N° 12/279, Washington,
D.C.: Fondo Monetario Internacional (FMI), noviembre, 2012.
GUTTMANN, R. “A primer on finance-led capitalism and its crisis”. Revue
de la Regulation, vol. 3-4, Grenoble: Universidad Pierre Mendès France,
2008.
HARVEY, D. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
HELLEINER, E. “Political determinants of international currencies: what
future for the US dollar?”. Review of International Political Economy, vol. 15,
N° 3, Abingdon: Routledge, 2008.
______. States and the Reemergence of Global Finance: From Bretton Woods to
the 1990s. Ithaca: Cornell University Press, 1994.
HELLEINER, E.; KIRSHNER, J. The Future of the Dollar. Ithaca: Cornel
University Press, 2009.
HERR, H. Geld, Währungswettbewerb und Währungssysteme: Theoretische
und Historische Analyse der Internationalen Geldwirtschaft. Frankfurt:
Campus Verlag, 1992.
HERR, H.; HÜBNER, K. Währung und Unsicherheit in der Globalen Ökonomie:
Eine Geldwirtschaftliche Theorie der Globalisierung. Berlin: Edition
Sigma, 2005.
IFI (Instituto de Finanzas Internacionales) “Global debt monitor data”.
Washington, D.C., 2016. [en linea] http://www.iif.com/content/global-
debt-monitor-data.
______. Capital Flows to Emerging Markets. Washington, D.C., enero, 2015.
ITOH, M. “Political economy of money, credit and finance in contempo-
rary capitalism: remarks on Lapavitsas and Dymski”. Historical Materialism,
vol. 14, N° 1, Leiden: Brill, 2006.
ITOH, M.; LAPAVITSAS, C. Political Economy of Money and Finance.
Londres: Palgrave Macmillan, 1999.
JONES, S. “Macro funds seek succour in emerging markets”. Financial
Times, Londres, 24 de octubre, 2012. [en linea] https://www.ft.com/
content/406cec70-1ddb-11e2-8e1d-00144feabdc0.
KALINOWSKI, T.; CHO, H. “The political economy of financial libera-
lization in South Korea: state, big business, and foreign investors”. Asian
Survey, vol. 49, Berkeley: University of California Press, marzo-abril, 2009.
KALTENBRUNNER, A. “A post Keynesian framework of exchange rate
determination: a Minskyan approach”. Journal of Post Keynesian Economics,
vol. 38, N° 3, Abingdon: Taylor & Francis, 2015.

159
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

KALTENBRUNNER, A.; PAINCEIRA, J. “Developing countries’ changing


nature of financial integration and new forms of external vulnerability: the
Brazilian experience”. Cambridge Journal of Economics, vol. 39, N° 5, Oxford:
Oxford University Press, septiembre, 2015.
KARACIMEN, E. “Consumer credit as an aspect of everyday life of workers
in developing countries. Evidence from Turkey”. Review of Radical Political
Economics, vol. 48, N° 2, Thousand Oaks: SAGE Publishing, mayo, 2016.
______. “Financialization in Turkey: the case of consumer debt”. Journal of
Balkan and Near Eastern Studies, vol. 16, N° 2, Abingdon: Taylor & Francis,
2014.
KENEN, P. “Currency internationalization: an overview”. BIS Papers, N° 61,
Basilea: Banco de Pagos Internacionales (BPI), enero, 2012.
KIRSHNER, J. “Dollar primacy and American power: what’s at stake?”.
Review of International Political Economy, vol. 15, N° 3, Abingdon: Taylor &
Francis, 2008.
KRUGMAN, P. “What happened to Asia?”. Global Competition and Integra-
tion, R. Sato, R. Ramachandran y K. Mino (Eds.) Berlin: Springer, 1999.
LANGLEY, P. The Everyday Life of Global Finance: Saving and Borrowing in
Anglo-America. Oxford: Oxford University Press, mayo, 2008.
LAPAVITSAS, C. Profiting Without Producing: How Finance Exploits Us All.
Nueva York: Verso Books, 2014.
______. “Financialisation embroils developing countries”. Papeles de Europa,
vol. 19, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2009a.
______. “Financialisation, or the search for profits in the sphere of circu-
lation”. Research on Money and Finance Discussion Paper, N° 10, Londres:
Universidad de Londres, mayo, 2009b.
______. “Relations of power and trust in contemporary finance”. Historical
Materialism, vol. 14, N° 1, Leiden: Brill, 2006.
LAPAVITSAS, C.; POWELL, J. “Financialisation varied: a comparative
analysis of advanced economies”. Cambridge Journal of Regions, Economy and
Society, vol. 6, nº 3. Oxford: Oxford University Press, noviembre, 2013.
LAZONICK, W.; O’SULLIVAN, M. “Maximizing shareholder value: a new
ideology for corporate governance”. Economy and Society, vol. 29, N° 1,
Abingdon: Taylor & Francis, 2000.
LEVY-ORLIK, N. “Effects of financialization on the structure of produc-
tion and non-financial private enterprises: the case of Mexico”. Journal of
Post Keynesian Economics, vol. 35, N° 2, Abingdon: Taylor & Francis, 2012.
MACKINNON, R.; PILL, H. “International overborrowing: a decom-
position of credit and currency risks”. World Development, vol. 26, N° 7,
Amsterdam: Elsevier, Julio, 1998.
MAGDOFF, H.; SWEEZY, P. “Capitalism and the distribution of income

160
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

and wealth”. Monthly Review, vol. 39, N° 5, Nueva York: Monthly Review
Press, octubre, 1987.
______. “Economic History as it Happened”. The Dynamics of U.S. Capi-
talism: Corporate Structure, Inflation, Credit, Gold, and the Dollar, vol. I,
Nueva York: Monthly Review Press, enero, 1972.
MARINI, R. Dialéctica de la Dependencia. Buenos Aires: Consejo Latinoame-
ricano de Ciencias Sociales (CLACSO), 1973.
MARX, K. Capital: Volume Three. Londres: Lawrence & Wishart, 1987.
______. Capital: Volume I. Londres: Penguin Books, 1976.
______. Capital Unabridged, Volume 1: A Critical Analysis of Capitalist
Production. Nueva York: International Publishers, 1967.
MATOS, P. “On the Latin American credit drivers”. Emerging Markets
Finance and Trade, vol. 53, N° 2, Abingdon: Taylor & Francis, 2017.
MAZIAD, S. y otros. “Internationalization of emerging market currencies:
a balance between risks and rewards”. IMF Staff Discussion Note, N° 11/17,
Washington, D.C.: Fondo Monetario Internacional (FMI), octubre, 2011.
McNALLY, D. “From financial crisis to world slump: accumulation, finan-
cialization, and the global slowdown”. Historical Materialism, vol. 17, N° 2,
Leiden: Brill, 2009.
McNAMARA, K. “A rivalry in the making? The euro and international
monetary power”. Review of International Political Economy, vol. 15, N° 3,
Abingdon: Taylor & Francis, 2008.
MINH, L. “Review essay. Special drawing rights, the dollar, and the institu-
tionalist approach to reserve currency status”. Review of International Polit-
ical Economy, vol. 19, N° 2, Abingdon: Taylor & Francis, 2012.
MISHRA, P. y otros. “Impact of fed tapering announcements on emerging
markets”. IMF Working Paper, N° 14/109, Washington, D.C.: Fondo Mone-
tario Internacional (FMI), junio, 2014.
MONTGOMERIE, J. “The pursuit of (past) happiness? Middle-class indebt-
edness and American financialisation”. New Political Economy, vol. 14, N° 1,
Abingdon: Taylor & Francis, 2009.
______. “Bridging the critical divide: global finance, financialisation and
contemporary capitalism”. Contemporary Politics, vol. 14, N° 3, Abingdon:
Taylor & Francis, 2008.
ORHANGAZI, Ö. “Financialization and capital accumulation in the non-
financial corporate sector: a theoretical and empirical investigation of the
US economy: 1973-2004”. Cambridge Journal of Economics, vol. 32, N° 6,
Oxford: Oxford University Press, noviembre, 2008.
OTERO-IGLESIAS, M.; STEINBERG, F. “Is the dollar becoming a negoti-
ated currency? Evidence from the emerging markets”. New Political Economy,
vol. 18, N° 3, Abingdon: Taylor & Francis, 2013.

161
Annina Kaltenbrunner e Juan Pablo Painceira

PAINCEIRA, J. “Financialisation, reserve accumulation, and central


banking in emerging economies: banks in Brazil and Korea”. Research
on Money and Finance Discussion Paper, N° 38, Londres: Universidad de
Londres, julio, 2012.
______. “Central banking in middle income countries in the course of finan-
cialisation: a study with special reference to Brazil and Korea”. Tesis de
doctorado, Londres, Universidad de Londres, 2011.
______. “Developing countries in the era of financialisation: from deficit-ac-
cumulation to reserve-accumulation”. Financialisation in Crisis, C. Lapavi-
tsas (ed.), Leiden: Brill, 2008.
PALMA, G. “Dependency: a formal theory of underdevelopment or a meth-
odology for the analysis of concrete situations of underdevelopment?”.
World Development, vol. 6, N° 7-8, Amsterdam: Elsevier, julio-agosto, 1978.
PANITCH, L.; GINDIN, S. The Making of Global Capitalism: The Political
Economy of American Empire. Londres: Verso, 2012.
PANITCH, L.; KONINGS, M. (Eds.) American Empire and the Political
Economy of Global Finance. Londres: Palgrave Macmillan, 2009.
PIKE, A.; POLLARD, J. “Economic geographies of financialization”.
Economic Geography, vol. 86, N° 1, Hoboken: Wiley, enero, 2010.
POWELL, J. “Subordinate financialisation: a study of Mexico and its non-
financial corporations”. Tesis de doctorado, Londres, Universidad de
Londres, 2013.
PRADELLA, L. “Imperialism and capitalist development in Marx’s capital”.
Historical Materialism, vol. 21, N° 2, Leiden: Brill, 2013.
PRATES, D.; ANDRADE, R. “Exchange rate dynamics in a peripheral
monetary economy”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. 35, N° 3,
Abingdon: Taylor & Francis, 2013.
PREBISCH, R. “El desarrollo económico de la America Latina y sus prin-
cipales problemas” (E/CN.12/89). Santiago, Comisión Económica para
America Latina y el Caribe (CEPAL), mayo, 1949. [en línea] http://reposi-
torio.cepal.org/bitstream/ handle/11362/30088/001_es.pdf.
Proyecto FESSUD. “FESSUD studies in financial systems”. Leeds, 2015. [en
línea] http://fessud.eu/studies-in-financial-systems/.
RETHEL, L. “Financialisation and the Malaysian political economy”.
Globalizations, vol. 7, N° 4, Abingdon: Routledge, 2010.
RODRIGUES, J.; SANTOS, A.; TELES, N. “Semi-peripheral financialisa-
tion: the case of Portugal”. Review of International Political Economy, vol. 23,
N° 3, Abingdon: Routledge, 2016.
RUDE, C. “The role of financial discipline in imperial strategy”. American
Empire and the Political Economy of Global Finance, L. Panitch y M. Konings
(Eds.), Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009.

162
Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada

SEO, H. J.; KIM, H. S.; KIM, Y. C. “Financialization and the slowdown


in Korean firms’ R&D investment”. Asian Economic Papers, vol. 11, N° 3,
Cambridge: The MIT Press, 2012.
SOKOL, M. “Financialisation, financial chains and uneven geographical
development: towards a research agenda”. Research in International Business
and Finance, vol. 39, Amsterdam: Elsevier, enero, 2017.
STOCKHAMMER, E. “Financialization and the global economy”. Working
Paper series, N° 240, Amherst: Universidad de Massachusetts, noviembre,
2010.
______. “Financialisation and the slowdown of accumulation”. Cambridge
Journal of Economics, vol. 28, N° 5, Oxford: Oxford University Press,
septiembre, 2004.
STRANGE, S. Sterling and British Policy: A Political Study of an Interna-
tional Currency in Decline, Oxford: Oxford University Press, 1971.
VERNENGO, M. “Technology, finance and dependency: Latin American
radical political economy in retrospect”. Review of Radical Political Economics,
vol. 38, N° 4, Thousand Oaks: SAGE Publishing, 2006.
YUK, P. “The rise of emerging markets ETFs”. Financial Times, Londres, 18
octubre, 2012. [en línea] http://blogs.ft.com/beyond-brics/2012/10/18/
the-rise-and-rise-of-emerging-markets-etfs.

163
Parte II

Financeirização, Capitalismo e Território


Financeirização e mercantilização à luz dos
ciclos sistêmicos de acumulação
e de urbanização1

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro


Nelson Diniz

Introdução

C om este artigo, que atualiza e amplia versão anterior


de nossas reflexões, pretendemos oferecer uma abor-
dagem das relações entre financeirização e mercantilização,
tendo em vista, ainda, algumas observações sobre os impactos
urbanos e territoriais desses processos inter-relacionados2. Ao
fazê-lo, apresentaremos algumas das principais hipóteses da
pesquisa “Metrópole, Estado e Capital”, que vem sendo desenvol-
vida, no âmbito do Observatório das Metrópoles, com o intuito
de encontrar marcos teóricos alternativos para a compreensão
do atual ciclo de reestruturação espaço-temporal. O que nos
levou a considerar, principalmente, os horizontes de análise que
se desdobram da matriz de pensamento arrighiana-braudeliana.
Como se sabe, as mudanças típicas da atual fase de desen-
volvimento do capitalismo deram lugar a uma lógica geral de
produção social do espaço que está determinada pelas novas
formas de acumulação ditas financeirizadas, que manifestaram
seus efeitos mais contraditórios desde o início da última grande
crise sistêmica do capitalismo, entre 2007-2009. Crise profun-
damente enraizada, como propõe Harvey (2011), em questões
territoriais e que posicionou ou reposicionou a problemática dos
elos entre o financeiro e o imobiliário no centro das pesquisas

1
Capítulo publicado originalmente nos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39,
p. 351-377, agosto, 2017.
2
Referimo-nos ao artigo “Financeirização, mercantilização e reestruturação
espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistêmicos de acumu-
lação e da teoria do duplo movimento”, publicado, originalmente, em Cadernos
Metrópole. Cf. Ribeiro e Diniz (2017).

167
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

urbanas. A esse respeito, Sanfelici (2013), por exemplo, estabe-


lece o seguinte:

A problemática colocada pelos elos entre o financeiro e o


imobiliário não é exatamente nova para a Geografia e ou-
tras ciências humanas. Ela despertou considerável interesse,
nos anos 1980, em pesquisadores do mundo anglo-saxão,
em parte em decorrência da projeção adquirida pela ideia
defendida por Harvey em seu livro Limits to capital [...], de
que haveria uma tendência à transmutação do solo e seus
melhoramentos em uma forma de capital fictício; mas o in-
teresse também veio de um reconhecimento da presença de
poderosos interesses financeiros na renovação das áreas de
negócios (central business districts) das grandes metrópoles
do mundo desenvolvido e, posteriormente, no colapso de bo-
lhas imobiliárias em várias localidades (p. 33).

Não há dúvidas de que, dentre as inúmeras bolhas imobi-


liárias que se sucederam desde os anos 1980 no mundo, a mais
recente, a das hipotecas subprime, destacou-se, justamente, por
revelar até que ponto chegaram as relações entre o financeiro
e o imobiliário. A insolvência das hipotecas de risco assumidas
nos Estados Unidos – hipotecas convertidas, por intermédio do
mecanismo da securitização, em novos títulos com liquidez inter-
nacional – foi suficiente para abalar a estabilidade da acumulação
capitalista em escala global. Enfim, é nesse contexto, o da domi-
nância financeira contemporânea e de sua propensão às crises,
que se inscrevem nossas reflexões e preocupações de pesquisa.
Neste artigo, em particular, organizaremos nossa exposição em
torno de dois objetivos básicos. Primeiro, em nome de uma defi-
nição mais precisa dos conceitos de financeirização e mercantili-
zação, nos posicionaremos no debate a seu respeito a partir de uma
interpretação arrighiana-braudeliana e polanyiana. Em seguida,
com base na articulação das contribuições teóricas de David Harvey
e Giovanni Arrighi, esboçaremos a ideia dos ciclos sistêmicos de
urbanização, com a qual pretendemos oferecer alternativas teóricas
às leituras da financeirização mais difundidas nos estudos urbanos.
Comecemos, para tanto, com uma pergunta colocada em termos
simples: o que é, afinal de contas, a financeirização?

168
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

O que é a financeirização?
Na busca por uma resposta abrangente para a interrogação
acima, considere-se, de início, uma das definições da financeiri-
zação mais influentes no campo das pesquisas urbanas. Conforme
Aalbers (2015): “Dominância crescente de atores, mercados,
práticas, medidas e narrativas financeiras, em múltiplas escalas,
resultando na transformação estrutural das economias, das
corporações (incluindo instituições financeiras), dos Estados e
das famílias” (p. 214, tradução nossa).
Outros autores, como Braga (1997), costumam iniciar o
debate sobre o significado da financeirização contemporânea
enfatizando sua forma de manifestação mais aparente, que suge-
riria a “crescente e recorrente defasagem, por prazos longos,
entre os valores dos papéis representativos da riqueza […] e os
valores dos bens, serviços e bases técnico-produtivas em que se
fundam a reprodução da vida e da sociedade” (p. 196). A Tabela
1, elaborada por Paulani (2009), permite ilustrar essa defasagem.

Tabela 1 – Riqueza fictícia e renda real


Relação
Estoque mundial
PNB mundial estoque ativos
Ano de ativos financeiros*
(US$ trilhões) financeiros/
(US$ trilhões)
PNB
1980 12 11,8 1,02
1993 53 24,9 2,13
1996 69 30,3 2,28
1999 96 31,1 3,09
2003 118 37,1 3,18
2006 167 48,8 3,42
2007 200** 54,8 3,65
2010*** 209 55,9 3,74
* Inclui ações e debêntures, títulos de dívida privados e públicos e aplicações bancárias;
não inclui derivativos**. Estimativas***. Projeções. Fonte: elaborado por Paulani
(2009) a partir de dados do McKinseys Global Institute (ativos) e do FMI (PNB).

Por certo, nem a definição acima nem a simples identificação


da defasagem entre os valores dos ativos financeiros e o dos bens
e serviços são suficientes para definir com precisão o conceito

169
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

em tela e esgotar o debate a seu respeito. Não obstante, os dados


da Tabela 1 indicam que, mesmo após a crise sistêmica de 2007-
2009, mantiveram-se as projeções de crescimento da despro-
porção entre esses valores. Portanto, ainda de acordo com Braga
(1997), tomamos como um ponto de partida mais consistente a
ideia segundo a qual a financeirização é o padrão sistêmico de
riqueza do capitalismo contemporâneo. Quer dizer, um processo
geral de transformação do capitalismo que se torna estrutural,
cria novas formas institucionais, marca as estratégias de todos
os agentes privados relevantes, altera a operação das finanças e
dos gastos públicos e, de várias maneiras, se diferencia do que é
próprio das fases em que a valorização produtiva subordina os
mecanismos da valorização financeira. Tudo isso se expressando
ou produzindo impactos em distintos níveis ou dimensões da
sociedade e da economia, como o da gestão corporativa, da vida
cotidiana, da reprodução social, da produção imobiliária etc.
Além disso, acreditamos que uma breve exposição das
principais matrizes teóricas em torno das quais se desenvolve o
debate mais geral sobre a financeirização também contribui para
delimitar melhor seus principais contornos. Considere-se, então,
as formas de explicar a financeirização enumeradas abaixo.
i) A releitura das teorias monetária e do crédito de Marx,
típica de trabalhos como os de Fine (2014), Carcanholo e Nakatani
(2015a; 2015b) e Paulani (2016). Paulani (2016), por exemplo,
parte das categorias de rendimento deduzidas da teoria marxista
do valor: salário, lucro, sobrelucro, renda diferencial, renda
absoluta, renda de monopólio, juros e dividendos. E, levando
em conta essas categorias, a autora descreve a financeirização
como expressão específica do rentismo constitutivo do capita-
lismo contemporâneo. Autores como Carcanholo e Nakatani
(2015a; 2015b), assim como Fine (2014), buscam, por seu turno,
definir a financeirização como o resultado da atual dominância
da lógica de valorização do capital fictício, conceito com o qual
Marx ([1894] 1986a; [1894] 1986b) enfatizou a possibilidade de
transformação de fluxos futuros de rendimento em títulos nego-
ciados no presente. Note-se, ainda, que a referência à dominância
da lógica de valorização do capital fictício também é considerada
por Paulani (2016), bem como por autores e autoras do campo

170
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

dos estudos urbanos brasileiros, como Fix (2011), Pereira (2015)


e Rolnik (2015), que resgatam o argumento de Harvey ([1982]
2013) sobre a conversão da terra e do meio ambiente construído
em capital fictício.
ii) A retomada das teorias do imperialismo e do capital finan-
ceiro, formuladas, no início do século XX, por autores clássicos
do marxismo, como Hilferding ([1910] 1985) e Lênin ([1917]
2011). Lapavitsas (2009; 2011; 2013), por exemplo, defende
essa perspectiva definindo a financeirização como uma transfor-
mação sistêmica das economias capitalistas desenvolvidas. Trans-
formação que, em sua opinião, abrange três elementos centrais:
a) as grandes empresas não financeiras diminuíram sua depen-
dência de empréstimos bancários, adquirindo capacidades finan-
ceiras; b) os bancos expandiram suas atividades de mediação nos
mercados financeiros, bem como seus empréstimos aos indiví-
duos e às famílias; e c) as famílias tornaram-se crescentemente
envolvidas no domínio das finanças, tanto como devedoras
quanto como proprietárias de ativos.
iii) O resgate da teoria marxista clássica do capital monopo-
lista (BARAN; SWEEZY, [1966] 1988) e a análise da financeiri-
zação como nova fase ou etapa híbrida do capitalismo, isto é, a do
predomínio do capital monopolista-financeiro (FOSTER, 2006;
2010). Trata-se, principalmente, de pôr em questão as atuais
relações entre estagnação econômica, declínio da produção e o
que Magdoff e Sweezy (1985) chamaram de explosão financeira,
que, por hipótese, seria uma resposta historicamente determi-
nada ao problema da absorção dos excedentes de capital. Exce-
dentes que não encontram alternativas de investimento lucra-
tivas na esfera da produção e são deslocados para a esfera da
valorização financeira.
iv) A renovação das abordagens keynesiana e pós-keyne-
siana, cuja atenção primordial, no que tange à financeirização,
concerne aos impactos da expansão das finanças nos ritmos
de crescimento dos investimentos produtivos. Para Lapavitsas
(2011), o que está em questão, nesse caso, é uma perspectiva que
busca compreender como a baixa performance do setor real da
economia é provocada e/ou acentuada pelo incremento do setor
financeiro e pela preponderância da figura do rentier. Perspectiva

171
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

que coincide, portanto, com as principais hipóteses, pressupostos


e questões da abordagem pautada pelo resgate da teoria do capital
monopolista: ambas estabelecem uma relação direta entre finan-
ceirização e estagnação econômica. Destaque-se, ainda, a impor-
tância da concepção da instabilidade financeira do capitalismo,
de inspiração pós-keynesiana, desenvolvida, originalmente, por
Minsky (1982).
v) As teses e teorias regulacionistas acerca do surgimento
do regime de acumulação financeirizado ou com dominância
financeira, formuladas por autores como Aglietta (1998) e Boyer
(2000) e bastante difundidas no Brasil, sobretudo na versão
marxista-regulacionista de Chesnais (1998; 2002).
De acordo com essa perspectiva, ao menos desde os anos
1970, as questões econômicas sugeridas pelas matrizes de pensa-
mento marxista e keynesiana foram amplamente resgatadas
e atualizadas. Grosso modo, foi o que fizeram os autores e as
autoras da teoria da regulação, ao estabelecerem concepções tais
como a de regime de acumulação e a de modo de regulação.
Concepções que ressaltam as formas de estabilização e repro-
dução regular das relações sociais contraditórias em que se
fundam os processos de acumulação.
Nos marcos do desenvolvimento, da difusão e também dos
questionamentos à teoria da regulação, surgiram um conjunto
de hipóteses sobre a possível substituição do regime de acumu-
lação fordista, do keynesianismo e do Estado de Bem-Estar por
um regime de acumulação financeirizado ou com dominância
financeira. Harvey ([1989] 2008), por exemplo, numa aproxi-
mação parcial à teoria da regulação, problematiza a hipótese da
transição para o que chama de “regime de acumulação flexível”,
caracterizado, principalmente, por processos de reestruturação
produtiva e pela ascendência das finanças.
No campo dos estudos urbanos brasileiros, pode-se
mencionar a influência das perspectivas de viés regulacionista
nas obras de autores e autoras como Royer (2009), Fix (2011),
Sanfelici (2013), Rolnik (2015) e Pereira (2015). Rolnik (2015),
por exemplo, assimila os principais termos das leituras que
sustentam “o declínio da lucratividade dos setores fordistas” e
sublinham “as políticas de desmanche dos componentes institu-

172
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

cionais básicos que sustentavam o Estado de bem-estar social”


(p. 10). No domínio da economia política, Paulani (2009;
2011; 2013; 2016; 2017), Bruno et al. (2011) e Bruno e Caffé
(2015) procedem, por sua vez, de modo semelhante. Ainda no
que diz respeito às investigações urbanas, Pereira (2015), por
fim, defende que a ordem social e econômica do “capitalismo
contemporâneo, marcada pela difusão de uma agenda política
neoliberal e pela emergência de um regime de acumulação com
dominância financeira, tem seus desdobramentos específicos na
escala das cidades” (p. 6).
vi) As abordagens da urbanização do capital, que enfatizam
como a financeirização exacerba a tendência capitalista de trans-
formação da terra em ativo financeiro. Seu ponto de partida são
as reflexões seminais de Lefebvre ([1968] 2008a; [1970] 2008b;
[1972] 2008c) e Harvey ([1982] 2013, 1985a; 1985b) sobre a
absorção de capitais superacumulados e os ajustes das contradi-
ções e das crises do capitalismo por intermédio da produção social
do espaço3. Trata-se de reflexões que estiveram no centro das polê-
micas que originaram o campo da teoria urbana crítica e procu-
ravam explorar as relações entre a valorização produtiva (circuito
primário do capital) e a valorização fundada na especulação finan-
ceiro-imobiliária com direitos de propriedade (circuito secundário
do capital). Iniciativas como as de Gotham (2006), Aalbers (2008;
2009a; 2009b; 2016) e Christophers (2010; 2011) expressam essa
abordagem. No Brasil, Fix (2011), Rolnik (2015) e Pereira (2015)
também desenvolvem suas pesquisas nesse sentido.
vii) O recurso às teorias do capitalismo como sistema histó-
rico, elaboradas, especialmente, por autores como Wallerstein
(2004), Arrighi ([1994] 2003) e, no Brasil, Fiori (2008; 2014).
Teorias de inclinação braudeliana que, nas palavras de Arrighi
([1994] 2003), se orientam pela “investigação das tendências
atuais [ou seja, das transformações no modo como funciona o
capitalismo desde os anos 1970] à luz de padrões de repetição
e evolução que abarcam todo o curso do capitalismo histórico

3
O termo sobreacumulação, de origem marxista, também se referem à
existência de capitais excedentes que não encontram alternativas lucrativas de
investimento, o que – uma vez que o capital é, por definição, fluxo e movimento
permanentes – pode ensejar ondas de desvalorização e crises.

173
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

como sistema mundial” (p. 4). Grosso modo, Arrighi ([1994]


2003), por exemplo, advoga que, ao menos desde o fim do século
XIV, todas as fases de expansão material da economia capitalista
mundial foram substituídas por fases de expansão financeira que
resultaram de duas tendências complementares: de um lado, a
sobreacumulação de capital; de outro, a intensa competição entre
os Estados pelo capital circulante4.
viii) Ressalte-se, por último, a influência de abordagens histó-
rico-estruturais como as de Braga (1997), Belluzo (1997), Tavares
(1997) e Tavares e Melin (1997). Abordagens que, tal como a
anterior, operam com ênfase no campo da economia política
das relações interestatais, acentuando, ainda, a importância dos
mecanismos monetários internacionais e o papel do dinheiro
mundial na definição das relações hegemônicas no contexto da
financeirização.
Enfim, sem deixar de dialogar com as demais abordagens,
tomamos como referência fundamental, em nossa pesquisa, a
teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação. Desse modo, tal como
Arrighi ([1994] 2003), acreditamos que é possível buscar formas
de compreensão das atuais transformações do capitalismo recor-
rendo a padrões de repetição e evolução que abrangem todo o
curso do capitalismo histórico como sistema mundial. O que,
ainda em consonância com o autor, permite revelar como “tendên-
cias que pareciam inéditas e imprevisíveis começam a afigurar-se
familiares” (p. 4). Tudo isso contribuindo para relativizar e/ou
superar o presenteísmo típico do debate sobre a financeirização,
quer dizer, a tendência que sublinha a novidade histórica desse
processo. Ademais, essa perspectiva traz as relações de poder
e o que Harvey (2011) chama de nexo Estado-finanças para o
centro da explicação, o que nem sempre é o caso nas abordagens
4
Note-se que há profundas diferenças entre as abordagens de Wallerstein
(2004), Arrighi ([1994] 2003) e Fiori (2008; 2014). Sobre a teoria dos ciclos
sistêmicos de acumulação de Arrighi ([1994] 2003), Fiori (2008) afirma,
por exemplo, o que se segue: “A originalidade da teoria de Arrighi está na
relação braudeliana que estabelece entre o poder e o capital, e sua principal
contribuição marxista à teoria das hegemonias mundiais é seu conceito de
‘ciclo sistêmico de acumulação’, diferente dos ‘ciclos seculares’ de preços e dos
‘ciclos de Kondratieff’. O problema é que este conceito é também o ponto mais
frágil de toda a teoria de Arrighi, muito vago, impreciso e sem sustentação
empírica” (p. 15).

174
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

mais difundidas nesse debate. Assim, como se trata de apresentar


ao campo dos estudos urbanos a possibilidade de refletir sobre
a dominância financeira contemporânea à luz da teoria supra-
mencionada – a qual, até agora, tem sido pouco explorada nesse
campo em particular –, cabe, em primeiro lugar, sintetizar seus
principais termos e, antes, seus fundamentos braudelianos.

Tempo, espaço e capitalismo: os fundamentos


braudelianos da teoria dos ciclos sistêmicos de
acumulação
Como já mencionado, a teoria dos ciclos sistêmicos de
acumulação está fundada no pensamento de Fernand Braudel,
particularmente nas suas formas de conceber o papel do tempo e
do espaço na explicação dos processos sociais e em sua descrição
singular das características do capitalismo. Portanto, antes de nos
referirmos diretamente à teoria em questão, é necessário consi-
derar alguns de seus principais fundamentos.

A injeção de história na economia e as temporalidades


diferenciais
Em sua síntese da obra de Braudel, Cecilio (2012) destaca,
dentre outros aspectos, o que denomina como a “injeção de
história na economia”. Ao fazê-lo, aponta dois “méritos” prin-
cipais na abordagem histórico-social braudeliana. De um lado,
ela permitiria identificar padrões de recorrência típicos de
toda a história do capitalismo que seriam fundamentais para a
compreensão do mundo contemporâneo. De outro, seria um
contraponto aos distintos modos de elaborar leis sociais abstratas
e com pretensão de validade universal, sobretudo no campo das
ciências econômicas. Portanto, Braudel teria se empenhado em
tensionar as abstrações e estruturas da economia com a realidade
e contingência dos processos históricos.
Seguindo uma interpretação semelhante, Wallerstein (2006)
afirma que, no que diz respeito à concepção do tempo, Braudel
travou uma “batalha” teórico-metodológica manifestada, de fato,
em duas frentes.

175
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

Para Wallerstein (2006), Braudel se enfrentava “contra as


duas posições nominalmente antitéticas que vêm dominando
o pensamento social desde pelo menos a metade do século
XIX, as epistemologias ideográfica e nomotética” (p. 161).
A perspectiva ideográfica seria a que se concentra em datar
acontecimentos para obter “uma cronologia e, por conse-
guinte, uma narrativa, um relato, uma história que é peculiar
e explicável somente em seus próprios termos” (p. 161). A
perspectiva nomotética, por sua vez, ao pretender distinguir
padrões universais do comportamento humano, tornaria o
tempo histórico irrelevante.
Wallestein (2006) sublinha, ainda, que em seus esforços
de superação simultânea das epistemologias ideográfica e
nomotética, Braudel recorreu à construção de uma tipologia
diferencial dos tempos histórico-sociais. Para tanto, teria enfa-
tizado a importância dos ritmos cíclicos e das estruturas dura-
douras, em detrimento do tempo breve da história dos acon-
tecimentos.
Na verdade, Braudel ([1958] 1990) não defendeu que os
historiadores e cientistas sociais abandonassem por completo
o tempo dos acontecimentos, “a mais caprichosa, a mais enga-
nadora das durações” (p. 11). Não obstante, sugeriu “sair-se
dele para voltar a ele mais tarde, mas com outros olhos, carre-
gados com outras inquietações, com outras perguntas” (p.
17). Em sua perspectiva, todo trabalho histórico decompõe
o tempo passado de acordo com preferências e exclusões.
A história tradicional, por exemplo, privilegiou a narrativa
atenta ao tempo breve, “à medida dos indivíduos, da vida coti-
diana, das nossas ilusões, das nossas rápidas tomadas de cons-
ciência” (p. 11). Por seu turno, a história econômica e social
salientou a oscilação cíclica e sua duração. Trata-se do recita-
tivo da conjuntura, que investiga o passado dividindo-o em
amplas seções. Acima do recitativo da conjuntura encontrar-
se-ia “uma história de fôlego ainda mais contido e, neste caso,
de amplitude secular: trata-se da história de longa, e mesmo de
muito longa, duração” (p. 10). Nos termos de Braudel ([1958]
1990), considerar a longa duração significa reconhecer que
todas as possíveis escalas e fragmentações do tempo devem ser

176
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

compreendidas a partir da “profundidade” e das “estruturas”


em torno das quais gravitam. Isto é, envolve “familiarizar-se
com um tempo que se tornou mais lento, por vezes, até quase
ao limite da mobilidade” (p. 17).
Nesse sentido, como observa Rojas (2013), apesar de
conceber a “existência de dezenas e até centenas de tempos na
história” (p. 21), Braudel elaborou sua proposta metodológica
das temporalidades diferenciais a partir da “tripla esquemati-
zação do tempo dos acontecimentos ou tempo da curta duração,
tempo das conjunturas ou tempo médio e tempo longo das
estruturas, o tempo da longa duração histórica” (p. 21). Tempos,
enfim, qualitativa e quantitativamente distintos, ainda que inter
-relacionados. Além disso, para Rojas (2013), a concepção brau-
deliana das temporalidades diferenciais conduz à desconstrução
da visão moderna do tempo. Quer dizer, em oposição ao tempo
linear, plano e unitário, Braudel elaborou uma “nova teoria da
decomposição e diferenciação temporal” (p. 23). Teoria fundada
em “tempos e durações de densidade e intensidade diferen-
çadas, hierarquizados, entre os quais o mais importante é a longa
duração” (p. 23).
Como se verá, a centralidade da escala temporal da longa
duração é um dos pressupostos básicos da teoria dos ciclos sistê-
micos de acumulação. No entanto, antes de avançar, é necessário
levar em conta não só a concepção do tempo, mas também do
espaço que lhe dá fundamento.

O espaço-tempo ampliado: da economia-mundo europeia


à economia mundial capitalista
Braudel (1987) definiu sua investigação da história de longa
duração do capitalismo, entre os séculos XV e XVIII, como uma
tentativa de “vincular o capitalismo, sua evolução e seus meios, a
uma história geral do mundo” (p. 30). Nesses termos, discerniu
uma unidade que se afirmou progressivamente sobre a existência
de todas as economias e, para explicar o processo de constituição
da sociedade mundial hierarquizada, estabeleceu uma distinção
entre economia mundial e economia-mundo.
Ao contrário da economia mundial, entendida como “a
economia do mundo considerada em seu todo” (BRAUDEL,

177
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

1987, p. 30), as economias-mundos são definidas, pelo autor, a


partir de três aspectos básicos: i) ocupam um espaço geográfico
determinado, ainda que potencialmente suscetível a expansões
e rupturas; ii) organizam-se em torno de um centro ou núcleo,
um polo representado por uma cidade dominante; e iii) dividem-
se em zonas sucessivas: o centro, as zonas intermediárias e as
margens. Zonas concêntricas progressivamente desfavorecidas à
medida que se distanciam do núcleo, melhor dito, do locus dos
preços e salários altos, das indústrias lucrativas, do desenvol-
vimento técnico-científico e do afluxo de metais preciosos, de
moedas e títulos de crédito.
Segundo Braudel (1987), a Rússia, até 1869, o Império
Turco, o Império Chinês, o Japão, a Índia-Insulíndia e o mundo
islâmico, até o final do século XVIII, são exemplos de econo-
mias-mundos “coexistentes, que só têm entre elas trocas extrema-
mente limitadas” (p. 31). Ao lado delas, muito antes de 1492, a
Europa e o Mediterrâneo formavam, igualmente, uma totalidade
econômica centrada em cidades como Veneza, Milão, Gênova e
Florença.
A partir dessa perspectiva, Braudel (1987) buscava demons-
trar como a economia-mundo europeia constituiu-se na matriz
do capitalismo e da economia mundial. E, para reconstruir essa
trajetória, enfatizou movimentos de centragem, descentragem
e recentragem. Isto é, concentrações e deslocamentos de poder
realizados no curso de conflitos, tensões e crises econômicas.
Ainda de acordo com essa perspectiva, até aproxima-
damente 1750, os centros dominantes da economia-mundo
europeia foram cidades ou cidades-Estados: sucessivamente,
Veneza, Antuérpia, Gênova e Amsterdam. A partir de então,
as criações e dominações urbanas teriam sido substituídas pela
dominação nacional. Assim, quando o centro da economia-
mundo europeia se deslocou para Londres, a Inglaterra já era
uma economia nacional, ou seja, “um espaço político transfor-
mado pelo Estado, em virtude das necessidades e inovações
da vida material, num espaço econômico coerente, unificado,
cujas atividades podem encaminhar-se em conjunto numa
mesma direção” (BRAUDEL, 1987, p. 36). E, por conseguinte,
a ascensão e a centralidade de Londres, bem como a transfor-

178
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

mação da Inglaterra em economia nacional unificada, inau-


gurou uma nova etapa da história do capitalismo.
Braudel (1987) observa, por fim, que a Revolução Industrial
inglesa foi decisiva no deslocamento do centro da economia-
mundo europeia, no século XVIII, de Amsterdam para Londres.
No entanto, ao contrário do que sugere o termo “revolução”, e
em consonância com uma perspectiva de longa duração, tratou-
se de fenômeno lento e de determinações profundas. Seja como
for, a partir desse momento a economia-mundo europeia tornou-
se, progressivamente, economia mundial capitalista, baseada na
formação de monopólios de direito ou de fato e na exploração
dos recursos do mundo inteiro.
Essa maneira de interpretar o processo de centragem,
descentragem e recentragem da economia-mundo europeia, em
benefício de Londres, assim como a transformação da Ingla-
terra num espaço político e econômico coerente e unificado, já
indicam alguns dos traços da concepção braudeliana do capi-
talismo. Sugerem, acima de tudo, uma dialética entre poderes
capitalistas e poderes territoriais como motor da expansão do
capitalismo. A dialética entre Estado e capital será retomada mais
adiante, com ênfase no conceito de nexo Estado-finanças. Antes
disso, no entanto, é preciso destacar de que maneira, segundo
essa concepção, a flexibilidade, o ecletismo e a liberdade de
escolha são consideradas características fundamentais do capita-
lismo histórico como sistema mundial.

A unidade do capitalismo: flexibilidade e fusão com os


poderes do Estado
À semelhança do que fez com os tempos histórico-sociais,
Braudel também criou um esquema conceitual tripartido
para definir as características do capitalismo. Conforme esse
esquema, representado na Figura 1, a vida econômica é dividida
em três camadas, que foram designadas, pelo autor, do seguinte
modo: vida ou civilização material, economia de mercado e
capitalismo.

179
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

Figura 1 – Representação do esquema tripartido da vida econômica

Fonte: Elaborado pelos autores.

Tal como sugerido na Figura 1, as camadas nas quais a vida


econômica é dividida constituem uma hierarquia. Na base dessa
hierarquia encontra-se a camada da vida material, quer dizer, a
esfera da reprodução social cotidiana, organizada, prioritaria-
mente, em torno da lógica do valor de uso5. Acima dessa camada,
ergue-se a economia de mercado, uma esfera de trocas e comu-
nicações horizontais reguladas, de maneira mais ou menos auto-
mática, pela lógica da demanda, da oferta e dos preços. No topo,
a camada do capitalismo ou do antimercado consiste numa esfera
de circulação diferenciada, caracterizada, sobretudo, pela não
especialização, pela formação de monopólios e pelo privilégio
das relações com o Estado. Com efeito, para Braudel (1987),

5
Rojas (2013) afirma que o conceito de vida ou civilização material – “que
se conforma com todas aquelas realidades, elementares e cotidianas, frutos
das diferentes estratégias de resposta humana às diversas pressões e coações
da base geo-histórica” (p. 94) – foi desenvolvido por Braudel com o objetivo
de abordar temáticas tais como as “da alimentação, dos mecanismos de
reprodução demográfica e controle do crescimento da população, da técnica,
das formas do habitat, do vestuário ou dos diferentes esquemas de organização e
colonização do território, tanto urbano quanto rural. São temáticas tipicamente
‘antropológicas’, resgatadas no conceito braudeliano da vida material, mas
agora com uma clara vocação para estabelecer sua real historicidade e sua
vinculação global com as demais dimensões civilizatórias da evolução humana
no tempo” (p. 91).

180
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

o “capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado,


quando ele é o Estado” (p. 25).
Em suma, o capitalismo é concebido, em termos braude-
lianos, como a camada superior não especializada da hierarquia
do mundo do comércio ou da vida econômica. Por conseguinte,
conforme essa interpretação, ao lado de sua fusão com os poderes
do Estado, a flexibilidade, o ecletismo e a liberdade de escolha
foram as características essenciais de sua unidade desde a Itália
do século XIII.
Arrighi ([1994] 2003) defende que a concepção braude-
liana do capitalismo pode ser tomada como uma reafirmação
da fórmula geral do capital de Marx (DMD’). Nesses termos, o
capital-dinheiro (D) seria o mesmo que liquidez, flexibilidade e
liberdade de escolha. O capital-mercadoria (M) indicaria a expec-
tativa de lucro com base no investimento numa dada combi-
nação de insumo-produto e, dessa maneira, significaria concre-
tude, rigidez, estreitamento e fechamento das opções. Por fim,
D’ expressaria a ampliação da liquidez, da flexibilidade e da
liberdade de escolha. Assim, não seriam as inversões em combi-
nações específicas de insumo-produto que tornariam um agente
capitalista. Tais inversões seriam apenas um meio contingente
para alcançar seus objetivos, ou seja, “para chegar à finalidade de
assegurar uma flexibilidade e liberdade de escolha ainda maiores
num momento futuro” (p. 5).
Ainda de acordo com Arrighi ([1994] 2003), quando há frus-
tração da expectativa de aumento da liberdade de escolha, “o
capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento
– acima de tudo, à sua forma monetária” (p. 5). Ou seja, sendo
absolutamente flexíveis e ecléticas, as ações dos principais agentes
capitalistas ora indicam o sentido geral de territorialização e de
investimento em formas materiais de expansão econômica, ora
desterritorializam-se e assumem formas mais líquidas de valori-
zação dos capitais. Os capitalistas o fazem sempre buscando a
mediação fundamental com os poderes estatais e com o objetivo
de ampliar sua liquidez, sua flexibilidade, enfim, sua liberdade de
escolha. A partir dessa caracterização do capitalismo, em geral
oposta à concepção de modo de produção, Arrighi ([1994] 2003)
ampliou a ideia, já presente no pensamento braudeliano, de que

181
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

todas as fases de significativa expansão material da economia-


mundo capitalista foram sucedidas por fases de expansão finan-
ceira. E, nesse sentido, a financeirização contemporânea deveria
ser considerada como um dos momentos históricos recorrentes
em que “os agentes capitalistas passam a ‘preferir’ a liquidez,
e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a
permanecer sob forma líquida” (p. 5). Esse é mais um dos pressu-
postos básicos da teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação, que
será examinada e resumida na próxima seção.

A teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação


Como visto acima, hipóteses como a do advento do regime
de acumulação financeirizado ou com dominância financeira
indicam que, ao menos desde os anos 1970, há uma preponde-
rância crescente dos capitais de aplicação financeira em relação
à totalidade dos capitais que circulam na economia mundial. No
contexto do esgotamento do regime de acumulação fordista-key-
nesiano, esse processo teria coincidido com mudanças estrutu-
rais no alcance e no conteúdo da mundialização do capitalismo.
Chesnais (1996), por exemplo, observa que, a partir de então, “o
estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização
de gigantescos capitais financeiros” (p.15). Guttmann (2008), por
seu turno, estabelece o seguinte:

Desde que reagimos à crise de estagflação mundial (ocorrida


na década de 1970 e no início dos anos 1980), que desregula-
mentou os bancos e permitiu-lhes remodelar os trabalhos da
nossa economia, vivemos em um sistema dominado pelas fi-
nanças. Representante de um novo regime de acumulação no
sentido elaborado originalmente pelos fundadores da escola da
regulamentação francesa, o capitalismo dirigido pelas finanças
disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado
pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização
do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta (p. 92).

Para nós, os limites de hipóteses como essas dizem respeito,


principalmente, à excessiva ênfase nas transformações contem-
porâneas. Com efeito, formulações como as de Aglietta (1998)

182
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

sugerem que, ao menos nos países centrais, sobretudo nos


Estados Unidos, algo como um “capitalismo de amanhã” estaria
em desenvolvimento. Abordagens como as de Harvey ([1989]
2008) sobre a acumulação flexível, que guardam uma afinidade
eletiva com a hipótese do regime de acumulação financeirizado,
também tendem a acentuar, ainda que de modo hesitante, esse
caráter novo, inédito e/ou singular da dominância financeira.
Como não acreditamos que a atual fase de expansão financeira
constitui uma etapa inteiramente nova do capitalismo, defen-
demos, em consonância com a perspectiva de Arrighi ([1994]
2003), que é necessário ampliar os horizontes espaço-temporais
de análise da denominada financeirização.
A evidência de que algo fundamental se transformou no modo
como funciona o capitalismo, nos anos 1970, também é o ponto
de partida das reflexões de Arrighi ([1994] 2003). Como o próprio
autor sugere, suas indagações se assemelham, por exemplo, às de
Harvey ([1989] 2008), que podem ser resumidas do seguinte modo:

Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais,


bem como político-econômicas, desde mais ou menos 1972.
Essa mudança abissal está vinculada à emergência de novas
maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o
espaço. […] Mas essas mudanças, quando confrontadas com as
regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como
transformações da aparência superficial do que como sinais do
surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-
-industrial inteiramente nova (HARVEY, [1989] 2008, p. 8).

Como se vê, Harvey ([1989] 2008) também não está convicto


de que os anos 1970 marcaram o início de uma etapa totalmente
nova do capitalismo, o que atribui um caráter frequentemente
ambíguo ao seu conceito de acumulação flexível. Conceito que,
como dito, ressalta processos de reestruturação produtiva e de
ascensão das finanças pós-1970. Seja como for, o que importa
dizer é que, para ambos, períodos de crise, reestruturação e reor-
ganização são inerentes à reprodução ampliada do capitalismo.
Não obstante, Arrighi ([1994] 2003) busca esclarecer as tendên-
cias e mudanças contemporâneas à luz de padrões de repetição e
evolução de longa duração. Conforme o autor:

183
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

As indagações que geraram este estudo são semelhantes às


de Harvey. Mas as respostas são buscadas numa investigação
das tendências atuais à luz de padrões de repetição e evolu-
ção que abarcam todo o curso do capitalismo histórico como
sistema mundial (p. 4).

Como igualmente dito acima, ao desenvolver sua perspec-


tiva de longa duração, Arrighi ([1994] 2003) também recorreu
à fórmula geral do capital de Marx (DMD’), o que lhe permitiu
problematizar não apenas a lógica dos investimentos capitalistas
individuais, mas, ao mesmo tempo, o padrão reiterado do capi-
talismo histórico como sistema mundial. Esse padrão é definido,
em sua opinião, pela alternância de fases de expansão material,
nas quais os capitais são investidos em combinações específicas
de insumo-produto, e fases de renascimento e expansão finan-
ceiros, nas quais os capitais libertam-se de sua forma mercadoria.
Associadas, essas duas fases constituiriam um ciclo sistêmico de
acumulação. Nas palavras do autor:

O aspecto central desse padrão é a alternância de épocas de


expansão material (fases DM de acumulação de capital) com
fases de renascimento e expansão financeiros (fases MD’).
Nas fases de expansão material, o capital monetário ‘coloca
em movimento’ uma massa crescente de produtos (que inclui
a força de trabalho e dádivas da natureza, tudo transformado
em mercadoria); nas fases de expansão financeira, uma mas-
sa crescente de capital monetário ‘liberta-se’ de sua forma
mercadoria, e a acumulação prossegue através de acordos
financeiros (como na fórmula abreviada de Marx, DD’). Jun-
tas, essas duas épocas, ou fases, constituem um completo ciclo
sistêmico de acumulação (DMD’) (ARRIGHI, [1994] 2003, p. 6).

Ainda segundo esse padrão, as fases de expansão material


(DM) caracterizam-se por mudanças contínuas, isto é, a economia
capitalista cresce por uma única via de desenvolvimento. Por
sua vez, as fases de expansão financeira (MD’) são de mudanças
descontínuas, quando o crescimento pela via estabelecida atinge
seu limite, impondo reestruturações sob a liderança de determi-
nados blocos de agentes governamentais e empresariais. Ou seja,
“em toda e qualquer expansão financeira, o capitalismo mundial

184
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

reorganizou-se ainda mais fundamentalmente sob uma nova lide-


rança” (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 41, tradução nossa). Por
conseguinte, desse ponto de vista, a expansão do capitalismo
também esteve vinculada à competição interestatal pelo capital
circulante, à emergência de estruturas políticas dotadas de capa-
cidades organizacionais cada vez mais amplas e complexas e à
sucessão de hegemonias internacionais.
Arrighi ([1994] 2003) identificou quatro ciclos sistêmicos de
acumulação: i) o ciclo genovês (do século XV ao início do século
XVII); ii) o ciclo holandês (do fim do século XVI até a maior parte
do século XVIII); iii) o ciclo britânico (da segunda metade do
século XVIII até o início do século XX); e iv) o ciclo norte-ameri-
cano (do final do século XIX até o período contemporâneo). Em
cada um dos ciclos, combinaram-se, de maneira contraditória,
duas lógicas de poder distintas, a territorial ou territorialista e a
capitalista, que deram forma à economia capitalista mundial e ao
moderno sistema interestatal. Sobre as relações entre essas duas
lógicas, Arrighi ([1994] 2003) propõe o seguinte:

Parafraseando a fórmula geral do capital de Marx sobre a


produção capitalista (DMD’), podemos traduzir a diferen-
ça entre essas duas lógicas do poder pelas fórmulas TDT’
e DTD’, respectivamente. Segundo a primeira fórmula, o
domínio econômico abstrato, ou o dinheiro (D), é um meio
ou elo intermediário num processo voltado para a aquisição
de territórios adicionais (T’ – T = + ΔT). De acordo com a
segunda fórmula, o território (T) é um meio ou um elo inter-
mediário num processo voltado para a aquisição de meios de
pagamento adicionais (D’ – D = + ΔD) (p. 33).

A combinação contraditória dessas lógicas, na longa


duração, teria correspondido à formação de blocos capitalistas/
territorialistas de poder que estiveram baseados em regimes sistê-
micos de acumulação (entendidos como vias de desenvolvimento
em escala internacional) e foram capazes de exercer funções de
governo e liderança sobre um sistema de nações soberanas. Daí,
mais uma vez, a relação entre expansão do capitalismo e suces-
sões hegemônicas. Além disso, para Harvey (2011), que tendeu
a incorporar a abordagem arrighiana em seus trabalhos mais

185
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

recentes, a fusão dessas lógicas conformou o que se pode chamar


de nexo Estado-finanças. Em suas palavras:

Defino lógica territorial como as estratégias políticas, diplo-


máticas, econômicas e militares mobilizadas pelo aparelho
de Estado em seu próprio interesse. O primeiro objetivo des-
sas estratégias é controlar e gerenciar as atividades da popu-
lação no território e acumular poder e riqueza dentro das
fronteiras do Estado. [...] A lógica capitalista, por outro lado,
coloca em foco a maneira pela qual o poder do dinheiro flui
por e dentro do espaço e fronteiras na busca da acumulação
sem fim. Essa lógica é mais processual e molecular do que
territorial. As duas lógicas não são redutíveis uma à outra,
mas estão intimamente interligadas. Há também, como argu-
mentei anteriormente, um ponto de fusão no qual se juntam
para formar o nexo Estado-finanças (representado agora pe-
los bancos centrais do mundo) (p. 166-167).

Em sua análise comparativa dos ciclos genovês, holandês,


britânico e norte-americano, Arrighi ([1994] 2003) sublinha o
padrão recorrente de ascensão, plena expansão e superação dos
blocos de poder que expressam a combinação das lógicas supra-
mencionadas. A Figura 2 oferece um esquema desse padrão.

Figura 2 – Séculos longos e ciclos sistêmicos de acumulação

Fonte: Arrighi ([1994] 2003).

186
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

Em primeiro lugar, há um período de expansão financeira


no decorrer do qual um novo regime de acumulação desenvolve-
se dentro das estruturas do antigo regime. Em seguida, uma fase
de consolidação e desenvolvimento do novo regime, no qual seus
agentes fundamentais promovem e se beneficiam da expansão
material da economia mundial. Por último, outro momento de
expansão financeira, quando as contradições do regime plena-
mente desenvolvido criam oportunidades para a ascensão
de regimes concorrentes, um dos quais se torna dominante.
Reunidas, essas três etapas constituem “séculos longos”.
No padrão proposto por Arrighi ([1994] 2003), o início de
cada fase de expansão financeira é marcado por uma crise sinali-
zadora do regime de acumulação dominante (S1, S2, S3 e S4 na
Figura 2). Crises sinalizadoras definidas como momentos em que
os principais agentes dos processos sistêmicos de acumulação
revelam “uma avaliação negativa da possibilidade de continuar
a lucrar com o reinvestimento do capital excedente na expansão
material da economia mundial” (p. 220). Concomitantemente,
se estabelecem as condições para que esses mesmos agentes
avaliem a “possibilidade de prolongar sua liderança/dominação,
no tempo e no espaço, através de uma especialização maior nas
altas finanças” (p. 220). Quer dizer, os capitais excedentes e supe-
racumulados, oriundos de uma expansão material anterior, são
transferidos, prioritariamente, para a esfera financeira.
Acompanhando a transferência sistêmica dos capitais exce-
dentes para a esfera das finanças, manifestam-se os seguintes
traços típicos e recorrentes das fases de expansão financeira do
capitalismo histórico como sistema mundial: i) a intensificação
da concorrência intergovernamental e intercapitalista; ii) o cresci-
mento do controle dos interesses monetários sobre os governos; e
iii) o início da etapa de “colheita dos frutos de uma fase anterior
de expansão material” (ARRIGHI, [1994] 2003, p. 97). Etapa
também designada como belle époque e marcada, além da especia-
lização nas altas finanças, pelo consumo ostensivo de produtos
culturais e pelo início de processos de transição hegemônica no
sistema interestatal.
Enfim, uma vez encerrada a belle époque e as oportunidades
de expansão financeira, a crise sistêmica subjacente, ou seja, a

187
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

crise sinalizadora transforma-se na “crise terminal” do regime de


acumulação dominante, completando-se a transição hegemônica
(T1, T2 e T3 na Figura 2). Então, abre-se espaço para uma nova
expansão material da economia mundial. Expansão monitorada
por um novo bloco hegemônico de agentes capitalistas/terri-
torialistas e fundada em uma nova via de desenvolvimento. A
passagem abaixo sintetiza o argumento acerca do processo que
conduz a um novo regime sistêmico de acumulação:

A emergência de uma nova via de desenvolvimento, dotada


de maior potencial de crescimento do que a antiga, é um
aspecto integrante da crescente turbulência experimentada
pela economia mundial nas fases de expansão financeira. Ela
corresponde à tese de Marx de que ocorre uma reciclagem
do capital monetário, passando de estruturas organizacio-
nais que atingiram os limites de sua expansão material para
outras estruturas organizacionais que apenas começam a
materializar seu potencial de crescimento. Como vimos na
introdução, Marx sugeriu essa reciclagem em sua discussão
sobre a acumulação primitiva, ao reconhecer a importância
das dívidas públicas para uma invisível cooperação intercapi-
talista, que reiniciou repetidamente a acumulação de capital
no espaço-tempo da economia mundial capitalista, desde Ve-
neza, no início da era moderna, passando pelas Províncias
Unidas e pelo Reino Unido, até os Estados Unidos, no sé-
culo XIX. Marx voltou a sugerir uma reciclagem do capital
monetário, de uma estrutura organizacional para outra, em
sua discussão sobre a crescente concentração de capital que
invariavelmente constitui o desfecho e a resolução das crises
de sobreacumulação (ARRIGHI, [1994] 2003, p. 242).

Grosso modo, o que foi dito acima põe em relevo os aspectos


mais importantes da teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação.
Teoria a partir da qual é possível dizer que a financeirização, como
padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo,
possui precedentes nos ciclos sistêmicos de acumulação ante-
riores ao norte-americano, atualmente em curso. No entanto, não
se trata da simples repetição do que ocorreu nos demais ciclos.
A narrativa histórico-estrutural de Arrighi ([1994] 2003) admite
como igualmente relevantes processos sistêmicos de repetição e

188
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

de inovação. O que coloca uma questão fundamental: o que há de


novo na atual fase de expansão financeira do capitalismo?
As respostas a essa questão são múltiplas, mas a hipótese
central que orienta nossa pesquisa sugere que as características
distintivas da atual fase de expansão financeira do capitalismo
desencadearam um novo ciclo de mercantilização generalizada
que tende a alcançar e aprofundar-se em todos os âmbitos ou
dimensões da vida social. Portanto, antes de esboçarmos nossa
hipótese da existência de ciclos sistêmicos de urbanização e de
concluirmos com alguns comentários sobre os impactos urbanos
e territoriais típicos da financeirização contemporânea, é neces-
sário definir o modo como compreendemos o fenômeno da
mercantilização. Para tanto, aderimos, a seguir, a uma leitura do
duplo movimento, de Karl Polanyi, à luz da teoria dos ciclos sistê-
micos de acumulação.

O duplo movimento à luz da teoria dos ciclos


sistêmicos de acumulação
Consideramos que a definição do conceito de mercan-
tilização exige, em primeiro lugar, a definição do conceito de
mercadoria. E, no que tange a esse último conceito, optamos, tal
como Jessop (2007), por uma síntese que atribui à mercadoria
três sentidos básicos:
i) uma mercadoria é um bem ou serviço produzido para a
venda por intermédio do processo de trabalho;
ii) adotando e expandindo a acepção marxista, pode-se dizer,
ainda, que uma mercadoria propriamente capitalista é aquela
produzida por intermédio do processo de trabalho submetido à
concorrência capitalista, isto é, aos imperativos de diminuição do
tempo de trabalho e do tempo de rotação do capital socialmente
necessários;
iii) por último, uma mercadoria fictícia, nos termos de Karl
Polanyi, é aquela que possui a forma de uma mercadoria – pode
ser comprada e vendida – mas que não foi necessariamente e
originalmente produzida para a venda, ou seja, ela já existe na
“natureza” ou foi criada apenas com um valor de uso antes de
adquirir um valor de troca.

189
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

Neste artigo, destacamos, principalmente, esse último


sentido e o modo como ele deriva da concepção polanyiana do
duplo movimento. Concepção resumida a seguir e ampliada à luz
da teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação.
Como se sabe, Polanyi ([1994] 2012) descreveu o surgimento
e a consolidação da economia de mercado, na Europa do século
XIX, como o resultado do que ele chamou de duplo movimento,
que envolvia, simultaneamente, a liberalização/mercantilização
e a proteção social. Sua formulação é simples: de um lado, “os
mercados se difundiam sobre toda a face do globo”; de outro,
“uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas
instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao
trabalho, à terra e ao dinheiro” (p. 88). De acordo com essa pers-
pectiva, o trabalho, a terra e o dinheiro são mercadorias fictícias,
tal como definidas acima. Quer dizer, são elementos da natureza
e da sociedade que não foram originalmente produzidos para a
venda. Aqui, cabe sublinhar o entendimento do autor quanto a
esse aspecto. Em suas palavras:

Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana


que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produ-
zida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode
ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome
para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmen-
te, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e,
como regra, ele não é produzido mas adquire vida através
do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum
deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da
terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia
(POLANYI, [1994] 2012, p. 78).

Nesses termos, a transformação do trabalho, da terra e do


dinheiro em mercadorias e em elementos fundamentais da ativi-
dade industrial é interpretada como um processo de mercan-
tilização que resultou da denominada Revolução Industrial,
à medida que o advento de maquinarias e fábricas complexas
exigiu seu fornecimento permanente, sistemático e por inter-
médio de mecanismos de mercado.

190
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

Mas, como dito, esse processo de transformação manifestou


um duplo caráter que, ainda segundo Polanyi ([1944] 2012),
correspondeu a “dois princípios organizadores da sociedade
(liberal), cada um deles determinando os seus objetivos institu-
cionais específicos, com o apoio de forças sociais definidas e utili-
zando diferentes métodos próprios” (p. 139). Conforme o autor:

Um foi o princípio do liberalismo econômico, que objetivava


estabelecer um mercado autorregulável, dependia do apoio
das classes comerciais e usava principalmente o laissez-faire e
o livre comércio como seus métodos. O outro foi o princípio
da proteção social, cuja finalidade era preservar o homem e a
natureza, além da organização produtiva, e que dependia do
apoio daqueles mais imediatamente afetados pela ação dele-
téria do mercado – básica, mas não exclusivamente, as classes
trabalhadoras e fundiárias – e que utilizava uma legislação
protetora, associações restritivas e outros instrumentos de in-
tervenção como seus métodos (p. 139).

Dito de outro modo, se o princípio do liberalismo foi o que


se identificou com o objetivo de estabelecer mercados globais
autorreguláveis, o princípio da proteção social, por sua vez,
correspondeu aos contramovimentos que buscavam evitar a
subordinação total da “substância da própria sociedade às leis
de mercado” (POLANYI, [1944] 2012, p. 77). Note-se que, na
origem dessa formulação, está o pressuposto que indica que as
sociedades seriam completamente desarticuladas e, no limite,
destruídas se a utopia liberal da sociedade de mercado fosse
plenamente realizada.
Esse é, em resumo, o argumento polanyiano, que tem sido
cada vez mais resgatado. Seguindo o renovado interesse pelo
pensamento de Karl Polanyi6, Silver e Arrighi (2014), por exemplo,
ressaltam que, como no século XIX, os movimentos contempo-
râneos em direção a mercados autorreguláveis, nos marcos da
“globalização neoliberal”, também desencadearam “um contra-
movimento de proteção das perturbações causadas pela intensifi-
cação da concorrência mundial por capital e mercados” (p. 23).
No entanto, há diferenças no modo como o duplo movimento
6
Cf., por exemplo, Bugra e Agartan (2007).

191
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

se realizou em cada caso – diferenças que podem ser compreen-


didas tomando os ciclos sistêmicos de acumulação britânico e
norte-americano como referências de periodização.

As especificidades do duplo movimento nos ciclos


sistêmicos de acumulação britânico e norte-americano
Para Silver e Arrighi (2014), no ciclo sistêmico de acumu-
lação britânico a Revolução Industrial e a afirmação dos princí-
pios do liberalismo foram decisivas para a formação e expansão
dos mercados globais autorregulados. Por um lado, como já
mencionado, se impôs a necessidade de mercantilização e forne-
cimento sistemático dos elementos fundamentais da atividade
industrial. Por outro, a aceitação generalizada dos princípios clás-
sicos do liberalismo tornou-se uma força adicional. Quer dizer,
acompanhando as exigências de transformação do trabalho, da
terra e do dinheiro em mercadorias, esses princípios foram esta-
belecidos da seguinte maneira: i) o trabalho deve encontrar seu
preço no mercado; ii) a criação do dinheiro precisa ser objeto de
um mecanismo automático; e iii) os bens devem circular livre-
mente entre países7.
Ainda de acordo com os autores, a principal distinção entre
as hegemonias e os ciclos sistêmicos de acumulação britânico e
norte-americano refere-se, justamente, ao afastamento dos Estados
Unidos dos princípios e práticas do liberalismo da Grã-Bretanha,
tal como descritos acima. Em sua opinião, esse distanciamento
pode ser explicado pelas diferenças na estrutura e organização
dos sistemas globais de governo e acumulação centrados, sucessi-
vamente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Os ciclos britânico e norte-americano teriam se diferen-
ciado, principalmente, pelo caráter respectivamente extrovertido
e autocentrado das economias da Grã-Bretanha e dos Estados

7
Segundo Polanyi ([1994] 2012), o resultado da “cruzada liberal” das décadas
de 1830 e 1840 pode ser demonstrado levando em consideração a aprovação de
três medidas principais pelo Parlamento britânico: i) o Poor Law Amendment
Act, de 1834, responsável por subordinar a oferta de trabalho aos mecanismos
de mercado; ii) o Peel’s Bank Act, de 1844, que vinculou a circulação monetária
interna ao funcionamento internacional do padrão-ouro; e iii) o Anti-Corn
Law Bill, de 1846, que garantiu a abertura do mercado britânico aos grãos do
mundo inteiro.

192
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

Unidos. Dentre os fatores responsáveis pela natureza extrover-


tida da economia britânica e que permitiram sua adesão unila-
teral aos princípios do livre comércio, Silver e Arrighi (2014)
destacam, de um lado, o papel da Grã-Bretanha como entreposto
comercial e financeiro da economia global e, de outro, o império
do qual extraía tributos e forças militares adicionais – sobre-
tudo da Índia. Por sua vez, na primeira metade do século XX, a
economia norte-americana não exercia funções de entreposto e
não controlava diretamente um império territorial além de suas
próprias fronteiras. Entretanto, possuía dimensões continentais
e era amplamente autossuficiente. O Quadro 1 sintetiza alguns
critérios de comparação.

Quadro 1 – Comparação da relação hegemônica dos Estados


com a economia política global
Sistema mundial de governo e acumulação
Centrado no Reino Centrado nos Estados
Unido Unidos
Relação estrutural Entreposto/ Autocentrado/
predominante complementar competitivo
Comércio livre Liberalização comercial
Principal instrumento
unilateral/tributo negociada/investimento
de reorganização
colonial direto estrangeiro
Poder social dos
Principal restrição Equilíbrio do
grupos subordinados/
na capacidade de poder/rivalidades
desafios comunistas e
reorganização interimperialistas
nacionalistas
Fonte: Silver e Arrighi (2014).

Ainda conforme essa perspectiva, o caráter autocentrado e


autossuficiente da economia norte-americana, isto é, a abundância
de recursos demográficos e territoriais, dispensava a necessidade
de abertura unilateral de seu mercado interno para as exportações
de todo o mundo. Concomitantemente, ensejou meios diversos
de reorganização da economia global em torno da potência hege-
mônica. No pós Segunda Guerra Mundial, o desequilíbrio entre
a renda nacional e o poder militar dos Estados Unidos e os dos
demais países tornaram-se prerrogativas na definição dos termos
dos acordos bilaterais e multilaterais de comércio. Tornaram-

193
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

se, mais precisamente, vantagens consideráveis “na indução de


outros Estados no sentido de que entrassem em negociações para
a liberalização do comércio e cedessem à pressão dos EUA no
decurso das negociações” (SILVER; ARRIGHI, 2014, p. 17). A
passagem abaixo resume os termos dessas vantagens:

Em 1948, a renda nacional dos EUA foi mais do dobro da


renda nacional conjunta da Grã-Bretanha, França, Alema-
nha, Itália e países do Benelux e seis vezes maior do que
a da URSS. […] Finalmente, ao promover a liberalização e
a expansão do comércio mundial, os Estados Unidos po-
diam contar com sua incontestável primazia militar vis-à-vis
seus aliados no confronto com a URSS (SILVER; ARRIGHI,
2014, p. 17).

Do mesmo modo, as novas condições hegemônicas funda-


mentaram-se na internalização dos custos de transação. Quer
dizer, a internalização, no campo organizacional de corporações
verticalmente integradas, de atividades antes executadas por
unidades empresariais distintas. Nesse sentido, o surgimento e a
expansão das modernas corporações transnacionais teria permi-
tido aos Estados Unidos conquistar mercados por intermédio de
investimentos externos diretos, mesmo quando esses mercados
estivessem protegidos contra importações estrangeiras.
No que se refere aos contramovimentos de proteção social,
a primeira distinção remete ao papel das forças sociais subordi-
nadas. Conforme Silver e Arrighi (2014), no ciclo sistêmico de
acumulação norte-americano essas forças restringiram, desde o
início, o movimento no sentido da autorregulação. Ou seja, a
partir da segunda metade do século XX, os contramovimentos
teriam antecipado o movimento em direção a mercados autor-
reguláveis. De acordo com essa interpretação, no ciclo norte-a-
mericano o poder social dos grupos subordinados e os desafios
“comunistas” e “nacionalistas” tornaram-se os principais fatores
de limitação da capacidade dos Estados Unidos de reorganizar o
sistema mundial e de promover o livre comércio.
A segunda diferença fundamental diz respeito à ausência
da principal força desestabilizadora dos mercados globais autor-
regulados centrados na Grã-Bretanha. Silver e Arrighi (2014)

194
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

indicam que no ciclo norte-americano, principalmente na fase


de expansão financeira, a autocracia das potências capitalistas
foi substituída pela centralização do poder militar nos Estados
Unidos e por uma crescente interdependência das unidades
territoriais que compõem o moderno sistema interestatal. Nas
palavras dos autores:

Não estamos dizendo que não há brigas entre as potências


capitalistas sobre o ritmo e a direção do processo de forma-
ção do mercado mundial. Simplesmente não vemos essas dis-
cussões se transformando na força motriz na reversão desse
processo, como o que ocorreu no final do século XIX e no
início do século XX (SILVER; ARRIGHI, 2014, p. 23).

Observadas as características distintivas do duplo movi-


mento nos ciclos sistêmicos de acumulação britânico e norte
-americano, Silver e Arrighi (2014) defendem que, ao lado da
“resistência vinda do Sul do mundo” (p. 24), uma das fontes mais
importantes de reversão do impulso à formação contemporânea
de mercados globais autorregulados é o próprio protecionismo
dos Estados Unidos. Segundo os autores:

Uma fonte mais provável de reversão do processo de forma-


ção do mercado mundial centrado nos EUA é o seu próprio
protecionismo persistente. Como já observado, mesmo no
auge de sua cruzada para mercados abertos e livres os Es-
tados Unidos têm pregado, muito mais do que praticado, o
credo liberal. [...] Esta é outra diferença importante entre o
funcionamento do duplo movimento de Polanyi sob o domí-
nio britânico e sob a hegemonia dos EUA. Embora a Grã-
-Bretanha consistentemente tenha aderido ao movimento de
comércio livre, os Estados Unidos têm sido muito menos con-
sistentes, minando assim a credibilidade da sua cruzada para
mercados abertos e livres [...] As inconsistências dos EUA são
sem dúvida um grande fator contribuinte para o contramo-
vimento para a proteção da sociedade (SILVER; ARRIGHI,
2014, p. 24).

Ou seja, os contramovimentos de proteção social não são


necessariamente anticapitalistas e/ou contra-hegemônicos.

195
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

Segundo Bienefeld (2007), Polanyi não descartou, inclusive,


a possibilidade de que os contramovimentos à expansão de
mercados autorreguláveis assumissem formas fascistas. Trata-
se, antes de tudo, de formas de estabilização que permitem a
continuidade dos processos de acumulação de poder e capital.
Para explicar esses processos gerais de estabilização, defen-
demos, em consonância com Fiori (2000), uma releitura da
teoria do duplo movimento que o decomponha, na verdade,
em quatro movimentos. Ao fazê-lo, há que se considerar as
duas contradições essenciais do capitalismo: “a contradição
entre capital e trabalho e a contradição entre a globalidade
dos seus fluxos econômicos e a territorialidade de sua gestão
política” (FIORI, 2000, p. 70). Em outras palavras, existe uma
face do duplo movimento que corresponde aos conflitos entre
capital e trabalho – principalmente, mas não exclusivamente,
no interior de cada Estado-economia nacional – e outra que se
refere à competição interestatal. Conflitos e contradições que,
variando no tempo e no espaço da economia-mundo, foram
responsáveis por determinar a existência de formas institucio-
nais e de coesão social funcionais ao desenvolvimento do capi-
talismo, mesmo que, para tanto, tenham limitado a expansão
das forças de mercado. Formas institucionais que, por sua
vez, dizem respeito à fusão das lógicas capitalista e territoria-
lista do poder, isto é, ao nexo Estado-finanças, que pode tanto
promover quanto restringir os processos de mercantilização,
a depender das circunstâncias históricas. Tudo isso corrobo-
rando, por fim, a distinção braudeliana entre capitalismo e
economia de mercado.
Em suma, para nós, o duplo movimento e suas especifici-
dades espaço-temporais se referem às tensões entre os objetivos de
liberalização/mercantilização e de desmercantilização/proteção
social dos principais elementos da vida material e coletiva, como
o trabalho, a terra e o dinheiro. Objetivos que se expressam de
modo historicamente determinado, segundo a lógica predomi-
nante em cada ciclo sistêmico de acumulação e, ainda, em cada
uma de suas fases alternativas, as de expansão material e finan-
ceira. Além disso, em consonância com a matriz braudeliana que
orienta nossas reflexões, destacamos, tanto quanto os elementos

196
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

mencionados acima, o papel fundamental das cidades8. Em


termos simples: as cidades também estão submetidas a padrões
de mercantilização/desmercantilização. E, em nossa opinião,
esses padrões podem ser inscritos na lógica do que chamamos de
ciclos sistêmicos de urbanização.

A hipótese dos ciclos sistêmicos de urbanização


Tendo em vista o atual estado de desenvolvimento de nossa
pesquisa, que toma os ciclos sistêmicos de acumulação como refe-
rências teóricas e históricas, acreditamos que é possível entrever
um padrão de investimentos na terra e no meio ambiente cons-
truído que aponta não só a alternância de fases de expansão
material e financeira, mas também de fases de rigidez e de
flexibilidade sistêmicas. Fases que, em nossa opinião, possuem
um componente territorial que é decisivo para compreender os
ciclos históricos de urbanização em escala mundial.
No fundo, o que está em jogo, em nossa iniciativa, é a
tentativa de articulação entre a teoria dos ciclos sistêmicos de
acumulação e a concepção dos ajustes espaço-temporais de David
Harvey. Concepção que permite enfatizar os mecanismos do
sistema de crédito, a expansão e a reestruturação espacial como
formas de solução parcial e/ou temporária da sobreacumulação
de capital e das tendências de crise do capitalismo. Retomamos,
igualmente, o debate que esse mesmo autor estabeleceu sobre as
8
Ao justificar porque optou pela reflexão sobre a moeda e as cidades nos
últimos capítulos do primeiro volume de sua obra mais importante, Civilização
Material, Economia e Capitalismo, volume dedicado à camada da vida material,
Braudel (1987) observa o seguinte: “Quis livrar desses temas o volume seguinte,
é verdade. Mas essa razão, evidentemente, não é por si só suficiente. A verdade
é que as moedas e as cidades mergulham, ao mesmo tempo, no cotidiano
imemorável e na modernidade mais recente. A moeda é uma invenção muito
velha, se entendo por moeda todo o meio que acelera a troca. E sem troca não há
sociedade. Quanto às cidades, elas existem desde a pré-história. São as estruturas
multisseculares da vida mais comum. Mas são também os multiplicadores,
capazes de se adaptar à mudança, de a ajudar poderosamente. Poder-se-ia dizer
que as cidades e a moeda fabricaram a modernidade; mas também, segundo a
regra de reciprocidade cara a Georges Gurvitch, que a modernidade, a massa
em movimento da vida dos homens, impeliu para diante a expansão da moeda,
construiu a tirania crescente das cidades. Cidades e moedas são, ao mesmo
tempo, motores e indicadores; elas provocam e assinalam a mudança” (p. 10).

197
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

ondas longas de investimento no meio ambiente construído e em


capital fixo (HARVEY, [1982] 2013; 1985a; 1985b).
Para nós, é razoável propor que a flexibilidade sistêmica
do capital, no sentido braudeliano, é substituída, periodica-
mente, pela rigidez das fases de expansão material. Rigidez que
pode ser descrita, em conformidade com Arrighi ([1994] 2003),
nos termos da regulação das relações capitalistas, da predomi-
nância de combinações específicas de insumo-produto e que
resulta, fundamentalmente, dos altos índices de investimentos
em capitais fixos, sobretudo os de larga escala e grande durabi-
lidade, o que significa a imobilização de expressivas quantidades
de capital no espaço. Investimentos em capitais fixos, enfim,
quase sempre funcionais ao incremento da produtividade no que
Harvey ([1982] 2013) chama de circuito primário do capital – o
da produção – e que desencadeiam a elevação sistêmica das taxas
de crescimento econômico. Em suma, do nosso ponto de vista,
nas fases de expansão material opera um princípio geral de terri-
torialização do capital.
A industrialização e a urbanização de tipo fordista, coinci-
dentes com a fase de expansão material do ciclo sistêmico de
acumulação norte-americano, parecem ter seguido o padrão
descrito acima, ao menos nos países centrais. Algo semelhante
ocorreu na fase de expansão material do ciclo sistêmico de acumu-
lação britânico. A diferença residindo no fato de que a expansão
material, no ciclo britânico, abriu caminho para a mercantilização
de elementos como o trabalho, a terra e o dinheiro, enquanto no
ciclo norte-americano foi acompanhada de uma tendência geral
de desmercantilização desses mesmos elementos.
Entretanto, é possível sugerir que o retorno à flexibilidade
é tanto mais urgente quanto mais a rigidez e a imobilização,
típicas das fases de expansão material, impeçam a fluidez e a
autoexpansão do capital. E, como já mencionado, o capital é,
por definição, movimento, o que entra em contradição com
sua imobilização generalizada no espaço em fases de expansão
material. Assim, nas fases de expansão financeira, o retorno à
flexibilidade se manifesta, principalmente, na forma do desvio
de grandes quantidades de capitais excedentes do circuito
primário para a esfera das finanças. Esses são, portanto, os

198
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

momentos em que prevalece o sentido geral da desterritoriali-


zação do capital.
Entretanto, observa-se, nas fases de expansão financeira, um
novo padrão de investimentos em capitais fixos, dessa vez sob a
forma prioritária da transferência de capitais para o que Harvey
([1982] 2013) denomina de circuito secundário, quer dizer, para
os circuitos financeiro-imobiliários. Note-se que se trata de um
padrão de investimentos em capitais fixos que não abre espaço,
necessariamente, para ganhos de produtividade no circuito
primário, uma vez que eles representam, antes de qualquer
coisa, um ajuste espaço-temporal e não um impulso à expansão
material propriamente dita. O que não significa, evidentemente,
que as configurações espaciais que se originam desses ajustes
não possam ser vetores de uma expansão material posterior. Seja
como for, poderíamos falar de um sentido geral de reterritoriali-
zação do capital.
Note-se, ainda, que aqui surge um necessário questiona-
mento: não parece contraditório que, ao fim da fase de expansão
material dos ciclos sistêmicos de acumulação, surjam tendências
de busca por liquidez via expansão financeira e, simultaneamente,
tendências de imobilização dos capitais pela via da produção do
meio ambiente construído?
Sem dúvida, possíveis respostas ao questionamento acima
devem considerar, no mínimo, as correspondências entre o
início das fases de expansão financeira e o desencadeamento de
ondas de especulação não só com a terra, mas também com os
vários elementos do meio ambiente construído. Isso porque se
trata de mercadorias tão especiais, únicas, que abrem todas as
chances para práticas rentistas e monopolísticas de valorização
dos capitais e de captura de rendas fundiárias e imobiliárias.
Além disso, a natureza específica de certos elementos do meio
ambiente construído, sobretudo os capitais fixos de larga escala
e grande durabilidade, implica em formas de manipulação coor-
denada das defasagens estruturais entre os tempos de produção,
circulação e consumo desses mesmos elementos, ensejando
ganhos financeiros imediatos. Por último, certas modalidades
de financiamento da expansão e da produção do meio ambiente
construído e sua subordinação à lógica de circulação do capital

199
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

fictício permitem várias combinações entre liquidez, rentabili-


dade e imobilidade dos capitais. O que é tanto mais verdadeiro
na atual fase de expansão financeira do capitalismo.
Enfim, os Gráficos 1 e 2, por exemplo, elaborados por
Harvey (1985b) com o intuito de apontar correspondências
entre momentos de sobreacumulação e ondas longas de inves-
timento no meio ambiente construído na Grã-Bretanha e nos
Estados Unidos, podem ser mobilizados para corroborar o que
foi proposto acima.

Gráfico 1 – Investimentos em componentes selecionados do ambiente


construído na Grã-Bretanha (milhões de libras a preços correntes)

Fonte: Harvey (1985b).

O que se vê, nos dois casos, é um explícito padrão de incre-


mento e de expansão dos mercados e das atividades típicas do
circuito secundário do capital, o da produção e da especulação
com bens imobiliários. Mais importante ainda: o incremento e
a expansão mencionados ocorrem não apenas num momento

200
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

de sobreacumulação, tal como estabelecido por Harvey (1985b),


mas, igual e principalmente, num período que, para Arrighi
([1994] 2003), coincide com a fase de expansão financeira do
ciclo sistêmico de acumulação britânico (final do século XIX e
início do século XX).

Gráfico 2 – Venda de terras públicas nos Estados Unidos (milhões de


acres de terra original)

Fonte: Harvey (1985b).

Assim, pode-se sugerir, novamente, que a teoria dos ciclos


sistêmicos de acumulação também seja interpretada como uma
concepção que permite identificar um padrão de alternância
entre fases de rigidez e fases de flexibilidade na longa duração
do capitalismo histórico como sistema mundial. Alternância que
pode ser descrita, ademais, nos termos do duplo sentido atri-
buído por Harvey (2005) ao conceito de ajuste espaço-temporal.
Nas palavras do autor:

O termo ‘ordenação’ [fix] tem em meu argumento um du-


plo sentido. Certa parcela do capital total fica literalmente
ordenada/fixada em termos de terra e na terra em alguma
forma física por um período de tempo relativamente longo
(que depende de seu tempo de vida física e econômica). Al-
guns gastos sociais (como a educação pública ou o sistema de
assistência à saúde) também são territorializados e tornados

201
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

geograficamente imóveis por empenho do Estado. A ‘ordena-


ção’ espaço-temporal, por outro lado, é uma metáfora para
um tipo particular de solução de crises capitalistas por meio
do adiamento do tempo e da expansão geográfica9 (HAR-
VEY, 2005b, p. 98-99).

Em resumo, propõe-se que, ao menos no que diz respeito a


realidades como as da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, nas
fases de rigidez e de expansão material, predominou o sentido
geral da imobilização (fix) dos capitais em configurações espaciais
relativamente estáveis e duradouras. Nas fases de flexibilidade e
de expansão financeira, por seu turno, prevaleceu a dinâmica
geral do segundo sentido atribuído aos ajustes espaço-temporais
(adiamento temporal e expansão, reestruturação geográfica).
Note-se que estamos falando de predomínio, e não de exclusi-
vidade, e que, portanto, não está excluída, por exemplo, a possi-
bilidade de expansões e reestruturações espaciais em fases de
expansão material.
Assim, pode-se afirmar que o próprio retorno à flexibilidade
e à forma indiferenciada do dinheiro e o deslocamento desse
mesmo dinheiro, por intermédio do sistema de crédito, para
iniciativas de expansão e reestruturação geográfica constituem
ajustes das tendências de crise do capitalismo, das crises sinali-
zadoras dos ciclos sistêmicos de acumulação, tal como propõe
Arrighi ([1994] 2003). Ajustes que, como dito, são apenas parciais
e temporários e que são entendidos, por nós, como referências
centrais para um horizonte de pesquisa em torno das caracterís-
ticas da urbanização em fases de expansão financeira. Um hori-
zonte que põe em destaque as seguintes interrogações: as fases
de expansão financeira do capitalismo podem ser compreendidas
como o fator fundamental das periódicas rodadas de expansão e
reestruturação urbanas em nível sistêmico? A expansão financeira
é, ela mesma, o fator fundamental que pressiona no sentido da
mercantilização das cidades, uma vez que essas mesmas cidades se
tornam o destino de capitais excedentes em busca de valorização?

9
“Ordenação espaço-temporal”, ao invés de ajuste espaço-temporal, foi o
termo escolhido na tradução para o português de The new imperialism. Cf.
Harvey (2005).

202
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

Os argumentos mais recentes de Harvey (2012) sobre a


urbanização chinesa, por exemplo, contribuem para responder
positivamente a essas questões. O que é igualmente verdadeiro
para as observações e comparações que o autor estabelece entre
o atual ciclo de compressão do tempo-espaço e o ciclo de mesma
natureza que teria ocorrido na passagem do século XIX ao XX
(HARVEY, [1989] 2008). Ciclos de compressão do tempo-espaço
definidos como momentos de reestruturação radical das relações
temporais e espaciais que fundamentam a acumulação capitalista.
Sustenta-se, então, que, ao incorporar a teoria dos ciclos
sistêmicos de acumulação, é possível propor ao campo dos
estudos urbanos uma perspectiva que sugere a recorrência não
só das fases de expansão financeira, mas também dos impulsos
de transferência de capitais excedentes do circuito primário para
o circuito secundário do capital. O que oferece uma moldura
teórica para compreender as correspondências entre fases de
expansão financeira e ciclos de urbanização. Em todo caso, essa
é apenas uma hipótese inicial e uma proposta de reflexão ofere-
cida ao debate no referido campo. Proposta que exige novos
desenvolvimentos, mas que permite vislumbrar alternativas ao
consenso existente nos estudos urbanos ao redor da hipótese do
advento de um novo regime de acumulação financeirizado e de
uma configuração urbana que lhe corresponderia. Para nós, há,
no mínimo, que inscrever esse regime e essa configuração nos
padrões de longa duração do capitalismo.
Enfim, para concluir, apresentamos, a seguir, alguns comen-
tários sobre os impactos urbanos e territoriais da financeirização-
mercantilização contemporâneas, isto é, no contexto do ciclo
sistêmico de acumulação e da hegemonia norte-americana.

Conclusão: impactos urbanos e territoriais da


financeirização-mercantilização contemporâneas
Em nossa opinião, até aproximadamente o final dos anos
1960, sobretudo nos países centrais e nos marcos do regime de
acumulação fordista-keynesiano, o duplo movimento assinalado
por Polanyi ([1944] 2012) correspondeu a uma tendência de
desmercantilização parcial das cidades. Tal como Topalov (1991),

203
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

podemos dizer, para fins de ilustração, que o advento e a difusão


do urbanismo e do planejamento urbano e regional, abrangentes
e regulatórios, coincidiu com a emergência de um ideário refor-
mador incompatível com os interesses imediatos de mercado. O
que não quer dizer que esse ideário tenha sido completamente
disfuncional em relação ao desenvolvimento capitalista. Muito ao
contrário, foi um componente fundamental da estabilização e do
crescimento econômico nos marcos do capitalismo pós Segunda
Guerra Mundial. No que se refere, por exemplo, à habitação de
interesse social, Rolnik (2015) aponta que, particularmente nas
décadas de 1950 e 1960, “a provisão pública de habitação cons-
tituiu-se em um dos pilares da construção de uma política de
bem-estar social na Europa, um pacto redistributivo entre capital
e trabalho que sustentou décadas de crescimento” (p. 35).
Por sua vez, na atual fase de expansão financeira do capita-
lismo, as múltiplas formas de mercantilização das cidades corres-
pondem a uma inversão do movimento anterior. Segundo essa
perspectiva, a crise sinalizadora do ciclo sistêmico de acumulação
norte-americano, a crise do regime de acumulação fordista-keyne-
siano e a ascensão do neoliberalismo, a partir do final da década de
1960, deram lugar a uma reestruturação espaço-temporal fundada,
entre outros fatores, na busca por alternativas mais rentáveis de
aplicação de capitais excedentes – capitais superacumulados que
não podiam ser reinvestidos de maneira lucrativa nos setores tradi-
cionais da produção material. Dentre essas formas, sobressaíram,
sem dúvida, o investimento de capitais financeiros nos mercados
imobiliários e no desenvolvimento urbano em geral. Ainda no que
diz respeito ao exemplo da habitação, Rolnik (2015) considera, em
consonância com Harvey ([1982] 2013), que esse processo levou
à sua desconstrução como bem social e à sua “transmutação em
mercadoria e ativo financeiro” (p. 26).
Ou seja, o papel das cidades, como elementos centrais da
vida material e como bases da reprodução geral da ordem capita-
lista, mudou ao longo do tempo. De parcialmente desmercantili-
zadas, elas passaram a ser tratadas como mercadorias e entraram
nos circuitos da valorização financeirizada. Conforme autores
e autoras como Harvey ([1982] 2013), Rolnik (2015) e Paulani
(2016), defendemos que a contemporânea fase de expansão

204
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

financeira do capitalismo ampliou a tendência geral de transfor-


mação do espaço urbano em um campo aberto para a circulação
de capitais portadores de juros, o que permite uma aliança entre
proprietários de terra e capitalistas e só é possível à medida que
são deslocadas as demais formas de propriedade. De acordo com
Paulani (2016), por exemplo:

[...] para que desapareça a contradição entre a lei do valor


e a existência da renda fundiária, a terra deve se constituir
num campo aberto à circulação do capital portador de juros,
ou seja, deve ser tratada como capital fictício. Isso significa
que o preço da terra deve refletir a permanente busca do
capital por rendas futuras aumentadas. Esse arranjo permite
a coordenação do processo de utilização da terra, de modo
a se garantir sempre os melhores e mais lucrativos usos e a
maximizar a produção de valor excedente. A situação ideal é
que toda terra seja assim encarada, de modo que todas as ou-
tras formas de propriedade da terra desapareçam. [...] O im-
portante a destacar é o caráter virtuoso da associação entre
captura de renda e busca de lucro que a circulação do capital
portador de juros pode propiciar (PAULANI, 2016, p. 528).

Quer dizer, a terra urbana torna-se, a um só tempo, capital


fictício e mercadoria fictícia. A cidade tende a ser, cada vez mais,
não apenas um negócio, mas um negócio líquido e rentável. Para
nós, o exemplo da mercantilização das cidades reforça interpre-
tações como as de Bienefeld (2007), que, ao contrário de Silver
e Arrighi (2014), sugerem a possibilidade não da antecipação,
mas do retardamento, da distorção ou mesmo da supressão dos
contramovimentos de proteção social diante da contemporânea
“ditadura das finanças” e da “revolução neoliberal”.
Mas, enfim, do nosso ponto de vista, é possível considerar os
impactos urbanos e territoriais da financeirização-mercantilização
contemporâneas destacando ao menos três aspectos básicos.
Em primeiro lugar, ressaltamos o surgimento de distintas
formas de empreendedorismo urbano e territorial. Em nossa
perspectiva, essas novas formas de empreendedorismo corres-
pondem à fragilização das capacidades regulatórias dos Estados
nacionais e territoriais, diante da reconfiguração do nexo Estado-

205
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

finanças. Uma reconfiguração que, ao contrário do que diz a “tese


pós-moderna da morte da soberania do Estado e do surgimento
de novas formas de poder mundial” (DARDOT; LAVAL, 2016,
p. 287), não suprime completamente a importância e os poderes
dos Estados, mas aponta para a predominância do polo finan-
ceiro desse nexo e para sua atuação no sentido da promoção de
processos de mercantilização.
Recorrendo à concepção do duplo movimento, defendemos
que, ao menos desde a passagem dos anos 1960 aos 1970, no
centro da economia-mundo capitalista, há um relativo enfraqueci-
mento dos mecanismos de proteção social dos Estados nacionais
diante da crescente globalização, financeirização e liberalização
dos fluxos econômicos. Por sua vez, na periferia e na semipe-
riferia, o Estado-nação não existe em sua forma plena. Assim,
a permanente excentricidade dos Estados territoriais periféricos
e semiperiféricos, em relação à dinâmica do núcleo central da
economia-mundo e de seu sistema de gestão interestatal, tornam
ainda menores as possibilidades de reação em face das forças
nacionais e internacionais mercantilizadoras. Nesse contexto, os
Estados em geral, em seus distintos níveis de governo, assumem,
crescentemente, o papel de promotores de políticas de criação
de espaços competitivos, abandonando a concepção do planeja-
mento abrangente e regulador do mercado.
As iniciativas de empreendedorismo urbano e territorial se
traduzem, por exemplo, nas denominadas Parcerias Público-Pri-
vadas (PPPs). É o caso de projetos como o Porto Maravilha, uma
política de “revitalização” de uma área de 5 milhões de quilô-
metros quadrados nas proximidades da área central do Rio de
Janeiro. Projeto que, em 2019, completou dez anos. A lei muni-
cipal que instituiu o Porto Maravilha flexibilizou parâmetros de
uso e ocupação do solo, estabeleceu intervenções prioritárias
de infraestrutura e transporte, assim como mecanismos público
-privados de gestão e financiamento. Um consórcio de empresas
privadas – o Consórcio Porto Novo (OAS, Odebrecht e Carioca
Engenharia) – foi contratado para realizar obras e serviços
urbanos, por um prazo de 15 anos, no valor estimado inicial de
R$ 7,6 bilhões. Esse valor resultaria da comercialização de Certi-
ficados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs), que são

206
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

emitidos pelas autoridades municipais e podem ser adquiridos


por investidores privados. A venda dos títulos – que podem, inclu-
sive, ser negociados em bolsas de valores – financiaria as obras.
No entanto, um Fundo de Investimento Imobiliário (FII) organi-
zado por um banco público, a Caixa Econômica Federal (CEF),
adquiriu a totalidade dos títulos, liberando os recursos para o
início das obras e serviços. Até o presente momento, apenas
8,93% deles foram recomprados por investidores privados10.
Quer dizer, apesar dos discursos sobre a origem privada dos
investimentos, na prática, o Estado assumiu os riscos11.
Algo semelhante sucedeu com parte das políticas urbanas
setoriais, principalmente de habitação, cada vez mais próximas
das lógicas do mercado imobiliário e das inovações financeiras.
No Brasil, por exemplo, o lançamento do Programa Minha Casa
Minha Vida, também em 2009, reproduziu um padrão histórico
de apropriação de fundos públicos por agentes privados. Para
Rolnik (2015):

O programa é representativo de padrões específicos de articu-


lação entre agentes públicos e privados no capitalismo brasilei-
ro. Se, por um lado, foi desenhado para incentivar empresas
privadas a se comprometerem com a produção de habitação
para moradores de baixa renda, por outro, permaneceu alta-
mente dependente de recursos públicos, mobilizados para sub-
sidiar a aquisição da propriedade por compradores de baixa e
média rendas. Esse arranjo financeiro ambivalente implica a
transferência de riscos para as instituições públicas, ao mesmo
tempo que mantém os lucros – geralmente aumentados por
subsídios indiretos – com agentes privados12 (p. 309).

10
Informações do sítio oficial do Porto Maravilha na internet. Disponível em:
http://www.portomaravilha.com.br/estoque. Acesso em: 25 nov. 2019.
11
Para uma descrição das características gerais do projeto Porto Maravilha,
assim como de seus antecedentes, cf. Diniz (2014).
12
Destacamos que a concepção braudeliana das relações de dependência
entre capitalismo e Estado e o conceito de nexo Estado-finanças aqui adotados
são fundamentais para a compreensão de processos econômicos típicos de
formações sociais como a brasileira. Ao mesmo tempo, permitem questionar
até que ponto a “articulação entre agentes públicos e privados no capitalismo” é
representativa da especificidade dessas formações ou pode ser entendida como
uma característica estrutural do moderno sistema interestatal.

207
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

Em segundo lugar, assinalamos a mudança radical nas estra-


tégias e características dos agentes capitalistas que operam no
âmbito dos mercados imobiliários e do desenvolvimento urbano
em geral. Tal como estabelecido por parte da literatura do campo
dos estudos urbanos e territoriais, há, no período contemporâneo,
uma tendência crescente de inversões em ativos imobiliários, titu-
larizados e securitizados, como uma das alternativas centrais ao
problema da sobreacumulação de capitais. Em consonância com
De Mattos (2016), acreditamos que a maior incidência de investi-
mentos financeiros nas transformações urbanas modificou subs-
tancialmente a organização, o funcionamento, a morfologia e a
aparência das principais cidades em todo o mundo. Do mesmo
modo, implicou na mudança das estratégias e das características
dos agentes mais relevantes da produção social do espaço.
Sanfelici (2013), por exemplo, destaca como o processo de
abertura de capitais das principais incorporadoras/construtoras
brasileiras, na primeira década do século XXI, alterou alguns
aspectos fundamentais dos negócios imobiliários no Brasil. Por
mais que essa abertura não indique, por si só, a completa finan-
ceirização dos mercados imobiliários brasileiros, ela estreitou
os vínculos das incorporadoras/construtoras com os mercados
de capitais e induziu um processo de dispersão territorial e de
ampliação da escala de investimento dessas empresas – que
deixaram de operar apenas nos seus mercados regionais de
origem, passando a atuar em escala nacional. O fizeram não
só pela via da capitalização em bolsa de valores, mas, sobre-
tudo, acompanhando o ciclo de expansão da produção habita-
cional promovido pelo Estado brasileiro e consubstanciado no
Programa Minha Casa Minha Vida13.
Mudando a escala de ilustração, podemos citar, de maneira
quase anedótica, a projeção de construção das Trump Towers no

13
Basta considerar, conforme Sanfelici (2013), que “o volume de unidades
habitacionais financiadas no Brasil saltou de uma média de 250 mil por ano,
entre 2000 e 2005, para mais de 1 milhão em 2010” (p. 35). Note-se que, ainda
segundo Sanfelici (2013), essas tendências de capitalização em bolsas de valores
e de expansão territorial das incorporadoras/construtoras brasileiras não se
manifestaram sem contradições. O que fica evidente quando se considera, por
exemplo, que algumas delas voltaram a fechar seus capitais e a se dedicar aos
seus mercados regionais de origem.

208
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

âmbito do mencionado Porto Maravilha. De acordo com o sítio


oficial das Trump Towers Rio, a “marca Trump […] já abrange
projetos nos Estados Unidos, Panamá, Canadá e Turquia [e] é
conhecida por representar o mais alto nível de excelência e luxo
em propriedades residenciais e comerciais, hotéis, escritórios e
campos de golfe”14. Na verdade, uma reportagem da BBC Brasil,
de julho de 2016, intitulada “Por que o maior empreendimento
de Trump no Brasil encalhou?”15, indicava que ele seria eventual-
mente conduzido por um consórcio de seis construtoras e imobi-
liárias licenciadas pela marca Trump – entre as quais destacam-
se a búlgara MRP, a espanhola Salamanca e a brasileira Even.
Ou seja, as Trump Towers Rio representavam apenas mais um
elemento do portfólio de negócios da marca Trump. Em 2017,
semanas antes da posse de Donald Trump como presidente dos
Estados Unidos, o projeto foi cancelado, sob alegação de que ele
e outros empreendimentos, previstos, por exemplo, na Índia e
na Argentina, implicariam em conflitos de interesse16. Em todo
o caso, cumpre apenas sublinhar que, cada vez mais, os agentes
capitalistas que operam nos mercados imobiliários o fazem
segundo estratégias rentistas de caráter multiescalar, multifun-
cional e multissetorial típicas da atual fase de expansão finan-
ceira do capitalismo.
Por último, sugerimos que a extensão e a profundidade da
atual fase de expansão financeira do capitalismo deve ser relacio-
nada ao grau de penetração da lógica mercantil no tecido social
e urbano. Para ilustrar esse argumento, é possível tomar como
referência, por exemplo, o modo como as rendas, os ativos, os
patrimônios e as dívidas familiares sustentam novas formas de
acumulação e de expropriação.
Como se sabe, diversos autores que analisaram a crise das
hipotecas de alto risco (subprime), de 2007, revelaram informações
sobre o desenvolvimento de uma complexa economia de ativos
14
Disponível em: http://www.trumptowersrio.com/pt-br/. Acesso em: 10 nov.
2016. Hoje, esse endereço não está mais disponível.
15
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36901182. Acesso
em: 10 nov. 2016.
16
Cf., a esse respeito, a reportagem intitulada “Trump cancela projetos no
Brasil”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/trump-cancela-
projetos-no-brasil/. Acesso em: 25 nov. 2016.

209
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

vinculada aos patrimônios familiares17. Segundo Harvey (2011),


por exemplo, o ambiente macroeconômico caracterizado por
juros baixos, inflação de ativos, repressão salarial e afrouxamento
das restrições ao crédito transformou o refinanciamento das
hipotecas numa das principais fontes de expansão do consumo
das classes médias e trabalhadoras norte-americanas. Roubini
e Stephen (2010), por sua vez, afirmam que os imóveis hipote-
cados nos Estados Unidos se tornaram uma espécie de “caixa
eletrônico”, ao serem mobilizados como garantias de uma cadeia
permanentemente renovada de empréstimos ao consumo. Para
Rolnik (2015), trata-se de novas maneiras de assegurar condi-
ções monetárias de reprodução social em face da diminuição da
participação dos salários na composição da riqueza global e da
pressão sobre os indivíduos e as famílias para buscarem meca-
nismos privados de proteção social. Ainda segundo a autora, o
“uso da casa própria como estoque de riqueza, sua valorização
ao longo do tempo e possibilidade de monetização funcionaram
na prática como substituto potencial dos sistemas públicos de
pensão e aposentadoria” (p. 38). Para Lapavitsas (2009), isso
permite falar em expropriação financeira, no sentido da “impli-
cação generalizada dos trabalhadores nos mecanismos das
finanças” (p. 130, tradução nossa) e da conversão de seus rendi-
mentos, ativos e passivos em fontes de lucros financeiros.
Bauman (2010), por seu turno, observa que a emergência de
novas formas de financiamento ao consumo e de endividamento
acompanhou a passagem de uma sociedade de produtores, na
qual os lucros provinham da exploração do trabalho, para uma
sociedade de consumidores, na qual os lucros fundamentam-se
na exploração dos desejos de consumo. Sustenta, ademais, que
os indivíduos que se abstêm de tomar empréstimos e os que
pagam seus compromissos financeiros nos prazos estabelecidos
não possuem utilidade alguma para as instituições de crédito.
Ou seja, “o devedor ideal é aquele que jamais paga integralmente
suas dívidas” (p. 30). Em consonância com a lógica da transfor-
mação do endividamento numa fonte constante de lucros, bancos
e empresas de cartão de crédito, por exemplo, “contam mais com
17
Cf., por exemplo, Lapavitsas (2009), Roubini e Stephen (2010), Harvey (2011),
Fix (2011), Sanfelici (2013) e Rolnik (2015).

210
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

o ‘serviço’ continuado das dívidas do que com seu pronto paga-


mento” (p. 30).
Não é preciso aceitar a tese do advento da sociedade dos
consumidores para concluir que, de fato, o endividamento cres-
cente vinculado à reprodução geral das classes trabalhadoras e
médias tornou-se uma fonte permanente de lucros financeiros.
Nos termos de Sanfelici (2013), esse processo corresponde à
emergência de um novo ethos financeiro fundado no “entrela-
çamento inaudito das cadeias de crédito nos interstícios mais
recônditos da vida social” (p. 30). Ainda de acordo o autor, esse
entrelaçamento demonstra o modo como “o crédito e as finanças
medeiam a relação entre os indivíduos, impõem ritmos no uso
do tempo e engendram um ethos que define as expectativas e
modela as disposições subjetivas dos indivíduos” (p. 30).
Do nosso ponto de vista, de inspiração braudeliana, estamos
diante da penetração cada vez mais profunda das lógicas finan-
ceira e mercantil na camada da vida material, isto é, na camada da
reprodução social. Como visto, Braudel definiu a vida material
como “a camada da não economia, o solo em que o capitalismo
crava suas raízes, mas no qual nunca consegue penetrar” (apud
ARRIGHI, 2003, p. 10). Numa atualização de seu argumento,
defendemos que uma das principais especificidades da atual fase
de expansão financeira diz respeito, exatamente, à penetração
do capitalismo na camada da vida material. Em consonância
com Sandel (2015), acreditamos que a mudança mais decisiva
do período contemporâneo foi “a extensão dos mercados, e dos
valores de mercado, a esferas da vida com as quais nada têm a
ver” (p. 12). Nesse sentido, consideremos, mais uma vez, o caso
da habitação.
Tal como formulado por Bourdieu (2002), mesmo quando
integra o circuito mercantil, a casa não é jamais um simples bem
econômico. A casa manifesta uma forte relação de pertencimento,
é um projeto ou uma aposta coletiva sobre o futuro da unidade
doméstica e base da coesão afetiva. Desse modo, é possível afirmar
que um grupo familiar qualquer pode pôr em risco sua coesão
e suas estratégias de reprodução quando tende a tratar sua casa
como simples mercadoria e, no extremo, como ativo financeiro. O
que é cada vez mais comum nos marcos da financeirização contem-

211
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

porânea e assumiu proporções e consequências sem precedentes


na recente crise das hipotecas norte-americanas.
Grosso modo, hipotecas residenciais de alto risco, contra-
tadas e recontratadas nos Estados Unidos, sobretudo para finan-
ciar o consumo, foram agregadas e convertidas, por intermédio
do mecanismo da securitização, em novos títulos aparentemente
seguros e líquidos, que foram amplamente negociados nos
mercados internacionais. Porém, uma vez que os tomadores de
empréstimos perderam a capacidade de arcar com seus compro-
missos, em virtude de mudanças macroeconômicas nacionais,
eles não só perderam seus imóveis, como contribuíram para que
toda uma cadeia de valores e capitais fictícios, circulando nos
mercados mundiais, fosse rompida, com graves repercussões.
Ou seja, uma vez que a denominada financeirização deixou
de se expressar apenas nas esferas das “altas finanças”, atingindo
os domínios da vida material e cotidiana, necessariamente emer-
giram graves tendências de desarticulação social. Por fim, dadas
as consequências da atual crise sistêmica do capitalismo, pode-se
dizer, para concluir este artigo, que essas tendências se revelam
ainda mais preocupantes diante da já mencionada hipótese do
retardamento, da distorção ou da supressão dos contramovi-
mentos de proteção social. Tudo isso constituindo um horizonte
ainda mais importante de reflexão sobre os elos entre o finan-
ceiro e o imobiliário no contexto da atual fase de desenvolvi-
mento do capitalismo.

Referências
AALBERS, Manuel. The financialization of home and the mortgage market
crisis. Competition and change, v. 12, n. 2, p. 148-166, 2008.
______. Geographies of the Financial Crisis. Area, v. 41, n. 1, p. 34-42, 2009a.
______. The Sociology and Geography of mortgage markets: reflections on the
financial crisis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 33, n.
2, p. 281-290, 2009b.
______. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v.
5, n. 2, p. 214-219, 2015.
______ (Ed.). The Financialization of Housing: a political economy approach.
New York: Routledge, 2016.

212
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

AGLIETTA, Michel. Le capitalism de demain. Paris: Fondation Saint Simon,


1998.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de
nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 2003.
ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly J. Caos y orden en el sistema-mundo
moderno. Madrid: Akal, 2001.
BOYER, Robert. Is a finance-led growth regime a viable alternative to
fordism? Economy and Society, v. 29, n. 1, Feb. 2000.
BARAN, Paul; SWEEZY; Paul. El capital monopolista: ensayo sobre el
orden económico y social de Estados Unidos. México, D.F: Siglo Veintiuno
Editores, 1988.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global – O padrão sistê-
mico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
______. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Dinheiro e as transfigurações da riqueza. In:
TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma
economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
BOURDIEU. Pierre. Las estructuras sociales de la economia. Buenos Aires:
Editora Manantial, 2002.
BRUNO, Miguel; CAFFÉ, Ricardo. Indicadores macroeconômicos de
financeirização: metodologia de construção e aplicação ao caso do Brasil.
In: BRUNO, Miguel (Org.) População, espaço e sustentabilidade: contribuições
para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: IBGE, 2015.
BRUNO, Miguel; DIAWARA, Hawa; ARAÚJO, Eliane; REIS, Anna
Carolina; RUBENS, Mário. Finance-led growth regime no Brasil: estatuto
teórico, evidências empíricas e consequências macroeconômicas. Revista de
economia política, v. 31, n. 5, p. 730-750, 2011.
BUGRA, Ayse; AGARTAN, Kaan. Reading Karl Polanyi for the Twenty-
First Century: market economy as a political project. New York: Palgrave
Macmillan, 2007.
BUKHARIN, Nicolai. A economia mundial e o imperialismo. São Paulo: Nova
Cultural, 1986.
CARCANHOLO, Reinaldo de A.; NAKATANI, Paulo. O capital especu-
lativo parasitário: uma precisão teórica sobre o conceito de capital finan-
ceiro, característico da globalização. In: GOMES, Helder (Org.). Especulação
e lucros fictícios. São Paulo: Outras Expressões, 2015a.

213
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

______. Capitalismo especulativo e alternativas para a América Latina.


In: GOMES, Helder (Org.). Especulação e lucros fictícios. São Paulo: Outras
Expressões, 2015b.
CECILIO, Marco Bulhões. Fernand Braudel no mundo contemporâneo e
a acumulação acelerada de riquezas: economia de mercado e capitalismo
como opostos? Dissertação (mestrado em Economia Política Internacional)
– Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional, Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1998.
______. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo,
alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1 (18), p.
1-44, jan./jun. 2002.
CHRISTOPHERS, Brett. On voodoo economics: theorising relations of
property, value and contemporary capitalism. Transactions of the Institute of
British Geographers, v. 35, n. 1, p. 94-108, 2010.
______. Revisiting the urbanization of capital. Annals of the Association of
American Geographers, v. 101, n. 6, p. 1347-1364, 2011.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DE MATTOS, Carlos A. Financiarización, mercantilización y metamor-
fosis planetaria: lo urbano en la valorización del capital. Sociologias, Porto
Alegre, v. 18, n. 42, p. 24-52, mai./ago. 2016.
DINIZ, Nelson. Porto Maravilha: antecedentes e perspectivas da revitali-
zação da região portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital,
2014.
FINE, Ben. Financialization from a marxist perspective. International
Journal of Political Economy, v. 42, n. 4, p. 47-66, 2014.
FIORI, José Luís. A propósito de uma construção interrompida. Economia e
Sociedade, Campinas, v. 9, n. 1, p. 1-19, jun. 2000.
______. O sistema interestatal capitalista no início do século XXI. In: FIORI,
José Luís; MEDEIROS, Carlos; SERRANO, Franklin (Org.) O mito do colapso
do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2008.
______. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capita-
lismo. São Paulo: Boitempo, 2014.
FIX, Mariana. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário
no Brasil. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp (Tese de doutorado),
2011.
FOSTER, John Bellamy. Monopoly-finance capital. Monthly Review, v. 58,
n. 7, 2006. Disponível em: https://monthlyreview.org/2006/12/01/mono-
poly-finance-capital/. Acesso em: 18 abr. 2016.
______. The financialization of capitalism. Monthly Review, v. 58, n. 11,

214
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

2007. Disponível em: https://monthlyreview.org/2007/04/01/the-finan-


cialization-of-capitalism/#fn1. Acesso em: 18 abr. 2016.
______. The age of monopoly-finance capital. Monthly Review, v. 61, n. 9,
2010. Disponível em: https://monthlyreview.org/2010/02/01/the-age-of-
monopoly-finance-capital/. Acesso em: 24 abr. 2016.
GARCÍA-LAMARCA, Melissa; KAIKA, Maria. “Mortgaged lives”: the
biopolitics of debt and housing financialisation. Transactions Institute of
British Geographers, Manchester, 2016.
GOTHAM, Kevin Fox. The secondary circuit of capital reconsidered:
globalization and the U.S. real estate sector. American Journal of Sociology, v.
112, n. 1, p. 231-275, 2006.
GUTTMANN, Robert. Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas
finanças. Novos Estudos CEBRAP, n. 82, p. 11-33, 2008.
HARVEY, David. Consciousness and the urban experience. Oxford: Blackwell,
1985a.
______. The urbanization of capital: studies in the history and theory of capi-
talist urbanization. Oxford: Blackwell, 1985b.
______. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.
______. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo: Loyola, 2008.
______. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo,
2011.
______. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution.
London: Verso, 2012.
______. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
JESSOP, Bob. Knowlegde as a fictitious commodity: insights and limits of
a polanyian perspective. In: BUGRA, Ayse; AGARTAN, Kaan. Reading Karl
Polanyi for the Twenty-First Century: market economy as a political project.
New York: Palgrave Macmillan, 2007.
KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São
Paulo: Nova Cultural, 1986.
LAPAVITSAS, Costas. Financialised capitalism: crisis and financial expro-
priation. Historical materialism, v. 17, n. 2, p. 114-148, 2009.
______. Theorizing financialization. Work, Employment & Society, v. 25, n. 4,
p. 611-626, 2011.
______. Profiting without producing: how finance exploits us all. London:
Verso, 2013.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2008a.

215
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz

______. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008b.


______. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008c.
LÊNIN, Vladimir. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas:
FE/UNICAMP, 2011.
MAGDOFF, Harry; SWEEZY, Paul. The financial explosion. Monthly Review,
v. 37, n. 7. Disponível em: https://monthlyreview.org/1985/12/01/the-
financial-explosion/. Acesso em: 18 abr. 2016.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 1. O
processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986a.
______. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 2. O
processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986b.
MINSKY, Hyman. Can it happen again? Essays on instability and finance.
Nova York: M. E. Sharp, 1982.
PAULANI, Leda. A crise do regime de acumulação com dominância da
valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados, São Paulo,
v. 23, n. 66, p. 25-39, 2009.
______. A autonomização das formas verdadeiramente sociais na teoria
de Marx: comentários sobre o dinheiro no capitalismo contemporâneo.
Revista EconomiA, v. 12, n. 1, p. 49-70, 2011.
______. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observa-
ções sobre o caso brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 77, p.
237-261, 2013.
______. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx
para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São
Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016.
______. Não há saída sem a reversão da financeirização. Estudos Avançados,
v. 31, n. 89, p. 29-35, 2017.
PEREIRA, Alvaro Luis dos Santos. Intervenções em centro urbanos e
conflitos distributivos: modelos regulatórios, circuitos de valorização e
estratégias discursivas. 308 f. Tese (doutorado em Direito) – Programa de
Pós-graduação em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 2015.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; DINIZ, Nelson. Financeirização, mercan-
tilização e reestruturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque
dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento.
Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 351-377, 2017.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Fernand Braudel e as ciências humanas.
Londrina: Eduel, 2013.

216
Financeirização e mercantilização à luz dos ciclos sistêmicos de acumulação e de urbanização

ROLNIK, Raquel. A Guerra dos lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.


ROUBINI; Nouriel; STEPHEN, Mihm. A economia das crises: um curso-re-
lâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2010.
ROYER, Luciana de Oliveira. 194 f. Financeirização da política habita-
cional: limites e perspectivas. Tese (doutorado em Arquitetura e Urba-
nismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, 2009.
SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do
mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
SANFELICI, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no
Brasil: uma contribuição ao debate. EURE, Santiago, v. 39, n. 118, p. 27-46,
2013.
SILVER, Beverly J; ARRIGHI, Giovanni. “O duplo movimento” de Polanyi:
comparação da hegemonia da belle époque britânica e estadunidense. Emetro-
polis: Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais, n° 16, ano 5, 2014.
TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-ameri-
cana. In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro:
uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
TAVARES, Maria da Conceição; MELIN, Luiz Eduardo. Pós-escrito 1997:
A reafirmação da hegemonia norte-americana. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
TOPALOV, Christian. Os saberes da cidade em crise. Espaço e Debates, ano
IX, n. 34, 1991.
WALLERSTEIN, Immanuel. World-systems analysis: an introduction.
London: Duke University Press, 2004.
______. Impensar a ciência social: os limites dos paradigmas do século XIX.
São Paulo: Ideias e Letras, 2006.
______. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of
the european world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University
of California Press, 2011.

217
Circuitos de extração: valor em processo
e o nexo mineração/cidade1

Martín Arboleda2

Introdução
Em uma série de artigos recentes Verónica Gago, Sandro
Mezzadra e Brett Neilson (GAGO e MEZZADRA, 2015, 2017;
MEZZADRA e NEILSON, 2017) mostraram a necessidade da
elaborar “uma concepção ampliada do extrativismo”. Segundo os
autores, isso se baseia na ideia de que algumas das dinâmicas e
lógicas da produção de matérias-primas primárias estão rapida-
mente se estendendo a outros domínios da atividade socioeco-
nômica, como as finanças, o mercado imobiliário, a logística e a
economia de plataforma. Os processos extrativos, em sua visão,
fornecem importantes insights analíticos para elucidar o papel da
renda, da acumulação primitiva e da força extraeconômica sob o
capitalismo contemporâneo, especialmente a partir da Grande
Recessão de 2008. Embora a noção e o programa de pesquisa
do “extrativismo” tenham surgido no contexto das lutas sobre a
expansão das fronteiras das matérias-primas primárias na América
Latina, Gago, Mezzadra e Neilson consideraram que, com dema-
siada frequência, a referida expansão permanece associada ao
sentido estrito e literal da extração de matérias-primas e alimentos
do solo. Os autores salientam que isso tira de foco não apenas
as dimensões extrativas que atuam no capitalismo em geral, mas
também as formas pelas quais a produção de mercadorias primá-
rias se mistura com finanças, logística e urbanização (ver GAGO e
MEZZADRA, 2017; MEZZADRA e NEILSON, 2017).
Este artigo propõe que a ideia de repensar a extração em
um sentido ampliado deve ser recebida como um projeto intelec-
1
Capítulo publicado originalmente na revista Capitalism Nature Socialism, com
o título “From Spaces to Circuito of Extraction: Value in Process and Mine/City
Nexus”. DOI: 10.1080/10455752.2019.1656758.
2
Escola de Sociologia, Universidade Diego Portales, Santiago do Chile, Chile.

219
Martín Arboleda

tual urgente e relevante. No entanto, e embora Gago, Mezzadra


e Neilson sugiram que existe uma “relação orgânica” entre a
extração e outras esferas de atividade econômica, tal relação só é
sugerida através de vinhetas específicas sobre dados sobre mine-
ração, especulação urbana, financiamento popular, e assim por
diante. O fato de essa relação permanecer obscura, e ainda não
ter sido objeto de reflexão teórica, pode eventualmente derivar da
lógica pós-trabalhadorista em que se apoia o relato dos autores,
pois consideram que o extrativismo anuncia uma nova fase de
acumulação global “(...) além do paradigma industrial” (GAGO e
MEZZADRA, 2017, p. 575). E, com efeito, tem sido argumentado
que a tendência do pensamento pós-trabalhadorista de declarar a
teoria marxiana do valor (ou seja, “capitalismo industrial”) como
anacrônica e datada tem prejudicado o potencial explicativo em
relação ao muito que o trabalho nesse tipo de tradição tem a
oferecer (ver por exemplo CAFFENTZIS, 2005; HENNINGER,
2007; STAROSTA, 2012). À luz desses elementos, este artigo se
baseia em leituras teóricas sobre o valor da extração (ver por
exemplo BUNKER e CICCANTELL, 2003, 2005; BRIDGE, 2008;
LABBAN, 2008, 2014a, 2014b; CICCANTELL, 2009; BAGLIONI
e CAMPLING, 2017; HUBER, 2018) para sugerir que ao colocar
os recursos naturais no centro da dinâmica da industrialização
tardia, as relações orgânicas entre os setores primário, secun-
dário e terciário da economia podem ser mais adequadamente
concretizadas.
Mais especificamente, meu argumento é que um envol-
vimento com uma teorização crítica da circulação do capital
– como foi estabelecida por Marx (1992; ver também MARX,
1973, seção 2) no Volume II de O Capital – pode contribuir para
a agenda do desenvolvimento de uma concepção ampliada do
extrativismo que revela as interdependências reais, as tendên-
cias de crise e os pontos de interseção entre a economia espacial
de extração e a produção do espaço capitalista na sociedade
contemporânea. Ao defender a reprodução do capital em termos
de três sistemas circulatórios inter-relacionados (capital mone-
tário, capital produtivo e capital de mercadorias), Marx buscou
substituir os entendimentos compartimentados sobre produção,
circulação, troca e distribuição, e perceber a economia capita-

220
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

lista como uma unidade diferenciada (ver ARTHUR e REUTEN,


1998; HARVEY, 2013; FINE e SAAD-FILHO, 2016, cap. 4).
Desse modo, este artigo propõe uma compreensão relacional da
produção de produtos primários em termos de três circuitos de
extração contraditórios e, ao mesmo tempo, integrados:

l primeiro, um circuito produtivo de extração, que abrange a


territorialidade real e o processo material de produção
de matérias-primas – construção de passagens verticais
para minas (shafts), poços, instalações de processamento e
zonas rurais agroindustriais, entre outros (grifo original);
l segundo, um circuito de extração de mercadorias, formado
por todas as redes de infraestrutura e conectividade
logística que permitem a rota de matérias-primas desde
os locais de extração até a sua realização no mercado –
portos, transportadoras de granéis sólidos, ferrovias,
oleodutos e rodovias (grifo original);
l terceiro, um circuito de extração monetária, que envolve todos
os atores financeiros, instrumentos e sistemas institucio-
nais que medeiam a atividade das indústrias baseadas em
recursos em múltiplas escalas espaciais (grifo original).

Na noção de circuitos de extração não está apenas em jogo


a intenção de contribuir para a provocação oportuna de Gago,
Mezzadra e Neilson; está também a de lançar luz sobre os modos
de interdependência socioespacial que surgem como processos
de modernização industrial no chamado Sul global – e especial-
mente nas economias do Leste Asiático – e que dão origem a um
dos mais persistentes e abrangentes superciclos de mercadorias
da história recente3. Essas transformações históricas distintas,
porém, inter-relacionadas, como mostra o artigo, agruparam
3
Há uma tendência da literatura especializada em se referir a um “boom de
mercadorias” quando quer definir o aumento global do preço das matérias-
-primas que começou no início da década de 1990 e perdeu força em 2014. No
entanto, esse grande evento geoeconômico é mais adequadamente entendido
como um “superciclo” de mercadorias, porque apesar dos períodos de declí-
nio (nomeadamente na sequência da crise financeira de 2008 e em 2014), a
procura não retornou aos níveis anteriores à década de 1990. Na verdade, 2017
sinalizou uma nova iteração dos aumentos de preços, também impulsionada
pela expansão do setor manufatureiro chinês.

221
Martín Arboleda

recursos naturais e ambientes construídos, bem como espaços


urbanos e não urbanos, em configurações novas e cada vez mais
intrincadas. A primeira seção se inicia apresentando uma reflexão
sobre como a teorização marxista da circulação do capital pode
expandir os repertórios metodológicos, as ferramentas analíticas
e as imaginações socioespaciais dos estudos tradicionais do extra-
tivismo para além de seu locus classicus – ou seja, a geografia
da extração. Nas três seções seguintes, o artigo prossegue explo-
rando os circuitos de extração acima mencionados. Cada um dos
três circuitos é avaliado em termos do papel que desempenha em
processos mais amplos de urbanização capitalista e acumulação
global de capital. Na seção final, o artigo explora a dinâmica de
reprodução expandida que emerge do movimento combinado
dos três circuitos. Neste artigo sugiro que o fato de considerar
as economias extrativas em termos de sua reprodução ampliada
permite entender como as economias de recursos também estão
alargando a fronteira da especulação imobiliária, da apropriação
da renda e da inovação tecnocientífica.

Recursos Naturais e a Circulação de Capital


Em uma das declarações programáticas que emergiram da
literatura acadêmica e ativista latino-americana sobre extrativismo
urbano, Enrique Viale (2017, p. 20) afirma que um grande desafio
do nosso tempo consiste em construir “pontes entre aqueles que
resistem à mineração em lugares remotos, aqueles que resistem ao
glifosato e ao agronegócio, e aqueles (...) que vivem em cidades
cada vez mais caras, cercadas e repressivas”. E, de fato, tais geogra-
fias de ação social surgem como distintas, insulares e não relacio-
nadas (grifo original). No entanto, uma compreensão do capital do
ponto de vista do seu movimento circulatório revela que eles são,
no entanto, agrupados numa unidade complexa pelo movimento
combinado de três circuitos do capital sobrepostos. No Volume I de
O Capital, Marx considera que as mercadorias são negociadas pelo
seu valor. Isso significa que as questões de mercado, transporte,
troca, distribuição e consumo, são deliberadamente colocadas de
lado por uma questão de clareza analítica. No Volume II, Marx
problematiza esses aspectos ao transcender um entendimento

222
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

“superficial” de circulação como mero movimento de mercado-


rias. Em vez disso, como Arthur e Reuten (1998) explicam, Marx
desenvolve uma leitura “mais profunda” que considera o processo
de circulação do capital como um todo (grifo original). Isso significa
que a circulação não envolve apenas o movimento de bens no
espaço (ou seja, a sua trajetória da mina para a fundição, ou da
fundição para a fábrica), mas as transições ou metamorfoses que o
capital sofre no decurso do seu ciclo de vida. O capital, Marx argu-
menta assim em Grundrisse (1973, 536; ver também LABBAN,
2017), deve ser apreendido como valor em processo ou em tran-
sição entre as suas várias formas, em vez de meramente um valor
em movimento como normalmente é considerado (grifo original).
Como Matt Huber (2018) argumentou recentemente, uma teoria
de valor revitalizada e coerente fornece ferramentas fundamen-
tais para elucidar como os recursos naturais fluem e sustentam
cadeias complexas de mercadorias e sistemas produtivos que estão
dispersos por múltiplas escalas e lugares. Em outras palavras,
é importante inquirir não apenas como o valor é produzido,
mas também como ele flui através do espaço econômico. Nesse
sentido, o presente artigo sustenta que uma compreensão crítica
da circulação pode fornecer importantes contribuições para
a recente mudança em direção à teoria do valor na economia
política voltada para o meio ambiente (para uma visão geral, ver
CHRISTOPHERS, 2018; HUBER, 2018; PURCELL, LOFTUS,
e MARCH, 2019). Ao conceituar o metabolismo socioecológico
do capital em termos de três circuitos integrados (capital mone-
tário, capital produtivo e capital de mercadorias), Marx (1992)
não só antecipa a interdependência radical da vida econômica na
sociedade moderna, mas também a instabilidade intrínseca e a
fragilidade do movimento do valor. Uma alteração em qualquer
um dos circuitos, como explica Marx, desencadeia alterações e
rupturas concomitantes nos outros. Para David Harvey (2013),
uma exploração do capital do ponto de vista de três circuitos
integrados é valiosa na medida em que revela que contradições,
obstáculos e crises não só surgem na produção (ou seja, no local
da extração), mas também podem surgir – e frequentemente
surgem – no processo de circulação e distribuição, no qual várias
outras classes e frações de classes estão atuando.

223
Martín Arboleda

Marx também observa que a interação entre circuitos não


é apenas turbulenta e propensa a crises, mas também é invaria-
velmente voltada para escalas de operação sempre crescentes.
Os excedentes de capital que não podem ser reabsorvidos em
nenhum dos circuitos são lançados para fora e, assim, o movi-
mento do circuito como um todo assume a imagem proverbial
de uma espiral ascendente – um processo que ele concebe sob
a noção de “reprodução expandida” (ver MARX, 1992, cap. 21).
Como Luxemburg ([1913] 2003, cap. 26) e Harvey (1985) salien-
taram, o processo de reprodução expandida resulta em crises
periódicas de sobreacumulação que só podem ser contornadas
através da criação de novos locais para a realização do valor
produzido noutros locais. Como as seções seguintes deste artigo
mostram, é através da mudança, ou reorientação, de capitais
excedentes, que as indústrias extrativas se desenvolvem para
fora, envolvendo-se ativamente no remake da vida econômica
para além do setor primário. Desse modo, a noção de circuitos
de extração que este artigo propõe não se preocupa somente em
analisar a organização territorial das infraestruturas integradas
(isto é, portos, ferrovias, sistemas de transporte marítimo etc.) que
objetivam uma rápida circulação de matérias-primas através do
espaço logístico e urbano. Envolve também, essencialmente, uma
compreensão relacional de como a produção, circulação, troca
e distribuição dos recursos naturais se unem como momentos
inter-relacionados na autoexpansão do valor.

Circuito Produtivo da Extração


O circuito produtivo da extração é circunscrito ao momento
da produção de valor quando capitais fixos e variáveis são gastos
para produzir minerais, petróleo ou alimentos. Esse circuito geral-
mente engloba todos os processos e territorialidades que formam
o objeto de análise dos estudos tradicionais sobre o extrativismo.
Nas últimas décadas, a organização física desse circuito foi reconfi-
gurada de forma a aumentar a produtividade, especialmente face
ao declínio dos tipos de minerais e ao aumento da procura dos
“Tigres Asiáticos” que se encontram numa fase de rápida indus-
trialização. Em vez de se desenrolar dentro de um cenário pós-in-

224
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

dustrial de acumulação, o estudo que Bunker e Ciccantell (2003,


2005) realizaram sobre as novas fronteiras de recursos mostra que
a construção naval e a capacidade de produção de aço, resultado
dos processos de modernização industrial na Ásia Oriental, contri-
buíram para que as economias do Japão, Coreia do Sul e China se
tornassem os maiores importadores mundiais de matérias-primas.
É importante ressaltar que esses processos de industrialização
tardia sustentaram um superciclo de mercadorias já existente há
muito na América Latina, fortemente evidenciado na expansão da
balança comercial entre a China e a América Latina, que passou
de US$ 15 bilhões em 2009 para surpreendentes US$ 200 bilhões
em 2011 (VALDEZ MINGRAMM, 2013, p. 32).
Essa paisagem transpacífica, resultado que surgiu do
comércio de minerais, empurrou as indústrias extrativas
para maior integração funcional, não só entre as várias fases
do processo de produção-exploração, decapagem, britagem,
transporte, mas também entre as indústrias portuária e marítima.
Os esforços para implementar tecnologias de rastreabilidade
de minerais e mapeamento da cadeia de suprimentos a fim
de reduzir assimetrias de informação entre as diferentes fases
de produção têm sido condicionados pela padronização das
operações ao longo da cadeia de suprimentos (ARBOLEDA,
2018)4. Além disso, a crescente complexidade na divisão técnica
do trabalho também tem favorecido o surgimento de grandes
empreiteiras de forma semelhante à das “Wintelist” ou Redes
de Produção Modular que tendem a predominar na indústria
eletrônica – caracterizada por uma divisão acentuada entre
projeto e execução e pela reintegração vertical da atividade
manufatureira. As tarefas inicialmente terceirizadas na indústria
de mineração eram trabalhosas e marginais em relação à
operação principal, tais como alimentação, hospedagem em
albergues e abertura de poços, mas gradualmente houve uma
4
Embora a rastreabilidade de minerais tenha começado como uma iniciativa
privada de compradores de minerais nos mercados asiáticos para reduzir cus-
tos, ela tem sido recentemente adotada pela sociedade civil e organizações mul-
tilaterais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econô-
mico (OCDE) e a Organização das Nações Unidas (ONU) como uma forma de
aumentar a transparência e evitar violações dos direitos humanos, especialmen-
te com relação a minerais de conflito como coltan, estanho, tungstênio e ouro.

225
Martín Arboleda

mudança para uma constelação de serviços mais complexos


como previsão de minerais, modelagem geológica e engenharia
de processos. A tendência para maior diversificação de funções
parece ter decolado na indústria de mineração sul-africana
durante a década de 1990, quando poços inteiros começaram a ser
terceirizados (KENNY e BEZUIDENHOUT, 1999). Na América
Latina, o redimensionamento e a especialização dos empreiteiros
evoluíram a ponto de grandes corporações transnacionais como
a Komatsu, Siemens, Atlas Copco e Cat-Finning operarem agora
normalmente ao lado de corporações extrativas na construção
de passagens verticais para minas (shafts), poços e instalações
industriais destinadas ao processamento mineral (INNOVUM/
FUNDACIÓN CHILE, 2014).
Processos de reestruturação organizacional desse tipo permi-
tiram saltos quânticos na produtividade laboral, mas também
desencadearam novas formas de desigualdade socioespacial
como resultado de uma força de trabalho cada vez mais polari-
zada não só em termos de gênero, raça e cidadania, mas também
em termos dos atributos produtivos que abrange (ARBOLEDA,
a sair). Durante a fase nacional-desenvolvimentista do desenvol-
vimento capitalista, o espaço de assentamento nas geografias de
recursos foi estruturado em torno de “cidades-empresas” relati-
vamente equitativas e socialmente homogêneas para os trabalha-
dores assalariados das empresas de mineração e petrolíferas. A
mercantilização das forças de trabalho de complexidade hetero-
gênea exigida pela atualização tecnológica na indústria de mine-
ração trouxe uma especialização excessiva entre os trabalhadores
intelectuais (geólogos, engenheiros, geofísicos), assim como
a desqualificação e a insegurança de trabalho entre os opera-
dores industriais e manuais. A proliferação de redes de trabalho
subcontratado, temporário e fragmentado tem, portanto, anun-
ciado uma mudança para um paradigma efêmero de urbanismo
de recursos estruturado com base em cidades em expansão,
agrópoles e acampamentos (ver CANALES, 2012; VERA e
MEHROTRA, 2018; GORDILLO, 2019; para urbanismo de
extração de recursos na África Subsaariana, ver KIRSHNER e
POWER, 2015). Além disso, reconfigurações recentes no circuito
produtivo da extração também se manifestaram em pilhagem

226
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

ambiental invasiva, esgotamento do solo, mudança no uso da


terra e poluição da água, levando a um verdadeiro êxodo das
populações rurais para a periferia tanto das cidades intermediá-
rias quanto das grandes cidades da América Latina. Essa nova
iteração da descamponização global causada por recursos está
bem documentada na literatura (ver, por exemplo, RUIZ RUIZ e
SANTANA RIVAS, 2016; VÁSQUEZ DUPLAT, 2017).

Circuito de Extração de Mercadorias


O circuito de extração de mercadorias engloba todas as
infraestruturas físicas e sociais que são criadas de modo a
facilitar a rápida circulação de mercadorias primárias desde o
ponto de produção até à sua posterior realização no mercado.
A redução do tempo que o capital leva para a transição de sua
determinação como forma de mercadoria, até o momento em
que se concretiza em sua forma monetária e retorna ao capita-
lista como lucros a serem reinvestidos – seu tempo de turnover
– tem sido consistentemente considerado como um motor-chave
para a competição intercapitalista na sociedade moderna. Não
surpreende, portanto, como Marx (1992) argumenta, que a
reprodução contínua do capital esteja condicionada ao constante
desenvolvimento e concentração (isto é, à ampliação) dos meios
de transporte e comunicação. Como ele enfatiza em Grundrisse,
“(...) a criação pelo capital de mais-valia absoluta – mais trabalho
objetivado – está condicionada a uma expansão, especificamente
constante, da esfera de circulação” (MARX, 1973, p. 407, grifo
original). Para Bunker e Ciccantell (2003, 2005), é o impulso de
acesso a periferias de recursos cada vez mais remotas o que tem
desencadeado os tipos de avanços tecnológicos nos meios de
transporte que vieram a definir os ciclos históricos de acumu-
lação propriamente ditos. Exemplos notáveis a esse respeito são
talvez as bergantinas usadas pela Espanha para transportar ouro
e prata via o Oceano Atlântico no século XVI, os navios motori-
zados que o Império Britânico concebeu para ter acesso a guano
e à borracha na Amazônia, e o Valemax, o maior navio para o
transporte de carga sólida a granel já construído, que transporta
minério de ferro do Brasil para a China via o Oceano Pacífico.

227
Martín Arboleda

A tendência para modernizar e renovar constantemente as


infraestruturas de circulação tem sido a marca do capitalismo
industrial desde o seu início. No entanto, é no contexto da revo-
lução logística que o circuito produtivo e os circuitos de mercado-
rias de extração alcançaram um grau mais avançado de integração
funcional. Argumenta-se que uma das características principais da
revolução logística reside no fato de que, objetivando os interesses
da velocidade, conectividade e homeostase, ela tornou menos
nítidas as fronteiras entre transporte e outras formas de trabalho
produtivo (COWEN, 2014; TOSCANO, 2014). Como explicado
na seção anterior, as tecnologias de mapeamento da cadeia de
suprimentos e rastreabilidade dos minerais implementadas na
indústria de mineração mudaram deliberadamente a ênfase dos
locais de extração, considerados individualmente, para a cadeia
de suprimentos, considerada como um sistema total. As impli-
cações da revolução logística na geografia da extração também
são evidenciadas na mudança geoeconômica que permitiu que o
Japão e a Coreia do Sul conseguissem um aumento de dez vezes no
número de transportadoras de granéis sólidos entre 1961 e 1992,
passando de 471 para 4.846 (CICCANTELL, 2009, p. 197). A
gênese dessa reconfiguração na capacidade naval, como explicam
Bunker e Ciccantell (2005), pode ser rastreada até o Japão e a
necessidade da Coreia do Sul de reduzir os custos de transporte
para acessar periferias remotas de recursos. Em 1995, a China
tornou-se o maior produtor mundial de aço, uma mudança histó-
rica que mais tarde lhe permitiu tornar-se o principal importador
de matérias-primas e desenvolver a maior frota marinha mercante,
com mais de 2.000 navios (KHANNA, 2016), assim como cinco
dos dez maiores portos de contêineres do mundo5.
Os processos de transformação infraestrutural e institucional
que giram em torno da construção de portos, navios, ferrovias,
canais, rodovias e pontes, para a rápida movimentação de maté-
rias-primas, no entanto, raramente são problematizados na lite-
ratura. De fato, Bridge (2008) tem argumentado que o debate
sobre as periferias de recursos avançou através de um padrão para
modos de análise em escala nacional que empurram para segundo
5
Financial Times. “How China Rules the Waves”, 12 de janeiro de 2017. Dispo-
nível em: <https://ig.ft.com/sites/china-ports/? mhq5j=e2>.

228
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

plano questões sobre a organização transnacional da produção


(ver também BAGLIONI e CAMPLING, 2017). Relatos recentes
de desenvolvimentos de megainfraestruturas e infraestruturas
de conectividade nas indústrias extrativas começaram a abordar
questões importantes da circulação de matérias-primas, especial-
mente através do questionamento sobre corredores interoceânicos,
cidades portuárias e redes logísticas para o comércio de minerais
– com a iniciativa “Cinturão e Estradas” da China, que vem a ser
talvez o exemplo mais ilustrativo de iniciativas emergentes para a
circulação transcontinental de matérias-primas (CICCANTELL,
2009; HARVEY e KNOX, 2015; KANAI, 2016; KHANNA,
2016; WILSON e BAYÓN, 2017; IRARRÁZAVAL e BUSTOS-
GALLARDO, 2018; KANAI e SCHINDLER, 2018; URIBE, 2018).
A crescente relevância que o circuito de extração de merca-
dorias adquiriu no contexto de toda a geografia de produção de
produtos primários levou a novas expressões de protesto e agitação
sociopolítica. Em outras palavras, o alargamento da esfera de
circulação evoluiu ao mesmo tempo que a sua concomitante politi-
zação. E realmente Mezzadra e Neilson (2017) sustentam que uma
compreensão da extração em sentido restrito acabou por ofuscar
formas emergentes de contestação e revolta que ocorrem para
além dos locais extrativos, mas que ainda têm incidência direta
sobre eles. Isso se manifesta claramente no contexto da revolução
logística, que elevou os “pontos de estrangulamento” (chokepoints)
das cadeias de abastecimento globais a locais-chave de luta política
e insurgência trabalhista em toda a economia global. Na verdade,
a sabotagem técnica nos portos, ferrovias e infraestruturas rodo-
viárias tornou-se uma das táticas básicas dos movimentos sociopo-
líticos envolvidos em lutas territoriais relativas à governança e à
circulação de recursos naturais (ver KHANNA, 2016; ARBOLEDA,
2018; BUDROVICH SÁEZ e CUEVAS VALENZUELA, 2018). A
eficácia dessas formas de contestação sociopolítica decorre do fato
de os seus efeitos perturbadores não se limitarem exclusivamente
ao circuito das mercadorias. Na verdade, elas se estendem ao
circuito produtivo da extração uma vez que as operações extrativas
são frequentemente interrompidas em decorrência de bloqueios
ocorridos a jusante, exercendo uma enorme pressão sobre os
produtores físicos.

229
Martín Arboleda

Circuito de Extração do Dinheiro


Ao fazer a mediação do movimento combinado do circuito
de mercadorias e do circuito de produção, encontramos o circuito
de extração do dinheiro, personificado na figura de instituições
financeiras, banqueiros, instrumentos de dívida, marcos regu-
latórios de política etc. Para Marx, o circuito do capital mone-
tário é de fundamental relevância porque gere as contradições
existentes entre produção e realização através da extensão do
crédito, o que proporciona liquidez às operações materiais antes
da acumulação real (HARVEY, [1982] 2006, 2013; HEINRICH,
2012; FINE e SAAD-FILHO, 2016). Por meio de um elaborado
conjunto de instrumentos de dívida – títulos, hipotecas e ações
corporativas – o sistema financeiro tem promovido historica-
mente o impulso para as inovações tecnológicas nos sistemas de
transporte, bem como para a construção de empreendimentos
infraestruturais em países ricos em recursos naturais (BUNKER
e CICCANTELL, 2005). Na verdade, a própria possibilidade de
a indústria de mineração se tornar cada vez mais de capital inten-
sivo, inteligente, integrada horizontalmente e autônoma, tem
dependido diretamente das mediações de uma complexa rede
de atores, práticas e instrumentos financeiros. Os resultados do
relatório de 2019 do Banking on Climate Change, por exemplo,
revelam que instituições financeiras como JP Morgan Chase,
Barclays, Bank of China e o MUFG japonês forneceram à indús-
tria de combustíveis fósseis 1,9 trilhão de dólares desde que o
Acordo de Paris foi adotado em 2016.
Longe de subordinar a produção industrial ao sistema
financeiro – como as leituras principais sobre a financeirização
o fazem – argumenta-se que a financeirização de estratégias
de investimento tem de fato atuado como uma alavanca para
expandir as operações materiais através dos locais de extração.
Isso, por sua vez, aumentou a composição orgânica do capital nos
pontos de produção e intensificou o antagonismo entre capital
e trabalho vivo (LABBAN, 2010, 2014a; ARBOLEDA, 2015).
Em termos específicos, a relação entre o circuito monetário da
extração e o circuito produtivo da extração pode ser decomposta
em três diferentes escalas ou domínios de intervenção socioespa-

230
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

cial. Primeiro, a dívida soberana tem funcionado historicamente


como um mecanismo- chave através do qual os Estados-nação
podem financiar os sistemas de megainfraestrutura necessários
para atrair o investimento estrangeiro direto para a produção
de mercadorias primárias, tais como portos, usinas de energia,
barragens, rodovias, ferrovias, aeroportos etc. A ascensão das
economias do Leste Asiático como principais nações credoras é
indicativa de como o sistema financeiro se articula com a desloca-
lização geográfica da indústria de grande escala. Vários estudos
concluíram que os estados latino-americanos têm se endividado
cada vez mais com as instituições financeiras internacionais e, mais
recentemente, com as economias do Leste Asiático e os bancos
multilaterais (BUNKER e CICCANTELL, 2005; SCHMALZ,
2016; STANLEY, 2016). Em segundo lugar, os produtores físicos
das indústrias extrativas – empresas de mineração, petróleo e
energia – também desenvolveram engajamentos sistemáticos
com o sistema de crédito, bem como reorientaram seu compor-
tamento e estratégias empresariais para operações financeiras e/
ou especulativas (ver, por exemplo, LABBAN, 2010, 2014a; DE
LOS REYES, 2017). As empresas de mineração e petróleo, por
exemplo, tendem a exagerar o tamanho de suas reservas e, assim
fazendo, conseguem inflar e distorcer o preço de suas ações nos
mercados de ações (TSING, 2005; LABBAN, 2010).
Em terceiro lugar, as geografias do endividamento dos
consumidores têm-se afirmado cada vez mais como uma das
principais fontes de liquidez financeira para a produção de bens
de consumo primários, principalmente porque os investidores
institucionais reorientaram sistematicamente os fluxos de inves-
timento para terras e recursos naturais na sequência da crise
financeira de 2008 (ver SASSEN, 2014). Em modelos de investi-
mento desse tipo, as famílias foram transformadas em “fluxos de
receitas humanas”, especialmente à medida que fundos de cober-
tura, fundos de pensões e bancos de investimento aproveitam
os prêmios de seguro dos trabalhadores e das casas de classe
média para aumentar o seu valor através da engenharia finan-
ceira (FRENCH, LEYSHON e WAINWRIGHT, 2011; LOFTUS
e MARCH, 2016). A forma como as diversas fontes de receita
extraídas das famílias e dos trabalhadores são canalizadas pelos

231
Martín Arboleda

investidores institucionais para as indústrias extrativas (TSING,


2005; DE LOS REYES, 2017), e para as infraestruturas territo-
riais e ambientais em geral (CHRISTOPHERS, 2011; LOFTUS e
MARCH, 2016), está adequadamente documentada na literatura.
É na sua contínua expansão das fronteiras do lucro na direção
de novos domínios de existência social e ecológica que o sistema
financeiro tem sido recentemente comparado a uma indústria
extrativa (MEZZADRA e NEILSON, 2017; SASSEN, 2017). Na
próxima seção começamos a analisar a questão da criação de
fronteiras por meio de uma investigação sobre a reprodução
ampliada daquilo denominado por Marx de o circuito do “capital
industrial”.

Reprodução Expandida e o Nexo Mina/Cidade


Em sua introdução à edição de 1978 do Volume II de O
Capital, Ernest Mandel (em MARX, 1992, p. 61) explica que
a conceituação do movimento do capital em termos de três
circuitos integrados permitiu a Marx apontar como o capital
monetário se expulsa recorrentemente do processo de produção
de valor e é mobilizado para aumentar a escala do circuito como
um todo – um fenômeno que ele denominou “reprodução expan-
dida”. Como se sabe, os insights de Marx sobre essa questão
foram deixados parcialmente desenvolvidos, e foi na verdade
Rosa Luxemburg que desenvolveu pela primeira vez uma teori-
zação sistemática da reprodução expandida como uma instância
– se não a instância de formação de crise dentro do capitalismo
(LUXEMBURG, [1913] 2003). Gago e Mezzadra (2017), por
exemplo, baseiam-se no trabalho de Luxemburg para conceber
o extrativismo como a contínua apropriação do exterior não
mercantilista. Embora a questão da apropriação seja sem dúvida
crucial para compreender a natureza extrativa do movimento de
autoexpansão do capital, vale a pena salientar que a noção de
Luxemburg sobre a reprodução alargada é também fundamental-
mente uma teoria econômica de sobreacumulação, e não apenas
uma teoria política do imperialismo. Ao colocar a reprodução
expandida como um problema de capitais excedentes que se
efetivam em outros locais, Luxemburg ([1913] 2003, p. 332-333)

232
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

oferece elementos importantes para compreender a natureza da


acumulação como uma unidade contraditória de produção e
realização.
As implicações socioespaciais e urbanas que sustentam a
realização de capitais superacumulados em situações de repro-
dução ampliada são particularmente teorizadas por David Harvey
([1982] 2006, 1985) através da noção de “mudança de capital”.
Especificamente, Harvey (1985) afirma que as tendências de crise
surgem quando a sobreacumulação em um “circuito primário”
produz excedentes que não podem ser reabsorvidos no processo
produtivo. Como resultado, o capital monetário torna-se perio-
dicamente reorientado para um “circuito secundário”, formado
por um quadro físico de investimento no ambiente construído,
e que implica a criação de ajustes espaciais de produção, circu-
lação, transporte e consumo que são mais claramente incorpo-
rados na cidade. A transformação da paisagem urbana, como
resultado dos excedentes que têm origem na produção de merca-
dorias primárias e que são posteriormente lançados no circuito
secundário, tem se configurado como uma tendência dominante
na evolução histórica das indústrias extrativas. O estudo histo-
riográfico de Gray Brechin (2006) sugere que foi justamente a
vasta riqueza material, que brotou das jazidas de prata e ouro das
minas de Nevada e Califórnia, durante meados do século XIX, o
que alimentou a construção semelhante e a especulação imobi-
liária na cidade de São Francisco. O estudo comparativo de Joe
Feagin (1990) sobre o boom petrolífero do pós-guerra conclui que
Aberdeen e Houston foram reconfiguradas através de dinâmicas
semelhantes de circulação de capital e investimento no ambiente
construído.
A escala em que essas estratégias de troca de capital
operam, no entanto, foi redefinida pela tendência histórica
mundial da intensificação do poder monopolista, pela globali-
zação da produção e pela disseminação das crises sociais e ecoló-
gicas, que John Bellamy Foster (2019) chamou apropriadamente
imperialismo tardio. A disseminação e a magnitude das estra-
tégias contemporâneas de investimento no ambiente construído
são sugeridas na afirmação de Khanna (2016, 95) de que “(...)
a China não está ‘comprando o mundo’ per se, mas construin-

233
Martín Arboleda

do-o em troca de recursos naturais”. Além disso, estudos recentes


mostram que o boom das exportações na indústria mineira chilena
no superciclo das mercadorias tende a favorecer os grandes exce-
dentes de liquidez financeira que são consistentemente reabsor-
vidos pelo setor imobiliário, seja através da construção direta de
moradias e infraestrutura, seja através da expansão do crédito
por meio do sistema hipotecário e outras formas de dívida
pessoal (ver REHNER e VERGARA, 2014; REHNER e RODRÍ-
GUEZ-LEIVA, 2017; VERGARA-PERUCICH, 2018). Também se
estima que o dramático crescimento da produção de soja trans-
gênica na Argentina tenha se transformado rapidamente, como
uma metástase, em projetos de reordenamento urbano e espe-
culação em grande escala, provocando assim a gentrificação, a
degradação ambiental e o confinamento do espaço urbano em
várias cidades (ver PINTOS, 2017).
É precisamente a crescente circularidade estrutural existente
entre a extração e a urbanização o que deu origem a uma vibrante
literatura acadêmico-ativista na América Latina em torno da
noção de “extrativismo urbano”. Embora esse conceito possa
apresentar vários significados, ele é frequentemente utilizado
para designar a ascensão de uma cultura de fronteira que lembra
muito aquela que tende a predominar nas indústrias extrativas,
e que se baseia no tratamento da terra como um ativo finan-
ceiro, mobilizando o poder monopolista, deslocando as popu-
lações urbanas, pilhando os recursos naturais, enclausurando
o espaço público e implantando técnicas agressivas de arreca-
dação da renda urbana (ver por exemplo HIDALGO et al., 2016;
VÁSQUEZ DUPLAT, 2017; VIALE, 2017).
Em termos gerais, uma das preocupações centrais que
gravitam em torno da discussão sobre extrativismo urbano –
apresentando também implicações importantes para a noção de
circuitos de extração que este artigo propõe – é a questão das
novas, e cada vez mais variadas práticas de apropriação de renda,
que reverberam em um leque mais amplo de conflitos sobre a
distribuição de valor (grifo original). E, de fato, como Andreucci
et al. (2017) argumentaram recentemente, as últimas décadas
testemunharam uma mudança da produção de valor excedente
por meio da mobilização e exploração da mão de obra que se

234
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

dirige a uma ênfase crescente na circulação de dinheiro e lucro


através da apropriação da renda – um processo que eles chamam
de “captura do valor”.
O aprofundamento da teoria da renda nas várias nuances e
complexidades está além do escopo deste trabalho. No entanto,
deveria ser suficiente dizer que novas direções na teoria da
renda iluminam o papel mediador que a renda desempenha na
circulação do capital tanto dentro dos três circuitos delineados
por Marx, como através deles. Embora o capitalismo rentista há
muito se apresente como uma preocupação essencial dos estudos
do extrativismo – especialmente considerando o papel do Estado
como proprietário final –, estudos recentes começaram a abordar
o papel ativo que os rentistas desempenham na produção de confi-
gurações espaciais para o ambiente construído e não construído
(LABBAN, 2008; PARENTI, 2016; PURCELL e MARTÍNEZ,
2018; BIRCH, 2019). A renda, em outras palavras, não deve ser
entendida exclusivamente na sua configuração ricardiana como
uma categoria de distribuição entre classes e frações de classe
com interesses e direitos antagônicos – como geralmente acontece
na maioria da literatura sobre economia política, tanto liberal
quanto crítica. Uma outra inovação na teoria da renda consistiu,
portanto, não só em transcender uma compreensão “distributiva”
da renda, mas também em repensar os processos de apropriação
da renda além da terra (WARD e AALBERS, 2016; BIRCH, 2019),
para incluir também questões sobre inovação científica e tecnoló-
gica, finanças e economias digitais.
Entender a renda como uma força dinâmica que medeia e
molda a reprodução ampliada do capital deve, portanto, estabe-
lecer as bases para uma concepção ampliada do extrativismo que
esteja adequadamente posicionada para explorar a marca das
economias de recursos naturais no espaço urbano, mas também
nas paisagens financeiras, logísticas e tecnocientíficas. Isto é de
especial relevância na medida em que Harvey (1985) explica que
crises de acumulação excessiva também são contornadas pela cana-
lização de fluxos de investimento para um “circuito terciário”, que
compreende inovação científica e tecnológica, bem como arranjos
institucionais e culturais para a “(...) cooptação, integração e
repressão da força de trabalho por meios ideológicos, militares

235
Martín Arboleda

e outros” (1985, p. 8). A mobilização dos regimes de proprie-


dade (patentes, acessos pagos, licenças) nessas formas de circu-
lação, nomeadamente sob a forma de “rendas de tecnociência”
(BIRCH, 2019) ou de “rendas tecnológicas” (MANDEL, 1980,
p. 192), coordena a valorização do capital dentro e fora dos três
circuitos de extração. Como demonstra o estudo de Zeller (2008),
a expansão dos monopólios de propriedade intelectual nas últimas
décadas – através do mecanismo de arrendamento – levou a novas
formas de interdependência entre produtores de conhecimento,
o sistema financeiro e as economias de recursos. As controvérsias
políticas sobre o acordo internacional intitulado Parceria TransPa-
cífica (TPP11), por exemplo, são fortemente indicativas da forma
como os novos regimes internacionais de propriedade intelectual
(particularmente em termos de sementes e maquinário) implicam
repercussões diretas na organização territorial da agricultura capi-
talista e da extração mineral nas economias signatárias.
Além disso, na formulação de Harvey, os processos de
mudança do capital, que partem das indústrias baseadas
em recursos rumo a um circuito terciário, revelam como o
circuito produtivo da extração também se estende para fora,
para moldar de forma direta a pesquisa geral sobre ciências
sociais, ciências naturais, bancos de investimento e políticas
públicas consideradas de maneira geral. John Urry (2014), por
exemplo, documenta as elaboradas dinâmicas de mudança que
as empresas de combustíveis fósseis puseram em marcha para
reorientar os lucros para paraísos fiscais, dando assim impulso
às “cadeias de ocultação” que, na opinião do autor, estão no
centro do sistema financeiro transnacional. Como mostra o
trabalho histórico de Oreskes e Conway (2011), a indústria dos
combustíveis fósseis também financiou os grupos de reflexão
e os cientistas que se tornaram famosos por lançarem dúvidas
sobre as evidências científicas das mudanças climáticas produ-
zidas com pesquisas e informações não fundamentadas.
Dotações e doações de empresas de extração de recursos
para universidades de prestígio também estimularam as preo-
cupações sobre a potencial perda de autonomia e indepen-
dência acadêmica. O acordo multimilionário para renomear
o Departamento de Estudos Internacionais da Universidade

236
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

de Toronto dando-lhe o nome de Peter Munk – fundador e


ex-CEO da Barrick Gold – é com certeza um caso importante
(ver ENGLER, 2016), e espelha esforços “filantrópicos” seme-
lhantes que ocorrem no Canadá e em outros países. No Chile,
Leiva (2015) mostra que o Grupo Luksic – um dos maiores
conglomerados empresariais da indústria mineira nacional –
tem procurado sistematicamente ganhar influência política,
ideológica e cultural canalizando parte de suas receitas para
financiar partidos políticos, instituições de pesquisa, universi-
dades e intelectuais do centro-esquerda.

O Valor do Extrativismo
A noção de extrativismo é frequentemente veiculada como
um slogan e um grito de mobilização contra as formas evolutivas
de confinamento e desapropriação que ocorrem nas fronteiras
das mercadorias primárias, e recentemente também nos domínios
urbanos, financeiros e digitais da vida social. Nesse cenário,
Gago, Mezzadra e Neilson merecem todo o crédito por expan-
direm o conceito em novas direções e por indicarem novas e mais
complexas formas de abordar essa questão na pesquisa acadê-
mica. Entretanto, este trabalho pretendeu demonstrar que se uma
concepção ampliada de extrativismo almeja obter mais força analí-
tica, precisa desenvolver engajamentos substanciais voltados para
a questão do valor. Gago e Mezzadra (2017) têm razão quando
sugerem que o extrativismo tende a ser concebido de forma
limitada para abranger a desapropriação, o que torna menos claro
o papel igualmente relevante desempenhado pela exploração do
trabalho nas operações extrativas do capital. O foco na exploração
do trabalho, porém, não é suficiente. A produção de mercadorias
por meio do exercício do trabalho vivo é apenas uma entre várias
outras metamorfoses no ciclo de vida do capital, ela própria um
processo diversificado de mediação sociometabólica no qual a
produção, a circulação, o intercâmbio e a distribuição se fundem
num todo complexo. Uma teorização crítica da circulação do
capital é, portanto, crucial para compreender as formas nas quais
esses vários momentos interagem, entram em conflito e se copro-
duzem de formas histórica e geograficamente específicas.

237
Martín Arboleda

Ao enquadrar a organização das indústrias baseadas em


recursos em três sistemas circulatórios distintos mas sobrepostos
– ou seja, o circuito produtivo de extração, o circuito de extração
de mercadorias e o circuito monetário de extração – pretendi
esclarecer a magnitude e o dinamismo com que as econo-
mias de recursos estão reconfigurando o sistema financeiro, a
produção de conhecimento, a inovação científica e tecnológica,
a mobilização sociopolítica e as paisagens urbanas planetárias.
Uma grande variedade de desenvolvimentos infraestruturais foi
implementada a fim de reduzir os tempos de turnover do capital,
bem como integrar perfeitamente a extração de recursos com as
indústrias portuária e de transporte sob a égide de uma revolução
logística. Contudo, mais do que uma questão de mera movimen-
tação de matérias-primas no espaço, uma análise das indústrias
extrativas através do ponto de vista da circulação também indica
como os capitais excedentes produzidos no setor primário estão
sendo sistematicamente projetados ou “comutados” para fora,
dando assim origem a impulsos especulativos e a novas formas
de confinamento em todo o sistema urbano. No entanto, como
Christophers (2011) muito bem afirmou, analisar a dinâmica
da mudança do capital exige explorações robustas e empíricas
da realidade concreta na qual os fluxos de investimento através
dos circuitos se desenvolvem, se reproduzem e se instituciona-
lizam. Nesse sentido, o presente artigo é apenas uma tentativa
preliminar de mapear novos rumos de pesquisa que explorem
as economias de recursos naturais através de sua circulação no
espaço social e econômico.

Agradecimentos
Este artigo muito se beneficiou do cuidadoso e eficiente
trabalho editorial de Mazen Labban, bem como dos comen-
tários e críticas construtivas de Japhy Wilson, Thomas
Purcell, Ángela Serrano Zapata, Felipe Irarrázaval, Mariano
Gómez-Luque, Nelson Rodríguez, Michael Lukas, Tomás
Ariztía e de três revisores anônimos do Capitalism Nature
Socialism. A pesquisa para este artigo foi financiada pelo
Centro de Estudios Interculturales e Indígenas (Center for
Intercultural and Indigenous Research - CIIR).

238
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

Declaração de Divulgação
Nenhum potencial conflito de interesses foi reportado pelo
autor.

Financiamento
Este trabalho teve o apoio do Center for Intercultural and
Indigenous Research (CIIR), FONDAP Número 11140083.

Referências
ANDREUCCI, Diego; GARCÍA-LAMARCA, Melissa; WEDEKIND, Jonah;
SWYNGEDOUW, Erik. Value Grabbing: A Political Ecology of Rent. Capi-
talism Nature Socialism, 28 (3), p. 28-47, 2017.
ARBOLEDA, Martín. Financialization, Totality and Planetary Urbanization
in the Chilean Andes. Geoforum; Journal of Physical, Human, and Regional
Geosciences, 67, p. 4-13, 2015.
ARBOLEDA, Martín. Extracción en movimiento: circulación del capital,
poder estatal, y urbanización logística en el norte minero de Chile. Inves-
tigaciones Geográficas, 56, p. 3–26, 2018.
ARBOLEDA, Martín. Planetary Mine: Territories of Extraction Under Late
Capitalism. London and New York: Verso. No prelo.
ARTHUR, Christopher; REUTEN, Geert (Orgs.) The Circulation of
Capital: Essays on Volume Two of Marx’s Capital. London: MacMillan
Press Ltd., 1998.
BAGLIONI, Elena; CAMPLING, Liam. Natural Resource Industries as
Global Value Chains: Frontiers, Fetishism, Labour and the State. Environ-
ment and Planning A: Economy and Space, 49 (11), p. 2.437–2.456, 2017.
BIRCH, Kean. Technoscience Rent: Toward a Theory of Rentiership for
Technoscientific Capitalism. Science, Technology, and Human Value (publi-
cado online antes da impressão), 6 fev., 2019.
BRECHIN, Gray. Imperial San Francisco: Urban Power, Earthly Ruin.
Berkeley: University of California Press, 2006.
BRIDGE, Gavin. Global Production Networks and the Extractive Sector:
Governing Resource Based Development. Journal of Economic Geography, 8,
p. 389–419, 2008.
BUDROVICH SÁEZ, Jorge; VALENZUELA, Hernán Cuevas. Contested
Logistics? Neoliberal Modernization and Resistance in the Port of
Valparaíso. In: Choke Points: Logistics Workers Disrupting the Global Supply
Chain. WILSON, Jake Alimahomed; NESS, Immanuel (Orgs.), p. 162–178.
London: Pluto Press, 2018.

239
Martín Arboleda

BUNKER, Stephen; CICCANTELL, Paul. “Generative Sectors and the New


Historical Materialism: Economic Ascent and the Cumulatively Sequential
Restructuring of the World Economy”. Studies in Comparative International
Development, 37 (4), p. 3–30, 2003.
BUNKER, Stephen; CICANTELL, Paul. Ciccantell. Globalization and the
Race for Resources. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2005.
CAFFENTZIS, George. Immesurable Value? An Essay on Marx’s Legacy.
The Commoner, 10, p. 87–114, 2005.
CANALES, Manuel. De la metropolización a las agrópolis: el nuevo pobla-
miento urbano en el Chile actual. Polis. Bologna, Itália, 34, p. 1–23, 2012.
CHRISTOPHERS, Brett. Revisiting the Urbanization of Capital. Annals of
the Association of American Geographers, 101 (6), p. 1.347–1.364, 2011.
CHRISTOPHERS, Brett. Risking Value Theory in the Political Economy of
Finance and Nature. Progress in Human Geography, 42 (3), p. 330–349, 2018.
CICCANTELL, Paul. China’s Economic Ascent and Japan’s Raw Material
Peripheries. In: HUNG, Ho-fung (Org.) China and the Transformation of Global
Capitalism, p. 109–129. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009.
COWEN, Deborah. The Deadly Life of Logistics: Mapping Violence in Global
Trade. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.
DE LOS REYES, Julie Ann. Mining Shareholder Value: Institutional
Shareholders, Transnational Corporations, and the Geography of Gold
Mining. Geoforum; Journal of Physical, Human, and Regional Geosciences, 84,
p. 251–264, 2017.
ENGLER, Yves. Munk School of Global Affairs Reveals Much About the
State of Canadian Foreign Policy. Rabble.ca. 2016. Disponível em: <http://
rabble.ca/blogs/bloggers/yves-engler/2016/10/munk-school-global-
affairs-reveals-much-about-statecanadian-fore>.
FEAGIN, Joe. 1990. Extractive Regions in Developed Countries: A Compar-
ative Analysis of the Oil Capitals, Houston and Aberdeen. Urban Affairs
Quarterly, 25 (4), p. 591–619, 1990.
FINE, Ben; SAAD-FILHO, Alfredo. Marx’s “Capital”. London: Pluto Press,
2016.
FOSTER, John Bellamy. Late Imperialism: Fifty Years After Harry
Magdoff’s The Age of Imperialism. Monthly Review, 71 (3), 2019. Disponível
em: <https://monthlyreview.org/2019/07/ 01/lateimperialism/>.
FRENCH, Shaun; LEYSHON, Andrew; WAINWRIGHT, Thomas. Finan-
cializing Space, Spacing Financialization. Progress in Human Geography, 35
(6), p. 798–819, 2011.
GAGO, Verónica; MEZZADRA, Sandro. Para una crítica de las opera-
ciones extractivas del capital: Patrón de acumulación y luchas sociales en el
tiempo de la financiarización. Nueva Sociedad, 255, p. 38–52, 2015.

240
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

GAGO, Verónica; MEZZADRA, Sandro. A Critique of the Extractive


Operations of Capital: Toward an Expanded Conception of Extractivism.
Rethinking Marxism, 29 (4), p. 574–591, 2017.
GORDILLO, Gastón. The Metropolis: “The Infrastructure of the Anthro-
pocene”. In: HETHERINGTON, Kregg (Org.) Infrastructures, Environment
and Life in the Anthropocene, p. 66–94. Durham: Duke University Press, 2019.
HARVEY, David. The Urbanization of Capital. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1985.
______. A Companion to Marx’s Capital, Volume 2. London e New York:
Verso, 2013.
______. Limits to Capital. London e New York: Verso, (1982), 2006.
HARVEY, Penny; KNOX, Hannah. Roads: An Anthropology of Infrastruc-
ture and Expertise. Ithaca: Cornell University Press, 2015.
HEINRICH, Michael. An Introduction to the Three Volumes of Marx’s Capital.
New York: Monthly Review Press, 2012.
HENNINGER, Max. Doing the Math: Reflections on the Alleged Obsolescence
of the Law of Value Under Post-Fordism. Ephemera, 7 (1), p. 158–177, 2007.
HIDALGO, Rodrigo; CAMUS, Pablo; PAULSEN, Alex; OLEA, Jorge;
ALVARADO, Voltaire. Extractivismo inmobiliairio, expoliación de los
bienes comunes y esquilmación del medio natural. El borde costero en la
macrozona central de Chile en las postrimerías del neoliberalismo. Inns-
brucker Geographische Studien, Band 40, p. 251–270, 2016.
HUBER, Matt. Resource Geographies I: Valuing Nature (or Not). Progress in
Human Geography, 42 (1), p. 1-12, 2018.
INNOVUM/FUNDACIÓN CHILE. Proveedores de la minería chilena: Estudio
de caracterización 2014. Santiago de Chile: Fundación Chile, 2014.
IRARRÁZAVAL, Felipe; BUSTOS-GALLARDO, Beatriz. Global Salmon
Networks: Unpacking Ecological Contradictions at the Production Stage.
Economic Geography (publicado online), 9 out. 2018.
KANAI, Juan Miguel. The Pervasiveness of Neoliberal Territorial Design:
CrossBorder Infrastructure Planning in South America Since the Introduc-
tion of IIRSA. Geoforum; Journal of Physical, Human, and Regional Geosci-
ences, 69, p. 160–170, 2016.
KANAI, Juan Miguel; SCHINDLER, Seth. Peri-Urban Promises of Connec-
tivity: Linking Project-Led Polycentrism to the Infrastructure Scramble. Envi-
ronment and Planning A, (publicado online antes da impressão), 11 mar. 2018.
KENNY, Bridget; BEZUIDENHOUT, Andries. Changing Nature of Subcon-
tracting in the South African Mining Industry. Journal of the South African
Institute of Mining and Metallurgy, 99 (4), p. 185–192, 1999.
KHANNA, Parag. Connectography: Mapping the Global Network Revolu-
tion. London: Weidenfeld & Nicholson, 2016.

241
Martín Arboleda

KIRSHNER, Joshua; POWER, Marcus. ARCUS Power. Mining and Extrac-


tive Urbanism: Postdevelopment in a Mozambican Boomtown. Geoforum;
Journal of Physical, Human, and Regional Geosciences, 61, p. 67–78, 2015.
LABBAN, Mazen. Space, Oil and Capital. London and New York: Routledge,
2008.
LABBAN, Mazen. Oil in Parallax: Scarcity, Markets and the Financializa-
tion of Accumulation. Geoforum; Journal of Physical, Human, and Regional
Geosciences, 41, p. 541–552, 2010.
LABBAN, Mazen. Against Shareholder Value: Accumulation in the Oil
Industry and the Biopolitics of Labour Under Finance. Antipode, 46 (2), p.
477–496, 2014a.
LABBAN, Mazen. Deterritorializing Extraction: Bioaccumulation and the
Planetary Mine. Annals of the Association of American Geographers, 104 (3), p.
560–576, 2014b.
LABBAN, Mazen. Logistics and Emancipation from the Abstract Machine
of Capital. Political Geography 61, p. 266–268, 2017.
LEIVA, Fernando. Chile’s Grupo Luksic, the Center-Left, and the ‘New
Spirit of Capital’ in Latin America. Artigo apresentado na Annual Confer-
ence of the Latin American Studies Association (LASA) de 2015, San Juan,
Puerto Rico, 27 Maio, 2015.
LOFTUS, Alex; MARCH, Hug. Financializing Desalination: Rethinking the
Returns of Big Infrastructure. International Journal of Urban and Regional
Research, 40 (1), p. 46–61, 2016.
LUXEMBURG, Rosa. The Accumulation of Capital. London: Routledge,
(1913) 2003.
MANDEL, Ernest. Late Capitalism. London and New York: Verso, 1980.
MARX, Karl. Capital: A Critique of Political Economy, Vol. 2. Tradução:
David Fernbach. New York: Penguin Books, (1885) 1992.
______. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy.
Tradução: Martin Nicolaus. New York: Penguin Books, (1939) 1973.
MEZZADRA, Sandro; NEILSON, Brett. On the Multiple Frontiers of
Extraction: Excavating Contemporary Capitalism. Cultural Studies 31, (2–3),
p. 185–204, 2017.
ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of
Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global
Warming. New York: Bloomsbury Press, 2011.
PARENTI, Christian. Environment-Making in the Capitalocene: Political
Ecology of the State. In: MOORE, Jason W. (Org.) Anthropocene or Capitalo-
cene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, p. 166–184. Oakland:
PM Press, 2016.
PINTOS, Patricia. “El extractivismo urbano en la región metropolitana

242
Circuitos de extração: valor em processo e o nexo mineração/cidade

de Buenos Aires”. In: DUPLAT, Ana María Vásquez (Org.) Extractivismo


Urbano: Debate para una Construcción Colectiva de las Ciudades, p. 25–31.
Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2017.
PURCELL, Thomas; LOFTUS, Alex; MARCH, Hug. Value-RentFinance.
Progress in Human Geography (publicado online antes da impressão), 27
maio. 2019.
PURCELL, Thomas; MARTÍNEZ, Estefanía. Post-Neoliberal Energy
Modernity and the Political Economy of the Landlord State in Ecuador.
Energy Research and Social Science, 41, p. 12–21, 2018.
REHNER, Johannes; RODRÍGUEZ-LEIVA, Sebastián. Inversión inmo-
biliaria en tiempos de auge y crisis: es la ciudad un producto minero o
derivado financiero? Revista de Geografía Norte Grande, 67, p. 183–210, 2017.
REHNER, Johannes; VERGARA, Felipe. Efectos recientes de la actividad
exportadora sobre la reestructuración económica urbana en Chile. Revista
de Geografía Norte Grande, 59, p. 83–103, 2014.
RUIZ RUIZ, Nubia Yaneth; RIVAS, Luis Daniel Santana. 2016. La nueva
geografía de la explotación minero-energética y la acumulación por despo-
sesión en Colombia entre 1997 y 2012. Notas de Población, 43, p. 249–277,
2016.
SASSEN, Saskia. Expulsions: Complexity and Brutality in the Global
Economy. Cambridge: Harvard University Press, 2014.
SASSEN, Saskia. Predatory Formations Dressed in Wall Street Suits and
Algorithmic Math. Science, Technology & Society, 22 (1), p. 1–5, 2017.
SCHMALZ, Stefan. El ascenso de China en el sistema mundial: Consecuen-
cias en la economía política de sudamérica. Pléyade, 18, p. 159–192, 2016.
STANLEY, Leonardo. El proceso de internacionalización del RMB y el
nuevo protagonismo del sistema financiero chino. In: América Latina y el
Caribe-China: Economía, Comercio e Inversiones. Peters, Enrique Dussel
(Org.), p. 147–170, 2016. México D.F: Unión de Universidades de América
Latina y el Caribe.
STAROSTA, Guido. Cognitive Commodities and the ValueForm. Science &
Society, 76 (3), p. 365–392, 2012.
TOSCANO, Alberto. Lineaments of the Logistical State. Viewpoint
Magazine, 4, 2014. The State. Disponível em: <https://www.viewpointmag.
com/2014/09/28/lineaments-ofthelogistical-state/>.
TSING, Anna. Friction: An Ethnography of Global Connection. Oxford:
Princeton University Press, 2005.
URIBE, Simón. Illegible Infrastructures: Road Building and the Making of
State Spaces in the Colombian Amazon. Environment and Planning D: Society
and Space (publicado online antes da impressão), 6 ago. 2018.
URRY, John. Offshoring. London: Polity, 2014.

243
Martín Arboleda

VALDEZ MINGRAMM, Rafael. China y América Latina hacia el 2030,


colaboración estratégica y colaboración energética. In: DELFÍN, Yolanda
Trápaga (Org.) América Latina y el CaribeChina: Recursos Naturales y Medio
Ambiente, p. 31–42, 2013. México DF: Unión de Universidades de América
Latina y el Caribe.
VÁSQUEZ DUPLAT, Ana María. Extractivismo urbano y feminismo: dos
claves para el estudio de las ciudades. In: DUPLAT, Ana María Vásquez
(Org.) Extractivismo Urbano: Debate para una Construcción Colectiva de las
Ciudades, p. 98–108. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2017.
VERA, Felipe; MEHROTRA, Raul. Towards an Ephemeral Urbanism for
Extraction: The Camp and the City as Spatial Paradigms. In: SORDI, Jean-
nette; VALENZUELA, Luis; VERA, Felipe (Orgs.) The Camp and the City:
Territories of Extraction, p. 22–61, 2018. Trento: LIStlab.
VERGARA-PERUCICH, José Franciso. Aplicaciones de la teoría implo-
sión/ explosión: relación entre la Región Metropolitana de Santiago de
Chile y los territorios productivos regionales. Eure. Revista Latinoamericana
De Estudios Urbano Regionales, 44 (133), p. 77–96, 2018.
VIALE, Enrique. El Extractivismo Urbano. In: DUPLAT, Ana María
Vásquez (Org.) Extractivismo Urbano: Debate para una Construcción Colec-
tiva de las Ciudades, p. 15–24. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2017.
WARD, Callum; AALBERS, Manuel. “The Shitty Rent Business”: What’s
the Point of Land Rent Theory? Urban Studies, 53 (9), p. 1.760–1.783, 2016.
WILSON, Japhy; BAYÓN, Manuel. Fantastical Materializations: Interoce-
anic Infrastructures in the Ecuadorian Amazon. Environment and Planning
D: Society and Space, 35 (5), p. 836–854, 2017.
ZELLER, Christian. From the Gene to the Globe: Extracting Rents Based on
Intellectual Property Monopolies. Review of International Political Economy,
15 (1), p. 86–115, 2008.

244
Máquinas de crescimento urbano –
mas em que escala?1

Neil Brenner

C omo todas as commodities do capitalismo, as cidades são


muitas vezes naturalizadas, tanto na análise acadêmica
como na vida quotidiana: os processos sociais necessários para
produzi-las são esquecidos ou ocultos. Assim, o ambiente cons-
truído adquire a aura de uma materialidade pré-determinada,
misteriosamente desprovida das relações sociais que a geraram2.
Em estudos de governança urbana, esse fetiche da cidade
tem frequentemente assumido a forma de localismo meto-
dológico – a tendência dos estudiosos de focar em processos
políticos locais sem investigar os espaços estatais supralocais,
marcos regulatórios, paisagens industriais, divisões espaciais
do trabalho e fluxos socioeconômicos nos quais tais processos
estão inseridos. Até certo ponto, essas tendências metodo-
lógicas localistas derivam da compreensível preocupação de
muitos cientistas sociais urbanos em legitimar seu subcampo
em ambientes disciplinares que há muito têm sido dominados
pelo nacionalismo metodológico – uma tendência igualmente
problemática de naturalizar a escala nacional da vida política3.
No entanto, mesmo quando essa orientação localista decorre de

1
Capítulo publicado originalmente no livro New Urban Spaces, Neil Brenner,
2019. Published to Oxford Scholarship Online: June 2019. DOI: 10.1093/
oso/9780190627188.001.0001
2
Sobre a “aura” naturalizada do urbano, ver Maria Kaika e Erik Swyngedouw,
“Fetishizing the Modern City: The Phantasmagoria of Urban Technological
Networks”. International Journal of Urban and Regional Research 24, n. 1 (2000),
p. 120-38.
3
Sobre o nacionalismo metodológico, ver Andreas Wimmer e Nina Glick-
Schiller, “Methodological Nationalism and Beyond: Nation-State Building,
Migration and the Social Sciences”. Global Networks 2, n. 4 (2002), p. 301-
34; e John Agnew, “The Territorial Trap: The Geographical Assumptions of
International Relations Theory”. Review of International Political Economy 1, n.
1 (1994), p. 53-80.

245
Neil Brenner

uma preocupação bem fundamentada de contornar os pontos


cegos do nacionalismo metodológico, ela contém sérias limita-
ções metodológicas. Na medida em que os estudiosos da política
urbana se concentram predominantemente ou exclusivamente
em instituições de governação local, coligações políticas ou
processos regulamentares, o seu trabalho corre o risco de ser
enredado na armadilha metodológica formalmente análoga
do localismo. Dentro de tal quadro epistemológico, as escalas
locais ou urbanas são consideradas como receptáculos determi-
nados previamente e relativamente discretos; as suas condições
supralocais de possibilidade, contextos de desenvolvimento e
consequências são delimitadas. Contudo, na medida em que
as políticas urbanas são impactadas e impactam as condi-
ções político-econômicas, as dinâmicas e os desenvolvimentos
supralocais, a noção de uma escala “urbana” discreta de ação
política é uma mistificação: ela representa vários processos que
se originam fora das cidades, e que efetivamente ricocheteiam
através delas, como sendo gerados internamente ou encerrados
dentro de suas fronteiras jurisdicionais.
Uma das principais agendas político-epistemológicas da
teoria urbana crítica é desconstruir esse fetiche da cidade, ilumi-
nando os variados processos socioespaciais, historicamente espe-
cíficos e politicamente contestados que sustentam a criação e a
transformação contínua das paisagens urbanas, incluindo aqueles
mediante os quais a governança urbana se desenvolve4. Esse
projeto de defetichização requer a adoção de um quadro meto-
dológico dinamicamente multiescalar através do qual se possa
investigar, decifrar e, assim, desnaturalizar os espaços regula-
dores que são comummente caracterizados como “urbanos” ou
“locais”. Dentro dessa estrutura, as cidades podem muito bem
permanecer um objeto central e um terreno de investigação, mas
elas são apreendidas por estarem posicionadas analiticamente
dentro de configurações político-econômicas supraurbanas
mais amplas – por exemplo, de acumulação de capital, ordena-
mento territorial, metabolismo socioambiental e contestação
sociopolítica. Por um lado, os processos supostamente urbanos
4
Neil Brenner, Critique of Urbanization: Selected Essays (Basel: Bauwelt
Fundamente / Birkhäuser Verlag, 2016).

246
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

são, eles próprios, muitas vezes, multiescalares, estendendo-se


para além de qualquer município individual e transformando-
-se num quebra-cabeças emaranhado de metrópoles, regiões,
redes interurbanas nacionais ou transnacionais e divisões espa-
ciais mundiais do trabalho. Ao mesmo tempo, as cidades são,
por sua vez, moldadas por diversos processos supralocais, insti-
tuições e configurações, desde fluxos mundiais de investimento,
comércio, materiais e migração para fronteiras jurisdicionais do
estado, divisões intergovernamentais, vários tipos de políticas
espaciais e circuitos de energia, materiais e fluxos ecológicos
em escala planetária. Essa orientação metodológica multiescalar
reconhece explicitamente o papel estrategicamente essencial das
cidades e da escala urbana dentro do capitalismo moderno, mas
enfatiza sua incorporação em paisagens mais amplas de atividade
político-econômica, organização territorial, intervenção regula-
tória, transformação metabólica e luta social. Dessa perspectiva,
em vez de ser vista como um fato social premeditado, a própria
inteligibilidade da cidade como arena, terreno ou unidade da
vida político-econômica discreta representa um produto histo-
ricamente contingente e contestado de estratégias para estabe-
lecer tal formação. Nos termos de David Harvey, tais estratégias
implicam esforços para construir uma “coerência estruturada”
urbanizada – isto é, um quadro relativamente durável e local-
mente configurado de organização institucional e socioespacial
– dentro de configurações multiescalares de capital, infraestru-
tura, população, governança e ecologia que, de outra forma,
seriam relativamente rudimentares5.
Este ensaio explora as implicações de tal orientação metodo-
lógica para decifrar as políticas de desenvolvimento urbano nos
Estados Unidos (EUA). Numa primeira etapa, considero a questão
do localismo, que se tem manifestado em várias formas recorrentes
no âmbito das duas principais abordagens teóricas do estudo da
política urbana dos EUA, da teoria do regime urbano e da teoria
da máquina de crescimento urbano6. Contra interpretações meto-
5
David Harvey, The Urban Experience (Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1989).
6
Para uma visão geral dessas tradições de pesquisa, ver Mickey Lauria (Org.)
Reconstructing Urban Regime Theory: Regulating Urban Politics in a Global Economy
(New York: Sage, 1997); e Andrew E. G. Jonas e David Wilson (Orgs.) The

247
Neil Brenner

dologicamente localistas, o caráter da política urbana dos EUA


voltada para o crescimento é interpretado aqui como o produto
de instituições estatais nacionais (historicamente enraizado, mas
em evolução) e de estratégias regulatórias multiescalares. A partir
dessa base, elaborei uma leitura da obra clássica de John Logan e
Harvey Molotch de 1987, Urban Fortunes, alinhada às escalas. Essa
reinterpretação crítica revela que supostamente as máquinas de
crescimento “local” ou “urbano” representam construções interes-
calares nacionalizadas em vez de produtos gerados internamente
de mobilizações, coalizões ou alianças baseadas em lugares7. De
um modo geral, esta análise sugere que o caráter aparentemente
“urbano” das máquinas de crescimento, tanto nos EUA quanto em
outros lugares, deve ser cuidadosamente investigado e explicado,
ao invés de ser pressuposto. A última seção resume algumas das
implicações epistemológicas, metodológicas e comparativas da
discussão anterior para o desenvolvimento de abordagens reflexi-
vamente multiescalares do estudo da governança urbana.

Localismo em questão
A teoria do regime urbano e a teoria da máquina de cresci-
mento são os quadros analíticos mais influentes através dos quais
o desenvolvimento urbano tem sido explorado no âmbito da
ciência política e da sociologia política dos EUA, e têm exercido
um impacto considerável tanto nos campos da geografia urbana
quanto nos do planejamento urbano8. Desenvolvidas como
críticas das abordagens tradicionais ecológica e estruturalista
marxista para estudos urbanos na década de 1980, ambas as
teorias isolam certos atores, coalizões e organizações na escala
urbana, e examinam suas diversas atividades impulsionadoras na

Urban Growth Machine, Critical Perspectives, Two Decades Later (Albany, NY: State
University of New York Press, 1999).
7
John Logan e Harvey Molotch, Urban Fortunes: The Political Economy of Place
(Berkeley: University of California Press, 1987). Para um argumento análogo
sobre o caso da Holanda, ver Pieter Terhorst e Jacques van de Ven, “The
National Urban Growth Coalition in the Netherlands”, Political Geography 14,
n. 4 (1995), p. 343-61.
8
Lauria, Reconstructing Urban Regime Theory; Jonas e Wilson, Urban Growth
Machine.

248
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

promoção do crescimento econômico. O objetivo dessas tradições


de investigação, como Andrew Jonas explicou, é “[...] descobrir e
não apenas afirmar o papel da política na teoria urbana”9. Nesse
sentido, ambas as teorias representam reformulações críticas da
teoria tradicional da elite no contexto da política urbana10.
A teoria do regime urbano, desenvolvida de forma influente
por cientistas políticos como Stephen Elkin, Clarence Stone e
Heywood Sanders, enfatiza (a) a posição privilegiada dos interesses
empresariais na formação de políticas socioeconômicas municipais
e (b) a mudança na divisão do trabalho entre mercados e institui-
ções estatais nos processos de desenvolvimento urbano11. A investi-
gação empírica dentro do quadro de investigação do regime urbano
analisou as formas pelas quais os interesses públicos e privados se
articulam através de uma série de arranjos cívicos formais e infor-
mais, alianças cooperativas e parcerias que são incorporadas e
reproduzidas por meio de tipos específicos de coalizão ou regime
de crescimento urbano (por exemplo, pluralista, federalista ou
empreendedor na tipologia de Elkin; ou zelador, progressista ou
corporativo na abordagem de Stone)12.
A teoria da máquina de crescimento urbano, desenvolvida
no trabalho paradigmático dos sociólogos John Logan e Harvey
Molotch, está focada menos nos resultados políticos do que no
próprio processo de desenvolvimento urbano13. Para Logan e
Molotch, a cidade opera como uma máquina de crescimento na
medida em que coalizões localizadas – geralmente compostas
por proprietários de imóveis (“os rentistas”) e outros defen-
sores auxiliares de base local (desenvolvedores, universidades,
mídia e jornais locais, empresas de serviços públicos, sindicatos

9
Andrew E. G. Jonas, “A Place for Politics in Urban Theory: The Organization
and Strategies of Urban Coalitions”. Urban Geography 13, n. 3 (1993), p. 282.
10
Alan Harding, “Elite Theory and Growth Machines”, in Theories of Urban Politics,
David Judge, Gerry Stoker, e Hal Wolman (Orgs.) (London: Sage, 1995), p. 35-53.
11
Stephen Elkin, City and Regime in the American Republic (Chicago: University of
Chicago Press, 1987); Clarence Stone, Regime Politics: The Governing of Atlanta,
1946-1988 (Lawrence, KS: University Press of Kansas, 1989); e Clarence Stone
e Heywood Sanders (Orgs.) The Politics of Urban Development (Lawrence, KS:
University Press of Kansas, 1987).
12
Elkin, City and Regime; Stone, Regime Politics.
13
Logan e Molotch, Urban Fortunes.

249
Neil Brenner

de trabalhadores, pequenos varejistas e similares) – formam e


tentam promover usos do solo que aumentem o valor de troca
dos imóveis locais. Embora os desafios à agenda do crescimento
e à ideologia do desenvolvimento “isento de valor” (value-free)
possam ser articulados em nome dos valores de uso pelas orga-
nizações de bairro, do crescimento lento e de outros movimentos
locais NIMBY (not-in-my-backyard), ou seja, não em meu quintal,
Logan e Molotch enfatizam o poder abrangente dos “empreen-
dedores locais”, geralmente com o apoio do governo municipal,
para contornar essas forças de oposição. Com base nisso, Logan
e Molotch afirmam que as máquinas de crescimento urbano têm
desempenhado um papel fundamental na formação das paisa-
gens da urbanização ao longo da história dos EUA. Esse tem sido
o caso, argumentam eles, apesar dos efeitos profundamente pola-
rizadores e muitas vezes socialmente e ambientalmente destru-
tivos provocados pelas máquinas de crescimento, tanto dentro de
lugares como entre lugares, durante toda a longa duração (longue
durée) do desenvolvimento industrial urbano.
Desde meados da década de 1980, a teoria do regime urbano
e a teoria da máquina de crescimento geraram um impressionante
corpo de pesquisas sobre a política de desenvolvimento econômico
local, particularmente nos EUA, bem como na perspectiva compa-
rativa internacional14. Consistentes com o seu objetivo de contornar
as limitações das abordagens estruturalistas tradicionais, ambas as
teorias se têm centrado nas atividades, alianças e agendas das elites
político-econômicas locais dentro das cidades. Esse enfoque analí-
tico e empírico internalista tem, consequentemente, levado vários
comentadores a sublinhar o problema do “localismo” em cada
uma dessas tradições de investigação. Por exemplo, Alan Harding
sugere que tanto a teoria do regime como os estudos da máquina
de crescimento são “essencialmente localistas”, devido à sua ênfase
esmagadora na dinâmica política intralocal:
14
Lauria, Reconstructing Urban Regime Theory; Jonas e Wilson, Urban Growth
Machine; Stone e Sanders, Politics of Urban Development. Para aplicações
comparativas, ver John Logan e Todd Swanstrom (Orgs.) Beyond the City Limits:
Urban Policy and Economic Restructuring in Comparative Perspective (Philadelphia:
Temple University Press, 1990); e Harvey Molotch e Serena Vicari, “Three Ways
to Build: The Development Process in the United States, Japan and Italy”, Urban
Affairs Quarterly 24, n. 2 (1988), p. 188-214.

250
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

[…] Eles frequentemente subestimam a importância de es-


truturas impostas externamente que predispõem os atores
locais a determinadas formas de comportamento e o papel
desempenhado por fontes não-locais mais variáveis de in-
fluência sobre o desenvolvimento urbano, por exemplo, as
mudanças nas demandas de níveis mais altos de governo ou
investidores externos15.

Da mesma forma, Bob Jessop, Jamie Peck e Adam Tickell


argumentam que os estudos das máquinas de crescimento urbano
tendem a atribuir “[...] poder causal às redes políticas locais e
assim sugerem [...] que as variações espaciais nas fortunas urbanas
são meramente um subproduto das geografias da liderança caris-
mática da cidade ou de redes urbanas eficazes”16. Numa crítica
análoga, Andrew Wood sugere que “[...] as abordagens de regime
e coligação [...] afirmam a autonomia da política urbana ou local
como um foco legítimo para o estudo sem teorizar adequadamente
a base dessa política. A política urbana é simplesmente a política
que ocorre nas cidades em vez de ser uma política da cidade”17.
Considerando a dinâmica multiescalar dos processos de
urbanização sob o capitalismo moderno, parece bem justificada a
ênfase compartilhada pelos críticos e dada aos parâmetros institu-
cionais supralocais para o desenvolvimento urbano. No entanto,
sua crítica ao “localismo” requer mais especificações teóricas. Há
pelo menos três formas analiticamente distintas pelas quais uma
análise “urbana” pode ser descrita como localista.

1. O localismo ontológico implica a afirmação de que as


entidades, instituições ou processos locais são, em certo
sentido, autônomos ou mais causalmente significativos
do que as entidades, instituições ou processos organi-
zados em escalas supralocais.
15
Alan Harding, “Urban Regimes in a Europe of the Cities?”, European Urban
and Regional Studies 4, n. 4 (1997), p. 294.
16
Bob Jessop, Jamie Peck e Adam Tickell, “Retooling the Machine: Economic
Crisis, State Restructuring and Urban Politics”, in Jonas e Wilson, The Urban
Growth Machine, 144.
17
Andrew Wood, “Questions of Scale in the Entrepreneurial City”, in The
Entrepreneurial City, Tim Hall e Phil Hubbard (Orgs.) (London: Wiley, 1998),
p. 277.

251
Neil Brenner

2. O localismo metodológico parte do pressuposto de que,


embora o local possa estar entrelaçado e condicionado
por entidades, instituições ou processos supralocais, pode
e deve ser isolado destes últimos para fins analíticos, como
meio de decifrar suas estruturas e determinantes suposta-
mente “internos”. Como indicado acima, na medida em
que essa manobra analítica é realizada sem justificação
ou explicação explícita, o localismo metodológico pode
também implicar uma naturalização da escala local, ou
seja, a sua apresentação como um local premeditado ou
autoevidente para a investigação sociocientífica.
3. O localismo empírico implica a escolha de entidades, insti-
tuições ou processos com escala local, como as cidades,
como ponto focal para a pesquisa. Pode, mas não necessa-
riamente, envolver reivindicações ontológicas subjacentes
sobre a natureza do local, uma naturalização da escala
local ou reivindicações metodológicas específicas sobre
como o local deve ser estudado mais apropriadamente.

Nesses termos, pode-se argumentar que a maioria dos propo-


nentes da teoria dos regimes urbanos e da teoria das máquinas
de crescimento urbano evita formas ontológicas de localismo.
Nenhuma das teorias está intrinsecamente ligada à afirmação
de que os processos urbanos são ontologicamente autônomos,
ou causalmente primários, em relação a qualquer (quaisquer)
outra(s) escala(s) da vida político-econômica. Parece igualmente
claro que ambas as teorias exemplificam formas empíricas de
localismo pela simples razão de que se centram nas cidades ou
em modos de governação localizados. Esse localismo empírico
parece defensável porque, como a literatura sobre o desenvol-
vimento político urbano dos EUA tem demonstrado, as cidades
são de fato locais importantes de atividade reguladora, de expe-
rimentação institucional e contestação política. Portanto, faz
sentido dedicar recursos intelectuais à sua investigação.
Isso deixa em aberto a questão consideravelmente mais espi-
nhosa do localismo metodológico, que está no centro das críticas
feitas pelos autores citados acima. Até que ponto os teóricos do
regime urbano e os da máquina do crescimento urbano negli-

252
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

genciam o esclarecimento dos contextos supralocais e determi-


nantes do desenvolvimento urbano? Até que ponto os estudiosos
que trabalham nessas tradições tratam o local de forma isolada
das instituições, condições, forças e transformações político-
-econômicas mais amplas? Até que ponto eles pressupõem que o
local esteja garantido, como um lugar já concedido ou óbvio? Em
suma, até que ponto o localismo empírico (plausível) da teoria
do regime urbano e da teoria da máquina de crescimento urbano
encaminha-se para um localismo metodológico (problemático)?
Na medida em que isso ocorre, é provável que os pesquisadores
se encontrem enredados em uma versão de estudos urbanos da
“armadilha da endogeneidade” analisada por Saskia Sassen, na
qual um local ou escala de investigação é explicado exclusiva-
mente com referência a processos assumidos como internos ou
coextensivos a ele18.
Em contraste com as linhas de crítica que são desenvol-
vidas nas passagens citadas acima, uma leitura atenta das litera-
turas relevantes revela um estado de coisas mais complicado, no
qual os autores que trabalham nessas tradições de investigação
enquadram os seus objetos de investigação e escalas de análise
de formas divergentes. Por exemplo, grande parte da literatura
baseada em estudos de caso que aplicam a teoria dos regimes e
a teoria das máquinas de crescimento aponta, indiscutivelmente,
para o localismo metodológico, sendo assim presa da armadilha
da endogeneidade. Normalmente pressupõem-se a existência
de parâmetros político-econômicos extralocais, uma vez que a
análise se concentra principalmente em coalizões intralocais e
arranjos institucionais dentro de uma determinada cidade. Em
contrapartida, as implantações macro-históricas ou comparativas
dessas abordagens são mais susceptíveis de evitar o localismo
metodológico, ou de o abraçar apenas de uma forma relativa-
mente circunscrita. Uma preocupação com múltiplas cidades,
quadros temporais de longo prazo ou vários contextos nacionais
18
Saskia Sassen, Territory, Authority, Rights: From Medieval to Global Assemblages
(Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2006). No trabalho de Sassen, a
crítica à “armadilha da endogeneidade” aborda principalmente os limites
do nacionalismo metodológico e do globalismo metodológico. Entretanto,
o problema metodológico apontado por ela é indiscutivelmente demasiado
crescente em relação a outras escalas de investigação.

253
Neil Brenner

também parece sintonizar os estudiosos mais explicitamente com


os campos socioespaciais e institucionais mais amplos dentro dos
quais a política urbana é constituída. Aqui, pode haver alguma
exploração de cadeias causais endógenas, mas estas últimas são
cuidadosamente incorporadas dentro de um quadro explicativo
mais amplo e multiescalar que ilumina os parâmetros supralocais
– econômicos, políticos e institucionais – que medeiam e talvez
moldam diretamente os resultados locais.
Qualquer que seja a sua agenda de pesquisa ou orientação
metodológica, no entanto, os teóricos dos regimes urbanos e
das máquinas de crescimento geralmente parecem reconhecer
– em mais ou menos detalhe e com maior ou menor grau de
reflexividade – o “pacote institucional” nacionalmente específico
dentro do qual a formação de coalizões locais foi configurada19.
A questão-chave é a medida em que tais análises abordam o signi-
ficado teórico dessa importante observação empírica no contexto
de seus argumentos específicos sobre a dinâmica político-econô-
mica urbana. A carga de localismo metodológico só se justifica
nos casos em que o local é pressuposto de forma irreflexiva e em
que, consequentemente, as configurações institucionais nacio-
nais e os relés interescalares são relegados para uma estrutura de
“fundo” externo.

Os parâmetros institucionais nacionais para o


desenvolvimento urbano
A preocupação em evitar o localismo metodológico e a
armadilha da endogeneidade nos estudos urbanos deriva de uma
proposição relativamente simples: a “localização” da política de
crescimento nas cidades dos EUA, como em outros lugares, não
é um atributo empírico predeterminado ou endógeno das coli-
gações em questão, mas é um resultado mediado de estruturas
institucionais nacionais, regimes regulatórios e geografias polí-
ticas que, literalmente, criam um espaço em que as máquinas de
19
Sobre o conceito de “pacotes institucionais” e suas implicações para repensar
a teoria da máquina de crescimento, ver Murray Low, “Growth Machines and
Regulation Theory: The Institutional Dimension of the Regulation of Space in
Australia”, International Journal of Urban and Regional Research 18 (1999), p. 451-69.

254
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

crescimento urbano podem ser estabelecidas. De fato, pode-se


argumentar que as máquinas de crescimento urbano são constru-
ções do estado (nacional) na medida em que os marcos político-
-institucionais nacionais (a) desempenham um papel importante
na delineação das unidades espaciais dentro das quais as coali-
zões de crescimento são formadas; e (b) estabelecem um sistema
de regulamentações e restrições de uso do solo que condicionam
decisivamente o grau de comprometimento e dependência dos
atores locais em relação a uma agenda de crescimento. É essencial,
portanto, situar as coalizões de crescimento urbano não apenas
dentro das mutáveis divisões espaciais mundiais do trabalho asso-
ciadas aos sistemas capitalistas de produção e circulação, mas em
relação às divisões espaciais em evolução da regulação associadas
às instituições estatais nacionais, sistemas intergovernamentais e
regimes políticos20.
Essas alegações podem ser ilustradas com referência ao
papel a longo prazo do Estado nacional dos EUA na mediação da
política de desenvolvimento urbano. Para os propósitos atuais,
esta discussão suporta as consequências da evolução das posições
das cidades dos EUA nas divisões geoeconômicas das cadeias de
fornecimento de trabalho e infraestrutura para a dinâmica da
máquina de crescimento urbano21. A principal preocupação aqui
é explorar os arranjos institucionais nacionalmente específicos
que facilitaram mais diretamente a proliferação e a consolidação
das máquinas de crescimento urbano em todo o território dos
EUA desde o século XIX:
• O poder institucionalizado do capital privado. No sistema
regulador dos EUA, os incorporadores imobiliários de
propriedades privadas têm uma autoridade excessiva na
tomada de decisões que envolvem os usos do solo, investi-
mento de capital e localizações de emprego. Essa tradição
20
Kevin Cox e Andrew Mair, “Locality and Community in the Politics of Local
Economic Development”, Annals of the Association of American Geographers 78, n.
2 (1988), p. 307-25.
21
Sobre essas questões, ver David Wachsmuth, “Competitive Multi-City
Regionalism: Growth Politics Beyond the Growth Machine”, Regional Studies 51,
n. 4 (2017), p. 643-53; e David Wachsmuth, “Infrastructure Alliances: Supply-
Chain Expansion and Multi-City Growth Coalitions”, Economic Geography 93, n.
1 (2017), p. 44-65.

255
Neil Brenner

de privatização urbana reflete uma crença institucional-


mente enraizada de que o setor privado está mais bem
equipado para avaliar oportunidades de investimento e
localizações, para organizar as competências técnicas e
de gestão necessárias para o desenvolvimento econômico
e para maximizar a eficiência das operações econômicas.
Esta situação é consubstanciada e ainda agravada pela
falta de um grande partido político não empresarial nos
EUA que se assemelhe aos partidos sociais-democratas e
sindicais que desempenharam um papel tão importante
na política municipal europeia22. Por essas razões, no
contexto dos EUA, as políticas governamentais têm sido
mobilizadas há muito tempo para criar novos caminhos
para o investimento de capital privado organizado nas
cidades, seja através de esquemas de renovação urbana,
programas habitacionais, subsídios para ações de desen-
volvimento urbano ou outros incentivos federais, estaduais
e municipais. Tais políticas têm subsidiado diretamente
o investimento de capital, minimizando o risco privado
e cobrindo os principais custos gerais, muitas vezes sem
sujeitar as empresas a extensas restrições regulamentares.
Além disso, os programas de regeneração urbana nos
EUA priorizaram iniciativas lideradas pelo capital para
promover o (re)investimento em detrimento de políticas
orientadas para o trabalho, geralmente através do estabe-
lecimento de “parcerias” e outros acordos de cooperação
entre agências públicas e organizações empresariais23.
Essa priorização institucionalizada das formas de gover-
nança econômica lideradas pelo mercado em cada nível
do Estado dos EUA tem sido uma pré-condição essencial
para a formação e generalização das máquinas de cres-
cimento urbano. Estas últimas são consideravelmente
menos propensas a se cristalizar nos estados nacionais
que impõem restrições regulatórias mais rigorosas aos
22
Alan Harding, “Review Article: North American Urban Political Economy,
Urban Theory and British Research”, British Journal of Political Science 29
(1999), p. 687.
23
Peter Eisinger, “City Politics in an Era of Devolution”, Urban Affairs Review 33,
n. 3 (1988), p. 308-25.

256
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

mercados locais de terras e às decisões de investimento


local.
• A estrutura institucional do federalismo norte-americano. A
estrutura federal do Estado dos EUA dita que o poder
político e suas responsabilidades são compartilhados
entre vários níveis administrativos. Assim, às unidades
políticas subnacionais, tais como os estados e municípios,
são atribuídos importantes poderes regulatórios, em
áreas políticas como a saúde pública, bem-estar, educação
e desenvolvimento econômico, que lhes permitam
influenciar os padrões de localização das indústrias,
investimento em infraestrutura e população. Embora as
políticas urbanas federais tenham existido desde o New
Deal, sua implementação é deixada em grande parte
aos estados e municípios24. Em contraste com a maioria
dos estados europeus ocidentais, não há um sistema de
planejamento espacial nacional nos EUA, e há poucos
programas federais de equalização que promovam a
realocação do capital em áreas em declínio ou desfavore-
cidas25. Dentro desse sistema político descentralizado, os
órgãos públicos que estão mais imediatamente equipados
para influenciar os padrões de localização intranacionais
são os estados e os municípios26. As iniciativas de desen-
volvimento econômico conduzidas por esses níveis subna-
cionais de poder estatal se intensificaram consideravel-
mente após a Segunda Guerra Mundial, em conjunto com
uma onda de deslocalizações industriais intranacionais
impulsionadas pelo desejo do capital de reduzir os custos
de produção e buscar segmentos não sindicalizados da
força de trabalho. Posteriormente, a recessão econômica

24
John Mollenkopf, The Contested City (Princeton: Princeton University
Press, 1983).
25
John Friedmann e Robin Bloch, “American Exceptionalism in Regional
Planning, 1933-2000”, International Journal of Urban and Regional Research 14,
n. 4 (1990), p. 576-601.
26
Peter Eisinger, The Rise of the Entrepreneurial State (Madison: University of
Wisconsin Press, 1988); Alberta Sbragia, Debt Wish: Entrepreneurial Cities, U.S.
Federalism, and Economic Development (Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh
Press, 1996).

257
Neil Brenner

global e a aceleração da desindustrialização da década


de 1970 criaram uma nova urgência para o investimento
de capital externo, particularmente nas regiões e cidades
atingidas pela crise. As iniciativas de desenvolvimento
econômico local e estadual foram acentuadamente inten-
sificadas durante essa era e, posteriormente, tornaram-se
ferramentas políticas padrão para os governos subnacio-
nais27. A estrutura territorial federal do estado nacional
dos EUA deve, portanto, ser vista como um parâmetro
institucional essencial dentro do qual as máquinas de
crescimento urbano têm sido repetidamente estimuladas.
Estas são menos propensas a se formar em estados nacio-
nais em que os municípios não têm poderes tão amplos
e autônomos para influenciar o investimento de capital e
promover o desenvolvimento econômico.
• Finanças municipais descentralizadas. Os municípios nos
EUA dependem muito dos impostos cobrados local-
mente – impostos sobre a propriedade, em particular –
para financiar bens públicos locais28. Embora a depen-
dência estrutural do Estado em relação ao capital para
receitas fiscais seja uma característica universal das
formações sociais capitalistas29, essa dependência é arti-
culada numa forma espacial profundamente localizada
dentro do sistema intergovernamental dos EUA devido
ao caráter descentralizado das finanças do governo local.
Uma vez que o investimento imobiliário constitui uma
fonte crucial de receitas fiscais locais, os municípios dos
EUA são estruturalmente “pré-programados” para apoiar
as estratégias de desenvolvimento da máquina de cres-
cimento da propriedade. A importância estratégica dos
impostos sobre a propriedade para as receitas do governo

27
Robert Goodman, The Last Entrepreneurs: America’s Regional Wars for Jobs and
Dollars (New York: Simon and Schuster, 1979); Susan Clarke e Gary Gaile, The
Work of Cities (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998); e Eisinger,
Rise of the Entrepreneurial State.
28
Dennis Judd e Todd Swanstrom, City Politics: Private Power and Public Policy
(New York: Longman, 1998).
29
Claus Offe, Contradictions of the Welfare State, John B. Keane (Org.) (Cambridge,
MA: MIT Press, 1984).

258
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

local tem sustentado por muito tempo um padrão de


“mercantilismo municipal” em que as cidades dos EUA
competem para encorajar os usos do solo que são consi-
derados susceptíveis de produzir maiores receitas fiscais
em suas jurisdições30. Devido aos impactos dos programas
de transferências intergovernamentais do pós-guerra e
das revoltas fiscais do pós-1970, entre outros fatores, a
percentagem das receitas municipais totais provenientes
dos impostos sobre a propriedade diminuiu de forma
constante durante a segunda metade do século XX31. No
entanto, essa percentagem continua a ser relativamente
elevada em termos comparativos. É menos provável que
se formem máquinas de crescimento urbano nos estados
nacionais em que as receitas municipais não dependem
diretamente dos valores da propriedade local e do cresci-
mento econômico local.
• Mercados de obrigações e notações de crédito municipais. Desde
meados do século XIX, os municípios dos EUA têm depen-
dido extensivamente do mercado de títulos privados
para obter crédito para grandes melhorias de capital na
infraestrutura pública (escolas, rodovias, pontes, hospi-
tais, instalações recreativas e similares). A partir do final
do século XX, cerca de um quarto dos gastos locais nas
cidades dos EUA resultou do mercado de títulos munici-
pais e, portanto, diretamente dependiam de investimentos
privados em bens públicos locais32. Esse acordo concede
poderes importantes a agências privadas de classificação
de risco, como a Moody’s Investor’s Service e a Standard
& Poor’s Corporation, que determinam as taxas de juros
diferenciais para títulos municipais em diferentes loca-
lidades. Como explica Alberta Sbragia: “A lógica usada
pelos credores [títulos municipais] para avaliar o risco –
e os critérios que consideram importantes – é frequen-
temente expressa por grupos (especialmente grupos
empresariais e de contribuintes) que veem uma cidade
30
Sbragia, Debt Wish.
31
Judd e Swanstrom, City Politics.
32
Ibid., 338.

259
Neil Brenner

mais como uma empresa financeira do que como uma


prestadora de serviços”33. Na medida em que as avalia-
ções das agências de classificação do clima de negócios
local impactam diretamente o custo dos títulos munici-
pais, os políticos locais têm um incentivo importante para
promover o desenvolvimento econômico local e, assim,
apoiar, estimular e participar nas máquinas de cresci-
mento urbano34. As máquinas de crescimento urbano
são menos prováveis de surgir em estados nacionais nos
quais os mercados de títulos privados não servem como
uma fonte importante de crédito municipal e, portanto,
impõem restrições tão significativas sobre as prioridades
orçamentárias dos estados locais.
• Suburbanização, fragmentação jurisdicional metropolitana
e autogoverno autônomo. O desenvolvimento urbano dos
EUA há muito prossegue em conjunto com processos de
suburbanização em larga escala que têm continuamente
descentralizado a distribuição espacial da indústria,
infraestrutura e população35. Até o final do século XIX,
o desenvolvimento suburbano era gerenciado por meio
de estratégias de anexação municipal, nas quais as zonas
suburbanas eram incorporadas aos núcleos urbanos
através da extensão dos limites municipais. Durante o
primeiro trimestre do século XX, porém, o princípio do
autogoverno autônomo, ou home rule, tornou-se cada vez
mais predominante36. Isso permitiu que proprietários
ricos, bem como industriais em busca de mão de obra
não sindicalizada, criassem novas unidades municipais
dentro dos territórios suburbanizados, introduzissem

33
Alberta Sbragia, “Politics, Local Government and the Municipal Bond
Market”, in The Municipal Money Chase: The Politics of Local Government Finance,
ed. Alberta Sbragia (Boulder, CO: Westview Press, 1983), p. 102.
34
Ibid.
35
Kenneth Jackson, Crabgrass Frontier: The Suburbanization of the United States
(New York: Oxford University Press, 1985); e Robert Fishman, Bourgeois Utopias:
The Rise and Fall of Suburbia (New York: Basic Books, 1987).
36
Ann Markusen, “Class and Urban Social Expenditure: A Marxist Theory”, in
Marxism and the Metropolis, William Tabb e Larry Sawers (Orgs.), (New York:
Oxford University Press, 1979), p. 90-112.

260
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

várias regulamentações locais (como o zoneamento)


para influenciar o uso do solo dentro dessas jurisdições
e, assim, proteger o valor de seus investimentos imobi-
liários. Durante o período pós-guerra, em conjunto
com políticas federais de transporte, programas habi-
tacionais e subsídios hipotecários, a fragmentação
jurisdicional metropolitana intensificou-se, aprofun-
dando, deste modo, a polarização das regiões urbanas
entre múltiplas unidades governamentais locais que
competem por investimentos de capital e recursos fiscais.
Quaisquer que sejam as discordâncias entre os teóricos
da escolha pública e os consolidadores em relação aos
méritos relativos desses arranjos institucionais, ambas
as perspectivas coincidem na sua observação de que a
fragmentação jurisdicional metropolitana é susceptível
de localizar a concorrência fiscal entre unidades gover-
namentais. De fato, num sistema político nacional em
que as competências regulamentares são relativamente
descentralizadas, em que as receitas municipais estão
fortemente dependentes dos impostos cobrados local-
mente e em que as áreas metropolitanas estão jurisdicio-
nalmente fragmentadas, os governos locais parecem não
ter outra escolha senão competir pela base tributária,
tanto a nível inter como intrarregional. Nos estados
nacionais que não permitem uma fragmentação jurisdi-
cional tão extrema das áreas metropolitanas, especial-
mente em conjunto com uma descentralização fiscal tão
ampla, é improvável que as máquinas de crescimento
urbano sejam consolidadas.

A partir dessa perspectiva, a política das máquinas de cresci-


mento urbano se origina não só das configurações institucionais
e dos regimes de regras historicamente evolutivos e enraizados
nacionalmente como também do “ativismo humano” dos empre-
endedores locais37. Não importa quão sagazes os rentistas nas
máquinas de crescimento urbano dos EUA possam ser na busca
de novas formas que possibilitem o aumento do valor de troca do

37
Logan and Molotch, Urban Fortunes, 11.

261
Neil Brenner

solo, uma configuração nacionalmente específica da organização


espacial estatal tem sido uma condição essencial para criação de
possibilidades e um incentivo ativo para suas atividades. Dessa
forma, a orientação voltada para o crescimento dos municípios
dos EUA deve ser vista como uma manifestação fundamental e a
materialização da formação peculiar do espaço estatal nacional e
do ordenamento territorial que têm sustentado sucessivos ciclos
históricos de urbanização industrial desde o século XIX. Esse
quadro de poder estatal nacional parece impor uma “gaiola de
ferro” (iron cage) aos atores políticos locais, na medida em que
apenas uma reforma profunda das instituições políticas nacio-
nais e uma remodelação radical dos regimes de regras nacionais
poderiam interromper, de forma realista, a lógica da política de
crescimento agressivo sobre a qual o desenvolvimento urbano
dos EUA há muito se baseia38.

As máquinas de crescimento e as geografias


políticas do desenvolvimento urbano
A partir do modo de análise multiescalar proposto acima,
será esclarecedor revisitar a contribuição seminal para o estudo
das máquinas de crescimento urbano, o livro Urban Fortunes de
1987 de John Logan e Harvey Molotch39. Seu foco de preocu-
pação é a economia política do lugar, entendida como um nexo
localizado de uso do solo, cujos padrões e caminhos de desen-
volvimento são controlados por rentistas, facções do capital com
extensos investimentos irrecuperáveis no ambiente construído
e seus aliados políticos40. Para desenvolver essa análise, Logan
e Molotch dedicam grande atenção à luta entre os diversos
agentes locais, incluindo membros da aliança das máquinas de

38
Os defensores contemporâneos dessa reforma incluem David Rusk, Inside
Game/Outside Game: Winning Strategies for Saving Urban America (Washington,
DC: Brookings Institution Press, 1998); Bruce Katz, “Enough of the Small Stuff:
Toward a New Urban Agenda”, Brookings Review 18, n. 3 (2000), p. 6-11; e Peter
Dreier, John Mollenkopf, e Todd Swanstrom, Place Matters: Metropolitics for the
21st Century, 2ª ed., (Lawrence, KS: University Press of Kansas, 2004).
39
Logan e Molotch, Urban Fortunes.
40
Ibid., 12.

262
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

crescimento e seus oponentes, para o controle do uso do solo


urbano. Nesse contexto, as estruturas institucionais nacionais
são mencionadas principalmente para destacar os ambientes
políticos, jurídicos e intergovernamentais mais amplos nos quais
as lutas pelo poder local se desenvolvem. Assim, a maioria dos
comentadores interpretou e apropriou-se do trabalho de Logan
e Molotch em termos metodologicamente localistas, como uma
contribuição para a investigação de formas baseadas no local
de organização institucional, na formação de alianças políticas
e na intervenção regulamentar.
No entanto, após um exame mais atento, torna-se evidente
que a análise de Logan e Molotch evita a armadilha da endoge-
neidade: ela se concentra não apenas nas vicissitudes do place-
-making (criação de lugares), mas é permeada por observações
astutas sobre o pacote institucional nacional de regulamentação
do uso do solo, o diversificado quadro institucional nacional de
desenvolvimento urbano e as amplas consequências interesca-
lares das atividades das máquinas de crescimento urbano41. Por
conseguinte, em contraste com a orientação metodológica loca-
lista ou endógena que geralmente tem sido atribuída à teoria das
máquinas de crescimento urbano, o livro Urban Fortunes pode
ser criticamente reinterpretado como um relato multiescalar da
interação entre o espaço estatal e as políticas de desenvolvimento
urbano, tanto em perspectiva histórica como contemporânea42.
Uma análise do trabalho de Logan e Molotch atenta às escalas
revela, em particular, três dimensões analiticamente distintas
dessa interação durante o curso da história urbana dos EUA: (i)
estruturas profundas do espaço estatal e do ordenamento terri-
torial; (ii) regimes historicamente específicos da política espacial
urbana; e (iii) lutas conjunturais sobre o desenvolvimento espacial
urbano (ver Figura 1).

41
A questão é examinada detalhadamente em seu capítulo sobre “How
Government Matters”, Logan e Molotch, Urban Fortunes, p. 147-99.
42
O conceito de espaço estatal é aprofundado em Neil Brenner, New State Spaces:
Urban Governance and the Rescaling of Statehood (New York: Oxford University
Press, 2004).

263
Neil Brenner

Figura 1
As geografias políticas históricas multiescalares das máquinas de
crescimento urbano nos Estados Unidos
Estruturas profundas do • A tradição institucionalmente enraizada do priva-
espaço estatal e da regulação tismo urbano confere aos interesses empresariais
territorial grandes poderes de decisão sobre os usos do solo
urbano.
Características enraizadas da • A estrutura institucional do federalismo dos EUA
organização espacial estatal fornece competências relativamente autônomas aos
nos EUA que animam, cana- estados e municípios para se envolverem em iniciativas
lizam e medeiam atividades de desenvolvimento econômico e outras estratégias
da máquina de crescimento. para influenciar a localização do capital e da popu-
lação.
• O sistema descentralizado de financiamento do
governo local sustenta uma dependência extensiva dos
municípios em relação aos impostos sobre a proprie-
dade cobrados localmente e aos mercados de obriga-
ções privadas.
• A fragmentação jurisdicional do espaço metropoli-
tano e o princípio do autogoverno autônomo (home
rule) intensificam ainda mais a concorrência entre as
bases tributárias da interlocalidade.
Regimes historicamente espe- Urbanização industrial do século XIX
cíficos da política espacial • As máquinas de crescimento competem por subsídios
urbana federais para construir infraestruturas de transporte e
Formações históricas de polí- comunicações em larga escala.
ticas federais e locais desti-
nadas a influenciar a geografia Expansão urbana do século XX e fragmentação metropoli-
do uso do solo urbano e, tana
assim, aumentar os valores de • As máquinas de crescimento mobilizam uma série de
troca dos lugares. políticas restritivas (tais como zoneamento, controle de
crescimento e regulamentações ambientais) a fim de
influenciar os usos locais da terra em suas jurisdições.
O governo federal mobiliza várias políticas de incen-
tivos que estimulam a formação de máquinas de cres-
cimento urbano e estratificam caminhos de desenvolvi-
mento espacial urbano.

1980 e mais além


• O governo federal tenta contornar a oposição anti-
crescimento, intensificando as pressões fiscais sobre as
localidades e baixando os padrões federais em esferas
políticas como o bem-estar, a segurança ocupacional e
a proteção ambiental.

264
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

Lutas conjunturais sobre o • Forças pró e anticrescimento contestam fronteiras


desenvolvimento espacial jurisdicionais urbanas/suburbanas em várias escalas
urbano espaciais.
Estratégias e lutas para • As forças pró e anticrescimento contestam a forma,
aumentar os valores de uso a orientação e a distribuição geográfica dos regula-
ou os valores de troca de mentos de zoneamento e de controle do crescimento
lugares específicos, muitas em várias escalas espaciais.
vezes modificando formas • As forças pró e anticrescimento contestam a forma,
existentes de organização a orientação e a distribuição geográfica das políticas
espacial estatal e política urbanas em várias escalas espaciais.
espacial urbana.

1. Características estruturais profundas do espaço do Estado e


do ordenamento territorial. Em várias ocasiões, Logan e Molotch
aludem às características enraizadas do sistema intergoverna-
mental federal dos EUA que foram descritas na seção anterior.
Considera-se que essas características estruturalmente enraizadas
da organização espacial e institucional do estado – em particular,
a autonomia fiscal e administrativa local, a fragmentação juris-
dicional metropolitana e o princípio do autogoverno autônomo
(home rule) – tenham desempenhado um papel fundamental na
geração da formação de máquinas de crescimento urbano e da
lógica resultante da implacável concorrência fiscal baseada na
interlocalidade ao longo da história dos EUA43.
2. Regimes historicamente específicos da política espacial urbana.
Logan e Molotch também abordam as várias maneiras pelas
quais, desde a maturação da cidade industrial do século XIX, as
políticas estatais federais e locais têm impactado as geografias
do desenvolvimento urbano44. Os regimes resultantes da regula-
mentação espacial estatal moldaram decisivamente as geografias
políticas das atividades das máquinas de crescimento urbano,
canalizando certos tipos de desenvolvimento para locais especí-
ficos, tanto dentro como entre as áreas metropolitanas. Apesar
de Logan e Molotch não utilizarem o vocabulário conceitual dos
regimes, seu relato traça implicitamente três amplas formações
históricas da política de uso do solo federal e local regularizada
desde o século XIX:

43
Logan e Molotch, Urban Fortunes, 2, 27, 147-51, 178-80.
44
Ibid., 147-99.

265
Neil Brenner

• Urbanização industrial do século XIX. Durante o início da


era industrial, as máquinas de crescimento urbano se
mobilizaram para atrair investimentos essenciais em infra-
estrutura federal (ferrovias, canais, portos e similares) e,
assim, aumentar sua importância econômica estratégica
dentro da economia nacional45.
• Expansão urbana do século XX e fragmentação metropolitana.
Uma nova formação de políticas espaciais urbanas surgiu
durante o período do capitalismo fordista-keynesiano
organizado em conjunto com movimentos abrangentes de
reforma do planejamento, a extensão do tecido urbano, a
proliferação de enclaves residenciais suburbanizados e a
crescente fragmentação jurisdicional das áreas metropoli-
tanas. Aqui, Logan e Molotch traçam o papel das políticas
locais restritivas (incluindo zoneamento, controle de cres-
cimento e políticas ambientais) e das políticas de incen-
tivos federais (incluindo habitação e renovação urbana,
concessões de ações de desenvolvimento urbano, subven-
ções globais – block grants – e reordenamento fiscal) na
influência das geografias de uso do solo e, assim, na
criação de uma hierarquia urbana e suburbana altamente
estratificada46. Esse regime de política espacial urbana,
que só foi plenamente consolidado durante o período do
pós-guerra, forneceu aos políticos nacionais e locais uma
vasta gama de instrumentos das políticas através dos quais
podem influenciar a distribuição dos usos locais do solo
nas suas jurisdições e, assim, “servir os interesses de troca
das elites locais”47.
• O período pós-1980. De forma mais sucinta, devido à conjun-
tura histórica em que seu livro foi escrito, Logan e Molotch
se referem à emergente formação histórica da política
espacial urbana que estava sendo implementada sob o Novo
Federalismo de Reagan na década de 1980. Sob sua admi-
nistração, o governo federal introduziu diversas estratégias
políticas cujo objetivo era impulsionar as localidades para
45
Ibid., 52-7.
46
Ibid., 153-99.
47
Ibid., 178.

266
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

que promovessem projetos de desenvolvimento econômico


local – por exemplo, diminuindo os subsídios urbanos
federais e, dessa forma, reduzindo as restrições orçamen-
tárias locais; diminuindo os padrões federais de bem-estar,
segurança ocupacional e proteção ambiental; e criando
zonas de empreendimento não regulamentadas dentro dos
centros urbanos em dificuldade. Logan e Molotch analisam
esses arranjos institucionais reescalonados como estraté-
gias do governo federal para contornar as formas de resis-
tência ao crescimento local que haviam sido consolidadas
nas duas décadas anteriores48.

Considerando que cada um dos regimes federais e locais de


política de uso do solo urbano acima mencionados facilitou e inten-
sificou as atividades das máquinas de crescimento urbano, Logan
e Molotch sugerem que o segundo e terceiro regimes também
enfrentaram forte resistência de um conjunto crescente de forças
antidesenvolvimento. Assim, sua narrativa implica que há muito
tempo as instituições estatais nacionais constituem uma arena
estrategicamente central de contestação política na qual as geogra-
fias do desenvolvimento urbano são combatidas. No contexto dos
EUA, Logan e Molotch argumentam que é sobretudo através das
instituições estatais nacionais e dos regimes políticos que as confi-
gurações locais de regulação do uso do solo são estabelecidas,
aplicadas e periodicamente modificadas. E é apenas dentro dos
parâmetros político-institucionais assim estabelecidos que as coali-
zões de crescimento urbano podem se cristalizar para moldar os
padrões e caminhos do desenvolvimento urbano.
3. Lutas conjunturais sobre o desenvolvimento espacial urbano.
Por último, Logan e Molotch enfatizam o papel das lutas locali-
zadas sobre as fronteiras jurisdicionais e os regulamentos do uso
do solo no contexto das estruturas mais enraizadas do espaço
estatal nacional resumidas acima49. As máquinas de crescimento
podem tentar retrabalhar a organização do espaço estatal e do
ordenamento territorial em escalas nacionais, metropolitanas e
locais, a fim de aumentar os valores de troca dos locais urbanos

48
Ibid., 244-7.
49
Ibid., 37.

267
Neil Brenner

estratégicos. Enquanto isso, alianças anticrescimento podem


tentar mobilizar recursos, regulamentações e restrições federais
e municipais para combater tais iniciativas e, assim, preservar os
valores de uso baseados no local. Essas lutas são sempre travadas
em padrões locais específicos que, por sua vez, são moldados
através das estratégias reguladoras específicas que são buscadas
e das alianças político-territoriais formadas pelos principais
atores envolvidos. Questões como a configuração das fronteiras
jurisdicionais, a estrutura dos regulamentos de zoneamento e
controle do crescimento e a forma e distribuição dos subsídios
urbanos federais transformam-se, portanto, em apostas centrais
nas lutas políticas sobre as geografias da urbanização em diversos
lugares e em várias escalas espaciais. Nesse sentido, as forma-
ções do espaço estatal e do ordenamento territorial não apenas
sustentam e animam as atividades das máquinas de crescimento
urbano, mas podem também ser remodeladas por meio das lutas
provocadas por essas atividades.
Em suma, há muito tempo a configuração do espaço estatal
tem figurado centralmente na produção da escala urbana como
um local institucional estratégico para atividades das máquinas
de crescimento em toda a paisagem político-econômica dos
EUA. Enquanto o trabalho de Logan e Molotch se concentra
mais diretamente em explicar como e por que motivo a cidade
serve como uma máquina de crescimento, esta análise revela que,
ao fazer isso, eles também fornecem uma explicação do porquê
de a cidade servir como uma máquina de crescimento. Aqui, o
principal aspecto é, portanto, não apenas que “o Estado sustenta
ativamente o status de commodity do solo”, mas que sua confi-
guração espacial e institucional também serve (a) para distribuir
os usos do solo em escalas nacionais, regionais e locais; e (b)
para impulsionar a formação de alianças territoriais profunda-
mente localizadas e orientadas para o crescimento50. O trabalho
comparativo posterior de Molotch reforça veementemente esses
argumentos ao mostrar como estruturas intergovernamentais,
arranjos fiscais e regulações de uso do solo específicos de cada
país nos EUA, Reino Unido, França, Itália e Japão acarretaram
regras significativamente divergentes para a participação dos
50
Ibid., 27.

268
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

rentistas no desenvolvimento local, levando a grandes diferenças


transnacionais nas geografias das políticas de desenvolvimento
urbano51. Tais investigações comparativas tornam ainda mais
explícita uma proposição analítica que está sutilmente entrela-
çada ao longo do texto de Urban Fortunes: a própria existência
de máquinas de crescimento urbano, e sua forma político-insti-
tucional específica, dependem de regimes normativos naciona-
lizados que imponham parâmetros regulatórios específicos em
torno de processos de desenvolvimento urbano52. Esta interpre-
tação não pretende diminuir a importância de estratégias e lutas
políticas enraizadas localmente, que obviamente geram arranjos
de governança e trajetórias de desenvolvimento específicos para
cada local. Pelo contrário, este modo de análise é apresentado
como uma base para situar tais estratégias e lutas dentro do
pacote institucional multiescalar que circunscreve suas capaci-
dades distintas para moldar o espaço urbano.

A máquina de crescimento urbano como uma


estratégia política multiescalar
Na medida em que a teoria do regime urbano e a teoria das
máquinas de crescimento urbano ajudaram a iluminar algumas
das principais dinâmicas políticas locais associadas à produção
do espaço urbano, elas contribuíram muito significativamente
para o projeto de desmistificação da vida urbana sob o capita-
lismo moderno. Entretanto, devido às tendências metodologica-
mente localistas de pelo menos algumas contribuições a essas
tradições de pesquisa, só parcialmente conseguiram derrotar as
dimensões supostamente urbanas do que muitas vezes é gene-
ricamente chamado de “política urbana”. Como essa discussão
revelou, as operações das máquinas de crescimento urbano não

51
Ver Molotch e Vicari, “Three Ways to Build”; e Harvey Molotch, “Urban Deals
in Comparative Perspective”, in Logan e Swanstrom, Beyond the City Limits, 175-98.
52
O conceito de um regime de regras é proposto por Jamie Peck em “Political
Economies of Scale: Fast Policy, Interscalar Relations and Neoliberal Workfare”,
Economic Geography 78, n. 3 (July 2002), p. 332-60. Para mais informações ver
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore, “Variegated Neoliberalization:
Geographies, Modalities, Pathways”, Global Networks 10, n. 2 (2010), p. 182-222.

269
Neil Brenner

podem ser adequadamente compreendidas como geradas local-


mente ou autocontidas; elas também são momentos essenciais
dentro dos processos multiescalares de regulamentação espacial
estatal através dos quais os padrões e caminhos da urbanização
capitalista são forjados. Portanto, a natureza fetichista da cidade
pode ser totalmente desmistificada apenas através de modos de
análise que iluminem reflexivamente suas condições de produção
em todas as escalas espaciais – desde divisões espaciais mundiais
de trabalho, fluxos de recursos e impactos metabólicos até confi-
gurações institucionais nacionais e regimes de ordenamento
territorial, arranjos de governança subnacional e lutas políticas
localmente incorporadas.
A tarefa de superar o caráter fetichista da cidade é extre-
mamente complexa: envolve um exame reflexivo dos diversos
processos político-econômicos, institucionais e sociotecnológicos
que produziram as paisagens irregulares e diversificadas da urba-
nização. Neste ensaio, abordei apenas uma dimensão dessa vasta
agenda de investigação – a necessidade de investigar o papel dos
espaços estatais nacionais e dos regimes multiescalares de orde-
namento territorial na geração de uma política de crescimento
altamente localizada e centrada na cidade durante o curso do
desenvolvimento territorial dos EUA. Como tenho argumen-
tado, muitos estudantes de máquinas de crescimento urbano
tendem a cair na armadilha da endogeneidade: eles subestimam
a escala local e a consideram como local e alvo dessa política
de crescimento. Em contraste, através de uma leitura crítica das
Urban Fortunes de Logan e Molotch, esta análise questionou criti-
camente essa suposição naturalizada ao demarcar algumas das
condições político-institucionais mais amplas de possibilidade
para a formação de alianças territoriais orientadas para o cres-
cimento na escala da cidade. O trabalho de Logan e Molotch
contribui produtivamente para esse esforço ao elaborar (a)
uma conceituação em três níveis de como as estruturas espa-
ciais estatais impactam os padrões de desenvolvimento espacial
urbano; e (b) uma periodização básica da relação entre o espaço
estatal e a dinâmica da máquina de crescimento urbano durante
a história da urbanização industrial dos EUA. Dessa forma, a sua
investigação ilumina os padrões e caminhos do localismo dos

270
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

EUA através de um modo de análise reflexivamente não localista:


contorna a armadilha da endogeneidade ao mesmo tempo em
que reconhece a importância estrutural e estratégica da locali-
dade na política espacial da governação urbana.
Esta discussão sobre a estruturação nacional do desenvol-
vimento urbano nos EUA baseia-se numa literatura emergente
sobre essa questão que inclui tanto investigações históricas
como análises contemporâneas53. O propósito central deste
trabalho tem sido menos o de oferecer uma visão abrangente
da interface nacional/urbana em evolução e institucional-
mente diversificada no contexto dos EUA do que o de subli-
nhar a sua relevância epistemológica essencial para a própria
constituição da “política urbana” como um campo de pesquisa
discreto, histórico-comparativo e cada vez mais transnacional.
Na verdade, a análise precedente sugere que o rótulo subdis-
ciplinar “política urbana” é fundamentalmente enganoso na
medida em que implica uma compreensão do urbano como
um terreno institucional distinto, autocontido ou predetermi-
nado. Contra tais construções, o urbano tem sido conceituado
aqui como um meio, local e expressão de diversos processos
político-econômicos multiescalares, incluindo estratégias de
acumulação de capital, regulação estatal, formação de alianças
territoriais e luta sociopolítica. Esse é um dos sentidos em que
a concepção sugestiva de Henri Lefebvre do urbano como um
lugar de “mediação” pode ser compreendida54. A partir dessa
perspectiva, o urbano mantém a sua “coerência estruturada” –
e, portanto, a sua inteligibilidade nas ciências sociais, na luta
regulatória e na vida quotidiana – apenas devido a estratégias
políticas que tentam estabelecê-lo como tal. As máquinas de
crescimento urbano representam um exemplo paradigmático
de tais estratégias políticas.

53
Ver, por exemplo, Gerald Frug, City-Making: Building Cities Without Building
Walls (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002); Dreier, Mollenkopf, e
Swanstrom, Place Matters; Clarke e Gaile, Work of Cities; e Eisinger, Rise of the
Entrepreneurial State.
54
Lefebvre, Urban Revolution; assim como Stefan Kipfer, “Why the Urban
Question Still Matters: Reflections on Rescaling and the Promise of the Urban”,
in Leviathan Undone? Towards a Political Economy of Scale, Rianne Mahon e Roger
Keil (Orgs.), (Vancouver and Toronto: UBC Press, 2009), p. 67-86.

271
Neil Brenner

Estas considerações epistemológicas e metodológicas têm


uma proeminência especial na configuração contemporânea
da intensificação da relativização da escala, em que a estrutu-
ração institucional nacional dos processos de urbanização está
sendo profundamente recalibrada em conjunto com uma inte-
gração geoeconômica acelerada, uma crescente neoliberali-
zação do ordenamento territorial, processos de retração estatal
pós-keynesiana e a proliferação de formas regionalmente e
localmente específicas de crise industrial e de resposta regula-
mentar. No contexto dos EUA, as formas empreendedoras de
política urbana foram sobrepostas aos regimes distributivos
de uso do solo, às configurações infraestruturais padronizadas
nacionalmente e aos arranjos de governança gerencial que
prevaleceram durante os regimes de acumulação industrial,
monopólio corporativo e fordista-keynesiano. Essa ativação
intensificada das estratégias de desenvolvimento econômico
local entre as cidades dos EUA tem sido impulsionada, em
grande medida, pelo redimensionamento dos espaços estatais
nacionais – do Novo Federalismo de Reagan na década de
1980 para vários programas pós-federais de devolução do bem-
-estar e contenção fiscal na década de 1990 e posteriormente55.
Durante a última década, as geografias escalares dessa suposta
“nova política urbana” continuaram a sofrer mutações através
da proliferação de coalizões de crescimento multicidades
que aspiram a construir infraestruturas personalizadas para
cadeias de abastecimento regionais e capacidade logística56.
Consequentemente, a configuração escalar das operações da
máquina de crescimento “urbano” está mais uma vez sendo
qualitativamente retrabalhada em relação a novas estratégias
de acumulação, uma nova cristalização da divisão espacial do
trabalho, vários realinhamentos político-institucionais multies-
calares e estratégias políticas emergentes para regulamentar o
processo de urbanização.

55
Clarke e Gaile, Work of Cities; e Eisinger, Rise of the Entrepreneurial State.
Ver também, mais recentemente, Paul Kantor, “The End of American Urban
Policy—Or a Beginning”, Urban Affairs Review 52, n. 6 (2016), p. 887-916.
56
Wachsmuth, “Competitive Multi-City Regionalism”; e Wachsmuth,
“Infrastructure Alliances”.

272
Máquinas de crescimento urbano – mas em que escala?

Desde o início da década de 1980 se verifica em toda a


União Europeia (UE) uma proliferação de iniciativas econômicas
locais muito semelhante, igualmente animada por processos
combinados de integração geoeconômica, redimensionamento
estatal pós-keynesiano e reestruturação industrial. Dado o longo
compromisso dos Estados de bem-estar social europeus com polí-
ticas regionais compensatórias que tentaram integrar as econo-
mias locais em sistemas nacionalizados de desenvolvimento terri-
torial e provisão de infraestrutura, essa “nova política urbana”
orientada para o crescimento representa uma ruptura bastante
marcante em termos de desenvolvimento. Em face dessas trans-
formações, e dos amplos processos de relativização de escala com
os quais estão interligadas, as máquinas de crescimento urbano
parecem estar desempenhando papéis cada vez mais significa-
tivos na formação das paisagens da urbanização pós-keynesiana
em grande parte da Europa57. Mas, da mesma forma no contexto
europeu, a constituição escalar da política de crescimento
“urbano” também está sendo significativamente retrabalhada
através de estratégias emergentes de cidade-regionalismo, redes
intercidades e novos tipos de alianças de infraestrutura regionais
ou inter-regionais. De fato, embora os valores de propriedade
ainda sejam imensamente importantes para os atores-chave envol-
vidos em tais alianças territoriais orientadas para o crescimento,
o projeto de aumentar os aluguéis do solo através da intensifi-
cação do seu uso local está agora estreitamente interligado com
iniciativas políticas multiescalares para construir as configura-
ções de infraestrutura personalizadas que são pensadas para faci-
litar a inovação, flexibilidade e conectividade sob condições de
elevada incerteza geoeconômica58.
A análise aqui apresentada sugere, portanto, que a conso-
lidação de uma nova política urbana na região do Atlântico
Norte, e para além dela, deve ser entendida sobretudo em
57
Alan Harding, “Urban Regimes and Growth Machines: Towards a Cross-
national Research Agenda”, Urban Affairs Quarterly 29, n. 3 (1994), p. 356-82.
58
Nesse sentido, os valores de troca com base territorial enfatizados por Logan
e Molotch não podem mais ser entendidos puramente em termos de valores
de propriedade; hoje eles abrangem um espectro mais amplo de condições
espaciais e infraestruturas que impactam a posicionalidade dos lugares em
redes globais. Ver Jessop, Peck e Tickell, “Retooling the Machine”.

273
Neil Brenner

relação à evolução dos pacotes institucionais nacionais e dos


regimes multiescalares de ordenamento territorial em que estão
inseridos. As arenas políticas do desenvolvimento “urbano” são
constituídas mediante a contínua construção e refabricação de
espaços estatais através de lugares, territórios e escalas. Há, de
fato, uma política de crescimento urbano, e essa política frequen-
temente envolve uma maquinaria da escala específica de institui-
ções, leis, políticas, alianças, estratégias e lutas localizadas — mas
suas condições de possibilidade estão em outro lugar.

274
Metrópole, moeda e mercados.
A agenda urbana em tempos de
reemergência das finanças globais1

Jeroen Klink2

Introdução

E ste artigo tem como objetivo principal explorar a arti-


culação entre a teoria urbana e a economia política
da urbanização, de um lado, e os estudos sociais de finanças,
de outro. Como objetivo complementar, busca verificar o
potencial dessa articulação para contribuir com uma agenda
de pesquisa sobre os mecanismos socioeconômicos, políticos e
ideológicos pelos quais o capital financeiro avança, no cenário
contemporâneo, sobre a produção social do espaço nas metró-
poles brasileiras.
É desnecessário enfatizar os avanços que ocorreram na
teoria urbana, principalmente a partir dos anos 1970, no que se
refere à construção de uma reflexão sobre o papel das cidades no
processo de reestruturação produtiva. Vários autores de inspi-
ração marxista buscaram complementar a abordagem do mate-
rialismo histórico – recortado para a análise do conflito capital/
trabalho ao longo do tempo – com uma leitura que também apro-
fundasse as dimensões espaciais da trajetória capitalista. Prota-
gonistas, como Soja (2001): a geografia e a história da reestru-
turação das metrópoles norte-americanas, principalmente, em
Los Angeles; Harvey (1982): leitura das dimensões espaciais
na obra de Marx; Lefebvre (2001): direito à cidade e à tensão
criativa entre o espaço abstrato do mercado e o espaço diferen-
1
Capítulo publicado originalmente nos Cadernos Metrópole, São Paulo , v. 20,
n. 43, p. 717-742, Dec. 2018
2
Universidade Federal do ABC, Programa de Pós-Graduação em Planejamento
e Gestão do Território. Santo André, SP/Brasil. jeroen.klink1963@gmail.com.
https://orcid.org/0000-0001-6264-001X

275
Jeroen Klink

cial da vida quotidiana; e Castells (1977): dimensão ideológica


da questão urbana, movimentos sociais e o consumo coletivo,
entre os exemplos mais emblemáticos, colocaram a cidade no
centro das atenções em suas pesquisas sobre as transformações
multifacetadas em curso, em escala mundial. Outros trabalhos
retomaram e atualizaram a investigação da economia política
clássica sobre temas como a geração e a apropriação de valor
em torno do ambiente construído, a renda da terra e o papel de
agentes como o proprietário e a incorporadora (RIBEIRO, 1991;
TOPALOV, 1974; ABRAMO, 2009).
Essa literatura proporcionou chaves analíticas importantes
para a economia política e para os estudos urbanos avançarem na
leitura das crescentes contradições socioespaciais que se acumu-
laram nas metrópoles do Estado de bem-estar social nos países
centrais até o colapso do sistema de regulação internacional
de Bretton Woods, no início dos anos 70 do século passado3.
Esses esforços teóricos também proporcionaram uma base para
fazer leituras sobre o ponto de inflexão que ocorreu no período
pós-Bretton Woods, em termos de reescalonamento e reestru-
turação do Estado, neoliberalização dos espaços urbanos via
grandes projetos estratégicos e fragmentação e mercantilização
das redes de infraestrutura, entre os temas mais importantes abor-
dados. Essa agenda de pesquisa também avançou na leitura da
neoliberalização com um processo não linear (com revezamento
entre “rodadas” de recuo e ampliação do Estado), contestado e
marcado pelo hibridismo em função da presença contraditória
de projetos e estratégias estatais de desregulação e reregulação
(BRANDÃO, FERNÁNDEZ, RIBEIRO, 2018; BRENNER, 2004;
GRAHAM, MARVIN, 2001; BARCELLOS DE SOUZA, 2013).
No entanto, a implosão do sistema Bretton Woods signi-
ficou mais do que uma mera mudança nas regras internacio-
nais do jogo monetário e foi acompanhada por transformações
profundas que influenciaram tanto a economia quanto o modo
3
Cabe também ressaltar que uma literatura original explorou a espacialidade
contraditória do modelo de urbanização e industrialização brasileira a partir de
chaves analíticas, como espoliação urbana (Kowarick, 1979); relações imbrica-
das entre o atrasado e o moderno no Brasil urbano (Oliveira, 1972); e o urbano
como espaço privilegiado da acumulação e da miséria (Maricato, 1987), entre
os exemplos paradigmáticos.

276
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

de regulação em escala mundial. A troca para um sistema de


câmbio flexível (transformando as moedas nacionais em objeto
de especulação dos investidores nacionais e internacionais, apos-
tando nas oscilações dos principais preços macroeconômicos,
como o câmbio e a taxa de juros), a desregulação e a liberalização
dos mercados financeiros nacionais, a criação de novas engenha-
rias financeiras como os derivativos e mercados secundários
(veja próxima seção) e, por último, mas não menos importante,
a reemergência das finanças globais4 deixaram profundas marcas
nas cidades. Marcas estas apenas parcialmente analisadas pela
teoria urbana crítica que emergiu nos anos 1970.
As evidências das articulações entre o capital financeiro e o
urbano proliferaram-se no cenário pós-Bretton Woods. As comple-
mentaridades entre o projeto neoliberal; as políticas de austeridade
e o endividamento individual mediado pelo Estado – que reduziu
os subsídios para o consumo coletivo e fomentou a “inclusão finan-
ceira” (BYRNE, 2016; LÓPEZ e RODRIGUEZ, 2011)5 –; a prolife-
ração de estratégias heterodoxas adotadas pelos governos locais
para acessar os mercados de capitais – por exemplo, via a anteci-
pação de recursos tributários (WEBER, 2010) –; e, mais recente-
mente, a própria crise subprime (AALBERS, 2012) mostraram a
diversidade de entrelaçamentos entre as cidades e o capital finan-
ceiro. O ambiente apenas reforçou, se isso ainda fosse necessário,
a necessidade de complementar as perspectivas críticas com uma
visão mais clara acerca das relações imbricadas entre a moeda, o
crédito e as finanças, de um lado, e a dinâmica temporal-espacial
das cidades no capitalismo contemporâneo, de outro.

4
Na expressão de Helleiner (1994), trata-se de uma “reemergência” das finan-
ças globais, após a implosão do sistema Bretton Woods pelos estados nacionais,
impulsionada por pressão do capital financeiro. O Bretton Woods (1945-1973)
tinha imposto fortes restrições referentes à circulação internacional do capital
financeiro e também consolidou um sistema de câmbio fixo, lastreando as moe-
das nacionais ao padrão dólar-ouro. Nesse sentido, o sistema rompeu com o
período anterior, marcado pela efervescência do capital financeiro.
5
Referidos autores argumentam que o keynesianismo espacial – caracterizado
pela presença do Estado na subvenção direta do consumo coletivo das famílias
via o fundo público – evoluiu para um keynesianismo de ativos, ou urbanismo de
ativos, marcado pela delegação da responsabilidade pela provisão de moradia e
serviços urbanos básicos para os mercados de crédito via estratégias de inclu-
são financeira.

277
Jeroen Klink

Harvey (1982) foi inegavelmente um dos primeiros a avançar


nessa direção quando explorou a tendência de a terra transformar-
se em ativo financeiro. Todavia, ao mesmo tempo, deixou em
aberto as condições específicas nas quais isso ocorreria, assim
como os agentes que consolidariam a referida mudança. Na reali-
dade, preencher essas lacunas iria requerer uma compreensão
mais detalhada sobre as mediações entre os mercados fundiário
e financeiro6.
A emergência de uma literatura relativamente nova sobre o
fenômeno de financeirização, em geral, e financeirização urbana,
em particular, deve também ser vista nessa perspectiva (KLINK,
DENALDI, 2014; KLINK, BARCELLOS DE SOUZA, 2017;
ZWAN, 2014; RIBEIRO, DINIZ, 2017). Apontou que os entre-
laçamentos do espaço, tempo e dinheiro/moeda não apenas
tenderam a transformar a terra, mas também a própria condição
urbana. Na visão de alguns dos autores que contribuíram para
essa discussão, o avanço do capital financeiro sobre o urbano
evidenciar-se-ia em processos de reestruturação das infraestru-
turas urbanas, dos recursos naturais e do próprio fundo público.
Na era da capitalização “de quase tudo” (LYSHON, THRIFT,
2007), a cidade teria se transformado em objeto privilegiado
para gerar lucros financeiros.
No entanto, na visão de autores como Christophers (2015),
a agenda de pesquisa sobre financeirização corre o risco de
perder sua relevância política, considerando que ela prioriza a
análise do que a finança faz (no sentido de “esticar seus tentá-
culos” na esfera da vida quotidiana dos outros, na maioria
das vezes atores não financeiros), ao invés de investigar o
que ela é (ibid.). Portanto, pesquisas posteriores sobre o tema
deveriam fazer um esforço na direção de entender melhor o
processo constituinte da financeirização, priorizando os entre-
laçamentos da moeda, do crédito e das finanças na transfor-
mação do espaço, da economia e da sociedade. Isso requer
aprofundar a análise de mercados, em geral, e os creditícios e
financeiros, em particular.

6
De certa forma, autores como Haila (2016) e Jäger (2003) procuraram avançar
nessa direção.

278
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

Christophers (2014a), indiretamente, também ajuda


a entender o avanço paradoxalmente tímido da economia
política na leitura da dinâmica das metrópoles em tempos de
dominância da finança global. Pois a análise dos processos
de alocação e circulação do valor em mercados não tem sido
objeto privilegiado da economia política clássica. Na visão
desse autor, essa última vertente e o próprio Marx sempre
priorizaram as questões relacionadas à geração e produção, em
detrimento da circulação e distribuição do valor, processos estes
que ocorrem nos mercados.
Na realidade, essa relutância da economia política clássica
em dissecar conflitos distributivos em mercados não repre-
senta exatamente um fenômeno novo. Os debates entre Engels
e os socialistas utópicos, quando o primeiro argumentava que
o conflito entre inquilino e proprietário da terra no mercado
fundiário a respeito do nível de aluguel, assim como o conflito
entre o agiota e o tomador do empréstimo no mercado credi-
tício, eram qualitativamente diferentes, para não dizer secun-
dários, em comparação à disputa central que deveria nortear
as análises críticas, isto é, a disputa entre o capitalista detentor
dos meios de produção e o trabalhador em torno da produção
da mais-valia. Na visão de Engels, deslocar o recorte da análise
para os conflitos distributivos nos mercados capitalistas seria
confundir causas e consequências, pecado central do projeto
político e intelectual dos socialistas utópicos como Proudhon
(ENGELS, s/d).
Neste artigo, argumentamos que analisar a construção
social dos mercados, em geral, e dos mercados creditício e finan-
ceiro, em particular, proporciona chaves analíticas importantes
para articular a dimensão tanto da produção quanto da circu-
lação e distribuição do valor nas metrópoles na fase atual do
capitalismo. Mais particularmente, exploramos a potencialidade
de uma literatura específica para desempenhar esse papel de
coadjuvante para enriquecer a economia política da urbanização.
Referimo-nos a uma discussão que se originou na literatura
sobre ciência e tecnologia e na sociologia de ciências. Autores
como Callon (1998) e Mackenzie (2005) elaboraram uma concei-
tuação dos mercados, em geral, e dos mercados financeiros, em

279
Jeroen Klink

particular, como “um conjunto de agenciamentos sociotécnicos,


que podem ser considerados como uma combinação de dispo-
sitivos materiais e técnicos, textos, algoritmos, regras e pessoas
que moldam agenciamento e dão sentido à ação” (BERNDT,
BOECKER, 2009, p. 543)7. Referidas discussões culminaram na
consolidação de uma literatura específica sobre o tema da perfor-
matividade da ciência econômica. O conceito dialoga com a ideia
de que a ciência econômica não apenas descreve a realidade;
também seus conceitos, métricas, dispositivos e modelagens são
ativamente utilizados pelos agentes públicos e privados na cons-
tituição social dos mercados. Berndt e Boeckler (2009, p. 544),
com base em Callon, argumentam que

não são tanto os economistas acadêmicos [chamados por


Callon como ‘os economistas enjaulados’] que fazem com
que ‘o modelo do mundo vira o mundo do modelo’, mas an-
tes os profissionais das disciplinas sociotécnicas, como a con-
tabilidade, a gestão das cadeias de valor ou a consultoria (os
chamados economistas ‘soltos na natureza’), que estruturam
e formatam os mercados, definindo padrões, sistematizando
processos de troca, padronizando mercadorias, calculando
preços, etc.8

Argumentaremos que o conceito de performatividade da


economia é relevante para compreender a constituição dos
mercados creditícios e financeiros, assim como o seu entrelaça-
mento com a dinâmica das metrópoles. Mais especificamente, a
utilização de determinados dispositivos, modelos e técnicas das
ciências econômicas, pelos agentes sociais, na elaboração de
estratégias de financiamento e de práticas de precificação e valo-

7
Tradução nossa do original: “Markets as sociotechnical agencements then have
to be considered as a combination of material and technical devices, texts, algo-
rithms, rules and human beings that shape agency and give meaning to action”.
8
Tradução nossa do original: “It is less that academic economists (termed ‘con-
fined economists’) see to it that the ‘model of the world becomes the world of
the model’ (Thrift, 2000, p. 694), but rather that the practitioners of sociotech-
nical economic disciplines such as accounting, supply chain management or
consulting (termed ‘economists in the wild’), frame and perform markets by
defining standards, surveying exchange processes, benchmarking goods, calcu-
lating prices and so on”.

280
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

ração, dentre os exemplos que serão discutidos, pode contribuir


para gerar novo conhecimento sobre os mecanismos sociais, polí-
ticos e econômicos pelos quais o capital financeiro se articula
com a (re)produção da metrópole9.
Após esta introdução, o artigo estrutura-se em três seções
complementares. Na primeira, discutimos os estudos sociais
das finanças e suas possíveis contribuições para a economia
política da urbanização. Nessa seção apresentamos também
conceitos básicos e métricas da economia financeira, assim
como sua relevância para a economia política a partir da
mediação dos estudos sociais das finanças e da ideia da perfor-
matividade. Na segunda, discutimos dois exemplos desse
potencial de articulação entre as literaturas: um relacionado
com a transformação do fundo público, e outro dialogando
com as disputas financeiras que paulatinamente transformam
o ambiente institucional do setor de saneamento ambiental
na Região Metropolitana de São Paulo. Na terceira seção,
retornamos ao campo da economia política da urbanização,
com breves recomendações para a elaboração de uma agenda
de pesquisa que articule as promessas epistemológicas dos
estudos sociais das finanças com esse arcabouço teórico,
com ênfase em três questões entrelaçadas e relevantes para
o cenário brasileiro contemporâneo, isto é, Estado, fundo
público e austeridade; neoliberalização e transformação da
governança metropolitana; e papel dos modelos e da mode-
lagem no planejamento urbano-metropolitano.

9
Cabe ressaltar, conforme também observa Christophers (2014a), que parte
da literatura sobre a performatividade é objeto de críticas de autores que per-
tencem ao campo da economia política. Os principais pontos de divergên-
cia são a suposta ênfase no individualismo metodológico e a recusa dessa
vertente para efetuar análises estruturais e de relações sociais. No entanto,
de acordo com esse autor, a referida crítica desconsidera a variedade de
abordagens na literatura sobre performatividade, inclusive as que permitem
desenvolver um approach enraizado nas relações sociais e analisar as estra-
tégias materiais e imateriais dos agentes sociais. Neste artigo, acompanho o
método proposto por Christophers (2014a), estruturado em torno de idas
e voltas “da economia política para o mercado” e “do mercado para a eco-
nomia política”. Para um argumento semelhante, veja também Henrikson
(2009) e Berndt e Boeckler (2009).

281
Jeroen Klink

Uma introdução ao vocabulário dos estudos


sociais das finanças urbanas
Cabe, primeiramente, justificar a necessidade de explorar
uma vertente teórica específica, isto é, os estudos sociais das
finanças, para aproximar-se do tema da cidade e do capital finan-
ceiro. Em outras palavras, mesmo que a economia política não
esteja colocando o tema dos mercados no centro de suas preo-
cupações, poder-se-ia argumentar que a economia neoclássica
mainstream já se encarrega de analisar – até de forma exaustiva
– a alocação e distribuição do valor em mercados.
No entanto, a abordagem neoclássica paradoxalmente obscu-
rece a visão mais clara sobre a construção social dos mercados10.
Em parte, isso também remete à desconfiança tradicional da
economia política, mencionada anteriormente, em investigar as
aparências que se revelam a partir dos preços. Pois, ao mesmo
tempo que o mecanismo de preços, como uma verdadeira mão
invisível, transmite as informações necessárias para os agentes
individuais (isto é, os consumidores e produtores) racionalmente
adequarem suas escolhas, a somatória desses comportamentos e
escolhas individuais retroalimenta, no constructo metodológico
neoclássico, uma demanda e uma oferta coletiva que geram novo
preço de equilíbrio. Portanto, na economia neoclássica, o meca-
nismo descentralizado de preços representa o elo entre o indivi-
dualismo metodológico e a eficiência coletiva, ou seja, entre as
partes e a soma, sem que se avance na compreensão do mercado
como construção social11.
O ponto de partida dos estudos sociais das finanças recor-
tados para a ideia da performatividade é que os modelos das
ciências econômicas e da economia financeira não apenas passi-

10
Na visão dos autores Berndt e Boeckler (2009, p. 542), para a vertente neo-
clássica, o mercado não é um problema; ele resolve problemas. Portanto, não
requer ser transformado em objeto específico de investigação.
11
Faulhaber e Baumol (1988) argumentam que mercados perfeitos e compe-
titivos comportam-se de acordo com as descrições e as projeções das ciências
econômicas neoclássicas. Nesse paradigma, qualquer análise ou descrição so-
bre como determinados agentes desenham e executam instrumentos e técnicas
proporcionados pela ciência econômica (isto é, o objeto de análise dos estudos
sociais de mercados) é redundante.

282
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

vamente descrevem o mundo, mas são ativamente utilizados


pelos atores sociais – por meio de uma série de práticas, regras
e normas, técnicas e modelagens – na construção dos mercados
como um conjunto de dispositivos de cálculo e de agenciamentos
coletivos (CALLON, 1998). Nas palavras de Faulhaber e Baumol
(1988), como a engenharia e a medicina, as métricas e técnicas
inventadas pelos economistas contribuem para gerar inovações e
transformar o mundo.
A ideia de performatividade foi inicialmente aplicada no
campo das finanças corporativas, mais especificamente em relação
à previsão do preço das ações na Bolsa de Valores12. MacKenzie
(2005) foi um dos principais protagonistas dessa vertente a partir
de seus trabalhos sobre o modelo de precificação de Black e
Scholes (1972), amplamente utilizado no mercado futuro. Esse
autor argumentou que, considerando que grande número de
operadores estava utilizando o mesmo modelo, simulando-o com
parâmetros que estavam convergindo no que se refere à evolução
das principais variáveis econômicas em função da circulação de
normas, convenções e informações entres eles, as práticas de
comercialização dos produtos financeiros acabavam se compor-
tando de acordo com as projeções do próprio modelo. Trabalhos
semelhantes apontaram que os métodos e técnicas utilizados nos
modelos de avaliação econômico-financeira não apenas mudaram
as normas e convenções para o planejamento e coordenação
da vida econômica, mas gradualmente penetraram também
no desenho e na implementação de políticas culturais, sociais
e ambientais. Chiapello (2015), por exemplo, discute como, no
contexto europeu, as métricas para projetar a capacidade de
gerar renda de determinados ativos no futuro, amplamente utili-
zadas pela economia financeira para a avaliação de projetos e
programas, têm paulatinamente transformado as práticas tradi-
cionais da contabilidade, que estavam estruturadas em torno do
princípio de custos históricos, baseados no momento da aqui-
sição dos bens e ativos no passado.
No que se refere ao objetivo mais específico deste artigo,
cabe primeiramente definir melhor alguns conceitos básicos
12
Ver também Faulhaber e Baumol (1988) para uma visão da economia ortodo-
xa sobre a performatividade.

283
Jeroen Klink

utilizados nos estudos sociais das finanças e qualificá-los, parti-


cularmente à luz da teoria de finanças corporativas que tende
a esvaziar o conteúdo social das técnicas e métricas financeiras.
O primeiro conceito básico é a constituição social de ativos,
uma tradução livre do conceito assetization, utilizado por autores
como Guironnet e Halbert (2015) e Birch (2017) quando analisam
o processo de transformar objetos, como infraestrutura urbana,
moradia e as várias dimensões que compõem a cidade e a própria
vida, em ativos comercializáveis, que geram renda periódica (na
linguagem de Guironnet e Halbert, os chamados tradeable income
yielding assets). Diferentemente da categoria mercadoria (que
também pode ser comprada e vendida), um ativo gera um direito
para receber renda associada à propriedade, conforme eviden-
ciada na propriedade intelectual (que gera patentes) e na proprie-
dade da terra (que gera renda ou aluguel da terra), dentre alguns
dos exemplos mais conhecidos.
A existência de ativos não pode ser naturalizada, como
ocorre na nova economia institucional (MOULAERT, 2005) ou
na economia dos custos transacionais (HAILA, 2016). Ativos
emergem a partir de um processo social conflituoso, que
envolve definir e recortar o escopo, assim como os parâmetros
jurídicos e financeiros de propriedades, como a terra, a proprie-
dade intelectual ou os recursos naturais e os de propriedade
comum. Referidos parâmetros são ancorados nos conceitos da
governança corporativa e na ideia de shareholder value (valor do
acionista), que buscam enquadrar, para o detentor dos ativos, a
redução de risco, a transparência e a confiabilidade das informa-
ções e a maximização dos ganhos associados à renda periódica
e à valorização do investimento inicial (FROUD, SUKHDEV,
WILLIAMS, 2002; GRÜN, 2007). Nesse sentido, a constituição
de ativos também implica uma relação social e mercantil entre
proprietário e usuário que compra o direito de usar determi-
nada propriedade.
Por fim, o próprio processo de neoliberalização cria
ambiente propício para crescente elasticidade e capacidade
de estender a constituição social de ativos para a esfera dos
bens e dos recursos de propriedade comum (os chamados
comuns) (BAKKER, 2007). Exemplo emblemático dessa

284
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

tendência ocorre em casos como a criação de direitos comer-


ciáveis para usar a água, evidenciado em países como o Chile
(SOLANES, 2013).
Um segundo conceito básico refere-se à técnica de capi-
talização, que significa antecipar, ou trazer para o presente,
um fluxo de renda a ser recebido durante certo período no
futuro. A transformação de um fluxo futuro de renda para
o presente requer descontá-lo com a taxa de juros esperada
durante o período considerado. Autores ortodoxos, como
Faulhaber e Baumol (1988) e o próprio Harvey (1982),
observam que o processo de capitalização não é novo. Por
exemplo, os comerciantes italianos e belgas/holandeses já
utilizaram a técnica, por meio da emissão de letras comer-
ciais que eram depositadas e descontadas nos bancos, com
o intuito de antecipar seus recebíveis que se originaram no
comércio internacional entre as cidades renascentistas. No
entanto, o crescimento exponencial do mercado secundário
e dos processos de securitização (nos quais se comercializam
uma variedade de certificados de recebíveis e ativos) no
período pós-Bretton Woods transformou a técnica de capitali-
zação em um instrumento essencial nas finanças corporativas
modernas.
Um terceiro conceito básico é a precificação, que se refere
ao processo no qual a técnica de capitalização se entrelaça
com a circulação de normas, regras e convenções, dentro de
uma comunidade profissional, e com a construção coletiva do
mercado como um conjunto de dispositivos de cálculo e de
agenciamentos. Cabe ressaltar que a precificação está intrin-
secamente relacionada com a prática social de quantificação
em geral (DESROSIÈRES, 2002). No caso específico da preci-
ficação de ativos e propriedades, trata-se de transformar um
fluxo de renda a ser recebido no futuro em estoque de valor
no presente, processo este que é mais aberto e indefinido que
o sugerido pela economia financeira ortodoxa. Mais parti-
cularmente, não há nada inerente à prática social de preci-
ficação e capitalização que não gere, conforme argumenta a
economia mainstream, um preço de equilíbrio que reflita o
valor real das mercadorias e o valor financeiro dos ativos com

285
Jeroen Klink

base nas expectativas racionais dos investidores13. Na perspec-


tiva dos estudos sociais das finanças ou da economia conven-
cional (SANFELICI, HALBERT, 2015), os preços emergem a
partir da circulação de normas, regras, convenções e expecta-
tivas, que são pactuadas no âmbito de determinada comuni-
dade profissional. Referida pactuação é estruturada em torno
de variáveis-chave, como a percepção do risco, a projeção da
renda futura periódica e a taxa de retorno a serem utilizadas
nos cálculos econômicos.
Nitzan e Bichler (2009) levam esse raciocínio acerca do
caráter social da capitalização e precificação a uma direção que
se aproxima da economia política. Mais particularmente, lançam
mão do conceito de capitalização diferencial como poder, isto é, um
processo marcado pelas relações sociais desiguais entre agentes
sociais, que se reflete na capacidade diferenciada para influenciar
a circulação de informações e formação de expectativas (às vezes
exageradas, que eles chamam de hipe) acerca de preços de ativos
e empresas.
Um último conceito básico que precisa ser explicitado diz
respeito ao lucro financeiro associado à compra e venda de ativos
em mercados (secundários) por agentes que buscam maximizar
o ganho de capital (isto é, a diferença entre o preço de venda
e o investimento inicial), reduzir riscos ou obter liquidez. Pois,
qualquer ativo financeiro não apenas gera uma renda periódica
(ancorada no contrato inicial que estabelece os parâmetros jurí-
dicos e financeiros da remuneração), mas também proporciona
possíveis ganhos de capital – isto é, a diferença entre o preço de
compra e de venda do ativo (LAPAVITSAS, 2013) –, opções para
criar liquidez a partir de fixidez (GOTHAM, 2009) e proteção
contra riscos e flutuações nos preços macroeconômicos (como

13
Na terminologia das finanças corporativas, o valor presente líquido representa
a variável que sintetiza a mediação entre futuro e presente, por meio da capita-
lização, com a taxa de juros esperada. Isto é, o valor presente líquido é o valor
do capital que tem de ser depositado hoje para beneficiar-se, como rentista, de
determinado fluxo periódico de renda durante um horizonte temporal pactua-
do no futuro. Em mercados perfeitos e competitivos, o preço de equilíbrio dos
ativos é equivalente ao valor presente líquido. Na visão de Lapavitsas (2011), o
conceito valor presente líquido utilizado nas finanças corporativas corresponde
ao capital fictício adotado por Marx.

286
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

juros e câmbio), por meio de operações de compra e venda no


mercado futuro14.
Os conceitos básicos sintetizados acima não podem ser
dissociados do papel central do Estado, em geral, e do plane-
jamento urbano e regional, em particular, na construção social
de novos mercados creditícios e financeiros, especialmente
quando estes últimos ainda não estão consolidados. Conforme
discutiremos na próxima seção, as técnicas, métricas e mode-
lagens da economia não apenas circulam no âmbito “do
mercado” stricto sensu, mas crescentemente envolvem e mobi-
lizam os profissionais responsáveis pelo planejamento, gestão
e financiamento dos territórios metropolitanos. Sem ter a
pretensão de esgotar esse debate, discutimos brevemente, na
próxima seção, a construção e disseminação de novos meca-
nismos de financiamento para as cidades, via a securitização
do fundo público e os dispositivos financeiros utilizados para
valorar e precificar as infraestruturas urbanas.

As finanças “em ação” nas metrópoles brasileiras


Nas notas que se seguem, analisamos alguns dos meca-
nismos utilizados recentemente na constituição de novos
mercados creditícios e financeiros nas cidades brasileiras. Apre-
sentamos dois exemplos, um baseado na proliferação de estraté-
gias heterodoxas utilizadas por municípios e estados para acessar
o mercado de capitais, o outro recortado para um estudo de caso
mais específico sobre as disputas financeiras e institucionais em
torno da precificação da água na Região Metropolitana de São
Paulo (RMSP). Os dois exemplos mostram variações do mesmo
tema, isto é, de que modo a utilização de métricas, técnicas e
modelos de precificação de ativos, de governança (corporativa)
e de gestão de risco começa a gerar um ambiente de performa-
tividade da economia na construção social de novos mercados
creditícios e financeiros nas metrópoles brasileiras. Os exemplos
14
Na formulação de Hilferding, o “lucro do fundador” emerge a partir de uma
oferta pública inicial de ações da empresa na Bolsa de Valores, em função da
diferença entre o valor obtido na emissão e o investimento inicial (LAPAVIT-
SAS, 2013, pp. 157-158).

287
Jeroen Klink

também apontam o crescente entrelaçamento entre o capital


financeiro e o urbano em áreas além do circuito imobiliário,
tema já discutido com maior frequência na literatura brasileira
(ROYER, 2014; FIX, 2011; SHIMBO, 2012).

Financiamento, fundo público e mercado de


capitais15
Diferentemente do ambiente institucional norte-americano
(WEBER, 2010; PECK, WHITESIDE, 2016), as cidades brasi-
leiras não têm acesso direto ao mercado de capitais, e os limites
para a capacidade de endividamento são regulamentados pela
Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 4
de maio de 2000) e por diversas resoluções do Conselho Mone-
tário Nacional e do Senado.
No entanto, recentes e polêmicas experiências em curso nos
diversos municípios e estados federados sugerem que haja uma
pressão para a constituição de novos mecanismos de financia-
mento para o setor público que o articulem diretamente com os
mercados de capitais. Mais especificamente, a emergência de uma
“nova safra” de empresas estatais, como a Companhia Paulista
de Securitização, a PBH-Ativos S/A, no município de Belo Hori-
zonte, a Companhia Paranaense de Securitização, a InvestPOA
S/A e a Companhia de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos
de Salvador, dentre os exemplos mais emblemáticos, aponta o
surgimento de um modelo, que, inclusive, é objeto de circulação
dentro de uma comunidade profissional de gestores públicos e
privados16. Quais são os principais dispositivos mobilizados pela

15
O material empírico dessa seção é baseado na análise mais detalhada da ex-
periência da empresa PBH Ativos S/A em Belo Horizonte, principalmente a
partir da pesquisa documental dos contratos da empresa e da literatura con-
solidada sobre essa experiência (CANETTIERI, 2017). Os contratos estão dis-
poníveis em: http://pbhativos.com.br/transparencia/contratos-e-convenios/.
Acesso em: 12, 2 e 3 junho 2018.
16
Não é objetivo deste artigo detalhar, para esses casos específicos, os mecanis-
mos pelos quais ocorrem a circulação de modelos, políticas e “melhores prá-
ticas”, também por meio de “agentes de transferência” (BAKER, TEMENOS,
2015; McCANN, 2011). De qualquer forma, para a experiência da PBH-Ativos
S/A cabe destacar, por exemplo, o papel do senhor Edson Ronaldo Nascimento

288
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

nova prática institucional-financeira que norteiam a constituição


dessas empresas e seus vínculos com o mercado de capitais
(CANETTIERI, 2017)?
Primeiramente, os objetivos formais das empresas consti-
tuídas como a PBH-Ativos S/A é “administrar e explorar econo-
micamente ativos”, “auxiliar o tesouro na captação de recursos
financeiros”, “estruturar e implementar operações que visem à
obtenção de recursos junto ao mercado de capitais” e objetivos
específicos correlatos17. Os objetivos mencionados não podem
ser dissociados do quadro mais amplo, marcado pela austeri-
dade fiscal e pela busca de novos recursos. Ao mesmo tempo,
percebe-se uma tendência de acordo com a qual os entes fede-
rados lançam mão de um dispositivo jurídico – isto é, a criação de
empresas estatais supostamente independentes, mas, na prática,
sob controle acionário do município ou estado – com o objetivo
de driblar os limites referentes à capacidade de endividamento
público em vigor no país. Por exemplo, a emissão de títulos
de dívida, lastreados a garantias públicas, é vedada pela Lei de
Responsabilidade Fiscal. No entanto, as empresas estatais de
securitização que foram criadas nos últimos anos desempenham
o papel de pivô na montagem de novas engenharias financeiras
e institucionais que buscam utilizar o fundo público e outros
ativos estatais-urbanos como garantia para acessar o mercado
privado de debêntures18. Na prática, o setor público lança mão
do instrumento de cessão de ativos, como terrenos e imóveis
públicos, empresas estatais de infraestrutura e de saneamento
básico (veja a próxima seção) e o próprio fundo público – via
créditos tributários e não tributários – com o objetivo de capi-
talizar a empresa estatal de securitização, para que esta última
possa acessar o mercado privado de debêntures. No que se refere
aos créditos tributários, estes são repassados pelo ente federado

(ex-presidente), que também foi superintendente da Fazenda de Goiás, secre-


tário de Fazenda de Tocantins, consultor do Fundo Monetário Internacional
(FMI), secretário de Planejamento no Distrito Federal e ex-funcionário da Se-
cretaria de Tesouro Nacional (CNACD, s/d; CANETTIERI, 2017).
17
Citados no art. 22 da Lei n. 10.003, de 25 de novembro de 2010, que criou a
PBH Ativos S/A.
18
Uma debênture é um título de dívida, comercializável no mercado secundá-
rio, que rende determinada taxa de juros fixada em contrato.

289
Jeroen Klink

para a empresa pública de securitização em troca de debêntures


subordinadas, que apenas pagam correção monetária e não são
comercializáveis. Ao mesmo tempo, a empresa pública emite
outro tipo de debênture simples, especificamente direcionada
ao mercado de capitais, com garantias lastreadas aos direitos
creditórios autônomos cedidos pelo ente federado. Essas últimas
debêntures pagam juros de mercado e multa em caso de mora,
cujos valores são corrigidos mensalmente de acordo com as cláu-
sulas do contrato19.
Em segundo lugar, a constituição das empresas estatais
camufla a assimetria na gestão de risco associada ao formato
específico utilizado na emissão dos diversos tipos de debêntures.
De um lado, o ente federado cedendo recursos tributários por
meio da emissão de debêntures subordinadas pela empresa
estatal de securitização (sem pagamento de juros), mantendo sua
responsabilidade operacional pela cobrança dos tributos e dispo-
nibilização das informações aos investidores, de acordo com as
premissas da transparência e da governança corporativa. De
outro, a emissão de debêntures com garantia pública é cercada
por uma série de mecanismos e métricas de monitoramento que
busquem reduzir os riscos para os investidores privados e repas-
sá-los, em última instância, para o ente federado. Por exemplo,
uma conta separada centraliza os recursos tributários, incluindo
os juros e as multas por mora dos contribuintes inadimplentes,
como garantia para os investidores privados. Na experiência da
empresa PBH-Ativos em Belo Horizonte, o contrato também
previu um índice de garantia real de 200%, implicando a neces-
sidade de garantir nessa conta específica, mês a mês, um saldo
devedor de créditos tributários vencidos duas vezes maior que
o valor nominal atualizado não amortizado das debêntures em
circulação (acrescido dos juros e demais encargos). Ainda no
caso da cidade de Belo Horizonte, os planos de anistia fiscal,
implicando descontos para pagamento à vista por contribuintes
inadimplentes, automaticamente geraram obrigações para o
município recompor o fluxo de caixa pactuado no momento da
emissão das debêntures.
19
A empresa PBH Ativos S/A pagou, em 2014, uma taxa de 11% ao ano, mais a
correção monetária, chegando a 23% (CNACD, s/d).

290
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

Em terceiro lugar, o arranjo de empresas estatais “não depen-


dentes”, que lançaram mão de ofertas restritas de debêntures
simples, isto é, envolvendo esforços limitados de colocação desses
títulos, constituiu um ambiente institucional propício à criação
de mercados secundários de debêntures que se situam à margem
do sistema de fiscalização e supervisão do Banco Central, do
Conselho Monetário Nacional e do Senado. Em várias ocasiões,
a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deu anuência a ofertas
restritas desses títulos com dispensa de pedido prévio de registro
de oferta na Bolsa de Valores e de consulta junto ao Banco Central
para que este se pronunciasse quanto a normas e resoluções sobre
o endividamento público20. Referida flexibilização pela CVM foi
incentivada pelas instruções normativas anteriores21, que insti-
tuíram um regime simplificado de oferta, permitindo, após um
bloqueio inicial de 90 dias, a aquisição por até 50 investidores
qualificados (implicando ticket mínimo de R$1 milhão, de acordo
com as regras da Bolsa de Valores) e 75 investidores potenciais
que poderiam ser consultados durante o processo de prospecção
da oferta. Na prática, esse ambiente desencadeou um circuito
paralelo oligopolizado, com poucos players bem-informados,
estruturado em torno de criação e apropriação do lucro finan-
ceiro ou, na linguagem de Lapavitsas (2013) e Hilferding, “lucro
de fundador” (veja também nota 12), associado à emissão e circu-
lação das debêntures no mercado secundário. Nesse sentido, as
“regras do jogo” para a precificação inicial de títulos com o perfil
da PBH-Ativos S/A, que não são negociados no mercado aberto,
remetem às normas e práticas pouco transparentes em vigor na
própria Bolsa de Valores para esse tipo de produto.
Por exemplo, da escritura da primeira emissão de debên-
tures com garantia pela PBH-Ativos S/A em Belo Horizonte,
registrada na Junta Comercial do Estado de Minas Gerais, consta
que a precificação do título segue os procedimentos de bookbuil-
ding, de acordo com o qual o banco coordenador da oferta avalia,
a partir de um processo iterativo junto ao grupo seleto de investi-

20
Casos como a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp), a
Companhia Paulista de Securitização e a Companhia de Saneamento de Minas
Gerais (Copasa – MG) (CNACD, s/d).
21
Particularmente, a instrução normativa CVM/476-09, do ano de 2009.

291
Jeroen Klink

dores interessados e qualificados, a potencial demanda e o preço


do lançamento22.
Por fim, ao mesmo tempo em que surgiram polêmicas e
investigações parlamentares em função do caráter pouco trans-
parente do modelo que se disseminou em vários municípios e
estados, presenciou-se um movimento político buscando propor-
cionar base jurídica mais sólida para a securitização de debêntures
lastreadas em garantias públicas. Essa movimentação culminou
no encaminhamento de Projetos de Lei do Senado (PLS n. 204,
de 2016) e Congresso (PL n. 3.337, de 2015) em torno da regula-
mentação da securitização da dívida ativa (CNACD, s/d).

Débito-crédito, preços e o esvaziamento da


governança compartilhada da água23
Há algum tempo o tema da titularidade do saneamento
básico nas regiões metropolitanas brasileiras tem sido objeto de
disputas entre municípios e estados federados (AVERSA, 2016).
Apesar de o acórdão sobre a Ação Direta de Inconstitucionali-
dade (ADI n. 1.842), referente à titularidade de saneamento
básico no Estado do Rio de Janeiro, ter julgado pela responsa-
bilidade compartilhada entre municípios e estados federados
nas regiões metropolitanas, o cenário atual ainda deixou várias
lacunas e incertezas quanto ao desenho específico do arcabouço
institucional e financeiro que emergirá nos próximos anos.
Ao mesmo tempo, há indícios de que o próprio desenho
da governança territorial compartilhada-participativa, vislum-

22
Mais especificamente, utilizando um intervalo inicial para os preços, o banco-
-líder (coordenador) verifica se a potencial demanda revelada pelos investidores
atende à necessidade de financiamento. Se o interesse do mercado pelos títulos
estiver menor que a necessidade de financiamento, significa que o preço inicial-
mente proposto se mostrou alto demais e sofrerá sucessivos ajustes até a deman-
da por títulos se aproximar da necessidade inicial de financiamento.
23
As informações empíricas dessa seção são baseadas em pesquisa documental
do processo de requerimento de investigação do Serviço Municipal de Sanea-
mento Ambiental de Santo André (Semasa) junto ao Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (CADE, 2018), assim como relatórios da Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP, 2016). Para mais deta-
lhes, ver também Klink (2018).

292
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

brado principalmente pela legislação nacional do saneamento


ambiental (Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007) e pelo referido
acórdão sobre a ADI n. 1.842, julgado pelo Supremo Tribunal
Federal, sofreu um processo de esvaziamento em função do agra-
vamento de disputas institucionais e financeiras, principalmente
entre autarquias municipais e empresas estaduais. Tais disputas
estão paulatinamente sendo estruturadas em torno de métricas,
dispositivos e modelos emprestados da própria economia finan-
ceira e da literatura sobre a governança corporativa.
Nesse sentido, a precificação da água é tema central porque,
do ponto de vista do capital financeiro, a receita tarifária repre-
senta um fluxo de caixa estável e previsível que pode ser capi-
talizado e, portanto, reflete-se diretamente no preço das ações
e no lucro financeiro do acionista. No entanto, existem outras
pressões sociais em torno da precificação da água. Por exemplo,
a política tarifária não pode ser dissociada das questões relacio-
nadas com a arrecadação de recursos e do fundo público. Isso
porque o preço da água está imbricado com o próprio arranjo do
federalismo fiscal e, consequentemente, enraizado em projetos
materiais e discursivos de neoliberalização, de austeridade fiscal
e da necessidade de recuperação dos custos (marginais) (SWYN-
GEDOUW, 2013). Por fim, o debate sobre a política tarifária
dialoga com a agenda estruturada em torno do direto à cidade
e à água, conforme promulgado pelas agências multilaterais, na
linha da Declaração de Dublin (BAKKER, 2007).
Vejamos o caso emblemático da entrada de métricas e
dispositivos financeiros e a transformação do modelo de gover-
nança na disputa entre a Sabesp, uma sociedade anônima, com
ações registradas na Bolsa de Valores de São Paulo e Nova
York, e o Serviço Municipal de Água e Saneamento Ambiental
(Semasa), uma autarquia municipal responsável pelo sanea-
mento ambiental (água, esgotamento, drenagem e resíduos
sólidos) na cidade de Santo André, na Região Metropolitana de
São Paulo (KLINK, 2018).
Em novembro 2015, o Semasa encaminhou, junto ao Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (CADE), um requerimento
para investigação da Sabesp. O Semasa argumentou que, desde
meados dos anos 1990, a Sabesp utilizou sua posição de “quase-

293
Jeroen Klink

monopolista” no mercado de atacado para água no sentido de


suprimir as margens das autarquias municipais. Os sucessivos
desentendimentos sobre o preço correto da água desencadearam
uma escalada no estoque da dívida de vários municípios junto à
Sabesp. Dívidas estas que, na maioria das vezes, acabaram sendo
negociadas de forma extrajudicial, por meio de acordos envol-
vendo perdão em troca da transferência dos ativos municipais
e da responsabilidade pela gestão (incluindo a arrecadação das
tarifas) para a Sabesp, que, por sua vez, já conseguiu negociar
acordos desse tipo e assumir a gestão dos ativos em várias cidades
da RMSP, como Osasco (1999), São Bernardo do Campo (2003)
e Diadema (2013). O Semasa seria a próxima empresa municipal
em uma trajetória marcada por “ofertas de aquisição hostil” e
pelo gradual esvaziamento da governança territorial compar-
tilhada do saneamento em áreas metropolitanas, envolvendo
empresas municipais, concessionária estadual e população.
O Semasa também questionou a posição contraditória da
Agência de Regulação para Saneamento e Energia do Estado de
São Paulo (Arsesp), criada em 2007 para regulamentar e super-
visionar empresas como Sabesp. Antes dessa data, a política tari-
fária da Sabesp e das autarquias municipais foi executada por
meio de decretos, em um contexto marcado pelo vácuo regula-
tório. Apenas no ano 2014 a Arsesp publicou a primeira nota
técnica para orientar o processo de revisão tarifária para o
período 2014-2017. Antes disso, a agência nunca se preocupou
com a investigação das métricas e práticas que substanciaram
o cálculo da tarifa, limitando-se meramente a aprovar reajustes
anuais de acordo com a taxa de inflação, com base na tarifa
estabelecida anteriormente. O Semasa também ressaltou que a
dependência dos recursos financeiros e humanos repassados (“a
conta-gotas”) pelo governo estadual reforçou o quadro de fragili-
dade e falta de autonomia da agência reguladora.
A Sabesp replicou que o requerimento de investigação do
Semasa representou mais uma manobra em uma longa trajetória
marcada pela recusa da autarquia municipal em pagar os verda-
deiros custos da água (CADE, 2018)24,

24
CADE (2018), Arquivo: 167001/2012, p. 3.

294
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

recolhendo, com poucos esforços, os benefícios gerados pe-


los usuários adimplentes dos demais municípios metropoli-
tanos e repassando o ônus associado ao crescimento expo-
nencial da dívida, incluindo multas e juros, para as próximas
gerações da cidade. Considerando que os tribunais agora
iniciaram o processo de cobrança judicial da dívida, a estra-
tégia criativa do Semasa representou uma cortina de fuma-
ça no iminente último estágio do conflito, reescalonando e
redirecionando-o para a esfera de regulação e preservação
das estruturas concorrenciais de mercado.

O argumento principal da Sabesp foi que o dispositivo


do tipo price cap (MOURÃO, 2017), adotado pela Arsesp
para nortear a elaboração e aplicação da política tarifária da
água, não proporcionou qualquer incentivo para as práticas
de discriminação de preços em detrimento das autarquias
municipais. De forma geral, um arranjo price cap estabelece
critérios para o ajuste anual dos preços, levando em consi-
deração itens como inflação, aumento de produtividade
e redução de ineficiências. No caso específico da Sabesp, o
dispositivo foi combinado com uma fórmula para a fixação
do preço inicial – ou preço-base [P0, (baseada em uma versão
adaptada de uma métrica financeira tradicional, isto é, o
custo médio incremental de longo prazo ((average incremental
cost – AIC)]. Referida métrica é disseminada nos principais
livros-texto sobre avaliação econômico-financeira de projetos
de infraestrutura e também amplamente utilizada nas princi-
pais operações de empréstimo para esse setor pelas agências
internacionais como o Banco Mundial (BAHL, LINN, 1992).
É calculada, para determinado horizonte de planejamento,
como a projeção dos custos de investimento e operação e
manutenção por metro cúbico de água, capitalizados com a
taxa esperada de retorno, no mesmo período. A agência regu-
ladora adotou uma taxa de retorno esperada baseada no custo
médio de captação no mercado de ações e de debêntures, que
foi fixada em 8,06%. Na visão da Sabesp, esse teto para a taxa
de retorno transformou qualquer estratégia de discriminação
de preços nos diversos segmentos de mercado em uma espécie
de jogo de soma zero; pois, cobrar mais no atacado implicaria

295
Jeroen Klink

margens menores no varejo (e vice-versa) para, assim, perma-


necer dentro do limite estabelecido para a taxa de 8,06%25.
Em novembro de 2017, o CADE rejeitou e arquivou o reque-
rimento de investigação da Sabesp. O órgão baseou sua decisão
em três argumentos26: (1) a Sabesp não tinha uma posição de
monopolista no mercado de varejo na cidade de Santo André; ao
contrário, em cidades metropolitanas com autarquias municipais
– como o caso de Santo André – esse monopólio é, de fato, prati-
cado localmente pelo Semasa; (2) o CADE acatou o ponto de
vista da Sabesp de que o processo de elaboração, revisão e ajuste
anual da tarifa tinha ocorrido de acordo com diretrizes criadas
e monitoradas por uma agência reguladora independente.
Concordou também que o dispositivo de price cap eliminou even-
tuais vantagens associadas a uma política tarifária, discriminando
mercados a jusante e a montante; e (3) mesmo que o órgão tenha
explicitado que seu papel não era entrar no mérito específico de
questões financeiras de dois players atuando no mercado, o CADE
avaliou que, mais do que uma preocupação com a infração da
ordem econômica pela Sabesp, o requerimento de investigação
foi motivado pela recusa de o Semasa em aumentar o preço de
varejo da água. Aumento este que poderia ter evitado a escalada
de seus níveis de endividamento junto à Sabesp (CADE, 2018)27:

O mercado de água é inelástico no downstream, de modo que


haveria espaço para aumento de preços nesse segmento, es-
pecialmente considerando que cada governo municipal tem
liberdade para definir sua tarifa não tendo que se submeter a
um valor máximo estabelecido por uma agência reguladora,

25
A fórmula utilizada no primeiro ciclo de revisão da tarifa (2014-2018) permi-
tiu a incorporação de investimentos ainda não amortizados (isto é, investimen-
tos efetuados no passado pela Sabesp). Isso representa uma diferença com o
método tradicional de cálculo para o custo médio incremental de longo prazo,
recortado para o futuro, de acordo com o qual apenas os investimentos e os
custos de operação e manutenção novos são projetados e capitalizados para
obter um preço de referência. Essa maneira de calcular aumentou a margem de
manobra da Sabesp sobre a política tarifária, particularmente à luz da falta de
acesso ao sistema de informações da empresa. Ver também: Bahl e Linn (1992)
e Mourão (2017).
26
Cade (2018); Nota técnica n. 13/2017/CGAA3/SGA1/Cade.
27
Nota técnica n. 13/2017/CGAA3/SGA1/Cade, p. 12.

296
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

como é o caso da Sabesp no varejo. Assim, especialmente


estando o monopolista no downstream, premido por dívidas,
seu cálculo de precificação deve considerar o repasse ao con-
sumidor final do preço dos insumos. Contrariamente, o que
parece acontecer no presente caso é uma estratégia do Sema-
sa de diminuir os custos da água que fornece pagando menos
do que o devido à Sabesp, com o intuito de não aumentar o
preço final para o consumidor do município de Santo André.

Não é escopo aqui analisar com mais detalhes o indeferi-


mento do requerimento de investigação da Sabesp (KLINK,
2018). No entanto, parecer do CADE foi notável por várias
razões. Em primeiro lugar, o monopólio absoluto do Semasa no
mercado de varejo para água deve ser relativizado, considerando
a efetiva ameaça de entrada da Sabesp a partir de uma eventual
negociação bem-sucedida em torno do perdão da dívida em troca
de transferência de ativos municipais e de responsabilidade pela
gestão local de saneamento para o sistema estadual. Além disso,
o CADE claramente superestimou o grau de independência da
agência reguladora, que até os próprios mercados e agências de
avaliação como Moody já tinham problematizado (MOODY’S,
2013). Ao mesmo tempo, subestimou o número de brechas no
dispositivo de price cap utilizado para nortear a elaboração e
revisão das tarifas, que poderiam ser exploradas por práticas
criativas de cálculo, particularmente dentro de um cenário
marcado por falta de acesso aos dados e sistemas de informação
da Sabesp. Uma dessas práticas foi criticada pelo Semasa e ficou
também sem resposta no próprio processo do CADE. Mais parti-
cularmente, o Semasa contestou o argumento de que, no formato
atual, a fórmula price cap eliminou as vantagens para a discrimi-
nação de preços no atacado e varejo, pois a eventual eficiência
do dispositivo baseou-se no limite para a taxa de retorno sobre os
ativos (de 8,06%). No entanto, um acréscimo nos investimentos e,
subsequentemente, no estoque de ativos não descartaria maiores
lucros, em valores absolutos, em mercados específicos, mantendo,
assim, a taxa de retorno dentro do limite percentual estipulado
pela Arsesp. Em outras palavras, o próprio formato do dispositivo
price cap proporcionou incentivos para a Sabesp artificialmente
incorporar ativos existentes na fórmula (assetization), a partir de

297
Jeroen Klink

investimentos efetuados e já amortizados no passado. Por fim, o


CADE argumentou que o Semasa, operando como monopolista
no mercado de varejo para água, marcado pela baixa elasticidade
do preço da demanda, deveria ter explorado seu potencial para
maximizar a receita tarifária, repassando, desse modo, a escalada
de preços no atacado, cobrados pela Sabesp para o consumidor
final28. Apesar de extrapolar suas competências como agência de
regulação e supervisão da ordem econômica e, baseando-se no
senso comum – isto é, de uma forma ou outra, que uma dívida
seja paga –, a avaliação do CADE desviou-se da questão central
da necessidade de uma investigação mais detalhada das relações
imbricadas entre a trajetória da governança, a precificação e o
financiamento do saneamento ambiental em Santo André e
outras cidades metropolitanas em situação semelhante. A recusa
para destrinchar tais “conexões desarrumadas” entre a gradual
acumulação de um estoque de dívida e práticas diferenciadas para
precificar a água e gerar fluxos tarifários significou que o CADE
não interpretou devidamente seu papel na preservação de um
sistema compartilhado de planejamento, gestão e financiamento
do saneamento em áreas metropolitanas.
Enquanto isso, as negociações entre o Semasa e a Sabesp
sobre o encaminhamento de um acordo estruturado em torno
do perdão de dívida em troca de transferência de ativos munici-
pais e de responsabilidade pela gestão para o governo estadual
não avançaram, apesar da pressão da Sabesp para equacionar
o impasse.
A própria Sabesp, a partir da Lei n. 16.525, de 15 de
setembro de 2017, aprovada em regime de urgência, em menos
de dois meses, foi objeto de uma reengenharia institucional-
financeira que envolveu a criação de uma nova sociedade
controladora por ações (holding), com participação majoritária
do governo estadual. A sociedade exerce o controle acionário da
Sabesp e tem por objetivo, dentre outros, “deter a titularidade,
administrar e explorar ativos de qualquer natureza, visando
precipuamente à universalização e à eficiência dos serviços de

28
Uma baixa elasticidade do preço da demanda quer dizer que a demanda está
pouco sensível para flutuações no nível de preços. Nesse cenário, um aumento
nos preços gera crescimento da receita tarifária.

298
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

saneamento básico no Estado de São Paulo”, além de “estru-


turar e implementar operações de captação de recursos para
fortalecimento da capacidade de execução de estratégias e
ações no setor de saneamento básico” (Lei n. 16.525, art. 2º,
inciso II). A Sabesp imediatamente envolveu a International
Finance Company – braço especializado do Banco Mundial
para o setor privado – com o pedido para desenhar a estrutura
de capitalização da nova holding, que, por sua vez, subcontratou
o Banco Itaú. Até setembro de 2018, o governo não avançou na
viabilização da sociedade controladora. Ao mesmo tempo, em
9 de março do mesmo ano, recebeu uma carta de um grupo de
investidores com a proposta de aquisição de parte das ações de
propriedade do governo, que serão ainda emitidas pela socie-
dade controladora. O fato gera dúvidas sobre a continuidade de
um projeto financeiro-institucional ancorado na propriedade
majoritária das ações ordinárias do governo estadual. A Medida
Provisória n. 844 (2018), referente à modernização do Marco
Legal de Saneamento (assinada no dia 6 de julho de 2018), e
as notícias mais recentes sobre o apetite do capital financeiro e
das empresas transnacionais, como Coca-Cola e Pepsi, para os
ativos do setor de saneamento ambiental no Brasil, em geral, e
no Estado de São Paulo, em particular, apontam uma pressão
para acelerar a transformação da governança territorial compar-
tilhada para premissas do shareholder value e governança corpo-
rativa (BRASIL DE FATO, 2018; BRITTO, REZENDE, 2017).

À guisa de conclusão: dos mercados para a


economia política
O campo dos estudos sociais das finanças proporciona
insights importantes na análise dos agenciamentos e dispositivos
coletivos de cálculo que articulam métricas, modelos e represen-
tações da economia financeira com a efetiva penetração de novos
mecanismos de crédito e financiamento nas metrópoles. No
entanto, a abordagem dificilmente nos permite uma leitura mais
completa de questões relacionadas com a produção de valor, as
relações sociais e o papel da ideologia, privilegiadas no âmbito
do campo da economia política.

299
Jeroen Klink

Portanto, com base nos exemplos discutidos na seção


anterior e da crescente literatura que busca articular as
vertentes (BERNDT, BOECKLER, 2009; CHRISTOPHERS,
2014b; JESSOP, 2000; KLINK, BARCELLOS DE SOUZA,
2017), sugerimos, à guisa de conclusão deste artigo, ao menos
três eixos temáticos (financiamento, fundo público e austeri-
dade; neoliberalização e restruturação da governança metro-
politana; e o papel da modelagem no planejamento urbano-
metropolitano) para uma agenda de pesquisa marcada pela
complementaridade entre a economia política de urbanização
e os estudos sociais das finanças.

Estado, fundo público e financiamento em tempo


de austeridade metropolitana
Vários autores mostraram o potencial do arcabouço rela-
cional-escalar para analisar a variedade de estratégias e projetos
de neoliberalização dos espaços metropolitanos (BRANDÃO,
FERNÁNDEZ, RIBEIRO, 2018; BRENNER, PECK, THEODORE,
2010). Essa literatura abre perspectivas promissoras para inves-
tigar os processos contraditórios de reestruturação e reescalo-
namento do Estado nacional-desenvolvimentista em regiões
metropolitanas. No entanto, um tema menos explorado nessa
abordagem é o avanço do capital financeiro sobre o fundo
público, mediado pelo próprio Estado (ROYER, 2014). Em um
contexto institucional marcado pelo baixo grau de consolidação
do mercado de capitais, como é o caso brasileiro, a questão
assume relevância ainda maior.
Uma das hipóteses – a ser verificada em pesquisas mais espe-
cíficas – é a centralidade da escala metropolitana como arena
privilegiada para o avanço do capital financeiro. Como se sabe, as
regiões metropolitanas brasileiras são marcadas pela ausência de
um padrão de financiamento que garanta um fluxo de recursos
em um horizonte de longo prazo, previsível e com base transpa-
rente (REZENDE, 2010). Em nenhum momento, o Estatuto da
Metrópole, agora reeditado e esvaziado de suas premissas origi-
nais para orientar o planejamento e a gestão das áreas metro-
politanas, sinalizou que iria avançar no tema de financiamento

300
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

metropolitano29. A lei apenas providencia referências gerais


para a constituição de instrumentos como operações urbanas
consorciadas interfederativas e parcerias público-privadas, ambas
gerando janelas de oportunidade privilegiadas para a inserção de
novos dispositivos, métricas e modelagens financeiros. Por fim, a
nova fase de austeridade que se anunciou a partir dos protestos de
junho de 2013 colocou – paradoxalmente – o Estado no centro da
arena metropolitana para mediar as disputas sobre a alocação do
fundo público entre trabalhadores, o capital portador de juros e
o capital produtivo. A proliferação de evidências dessas disputas
– por exemplo, em torno do Fundo de Investimento do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FI-FGTS) e os recursos tributários
do orçamento-geral – aponta a necessidade de articular algumas
das chaves analíticas discutidas aqui – como a constituição social de
ativos, a capitalização diferencial e sua relação com a precificação
e o lucro financeiro – com a releitura de análises de autores como
Francisco de Oliveira sobre a crise no “padrão de financiamento
público do welfare state”, que operou como “verdadeira ‘revolução
copernicana’ nos fundamentos de categoria de valor como nervo
central tanto da reprodução do capital quanto da força de trabalho”
(OLIVEIRA, 1998, p. 27). Releitura esta ainda mais urgente à luz
do fato de que o padrão de financiamento nacional-de-senvolvi-
mentista das cidades brasileiras nunca se equiparou ao desenho do
keynesianismo espacial nos países centrais.

Neoliberalização e reestruturação da governança


metropolitana
Outro eixo temático promissor de investigação emerge a
partir da articulação entre a literatura sobre a neoliberalização
urbana e as análises sobre o papel das finanças na reestrutu-
ração da governança territorial. Mais especificamente, a litera-
tura sobre governança corporativa e os modelos de shareholder
value apresenta uma relevância específica para o debate brasi-
leiro sobre o planejamento e gestão das áreas metropolitanas,

29
Trata-se da Lei n. 13.683, de 19 de junho de 2018, que altera a Lei n. 13.089,
de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole).

301
Jeroen Klink

em geral, e das funções públicas de interesse comum, em parti-


cular (BAKKER, 2007). Pois, no caso brasileiro, a investigação
da penetração de novas racionalidades e métricas associadas ao
conceito de shareholder value, como a constituição de ativos, assim
como sua capitalização e precificação, requer mediações teóricas
adicionais que mobilizem o próprio Estado nas múltiplas escalas.
Isso se deve ao fato de que a disseminação de estratégias pautadas
pela privatização em setores como saneamento ambiental, no
contexto do esgotamento do nacional-desenvolvimentismo e
do avanço do projeto neoliberal nos anos 1990, ainda foi rela-
tivamente modesta (BAYLISS, 2014). Além disso, setores como
saneamento ambiental ainda são marcados pela presença signi-
ficativa de empresas estatais que foram criadas no auge da fase
tecnoburocrática centralizada do nacional-desenvolvimentismo
e continuam a desempenhar um papel estratégico no planeja-
mento, gestão e financiamento dos sistemas metropolitanos.
Portanto, uma agenda de pesquisa sobre o planejamento e a
gestão das redes de infraestrutura como saneamento ambiental,
em tempos de reemergência das finanças globais, deve priorizar
a tensão sistêmica entre as premissas da governança territorial
compartilhada – mobilizando governos, movimentos sociais
e sociedade civil organizada – e o avanço de uma lógica neoli-
beral específica, pautada pelas métricas, princípios e disposi-
tivos do shareholder value dentro das próprias empresas estatais.
Consequentemente – e diferentemente dos trabalhos referentes
ao avanço direto dos agentes financeiros sobre o planejamento
e a gestão das redes de infraestruturas em países centrais, com
mercados de capitais consolidados (PRYKE, ALLEN, 2017) –
essa abordagem privilegia a análise das disputas institucionais e
financeiras estruturadas em torno das empresas estatais30. Isso
evidentemente não exclui a análise detalhada dos bancos de inves-
timentos e dos demais agentes financeiros, posto que estes estão
presentes e procuram influenciar, com “suas” técnicas, métricas
e modelos, os desdobramentos das disputas e do processo de
reestruturação financeira e societária das empresas estatais na
direção da maximização do lucro financeiro.

Rooyen e Hall (2007) desenvolvem um raciocínio semelhante para o caso das


30

empresas públicas de saneamento no cenário sul-africano.

302
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

Planejamento urbano-metropolitano e ideologia


2.0: de planos para modelos
Conforme argumentamos anteriormente, as ideias da teoria
de performatividade e dos estudos sociais das finanças são rele-
vantes para entender que, sob determinadas circunstâncias, os
“produtos” das ciências econômicas geram “inovações” que
transbordam o próprio campo da economia e contribuem para a
concreta transformação da vida quotidiana na metrópole. Nesse
sentido, no próprio balanço da crise subprime nos EUA elabo-
rado por Morris (2008), a modelagem matemática emerge como
elemento importante na constituição e disseminação das novas
engenharias financeiras que, ao mesmo tempo, dificultaram o
controle e o monitoramento dos riscos sistêmicos nos mercados
hipotecários globais.
Paralelamente, tais ideias precisam ser fundamentadas
numa leitura da economia política sobre como os agenciamentos
– que, além dos agentes financeiros tradicionais, mobilizam
planejadores, consultores, atores do circuito imobiliário, entre
outros exemplos – entrelaçam-se com a reestruturação da própria
política urbana e do planejamento na metrópole.
Nesse sentido, a melhor compreensão de como esses agentes
lançam mão de determinados modelos, métricas, técnicas e
dispositivos financeiros para influenciar o desenho e a implemen-
tação de estratégias de precificação, valoração e financiamento
da metrópole pode contribuir para atualizar a leitura do caráter
iminentemente ideológico do planejamento urbano brasileiro
(VILLAÇA, 1999).
De acordo com essa hipótese, os próprios modelos e métricas
financeiras estariam complementando, e, talvez, paulatinamente
substituindo, o papel ideológico dos planos; pois, os preços que
emergem a partir das relações imbricadas entre determinadas
práticas coletivas de calcular e usar dispositivos financeiros-ins-
titucionais tendem a naturalizar a assimetria de informações, os
mecanismos contraditórios de compartilhamento de riscos entre
o público e privado e as desigualdades sociais, além de produ-
zirem um espaço pós-político que não revela as disputas sobre a
produção e apropriação do valor na metrópole. De certa forma,

303
Jeroen Klink

a análise crítica das diversas etapas de “entrada da finança” na


metrópole, que discutimos ao longo deste artigo, pode se bene-
ficiar dos estudos sociais das finanças para desvendar a natureza
real de tais disputas. Mais especificamente, a constituição de
ativos, a apropriação desigual das métricas utilizadas na preci-
ficação e comercialização desses mesmos ativos pelos agentes
sociais – a capitalização diferencial, na linguagem de Nitzan e
Bichler (2009) – e, por último, mas não menos importante, o
entrelaçamento desses processos com o próprio planejamento
urbano-metropolitano representam arenas espaço-temporais
privilegiadas para construir pontes com a teoria urbana crítica.
Uma abordagem dessa natureza poderia também contribuir
para lançar luz sobre os descompassos entre modelos e arranjos
idealizados de parcerias público-privadas e de instrumentos urba-
nísticos orientados para o mercado, como a operação urbana
consorciada via Certificados de Potencial Adicional de Cons-
trução (Cepac), de um lado, e a política urbana efetivamente exis-
tente a partir da utilização de determinadas práticas de cálculo,
“emprestadas” e adaptadas dos manuais da economia financeira
neoclássica, de outro (KLINK, STROHER, 2017).

Referências
AALBERS, M. B. (Org.) Subprime cities: the political economy of mortgage
markets. Oxford: Wiley Blackwell, 2012.
ABRAMO, P. Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas
cidades brasileiras. São Paulo: Antac, 2009.
AVERSA, M. História institucional do saneamento e da metropolização da
Grande São Paulo: trajetórias perdidas, conflitos inevitáveis. Dissertação
(Mestrado), São Bernardo do Campo, Universidade Federal do ABC, 2016.
BAHL, R. W.; LINN, J. F. Urban Public Finance in developing countries. Wash-
ington: Oxford University Press, 1992.
BAKER, T.; TEMENOS, C. Urban policy mobilities research: introduction
to a debate. International Journal of Urban and Regional Research, v. 39, n. 4,
p. 824–827, 2015.
BAKKER, K. The “Commons” versus the “commodity”: alter-globaliza-
tion, anti-privatization and the human right to water in the global South.
Antipode, v. 39, n. 3, p. 430-455, 2007.
BARCELLOS DE SOUZA, M. Variedades de capitalismo e reescalona-

304
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

mento espacial do Estado no Brasil. Tese (Doutorado), Campinas, Universi-


dade Estadual de Campinas, 2013.
BAYLISS, K. The financialization of water. Review of Radical Political
Economics, v. 46, n. 3, p. 292-307, 2014.
BERNDT, C.; BOECKLER, M. Geographies of circulation and exchange:
construction of markets. Progress in Human Geography, v. 33, p. 535-551,
2009.
BIRCH, K. Rethinking value in the bio-economy: finance, assetization, and
the management of value. Science, Technology & Human Values, v. 42, n. 3,
p. 460-490, 2017.
BLACK, F.; SCHOLES, M. The valuation of option contracts and a test of
market efficiency. Journal of Finance, v. 27, p. 399-417, 1972.
BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. de Q. Escalas espa-
ciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina.
Rio de Janeiro, Observatório das Metrópoles / Letra Capital, 2018.
BRASIL DE FATO. As águas do Brasil: o que vem por aí? São Paulo, Brasil de
fato, 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/06/20/
as-aguas-do-brasil-o-que-vem-por-ai/. Acesso em: 22 jun 2018.
BRENNER, N. New state spaces: urban governance and the rescaling of state-
hood. Oxford: Oxford University Press, 2004.
BRENNER, N.; PECK, J.; THEODORE, N. Variegated neoliberalization:
geograhies, modalities, pathways. Global Networks, v. 10, n. 2, p. 182-222,
2010.
BRITTO, A. L.; REZENDE, S. C. A política pública para os serviços urbanos
de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeiri-
zação, mercantilização e perspectivas de resistência. Cadernos Metrópole, v.
19, n. 39, pp. 557-581, 2017.
BYRNE, M. “Asset Price Urbanism” and financialization after the crisis:
Irland’s National Asset Management Agency. International Journal of Urban
and Regional Research, v. 40, n. 1, p. 31-45, 2016.
CADE – CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA.
Pesquisa processual. Processo 08700.011091/2015-2018, 2018.
CALLON, M. “Introduction: the embeddedness of economic markets in
economics”. In: CALLON, M. (Org.) The law of markets. Oxford: Blackwell,
1998.
CANETTIERI, T. A produção capitalista do espaço e a gestão empresarial
da política urbana: o caso da PBH Ativos S/A. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, v. 19, n. 3, p. 513-529, 2017.
CASTELLS, M. The urban question. Londres: Edward Arnold, 1977.
CHIAPELLO, E. Financialisation of Valuation. Hum Studies, n. 38, p. 13-35,
2015.

305
Jeroen Klink

CHRISTOPHERS, B. From Marx to markets and back again: performing


the economy. Geoforum, v. 57, p. 12-20, 2014a.
______. Wild dragons in the city. Urban political economy, affordable
housing development and the performative world making of economic
models. International Journal of Urban and Regional Research, v. 38, n.1. p.
79-97, 2014b.
______. The limits to financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5,
n. 2, p. 183-200, 2015.
CNACD – COORDENAÇÃO NACIONAL DA AUDITORIA CIDADÃ DA
DÍVIDA. Projetos cifrados. LS 204/2016, PLP 181/2015 e PL 3337/2015 –
visam “legalizar” esquema fraudulento. Brasilia, CNACD, s/d.
DESROSIÈRES, A. The politics of large numbers. A history of statistical
reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2002.
ENGELS, F. “Contribuição ao problema da habitação”. In: MARX, K.;
ENGELS, F. Obras Escolhidas. Volume II. São Paulo, Alfa Ômega, s/d.
FAULHABER, G. R.; BAUMOL, W. J. Economists as innovators: practical
products of theoretical research. Journal of Economic Literature, v. 26, n. 2,
p. 577-600, 1988.
FIX, M. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil.
Tese (Doutorado), Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2011.
FROUD, J.; SUKHDEV, J.; WILLIAMS, K. Financialization and the coupon
pool. Capital & Class, v. 78, p. 119-152, 2002.
GOTHAM, K. F. Creating liquidity out of spatial fixity: the secondary
circuit of capital and the subprime mortgage crisis. International Journal of
Urban and Regional Research, v. 33, n. 2, p. 355-371, 2009.
GRAHAM, S.; MARVIN, S. Splintering urbanism. Networked infrastruc-
tures, technological mobilities and the urban condition. Londres e Nova
York: Routledge, 2001.
GRÜN, R. Decifra-me ou te devoro! As finanças e a sociedade brasileira.
Mana, v. 13, n. 2, p. 381-410, 2007.
GUIRONNET, A.; HALBERT, L. Urban development projects, financial markets,
and investors: a research note. Chairville: École des Ponts Paritech, 2015.
HAILA, A. Urban land rent. Singapore as a property state. West Sussex:
Wiley Blackwell, 2016. HARVEY, D. Limits to capital. Oxford: Basil Black-
well; Chicago: University of Chicago Press, 1982.
HELLEINER E. States and the re-emergence of global finance: from Bretton
Woods to the 1990s. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 1994.
HENRIKSON, L. F. Are financial markets embedded in economics rather
than society? A critical review of the performativity thesis. DIIS Working
Paper. Copenhagen: Danish Institute for International Studies, 2009.

306
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

HILFERDING, R. Finance capital. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1910.


JÄGER, J. Urban land rent theory: a regulationist perspective. International
Journal of Urban and Regional Research, v. 27, n. 2, p. 233-249, 2003.
JESSOP, B. The crisis of the national spatio-temporal fix and the tenden-
tial ecological dominance of globalizing capitalism. International Journal of
Urban and Regional Research, v. 24, n. 2, p. 323-360, 2000.
KLINK, J. On contested water governance and the making of urban financializa-
tion. Exploring the case of metropolitan São Paulo, Brazil. Mimeo. Docu-
mento submetido ao periódico, 2018.
KLINK, J.; BARCELLOS DE SOUZA, M. Financeirizacão, conceitos, expe-
riências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro.
Cadernos Metrópole, v. 19, n. 39, p. 379-406, 2017.
KLINK, J.; DENALDI, R. On financialization and state spatial fixes in Brazil.
A geographical and historical interpretation of the Housing Program My
House My Life. Habitat International, v. 44, p. 220-226, 2014.
KLINK, J.; STROHER, L. The making of urban financialization? An explo-
ration of Brazilian urban partnership operations with building certificates.
Land Use Policy, v. 69, p. 519-528, 2017.
KOWARICK, L. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
LAPAVITSAS, C. Theorizing financialization. Work, employment and society,
v. 24, n. 4, p. 611-626, 2011.
______. Profiting without producing. How finance exploits all of us. Londres
e Nova York: Verso, 2013.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LEYSHON, A.; THRIFT, N. The capitalization of almost everything: the
future of finance and capitalism. Theory, Culture & Society, v. 24, n. 7/8, p.
97-115, 2007.
LÓPEZ, I.; RODRÍGUEZ, E. The Spanish model. New Left Review, v. 69, p.
5-28, 2011.
MACKENZIE, D. An engine, not a camera: how financial models shape
markets. Cambridge: MIT Press, MA, 2005.
MARICATO, E. Política habitacional no regime militar. Petrópolis: Vozes,
1987.
McCANN, E. Urban policy mobilities and global circuits of knowledge:
toward a research agenda. Annals of the Association of American Geogra-
phers, v. 101, n. 1, p. 107-130, 2011.
MOODY’s INVESTORS SERVICE. SABESP: Perspectiva estável.
2013. Disponível em: http://www.sabesp.com.br/sabesp/filesmng.
nsf/15652B2BF431F72083257BAA00719176/$File/PR_Sabesp_ Port.pdf.
Acesso em: 5 maio 2018.

307
Jeroen Klink

MORRIS, C. R. The two trillion dollar meltdown. Easy money, high rollers,
and the great credit crash. Nova York: PublicAffairs, 2008.
MOULAERT, F. Institucional economics and planning theory: a partner-
ship between ostriches? Planning Theory, v. 4, n. 1, p. 21-32, 2005.
MOURÃO, H. S. A precificação dos serviços de saneamento de água e
esgoto e o objetivo social. São Bernardo do Campo. Dissertação (Mestrado),
São Bernardo do Campo, Universidade Federal do ABC, 2017.
NITZAN, J.; BICHLER, S. Capital as power. A study of order and creorder.
Londres e Nova York: Routledge, 2009.
OLIVEIRA, F. de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. São Paulo:
Novos Estudos, 1972.
______. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998.
PECK, J.; WHITESIDE, H. Financializing detroit. Economic Geography, v. 92,
n. 3, p. 235-268, 2016.
PRYKE, M.; ALLEN, J. Financialising urban water infrastructure: extracting
local value, distributing value globally. Urban Studies online first, p. 1-21,
2017.
REZENDE, F. “Em busca de um novo modelo de financiamento metropo-
litan”. In: MAGALHÃES, F. (Org.) Regiões Metropolitanas no Brasil. Washin-
gton: Banco Interamericano de Desenvolvimento, p. 45-98, 2010.
RIBEIRO, L. C. de Q. Da propriedade fundiária ao capital de incorporação: as
formas da produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Tese (Douto-
rado), São Paulo, Universidade de São Paulo, 1991.
RIBEIRO, L. C. de Q.; DINIZ, N. Financeirização, mercantilização e rees-
truturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistê-
micos de acumulação e da teoria do duplo movimento. Cadernos Metrópole,
v. 19, n. 39, p. 351-378, 2017.
ROOYEN, V. C.; HALL, D. Public is as private does. The confused case
of Rand Water in South Africa. Municipal Services Project. Occasional Paper
series, n. 15. Cape Town: Logo Printers, 2007.
ROYER, L. Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas.
São Paulo: Annablume, 2014.
SABESP. Relatório anual. São Paulo: Sabesp, 2016.
SANFELICI, D.; HALBERT, L. Financial markets, developers and the geog-
raphies of housing in Brazil: a supply side account. Urban Studies, jun. 19,
p. 1-21, 2015.
SHIMBO, L. Habitação social de mercado. A confluência entre Estado,
empresas construtoras e capital financeiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.
SOJA, E. W. Postmetropolis. Critical studies of cities and regions. MA (USA);
Oxford (UK); Melbourne (Australia); Berlin: Blackwell, 2001.

308
Metrópole, moeda e mercados. A agenda urbana em tempos de reemergência das finanças globais

SOLANES, M. The Washington consensus, chilean water monopolization


and the peruvian draft water law of the 1990s. Water Alternatives, v. 6, n. 2,
p. 207-217, 2013.
SWYNGEDOUW, E. “Águas revoltas. A economia política dos serviços
públicos essenciais”. In: HELLER, E.; ESTEBAN CASTRO, J. E. (Orgs.)
Política pública e gestão de serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Rio de Janeiro: Editora Fio Cruz, 2013.
TOPALOV, C. Les promoteurs immobiliers: contributions à l’analyse de la
production capitaliste du lodgement en France. Paris: Mouton, 1974.
VILLAÇA, F. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano
no Brasil”. In: DEÁK, C.; SCHIFFER, S. R. (Orgs.) O processo de urbanização
no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999.
WEBER, R. Selling city futures: the financialization of urban redevelop-
ment policy. Economic Geography, v. 86, n. 3, p. 251-74, 2010.
ZWAN VAN DER, N. Making sense of financialization. Socio-Economic
Review, v. 12, 2014. Disponível em: https://www.researchgate.net/publi-
cation/274049273_Making_Sense_of_Financialization. Acesso em: 17 jun
2018.

309
A metrópole para além da nação:
globalização e crise urbana1

Maurilio Lima Botelho2

A consultoria inglesa Oxford Economics, especializada


em estudos econômicos e assessoria ao mercado finan-
ceiro, analisou o desenvolvimento das maiores cidades do mundo,
projetando o crescimento para o ano de 2030. O objetivo era
avaliar as tendências de mercado em cidades de todo o planeta.
Tendo por base os dados de 2013 e acompanhando o seu presu-
mido crescimento, a consultoria chegou a um resultado que não
é exatamente original, mas desperta reflexões por enfatizar a
concentração de riquezas nas principais metrópoles mundiais:
em 2030, as 750 maiores aglomerações urbanas do mundo terão
35% da população mundial (2,8 bilhões de habitantes) e serão
responsáveis por 61% do PIB mundial (80 trilhões de dólares)
(OXFORD ECONOMICS, 2018, p. 2).
Interessados principalmente em informações como o incre-
mento no consumo nessas localidades (mais 18 trilhões de dólares
nesse período), o envelhecimento populacional (um acréscimo de
15 milhões de idosos), a demanda por escritórios (540 milhões de
metros quadrados) e uma necessidade de criação de 240 milhões
de empregos, os consultores da Oxford Economics, economistas
em sua maioria, preocupavam-se em formular estratégias empre-
sariais para explorar essas “oportunidades”. Entretanto, no meio
dessas projeções, há elementos que, além de dar conta da concen-
tração de renda, também apontam para problemas graves a serem
enfrentados por esse universo urbano hipertrofiado.
Em 2030, segundo essas projeções, as 750 maiores concen-
trações urbanas terão ampliado sua participação no PIB mundial
1
Capítulo publicado originalmente nos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 20, n.
43, p. 697-716, Dec. 2018.
2
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia.
Rio de Janeiro, RJ/Brasil. mauriliolimabotelho@gmail.com. https://orcid.
org/0000-0001-5807-262X.

311
Maurilio Lima Botelho

em cerca de 7%, enquanto a população, nesse período, terá


aumentado pouco mais de 5%.
Portanto, além de apresentar quase o dobro da riqueza em
proporção à população, esse conjunto das maiores cidades do
mundo deve ampliar ainda mais sua fatia na renda mundial.
Compostos principalmente por grandes regiões metropolitanas
(São Paulo, Paris, Moscou), algumas megalópoles (Tóquio) e
até mesmo por megacidades (Lagos, Kinshasa e Mumbai), os
tecidos urbanos gigantescos são muito diversos e, por isso,
também apresentam concentração de renda ainda mais expres-
siva entre eles (ibid.).
Cerca de um quarto de todo o incremento em riqueza
no período de 2012-2030 será concentrado em apenas 20 das
maiores cidades. Ou seja, 8,7 trilhões de dólares a mais no PIB
das cidades mais ricas do mundo. Isso revela um drama nessas
imensas máquinas urbanas de produção de riqueza, pois, mesmo
com a industrialização assustadora das cidades chinesas, a
expansão econômica na Índia e uma presença cada vez maior
de centros urbanos do Oriente Médio e América Latina nas
primeiras posições, permanece uma forte concentração da
riqueza nas economias centrais3. Nos termos facilmente criticá-
veis da projeção estatística, o cidadão médio de Pequim deverá
levar ainda 24 anos para atingir o padrão de consumo comparável
ao de Nova York (mantidas as taxas de crescimento atuais). Um
morador de Nova Déli, por sua vez, levará 50 anos para chegar
a esse mesmo padrão. Lagos, uma das cidades de fratura social
mais grave em todo o mundo hoje, terá que percorrer 150 anos
para atingir esse nível de consumo (ibid., p. 4).
É evidente que esse desdobramento do padrão de consumo
em termos temporais não serve em nada para antecipar o
futuro dessas cidades – presta apenas para uma indicação da
brutal diferença do nível de vida hoje. Ao projetar esse tipo de
3
Um relatório mais antigo da consultoria inglesa PricewaterhouseCoopers tam-
bém apontava uma crescente importância das aglomerações urbanas da periferia
do capitalismo entre as maiores do mundo, mas a concentração de riquezas entre
as cidades globais teria pouca redução. No ranking das 100 cidades com maio-
res PIBs do mundo, apenas o G7 teria, em 2025, 36 cidades, enquanto todas as
“economias emergentes” teriam 48 aglomerações urbanas. Em 2008, essa relação
estava entre 41 e 39 cidades, respectivamente (2009, p. 25).

312
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

variável na história futura, os economistas estão pressupondo a


manutenção de um ritmo atual de crescimento econômico que
é insustentável4.
O estudo da Oxford Economics até ressalta o desafio que será
a geração de empregos para países africanos cuja população tende
a crescer vertiginosamente nos próximos anos, particularmente a
população jovem que pressionará o mercado de trabalho. Entre-
tanto, tudo isso é visto como uma “dádiva” (gift), na medida em
que representa incremento de população economicamente ativa.
Parte-se aqui de outra preconcepção altamente questionável: a
de que, inevitavelmente, a expansão econômica deve promover a
criação de empregos. Um dos principais índices do relatório The
Global Cities 2030 não estimula uma reflexão sobre esse tema em
seus próprios autores: em 2030, as 750 maiores cidades do mundo
terão 30% dos empregos do planeta, um índice proporcional-
mente inferior à população que apresentarão (35%), assim como
muito abaixo da riqueza mundial nelas concentrada (61%). Isso
é um indício claro de que, no capitalismo avançado, a produção
econômica não é necessariamente acompanhada de uma criação
de oportunidades de trabalho: há uma desconexão cada vez maior
entre produção e trabalho. Mais ainda: como a riqueza tende a se
concentrar, há um grau elevado de exclusão social, mesmo em
meio a cidades globais de alta renda. Por último, é preciso ressaltar
que, diferentemente de um passado em que o êxodo rural-ur-
bano representava quase sempre elevação do nível de vida para
os indivíduos implicados, o processo de “urbanização planetária”,
hoje, significa desafios incalculáveis para os novos moradores das
4
Tendo por base os preços e os dados de 2012, o estudo segue um padrão de
crescimento econômico que não se sustenta, por exemplo, para a economia chi-
nesa, que teve uma desaceleração brutal em seu crescimento econômico nos úl-
timos anos. O mesmo poderia ser dito em relação a outros “países emergentes”
que colapsaram com a explosão da “bolha das commodities”. O estudo concentra
sua projeção de crescimento do PIB nas aglomerações urbanas periféricas entre
taxas de crescimento que vão de 4% a 10% (OXFORD ECONOMICS, 2018, p.
6). Essa observação vale, ainda, para a projeção realizada pela Pricewaterhouse-
Coopers no relatório UK Economic Outlook, que partia de taxas de crescimento
bastante elevadas para as economias emergentes. Como apontou um dos res-
ponsáveis pelo estudo: “Cidades como Xangai, Pequim e Mumbai, por exemplo,
estão projetadas para crescer em torno de 6% a 7% ao ano em termos reais,
enquanto cidades como Nova York, Tóquio, Chicago e Londres crescem apenas
cerca de 2% ao ano” (EMERGING..., 2009).

313
Maurilio Lima Botelho

cidades: não apenas o problema de desemprego e informalidade


crescente ou a violência e militarização dos espaços urbanos, mas
principalmente uma exposição a problemas ambientais que só
agora começam a ser tematizados.
Nosso objetivo, neste artigo, é refletir sobre alguns desses
aspectos a seguir, principalmente a relação entre produção de
riqueza e o desemprego nas metrópoles (seção 1), a exclusão
social crescente nas cidades globais e seus impactos sobre as suas
respectivas economias nacionais (seção 2). Por fim, discutimos
rapidamente a própria concepção atual de metrópole a partir da
reflexão realizada.

O desemprego nas metrópoles: desconexão entre


produção e trabalho
A evidente desproporção entre a riqueza produzida nas
cidades e a oferta de postos de trabalho aí presentes foi captada
pela projeção da Oxford Economics. Estamos diante de uma
incomum condição na qual algumas das principais cidades do
mundo, as mais ricas do ponto de vista de acúmulo e produção
de riquezas, apresentam taxas de desemprego acima da média de
suas respectivas economias nacionais.
No Brasil, essa situação é evidente, hoje, com as metrópoles
mais ricas do país apresentando taxas de desocupação acima da
média nacional. Assim, as regiões metropolitanas de Belo Hori-
zonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo apresentaram taxas
respectivas de desocupação de 15,4%, 13,1%, 14,9% e 14,6%,
diante de uma média de 12,7% no país em 20175. Esses números
ainda são pouco expressivos porque muitas dessas cidades, parti-
cularmente o caso do Rio de Janeiro, têm um elevado nível de
informalidade, o que significa que o desemprego é apenas um
dos sintomas de pobreza e exclusão social. Isso é ainda mais
atual porque a maior parte da população economicamente ativa
nacional já está em condição informal (sem carteira assinada ou
5
Esses números são da PNAD Contínua do IBGE do quarto trimestre de 2017,
compreendendo as médias desse ano. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.
br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pnad_continua/de-
fault_comentarios_sinteticos.shtm. Acesso em: maio 2017.

314
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

como “trabalhador por conta própria”)6. Ainda concentrando


boa parte da produção industrial do país e grande parcela das
atividades financeiras, as metrópoles mais dinâmicas apresentam
um número de excluídos do mercado de trabalho mais amplo,
sinal de uma dissociação entre produção de riqueza e oportuni-
dades de emprego.
No resto do mundo a situação repete-se nas grandes aglo-
merações urbanas de diversos e importantes países. Em 2016,
a França fechou o ano com uma taxa de desemprego nacional
de 9,5%, mas sua capital, autêntica cidade global por seus atri-
butos culturais, políticos e financeiros, possuía uma taxa de 12%.
Entretanto, esse índice esconde a profundidade da pobreza e
da exclusão: a desocupação entre jovens é gigantesca e, entre a
população de imigrantes ou seus descendentes, as taxas saltam. A
comuna de Clichy-sous-Bois, parte do Departamento do Sena, um
subúrbio principalmente de imigrantes na metrópole parisiense,
tem 40% de jovens sem emprego7. Isso cria uma constante tensão
política e social: não é um acaso que essa localidade tenha sido
um dos epicentros das grandes revoltas dos banlieus em 2005.
Na Alemanha, o principal “motor econômico” da Europa e
cuja economia parece, aos olhos do mundo, sempre inabalada,
também reproduz essa discrepância entre índices nacionais e
escassez de emprego em seus centros urbanos. Em 2017, o país
apresentou uma taxa oficial de desemprego baixíssima para seus
padrões nas últimas décadas – atingiu 5,7% na média nacional.
Entretanto, mesmo desconsiderando que as metodologias cons-
tantemente renovadas estejam reduzindo a capacidade de aferir a

6
No Brasil, ao fim de 2017, temos 34,31 milhões de pessoas “por conta própria”
ou sem carteira, quase 1 milhão acima dos 33,32 milhões ocupados em vagas de
empregos formais. (Trabalho sem carteira assinada e “por conta própria” supera
pela primeira vez emprego formal em 2017, aponta IBGE, G1, 31 jan 2018. Dis-
ponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/trabalho-sem-carteira-assi-
nada-e-por-conta-propria-supera-pela-1-vez-emprego-formal-em-2017-aponta-ibge.
ghtml. Acesso em: abr 2018). Se acrescentarmos o fato de que, após a reforma
trabalhista e a lei de terceirização, há uma tendência para a troca de empregados
formais por informais, o quadro torna-se ainda mais dramático.
7
Subúrbio de Paris tem vista privilegiada, mas desemprego evidencia décadas
de fracassos, O Globo, 18 março 2016. Disponível em: https://oglobo.globo.
com/economia/suburbio-de-paris-tem-vista-privilegiada-mas-desemprego-evi-
dencia-decadas-de-fracassos-15642242. Acesso em: maio 2018.

315
Maurilio Lima Botelho

real exclusão do mercado de trabalho8, essa taxa de desemprego


começa a ter tons cinzentos quando se observam as maiores
cidades, conforme explica Zeuner, da KfW.

O mercado de trabalho alemão está muito desequilibrado,


com fortes diferenças em função das regiões e setores.
Enquanto na Baviera ou em Baden-Württemberg podemos
falar de pleno emprego, com uma taxa de cerca de 3% (as
cidades-estados) de Berlim e Bremen ainda estão longe, com
taxas de 8% ou 10%9.

Na Alemanha, como no Brasil, a taxa de desemprego


esconde um aspecto muito mais problemático que são as variadas
formas de subocupação e empregos precários cuja função têm
sido a de garantir minimamente a sobrevivência:

A precariedade em que vivem muitos trabalhadores é, porém,


o lado sombrio do modelo alemão, apresentado por vezes
como exemplo. Trabalho barato, minijobs, trabalho em part-
time e temporário [...] Essas formas de trabalho ocupavam,
em 2012, oito milhões de alemães10.

8
Taxa de desemprego na Alemanha é manipulada, Deutsche Welle, 4 jan. 2018.
Disponível em: http:// www.dw.com/pt-br/taxa-de-desemprego-na-alemanha
-%C3%A9-manipulada/a-42014674. Acesso em: maio 2018. Robert Kurz já ha-
via alertado para a prática de “truques” para esconder os dados alarmantes
de desemprego, algo não restrito à Alemanha: “Essa maquiagem do desempre-
go em massa com ajuda de truques estatísticos é comum em todos os países
que ainda se utilizam de estatísticas de desemprego. Na República Federal da
Alemanha, essa maquiagem pode ser vista pela mudança na apresentação do
índice que, até alguns anos atrás, ainda era feita em relação ao número total de
empregados, isto é, de assalariados. Entrementes, já se faz a relação com o nú-
mero total da população economicamente ativa, incluindo todos os autônomos,
os empresários e a força de trabalho de família integrada para embelezar a es-
tatística. Esses são apenas exemplos; os truques mudam de estado para estado,
de país para país, mas são aplicados” (KURZ, 2004, p. 17-18).
9
Desemprego na Alemanha fecha 2017 com 5,7%, mínimo recorde, AFP, 3
jan. 2018. Disponível em: http://anoticia.clicrbs.com.br/sc/mundo/noti-
cia/2018/01/desemprego-na-alemanha-fecha-2017-com-5-7-minimo-recor-
de-10109631.html. Acesso em: abril 2018.
10
O lado sombrio da baixa taxa de desemprego alemã, Diário de Notícias, 21 set.
2013. Disponível em: https://www.dn.pt/dossiers/mundo/eleicoes-na-alema-
nha-2013/noticias/interior/o-lado-sombrio-da-baixa-taxa-de-desemprego-ale-
ma-3432474.html#. Acesso em: abril 2018.

316
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

O mesmo ocorre no estado mais rico do mundo: a Cali-


fórnia, nos EUA, normalmente apontado como uma das dez
maiores economias do mundo se avaliada isoladamente.
Envolvendo cidades como São Francisco, Los Angeles e
San Diego, boa parte do estado poderia ser tomada como uma
única megalópole (nomeada como SanSan pelos limites norte
e sul). Aí se concentra o núcleo do complexo industrial-militar
nos EUA, assim como o principal polo de tecnologia microele-
trônica do mundo (Vale do Silício). Entretanto, há alguns anos
(2012), a Califórnia apresentava uma taxa de desemprego de
10,5%, enquanto a média nacional era de 8,3%. Suas metró-
poles expressavam um drama ainda maior: sete das oito regiões
metropolitanas dos EUA com taxas de desemprego acima de
15% estavam no Estado da Califórnia. Esse quadro assustador
possuía uma síntese em Los Angeles, a capital do estado e
centro de uma região metropolitana com mais de 10 milhões
de pessoas e 88 municípios:

Demolidoras são as conclusões do relatório ‘A Time for Tru-


th’, elaborado pela Los Angeles 2020 Comission, uma comis-
são independente formada por 13 cidadãos e presidida pelo
ex-Secretário de Comércio, Mickey Kantor.
‘Los Angeles mal se move, quando o resto do mundo marcha
para diante. Estamos falhando em nos adaptar às realidades
do século XXI e estamos nos convertendo em uma cidade em
declive’. Assim começa o relatório, e continua com um devas-
tador olhar para o que considera as marcas ‘do que um dia
foi o lugar onde acontecia o futuro e agora vive no passado’.
A primeira dessas marcas é a pobreza, com 40% da popula-
ção vivendo na miséria, uma percentagem que é a mais alta
entre as grandes cidades dos EUA. Segundo o relatório, isso
é produto de ‘duas décadas de lento crescimento do empre-
go, com taxas de desemprego muito acima das do resto da
nação, e do congelamento dos salários, com 28% dos traba-
lhadores que não recebem um valor suficiente para viver’11.

11
Los Angeles, uma cidade em declive, El Pais, 10 jan. 2014. Disponível em: https://
brasil.elpais. com/brasil/2014/01/08/internacional/1389219779_971330.html.
Acesso em: maio 2018.

317
Maurilio Lima Botelho

É verdade que a situação parece ter amenizado nos EUA nos


anos posteriores à publicação desse relatório citado, mas, longe
de representar uma melhoria social amparada em crescimento
econômico, as taxas decrescentes de desemprego são muito mais
o resultado de uma crescente informalização (tendência mundial),
da desistência na busca por emprego (o desalento comum a quem
enfrenta o desemprego de longo prazo) e uma nova bolha finan-
ceira que ameaça romper a qualquer momento. Os dramáticos
relatos do economista Lewis (2011) sobre os efeitos da explosão
da bolha imobiliária de 2007/2008 nas municipalidades califor-
nianas – com paralisia de serviços públicos, demissão massiva
de membros da polícia e bombeiros, bibliotecas fechando e
expansão da miséria – ameaça se repetir e se agravar.
Cidades do cinturão do Sol, Paris, Berlim, Rio de Janeiro e
São Paulo – os exemplos poderiam ser multiplicados e indicam
uma desconexão progressiva entre a produção de riqueza nas
metrópoles mais ricas do mundo em relação à oferta de trabalho.
Trata-se de uma tendência inerente ao capitalismo em uma era
de crise estrutural (BOTELHO, 2018). O declínio acentuado do
capitalismo tem como um dos seus pressupostos a progressiva
exclusão da força de trabalho dos processos produtivos, resultado
das transformações tecnológicas recentes, que estão transitando
da Terceira Revolução Industrial (energia nuclear, microele-
trônica, biotecnologia) para uma Quarta Revolução (inteligência
artificial, nanotecnologia, bioengenharia).
Mais importante do que um registro dos impactos econô-
micos da revolução tecnológica sobre o mercado de trabalho, é
importante ressaltar a ruptura interna provocada na economia
de mercado pelas inovações dos últimos 50 anos. Não temos
apenas um mero “desemprego tecnológico”, de manifestação
temporária, decorrente da aplicação das renovações técnicas
aos processos produtivos. A revolução microeletrônica provocou
uma dissociação entre o ritmo de crescimento da economia e
a geração de empregos, ou seja, a velocidade de racionalização
dos processos de produção não é mais acompanhada por uma
expansão dos mercados. Esse fenômeno foi observado já na
década de 1970, exatamente quando o ciclo de expansão econô-
mica global do pós-guerra se esgotou:

318
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

Em contraste direto com o desenvolvimento nos anos 50 e


ainda nos anos 60, nos anos 70 as taxas de crescimento da
produtividade do trabalho estão acima das da produção −
com a consequência de que a força de trabalho liberada pelo
progresso técnico não mais pode ser absorvida pela expan-
são da produção (OFFE, 1989, p. 92).

Assim, se no seio da produção capitalista temos um contraste


entre a produção de mercadorias e a diminuição de empregos
(jobless growth), nos centros urbanos mais importantes do mundo
há uma contradição crescente entre acumulação de riquezas e
desemprego. As maiores cidades mundiais, as metrópoles mais
ricas e, particularmente, as cidades globais são a vanguarda de
um processo em que a força de trabalho se torna progressiva-
mente descartável, na mesma proporção em que as riquezas se
acumulam em poucas mãos e locais12.

As cidades globais: desconexão entre as capitais da


riqueza e a economia nacional
Na conhecida definição do grupo de pesquisas Globalization
and World Cities (GaWC), que reúne principalmente pesquisa-
dores da Universidade de Loughborough, no Reino Unido, uma
cidade global (cidade mundial, na tradução literal) é um centro
urbano com importância e influência global determinada, entre
outras características, pela existência de uma Bolsa de Valores

12
“[...] o desemprego em massa começa a lançar uma sombra realmente ame-
açadora, não somente sobre a vida socioeconômica de um ou outro país, mas
sobre todo o sistema do capital. Pois uma coisa é imaginar o alívio ou a remo-
ção do impacto negativo do desemprego em massa de um, ou mesmo mais de
um, país particular mediante a transferência de sua carga para alguma outra
parte do mundo, ao ‘melhorar a posição competitiva’ do país ou dos países em
questão: um remédio tradicional nos textos, de que até hoje se ouve falar. Entre-
tanto, outra coisa completamente diferente é sonhar com essa solução quando
a doença afeta todo o sistema, estabelecendo um limite óbvio ao que um país
pode fazer para ‘mendigar ao vizinho’, ou mesmo o resto do mundo, caso se
trate do país hegemônico mais poderoso, caso dos Estados Unidos no período
posterior à Segunda Guerra Mundial. Sob essas circunstâncias, ativa-se a ‘explo-
são populacional’, sob a forma de desemprego crônico, como um limite absoluto
do capital” (MÉSZÁROS, 2002, p. 333).

319
Maurilio Lima Botelho

de grande magnitude financeira, com sedes de grandes corpo-


rações multinacionais, sistema aeroportuário amplo, setor sofis-
ticado de serviços e escritórios, centro de tecnologia avançada e
museus de referência.
Os pesquisadores do GaWC hierarquizam as cidades globais a
partir dessas características. Entre as cidades que se destacam pela
atuação de empresas líderes mundiais em finanças, contabilidade,
propaganda, direito e administração estão Londres, Nova York,
Hong Kong, Paris, Tóquio, Singapura, Shanghai, Pequim, Sidnei
e Dubai. Muitas outras cidades também aparecem, mas têm
posições periféricas de acordo com a classificação (TAYLOR,
2018). Como se vê, o critério de divisão mundial entre centro e
periferia não tem prioridade sobre a hierarquização das cidades
globais: entre as dez maiores cidades do ponto de vista corpora-
tivo, cinco pelo menos estão fora do tradicional Primeiro Mundo
(Hong Kong, Singapura, Shanghai, Pequim e Dubai).
Esse é um importante registro que nos aproxima de uma
das principais faces da relação contemporânea entre economia
e as cidades globais: a desconexão do tecido urbano local com a
economia nacional. Um dos efeitos dessa ruptura é a emergência
de grandes centros urbanos, com importância crescente na arena
internacional, em países que persistem com uma brutal desigual-
dade de renda, miséria e problemas sociais básicos. Entretanto,
isso não é apenas uma tendência de polarização social emer-
gente no tradicional Terceiro Mundo, pois grandes metrópoles
do mundo desenvolvido dissociam cada vez mais sua ascensão
econômica do restante de seu território nacional.
A autora que melhor identificou essa característica absolu-
tamente central das chamadas cidades globais foi Saskia Sassen.
Mais do que uma consequência, essas cidades são fundamentais
no processo de globalização:

À medida que a economia global se expandiu nas duas


últimas décadas, assistimos à formação de uma rede crescen-
te de cidades globais, hoje somando em torno de 40, pelas
quais a riqueza econômica e os processos nacionais se arti-
culam com uma proliferação de circuitos globais de capital,
investimento e comércio. Essa rede de cidades globais consti-
tui um espaço de poder que contém as capacidades necessá-

320
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

rias para as operações globais de empresas e mercados. Ela


atravessa parcialmente a velha divisão Norte-Sul e constitui
uma geografia de centralidade, que atualmente também in-
corpora as principais cidades do Sul global, ainda que a hie-
rarquia dessa geografia de centralidade seja bastante nítida.
Em seu nível mais concreto, essa nova geografia é o terreno
em que diversos processos da globalização assumem formas
materiais e localizadas. Uma análise das cidades globais e
suas redes nos ajuda a entender como a centralidade espa-
cial e organizacional é institucionalizada na economia glo-
bal (SASSEN, 2010, p. 24).

Entretanto, essas cidades, partes ainda ativas na integração


global de mercados cada vez mais restritivos, aproveitam-se de
uma condição tecnológica e econômica de ligação direta que
rompe com a linearidade de escalas (local, regional, nacional,
global). As cidades globais mobilizam fluxos transnacionais que
ultrapassam as tradicionais hierarquias que compreendiam os
antigos Estados-Nações.

A cidade, aqui, não é uma unidade limitada, mas uma estru-


tura complexa que pode articular uma variedade de processos
transfronteiriços e reconstituí-los como uma condição parcial-
mente urbana. Além disso, esse tipo de cidade não pode ser
simplesmente localizado em uma hierarquia escalar que o co-
loca abaixo do nacional, do regional e do global. Ele é um dos
espaços do global, e o aciona diretamente, muitas vezes pas-
sando por cima do nacional. Algumas cidades talvez tenham
tido essa capacidade muito antes da era atual, mas, hoje em
dia, essas condições se multiplicam e amplificam, até o ponto
em que podem ser lidas como algo que contribui para uma era
urbana qualitativamente diferente (Ibid., p. 89).

Um traço importante dessa oportunidade criada pelas


condições tecnológicas superdesenvolvidas (microeletrônica,
rede de informações globais, mercados financeiros conectados
em tempo real etc.) é que as localidades mais pujantes, do ponto
de vista da produção de riqueza, podem se conectar sem precisar
da intermediação de uma hinterlândia empobrecida ou descar-
tável. Não vivemos apenas uma competição entre cidades globais

321
Maurilio Lima Botelho

(embora isso seja cada vez mais uma pressão mundial dos inves-
tidores para a atração de investimentos), mas também uma cola-
boração direta entre essas aglomerações urbanas, pois a economia
capitalista hoje necessita de uma infraestrutura global em pontos
de conexão privilegiados13.
Na verdade, até mesmo o conceito de polo de crescimento,
com sua região, hinterlândia ou uma área de influência polari-
zada por esse núcleo, precisa ser rediscutido (PERROUX, 1975).
Sem dúvida que a concentração de investimentos, de riqueza e de
oportunidades nas grandes metrópoles cria uma força de atração
sobre o território ao seu redor. Mas é a desconexão territorial que
precisa ser refletida hoje com as cidades globais: essa desconexão
se manifesta na relação com o interior da própria metrópole e,
sobretudo, na sua relação com o território nacional.
Primeiro, como resultado de uma profunda mudança
de época, isto é, de declínio da capacidade de criação de
empregos da produção capitalista, a concentração de inves-
timentos nas cidades globais não representa necessaria-
mente geração de riqueza para todos, mas quase sempre uma
concentração de renda que se manifesta por meio de uma
ampliação de desemprego e, principalmente, por uma expres-
siva segmentação do mercado de trabalho entre atividades
econômicas avançadas e serviços secundários que dissolvem
a antiga classe trabalhadora.
Assim, o que temos é principalmente uma cidade partida
entre uma minoria integrada aos circuitos globais da produção
das riquezas capitalistas, enquanto um exército de empregos
ocupados por mulheres e migrantes, sub-remunerados, ou um
grande conjunto de atividades informais, como a prestação de
serviços alimentares, limpeza, transporte e prostituição formam
a maioria do mercado de trabalho, sem contar aí os descartados
pela economia capitalista cada vez mais restritiva. Mais complexo
do que o próprio problema do desemprego aberto, como regis-
13
“[...] as cidades globais não apenas competem entre si. Juntas elas proporcio-
nam uma infraestrutura em rede crítica para a gestão e o controle de cadeias
globais de transações, cada uma com considerável especificidade de funções. O
resultado se dá nas múltiplas divisões do trabalho entre cidades, contribuindo
para articulações características da economia global que vão além da articula-
ção centro-periferia” (SASSEN, 2010, p. 58-59).

322
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

trado acima, são as zonas cinzentas de uma precarização cada vez


mais profunda.
No Brasil, devido à proliferação de atividades econômicas
por conta própria, “bicos”, informalidade etc., sempre foi difícil
determinar precisamente as fronteiras entre a “ocupação” e a
“desocupação”:

O mercado de trabalho não demarca, ao menos com a clareza


que seria analiticamente esperada, as fronteiras que separam
a ‘atividade econômica’ (para o que ‘ocupação’ e ‘desempre-
go’ se constituem nas situações alternativas típicas) da ‘inati-
vidade econômica’ (GUIMARÃES e ARAÚJO, 2006, p. 168).

Se há algumas décadas isso poderia ser qualificado como


algo típico do Brasil ou da periferia do capitalismo, agora essa se
torna uma norma quase universal:

[...] as fronteiras entre trabalho e desocupação se tornam fluídas.


Generalizam-se formas plurais, flexíveis, de subemprego.
Inclusive no último recanto social se faz patente que a norma
do pleno emprego para toda a vida está sendo substituída por
múltiplas formas de flexibilizações de tempo de trabalho. Menos
conhecido é que isto poderia valer, em um futuro próximo,
também para o caso da concentração espacial e também para a
‘organização produtiva’ do trabalho (BECK, 1998, p. 178).

Além disso, uma segunda desconexão territorial manifesta-


se de modo ainda mais gritante com a emergência de cidades
globais. A capacidade de integração transfronteiriça e trans-
nacional permite às cidades globais passarem por cima das
regiões nacionais supérfluas para as novas necessidades de uma
economia capitalista em crise. A competição entre cidades, que
seleciona e projeta poucas aglomerações à escala mundial, é
também uma seleção que desdenha e exclui a maioria dos outros
centros urbanos nacionais – o privilégio corporativo, financeiro
e político a um número reduzido de cidades que concentram
investimentos, infraestrutura e renda.

Ao mesmo tempo, existe um aumento da desigualdade na


concentração de atividades e recursos estratégicos em cada

323
Maurilio Lima Botelho

uma dessas cidades, em comparação com outras cidades nos


mesmos países. Ao lado dessas novas redes globais e regio-
nais de cidades, existe um vasto território que está se tor-
nando cada vez mais periférico e cada vez mais excluído dos
principais processos econômicos que alimentam o crescimen-
to econômico global. Antigos centros industriais e cidades
portuárias importantes perderam funções ou encontram-se
em declínio, não apenas nos países menos desenvolvidos,
mas também nas economias mais avançadas. De maneira se-
melhante, na avaliação das formas de mão de obra, a super-
valorização de serviços especializados e trabalhadores profis-
sionais tem marcado muitos dos ‘outros’ tipos de atividades
econômicas e trabalhadores como desnecessários ou irrele-
vantes para a economia avançada (SASSEN, 2010, p. 96).

Ainda que tenhamos notado a concentração de renda


em poucas metrópoles do mundo e principalmente nos países
centrais, já estamos além de uma condição em que apenas cidades
do capitalismo periférico apresentam aquela fratura social em
que dois circuitos de produção e consumo se manifestam na
paisagem urbana (SANTOS, 1979). O que já foi apontado como
uma “brasilianização do mundo” (BECK, 1998) corresponde à
emergência dessa contradição que se manifesta tanto no espaço
nacional quanto no próprio espaço intraurbano: a ampliação de
riquezas manifesta-se em um mercado de trabalho urbano frag-
mentado e na vertiginosa exclusão social, por um lado, assim
como na dissociação entre a economia urbana e a economia
regional ou nacional, por outro.
Estamos no limite de uma formação urbana que não
respeita as fronteiras nacionais e, pelo contrário, explora exata-
mente as oportunidades geradas pela conexão tecnofinanceira
mundial, em detrimento de qualquer perspectiva de desenvol-
vimento nacional. A supressão da linearidade e hierarquia entre
escalas não é apenas uma reconfiguração geográfica nacional
ou mundial – como se estivéssemos no umbral de uma nova
conformação espacial diante da qual bastaria ajustar a sociedade,
a política e o Estado para desenvolver suas potencialidades. O
que se trata aqui é da própria inviabilidade do desenvolvimento
nacional, pois a alta tecnologia e a concentração de investimentos

324
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

caminham passo a passo com a miséria absurda e a precariedade


urbana mais chocante.

o Primeiro e o Terceiro Mundo estão em todos os lugares.


Em Gelsenkirchen encontramos o Primeiro Mundo ao lado
do Terceiro Mundo; na Bulgária e na Índia encontramos
produtores de softwares competitivos, o Brasil exporta com
êxito aviões militares e produtos químicos sem falar do
sudeste asiático –, mas logo ao lado começa a favela. Este é
um mundo que segue o princípio da ‘autossemelhança’, como
poderíamos definir quase ironicamente, conforme o princípio
da Teoria do Caos. As microestruturas correspondem
à macroestrutura, existindo as assim chamadas ilhas de
produtividade em cada cidade, cada bairro, cada país, em
breve, em cada região do mundo, que sempre ainda podem
produzir para o mercado mundial – e ao lado a favelização
(KURZ, 2004, p. 29-30).

Não enfrentamos mais uma polarização crescente em escala


nacional, mas a própria implosão do caráter nacional dos territó-
rios. Não é casual que, entre os principais critérios para a entrada
no seleto rol das cidades globais, estejam aeroportos internacio-
nais, bolsas de valores de grande mobilização de capital, escritó-
rios sofisticados com conexão telemática e museus de referência
mundial. O atributo principal de cada uma dessas infraestruturas
é a sua utilidade para uma elite global que já não tem nenhum
vínculo imediato com qualquer sociedade nacional ou mesmo
com comunidades locais. Os fundos imobiliários no Rio de
Janeiro estão recebendo investimentos canadenses e sauditas; os
teatros de São Paulo recebem óperas italianas para um público
que será formado parcialmente por empresários estrangeiros; o
aeroporto da Cidade do México possui voo para Dubai; prédios
inteligentes em Johanesburgo possuem conexão de vídeo em
alta velocidade com Nova York ou Londres e parte dessa elite
mundial se reúne anualmente em Davos14. Enfim, a oferta desses
14
“Apesar de diferenças em seus lugares de origem, a multidão de Davos tem
hoje mais em comum uns com os outros do que com aqueles que não vivem
naquela altitude rarefeita. Um antigo alto funcionário do governo americano
confirmou essa observação: ‘Acho que o que está acontecendo tem a ver com
a própria identidade pessoal deles’, me disse ele. ‘Eles têm uma ligação maior

325
Maurilio Lima Botelho

serviços urbanos é menos uma “oportunidade aberta” para


o desenvolvimento nacional e mais a criação de nichos exclu-
dentes de mercado em que os “olímpicos” da sociedade global
se movimentam indiferentes aos problemas mais básicos que se
avolumam com a crise do capital15.

Para um número crescente de pessoas, nossas nações e o sis-


tema do qual eles fazem parte agora parecem incapazes de
oferecer um futuro viável e plausível.
Esse é particularmente o caso quando eles observam as eli-
tes financeiras – e sua riqueza – escaparem cada vez mais
de lealdades nacionais. O fracasso atual da autoridade po-
lítica nacional, afinal, deriva em grande parte da perda de
controle sobre os fluxos de dinheiro. No nível mais óbvio,
o dinheiro está sendo transferido do espaço nacional para
uma zona offshore em expansão. Esses trilhões em fuga pre-
judicam as comunidades nacionais de maneira real e simbó-
lica. Eles são uma causa de decadência nacional, mas tam-
bém são um resultado: os estados-nação perderam sua aura
moral, que é uma das razões pelas quais a evasão fiscal se
tornou um fundamento aceito do comércio do século XXI
(DASGUPTA, 2018).

Isso é muito mais do que um exagero retórico. O capital


sempre se movimentou internacionalmente e criou elites que
circularam pelo mundo como senhores do destino de suas
nações e de outros países, como aprendemos desde o domínio
colonial. Entretanto, há algo absolutamente novo que não se
restringe ao fluxo de capital monetário, embora sua predomi-
nância crescente sobre a produção industrial e, principalmente,
sua capacidade ilusória de multiplicar-se independentemente

com Davos e sua espécie do que com as pessoas em casa’. [...] Sempre houve
ligações entre as elites de diferentes países, mas elas eram tipicamente ‘relações
exteriores’ – ligações entre centros de poder distantes, alianças discretas entre
soberanos. Porém, há várias décadas tem se formado uma nova comunidade,
ao mesmo tempo que as economias cruzam fronteiras, instituições globais se
proliferam e o mundo está, bem, ficando plano” (ROTHKOPF, 2008, p. 31-32).
15
“Lefebvre fala, em sua sociologia crítica, dos segmentos privilegiados da mo-
derna sociedade de consumo como os novos ‘olímpicos’. O termo refere-se ao
modo como as elites se colocam acima das contradições do cotidiano vivido
pela maioria dos habitantes ‘comuns’” (BARREIRA, 2013, p. 159).

326
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

das condições econômicas reais (capital fictício) sejam o funda-


mento dessa nova realidade crítica. O que temos é uma desin-
tegração nacional que se arrasta pelo mundo e envolve tanto a
alta mobilidade do capital quanto a regressão a um fundamenta-
lismo religioso apátrida; inclui a ideologia econômica neoliberal
radical reproduzida por todos os espectros políticos (direita
ou esquerda) e a fragmentação político-partidária; incorpora o
endividamento insustentável dos Estados e a crescente demanda
por políticas assistenciais da maioria das populações desempre-
gadas ou precarizadas16. Enfim, visto de um patamar mais amplo,
mesmo com sua massa de desempregados e subempregados, as
cidades globais são ilhas de prosperidade num mundo cada vez
mais estilhaçado por mudanças geológicas que arrastam as estru-
turas sociais tradicionais para um abismo de tensão, violência
aberta e guerra civil.

as estruturas políticas do século XX estão se afogando em


um oceano de finanças desregulamentadas, tecnologia autô-
noma, militância religiosa e rivalidade de grandes potências
do século XXI. Enquanto isso, as consequências reprimidas
da imprudência do século 20 no mundo outrora coloniza-
do estão em erupção, fragmentando nações e forçando as
populações a solidariedades pós-nacionais: milícias tribais
itinerantes, subestados étnicos e religiosos e superestados.
Finalmente, a demolição das antigas superpotências da so-
ciedade internacional – ideias da ‘sociedade das nações’ que
eram essenciais para a maneira como a nova ordem mundial
era imaginada depois de 1918 – transformou o sistema de
Estado-nação em uma terra de gangues [gangland] sem lei; e
isso está produzindo agora uma reação niilista daqueles que
foram mais aterrorizados e despojados (DASGUPTA, 2018).
16
E, na medida em que a produção de riquezas perde sua base nacional, o endivida-
mento estatal se aprofunda para lidar com as consequências desse desenraizamento:
“O desenvolvimento econômico escapa ao controle do Estado nacional, enquanto
as suas consequências – desemprego, emigração, pobreza – se acumulam nas redes
de captação do Estado do bem-estar social” (BECK, 1998, p. 36). Isso significa dizer
que os críticos das teorias sobre a globalização têm uma certa razão em dizer que
o Estado passa a ter funções cada vez mais importantes, mas foram retiradas as
condições econômicas de exercer essas tarefas cada vez mais emergenciais do ponto
de vista da reprodução social. Não é um acaso que o welfare state se converta num
warfare state, em que se declara guerra aos pobres e excluídos.

327
Maurilio Lima Botelho

Movimentos contrários a imigrantes, escalada militar de


potências regionais ou mesmo a reativação de protecionismo
econômico (Trump), por meio dos quais se dá a aparente era
de retorno ao nacionalismo, não são elementos que negam essa
desintegração nacional, mas a demonstração exata de sua força
que, por ser tão avassaladora, provoca resistências e respostas
contraditórias. Aliás, é significativo que as formas “pós-políticas”
em ascensão estejam cada vez mais centradas na escala urbana
propriamente dita do que no território nacional. Os grupos
mafiosos e milicianos que buscam controle territorial, o fazem
principalmente em bairros e cidades onde possam cultivar um
mercado de venda de proteção, extorsão e comércio irregular
(desde drogas até produtos de alta tecnologia contrabandeados).
O rápido sucesso do Estado Islâmico (agora sob forte redução
com a intervenção russa na Guerra da Síria) foi obtido exatamente
pela construção de uma rede urbana de domínio que ignorava as
fronteiras nacionais no Oriente Médio e que impunha a sharia
como forma de legitimação. Em muitos “estados falhados” da
África, os grupos terroristas e guerrilheiros, as milícias e as
facções do crime controlam um conjunto de centros urbanos
de um território estilhaçado e, não raro, disputam uma mesma
grande cidade para tentar impor seu domínio sobre os demais
“grupos insurgentes”. Por fim, a própria administração urbana,
numa economia conectada por meio de fluxos financeiros extre-
mamente voláteis, tende a ser “pós-nacional”.
As reflexões de Castells e Borja (1996) sobre as cidades
como “atores políticos” internacionais realizaram-se num sentido
negativo: tendo seus prefeitos e alcaides elevados à condição
de “promotores de eventos”, a função primordial dos grandes
centros urbanos é criar um ambiente de negócios prioritário
aos investimentos, e, por isso, seus administradores muitas vezes
saltam as escalas regionais e nacionais para negociar em âmbito
internacional. Como argumentou precisamente Smith (2001),
hoje as cidades estão erigindo suas próprias “políticas externas”
e, por essa razão, rompendo as escalas tradicionais da organi-
zação política e social. Beck também citou os efeitos de espaços
sociais transnacionais que levam cada vez mais prefeitos de
cidades mexicanas a Nova York para tratar de “projetos de desen-

328
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

volvimento local” (1999, p. 62-63). No caso do Rio de Janeiro


dos “megaeventos”, isso se tornou mais simbólico do que em
qualquer outro lugar, com o prefeito pessoalmente convidando
ou contratando celebridades internacionais, diretores de cinema
e arquitetos-artistas para atuarem na (temporária) centralidade
emergente da “Cidade Maravilhosa”.
O mais significativo é que essas duas faces não são exclu-
dentes, pelo contrário, alimentam-se mutuamente: a mesma
municipalidade que ainda mantém o status de cidade global (ou
que almeja esse posto, como foi o caso do Rio de Janeiro) em
geral precisa responder aos problemas de uma estrutura política
e social em desintegração, ou seja, precisa demonstrar capacidade
de contenção dos grupos mafiosos, milicianos e da violência fora
dos bairros turísticos e das zonas centrais de negócios. O forte
controle policial do espaço urbano e a militarização direta das
cidades tornam-se uma necessidade insubstituível para adminis-
trar as tensões crescentes, mesmo no seio das cidades globais.
Nova York, com sua “tolerância zero”; a repressão às periferias em
chamas de Paris; a violenta resposta ao terrorismo ou a potenciais
“suspeitos” em Londres são apenas versões distintas da mesma
“pacificação” levada em curso no Rio de Janeiro, ainda que aqui
a magnitude do problema seja muito mais grave pelas condi-
ções históricas de fratura social. O “novo urbanismo militar” é a
maneira como as grandes cidades respondem às ameaças a sua
estrutura política.

[...] não é de se surpreender que as cidades centrais e peri-


féricas comecem a parecer-se: fronteiras fortemente milita-
rizadas, cercas, guardas ao redor de enclaves ou ‘zonas de
segurança’, células de identidades, videocâmeras computa-
dorizadas, vigilância biométrica e controles de acesso milita-
rizados ao redor de centros sociais e econômicos fortificados
contra uma massa ingovernável e perigosa. Nos mais extre-
mos exemplos, a ideia de prisões militares e os enclaves étni-
cos agora crescem ao redor dos distritos financeiros, as em-
baixadas, os espaços de turismo e consumo dos aeroportos,
as arenas desportivas, as comunidades ‘exclusivas’ e as zonas
de exportação (GRAHAM, 2012, p. 15).

329
Maurilio Lima Botelho

Poderíamos falar até mesmo de uma outra desconexão


em curso: no mesmo sentido de uma cidade que já não apre-
senta mais a capacidade ampla de inclusão econômica, também
a forma urbana de um capitalismo em crise se manifesta como
uma exclusão social e jurídica crescente. O velho lema do “ar da
cidade liberta”, se nunca foi além de um ideologema da forma
social burguesa em ascensão, agora está muito longe de qualquer
materialização – para evitar a queda na conflagração social e
violência generalizada, as cidades integradas aos circuitos globais
precisam cada vez mais corresponder a espaços de controle, no
quais seus cidadãos são monitorados na mesma medida em que
os excluídos (não cidadãos) precisam ser confinados (nas prisões,
nos guetos, nas favelas, atrás de muros etc.)17.

Conclusões
Os dados mais recentes mostram a impressionante explosão
da pobreza em São Paulo: em apenas um ano, a pobreza extrema
cresceu 35%18. Assim, ao lado dos bairros elitizados e de alta
renda, como Morumbi, Jardins e Alto de Pinheiros, temos
favelas gigantescas e imensas periferias nas quais a vida é garan-
17
“Essa desproporcionalidade do desenvolvimento urbano pautado por dife-
renças sociais de classe constitui, de fato, um problema global. Vem ocorrendo
atualmente na Índia, assim como nas inumeráveis cidades ao redor do mundo
onde há concentrações emergentes de populações marginalizadas, ao lado de
uma urbanização moderníssima e consumista voltada para uma minoria cada
vez mais rica. A questão de como lidar com os trabalhadores empobrecidos,
precários e excluídos, que hoje constituem um bloco de poder majoritário e
supostamente dominante em muitas cidades, está se transformando em um
grande problema político. Em decorrência disso, o planejamento militar está
extremamente focado em lidar com os movimentos de base urbana, irrequietos
e potencialmente revolucionários” (HARVEY, 2014, p. 129). A ênfase “revolu-
cionária” fica por conta da leitura de Harvey do período em que escrevia o tex-
to, quando movimentos urbanos em várias partes do mundo pareciam indicar
um ressurgimento das lutas sociais. Não é possivel manter esse otimismo para
os desdobramentos da crise urbana mundial, ainda mais uma esperança de que
esses movimentos fossem indícios de uma “revolução urbana”.
18
“Maior polo de riqueza do país, a Região Metropolitana de São Paulo, que
concentra 39 municípios, tem 700.193 pessoas vivendo na pobreza extrema,
número 35% maior do que era em 2016. São 180 mil pessoas a mais, mostra
análise da LCA Consultores a partir de dados recentemente divulgados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (NA GRANDE SP..., 2018).

330
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

tida todo dia por meio de empregos precários e de informali-


dade, sob a vigilância de leis não escritas do Primeiro Comando
da Capital (PCC).
Na Índia, na megacidade de Mumbai, cujos limites urbanos
explodiram num vertiginoso crescimento nas últimas décadas, a
população total já ultrapassa 20 milhões em sua área metropoli-
tana. Conhecida mundialmente pela pobreza, falta de saneamento
e precariedade na infraestrutura, a partir da década de 1970 a
administração pública indiana construiu uma estrutura urbana
totalmente nova para acomodar as grandes corporações nacionais
e multinacionais, os serviços modernos (redes de fast food e restau-
rantes de grife) e as sedes burocráticas estatais. A nova cidade
no continente, chamada de Navi Mumbai, sintetiza a segregação
urbana quando confrontada às ilhas que compõem a velha cidade:
“Tornou-se especializada em alta tecnologia, que emprega pouco
e obrigou milhares de operários de sua construção a retornar à
superpovoada Mumbai” (NUNOMURA, 2008).
Em Nova York, naquela que é considerada ainda a capital
mundial do capitalismo, cidade com o maior número de bilio-
nários no mundo, a desigualdade social também salta aos olhos:
mais de 70 mil pessoas vivem nas ruas, tendo que apelar aos
abrigos em noites mais frias. Do outro lado do país, na capital do
estado mais rico do planeta, há também 58 mil pessoas sem tetos:

Nos Estados Unidos, há 553.000 pessoas sem moradia segun-


do o último censo do Departamento de Habitação publicado
no início de dezembro. Corresponde a 0,17% da população,
uma porcentagem superior ao México (0,04%), mas inferior
ao Canadá (0,44%), Reino Unido (0,25%) e Suécia (0,36%),
segundo dados compilados pela OCDE. Um em cada cinco
vive em Nova York ou em Los Angeles. Em números abso-
lutos, a cidade de Nova York é a que mais tem sem-tetos nos
EUA, acima de 76.000. A diferença é que, em Nova York, 90%
têm onde passar a noite. Três em cada quatro pessoas sem-
-teto em Los Angeles não têm cama em algum albergue ou
solução temporária (NÚMERO DE MORADORES..., 2017)19.

Uma reportagem recente dá conta de mais de 100 mil sem-tetos no Estado da


19

Califórnia (COM MAIS DE 100 MIL..., 2018).

331
Maurilio Lima Botelho

Essa ampliação generalizada dos sem-tetos nos Estados


Unidos indica que os mais recentes índices de euforia econô-
mica e redução de desemprego são muito frágeis e mais depen-
dentes de simulação financeira do que propriamente de um
crescimento sustentado.
Na Europa, a situação não é distinta. Na capital da França, o
número de sem-tetos é baixo, mas a gravidade se deve ao modo
como se acentuou: em dez anos, o número de pessoas sem domi-
cílio fixo aumentou em 50%, o que deixa cerca de 3.000 pessoas
nas ruas (EM 10 ANOS..., 2017). Até um problema aparentemente
restrito ao chamado Terceiro Mundo começou a se manifestar
aí: em 2015, a polícia fez uma grande operação para remover a
maior favela de Paris, com mais de 400 pessoas. Cada vez mais
em terrenos baldios, estradas de ferro abandonadas e prédios
desativados surgem favelas pela França, principalmente na Região
Metropolitana de Paris. Em todo o país já são mais de 500 bidon-
villes, como são intituladas (FAVELAS EM PARIS..., 2017).
Em Londres, o problema dos sem-tetos é ainda mais assus-
tador: há em torno de 144 mil desabrigados pelas ruas da metró-
pole britânica (“DISCHARGED TO THE STREETS”..., 2018).
Londres não costuma aparecer na lista das metrópoles com taxas
de desemprego acima da média nacional. A prosperidade da
capital parece evitar esse problema. Entretanto, a grande vita-
lidade da cidade, que é a sede do maior mercado financeiro
do mundo (em número de negociações), já foi explicada pela
extrema concentração de riquezas em relação ao resto do país.
Doreen Massey, em obra dedicada à análise de Londres como
uma “cidade mundial”, apontou exatamente como a sede da City
conseguiu superar a decadência econômica das décadas de 1970-
1980, especializando-se em serviços financeiros. Isso levou a uma
extrema concentração de renda e a uma polarização social entre
a cidade e o resto do país, assim como implicou aumento dos
custos de vida na capital e gigantesca alta imobiliária, o que criou
moradias cada vez mais precárias para trabalhadores de baixa
renda, informais e desempregados.

A concentração espacial da economia e sociedade em um


canto do Reino Unido, e especialmente dentro da Ingla-
terra, é um fato centenário. Mas nas décadas recentes tem

332
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

aumentado sua intensidade. A natureza das relações que


mantêm unida essa geografia tem mudado e se concentrado
mais. Cada vez mais o país está sendo levado a um vórtice,
centrado nas finanças e nos serviços financeiros em expan-
são, que conformam a infraestrutura cultural do neolibe-
ralismo junto com um setor imobiliário que mantêm e se
beneficia de seu crescimento. Isto é tanto uma revisão como
um reforço dos aspectos de uma larga divisão nacional es-
pacial do trabalho e, de novo, claramente articulada, depen-
dente e um dos nós de criação da economia internacional
(MASSEY, 2008, p. 178-179).

Ou seja, a resposta britânica à evidente decadência nacional


nas últimas décadas do século XX – marcada sobretudo pela
desindustrialização – foi uma ênfase no caráter de cidade global
de sua capital, o que pode ser lido como uma outra forma de
capitulação e abandono da economia nacional.
Essas breves radiografias do contraste urbano espalhado
pelo mundo dão conta de uma realidade que já não é mais
específica da periferia do capitalismo. Se “o terceiro mundo
está contido no primeiro” (BECK, 1999, p. 111), isso se deve às
mudanças profundas na economia capitalista que atingiu o seu
limite histórico de desenvolvimento (BOTELHO, 2018).
Tornou-se um lugar comum afirmar que as grandes cidades,
as metrópoles e, particularmente, as chamadas cidades globais
são os locais onde emergem de modo mais nítido os conflitos
e as contradições do processo de globalização. Entretanto, essa
afirmação, para ter um significado mais profundo do que o de
uma mera frase retórica ou redundante (cidades globais são,
evidentemente, expressões de um processo que tensiona o local
e o global), precisa ser determinada pelo contexto de crise do
capitalismo.
Em certo sentido, a definição mais precisa da metrópole,
hoje, deveria conter exatamente esse caráter crítico, que envolve
a irradiação e a fragmentação do tecido urbano, cuja dinâmica
ultrapassa fronteiras e, por isso, integra “redes” que se destacam
por explorar ainda as áreas oportunas para a acumulação mone-
tária, enquanto outras são relegadas à sobrevivência por sua
própria sorte. No conceito de metrópole atual, baseado num

333
Maurilio Lima Botelho

espaço abstrato amplificado ao extremo pela lógica da merca-


doria, é preciso ter em conta o caráter da própria crise dessa forma
de mediação social: a simultânea existência do urbano como um
“local” e uma “rede” em que as dimensões regionais e nacionais
são abandonadas pela rentabilidade levada ao extremo20.
Temos um paradoxo em que, quanto mais amplas as cidades
e mais urbanizadas as regiões – a ponto de a ONU empregar
agora categorias como “cidades-regiões” ou “corredores urbanos”
(2010, p. 4) –, mais descontínuos e fragmentados social e econo-
micamente estão esses espaços, em boa parte social e racialmente
segregados.
Mais do que uma “nova era” e para além da emergência
de uma condição urbana original que deve exigir a geração de
novos instrumentos teóricos, a integração global de determinadas
centralidades urbanas deve ser vista como parte do processo de
crise estrutural da economia capitalista. “A crise agora é mais
urbana do que nunca” (HARVEY, 2014, p. 112). Isso significa,
sem dúvida, que a teoria deve captar novas dinâmicas sociais,
mas que não pode facilmente se render a esses processos como se
fossem estáveis, como se indicassem o surgimento de um “novo
ciclo” ou sequer como novas configurações políticas globais. O
processo de globalização é ao mesmo tempo uma causa e um resul-
tado da crise do capital, que se tornou, pela primeira vez na sua
20
A definição de metrópole de Cunningham (2010) vai exatamente nesse senti-
do, embora negligencie o aspecto de crise que há nesse processo de abrangên-
cia global da forma urbana: “[...] na medida em que o conceito de metrópole
como forma pura já se apresenta em relação a um horizonte projetado da equi-
valência absoluta, ele não parece redundante no que se refere a um conheci-
mento adequado da forma urbana contemporânea. Se assim for, pode agora
aparecer de duas maneiras diferentes (mas inter-relacionadas): por um lado,
como os ‘elementos dispersos de uma rede global interconectada – uma rede
que é constitutiva da forma particular e da ‘experiência’ de qualquer metrópole
particular – e, por outro, como a forma básica e generalizada da própria rede,
que é, portanto, conceitualmente moldada como uma espécie de ‘metrópole
virtual’ (para tomar emprestada uma frase de Koolhaas), historicamente nova e
universalmente ‘irradiada’. Talvez o jogo recíproco entre esses diferentes níveis
e suas formas ‘quase lógicas’ possa definir conceitualmente a problemática ur-
bana contemporânea mundial. No mínimo, parece ser possível argumentar que
a metrópole ainda se apresenta, de modo produtivo, como a mutação de uma
‘figura hegemônica’ – um ponto de mediação com as formas mais gerais de
experiência social e prática – conceitualmente homóloga às tendências gerais
de desenvolvimento do capitalismo urbano global”.

334
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

história, capital global (BOTELHO, 2018, p. 172-176). As metró-


poles, portanto, não apresentam hoje dinâmicas que exprimem
meramente uma mudança de época, mas, sobretudo, o declínio
de uma era que não pode mais retornar. Além disso, mais do que
um palco onde esses processos se desenrolam, as metrópoles e
as cidades globais são formas urbanas complexas que demons-
tram ativamente como a dinâmica se dirige à insustentabilidade
econômica e social (para não dizer também ambiental). Assim,
as grandes áreas urbanas do mundo são hoje as principais estru-
turas que impulsionam o processo de globalização em direção a
tensões graves e destrutivas.

Referências
BARREIRA, M. “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação
urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”. In: BRITO, F.; OLIVEIRA,
P. R. de (Orgs.) Até o último homem: visões cariocas da administração armada
da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013.
BECK, U. La sociedad del riesgo. Hacia uma nova modernidade. Barcelona:
Paidós, 1998.
______. O que é globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globali-
zação. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
BOTELHO, M. L. Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência
estrutural do capitalismo. Revista Maracanan, n. 18, p. 157-180, 2018.
CASTELLS, M.; BORJA, J. As cidades como atores políticos. Novos Estudos
CEBRAP, n. 45, p. 152-166, 1996.
COM MAIS DE 100 MIL moradores de rua, Califórnia não encontra onde
abrigá-los. O Globo, 9 maio. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.
com/mundo/com-mais-de-100-mil-moradores-de-rua-california-nao-en-
contra-onde-abriga-los-22665406?utm_source=Twitter&utm_ medium=So-
cial&utm_campaign=O%20Globo. Acesso em: maio 2018.
CUNNINGHAM, D. O conceito de metrópole: filosofia e forma urbana.
Periferia: educação, cultura e comunicação, v. 2, n. 2, 2010. Disponível
em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ periferia/article/
view/3461/2377). Acesso em: abr 2018.
DASGUPTA, R. The demise of the nation state. The Guardian, 5 abr. 2018.
Disponível em: https:// www.theguardian.com/news/2018/apr/05/demi-
se-of-the-nation-state-rana-dasgupta. Acesso em: maio 2018.
“DISCHARGED TO THE STREETS”: one homeless man’s struggle in
freezing London. The Guardian, 2 mar. 2018. Disponível em: https://www.

335
Maurilio Lima Botelho

theguardian.com/society/2018/mar/02/discharged-to-the-streets-home-
less-mans-struggle-freezing-london. Acesso em: maio 2018.
EM 10 ANOS, número de moradores de rua cresceu 50% em Paris.
Estadão, 3 dez. 2017. Disponível em: http://internacional.estadao.com.
br/noticias/geral,em-10-anos-numero-de-moradores-de-rua-cresceu-50-em-
paris,70002105512. Acesso em: maio 2018.
EMERGING cities set to transform league table of world’s wealthiest by
2025. The Guardian, 8 nov. 2009. Disponível em: https://www.theguardian.
com/business/ 2009/nov/08/emerging-cities-league-table. Acesso em:
abr. 2018.
FAVELAS EM PARIS, uma cicatriz na cidade-luz. El País, 27 nov. 2017.
Disponível em: https://brasil. elpais.com/brasil/2017/11/25/interna-
cional/1511631226_017741.html. Acesso em: maio 2018.
GRAHAM, S. El nuevo urbanismo militar. Antropologla: Revista Interdiscipli-
naria del INAH, n. 94, p. 6-18, 2012.
GUIMARÃES, N. A. Trabalho em transição: uma comparação entre São
Paulo, Paris e Tóquio. Novos Estudos CEBRAP, n. 76, p. 159-177, 2006.
HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São
Paulo: Martins Fontes, 2014.
KURZ, R. Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora: Pazulin, 2004.
LEWIS, M. Bumerangue: uma viagem pela economia do novo Terceiro
Mundo. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
MASSEY, D. Ciudad Mundial. Caracas: El perro y la rana, 2008.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo; e Campinas:
Editora da Unicamp. 2002.
NA GRANDE SP a pobreza extrema cresce 35% em um ano. Valor Econômico,
25 abr. 2018. Disponível em: http://www.valor.com.br/brasil/5480737/
na-grande-sp-pobreza-extrema-cresce-35-em-um-ano. Acesso em: maio 2018.
NÚMERO DE moradores de rua dispara na capital da miséria dos Estados
Unidos. El País, 30 dez. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2017/12/30/internacional/1514632186 _267085.html. Acesso em:
maio 2018.
NUNOMURA, E. Mumbai. Estado de São Paulo, 3 ago. 2008. Disponível em:
http://www. eduardonunomura.com.br/2008/08/04/mumbai/. Acesso
em: abr. 2018.
OFFE, C. Trabalho e sociedade. Problemas para o futuro da “sociedade do
trabalho”, v. I – A crise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
ONU. Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: unindo o urbano dividido.
2010. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/
PDFs/100408_cidadesdomundo_portugues. pdf. Acesso em: dez. 2010.

336
A metrópole para além da nação: globalização e crise urbana

OXFORD ECONOMICS. The Oxford Economics Global Cities 2030 (Executive


Summary). Londres: Oxford Economics, 2018. Disponível em: https://www.
oxfordeconomics.com/Media/Default/landing-pages/cities/OE-cities-
summary.pdf. Acesso em: abr. 2018.
PERROUX, F. “O conceito de polo de crescimento”. In: FAISSOL, S. (Org.)
Urbanização e regionalização. Rio de Janeiro: IBGE, 1975.
PRICEWATERHOUSECOOPERS. UK Economic Outlook. Londres: Price-
waterhouseCoopers. 2009. Disponível em: http://pwc.blogs.com/files/
pwc-uk-economic-outlook-nov-09.pdf. Acesso em: abr. 2018.
ROTHKOPF, D. Superclasse. A elite que influencia a vida de milhões de
pessoas ao redor do mundo. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana nos
países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
SASSEN, S. Sociologia da globalização. Porto Alegre: Artmed, 2010.
SMITH, N. Nuevo globalismo, nuevo urbanismo. Documents d’Anàlisi
Geogràfica, n. 38, p. 15-32, 2001.
TAYLOR, P. J. Urbanization in Global Perspective. GaWC Research Bulletin,
463. 2008. Disponível em: http://www.lboro.ac.uk/gawc/rb/rb463.html.
Acesso em: abr. 2018.
Texto recebido em 29/maio/2018 Texto aprovado em 13/ago/2018.

337
Urbanización del capital y difusión
de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de
crecimiento económico1
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro2
Marcelo Rodríguez Mancilla2

Introducción

H oy asistimos a un fenómeno de imposición de modelos


y categorías conceptuales que construyen los problemas
urbanos que deben enfrentarse con soluciones específicas para
asegurar la reproducción del orden. Este fenómeno es de carácter
mundial, permea todas las escalas territoriales, y es impulsado por
poderosas instituciones multilaterales y financieras que tienen su
origen en países dominantes del capitalismo avanzado. Existe un
proceso de difusión y circulación asimétrico de dichos modelos y
categorías que construyen la hegemonía del conocimiento sobre
las ciudades. Este conocimiento, en tanto forma de pensar e inter-
venir lo urbano, es adsorbido y traducido por intelectuales, cuadros
técnico-políticos y agentes institucionales nacionales y locales de
manera a-crítica y a-histórica, lo que decanta en una condición de
subordinación del pensamiento urbano latinoamericano.
Analizar esta problemática es fundamental para contribuir a
la construcción colectiva del pensamiento crítico latinoamericano,
pues incide en las formas en que las ciudades se representan
conceptualmente, lo que a su vez oscurece las determinaciones y
1
Este capítulo foi originalmente apresentado no IV Seminario Internacional
“La producción de la ciudad latinoamericana en el neoliberalismo” el 13 de
diciembre de 2018. Este seminario fue organizado pela Rede Latinoamericana
de Investigadores sobre Teoría Urbana (RELATEUR/FLACSO – Equador).
2
Dr. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor titular do Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal de Rio de
Janeiro (UFRJ), Brasil. lcqribeiro@gmail.com.
Dr. Marcelo Rodríguez Mancilla, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional (IPPUR), Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pro-
fessor associado da Faculdade de Ciências Sociais, Universidad de Playa Ancha,
Valparaíso, Chile. marcelor26@yahoo.es.

339
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

contradicciones esenciales que explican los problemas medulares


de la urbanización contemporánea. En esta dirección, asumimos
la premisa de que las instituciones y los agentes vinculados al
proceso histórico-estructural de urbanización del capital elaboran y
reelaboran un conjunto de marcos intelectuales/ideológicos, cuya
función es justificar políticas que son necesarias para gestionar los
cambios que permitan reproducir la lógica de funcionamiento del
sistema, y contener, transitoriamente, sus conflictos.
El objetivo de este trabajo es analizar críticamente las
conexiones entre la urbanización del capital, la difusión del actual
ciclo de ideologías urbanas, y su traducción en la definición de
políticas urbanas que dinamizan procesos de neoliberalización.
Para ello exponemos cuatros apartados: en primer lugar, situamos
los aspectos conceptuales sobre el proceso de urbanización
del capital y su relación con las características más importantes
del actual ciclo de difusión de ideologías, que constituyen lo
que llamaremos como geocultura urbana. En segundo lugar,
examinamos las proposiciones conceptuales de la nueva agenda
urbana, conjuntamente con los modos de representación de las
ciudades, la definición de problemas, propuestas de solución,
fuentes de financiamiento y recomendaciones a los Estados
nacionales, que son promovidas por organismos multilaterales y
por entidades financieras. En tercer lugar, identificamos nuevas
ideologías urbanas (ciudades adjetivadas), su significación y su
tendencia a la generalización en google académico. En cuarto lugar,
analizamos las influencias de las ideologías urbanas multilaterales
y la penetración de la racionalidad neoliberal en la definición
de políticas urbanas estatales de 15 países latinoamericanos.
Finalmente, sintetizamos una propuesta general de agenda de
investigación sobre la geocultura urbana para América Latina.
El argumento que ponemos en discusión es que estamos
frente a dispositivos de legitimación de nuevas ideologías urbanas
orientadas a pensar e intervenir fragmentos de las ciudades
como fuerza productiva. Se trata de someter a las ciudades a la
dinámica de circulación del capital sobreacumulado articulada
a un circuito urbano-inmobiliario global, cuyo objetivo es
intensificar los procesos de acumulación de capital inmobiliario-
financiero y de mercantilización de las ciudades.

340
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Urbanización del capital y difusión de ideologías


en la geocultura urbana
Las ciudades han sido esenciales para la expansión del sistema
capitalista y la modernidad desde su génesis (BRAUDEL, 1995).
La expansión de la lógica de acumulación capitalista requiere de
una lógica territorial, articulando agentes del poder económico
con agentes del poder político. Ello se dio de modo secuencial
en el desarrollo histórico de occidente: ciudades-estados, estados
territoriales, imperios, estados-nacionales y sistema interestatal
moderno (ARRIGHI, [1994] 1996).
Las ciudades, por tanto, son una fuente privilegiada de
valorización, de circulación y de poder. El capital necesita
urbanizarse, construir y reconstruir un ambiente que facilite
las condiciones materiales para que la dinámica de producción,
circulación y consumo de mercancías se realice. Las ciudades
cumplen funciones de estabilización de las crisis cíclicas de
sobreacumulación del capital que devienen de las contradicciones
internas del sistema. Marx sostenía que estas crisis se dan el
predominio de la lógica del dinero y de la competencia por
superlucros, lo que genera una tendencia a la caída de las tasas
de ganancia (HARVEY, [2006] 2013). De ahí la proposición de
Harvey (1985) sobre las ondas de urbanización del capital, que
refiere a aquella fase en la que se deben crear las condiciones
para una salida espacio-temporal del capital sobreacumulado. La
circulación de capital debe ser facilitada a partir de la producción
del medio ambiente construido como capital fijo (HARVEY,
[2006] 2013). La motivación central de los agentes capitalistas
que llevan adelante este proceso, es la disminución de la caída
tendencial de las tasas de ganancia.
Hay dos aspectos nuevos en el proceso de urbanización del
capital. En primer lugar, estamos ante la tendencia a la urbanización
planetaria que es de alcance global (HARVEY, [2010] 2012). En
segundo lugar, la tendencia a la neoliberalización3 de las políticas
3
Por neoliberalización entendemos “las diversas tendencias de cambio regula-
torio que se han extendido por todo el sistema capitalista global desde la década
de los setenta: se trata de una tendencia que prioriza las respuestas a los pro-
blemas de regulación desde una perspectiva basada, orientada e impuesta por
el mercado; intensifica la mercantilización de todos los ámbitos de la vida social

341
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

se articula con los procesos de financiarización4 de la economía,


que fueron impulsados por las innovaciones financieras creadas
después de la crisis de subprime de 2008 en Europa y Estados
Unidos. Se logró rentabilizar las dinámicas de acumulación,
asegurando al sistema bancario y crediticio, con una nueva
macroestructura financiera que generó nuevas conexiones entre
el capital portador de intereses y el capital productivo. En efecto,
por medio de las innovaciones del mercado de capitales se
conectó la esfera de las finanzas con el proceso de urbanización,
especialmente del sector inmobiliario.
Estos dos aspectos conforman un circuito urbano-inmobiliario
global vinculado estrechamente a los procesos de urbanización
del capital, en tanto estrategia de continuidad del sistema.
Este circuito demanda un conjunto de marcos intelectuales/
ideológicos hegemónicos que permiten gestionar los problemas
del orden (WALLERSTEIN, [1996] 2006). Las normas y modos
discursivos auto-legitimadores del sistema es lo que Wallerstein
([1991] 2007) llama como geocultura. Dado que Wallerstein pasó
por alto la importancia de las ciudades y su conocimiento en
la expansión del sistema-mundo capitalista, es que proponemos
el constructo: geocultura urbana. Definimos este constructo,
a modo de síntesis, como el conjunto de conocimientos sobre
las ciudades que construyen marcos intelectuales/ideológicos
dominantes, los cuales circulan por diferentes escalas de la esfera
pública para legitimar y orientar el proceso de reestructuración
del sistema-mundo capitalista, cumpliendo las funciones de: a)
gestionar los problemas urbanos y modificar las reglas/normas/
valores de las instituciones; b) legitimar nuevas formulaciones
sobre las ciudades a partir de justificaciones científicas para
y moviliza instrumentos financieros especulativos a fin de encontrar nuevos ni-
chos de acumulación de capital” (BRENNER, PECK, THEODORE, 2011: 23).
4
Compartimos la idea de Aalbers (2015) al proponer una definición amplia
de lo que significa el proceso de financiarización. Es una dominancia creciente
de actores, prácticas, mercados, medidas y narrativas financieras en múltiples
escalas, que inciden en una transformación estructural de las economías, de
las corporaciones (productivas y financieras), de los Estados y de las familias.
la financiarización es un fenómeno inherentemente espacial, siendo necesario
comprender el modo en que la financiarización de la economía a escala global
se conecta con otras escalas, tales como el Estado, empresas individuales, secto-
res económicos y la propia vida cotidiana.

342
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

asegurar el progreso y el desarrollo económico; y c) contener


(transitoriamente) los conflictos urbanos con el objetivo de
administrar las contradicciones del sistema.
Los agentes productores de la geocultura urbana accionan
ciclos de difusión de ideologías urbanas, que son un conjunto de
principios que orientan y organizan formas de diagnosticar las
realidades urbanas, en tanto objeto y objetivo de intervención.
Conforman patrones de pensamiento que integran un conjunto
de técnicas de acción y de representaciones para caracterizar
la realidad social (RIBEIRO, CARDOSO, 1996). El carácter
ideológico está dado, según Chauí ([1980] 2008), por un cuerpo
de representaciones, de normas y reglas coherentes que enseñan
a conocer y actuar, pues instituyen un orden, y explican y
justifican la realidad. Unifican pensamiento, lenguaje y realidad
para obtener la identificación de todos los sujetos sociales con
una imagen particular universalizada, que es la imagen de la
clase dominante. Con ello se busca eliminar las diferencias y las
contradicciones. En este sentido es que se construyen nuevas
cuestiones urbanas que diagnostican científicamente los males
de las ciudades y simultáneamente proponen la redención de la
sociedad a partir de intervenciones urbanas parciales.
Para la realización de la urbanización del capital asociado al
circuito urbano-inmobiliario global es necesario, en consecuencia,
innovaciones urbanas extensivas (creación de urbanización) y/o
intensivas (renovación urbana), tales como: grande edificios
corporativos o residenciales, infraestructura, equipamientos,
grandes proyectos urbanos, viviendas sociales, entre otras. Estas
intervenciones se realizan gracias a la concesión de créditos de larga
duración, lo cual permite una articulación entre el capital urbano-
inmobiliario y el capital financiero. Esta articulación constituye uno
de los principales agentes de cambio de los procesos de urbanización.
Producto de la articulación de la escala global de la
urbanización del capital con las tendencias de neoliberalización y
financiarización de la economía, el capitalismo, en su dimensión
urbano-inmobiliaria global, necesita impulsar y fortalecer redes
transnacionales e interjurisdiccionales de transferencia de
modelos y formas de pensar las ciudades para desplegar políticas
urbanas en sus diferentes escalas de actuación. Estas redes no

343
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

sólo incluyen organismos multilaterales, sino también entidades


financieras, corporaciones, fundaciones y organizaciones
no gubernamentales, que, relacionados con la cooperación
internacional, configuran un complejo de instituciones que
accionan y promueven la geocultura urbana.
Las condiciones necesarias para la realización del capital
inmobiliario-financiero se construyen a partir de la redefinición del
rol del Estado. El Estado actúa, básicamente, como ente facilitador
y promotor de los procesos de financiarización y mercantilización
de las ciudades. Ciertos fragmentos de las ciudades deben ser
dispuestos para la privatización de lo público y para ampliar la
cartera de negocios. Para ello es útil el urbanismo neoliberal
(PRADILLA, 2009), que expande sus conceptos y modelos a
través de canales de difusión basados en las nuevas tecnologías
de la información a escala mundial. Las entidades que realizan la
geocultura urbana a escala mundial, se articulan con los Estados
nacionales por medio de acuerdos internacionales. Con estos
acuerdos se definen los indicadores de logro de los objetivos
estratégicos de desarrollo y los compromisos que asumen los
Estados. Esta forma de operación no es nueva. Lo que varía es la
proliferación de nuevas ideologías urbanas que vienen modificando
anteriores formas de pensar las ciudades. Estas nuevas ideologías
operan en varios niveles de las políticas del conocimiento, a la vez
que fragmentan del campo aplicado del conocimiento para resolver
problemas de gestión de la población. Las nuevas ideologías,
relativas a la geocultura urbana, se difunden en concursos de
buenas prácticas, foros internacionales, informes de organismos
multilaterales y bancos que elaboran recomendaciones de políticas
públicas, especializaciones universitarias, asesorías y consultorías,
definición de agendas de investigación urbana, entre otras.
Bajo este orden de ideas entendemos que las representaciones
conceptuales dominantes de las ciudades deben enfatizar una
concepción de ellas como motor de crecimiento económico.
Por ende, deben ser espacios desregulados, propicios para
la realización de negocios rentables que intensifiquen la
mercantilización de la vida cotidiana. Ello conlleva, en definitiva,
a la búsqueda de cambios profundos en los modos de vida y en
los patrones de consumo de la población.

344
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Nuevas ideologías urbanas y mediaciones


multilaterales: la ciudad competitiva, motor de
crecimiento económico
En septiembre del 2015 en Nueva York, en la sede de la
ONU, los llamados líderes mundiales definieron los objetivos
globales para conducir los caminos del bienestar de los Estados
nacionales adscritos. El principal problema que organiza los
demás es el ambiental: el calentamiento global y la necesidad de
desarrollar prácticas sociales y gestión institucional sostenibles.
Estas ideas se desarrollan en la Agenda 2030, articulados a los
17 Objetivos del Desarrollo Sostenible (ODS). Estos objetivos
reemplazan a los Objetivos de Desarrollo del Milenio (ODM) a
partir de 2016, y es la hoja de ruta del trabajo de Naciones Unidas
para los próximos 15 años. Esta agenda según Organización
de Naciones Unidas tiene un carácter universal, pues es una
alianza renovada que supone un beneficio para todos y debe ser
impulsada por todos los países participantes que, a su vez, son
los responsables de su implementación. Es civilizatoria porque
pone en el centro a las personas buscando erradicar la pobreza y
promoviendo la igualdad. Es transformadora, dado que requiere
modificar las formas de gestión institucional para alcanzar el
desarrollo sostenible. Es integral al conjugar las tres dimensiones
del desarrollo, que son: económicas, sociales y ambientales. Se
incorporan también los principios de igualdad en derechos y el
enfoque de género (CEPAL, 2018).
La conexión de esta agenda geocultural con la cuestión
urbana tuvo lugar en Quito. Allí se realizó, entre el 17 y el 20
de octubre de 2016, la Conferencia de Naciones Unidas sobre
Vivienda y Desarrollo Urbano Sostenible, Hábitat III. En ese
evento se puso en el centro del debate público las condiciones,
ideas y orientaciones, a partir de las cuales las ciudades y
sus sociedades podrían mejorar. Esto se materializó con la
adopción de una Nueva Agenda Urbana (en adelante NAU)
por parte de la firma de 197 Estados miembros de Naciones
Unidas. Los Estados se comprometen a materializar las
recetas globales que conducirán, supuestamente, el desarrollo
sostenible de los procesos de urbanización. De hecho, el nuevo

345
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

Plan de Acción Regional para la Implementación de la NAU


asevera que:

La inclusión en la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible


del Objetivo 11, ‘Lograr que ciudades y asentamientos
humanos sean inclusivos, seguros, resilientes y sostenibles’,
como uno de los Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) fue
determinante, al situar la urbanización y el desarrollo urbano y
territorial en el centro del desarrollo sostenible, reconociendo
su importancia para el bienestar de la población y el desarrollo
económico social y ambiental. Como se señala en la NAU,
‘hemos llegado a un momento decisivo en que entendemos que
las ciudades pueden ser fuente de soluciones a los problemas a
que se enfrenta nuestro mundo en la actualidad, y no su causa.
Si están bien planificadas y bien gestionadas, las ciudades y
asentamientos humanos pueden ser un instrumento eficiente
y eficaz para lograr el desarrollo sostenible, tanto en los países
en desarrollo como en los países desarrollados (Naciones
Unidas, 2016a). (CEPAL, 2017b: 10).

La concepción de la ciudad como inductora del desarrollo


sostenible es clara y pretende tener un alcance global. Al
concebirse la ciudad como fuente de solución de los problemas,
la transforma en objeto de intervención y desarrollo económico.
Esta formulación le otorga un papel central al saber experto para
conducir el camino al desarrollo sostenible, pero aduciendo que
la ciudad no es la causa de los problemas. La planificación aquí
se entiende como una herramienta que proveerá de eficacia y
eficiencia, es decir, la posibilidad de solucionar los problemas es
de naturaleza predominantemente técnica, por tanto se tiende a
despolitizar la cuestión urbana.
El cuadro número 1 muestra una síntesis de las dimensiones
que están a la base del análisis del pensamiento que se promueve
de las ciudades y para su operacionalización. Para esto hemos
realizado un ejercicio analítico de los informes de organizaciones
multilaterales y financieras más recientes, y que operan a escala
regional. A seguir, presentamos una matriz comparativa con siete
ejes analíticos, a saber: concepción sobre la ciudad, problemas
diagnosticados, propuestas, concepción sobre la gestión
gubernamental, fuentes de financiamiento y sugerencias.

346
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Cuadro número 1
Matriz comparativa: el pensamiento de las ciudades y los organismos
multilaterales y financieros
Institución Concep- Problemas Propuestas para Concepción Financia- Sugerencias
e informe ción sobre centrales resolver los sobre la miento de la para los
la ciudad y diagnosti- problemas gestión agenda Estados
lo urbano cados guberna-
mental

ONU Ciudad -Segre- - Nueva Agenda - Cambiar Diversificación - Asumir los


Hábitat como gación Urbana de normativa de fuentes cambios nece-
- Nueva solución y espacial, Desarrollo para imple- de financia- sarios para
Agenda la urba- exclusión urbano soste- mentación miento: implementar la
Urbana – nización social, nible. de la Agenda - Fondos de Nueva Agenda
Hábitat III como económica - Ciudades inclu- Urbana. bancos Urbana de
(2017) motor y degra- sivas, seguras, - Enfoque de -Instituciones Desarrollo
del creci- dación resilientes y gobernanza financieras Urbano Soste-
miento ambiental. sostenibles, urbana y multilaterales. nible.
económico - Urbanismo metropoli- -Organismos
sostenido. sostenible. tana. de coopera-
-Planificación ción
flexible para -Financia-
una economía miento
competitiva y público y
sostenible. privado.

Banco Ciudad - Falta de - A nivel mundial, Competiti- - Apoyo - Estado


Mundial como facilidades mejorar la vidad integral: empresarial y amigable con el
-Ciudades entidad para la competitividad -Administra- financiero con sector empre-
competi- competi- inversión en de las ciudades ción pública facilidad para sarial.
tivas para tiva que las ciudades es el camino que transpa- la inversión. -Familiarizarse
empleo empresas e por parte lleva hacia la rente para -Inteligencia con los factores
y creci- industrias de la admi- eliminación de la promover el de mercado que atraen y
miento. puedan nistración pobreza extrema comercio y la y dotar de expanden al
Qué, crear pública. y promueve la inversión. información sector privado.
quién puestos de -Deficien- prosperidad -Asociación de mercado - Creación de
y cómo trabajo y cias de compartida. público para facilitar coaliciones
(2015) aumentar infraes- - Urbanismo -privada y la inversión de desarrollo
la produc- tructura y competitivo. apoyo a los empresarial. con el sector
tividad e tierras para empresarios privado.
ingreso de promover y atracción - Apoyo a la
sus ciuda- ventajas de inversión innovación y
danos. compara- privada. la inversión en
tivas a las -Capacitación infraestructura
empresas. e innova- con incentivos
ción según fiscales.
necesidad de
industrias.

CAF Las -Problemas - Urbanización -Articulación - Fondos de - Mejorar la


- Las ciudades de infraes- más productiva, de niveles inversión de coordinación
ciudades grandes e tructura equitativa y de gestión bancos. entre gobierno
como interme- y eficacia sustentable. (público-pri- nacional, local,
acelera- dias como institu- -Competitividad vada) bajo cooperación y
doras acelera- cional. urbana en el una planifica- sector privado,
del creci- doras - Altos entorno global ción integrada a través de
miento: del creci- niveles de - Crecimiento para que el redes d compe-
fomen- miento desigualdad inteligente de un círculo de titividad con
tando econó- y de segre- sistema urbano formulación conectividad de
políticas mico, gación. integrado en de políticas la infraestruc-
exitosas de empleo e -Geografía función de poten- económicas tura.
desarrollo ingresos. irregular de cialidades econó- nacionales sea - Mayor alinea-
nacional oportuni- micas de ciudades más eficiente. ción entre polí-
y urbano dades por con logística para ticas urbanas
(2016). políticas optimización del y políticas de
territoriales flujo comercial. desarrollo
inade- - Urbanismo nacional.
cuadas. competitivo.

347
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

MINURVI Ciudad -Exclusión - Nueva Agenda - Gobiernos - Mejorar la - Asumir


- América como socio-espa- Urbana para locales y recaudación compromiso
Latina y círculo cial, cambio el Desarrollo nacionales fiscal. de la Nueva
El Caribe. virtuoso climático, Sostenible eficientes para -Aprovechar Agenda Urbana
Desafíos, entre gestión de - Acceso a la aprovechar plusvalías - Promover el
Dilemas y desarrollo riesgos, conectividad las oportu- urbanas para fortalecimiento
compro- económico procesos digital y tecnolo- nidades de reinvertirlas de capacidades
misos y urbaniza- migra- gías inteligentes e la urbaniza- en nuevos locales de
de una ción. torios, innovadoras. ción para el servicios e financiamiento
agenda globaliza- - Promover la desarrollo a infraestruc- y recursos
urbana ción de las renovación través de la turas humanos.
común economías. urbana y centrar planificación - Atraer inver- -Asociaciones
(2016). la inversión en y gestión. sión privada público-pri-
infraestructura - Alianzas vadas
y equipamiento entre - Gobernanza
urbano para revi- empresas urbana
talizar espacios municipales y funcional a
públicos. privadas. oportunidades
- Urbanismo - Políticas - Articular
sostenible. fiscales verdes políticas econó-
-Presupuestos micas, sociales y
participativos ambientales.
- Bancos
multilaterales
de desarrollo
para proyectos
de infraestruc-
tura.

CEPAL Ciudad - Alta Nueva agenda -Desarrollar -Fortalecer -Fortalecer el


Plan de como vulnerabi- para el desarrollo capacidades la eficacia y marco institu-
Acción espacios lidad social, urbano soste- y ventajas eficiencia de cional para una
Regional de produc- ambiental y nible. comparativas los sistemas gobernanza
para la ción de económica - Incrementar - Proveer la interguber- integrada
Implemen- valor, que afectan el desempeño infraestruc- namentales - Establecer
tación de econó- a grandes económico de tura fiscales marcos legales
la Nueva mico, segmentos las ciudades, necesaria para - Diseñar y urbanos para
Agenda social y de la pobla- promover la inver- la innovación fortalecer una el desarrollo
Urbana en ambiental. ción. sión y el creci- y el desarrollo gobernanza urbano soste-
América Es el -Urbani- miento sostenible de capital multinivel nible
Latina y motor y zación sin con la asociación humano para el finan- - Establecer
El Caribe nodo de planifica- público-privada. -Simplificar ciamiento y mecanismos
2016-2036 las econo- ción. - Mejorar la trámites gestión de la de monitoreo,
(2017b). mías de - Débil base competitividad administra- infraestructura reporte y
la región tributaria urbana y el tivos para la y los servicios revisión y
para el de los crecimiento de la creación de urbanos rendición de
desarrollo estados. base productiva empresas, públicos con cuentas.
sostenible. urbana. generación economías de - Establecer
- Información de patentes y escala. metas especí-
de alta calidad operaciones - Aumentar la ficas y priori-
para priorizar generales rentabilidad y zación para
políticas. relacionadas a nivel de plani- el desarrollo
- Urbanismo los negocios. ficación en urbano soste-
sostenible. inversiones. nible con base
-Descentralizar en necesidades
el financia- locales.
miento.

Fuente: elaboración propia con base en los informes oficiales de las instituciones
en cuestión.

Como podemos constatar en la matriz comparativa la


tendencia convergente de estos informes se orienta a una
concepción de la ciudad como inductora del crecimiento
económico y de la productividad. Pero un crecimiento

348
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

que se debe ajustar a la idea de sostenibilidad que integra


las esferas sociales, económicas y ambientales. La ciudad
adquiere la significación de ser “la solución”, en tanto espacio
de producción de valor que debe operar bajo el principio
de competitividad. El argumento es que si la ciudad es
competitiva entonces se mejorarán las condiciones de vida de
sus habitantes. Son las empresas e industrias las que deben
generar empleos y mejorar ingresos, las cuales requieren
de la ciudad para viabilizar su quehacer. Esta concepción es
necesaria para impulsar la urbanización del capital extranjero
o nacional, en vista de inducir el crecimiento, atraer inversión
e integrar la racionalidad empresarial.
Los principales problemas que se identifican intentan dar
cuenta de la multidimensionalidad de los conflictos que se
viven en la sociedad capitalista contemporánea (este término
no aparece en ninguno de los informes analizados). La ciudad
aparece como el escenario en donde se expresan: la exclusión
social y espacial, las desigualdades, la degradación ambiental.
Por lo general se construyen los problemas intentando articular
las dimensiones sociales, ambientales y económicas con las
dificultades de administración y gestión institucional de tales
problemas. Los problemas institucionales se relacionan con las
deficiencias de los procesos de control, gestión, planificación y
financiación para efectivizar los cambios. En el caso de los bancos
se enfatizan dificultades para impulsar y consolidar inversiones
rentables, y existencia de infraestructura adecuada para el trabajo
de las empresas.
Las categorías que se proponen para redimir los males de
las ciudades confluyen en la idea de sostenibilidad articulada
al crecimiento económico. Para estos efectos se tiende a pensar
las soluciones desde el punto de vista de la construcción de la
NAU que, si bien plantea la idea de que esta debe situarse a las
condiciones específicas de los lugares en los cuales se implemente,
intenta establecer criterios generales (universales) respecto
de las dimensiones que se necesitan mejorar. Los encargados
de impulsar los cambios son preferentemente las asociaciones
público-privadas. Ellas se fundamentan en una visión competitiva
del urbanismo a partir del cual es posible alcanzar el desarrollo

349
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

urbano sostenible. Se trata de generar las condiciones para el


aprovechamiento inteligente de la conectividad y la innovación
del sistema urbano para el flujo comercial.
Llama la atención la confluencia terminológica y de ideas
entre las instituciones bancarias, los organismos multilaterales
y las autoridades en vivienda y urbanismo de los países
latinoamericanos. Competitividad, producción y sostenibilidad
condensan los fundamentos de las propuestas de solución que
conducirían las mejoras de la calidad de vida de toda la población.
En vista de impulsar las soluciones a los problemas, se proponen
un conjunto de cambios en la institucionalidad pública y la gestión
de gobierno. Se trata, en definitiva, de construir un proceso de
consolidación de una nueva racionalidad gubernamental neoliberal.
Esta racionalidad debe desplegarse en todas las áreas de gestión
institucional, apelando a dos principios normativos indispensables:
la eficiencia y la competitividad. El justificativo para realizar estos
cambios en las normativas es la NAU. Esta mentalidad, que media
la relación entre los distintos niveles de gestión gubernamental,
debe concentrarse en la planificación flexible y la generación de
capacidades institucionales en pro de las ventajas comparativas.
El concepto usado para esto es el de gobernanza urbana y
metropolitana, en donde deben integrarse operativamente los
principios normativos de competitividad y eficiencia. Quienes
tienen la tarea de integrar estos principios a la ejecución de proyectos
específicos, son las, ya conocidas, asociaciones público-privadas y el
sector privado propiamente tal. Con estas ideas se busca consolidar
un patrón de uso de los recursos públicos y de re-organización del
Estado a partir de criterios de rentabilidad empresarial y de una
racionalidad pragmática. Lo público es subsumido por la lógica de
la empresa y la racionalidad neoliberal justifica esta dinámica.
Ahora bien, la pregunta que surge de inmediato es: ¿y
cómo financiar los cambios que se requieren para materializar
estas ideologías urbanas contenidas en la NAU? Los informes
hacen alusión a esta cuestión buscando alternativas diversas
para financiar proyectos urbanos. Presupuestos participativos,
mejoramiento de la recaudación fiscal, reinversión de plusvalías en
nuevas infraestructuras y servicios, contar con buena información
de mercado para carteras de negocios, fortalecer economías de

350
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

escala, alianzas entre municipios y empresas privadas; entre otras.


Pero, la tendencia es a recomendar formas de financiamiento
que provengan de fondos de inversión de los bancos, sean estos
internacionales o regionales. Esta forma de financiamiento está
estrechamente relacionada con el crecimiento de la deuda en las
instituciones gubernamentales nacionales, regionales y locales. La
financiarización de los proyectos urbanos parece ser la estrategia
central de este tipo de recomendaciones. La razón es simple: las
necesidades de la población y las necesidades políticas implican
la construcción de obras de infraestructuras y diversos servicios,
pero los recursos propios son escasos. Las oportunidades
que la ciudad ofrece deben ser aprovechadas por medio de la
urbanización del capital sobreacumulado. Son ajustes espacio-
temporales (HARVEY, [2006] 2013) que requieren de la presión a
los gobiernos para que estos cumplan el rol de ser dinamizadores
del crecimiento de la economía. Se debe consolidar, por tanto, el
desarrollo urbano pro-mercado.
Las sugerencias para los Estados van en esa dirección. Los
gobiernos deben facilitar la inversión del capital inmobiliario-
financiero, siendo amigables con el sector empresarial, atrayendo
la inversión y la creación y crecimiento de las empresas, generando
coaliciones de desarrollo urbano con el sector privado, y, en
definitiva, mejorando las condiciones infraestructurales, de
servicios y de innovación para mejorar la competitividad de las
ciudades. Para esto es necesario, además, alinear las políticas
de desarrollo urbano a las políticas nacionales y mejorar la
coordinación entre niveles de gobierno. Además, los Estados
deben cumplir con los acuerdos internacionales que aseguren
los procesos de implementación de la NAU y del desarrollo
sostenible. Este es el marco general que justifica la necesidad de
ajustar las normativas a los ajustes espaciales requeridos para
la reproducción social del sistema capitalista. Esto es claro: la
solución no es más ni menos que nuevas estrategias capitalistas de
mercantilización del espacio urbano, apoyadas en un urbanismo
neoliberal que aparece fenoménicamente como un proceso que
se funda y se orienta al desarrollo sostenible, pero que se realiza
por medio de mecanismos que refuerzan el sector financiero de
la economía mundial.

351
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

Las ciudades adjetivadas: significación, agentes y


estrategias de difusión
Las nuevas ideologías urbanas, asociadas a la NAU y a la
geocultura urbana, no solo se difunden a través de los informes
oficiales de organismos multilaterales, bancos y organizaciones
inter-estatales regionales. También son difundidos otros constructos
por redes mundiales de organizaciones no gubernamentales,
empresas privadas, universidades, y fundaciones. Estos
constructos comienzan a tener mayor presencia en las agendas
de investigación del campo de los estudios urbanos, y en la
producción y circulación de artículos académicos con pretensiones
científicas. Observamos, en este sentido, que se han introducido
y generalizado nuevas ideologías urbanas. A ellas las llamaremos
ciudades adjetivadas, tales como: ciudades inteligentes, ciudades
creativas, ciudades sustentables/sostenibles, ciudades productivas,
ciudades resilientes.
En las definiciones conceptuales que se dan de las ciudades
adjetivadas, es reconocible la tendencia a construir ideas sobre
las ciudades como fuerza productiva, que dinamiza la economía y
que contribuye al desarrollo sostenible. Son constructos generales
que responden al interés general de la población, proyectan
una imagen utópica de la ciudad, siendo altamente positivas y
deseables. Veamos algunas significaciones para ejemplificar esta
cuestión y sus estrategias de traducción.
Una ciudad es sustentable, según el Banco Interamericano
de Desarrollo (2012), cuando ella ofrece una alta calidad de vida
a sus habitantes, minimiza los impactos al medio natural, y cuenta
con un gobierno local con capacidad fiscal y administrativa para
favorecer su crecimiento económico y para llevar a cabo sus
funciones urbanas con la participación de la ciudadanía.
Kanter y Litow (2009) proponen que una ciudad inteligente
es aquella que ofrece soluciones integradas e interconectadas
basadas en el uso de tecnologías, que reducen los costos
monetarios y sociales, al mismo tiempo que mejoran la calidad
de vida. Es una idea de calidad de vida que se lograría con la
eficiencia y la innovación, todo lo cual debe conducir a que la
vida sea más fácil y confortable.

352
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

El IESE Business School Center for Globalization and


Strategy and the IESE Department of Strategy, que es una
red mundial de expertos, empresas privadas especializadas y
administraciones locales de todo el mundo, creó el Índice de
Ciudades en Movimiento (CIMI). Este índice propone medir
cuan inteligente son las ciudades, evaluado 10 dimensiones, a
saber: gobernabilidad, planificación urbana, gestión pública,
tecnología, medio ambiente, alcance internacional, cohesión
social, movilidad y transporte, capital humano y economía.
Luego de esta evaluación y la construcción de rankings, se
ofrece un nuevo modelo de gestión y herramientas para que las
ciudades sean más inteligentes. Esta iniciativa no es menor. Viene
analizando la evolución de 180 ciudades, por cuatro años, en 80
países (incluido América Latina), y estudiando 79 indicadores
(BERRONE, ENRIC, 2017).
La Red UNESCO de Ciudades Creativas (UCCN), creada
en 2004, tiene se propuso fortalecer la cooperación con y entre
las ciudades que han reconocido la creatividad como un factor
estratégico del desarrollo sostenible en los aspectos económicos,
sociales, culturales y ambientales. Al unirse a la Red, las ciudades
reconocen su compromiso de compartir las mejores prácticas,
el desarrollo de asociaciones que promueven la creatividad y las
industrias culturales, el fortalecimiento de la participación en
la vida cultural y la integración de la cultura en los planes de
desarrollo urbano (UNESCO, 2004).
La fundación Rockefeller, en 2013, inauguró el Programa
100 Ciudades Resilientes (2017). La fundación conceptualiza una
ciudad resiliente como aquella que es capaz de sobreponerse a
las crisis físicas, sociales y económicas; aprender de tales crisis
y evitarlas en el futuro. Es una ciudad que puede lidiar con
sus tensiones respecto del desempleo, el transporte público,
la violencia, la escasez de agua y alimentos. La fundación
proporciona orientación financiera, logística y de articulación
con el sector privado y de organizaciones no gubernamentales,
para implementar las estrategias de resiliencia. Las ciudades
que participan de este programa en América Latina son: Cali
y Medellín (Colombia); Colima, Guadalajara, Juárez y Ciudad
de México (México); Buenos Aires y Santa Fe (Argentina);

353
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

Montevideo (Uruguay); Ciudad de Panamá (Panamá); Río de


Janeiro y Salvador de Bahía (Brasil); San Juan (Puerto Rico);
Santiago de los Caballeros (República Dominicana); Santiago de
Chile; y Quito (Ecuador).
Los contenidos conceptuales de estas formas de adjetivación
de las ciudades se caracterizan por asociar la ciudad a un
problema específico, pero desde una perspectiva más o menos
generalizable, abstracta y seductora. Su aplicación presupone el
mejoramiento de la calidad de vida de la población, como si esta
fuese homogénea. La sustentabilidad pasa a constituirse en el
principal apelativo del crecimiento económico. La creatividad,
la innovación y la inteligencia son capacidades que las ciudades
pueden y deben desarrollar. Y ante las crisis las ciudades
responderán mejor si es que aprenden a ser resilientes. Todas
estas capacidades implican un cambio en la gestión eficiente de
los procesos urbanos por parte de la institucionalidad. La idea
central, en consecuencia, es que la gestión de la ciudad debe
favorecer el crecimiento económico. Para ello debe aprender a
ser más inteligente, más creativa, más sustentable y más resiliente.
Por otro lado, es interesante constatar el modo en que las
ciudades adjetivadas se difunden en los sistemas de información
electrónicos. Hemos realizado un simple ejercicio en google
académico sobre la presencia de artículos y de citaciones de los
constructos que seleccionamos, y que han proliferado en este
nuevo ciclo de difusión de ideologías urbanas. Los constructos
identificados son: ciudades inteligentes, ciudades productivas,
ciudades sustentables, ciudades creativas, y ciudades resilientes.
Dividimos la búsqueda en tres períodos de tiempo: 1980-1990,
1991-2000 y 2001-2017. Este ejercicio nos permitió observar que
existe una tendencia creciente de artículos y citaciones de estos
constructos en idioma español, portugués, e inglés, lo que da
cuenta de la generalización de estas ciudades adjetivadas.
El gráfico en idioma español muestra una convergencia
en el último período de los constructos analizados. Mientras
en el período 1980-1990 el constructo con mayor presencia era
ciudades productivas, en el período actual destaca el crecimiento
de las categorías ciudades sustentables y ciudades resilientes.

354
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Fuente: elaboración propia con base en los datos de google académico.

Para el caso de los constructos en idioma portugués, la


tendencia es otra. Destacan la mayor frecuencia de artículos con
los constructos ciudades productivas y ciudades inteligentes. Hay
un crecimiento similar entre las categorías ciudades sustentables
y ciudades resilientes en el último período. De todos modos,
todas las categorías crecen más en el período 2001-2017.

Fuente: elaboración propia con base en los datos de google académico.

La tendencia de búsqueda en idioma inglés muestra que


hay una cierta dispersión en el crecimiento de la presencia de

355
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

las categorías seleccionadas. Ciudades sustentables y ciudades


creativas son las que presentan mayor frecuencia. El número de
artículos en idioma inglés es ampliamente mayor por períodos
que en idioma español y portugués. Esto puede relacionarse con
el hecho de que dichos constructos fueron creados y exportados
desde países anglo-americanos.

Fuente: elaboración propia con base en los datos de google académico.

Hoy por hoy se viene imponiendo una jerarquización de


indexaciones de revistas científicas. Exploramos la ocurrencia de
las mismas ciudades adjetivadas en el buscador Web Of Science
desde 1988 a 2017. La idea fue identificar artículos que tengan
los constructos estudiados en sus resumenes, títulos y/o palabra
claves. Los resultados muestran la predominancia del constructo
ciudades inteligentes, seguida del constructo ciudades sustentables.
En suma, estas formas de difusión de las ciudades adjetivadas
cumplen la función de formación de hegemonía y de consenso
en sus diferentes escalas de actuación. Como estrategias se usan
abstracciones generales, adjetivadas con términos fácilmente
aceptables por su positividad, que son des-historizadas y que
proponen modelos técnicos particulares pero universalizables
e idealizados. Estos modelos necesitan conocimientos sobre-
especializados instituidos como saber competente para conducir

356
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

las intervenciones urbanas, las cuales tienen efectos en la


fragmentación del fenómeno urbano y en la despolitización de
la ciudadanía.

Fuente: elaboración propia basada en la plataforma de búsqueda de Web Of Science.

La eficacia de estas estrategias de la geocultura urbana


está en su capacidad de ocultar la naturaleza de los conflictos
estructurales, la desigualdad entre clases sociales y sus
determinaciones esenciales. En efecto, la solución a los problemas
se dará por medio de la atracción de nuevas inversiones que
refuerzan el desarrollo del sector de las finanzas. De ahí que la
ciudad se conceptualice, en todos los informes revisados, como
máquina de crecimiento económico, por tanto como objeto de
mercantilización y de acumulación de capital, que se reviste de
una quimera especulativa y fantasiosa.

La ciudad competitiva en la política urbana:


orientaciones pro mercado
La nueva gestión pública neoliberal, en busca de ser
competitiva, debe innovar sus herramientas técnicas y
criterios de gestión para monitorear y conducir el camino de
mejoramiento institucional pro-mercado. Para esto se elaboran
nuevas adjetivaciones de la ciudad que dotan de sentido y
justificación a la política urbana. La optimización de los recursos
económicos escasos y los criterios de efectividad y eficiencia
para la administración y evaluación de las políticas urbanas, se
imponen como la racionalidad de la clase dominante.

357
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

Estas nuevas concepciones y narrativas referenciales,


que prometen mejoras concretas de la calidad de vida de
la población, se alojan en mayor o menor medida, explícita
o implícitamente, en los imperativos normativos de las
instituciones estatales. Estos imperativos se pueden observar
en la estructuración de las políticas urbanas nacionales, pero
como una actualización de un proceso que ya viene siendo
desarrollado por la lógica de neoliberalización de la gestión
gubernamental. Es así que el carácter enunciativo de la misión,
visión y objetivos operacionalizan esta articulación-ajuste entre
planes, políticas y proyectos, y los modelos de desarrollo de los
países. En la definición de la misión (razón de ser central) y la
visión (expectativa ideal), que es un lenguaje de la racionalidad
empresarial, se delimitan las competencias específicas de la
gestión gubernamental. Lo importante para nuestro análisis
en este punto es que en esas definiciones se explicitan los
constructos ideológicos que justifican la elaboración, ejecución
y evaluación de las políticas urbanas; y sus prioridades de
inversión.
El cuadro número 2, que mostramos a continuación,
sistematiza las definiciones y orientaciones institucionales
de las políticas urbanas correspondientes a 15 Estados
latinoamericanos. Tales definiciones expresan, a su vez, el papel
que deben cumplir las ciudades en la reproducción social y la
voluntad política para mejorar las condiciones materiales de la
ciudadanía. Constatamos, al hacer un análisis de los contenidos
de estas definiciones institucionales, que la ciudad se significa
como fuerza productiva, como espacios de reproducción social,
y como inductora de crecimiento económico y de desarrollo.
Esta convergencia transversal delimita el núcleo de sentido del
desarrollo urbano latinoamericano. Este núcleo se articula con
constructos que organizan cierto tipo de modelo de ciudad
a alcanzar, con valores sociales y su correspondiente modelo
de gestión. Desarrollo sostenible, gestión eficiente y eficaz,
competitividad y productividad son las categorías que más
aparecen vinculadas a la nueva racionalidad que, como vimos
anteriormente, son intensamente promovidas por organizamos
multilaterales y por bancos. Si bien no es posible obtener

358
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

conclusiones categóricas al respecto de la enunciación de


la razón de ser de las políticas urbanas en cuanto a sus reales
impactos, sí son reconocibles las influencias internacionales en la
justificación de la acción pública que se adaptan a los programas
de desarrollo de cada país.

Cuadro número 2:
Misión y Visión de Políticas Urbanas en América Latina
Países Misión y Visión Institucional
México Misión: El desarrollo urbano y el ordenamiento territorial, son herramientas
Secretaria de que posibilitan la construcción de un territorio con condiciones de equidad,
Desarrollo sustentabilidad y calidad espaciales, por ello se debe establecer un modelo de
Urbano y ciudad vanguardista, sustentable, equitativa, competitiva e incluyente, con visión
Vivienda – internacional en beneficio de los habitantes de la Ciudad de México. Planear el
Ciudad de desarrollo urbano e impulsar proyectos estratégicos y de impacto social con una
México gestión eficaz, eficiente y transparente.
Visión: Ser una dependencia de evolución que promueva y aplique de manera
eficiente y eficaz los recursos asignados promoviendo la innovación y la mejora
continua en la atención ciudadana, así como en la calidad de vida de los habi-
tantes de la Ciudad de México.
Costa rica Misión: Emitir políticas, directrices y lineamientos que faciliten tanto el acceso a
Ministerio de vivienda adecuada como el mejoramiento de los asentamientos humanos, para el
Vivienda y bienestar de todos los habitantes del país.
Asentamientos Visión: Ser la institución responsable del Sector Vivienda y Asentamientos
Humanos Humanos, capaz de impulsar el desarrollo de ciudades más competitivas y
seguras, que mejoren la calidad de vida de la población; mediante una labor
comprometida, eficaz y eficiente.
El salvador Misión: Ser una organización moderna, innovadora, efectiva, transparente y
Viceministerio con liderazgo institucional, rectora del desarrollo y ordenamiento territorial,
de Vivienda la política de vivienda y el desarrollo de asentamientos humanos integrales en
y Desarrollo ambientes sostenibles.
Urbano Visión: Planificar, promover, normar, coordinar y facilitar el desarrollo y el orde-
namiento territorial, de la política de vivienda y asentamientos humanos sosteni-
bles que garanticen el progreso y bienestar de la población.
Guatemala Misión: Ser el ente rector que direcciona, reglamenta y representa en el ámbito
Ministerio de nacional a los sectores de comunicaciones, infraestructura y vivienda; ejecu-
Comunica- tando políticas y estrategias para integrar al país con servicios acorde al desar-
ciones, Infraes- rollo social y económico de la nación, contribuyendo a mejorar la competiti-
tructura y vidad a través del ejercicio de una administración y control eficientes.
Vivienda Visión: Ser una entidad modelo de la gestión pública, rectora del desarrollo
de la infraestructura del Estado, ejerciendo un acompañamiento efectivo en el
desarrollo de los sectores de comunicaciones, infraestructura y vivienda, como
soportes del crecimiento de la economía nacional; además de ser un eje del
desarrollo integral de los guatemaltecos a través de la promoción y facilitación
para el acceso universal a la tecnología de la información, las comunicaciones
y vivienda.

359
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

Panamá Misión: Somos una Institución pública, rectora, promotora y facilitadora de la


Ministerio de política nacional de vivienda y ordenamiento territorial, que integra el esfuerzo
Vivienda y de todos los sectores de la sociedad para mejorar la calidad de vida y condiciones
Ordenamiento habitacionales de la población, principalmente, a las de menores recursos y más
Territorial vulnerables, promoviendo y ejecutando la política nacional de vivienda y ordena-
miento territorial, que garantiza el desarrollo sostenible.
Visión: El Ministerio de Vivienda y Ordenamiento Territorial será la institución
pública, líder y modelo a nivel nacional, encargada de las políticas de vivienda
y ordenamiento territorial, con autoridad para elaborar los programas de
viviendas dignas en territorios ordenados. Programas éstos tendientes a dismi-
nuir considerablemente el déficit habitacional que garanticen un desarrollo soste-
nible del país, a través de tecnologías de punta y personal altamente motivado y
especializado.
Colombia Misión: El Ministerio de Vivienda, Ciudad y Territorio contribuye a mejorar la
Ministerio calidad de vida de la ciudadanía, promoviendo el desarrollo territorial y urbano
de Vivienda, planificado del país y disminuyendo el déficit en vivienda urbana, agua potable
Ciudad y y saneamiento básico, mediante la financiación, y el desarrollo de la política
Territorio pública, programas y proyectos correspondientes, con servicios de calidad y
recurso humano comprometido.
Visión: En el año 2021, el Ministerio de Vivienda, Ciudad y Territorio habrá
logrado disminuir el déficit de vivienda urbana del país y mejorar la cobertura
de los servicios de Agua Potable y Saneamiento Básico urbano y rural, contri-
buyendo al mejoramiento de la calidad de vida de los colombianos y consoli-
dando un mejor sistema de Ciudades amables y productivas, a través de políticas,
programas y proyectos participativos y de Entidades modernas.
Venezuela Metas: Ser la institución modelo del Estado venezolano en el Sistema de Segu-
Ministerio del ridad Social que garantice la participación protagónica de las comunidades, a
Poder Popular fin de procurar a las familias la satisfacción progresiva del derecho a viviendas
Para Hábitat y y hábitats dignos, saludables y pertinentes, así como la ocupación racional del
Vivienda territorio.
Objetivos: Ejercer la rectoría del Sistema Nacional de Vivienda y Hábitat
mediante la participación protagónica del poder comunal, a través de la formu-
lación de políticas y planes de desarrollo que permitan la industrialización del
sector, el acceso al financiamiento, la asistencia técnica y la supervisión oportuna,
orientado hacia la satisfacción progresiva del derecho humano a una vivienda y
hábitat dignos que humanicen las relaciones familiares, vecinales y comunitarias. 
Ecuador Misión: Ejercer la rectoría e implementar la política pública de las ciudades,
Ministerio de garantizando a la ciudadanía el acceso al hábitat seguro y saludable, a la vivienda
Desarrollo digna y al espacio público integrador.
Urbano y Visión: Ciudades incluyentes, equitativas, diversas, innovadoras y sustentables
Vivienda para el buen vivir.
Brasil Missão:  melhorar as cidades, tornando-as mais humanas, social e economica-
Ministério das mente justas e ambientalmente sustentáveis, por meio de gestão democrática
Cidades e integração das políticas públicas de planejamento urbano, habitação, sanea-
mento, mobilidade urbana, acessibilidade e trânsito de forma articulada com os
entes federados e a sociedade.
Paraguay Visión: Ser una institución reconocida como rectora de la política habitacional
Secretaria del país, garantizando el acceso universal a la vivienda y hábitat dignos.
Nacional de Misión: Somos la institución Pública responsable de establecer, regir e imple-
Vivienda y el mentar la política habitacional del país con énfasis en los sectores de escasos
Hábitat recursos. La misión del SENAVITAT, es fijar la Política Nacional de la Vivienda
e impulsar Programas Habitacionales, en el marco de las políticas macro-econó-
micas y del Plan Nacional de Desarrollo que las expresa, tendientes a satisfacer las
demandas de vivienda y de soluciones habitacionales de la población.

360
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Uruguay Misión: Diseñar e implementar políticas públicas participativas e integradas en


Ministerio materia de vivienda, ambiente, territorio y agua, para promover la equidad y
de Vivienda, el desarrollo sostenible, contribuyendo a la mejora de la calidad de vida de los
Ordenamiento habitantes del país.
Territorial Visión: Ser el organismo rector y referente en el diseño e implementación de polí-
y Medio ticas articuladas y coordinadas en materia de hábitat y medio ambiente, mediante
Ambiente una gestión eficaz y eficiente, basada en un alto nivel de compromiso y profesio-
nalización, orientada a mejorar la calidad de vida.
Argentina La Secretaría de Vivienda y Hábitat tiene como objetivo igualar el acceso integral
Secretaría de al hábitat, garantizar el acceso a la vivienda y afianzar la presencia del Estado en
Vivienda y las comunidades más olvidadas de nuestro país. Para disminuir el déficit habita-
Hábitat cional desarrolla la urbanización de villas y asentamientos, la regularización de la
propiedad del suelo y promueve el acceso a la vivienda, generando oportunidades
de encuentro y convivencia.
Perú Nuestra Misión: Somos el Ente Rector en materia de Urbanismo, Vivienda,
Ministerio Construcción y Saneamiento, responsable de diseñar, normar, promover, super-
de Vivienda, visar, evaluar y ejecutar la política sectorial, contribuyendo a la competitividad
Construcción y al desarrollo territorial sostenible del país, en beneficio preferentemente de la
y Saneamiento población de menores recursos.
Nuestra Visión: Los peruanos viven en un territorio ordenado, en centros
poblados urbanos y rurales sostenibles, en viviendas seguras, con servicios de
agua y saneamiento de calidad.
Bolivia Misión institucional: Promover y gestionar el acceso universal y equitativo de la
Ministerio población boliviana a obras y servicios de calidad, en telecomunicaciones, trans-
de Obras portes y vivienda, en armonía con la naturaleza.
Públicas, Visión institucional: Somos una entidad que con calidad y transparencia, satisface
Servicios y las necesidades de transportes, telecomunicaciones y vivienda de la población
Vivienda boliviana.
Chile Misión Ministerial: Posibilitar el acceso a soluciones habitacionales de calidad y
Ministerio de contribuir al desarrollo de barrios y ciudades equitativas, integradas y sustenta-
Vivienda y bles, todo ello bajo criterios de descentralización, participación y desarrollo, con
Urbanismo el propósito que las personas, familias y comunidades, mejoren su calidad de vida
y aumenten su bienestar.

Fuente: elaboración propia con base en las páginas web oficiales de las instituciones
de cada país.

Las similitudes en torno a la definición de competencias


correspondientes a las entidades ministeriales o las secretarías
están orientadas a reducir el déficit habitacional y a mejorar la
cobertura de servicios e infraestructura básica, focalizándose
en los sectores de menores recursos económicos. Las
acciones gubernamentales buscan mejorar las condiciones de
reproducción social, aunque lo hacen, según Coulomb (2013),
desarrollando una política de vivienda que favorece la promoción
inmobiliaria capitalista donde el derecho a la vivienda pasó a ser
el derecho a crédito. Es más, estaríamos frente a un proceso de
financiarización global de la vivienda (ROLNIK, 2015).
También convergen un conjunto de adjetivaciones que
tienden a promover valores positivos, tales como: la equidad,

361
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

la inclusión, la integralidad, la democracia, la calidad de vida,


la salud y el bienestar. Estas enunciaciones distan mucho de las
prácticas sociales e institucionales, como se viene documentando
ampliamente en los estudios urbanos críticos latinoamericanos.
Una vez que los Estados han incorporado las nuevas
categorías de la agenda global neoliberal, deben ir incorporando la
racionalidad neoliberal en sus modos de gestión y concatenación
entre las políticas urbanas y las agendas multilaterales. En este
sentido, el Observatorio Regional de Planificación para el
Desarrollo de América Latina y El Caribe de la CEPAL, cumple
la función de asesorar técnicamente y monitorear el avance
de la consecución de los objetivos trazados para el desarrollo
sustentable. El Observatorio informó que 27 países poseen un
instrumento nacional orientador de políticas para el desarrollo;
19 países han presentado un Informe Nacional Voluntario frente
al Foro Político de Alto Nivel sobre desarrollo sostenible; 20 países
han creado un mecanismo coordinador para la implementación
y seguimiento de la Agenda 2030. Y 15 países cuentan con planes
de acción de Gobierno Abierto5.
No basta con establecer este tipo de planificación para el
desarrollo. La cooperación internacional debe participar en el
proceso. De hecho, la Deutsche Gesellschaft für Internationale
Zusammenarbeit (GIZ)6 está a cargo de asesorar el cumplimiento
de la Agenda 2030. Esta organización desarrolla 190 proyectos en
casi toda América Latina (a excepción de Venezuela, Argentina,
Uruguay, Panamá, las Guyanas, y Suriname). A partir del 2014
se viene implementando un programa de cooperación entre la
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL) y
el Ministerio Federal de Cooperación Económica y Desarrollo de
5
En https://observatorioplanificacion.cepal.org/es. Acceso el 28 mayo de 2019.
6
GIZ es una empresa federal que apoya al Gobierno de la República Federal
de Alemania en el logro de sus objetivos en el ámbito de la cooperación inter-
nacional. Su fin es contribuir al desarrollo sostenible desde un punto de vista
económico, social y ecológico. Una gran parte de los proyectos que ejecuta
la GIZ son por encargo del Ministerio Federal de Cooperación Económica y
Desarrollo (BMZ). La GIZ también actúa por encargo de otros ministerios fe-
derales, así como de otros comités públicos y privados, tanto alemanes como
extranjeros. Entre ellos figuran, por ejemplo, los Gobiernos de otros países, la
Unión Europea, las Naciones Unidas y el Banco Mundial (en https://www.giz-
cepal.cl/page/quienes-somos. Acceso el 01 de noviembre de 2018).

362
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

Alemania (BMZ). El programa denominado “Cambio estructural


para un desarrollo sostenible e inclusivo en América Latina y
El Caribe”, que es ejecutado por la GIZ, apoya a los países
de la región para la creación de reformas e instrumentos que
permitan viabilizar y fomentar un cambio estructural sostenible,
económico y social.
La geocultura urbana, como observamos, se manifiesta en
este tipo de articulaciones y mediaciones en donde se traducen
los principios organizadores de la racionalidad neoliberal
empresarial en las políticas urbanas estatales. Estos principios
buscan consolidar una noción de las ciudades como fuerza
productiva inductoras de crecimiento económico y por tanto,
como espacios de acumulación de capital. En definitiva, como
señalaron Alfredo Rodríguez y Paula Rodríguez (2009), estamos
ante una necesidad de predominancia de la ciudad neoliberal,
dado que la mayoría de los componentes urbanos tiendes a ser
tratados como objeto de negocio y especulación, sin contrapeso
significativo de la sociedad civil.

Consideraciones finales
A modo de cierre, enfatizamos el argumento central de este
trabajo: las nuevas ideologías urbanas cumplen la función de
promover y consolidar formas de pensar las ciudades e intervenir en
ellas como máquina de crecimiento económico y productivo, como
objeto de acumulación de capital inmobiliario-financiero y como
espacio propicio para la profundización de dinámicas de mercanti-
lización. Todo ello por la necesidad de inserción de los territorios
latinoamericanos al proceso global de urbanización del capital.
Consideramos que este esfuerzo contribuye, de modo parcial,
a la crítica de la geocultura urbana, al analizar las estrategias de
imposición de un conjunto de marcos categoriales hegemónicos
de difusión y transferencia de ideologías y políticas urbanas.
Como vimos, en América Latina está en curso la implementación
de la NAU y la transferencia-traducción de ideologías y políticas
urbanas neoliberales. Pensamos que este conjunto de operaciones
está en relación directa con la constitución del circuito urbano-
inmobiliario global que tiende a integrar a las ciudades en el

363
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

centro de la actual crisis del capitalismo. Ello en razón de la


creciente importancia del medio ambiente urbano construido
para la reproducción social. Por este motivo ha sido y sigue siendo
necesario realizar innovaciones institucionales para cristalizar
modelos de desarrollo urbano pro-mercado.
En este contexto, creemos imperativo impulsar una agenda
colectiva de investigación latinoamericana que desarrolle,
sistemáticamente, una sociología crítica de la geocultura urbana
para colaborar en la construcción de teorías urbanas desde
América Latina. A grandes rasgos, proponemos:

1. Análisis comparado de los proyectos de la NAU y otras


instituciones geoculturales que se realizan en ciudades
y lugares específicos, para conocer los mecanismos de
transferencia de modelos y categorías, sus problemas y
políticas; y el conjunto de efectos concretos causados por
las intervenciones urbanas.
2. Examen comparado de las políticas de ciencia y tecnología
en el campo de los estudios urbanos para saber cuáles
son los temas/problemas que los Estados financian y su
relación con el pensamiento urbano hegemónico.
3. Análisis cienciométricos de revistas indexadas de estudios
urbanos latinoamericanos que permitan establecer un balance
de la investigación urbana en cuanto a: los principales temas/
problemas, la creación de categorías teóricas basadas en
realidades latinoamericanas, la crítica a categorías analíticas
foráneas; y análisis bibliométricos, de minería de textos, y
de co-citaciones para describir las principales corrientes de
investigación, sus orientaciones teórico-metodológicas de
referencia y sus conexiones intelectuales.
4. Análisis de los contenidos específicos de los planes de
estudios urbanos en América Latina con el propósito de
identificar la dominancia de autores, enfoques teóricos y el
uso de categorías explicativas de los fenómenos urbanos.
5. Sistematización y análisis comparados de los aportes
teórico-históricos contra-hegemónicos más importantes
que explican las principales transformaciones de las
ciudades en América Latina, identificando aspectos

364
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

generales y particulares a partir de un enfoque holístico


de comprensión del sistema capitalista. Esto requerirá de
una profundización de la crítica política y teórica, tanto
a las categorías de la geocultura urbana, como a la teoría
crítica que se elabora en países dominantes, y que tiende
a reproducirse sin mediaciones.
6. Examinar las categorías políticas y conceptuales que se
usan para justificar nuevas leyes y reformas institucionales
estatales, que tienden a ocultar su vinculación con el capital
urbano-financiero global, el circuito urbano-inmobiliario
global y las dinámicas de mercantilización de las ciudades.

En definitiva, sabemos que vivimos un ciclo histórico específico


de despolitización de la cuestión urbana latinoamericana y de
subordinación al ejercicio del poder hegemónico de la geocultura
urbana. Frente a esto, es crucial intensificar, complejizar y ampliar
las críticas al carácter ideológico del conocimiento urbano
dominante para repolitizar la cuestión urbana y develar los
nuevos mecanismos de dominación capitalista que profundizan,
cada vez más, las desigualdades sociales y urbanas.

Referencias
AALBERS, Manuel, “The potential for financialization”, Dialogues in
Human Geography, 10, july 2015, Canada.
ARRIGHI, Geovanni. O longo sécculo XX: dinhero, poder e as origens do nosso
tempo. São Paulo, Brasil: Editora Unesp, [1994] 1996.
BANCO DE DESARROLLO DE AMÉRICA LATINA (CAF). Las
ciudades como aceleradoras del crecimiento: fomentando políticas exitosas
de desarrollo nacional y urbano. Buenos Aires, Argentina: Corporación
Andina de Fomento, 2016. Tomado de http://scioteca.caf.com/
handle/123456789/952. Acceso el 13 de julio de 2017.
BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO (BID). Guía Metodológica,
Iniciativa de Ciudades Emergentes y Sostenibles, 2012. Tomado de http://www.
iadb.org/es/temas/ciudades-emergentes-y-sostenibles/ciudades-emergentes-
y-sostenibles,6656.html. Acceso el 20 de agosto de 2017.
BANCO MUNDIAL. Ciudades competitivas para empleos y crecimiento. Qué,
Quién y Cómo. 2005. Tomado de : http://documentos.bancomundial.
org/curated/es/691841467992491102/pdf/101546-REVISED-SPANISH-
Box394856B-PUBLIC-Report-Spanish.pdf. Acceso el 10 de agosto de 2017.

365
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

BERRONE, Pascual; ENRIC, Joan. Índice IESE Cities in Motion. Universidaad


de Navarra, Business School. 2017. Tomado de https://www.iese.edu/
research/pdfs/ST-0442.pdf. Acceso el 28 de julio de 2017.
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. México, DF, México: Fondo
de cultura económica, 1986.
BRAUDEL, Fernand. As ciudades. En: BRAUDEL, Fernand (Ed.) Civilização
Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII, Volume 1: As estruturas
do cotidiano. São Paulo, Brasil: Martins Fontes, 1995.
BRENNER, Neil; PECK, Jamie; THEODORE, Nik. “¿Y después de la neoli-
beralización? Estrategias metodológicas para la investigación de las transfor-
maciones regulatorias contemporáneas”. Urban 1, Universidad Politécnica
de Madrid, Madrid, España. 2011. Tomado de http://polired.upm.es/index.
php/urban/article/view/409/1878. Acceso el 01 de marzo del 2018.
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE
(CEPAL). Informe anual sobre el progreso y los desafíos regionales de la Agenda
2030 para el Desarrollo Sostenible en América Latina y el Caribe. 2017a.
Tomado de http://www.cepal.org/es/publicaciones/41173-informe-anual-
progreso-desafios-regionales-la-agenda-2030-desarrollo-sostenible acceso el
15 de junio de 2017.
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE
(CEPAL). Plan de Acción Regional para la Implementación de la Nueva Agenda
Urbana en América Latina y El Caribe. Naciones Unidas, Santiago, Chile. 2017b.
Tomado de http://onuhabitat.org.mx/index.php/plan-de-accion-regional-
para-la-implementacion-de-la-nau-en-lac acceso el 15 de junio de 2017.
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE
(CEPAL). Guía metodológica. Planificación para la implementación de la
Agenda 2030 en América Latina y El Caribe. Naciones Unidas, Santiago,
Chile. 2018. Tomado de https://www.cepal.org/es/publicaciones/43963-
g uia-metodologica-planif icacion-la-implementacion-la-agenda-2030-
america-latina. Acceso el 16 de junio de 2017.
COULOMB, René. “Las políticas de vivienda de los estados
latinoamericanos”, En: RAMÍREZ, Blanca; PRADILLA, Emilio. (Coord.)
Teoría sobre la ciudad en América Latina. Volumen II. México, DF, México:
Universidad Autónoma Metropolitana, 2013.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasil: Editora
Brasilense,[1980] 2008.
CHRISTOPHERS, Brett. “Revisiting the Urbanization of Capital”. Annals
of the Association of American Geographers, 101, Juny, 2011, American
Association of Geographers, USA.
FORO DE MINISTROS Y AUTORIDADES MÁXIMAS DE VIVIENDA Y
URBANISMO DE AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (MINURVI). América
Latina y El Caribe. Desafíos, dilemas y compromisos de una agenda urbana
común. Naciones Unidas, Santiago, Chile. 2016. Tomado de https://www.

366
Urbanización del capital y difusión de ideologías urbanas en América Latina:
la ciudad como máquina de crecimiento económico

cepal.org/es/publicaciones/40656-america-latina-caribe-desafios-dilemas-
compromisos-agenda-urbana-comun. Acceso el 16 de junio de 2017.
HARVEY, David. The Urbanization of Capital: Studies in the History and
Theory of Capitalist Urbanization Hardcover. Baltimore, USA: Johns
Hopkins University Press, 1985.
______. Os limites do capital. São Paulo, Brasil: Boitempo, [2006] 2013.
______. El enigma del capital y las crisis del capitalismo. Madrid, España: Akal,
[2010] 2012.
KANTER, Rosabeth; LITOW, Stanley. “Informed and Interconnected: A
Manifesto for Smarter Cities”, 23, June, 2009, Harvard Business School
General Management Unit, Working Paper, USA. 2009. Tomado de http://
ssrn.com/abstract=1420236. Acceso el 17 de junio de 2017.
MÁRQUEZ, Lisett; PRADILLA, Emilio. “Los territorios latinoamericanos
en la mundialización del capital”, Territorios, 34, Bogotá, Colombia, primer
semestre, 2016.
MINISTERIO DE VIVIENDA Y ASENTAMIENTOS HUMANOS, Costa
Rica. Tomado de https://www.mivah.go.cr/Nosotros_Quienes_Somos.
shtml. Acceso el 14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DE COMUNICACIONES, INFRAESTRUCTURA Y
VIVIENDA, Guatemala. Tomado de http://www.civ.gob.gt/. Acceso el 14
de agosto de 2014.
MINISTERIO DE VIVIENDA Y ORDENAMIENTO TERRITORIAL, Panamá.
Tomado de http://www.mivi.gob.pa/. Acceso el 14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DE VIVIENDA, CIUDAD Y TERRITORIO, Colombia.
Tomado de http://www.minvivienda.gov.co/. Acceso14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DEL PODER POPULAR PARA HÁBITAT Y VIVIENDA,
Venezuela. Tomado de http://www.minhvi.gob.ve/. Acceso el 14 de agosto
de 2014.
MINISTERIO DE DESARROLLO URBANO Y VIVIENDA, Ecuador.
Tomado de http://www.habitatyvivienda.gob.ec/. Acceso el 14 de agosto
de 2014.
MINISTÉRIO DAS CIDADES, Brasil. Tomado de http://www.brasil.gov.
br/@@search?Subject%3Alist=Minist%C3%A9rio%20das%20cidades.
Acceso el 14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DE VIVIENDA, ORDENAMIENTO TERRITORIAL Y
MEDIO AMBIENTE, Uruguay. Tomado de http://www.mvotma.gub.uy/.
Acceso el 14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DE VIVIENDA, CONSTRUCCIÓN Y SANEAMIENTO, Perú.
Tomado de http://www.vivienda.gob.pe/. Acceso el 14 de agosto de 2014.
MINISTERIO DE OBRAS PÚBLICAS, SERVICIOS Y VIVIENDA, Bolivia.
Tomado de https://www.oopp.gob.bo/. Acceso el 14 de agosto de 2014.

367
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marcelo Rodríguez Mancilla

MINISTERIO DE VIVIENDA Y URBANISMO, Chile. Tomado de http://


www.minvu.cl/. Acceso el 14 de agosto de 2014.
ONU-Hábitat. Nueva Agenda Urbana. Habitat III. Conferencia de las
Naciones Unidas sobre la Vivienda y el Desarrollo Urbano. Naciones
Unidas, Ecuador. 2017. Tomado de http://onuhabitat.org.mx/index.php/
la-nueva-agenda-urbana-en-espanol. Acceso el 13 de mayo de 2017.
ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA EDUCACIÓN,
LA CIENCIA Y LA CULTURA (UNESCO). ¿Qué es la red de ciudades
creativas? 2004. Tomado de http://es.unesco.org/creative-cities/content/
acerca-de. Acceso el 19 de agosto del 2017.
PRADILLA, Emilio. Los territorios del neoliberalismo en América Latina.
UAM/Xochimilco, Miguel Ángel Porrúa, México DF, México, 2009.
PROGRAMA 100 CIUDADES RESILIENTES. WorkShop Montevideo
resiliente. Fundación Rockefeller. 2017. Tomado de http://www.
montevideo.gub.uy/lanzamiento-del-programa-100-ciudades-resilientes.
Acceso el 10 de agosto de 2017.
RIBEIRO, Luiz César; CARDOSO, Adaulto. 1996, “Da cidade à nação:
gênese e evolução do urbanismo no Brasil”. En: RIBEIRO, Luiz Cesar de
Queiroz; PECHMAN, Robert. (Coords.). Cidade, povo e nação. Gênese do
urbanismo moderno. Rio de Janeiro, Brasil: Civilização Brasileira, 1996
RODRÍGUEZ, Alfredo; RODRÍGUEZ, Paula. Introducción. En:
RODRÍGUEZ, Alfredo; RODRÍGUEZ, Paula. (Eds.). Santiago, una ciudad
neoliberal. Quito, Ecuador: Organización Latinoamericana y del Caribe de
Centro Histórico (OLACCHI), 2009.
ROLNIK, Raquel. A guerra dos lugares. São Paulo, Brasil: Boitempo, 2015.
SECRETARIA DE DESARROLLO URBANO Y VIVIENDA, Ciudad de
México. Tomado de http://www.seduvi.cdmx.gob.mx/. Acceso el 14 de
agosto de 2014.
SECRETARIA NACIONAL DE VIVIENDA Y EL HÁBITAT, Paraguay.
Tomado de https://www.senavitat.gov.py/. Acceso el 14 de agosto de 2014.
SECRETARÍA DE VIVIENDA Y HÁBITAT, Argentina. Tomado de https://
www.mininterior.gov.ar/viviendayhabitat/vivienda-habitat.php. Acceso el
20 de agosto de 2017.
VICEMINISTERIO DE VIVIENDA Y DESARROLLO URBANO, El Salvador.
Tomado de http://www.vivienda.gob.sv/. Acceso el 20 de agosto de 2017.
WALLERSTEIN, Imanuel. Abrir las ciencias sociales. Siglo XXI, México DF,
México: Siglo XXI, [1996] 2006.
______. Geopolítica y geocultura. Ensayos sobre el moderno sistema mundial,
Editorial Kairós, Barcelona, España: Editorial Kairós, [1991] 2007.

368
Parte III

Os Ajustes Regulatórios
da Ordem Urbana Brasileira
Inflexão ultraliberal e a financeirização
da ordem urbana brasileira: explorando
algumas hipóteses1

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro2

O presente texto tem como base o documento “As metró-


poles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da
ordem urbana brasileira” elaborado como subsídio para as
discussões internas do INCT Observatório das Metrópoles sobre
o Programa de Pesquisa 2017-2020 “As metrópoles e o direito à
cidade: conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento
urbano”, tendo em vista o contexto político e econômico criado
com o golpe parlamentar de 2016. O nosso objetivo principal é
propor a reflexão sobre algumas hipóteses a respeito dos possí-
veis efeitos sobre as metrópoles dessa inflexão na aceleração e
aprofundamento da nossa inserção no atual ciclo de dominância
financeira do capitalismo.
O termo “inflexão” é usado para sinalizar uma ruptura em
relação a certas dinâmicas que tinham sido identificadas em nosso
programa de pesquisa anterior3, onde ficou evidenciada a continui-
dade de um padrão de organização social do território ao longo das
últimas décadas. Acreditamos que o golpe parlamentar e o conse-
quente processo de impeachment de Dilma Rousseff marcou o fim de
um longo ciclo de experimentos institucionais que vinham conse-
guindo abarcar projetos contraditórios e intervenções ambíguas no
plano das políticas públicas. Um ciclo onde conviveram de maneira
concorrente, mas combinada, um laissez-faire urbano neoliberal e um
regime de reprodução social baseado naquilo que Karl Polanyi deno-
1
Este capítulo foi originalmente apresentado no Seminário Internacional Fi-
nanceirização e Estudos Urbanos. Organizado pela Universidade Estadual de
São Carlos, 2018.
2
Professor-Titular do IPPUR/UFRJ. Coordenador do INCT Observatório das
Metrópoles.
3
Que resultou na coleção de livros “METRÓPOLES: transformações na ordem
urbana” (RIBEIRO, 2015).

371
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

minou de reciprocidade e redistribuição. A Constituinte de 1988


materializou no arcabouço institucional brasileiro diversos princí-
pios e conceitos que se traduziram em políticas efetivas de caráter
reformista/redistributivo. Entre 1988 e 2016 vivemos então diversos
períodos de governo que expressaram (cada um à sua maneira) essa
ambiguidade. Isso esteve presente no interior do bloco de poder
que governou o país particularmente na última década. De um lado,
forças conservadoras representadas pelos interesses de frações da
classe dominante, mas de outro um compromisso com os setores
populares representados pelo avanço do projeto lulopetista. No
plano da cidade uma ambiguidade semelhante pode ser constatada.
A Constituição de 1988 criou condições políticas para a emergência
de um projeto de reforma urbana, orientado pelos princípios da
democracia participativa, justiça distributiva, regulação das forças
de mercado, além da universalização da plataforma do Direito à
Cidade. Nesse contexto surgiram várias experiências de política
urbana progressista, mas também se disseminaram programas de
caráter neoliberal, orientados pelos princípios do “empreendedo-
rismo urbano”, “planejamento estratégico” e “competição entre
cidades”.
A tese central que orienta este texto é a de que o golpe de
2016, embora tendo múltiplas motivações (dentre elas o interesse
em enfraquecer a Operação Lava-Jato), alterou de maneira radical
essa correlação de forças que vinha se constituindo no interior do
bloco de poder, na direção de um controle mais efetivo por parte
das forças conservadoras. Defendemos aqui que o arranjo político
constituído a partir da queda de Dilma Rousseff, teve como parte
de suas motivações promover um conjunto de ajustes políticos
e institucionais através da promoção de brutais mudanças nos
marcos legais e constitucionais. Mudanças capazes de consolidar
e avançar no processo de destruição das bases que sustentavam
as iniciativas institucionais de caráter reformista-redistributiva,
abrindo caminho para um projeto neoliberal desembaraçado dos
compromissos de regulação e proteção social, criados a partir
da Constituição de 1988. Tal mudança terá como contrapartida,
no plano da cidade, um ajuste urbano na direção de políticas
urbanas pró-mercado. Antes de apresentar os argumentos que
sustentam esta tese e as hipóteses a respeito de sua tradução

372
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

sobre o espaço urbano, cabe esclarecer o uso dos termos “golpe”


e “ultraliberal”.
O primeiro explicita o caráter conspiratório e revanchista
que marcou o processo de impeachment. Ele foi articulado por
setores da oposição que se recusaram a aceitar a derrota na
eleição presidencial de 2014, contando com o apoio de setores
organizados do empresariado, envolvendo operações cinemato-
gráficas e desproporcionais realizadas no âmbito da Operação
Lava-Jato, que contaram com uma cobertura altamente tenden-
ciosa por parte da grande mídia. Esse contexto gerou uma onda
de manifestações e a completa desarticulação da base parlamentar
do governo, que não teve força para barrar as frágeis denúncias
apresentadas. Mesmo respeitando os trâmites legalmente esta-
belecidos, o impeachment representou uma quebra institucional
por sua motivação abertamente política e pelos seus interesses
velados de mudar o projeto político em curso sem a sua legiti-
mação pelas vias democráticas.
O segundo termo é complementar ao primeiro por traduzir
a dinâmica de ruptura que vem marcando o avanço das reformas
neoliberais promovidas desde 2016. Autores como Peck e Tickel
(2000) ressaltam a importância de compreender o neolibera-
lismo sempre como um “processo” (e não apenas como “estado
final”) onde se articulam etapas de desregulação e desmantelação
dos marcos institucionais previamente existentes com outras de
construção e consolidação de novos modos de governança. Em
geral, esses processos são marcados por um primeiro momento
onde há a necessidade de construir um consentimento político
e social em torno das propostas que visam destruir de maneira
criativa os mecanismos de proteção social relacionados ao Estado
de Bem-Estar. Mas em muitos casos essa destruição é feita de
maneira imediata e acelerada, como aconteceu em situações
históricas particulares, a exemplo do golpe de Augusto Pinochet
no Chile e da revolução conservadora de Margareth Thatcher
no Reino Unido. Esse padrão de liberalismo tende a potencia-
lizar as tendências de crise sistêmica do capitalismo e suscitar os
conflitos que diminuem a legitimidade social do projeto conser-
vador. Souza (2013, p. 26) coloca que com isso surgem iniciativas
proativas voltadas para o estabelecimento de um projeto político

373
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

“mais tecnocrático e preocupado com a reconstrução das formas


de Estado e do aparato regulatório, o desenvolvimento da gover-
nança neoliberal e a maior intervenção social”. Peck e Theodore
(2007) ressaltam a importância de considerar os contextos histó-
ricos para interpretar adequadamente os efeitos desse processo:
o uso dos conceitos de path dependency e de path shaping é funda-
mental na consideração do papel do marco regulatório herdado
nas distintas trajetórias de neoliberalização e de seus efeitos.
No caso brasileiro estaríamos vivendo um momento seme-
lhante de desregulação acelerada, voltada para a desarticulação
dos sistemas de proteção existentes e para liberação das forças
de mercado das amarras institucionais contingentes. A quebra
institucional que instituiu o governo de Michel Temer prescinde
da construção de um consentimento social amplo que legitime
as reformas implementadas. Casos como esses fazem nascer
projetos radicais: projetos ultraliberais em sua essência. Decor-
rente desse processo, colocamos também como hipótese a ocor-
rência de transformações radicais nos modelos de governança
urbana. A conjuntura anterior permitia a convivência de projetos
conflitantes que se expressavam nas articulações entre o plano
federal e a esfera municipal. De um lado medidas que fortale-
ciam a “cidade do bem-estar social” e o “planejamento reformis-
ta-redistributivo”. De outro a “cidade competitiva-empreende-
dora” e o “planejamento estratégico”. A inflexão ultraliberal e
suas traduções em reformas institucionais com fortes impactos
na destruição criativa do sistema de solidariedade territorial
presente em nosso federalismo, associado a um clima político
conservador, cria pressões para a prevalência do segundo modelo
e uma deslegitimação do primeiro.
Singer (2015) identificou que durante os mandatos de Lula
a coexistência de duas coalizões com interesses opostos se estru-
turaram e conseguiram coexistir dentro do pacto constituído
no âmbito do “lulismo”. Uma “rentista” alinhada com o ideário
neoliberal e o grande capital internacional, outra “produtivista”
vinculada ao processo de industrialização e às medidas inter-
vencionistas do governo. Entre 2012 e 2015 houve uma grande
coalizão formada pela burguesia nacional para se opor ao
programa de Dilma Rousseff que não parecia mais atender aos

374
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

interesses do setor produtivo. Singer (2015) indica o que teria


motivado essa virada, como a permanência da luta de classes, a
correlação de forças internacionais, a motivação ideológica (tese
de Bresser-Pereira), a grande quantidade de embates assumidos
pelo governo, e a financeirização do capital produtivo brasileiro.
Sobre este, a manutenção durante longo tempo de elevadas taxas
de juros teria levado o empresariado a investir em atividades
puramente rentistas, apostando em ganhos elevados em investi-
mentos seguros e de elevada liquidez.
Ao lado desde conjunto de fatores, a crise institucional
instalada desde a eleição de 2014 tornou-se irreversível ao longo
de 2016 e resultou no processo de impeachment que encerrou o
segundo mandato de Dilma. A subida ao poder de Michel Temer
foi apoiada pela coalizão burguesa e o teor das reformas propostas
reflete a desejada virada para uma agenda abertamente neoliberal.
Tomamos como referência o último fator acima colocado para
seguir em nossa reflexão sobre o peso assumido pelo processo
de financeirização do capitalismo nesse movimento pela dupla
condição produtivista-rentista da burguesia industrial brasileira.

Rentismo na lógica do capital


O termo rentismo vem sendo utilizado para iluminar teorica-
mente a relação entre lucro e renda na lógica de funcionamento
e de organização do capital nos tempos atuais. Nas transforma-
ções contemporâneas do capitalismo, a renda vem assumindo
uma posição central nos processos de produção e circulação
do valor e, consequentemente, nas práticas de acumulação e de
organização do capital. A renda deixa de ser uma categoria de
distribuição da mais-valia decorrente do poder social externo
e supérfluo ao poder econômico do capital, para integrar o
funcionamento do próprio sistema. Paulani (2016) examina essa
mudança refletindo sobre as condições de acumulação e de orga-
nização do capital decorrentes do papel central do conhecimento
e das marcas como ativos intangíveis (sem serem mercadorias
plenas) e do capital-dinheiro portador de juros na produção e
circulação do valor. Esse fato alterou o sistema capitalista na
medida em que a acumulação passa a se dar sob os imperativos

375
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

da propriedade mais do que da produção (PAULANI, 2016, p.


533). O conhecimento é marcado pela instituição de sistemas de
proteção da propriedade intelectual e de patentes que operam
nacional e globalmente. São formas contemporâneas de capital
fictício cujo uso gera rendas de monopólio. O conhecimento
torna-se uma renda-saber: seu uso nos processos de produção
e circulação do valor decorre do papel do conhecimento prote-
gido na especificação das condições gerais de produção e circu-
lação do valor (PAULANI, 2012, p. 21). A renda-saber assume
no ramo da produção de conhecimento a forma de renda de
monopólio, como é a renda absoluta proposta por Marx. Já a
patente da marca permite a especificação das condições gerais de
realização do valor das mercadorias gerando um preço premium
ao seu detentor (PAULANI, 2012, p. 22). Por esses motivos, na
organização empresarial, o conhecimento e a marca passaram
a ser considerados ativos intangíveis que fazem parte do capital
circulante das empresas e devem ser contabilizados nos balanços.
A crescente importância dessa categoria de capital fictício
(conhecimento e marca) na acumulação tem gerado transforma-
ções nas estratégias das empresas, que passam a focar central-
mente na gerência dos ativos intangíveis. A terceira fonte do
rentismo no capitalismo contemporâneo decorre da penetração
da lógica do clássico capital fictício portador de juros e divi-
dendos. Desde as considerações feitas por Marx, compreende-se
o dinheiro como a expressão de um poder social surgido com
o mercado enquanto mecanismo central das trocas econômicas,
portanto, antes mesmo de o capitalismo se constituir em um modo
de produção dominante. Com ele, o capital-dinheiro portador de
juros e dividendos exerce uma função importante na produção e
circulação do valor, na medida em que assegura a estabilização
dos processos de acumulação ampliada do capital, mas expres-
sando uma posição subordinada na distribuição da mais-valia
entre lucro, renda e juros. A tese da financeirização do capita-
lismo contemporâneo funda-se na consideração da hipótese da
lógica da valorização desse capital portador de juros e dividendos
ter se internalizado no próprio espaço produtivo do valor – o que
coloca a remuneração dos detentores de ações em evidência. Isso
envolve a criação de inúmeros mecanismos para subordinar o

376
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

capital produtivo às lógicas do capital rentista, levando os capita-


listas a atrelar o processo de acumulação à criação de diferentes
formas de rent-seeking. O avanço das políticas de desregulação
dos mercados financeiros nacionais teve um papel importante
para esse cenário ao estimular a criação de mecanismos institu-
cionais que favorecessem a livre circulação dos fluxos de capital e
restringissem as barreiras aos investimentos externos.
O Brasil e os países da América Latina, na esteira do ciclo
recente de experimentos neodesenvolvimentistas impulsionados
pela combinação de governos populares e do ciclo de elevação dos
preços das commodities no mercado internacional, aprofundaram
a sua dependência do capital excedente global que aqui entra na
forma de poupança externa. Estabeleceu-se uma dinâmica rentista,
traduzida no fato de as economias nacionais precisarem gerar
excedente em divisas com a finalidade de remunerar o capital-
dinheiro global. Segundo Paulani (2012), na atual forma de depen-
dência o Brasil vem sendo transformado em uma plataforma inter-
nacional para a circulação e valorização do capital rentista global.
Uma expressão evidente desse processo é o volume cada vez maior
de recursos que são subtraídos da economia nacional para pagar
as rendas dos capitais externos aplicados no país4. Originado a
partir das escolhas políticas realizadas desde o Regime Militar,
esse processo foi se acentuando ao longo do governo de Fernando
Henrique Cardoso, em razão da estabilização econômica produzida
pelo Plano Real que ajudou a viabilizar o ingresso ativo do país na
era da financeirização, e do governo do PT, através da adoção de
medidas que completaram a inserção da economia brasileira nos
circuitos mundiais de acumulação financeira. No segundo governo
Lula as altas taxas de juros seguiram sendo atrativas ao capital
rentista enquanto as taxas internacionais eram irrisórias (momento
em que a indústria se enfraquece e as exportações primárias voltam
a ganhar força). Esse contexto permitiu ganhos para o capital em
moeda forte dos mais elevados do mundo e tornou o país um
agente ativo do processo de financeirização em curso, que absorve

4
A autora ressalta que se compararmos o fluxo de valores enviados ao exterior
em razão da remuneração de investimentos reais e financeiros, esse valor cres-
ceu 356% entre 1990 e 2011, enquanto o PIB cresceu apenas 87% nesse mesmo
período (PAULANI, 2013, p. 238).

377
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

continuamente poupança externa e pode conviver com déficits em


transações correntes que se elevam a cada ano (PAULANI, 2013).
Isso teria levado à manutenção de altas taxas de lucro macroeco-
nômico e taxas muito baixas de acumulação de capital produtivo.
O patrimônio dos grupos empresariais que atuam no setor finan-
ceiro cresceu 71,7% entre 2003 e 2008, frente ao crescimento do
PIB que chegou a apenas 28%.
A penetração da atual lógica rentista do capitalismo global
gerou três importantes consequências estruturais sobre as condi-
ções e possibilidades do desenvolvimento da economia brasileira.
A primeira é o aprofundamento do processo de desindustriali-
zação do país em curso desde os anos 1980, mas aprofundado no
período do experimento neoliberal e presente nos governos do
PT. A segunda consequência decorre da associação entre desin-
dustrialização e reprimarização da economia nacional. O dina-
mismo econômico do país tornou-se dependente da expansão do
consumo das famílias e do mercado internacional em detrimento
da capacidade interna de investimento, o que significa um cres-
cimento a taxas reduzidas e a perda de poder de decisão sobre a
condução dos nossos destinos. A terceira consequência é a consti-
tuição de um segmento interno de interesses rentistas que assume
a condição de hegemonia no bloco de poder dominante e sustenta
as políticas macroeconômicas orientadas pela inserção do país na
dinâmica da financeirização do capitalismo mundial. Não é sem
razão a estabilidade da política macroeconômica baseada no tripé
superávit primário/meta inflacionária/câmbio flutuante. Embora
tenha sido instituída no governo de Fernando Henrique Cardoso,
essa política macroeconômica manteve-se durante os governos
petistas na medida em que integra a imposição da agenda neoli-
beral necessária à integração passiva do Brasil na mundialização
financeira do capitalismo. Algo que deixa a economia nacional
mais suscetível aos efeitos das constantes crises financeiras.

Rentismo e financeirização
A importância assumida pelo rentismo no capitalismo contem-
porâneo mantém relação direta com o processo de financeiri-
zação em função da crescente centralidade assumida pelo capital

378
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

portador de juros no âmbito da atividade econômica mundial.


Essa centralidade é parte das transformações das condições de
reprodução do capital ocorridas nos anos 1970-1990. Harvey
(1992) aponta que as transformações das finanças iniciadas nos
anos 1970 – expressas em novas modalidades de ativos, na cons-
tituição de novas instituições, na sua mundialização, no extraor-
dinário aumento do volume das transações financeiras – foram
impulsionadas pela busca de soluções à sobreacumulação. Algo
que teve como resultado um processo de deslocamento espaço-
temporal do capital, que vem permitindo a superação momen-
tânea das contradições do capitalismo emergidas com a crise do
regime fordista de acumulação. Na sua análise, Harvey (1992) diz
que a busca do capital para superar a crise de sobreacumulação
pode estar na articulação da exacerbação do papel das atividades
financeiras que absorvem parte do capital sobreacumulado em
financiamentos especulativos e fictícios. Provocando assim uma
tendência à sua autonomização em relação à produção real e no
reescalonamento temporal e espacial da circulação global do
capital. Essa análise ganha evidência no Gráfico 1, que expressa
a relação entre o volume dos ativos financeiros (em trilhões de
dólares) e o PIB nos países centrais.

Gráfico 1 – Evolução do estoque de ativos financeiros e


do PIB mundial.

Fonte: PAULANI (2013)

379
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Além desses dados que ilustram a dimensão quantitativa


assumida pelos ativos financeiros, as constantes e cíclicas bolhas
especulativas também têm sido tomadas como evidências das
transformações estruturais do capitalismo na direção da autono-
mização das finanças, convivendo com o deslocamento geográ-
fico do capital em busca de novas condições de acumulação,
especialmente em direção ao mundo sino-asiático. Não é por
acaso que desde a década de 1990 convivemos com sucessivas
crises financeiras e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento e
sofisticação da atividade financeira e a sua mundialização. Com
efeito, as crises financeiras vêm se multiplicando em grande
número pelos países emergentes, mas atingindo também os
países centrais.
Os dados que evidenciam tendências de dissociação entre
o crescimento dos ativos financeiros em relação aos ativos
reais e a sucessão de crises financeiras vêm incentivando desde
o início dos anos 2000 a produção de uma extensa literatura
em torno da hipótese da financeirização do capitalismo. Este
termo vem se difundido na produção acadêmica, penetrando
em inúmeras áreas do conhecimento5. No Brasil e na América
Latina é bastante difundida a definição de Braga (1997), que
propõe entender a financeirização como um fenômeno sistê-
mico e contemporâneo do capitalismo (distinto de outras
fases de expansão financeira) com implicações que vão além
da economia:

[é] um processo geral de transformação do capitalismo que


cria novas formas institucionais, que se torna estrutural, se
dissemina e, de alguma maneira, se diferencia dos modos
de manifestação do capital enquanto expressão do valor-tra-
balho. É sistêmico, porque a financeirização está constituída
por componentes fundamentais da organização capitalista,
entrelaçados de maneira a estabelecer uma dinâmica estru-
tural segundo os princípios de uma lógica financeira geral.
Sendo assim, ela não decorre da práxis de segmentos ou se-
tores, mas, ao contrário, tem marcado as estratégias de todos

5
Segundo Christophers (2015) o termo acabou se tornando a buzzword dos anos
2010, repetindo o que aconteceu com o termo globalização nos anos 1990 ou
neoliberalismo na década de 2000.

380
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

os agentes privados relevantes, condicionado a operação das


finanças e dos dispêndios públicos, modificado a dinâmica
macroeconômica (BRAGA, 1997, p. 196).

Há um consenso na literatura acadêmica que a financeiri-


zação expressa transformações econômicas do capitalismo que
têm implicações societárias significativas e reforçadoras de tais
transformações. Por essa razão, é comum a utilização do adjetivo
estrutural ou sistêmico para qualificar a profundidade e alcance
das mudanças do capitalismo traduzidas no conceito de finan-
ceirização. As várias crises financeiras decorrentes das sucessivas
bolhas especulativas e as respostas pró-liquidez do Estado combi-
nadas à criação de novos instrumentos de administração de
riscos e da centralização do capital-dinheiro foram consolidando
a financeirização pela geração de novos nexos entre finanças,
economia e sociedade.
A mais importante inovação criada nessa trajetória foram
as novas modalidades de securitização. A securitização é uma
inovação que permitiu combinar liquidez e rentabilidade como
o estopim das transformações do padrão de riqueza no capita-
lismo. Até então, a gestão dos ativos financeiros do conjunto da
sociedade pelo sistema bancário implicava nas limitações decor-
rentes da contradição entre liquidez e rentabilidade. A securiti-
zação permitiu aos bancos oferecerem novas formas de aplicação
que combinavam essas duas dimensões da gestão dos ativos finan-
ceiros, na medida em que permitiu uma administração calculada
dos riscos pelas agências bancárias. Tal fato potencializou a capa-
cidade das instituições bancárias e financeiras em agir através da
estratégia da alavancagem, que resultou na origem de um poder
de criação de moedas. Em outros termos, a criação de um sistema
bancário paralelo.
O instrumento da securitização também permitiu superar
outra limitação da atividade bancária-financeira no que diz
respeito à forma de administração de riscos nos empréstimos
imobiliários. Até então, a prática se restringia ao instrumento
das hipotecas, onde os compradores solicitavam o financia-
mento e o banco emprestava o dinheiro com base na hipoteca,
recebendo ao longo do contrato os pagamentos do emprés-

381
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

timo e dos juros. Tratava-se de uma transação entre o proprie-


tário e o banco. A securitização desse instrumento mudou
fortemente a natureza dessa operação, pois ativos ilíquidos,
como as hipotecas, poderiam ser reunidos e transformados
em ativos líquidos negociáveis no mercado aberto. Esses novos
instrumentos tinham um nome: títulos lastreados por hipo-
tecas (mortgage-backed securities). A securitização de hipotecas
como instrumento de administração de riscos se generalizou:
tudo que fosse suscetível de criar um fluxo de rendas futuras
poderia ser securitizado, gerando uma cadeia financeira
que penetra e liga várias dimensões da economia. Segundo
Braga (1997) a securitização realizou a interconexão entre os
mercados de crédito, de capitais e de moedas e gerou um novo
tipo de interação entre moeda, crédito e patrimônio.
Outra inovação financeira decorrente das transformações
do modelo de gestão de risco foi a expansão da alavancagem na
prática do acesso ao crédito para realizar investimento e consumo.
Trata-se do uso de recursos de terceiros em suas operações dessa
natureza. Normalmente as instituições bancárias trabalham
“alavancando”, pois utilizam recursos de terceiros (credores)
para emprestar para outros (devedores). Essa prática foi difun-
dida nos anos 2000 para o universo das famílias, aumentando
o seu grau de endividamento. Mas como assinalam Roubini e
Mihm (2010), foi no setor financeiro que a prática se difundiu
de forma mais intensa: a dívida do setor passou de 22% do PIB
em 1981 para 117% em 2008. Nesse período surge a prática da
alavancagem sistêmica ou composta.
Há, portanto, um consenso na literatura acadêmica sobre
o tema da financeirização como expressão de uma transfor-
mação estrutural do capitalismo que assume um caráter sistê-
mico, ultrapassando o campo propriamente da economia. Utili-
zando como referência o balanço dessa literatura realizado por
Christophers (2011), podemos identificar os seguintes campos
temáticos: financeirização do capitalismo, financeirização da
governança corporativa, financeirização da vida cotidiana e
financeirização urbana.

382
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

Financeirização e mercantilização
A mercantilização como processo não se confunde com a
financeirização. Esta expressa um modo de acumulação, assim
como foi a industrialização. A mercantilização corresponde ao
processo de transformação dos bens em coisas que circulam na
sociedade através da venda e da compra, portanto, mediadas
por um preço. O status de mercadoria pressupõe que os bens
e serviços tenham sido produzidos para a venda através de um
processo de trabalho organizado sob relações capitalistas de
produção. Isto, por sua vez, pressupõe que a produção tenha
ocorrido sob condições de concorrência capitalista e essas
duas condições fazem com que os objetos produzidos tenham
como utilidade o valor de troca, ou seja, existam como reali-
dade mercantil para depois se transformarem em utilidade que
satisfará às necessidades. São sob essas condições que as coisas
adquirem a forma de mercadoria.
Há uma contradição na constituição da sociedade de
mercado necessária ao pleno funcionamento da economia capi-
talista de mercado, de cujo funcionamento emerge o que Polanyi
(2000) denominou do duplo movimento: tendência à expansão
da mercantilização de todos os recantos da vida social e tendên-
cias contrárias de proteção social. Com efeito, o acesso à terra,
ao trabalho e ao dinheiro é essencial ao processo de produção
de mercadorias. Mas como esses não são mercadorias, os seus
preços não podem ser determinados autonomamente pelas forças
de mercado. Porém a expansão das forças de mercado pressiona
na direção da transformação das coletividades em sociedades de
mercado, e assim a plena mercantilização da terra, do trabalho e
do dinheiro pelo desembebimento do seu uso e imposição de preços
autorregulados como condição de acesso. Por outro lado, como
são elementos essenciais à reprodução da vida humana, as socie-
dades tendem a desencadear movimentos de proteção diante
dos efeitos de desarticulação social gerados por essa tendência à
mercantilização.
A teoria do duplo movimento formulada por Polanyi (2000)
tem como base o capitalismo organizado pela industrialização
como centro do processo de produção, circulação e realização

383
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

do valor. O movimento de proteção social de certos aspectos da


sociedade contra os efeitos desarticuladores do processo desme-
dido de mercantilização tem como base as lutas de resistência
dos trabalhadores contra a pobreza, a vulnerabilidade, enfim
as precárias condições de reprodução social. Mas também tem
como base os interesses capitalistas mais gerais em estabilizar
as relações sociais que fundamentam o modo de produção e
circulação do capital, em especial em razão do avanço industrial
implicar no crescimento da parcela fixa e imobilizada do capital.
Era necessário estabilizar os processos de produção e circulação
também ameaçados pelos efeitos da desarticulação social provo-
cada pela mercantilização ampla da sociedade, em especial do
trabalho, da terra e do próprio dinheiro. Foram essas forças que
deram origem ao compromisso fordista-keynesiano que se conso-
lida após a Segunda Guerra Mundial. As instituições de proteção
e regulação social que vão gerar o Estado de Bem-Estar Social
resultam da busca de contenção das contradições do capita-
lismo industrial e as suas limitações como regime de acumulação
fundado em relações mercantis.
As novas pressões sobre a mercantilização da sociedade
emergem em razão do deslocamento da centralidade da “acumu-
lação ampliada” para a expansão dos processos de “acumulação
primitiva” e “acumulação pela apropriação” (CHESNAIS, 2005).
O cerne desse processo consiste no envolvimento de cada vez
mais setores da economia nos circuitos dominados pelas lógicas
do capital financeiro e a criação de novas possibilidades de inves-
timento para o capital rentista. Como o capitalismo contem-
porâneo vem se tornando cada vez mais dependente desses
processos, a tendência é ampliar o escopo das mercadorias a
serem negociadas sob a forma de ativos financeiros. Seguimos a
hipótese levantada por Bienefeld (2007): o capitalismo contem-
porâneo financeirizado vem operando de forma a enfraquecer
o “duplo movimento” de Polanyi em nome da grande liquidez
gerada pelos mercados secundários e das infinitas possibilidades
de ganho presentes no cenário econômico cada vez mais desre-
gulado. O avanço do mercado desembebido pode, entretanto,
levar a disrupções violentas, conforme já ocorrido em outros
momentos da história do capitalismo.

384
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

Ajuste espacial e a destruição criativa da


solidariedade territorial
Desde a década de 1990 o Brasil vem passando por sucessivas
ondas de ajuste estrutural e espacial que ganharam força após
a crise da dívida da década de 1980 e a progressiva influência
exercida pelas instituições multilaterais sobre a definição dos
rumos da política econômica e fiscal desde então. Pedro Arantes
(2006) ressalta que os acordos de renegociação da dívida externa
impostos pelo FMI tiveram uma repercussão significativa nas
políticas urbanas, onde prevaleceu uma doutrina que defendia
a busca por alternativas de mercado para o financiamento da
infraestrutura e serviços urbanos.

A doutrina da ‘recuperação plena de custos’ (full cost recovery)


passou a nortear as políticas urbanas dentro de um modelo
‘autossustentável’, baseado em receitas tarifárias não-subsi-
diadas (...) Essas iniciativas constituíram uma primeira etapa
da ‘transição’ das cidades para um modelo de políticas públi-
cas ‘de mercado’, seguida por outra, caracterizada pela trans-
posição da lógica das empresas para a gestão das cidades.
Nessa segunda etapa, as cidades passaram a ser geridas não
apenas like business, mas for business. Isso significa que, além
de colaborar com o equilíbrio financeiro do ajuste fiscal, as
cidades deveriam tornar-se ‘máquinas de produzir riquezas’
(ARANTES, 2006, p. 66).

As agências passaram a exigir a adoção de modelos de


governança “empreendedores” como contrapartida à liberação
dos empréstimos, defendendo a necessidade de reformar o setor
público em nome de maior “eficiência” calcada em metas fiscais
rigorosas. Com isso, a atuação do setor público deveria concen-
trar seus esforços na atração de recursos do setor privado, em
um contexto em que as políticas redistributivas começavam a ser
desmontadas ou privatizadas para dar lugar a programas compen-
satórios de alcance social restrito. Quatro modalidades de acesso
ao crédito passam a ser privilegiadas: a criação de agências inde-
pendentes e responsáveis pela gestão e captação de recursos
para projetos específicos; a implementação de parcerias públi-

385
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

co-privadas e concessão de serviços públicos ao setor privado; a


emissão de títulos para levantar recursos no mercado de capitais;
e a emissão de títulos específicos voltados para o financiamento
de intervenções concentradas em um perímetro urbano especí-
fico. Isso resultou em uma concepção de ação pública cada vez
mais orientada pelas taxas de retorno geradas pelos investimentos
realizados, reduzida à necessidade de produzir espaços articu-
lados às lógicas de valorização do capital (ARANTES, 2006). Os
efeitos dessas inovações expressaram-se de forma mais evidente
nas grandes metrópoles, mas sua abrangência nacional não deve
ser desconsiderada. De forma geral, cabe situar esse processo
de reorientação das modalidades de governança como parte de
um ajuste espacial mais amplo, cujas expressões são a destruição
criativa do sistema de solidariedade territorial instituído pelo
pacto federativo pós-redemocratização e o reescalonamento do
Estado brasileiro.
Cabe ressaltar que a construção desse pacto foi marcada por
ambiguidades expressas por uma tensão entre o aumento das
responsabilidades delegadas à esfera municipal e uma restrição
de sua autonomia fiscal por parte do governo federal. A Assem-
bleia Constituinte de 1988 criou as bases da autonomia municipal
com o reconhecimento do município enquanto ente federativo
da organização política do Estado brasileiro. A nova Consti-
tuição estabeleceu uma série de direitos fundamentais a serem
garantidos pelo poder público e quebrou com a centralização
financeira e administrativa exercida pela esfera federal durante
o Regime Militar, tornando os governos estaduais e municipais
soberanos para instituir suas próprias políticas ou aderir aos
programas propostos por algum nível de governo mais abran-
gente. Mas essa autonomia levou a uma espécie de “barganha
federativa”, em que a adesão das esferas locais às novas atribui-
ções instituídas ficou atrelada a um cálculo em que eram consi-
derados os custos e benefícios (políticos e fiscais) da decisão
de assumir uma dada política ou não (ARRETCHE, 1999). Isso
impede que se fale em uma autonomia plena, pois o desenho
institucional do pacto federativo brasileiro seguiu favorecendo
a concentração do poder de decisão na esfera federal, frente a
uma descentralização do poder de execução nas esferas estaduais

386
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

e municipais. Além disso, não há nada que obrigue determinado


município a implementar uma política pública qualquer, salvo
aquelas resguardadas sob determinação constitucional. Arretche
(1999) coloca que a adesão dos governos locais vai depender
de estratégias bem sucedidas de indução por parte do governo
federal, capazes de superar limitações estruturais (financeiras
e administrativas) presentes e compensar os custos envolvidos
na implantação. A efetivação desse modelo expressou também
variações significativas entre os diferentes contextos municipais
e estaduais existentes no país – onde o histórico passado de polí-
ticas sociais implementadas possui um peso significativo – e uma
relativa fragmentação nas possibilidades de descentralizar de
forma autônoma as responsabilidades (ARRETCHE, 1999).
As reformas neoliberais implementadas na década de 1990
criaram mecanismos institucionais e jurídicos que reforçaram
essa “descentralização dependente”. Elas ajudaram a otimizar os
recursos disponíveis por meio de novas formas de financiamento
e de coordenação federativa, que ampliaram os incentivos para
que os governos locais assumissem ou ampliassem a oferta de
programas regulados conforme diretrizes definidas no âmbito
federal (VASQUEZ, 2014). Com isso, o sistema de seguridade
social foi sendo reformulado de forma a delegar aos estados e
municípios grande parte das funções de gestão ligadas às polí-
ticas de saúde, habitação, saneamento básico e assistência social
(ARRETCHE, 1999). Mas essa ampliação de responsabilidades
esteve sobreposta aos programas de ajuste fiscal que vinham
sendo implementados como parte do Plano Real e da renego-
ciação da dívida com o FMI. Com isso cresciam as restrições
fiscais impostas à participação da União – que seguiu desem-
penhando um papel central no financiamento dos programas
desenvolvidos na esfera local – ao passo que se intensificava a
prioridade dada aos municípios e a retórica em torno da necessi-
dade de aumentar a “eficiência” das estruturas de gestão.
As reformas implementadas durante os governos de
Fernando Henrique Cardoso favoreceram um maior controle
sobre a gestão fiscal dos municípios, através da criação de regu-
lações que limitaram a autonomia alocativa dos recursos orça-
mentários. No plano da gestão fiscal foram estabelecidos parâ-

387
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

metros para a vinculação de receitas, tetos máximos para certas


despesas, restrições a operações de crédito e limites do endivida-
mento, além da constituição de fundos para o financiamento de
políticas específicas. Também foram criados mecanismos para
condicionar o repasse de recursos à implementação de determi-
nados programas de interesse federal na esfera local, contando
com a exigência de contrapartidas pagas com recursos municipais
(VASQUEZ, 2014). Com isso foi reforçado tanto o papel executor
dos municípios quanto a sua dependência estrutural ao governo
federal. A autonomia municipal prevista na Constituição de
1988 foi restringida pelo aumento das exigências previstas pela
execução das funções ligadas à seguridade social, manifestas na
gestão das políticas redistributivas na esfera local – o aumento
das responsabilidades se deu sem o aumento proporcional do
aporte de recursos necessários.
Essa aparente contradição entre o aumento das respon-
sabilidades delegadas aos municípios e a restrição de recursos
repassados no âmbito federal reflete as doutrinas impostas pelas
agências multilaterais, pressionando as autoridades locais a
buscarem suas fontes de financiamento junto ao setor privado.
Nas áreas que contam com percentual mínimo de investimento
fixado pela legislação, como a saúde e a educação, isso não foi
tão evidente. Mas essa lógica atingiu de forma significativa os
investimentos em infraestrutura urbana, reforçando a colocação
de Arantes (2006) sobre a tendência à adoção de estratégias de
desenvolvimento urbano orientadas pelos objetivos da competiti-
vidade interurbana, na expectativa da atração de empresas para
suprir as demandas por investimento e gerar recursos para o
município. Isso exigiu também redesenhar a regulação urbanís-
tica a fim de facilitar os investimentos privados nas cidades, com
a criação de instrumentos para essa finalidade (PEREIRA, 2015).
No quadro de ambiguidade presente na constituição desse
sistema de solidariedade territorial (de um lado decisão centra-
lizada/execução descentralizada; de outro aumento de responsa-
bilidades/contingenciamento de recursos), o avanço do projeto
ultraliberal em curso desde 2016 tenderia a acirrar as contra-
dições existentes, mas com uma tendência a resolvê-las deses-
truturando as políticas redistributivas a favor de políticas pró-

388
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

crescimento. Uma consequência direta disso seria a adoção do


empreendedorismo urbano como padrão de governança urbana,
principalmente devido aos constrangimentos sobre os controles
fiscais e financeiros. O governo federal tende a aumentar a
pressão sobre os níveis inferiores de governo, usando as dificul-
dades decorrentes dos déficits orçamentários como instrumento
de imposição da disciplina fiscal e pressionando pela busca de
recursos no setor privado.

Economia política da cidade: as políticas pró-


crescimento
A adesão às agendas de desenvolvimento econômico baseadas
em “políticas pró-crescimento” mantém uma relação direta com
a implementação de estratégias de governança calcadas sobre o
“empreendedorismo urbano”, como forma de criar ambientes
favoráveis para estimular a atração de investimentos privados e
criar condições concretas para favorecer a inserção do urbano
nos circuitos de acumulação. Esse processo foi discutido de
forma pioneira por Harvey (2005) em meados da década de 1980
tendo como base a experiência de cidades norte-americanas, mas
reconhecendo que se tratava de uma tendência global relacio-
nada aos ajustes estruturais em curso na economia capitalista,
decorrentes da desestabilização do regime fordista/keynesiano
e a conformação de um novo “regime de acumulação flexível”.
As dificuldades enfrentadas pelas economias nacionais a
partir das crises ocorridas na década de 1970 – que se mani-
festaram sob a forma de altos níveis de desemprego, desindus-
trialização, crises ficais agudas – e a ascensão de ideologias
conservadoras com apelo forte à privatização e à racionalidade
do mercado, teriam composto um pano de fundo que levou as
administrações locais a assumirem um papel mais proativo na
busca por investimento (HARVEY, 2005). O urbano assumiu um
papel central nessa virada e muitas cidades passaram a investir
em projetos de “revitalização” de áreas de urbanização consoli-
dada, com o objetivo de abrir novas frentes de acumulação para
o capital imobiliário e para a expansão de setores emergentes
ligados ao terciário avançado. Smith (2006) coloca que esse

389
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

modelo de intervenção se tornou o principal motor da expansão


econômica da cidade nos países centrais do capitalismo e estra-
tégia fundamental em um contexto de competição global entre as
diferentes aglomerações urbanas. Seus efeitos também formam
sentidos em países emergentes como o Brasil, favorecidos pela
atuação das agências multilaterais que incorporaram esse tipo de
intervenção em seus manuais de best practices.
Harvey (2005) propõe uma tipologia para a identificação
das distintas estratégias de empreendedorismo urbano orien-
tadas pela inserção das cidades na dinâmica econômica global.
São elas:

a) Inserção na divisão internacional do trabalho: pode


ocorrer a partir da exploração de vantagens específicas
necessárias para atender determinados mercados de bens
e serviços dependentes de recursos naturais ou geográ-
ficos únicos, como é o caso das cidades e regiões que
fazem uso de recursos naturais ou do acesso privilegiado
a rotas comerciais. Mas pode envolver também o inves-
timento em melhorias na infraestrutura e formação de
recursos humanos para criar vantagens locacionais que
tornem a cidade mais atraente aos investidores. Algo que
pode ser combinado com incentivos do poder público
para o uso de tecnologias de ponta, para o desenvolvi-
mento de novos produtos, ou mesmo para a provisão de
capital de risco para empresas inovadoras. Associado a
isso estão também os subsídios e isenções fiscais ofere-
cidos para reduzir os custos de instalação das empresas e
estratégias para diminuir o custo da mão de obra.
b) Inserção na divisão espacial do consumo: corresponde
a políticas urbanas que tentam atrair o consumo de
massa estimulado pela expansão do crédito bancário que
ocorreu no mundo, não obstante as crises e as recessões
econômicas. Envolve a promoção da cidade enquanto um
destino turístico capaz de atrair um público seleto e inte-
ressado em investir seus recursos pessoais em experiên-
cias diferenciadas. Para tal, muitas administrações locais
passaram a apostar em intervenções para renovar áreas

390
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

da cidade com o objetivo de criar espaços excitantes,


criativos, seguros e repletos de equipamentos públicos ou
privados voltados para o consumo e entretenimento.
c) Atração de atividades de comando e controle: diz respeito
ao interesse em atrair postos de comando ligados ao
mercado financeiro internacional, terciário avançado,
altas esferas de governo, processamento de dados e
produção de informação. Algo que exige investimentos
públicos consideráveis para criar espaços bem-dotados
de redes de comunicação e infraestrutura condizentes
com as demandas desses setores. Para tanto, são neces-
sários investimentos importantes em transportes e comu-
nicações e na oferta de espaço adequado de trabalho,
equipado com ligações internas e externas necessárias
para minimizar os tempos e os custos de transações.
d) Redistribuição de superávits dos governos centrais:
trata-se de situações nas quais os governos centrais ou
estaduais redistribuem seus recursos de maneira não
habitual. Como exemplo, temos os gastos com a indús-
tria militar e de defesa, que impulsionaram a dinami-
zação urbana da aglomeração de São Diego/Long Beach.
A chegada desses recursos está associada à dinamização
do mercado de trabalho com o crescimento do segmento
de alta qualificação.

Inserção no capitalismo urbano-imobiliário global


Pode-se considerar outro tipo de estratégia a orientação
das políticas de crescimento das cidades a partir dos objetivos
de inserção em uma dinâmica que pode ser denominada de
capitalismo urbano-imobiliário. Trata-se de uma noção teórica
provisória, cujo fundamento é a proposição de Harvey (1985)
sobre as ondas largas de expansão do ambiente construído
impulsionadas pelas respostas do capital às suas tendências
intrínsecas de sobreacumulação. Com efeito, Harvey defende
que a urbanização do capital cria condições para saídas espaço-
temporais ao capital pois permite a sua circulação na produção

391
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

de ambiente construído na forma de capital fixo, com impli-


cações na diminuição da pressão sobre a queda tendencial das
taxas de lucros – tanto pela transformação de capital-dinheiro
em capital fixo (equipamentos, infraestrutura, imóveis corpo-
rativos e residenciais etc.) como também na concessão de
crédito de longa duração. A urbanização do capital não é um
fenômeno da atual crise de acumulação: em vários momentos
da história do capitalismo as sociedades conheceram surtos
de urbanização impulsionados por essa lógica6. Em todos os
ciclos de urbanização do capital há recorrências, como booms
de construção imobiliária, inovações financeiras e expansão
do endividamento, mudança da escala de urbanização, trans-
formação de modos de vida e padrões de consumo, e transfor-
mações de padrões de gestão.
Mas o que teria de novo neste ciclo atual? Dois aspectos
merecem a nossa atenção. A primeira novidade diz respeito à
escala na qual se expressa hoje esse capitalismo urbano-imobi-
liário: segundo Harvey (2010), ele se tornou global. A segunda
novidade é que se antes havia uma dependência de inovações
financeiras, atualmente a financeirização do capitalismo passou
a ser a mola propulsora. As inovações financeiras ocorridas nos
EUA e na Europa (que resultaram na crise do subprime em 2008)
criaram uma macroestrutura financeira voltada para assegurar a
manutenção do sistema bancário-creditício que não foi destruída
pelas políticas dos países centrais. A crise desse sistema pode
levar a uma crise global do capitalismo em razão do seu papel de
centro-coordenador da circulação do capital e de interconexão
das economias nacionais. Segundo Braga (1997), essa macroes-
trutura financeira é formada:

(...) por um conjunto de instituições formado pelos bancos


centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas or-
ganizações financeiras, corretoras, seguradoras, fundos de
investimento – pelas grandes corporações industriais e co-
merciais, pelos proprietários de grandes fortunas. Estes agen-
tes operam, em várias praças financeiras, a valorização e a
6
É nesse sentido que Harvey (2015) analisa o ciclo de renovação urbana que
marcou a história do urbanismo moderno representado pela modernização de
Paris realizada pelo barão de Haussmann.

392
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

desvalorização das moedas, dos ativos financeiros e dos patri-


mônios, enquanto papéis representativos da riqueza; gerindo
os mercados interligados de crédito e de capitais; ampliando
as transações cambiais autonomizadas em relação ao comér-
cio internacional; redirecionando, em síntese, a alocação da
‘poupança financeira da liquidez internacional’ (BRAGA,
1997, p. 222).

Essa macroestrutura expressa as finanças como força propul-


sora própria, geradoras de negócios que devem se rentabilizar
em dinâmicas de acumulação que resultam da articulação capital
a juros e capital produtivo. Conforme Braga (1997):

(...) o capital financeiro ‘moderno’ vem sendo constituído


como fusão da forma de juro com lucro em busca da rea-
lização, portanto, de ganhos operacionais bem como finan-
ceiro-patrimoniais. Ele é encarnado, com este propósito, no
interior das próprias corporações tanto quanto pelos bancos
e demais organizações financeiras cujos lucros gerais, ainda
que tendo componentes fictícios, são efetivados pelas moe-
das privadas e públicas (BRAGA, 1997, p. 222).

É com base nessa realidade nova do capitalismo sob a domi-


nância financeira que podemos compreender o capitalismo urba-
no-imobiliário. Ou seja, os ciclos de expansão do meio ambiente
urbano construído vêm adquirindo dinâmica própria em relação
às necessidades de equilíbrio da acumulação do capital produtivo,
sem expressar, portanto, a busca de solução espaço-temporal da
crise de sobreacumulação. Isto quer dizer que a expansão do meio
ambiente urbano construído estaria resultando em dinâmicas
especulativas autônomas em relação às demandas de condições
de equilíbrio da acumulação do capital produtivo, impulsionadas
essencialmente pela lógica da financeirização do capitalismo.
Consideramos, portanto, a hipótese da existência de um capita-
lismo urbano-imobiliário global, fundado na dinâmica autônoma
da produção do meio urbano. Essa dinâmica teria como bases
o papel autônomo do capital financeiro “moderno”, a possibi-
lidade da lógica de negócios desse capital se entrelaçar com os
negócios que tenham como base a valorização da propriedade
urbana captando rendas e lucros com o meio ambiente cons-

393
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

truído, além das condições institucionais, políticas e culturais


locais em relação a essa expressão global do capitalismo urbano
-imobiliário.
Esse último condicionante é fundamental para que o capi-
talismo urbano-imobiliário gere uma dinâmica autônoma na
produção do meio ambiente urbano construído. É preciso regu-
lações específicas sobre a propriedade imobiliária e o uso e
ocupação do solo urbano que promovam a liquidez do investi-
mento no meio ambiente construído (FOX GOTHAM, 2009). É
preciso também projetos de desenvolvimento urbano orientados
pela dinâmica da transformação do meio ambiente construído,
tanto pela criação de novos espaços, quanto pela renovação das
áreas já ocupadas. Esses projetos precisam ter como fundamento
de legitimação social a demanda de novos modos de vida e novos
padrões de consumo correlacionados às transformações do meio
ambiente construído. É necessária também a existência de um
bloco de poder que expresse o projeto de desenvolvimento.
Enfim, são necessários atores do mercado imobiliário: incorpo-
radores, corretores, construtores, dentre outros.
Além disso, outros elementos inovadores sustentam esses
ciclos. Podemos supor que no caso do Brasil as estratégias de
inserção no capitalismo urbano-imobiliário terão como funda-
mentos a necessidade do desenvolvimento local endógeno como
solução à crise fiscal provocada pela inflexão ultraliberal. Nesse
sentido, as recomendações de organismos multilaterais podem
ter grande importância. Vale recuperar o que o Banco Mundial
recomendava logo após os impactos negativos da crise do subprime
dos EUA:

(...) desde a desregulamentação do sistema financeiro na se-


gunda metade da década de 1980, o financiamento imobiliá-
rio de mercado expandiu-se rapidamente. Nos países desen-
volvidos, os mercados de hipotecas residenciais equivalem
hoje a mais de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), mas é
muito menos nos países em desenvolvimento e, em média,
equivale a 10% do PIB. O papel do setor público deveria con-
sistir em estimular a participação privada bem regulamen-
tada. Um bom começo seria estabelecer os fundamentos le-
gais para os contratos hipotecários, executáveis e prudentes.

394
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

Quando o sistema de um país é mais desenvolvido e maduro,


o setor público pode estimular um mercado hipotecário se-
cundário, criar inovações financeiras e expandir a securitiza-
ção das hipotecas. As pessoas querem morar em casa própria
[...] é importante para a criação de riqueza e para a segurança
e políticas sociais (BANCO MUNDIAL, 2009, p. 206).

Por outro lado, essa estratégia encontraria também como


incentivo a existência de uma poderosa coalizão de interesses
dominantes fundados nos circuitos econômicos que organizam
a acumulação urbana no Brasil (capital imobiliário, capital de
concessões de serviços coletivos, capital empreiteiro) com
vigência local e que nos últimos anos alcançou presença impor-
tante no bloco nacional de poder. Essa coalizão assegurou a
convergência de interesses entre o capital nacional e o capital
internacional a partir de uma divisão das respectivas órbitas de
acumulação, de forma a comandar de maneira liberal e conser-
vadora a inserção do Brasil na expansão do capitalismo globali-
zado. O urbano foi usado para viabilizar os interesses mercantis
nacionais a partir dos vários circuitos de acumulação envolvidos
com a produção e apropriação das cidades – o Estado teve papel
ativo na manutenção e efetivação dessa coalizão.
As recomendações do Banco Mundial guardam estreita
relação com o amplo e longo processo de difusão global de novos
marcos institucionais que vêm operando o reescalonamento
das funções de coordenação dos Estados Nacionais na direção
de tornar as cidades locus dos capitais globais. Tais mudanças
buscam transformar o arcabouço regulatório das cidades a fim
de criar um ambiente supostamente mais favorável aos negócios
urbanos, tornando os governos municipais empreendedores do
capitalismo financeiro global. O Brasil vem sendo incorporado
nesse movimento e uma das claras evidências disso foram as
reformas regulatórias visando a instituição de um circuito finan-
ceiro-imobiliário fundado na lógica do mercado de capitais, supe-
rando as limitações do financiamento público e do típico capital
de empréstimo. São novos títulos financeiros de base imobiliária,
instituindo um conjunto de formas contratuais que diversifi-
caram os canais de articulação entre a esfera financeira e o setor
imobiliário existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Mas

395
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

esse circuito financeiro-imobiliário ainda não se consolidou no


Brasil entre outras razões pelo aumento astronômico da taxa de
juros após os primeiros sinais da inflação e da crise econômica
em 2013. Espera-se, contudo, que as reformas ultraliberais em
curso criem o espaço necessário para a manutenção da trajetória
de queda das taxas de inflação e dos juros, criando condições
para dinamizar o circuito financeiro.
Outra frente de iniciativas para a inserção das cidades brasi-
leiras no capitalismo urbano global vem sendo constituída pelas
transformações do modelo de política e de governança urbana.
Exemplo disso são as Operações Urbanas Consorciadas e o
instrumento das Parcerias Público-Privado (PPP’s). Assumimos a
hipótese de que algumas cidades poderão adotar essas estratégias
enquanto parte do escopo das políticas pró-crescimento. Além dos
estímulos decorrentes das orientações dos organismos multilate-
rais, essas iniciativas são estimuladas pelos seguintes fatores:
a) Incentivo do governo federal para que os estados e muni-
cípios adotem política de privatização e de concessões
nas áreas de infraestrutura urbana e serviços coletivos,
com vistas a atrair capitais nacionais e internacionais7.
b) Paralelamente a essas medidas de incentivo, há sinais da
adoção de medidas de austeridade sob a justificativa da crise
fiscal do setor público, que no plano das cidades se asse-
melhariam ao que vem sendo denominado como austerity
urbanism (PECK, 2015). Ou seja, um conjunto de medidas
impostas através de uma combinação de cortes orçamentá-
rios de cima para baixo, redução das transferências inter-
governamentais e queda das receitas fiscais. Ressalta-se que
essas medidas não são apenas um imperativo para o equilí-
brio das contas públicas, mas, acima de tudo, buscam rede-
finir o papel do governo – o driver da austeridade é sobre a
utilização da crise ao invés da solução.
c) A existência de fortes coalizões políticas locais histori-
camente conformadas em torno da acumulação urbana:
7
Tal incentivo está traduzido em uma política nacional através da Lei 13.334/16
(Programa de Parcerias para Investimentos) e das Leis Federais 9.491/97,
8.987/95 e 11.079/04. Essa política tem o objetivo de estimular estados e mu-
nicípios a privatizarem a infraestrutura e serviços urbanos através de PPP’s.

396
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

capital incorporador, imobiliário, capital empreiteiro de


obras, capital concessionário de serviços, proprietários
de terra8.
d) A pressão das forças globais pelo reescalonamento do
Estado Nacional e a aceleração do ajuste espacial da
sociedade brasileira.
e) A existência de uma dinâmica global do circuito financei-
ro-imobiliário.

Podemos então considerar a existência de um circuito finan-


ceiro-imobiliário global, cujas instituições e atores buscam a
oportunidade de bons negócios pelo mundo, proporcionados
por políticas de (re)desenvolvimento urbano. Na atual inflexão
ultraliberal do país e com as reformas institucionais em curso,
é possível que as cidades brasileiras e sua crise fiscal ofereçam
boas oportunidades para a associação de projetos de (re)desen-
volvimento urbano com o circuito financeiro-imobiliário global.
Pesquisas recentes (FIX, 2009; SANFELICE, 2013), no entanto,
mostram que existem alguns obstáculos para essa inserção plena
no circuito global de tal forma que possa ser replicado plena-
mente o modelo ocorrido em outras cidades estrangeiras.
Segundo Fix (2007, p. 19), “o capital internacional encontra
ainda obstáculo, como a ausência de uma articulação finan-
ceira interna que o viabilize e a debilidade da integração com
a lógica externa”. Ademais, também existe a necessidade dos
atores do capital imobiliário internacional atuarem em parceria
com empresas locais em razão do desconhecimento das particu-
laridades do mercado do local, das relações dos mecanismos de
influência sobre as obras públicas e da legislação urbanística da
cidade. Outra limitação apontada por Fix (2007) é a fragilidade
dos instrumentos de financiamento fundados no mercado de
capitais criados na década de 1990, como os Fundos de Investi-
mento Imobiliário. Os Fundos de Investimento Imobiliário pouco
8
Essas coalizões foram fortalecidas pelas políticas federais, tais como Minha
Casa Minha Vida, Programa de Aceleração do Crescimento, megaeventos, den-
tre outros. Por outro lado, a estratégia pró-crescimento fundada em projetos
de (re)desenvolvimento urbano tem como atrativo gerar a curto prazo a cadeia
virtuosa de emprego/renda/votos, constituindo-se na base de fortalecimento
e estabilização de coalizões interescalares entre forças de mercado e políticas.

397
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

se desenvolveram no Brasil em razão do frágil mercado secun-


dário com capacidade de dotar os investimentos de liquidez. Na
origem dessa fragilidade está o fato da alta taxa de juros mantida
pela política macroeconômica tornar esse investimento pouco
atrativo.
A atual trajetória da queda de juros certamente criará um
cenário favorável à ativação dos instrumentos de financiamento
imobiliário fundados no mercado de capitais já criados, drenando
parte importante dos investimentos das famílias. Devemos ainda
considerar a entrada no Brasil dos grandes fundos de inves-
timento na compra de empresas, como é caso do anúncio da
compra do Grupo Invepar pelo gigante fundo de investimentos
Mubadala9. É provável que no cenário que está sendo desenhado,
a presença de fundos globais de investimento se torne mais signi-
ficativa no país.

A máquina brasileira de crescimento urbano


Considerando a hipótese da estratégia de inserção no capita-
lismo urbano-imobiliário global, torna-se pertinente considerar o
clássico conceito de “máquina de crescimento urbano” formulado
por Logan e Molotch (1976), como orientador das análises sobre
a adoção pelas cidades de políticas pró-crescimento. A discussão
dos autores está baseada na experiência das cidades norte-ameri-
canas, tendo como fundo histórico a crise fiscal e social dos anos
1970. Eles ressaltam o papel das “classes rentistas” que sempre
existiram organizando coalizões e articulando proprietários
fundiários, políticos locais, mídia, agências de serviços públicos,
setores sindicais, instituições culturais como museus e universi-
dades etc. Enfim, todos aqueles que tinham algo a ganhar com o
“crescimento da cidade” como resposta à situação de crise.
9
As incertezas políticas vêm dificultando a conclusão dessa operação, segun-
do notícias veiculadas pelo jornal Valor Econômico. Ver http://www.valor.com.
br/empresas/5403955/esfria-compra-de-invepar-por-mubadala. Além disso, o
prazo para exclusividade dada ao Mubadala foi encerrado: “A Invepar escla-
rece que o acordo não foi prorrogado e nem ofertado a outro interessado em
comprar a companhia. O fundo Mubadala entanto, ainda realiza diligências
para viabilizar a operação”. Fonte: https://www.lexisnexis.com.br/lexis360/
noticias/603/fatos-relevantes-de-16-a-20-de-abril-de-2018/.

398
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

O centro da estratégia das coalizões é promover projetos


de crescimento da cidade com intuito de gerar uma dinâmica
de valorização do solo urbano capturado na forma de renda da
terra. Para tanto, os atores da coalizão pró-crescimento buscam
influenciar a dinâmica do mercado imobiliário com a realização
de inovações urbanísticas e arquitetônicas e direcionar os inves-
timentos públicos de maneira a criar diferenciações nos preços
fundiários. Segundo Logan e Molotch (1976 apud FIX, 2007),
três tipos de ativistas surgem na coalizão pró-crescimento: o
acidental, o ativo e o estrutural. O primeiro é o ator rentista
passivo que age apenas se beneficiando da ação dos outros atores;
já o ator ativo busca se antecipar às mudanças urbanas possíveis,
desenvolvendo práticas de especulação em relação aos preços
imobiliários futuros através do controle de áreas propensas a
receber investimentos privados e públicos; e o estrutural “não
apenas procura prever o futuro para tomar suas decisões, como
também intervém para alterá-lo, modificando as condições que
estruturam o mercado” (FIX, 2007, p. 25).
A transformação da cidade em máquina de crescimento
teria como base a orquestração especulativa do desenvolvimento
urbano operado pela coalizão, de forma a gerar condições de
apropriação da renda da terra. Entretanto, a adoção dessa estra-
tégia depende de condições específicas de cada cidade, que se
relacionam com o grau em que a terra e os imóveis se encontram
desenvolvidos enquanto mercadoria plena. Essa mercantilização
depende muitas vezes de mudanças regulatórias que criam as
condições de plena liquidez da terra e dos imóveis e, ao mesmo
tempo, constrangem formas não capitalistas de produção e circu-
lação do espaço construído.
O poder dessas coalizões em transformar as cidades em
“máquinas de crescimento” aumenta com a hipótese da consti-
tuição do circuito imobiliário-financeiro. A razão disso decorre
não apenas da mudança de escala espaço-temporal das opera-
ções urbanas. Dois outros fatores devem ser considerados. De um
lado, o fato de as instituições financeiras dotarem as máquinas
de crescimento de maior capacidade de coordenação para os
vários atores que integram a coalizão. De outro, por poderem
manipular e controlar a oferta e a demanda de moradias, espaços

399
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

comerciais, escritórios, além do financiamento a produtores e


compradores. Como argumenta Harvey (2013), considerando a
situação da atividade construtiva caracterizada por longos e desi-
guais períodos de produção, circulação e rotação de estoques,
qualquer aumento da demanda em razão da concessão de
créditos tende a pressionar as expectativas de preços futuros,
o que permite práticas especulativas com relação à valorização
imobiliária gerada pelas operações urbanas. Tal fato possibi-
lita que os atores do circuito financeiro-imobiliário operem em
larga escala com práticas especulativas. Estimular a demanda
pelo aumento da oferta de crédito cria as condições de ganhos
rentistas financeiros e imobiliários.
Outro aspecto a considerar na transformação do poder
das coalizões “das máquinas de crescimento urbano” é a trans-
formação do poder dos atores em função da financeirização
das empresas envolvidas na construção e na concessão dos
serviços urbanos. Muitas dessas empresas transformaram-se
em Grandes Grupos Econômicos (ROCHA, 2013) com sua
lógica híbrida de acumulação que funde as diferentes formas
de apropriação da mais-valia: lucro, juros e renda. Essa nova
forma de organização empresarial transforma as empresas em
uma plataforma de negócios gerida por uma holding, com base
na regra da manutenção do poder de escolha por parte dos
investidores e com a finalidade da busca constante de opor-
tunidades mais rentáveis para a alocação do capital. Como
destaca Braga (1997):
A atividade rentista incorpora-se nestas grandes empresas
através das aplicações financeiras de lucros retidos ou de caixa,
e de utilização do crédito lato sensu como instrumento de alavan-
cagem para ganhos de todo tipo. Portanto, o rentismo não é mais
especialidade dos detentores de fortunas pessoais ou do capital
bancário, ou das empresas do sistema financeiro. Esta prepon-
derância das finanças nas corporações industriais vem a ser um
elemento determinante do rentismo institucional-corporativo
contemporâneo (BRAGA, 1997, p. 220).
Essa penetração da lógica financeira no interior da orga-
nização do capital produtivo se traduz em estratégias empresa-
riais orientadas pela manutenção e aumento da sua capacidade

400
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

de liquidez através de gestão de estoques de moedas conversí-


veis internacionalmente e de ativos do tipo quase-dinheiro, não
apenas em momentos de crise da necessidade de proteção do
capital. Por outro lado, a penetração da lógica financeira vem
criando um novo tipo de empresa capitalista com o poder de ser
multinacional, multissetorial e multifuncional. Segundo Braga
(1997), essas grandes firmas são estruturadas consoante suas
estratégias analisadas na função-objetivo. Multinacionais, eviden-
temente, porque seu espaço de realização de lucros inclui vários
territórios nacionais, mas essa mesma capacidade global está
ancorada em países onde a consistência macroeconômica e os
fundamentos industriais e tecnológicos são mais sólidos. Ou seja,
em países onde exista moeda nacional conversível internacio-
nalmente, sistemas de financiamento do investimento de longo
prazo, sistemas de desenvolvimento tecnológico, e uma dinâmica
produtiva virtuosa em setores relevantes de bens de capital e de
bens de consumo. Países nessas condições são os “formadores”
de multinacionais em volume expressivo, empresas do tipo
global players (na produção, no comércio, nas finanças). Ainda
nos termos adotados por Braga (1997), podemos caracterizar
essas firmas como multissetoriais, no sentido de que são várias
empresas operando em distintos ramos da produção industrial, e
multifuncionais porque se ocupam ao mesmo tempo das funções
produtivas, comerciais e financeiras.
Segundo a pesquisa realizada por Rocha (2011), os Grandes
Grupos Econômicos apresentam traços fortes do surgimento
de empresas financiarizadas em termos de estratégias e orga-
nização. Esse novo poder está presente em um novo agente da
acumulação urbana: os City Builders. Essa categoria é usada para
dar conta do surgimento nas cidades brasileiras de novos atores
na acumulação urbana, integrantes da categoria de Grandes
Grupos Econômicos10. Em razão da centralização do capital, sua
10
Na sua pesquisa sobre os 20 maiores Grandes Grupos Econômicos do Brasil,
Rocha (2011) identifica as características de alguns dos principais atores históri-
cos da acumulação urbana e suas transformações recentes. Grande parte dessas
transformações foi decorrente dos processos de reestruturação da economia, li-
gados às privatizações e ao avanço da financeirização, que transformou empresas
familiares em holdings de negócios multinacionais, multissetoriais e multifuncio-
nais, como os casos da Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Odebrecht.

401
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

capacidade de organizar como uma plataforma de negócios e sua


lógica de acumulação financeira-rentista, esses atores detêm hoje
capacidade de articulação dos vários circuitos econômicos da
acumulação urbana e centralizam o poder de orquestração antes
disperso e coordenado pela class-monopoly rent. O resultado é,
por um lado, a disseminação nas cidades brasileiras dos grandes
projetos urbanos, nova modalidade de acumulação fundada na
apropriação de lucro/juros/renda, nesse caso, sobretudo a renda
fundiária. Por outro lado, se aprofunda na cidade brasileira a
diferenciação do espaço construído na forma de novos padrões
de segregação urbana.

A produção imobiliária: novo circuito financeiro-


imobiliário
A produção imobiliária é parte importante desses processos
que estão aqui sendo descritos e cabe explorar esse campo com
um pouco mais de acuidade. O processo de financeirização do
setor imobiliário no Brasil começou a ser organizado de forma
sistemática durante a década de 1990 com a criação de novos
instrumentos jurídicos e institucionais que visavam a abertura
desse setor ao mercado de capitais. O levantamento realizado
por Pereira (2015) indica que os principais marcos legais desse
processo foram a Lei nº 8.668/93, que introduziu os Fundos de
Investimento Imobiliário no ordenamento jurídico do país, e
a Lei nº 9.514/97, que criou o Sistema Financeiro Imobiliário
(SFI) e as Companhias Securitizadoras de Créditos Imobiliários.
Houve a continuidade desse processo na década de 2000, particu-
larmente através da Lei nº 10.931 de 2004 que aumentou o rol de
instrumentos financeiros de base imobiliária que já integravam o
SFI naquele momento.
Pereira (2015) aponta duas grandes tendências nesse novo
marco regulatório. A primeira foi o reforço da segurança jurídica
oferecida aos credores, com a instituição de uma série de meca-
nismos para reforçar suas garantias frente aos tomadores de
crédito. Já a segunda diz respeito à profusão de novos títulos
financeiros de base imobiliária, que instituíram um conjunto
de formas contratuais para diversificar os canais de articulação

402
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

entre a esfera financeira e o setor imobiliário, como os Fundos


de Investimento Imobiliário (FII’s), os Certificados de Recebíveis
Imobiliários (CRI’s), as Cédulas de Crédito Imobiliário (CCI’s),
as Letras de Crédito Imobiliário (LCI’s) e as Letras Imobiliárias
Garantidas (LIG’s). Essas medidas trouxeram inovações impor-
tantes para a abertura do imobiliário ao capital financeiro e
favorecem a formação de um crescente mercado secundário de
títulos financeiros com base imobiliária.
Diversos analistas concordam que esse processo ainda
é incipiente no Brasil, mas a sua importância não deve ser
desconsiderada. Bonicenha (2017) coloca que apesar do
mercado secundário ainda não ter assumido a relevância veri-
ficada nos países centrais, isso não significa que não existam
nexos entre os agentes responsáveis pela produção do espaço
e os circuitos financeiros. O caso dos Fundos de Investimento
Imobiliário (FII’s) é bom indicativo desse processo. Botelho
(2007) coloca que os FII’s foram usados em sua fase inicial
por algumas empresas para se beneficiar da isenção fiscal exis-
tente sobre empreendimentos securitizados. Essa estratégia
para escapar da carga tributária, e não propriamente como
um recurso de captação de investimentos para dinamizar a
produção imobiliária, teve fim com as mudanças na legislação
em 1997 e muitas dessas empresas encerraram seus fundos. A
partir desse momento eles começaram a ser dominados por
grandes investidores institucionais, principalmente os grandes
fundos de pensão, que usavam os FII’s para subverter restrições
legais que limitavam o volume de imóveis presentes em seus
ativos. Essa prática sofreu restrições quando o Banco Central
passou a considerar a aquisição de cotas dos FII’s pelos fundos
de pensão enquanto operações que correspondiam à aquisição
de bens imóveis. Somente a partir dos anos 2000 esse tipo de
investimento começou a atrair pequenos e médios investidores
com o lançamento de fundos com cotas de valor unitário mais
baixo (BOTELHO, 2007).
Os projetos que viraram alvos dos FII’s vêm apresentando
um perfil muito particular, em geral constituindo-se em grandes
empreendimentos corporativos de alto padrão. Os dados apre-
sentados pelo Manual do Investidor em Fundos Imobiliários da

403
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

UQBAR confirmam essa tendência. Na metodologia adotada


para avaliar a composição desse mercado, os FII’s existentes no
país foram divididos nas seguintes categorias: Armazenagem,
Hospitalar, Hospedagem, Industrial, Residencial, Escritórios,
Escolar, Varejo e Diversificados. Em 2009, aproximadamente
50% de todo o patrimônio líquido dos FII’s listados na Bolsa de
Valores de São Paulo correspondia à categoria Escritórios, cerca
de 23% à categoria Varejo/Shopping Centers e 16% à categoria
Diversificado11. Outro dado pertinente é a distribuição dos FII’s
por finalidade. Eles foram classificados da seguinte forma: Renda
Regular (para geração de renda regular para os cotistas), Ganho
de Capital (para aumento do valor das cotas através da valori-
zação dos bens ou negociação no mercado secundário), Investi-
mentos Gerais (finalidade ampla) e Securitização (para viabilizar
operações de securitização). Segundo essa classificação, cerca de
74% do total dos fundos negociados correspondiam a fundos de
Renda Regular, cerca de 25% a fundos de Investimentos Gerais
e apenas 0,40% correspondiam à categoria Ganhos de Capital
(UQBAR, 2009).
Os dados acima indicam que esse mercado ainda segue
pequeno em termos quantitativos, relativamente limitado em
termos da variedade de produtos oferecidos e do perfil do
público consumidor ao qual eles se destinam, além de espacial-
mente concentrado na região Sudeste. Cabe dizer que ele ainda
segue direcionado a um nicho que sempre apresentou boas taxas
de retorno para seus investidores. Isso significa que esse mercado
imobiliário financeirizado não conseguiu romper com algumas
dinâmicas similares àquelas do mercado imobiliário tradicional.
E talvez a mais significativa delas seja a dependência em relação
à localização. Botelho (2007) coloca que tanto os FII’s quanto os
CRI’s estão rastreados em uma base material que desempenha
um papel fundamental no valor de mercado dos papéis que serão
negociados. Na prática, os investidores que optam pelos FII’s
continuam avaliando elementos como a localização do empreen-
dimento, sua inserção na rede urbana, a oferta de serviços ofere-

11
Em números absolutos tínhamos nove FII’s para a categoria Escritório, sete
para a categoria Varejo/Shopping Center, cinco para a categoria Diversificados
e apenas um para a categoria Residencial.

404
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

cidos no entorno e assim por diante. Nesse sentido, o rendi-


mento dos fundos segue atrelado à sua valorização enquanto
bem imobiliário. É por isso que a grande maioria desses novos
empreendimentos segue se expandindo pelos mesmos vetores de
valorização que já estavam caracterizados pela ação das empresas
que atuam no mercado imobiliário tradicional. Não se trata de
um mercado novo, mas apenas a intensificação da exploração de
frentes de investimento já existentes.
Além da criação desses novos instrumentos para articular o
mercado imobiliário ao setor financeiro, várias empresas do setor
optaram por abrir seu capital na Bolsa de Valores de São Paulo a
partir de 2004. E os resultados desse processo guardam algumas
particularidades que o diferenciam das dinâmicas apresentadas
no caso dos FII’s. Conforme as análises de Sanfelice (2013) e
Fix (2011), muitas das empresas que aderiram a essa estratégia
foram inicialmente bem sucedidas e conseguiram ampliar o
seu tamanho em um curto espaço de tempo. Fix (2011) coloca
que em 2011 havia 17 empresas do setor imobiliário listadas na
Bovespa, mas a autora ressalta que desde o início desse processo
o setor vem apresentando dificuldades que o impediram de ser
inteiramente capturado pelo capital internacional. Isso se deve
tanto a questões intrínsecas às dinâmicas do próprio negócio
imobiliário (como a importância em conhecer os mercados
locais ou de exercer pressão junto ao poder público) quanto a
obstáculos de ordem estrutural presentes na sociedade brasileira
(como a grande desigualdade de renda que restringe o mercado
formal de imóveis). A autora ressalta que a internacionalização
não ocorreu através da compra de empresas inteiras, mas através
da atuação de um capital com maior mobilidade e flexibilidade,
principalmente através da atuação de fundos de private equity e
grandes fundos internacionais de investimento. Em 2009 esses
fundos detinham cerca de 20% do valor de mercado total das
empresas do setor listadas na Bolsa de Valores, totalizando cerca
de 12,6 bilhões de reais. Cabe apontar que durante esse processo
muitos dos fundadores seguiram como acionistas majoritários ou
atuando no Conselho de Diretores de suas empresas, indicando
que ainda vigorava uma aliança entre o capital das elites locais e
os novos investidores internacionais (FIX, 2011).

405
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Ao analisar a atuação das empresas que gerem os fundos


do investimento que atuam no setor imobiliário brasileiro, a
autora coloca que é possível verificar que algumas gestoras eram
responsáveis por fundos com participação em diversas empresas
ao mesmo tempo12. Isso fez com que empresas independentes
entre si (e às vezes com características muito distintas) passassem
a ter em comum os mesmos gestores entre seus acionistas. Uma
forma de operar que serviu de estratégia para os investidores
diminuírem o risco de seus investimentos e manter o seu capital
com um maior grau de mobilidade, permitindo sua desmobi-
lização de forma mais fácil caso o setor deixasse de ser consi-
derado lucrativo. Isso teria resultado em um novo arranjo, no
qual as empresas imobiliárias de capital aberto passaram a ser
sobrepostas por “empresas fictícias” que atuam sob uma lógica
puramente financeira (FIX, 2011). Trata-se da manifestação de
uma dinâmica em que os interesses dos acionistas passam a deter-
minar os rumos tomados pela produção propriamente dita desse
setor. E como parte dessa dinâmica, a autora ressalta também
a atuação das empresas de consultoria financeira que passaram
a monitorar o setor e a emitir seus pareceres aos investidores.
Essa atuação pode resultar em aumentos na procura por ações
e consequente valorização dos fundos envolvidos ou na fuga de
capitais para outros setores considerados mais rentáveis, mas
impele também as empresas a atuar segundo os parâmetros de
rentabilidade próprios do setor financeiro e do atual padrão de
acumulação de capital (FIX, 2011).
Outro fenômeno verificado por Sanfelice (2013) na trajetória
dessas empresas que abriram seu capital foi a multiplicação de
processos de fusão e a priorização de investimentos em empreen-
dimento de grande escala. Muitas das grandes empresas do
setor, que tinham sua atuação concentrada no mercado paulista,
passaram a expandir seus mercados para outras regiões do país
e para isso recorreram à compra de empresas que já tinham uma
participação consolidada nos mercados locais. Outro dado signi-

12
É o caso da Credit Suisse (Suíça), Black Rock/Merrill Lynch (EUA), Fama
(Brasil), Janus (EUA) ou Polo Capital Management (Brasil). A Janus, por exem-
plo, investiu simultaneamente na Cyrela, Rodobens, MRV e Rossi, nunca com
participação superior a 8% em cada empresa.

406
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

ficativo apresentado pelo autor diz respeito ao aumento da média


de unidades por empreendimento entre 2005 e 2010: a constru-
tora Cyrela passou de 143 para 255, a Rossi de 111 para 223 e
a MRV de 38 para 300. Algo que é justificado como uma estra-
tégia das empresas para maximizar a apropriação das rendas
fundiárias, que tem levado esse mercado a apostar na oferta de
empreendimentos cada vez mais ambiciosos. Sejam eles grandes
bairros planejados e condomínios fechados voltados para o
público de alta renda, ou grandes empreendimentos voltados
para o público do chamado “setor econômico” que também foi
muito visado por essas empresas em função do aumento dos
financiamentos públicos e privados destinados para esse setor
(SANFELICE, 2013). O autor conclui que a abertura de capital e
a consequente financeirização desse setor teria dado às empresas
do setor imobiliário a capacidade de produzir não só imóveis,
mas também de alterar as configurações da ordem metropolitana
– algo que só foi possível com o aporte financeiro dos grandes
investidores globais. Segundo Sanfelice (2013), nesse processo
as rendas apropriadas na escala local circulam livremente pelos
meandros de uma arquitetura financeira global dominada pelos
grandes fundos de aplicação sediados nos países desenvolvidos –
o que levanta a possibilidade de uma transformação da produção
imobiliária molecular/mercantil/rentista com base no financia-
mento bancário ou no crédito subsidiado, para uma produção
monopolista/financeira/rentista.
As inflexões que vêm sendo descritas neste texto e sua
relação com os processos de apropriação do urbano pelas lógicas
do financeiro, levam-nos a acreditar que esteja em curso uma
dinâmica de transformação da produção imobiliária nas cidades
brasileiras. A histórica incorporação fundada em pequenas
empresas de caráter local, mobilizando um capital mercantil
na busca de captura de rendas fundiárias de antecipação para
a incorporação organizada, estaria dando lugar a um capital de
natureza financeira, concentrado e centralizado, que consegue
orquestrar os ganhos financeiros com os decorrentes da renda
terra. Na outra ponta desse processo, a inflexão neoliberal
tenderia a resolver a ambiguidade presente entre a habitação
como direito e a habitação como mercadoria, a favor da segunda

407
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

devido às reestruturações dos programas habitacionais com seu


direcionamento para setores de classe média baixa.

Reestruturação regulatória: mercantilizar a terra


urbana
Em livro seminal David Harvey (1984) afirmava:

(...) el capitalismo no pude desenvolverse sin precios para la


tierra y sin mercados de éstas como mecanismos coordinado-
res básicos en la asignación de sus usos. Tanto la renta como
la propiedad privada territorial son socialmente necesarias
para permanencia del capitalismo. (...) Este argumento re-
quiere una advertencia importante. Solo sirve aquella pro-
piedad territorial que las trata con un bien financiero puro.
Todas las demás formas de propiedad territorial deben ha-
cerse a un lado. La tierra debe convertirse en una forma de
capital ficticio y tratarse como campo abierto a la circulación
de capital a interés. Solo baja esta condiciones desaparece
la aparente contradicción entre ley del valor y la existencia
de la renta sobre la tierra. Es a la investigación histórica a
quien le corresponde averiguar hasta donde han llegado las
formaciones sociales capitalistas por ese camino (HARVEY,
1984, p. 374).

Segundo essa formulação, a propriedade privada da terra


transformada em um equivalente do capital fictício fixa as condi-
ções espaciais e temporais da acumulação do capital, na medida
em que a renda da terra capta simultaneamente os movimentos
da taxa de juros e dos valores presentes e futuros gerados como
seu uso capitalista. Portanto, o mercado de terras modelado
pelo capital absorve as contradições fundamentais do modo de
produção capitalista e, consequentemente, impõe essas contradi-
ções à paisagem física do próprio capitalismo (HARVEY, 1984,
p. 374-375). Tal compreensão significa dizer que o pleno desen-
volvimento do capitalismo depende da adequada resolução do
que poderíamos denominar da questão fundiária que tem duas
facetas. De um lado, transformar a propriedade territorial em
equivalente ao capital fictício e, de outro, regular o funciona-

408
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

mento do mercado capitalista de terras às necessidades da coor-


denação espaço-temporal da acumulação equilibrada.
A transformação da propriedade fundiária em um “bem
financeiro puro” demanda uma série de reformas institucionais
e jurídicas que buscam retirar a complexidade de interesses e
formas de apropriação do imobiliário, algo designado por Beau-
regard (2005) de “textura social da propriedade fundiária”. O
autor usa esse conceito para definir a propriedade imobiliária
como um produto denso e complexo, fazendo com que o compor-
tamento de seus mercados seja dependente de uma série de
variáveis externas e outros fatores de ordem econômica e social
que podem influenciar de forma significativa as opções tomadas
pelos investidores. Em primeiro lugar há que se considerar que
as subdivisões do mercado imobiliário possuem potencialidades
desiguais para gerar rendas e envolvem temporalidades diferentes
em suas execuções. Em segundo lugar o autor coloca que os inves-
timentos imobiliários em geral envolvem capital fixo financiado a
longo-prazo. Esses fatores mostram a variedade de variáveis que
podem causar fricções ou mesmo impedir a fluidez de um modelo
abstrato, pensado apenas a partir das demandas geradas por uma
suposta relação de interdependência funcional entre os diferentes
setores envolvidos com a produção de bens imobiliários. Algo que
leva Beauregard (2005) a defender a necessidade dessa outra visão
que concebe o mercado imobiliário como um processo dinâmico,
profundamente contextual e contingenciado tanto pelos interesses
e expectativas particulares dos agentes envolvidos, quanto pelas
possibilidades oferecidas pelo mercado que podem, por sua vez,
favorecer ou restringir a atuação desses agentes. Essa perspec-
tiva coloca que a propriedade fundiária como realidade jurídica
expressa uma pluralidade de relações sociais presentes no uso e
ocupação do solo urbano que podem se colocar como obstáculos
ao pleno jogo do mercado.
O processo de financeirização implica em novas necessi-
dades de reforma fundiária a fim de transformar a propriedade
imobiliária em uma mercadoria compatível com as lógicas do
mercado de capitais. Fox Gotham (2009) coloca que a lógica
de acumulação capitalista busca sempre diminuir ao máximo o
tempo existente entre a produção e a venda das commodities para

409
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

aumentar os ganhos, mas pondera que no caso da produção de


moradia esse processo (tanto a produção quanto a circulação)
costuma ser muito demorado e o capital fica por um longo
período “amarrado” antes de retornar ao capitalista. Frente a isso,
ele considera que a financeirização do imobiliário vem operando
como uma estratégia para superar essas limitações existentes ao
transformar illiquid comodities em liquid resources. Processo que
inevitavelmente é permeado por contradições e irracionalidades.

(…) I argue that over the past several decades the process
of ‘securitization’ has become a critical financial innovation
that has allowed private and public actors to finance local
property development and housing in the national and in-
ternational capital markets. As a process of financial globali-
zation, securitization consists in large part of homogenizing
diverse commodities and weakening the institutional buffers
between local, national and global markets (FOX GOTHAM,
2009, p. 357).

A securitização do imobiliário seria então um processo de


transformação regulatória visando criar liquid assets a partir de
commodities que são caracterizadas por sua spatial fixity, ou seja,
por uma série de atributos que não são permutáveis, não são
transferíveis, estão imobilizados no espaço, não possuem liquidez,
além de envolverem um longo turnover entre o processo de
produção e a venda. Essas características conferem uma série de
propriedades particularizadas que dificultam aos compradores e
vendedores o estabelecimento de valores claros e objetivos sobre
o que está sendo trocado. Ao serem transformadas em liquid
assets elas tornar-se-iam mais facilmente negociáveis pelos atores
do mercado financeiro. Com isso a securitização buscaria ao
máximo padronizar e racionalizar essas commodities para que dife-
rentes compradores e vendedores ao redor do planeta consigam
negociá-las de forma mais ágil. E com isso teríamos contradições:
de um lado o mercado imobiliário atuando de forma local e
permeado por particularidades e idiossincrasias que são intrín-
secas às relações sociais dentre as quais ele está inserido; de
outro, o capital atuando de forma abstrata e tentando eliminar
essas particularidades ou quaisquer outras barreiras espaciais que

410
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

impeçam a sua circulação. Essa contradição estaria definindo os


processos modernos de urbanização nas sociedades capitalistas e
suas consequentes desigualdades (FOX GOTHAM, 2009).
Como esse processo de reforma regulatória se colocaria no
contexto brasileiro marcado pelo desenvolvimento do capita-
lismo com a manutenção de formas de propriedade da territorial
que mantêm a terra como uma espécie de mercadoria inacabada?
Com efeito, segundo Tavares (2001):

(...) apesar de 150 anos de crescimento quase ininterrupto,


o capitalismo brasileiro não conseguiu nunca completar a
conversão das três ‘mercadorias especiais’ – terra, trabalho
e dinheiro –, transformando-as em mercadorias gerais ‘uni-
versalizantes’. Nenhum desses ‘mercados’ – fundadores das
relações sociais capitalistas de produção clássicas – funcio-
nou a contento no Brasil até o final do século XX e, portan-
to, a própria constituição das classes é problemática, dando
lugar a um sem número de controvérsias sobre ‘modos de
produção’, relações semifeudais, frações de classe e etc. (...)
O chamado ‘mercado’ de terra sempre foi uma ficção, tanto
do ponto de vista jurídico como do social (TAVARES, 2001,
p. 143-144).

A terra no Brasil constitui-se como um eixo da reprodução


das relações políticas que sustentam o pacto conservador de
dominação de classe, seja como instrumento de acesso à riqueza
patrimonial, seja como base da reprodução precária da força
de trabalho estocada no exército industrial de reserva. Essa é
razão do caráter incompleto da terra como mercadoria e da
reprodução da lógica da fronteira no campo e na cidade como
base de gestão conservadora do conflito de classes. O resultado
é o imbróglio da propriedade privada fundiária, na forma das
várias ilegalidades e irregularidades da posse da terra. Podemos
mesmo dizer que convivem no Brasil urbano vários regimes de
propriedade da terra.
Esse legado fundiário da nossa formação histórica constitui-
se em uma questão a ser resolvida na hipótese da penetração na
cidade dos processos de financeirização pressionar pela mercan-
tilização do urbano. É nessa direção que podemos interpretar o

411
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

conjunto de iniciativas de reformas regulatórias da propriedade


da terra que surge a partir do golpe parlamentar e tem como
expressão a MP 759/2016 e a Lei 13.465/1713. O conteúdo básico
das reformas nelas contidas é restringir (e mesmo eliminar) o
sentido de proteção social fundador do conceito de regulari-
zação fundiária plena14 presente no ordenamento jurídico brasi-
leiro (por exemplo, na Lei nº 11.977 de 2009) e nas concepções
políticas que até então hegemonizavam o debate sobre a questão
fundiária urbana. Com efeito, por aquele conceito a regulari-
zação fundiária estava associada a mecanismo de demarcação
urbanística para fins de simplificação de exigências arquitetô-
nicas e de engenharia para a construção de moradias populares,
a instituição de Áreas de Especial Interesse Social para proteger
a população de pressões decorrentes da especulação imobiliária
e a possibilidade da titulação coletiva através do instrumento da
Concessão Real de Uso, por exemplo. Em outras palavras, a regu-
larização fundiária estava concebida como um ato muito além
da titulação da posse da terra, mas como um instrumento de
promoção do direito à cidade para as camadas populares histori-
camente submetidas à insegurança e precariedade urbana. Tais
instrumentos permanecem na nova lei, mas esvaziados do outro
conceito de regularização fundiária, mais simples, com menor
custo e restrito ao ato de titulação da posse. Podemos, portanto,
afirmar que a MP 759/2016 e a Lei 13.465/17 instituem clara-
mente um marco regulatório pró-mercado da terra. Fato que é
complementado por todas as transformações que simplificaram
a privatização do patrimônio da União.

Governo urbano pelo mercado: empresariamento


da cidade
Conforme mencionado anteriormente, as reformas neolibe-
rais implementadas a partir dos governos de Fernando Henrique
13
Para uma análise conjunta desses dois dispositivos legais, ver Ribeiro (2017).
14
A regularização fundiária plena seria o processo que inclui medidas jurídicas,
urbanísticas, ambientais e sociais, com a finalidade de integrar assentamentos
irregulares ao contexto legal das cidades. Ver a esse respeito Ronilk et al. (2007)
e também Fernandes (2001).

412
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

Cardoso abriram caminho para modelos de governança pró-cres-


cimento e pró-mercado, centrados na adoção de estratégias insti-
tucionais voltadas para o repasse de responsabilidades até então
desempenhadas pelo poder público para a iniciativa privada.
As duas modalidades que vêm sendo utilizadas para isso são
as Parcerias Público-Privadas (PPP’s) e as Operações Urbanas
Consorciadas.
As PPP’s são atualmente um dos principais instrumentos
utilizados para realizar investimentos em infraestrutura, inclusive
na gestão de serviços essenciais, além da execução de grandes
obras públicas. Esse tipo de iniciativa foi regulado inicialmente
pela Lei Federal nº 8.987/95, como parte do mesmo contexto
político e institucional em que ocorria o processo de privatização
da década de 1990. Nela estavam previstas três modalidades
básicas: permissão de serviço público; concessão de serviço
público; concessão de serviço público precedida da execução
(total ou parcial) de obra pública. No primeiro governo de Lula
foi editada a Lei Federal nº 11.079/2004, conhecida como “Lei
Geral das PPP’s”, que estabeleceu novos parâmetros para esse
tipo de modalidade contratual. Segundo Pereira (2015), a prin-
cipal inovação foi prover bases regulatórias para concessões que
não envolvessem o pagamento de tarifas pelo usuário final ou
quando elas fossem insuficientes para proporcionar margens
de lucro atrativas aos agentes privados. Com isso duas modali-
dades contratuais foram instituídas: a Concessão Administrativa
e a Concessão Patrocinada15. Essas duas modalidades vêm sendo
usadas por inúmeras cidades no país para delegar à iniciativa
privada serviços como iluminação pública, limpeza urbana,
equipamentos de cultura, unidades básicas de saúde, transporte
público, entre outros. Em alguns casos são estabelecidos pacotes
com várias obras e serviços a serem concedidos simultaneamente
para um mesmo consórcio, que acaba se tornando responsável
pela gestão ampla de uma parcela do território da cidade durante
um determinado período. Pereira (2015) ressalta também a

15
Na primeira, a remuneração das atividades concedidas ao concessionário
é feita integralmente pelo poder público. Na segunda, a remuneração é feita
de forma combinada pelas tarifas pagas pelo usuário final e contraprestações
pagas pelo poder público (PEREIRA, 2015).

413
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

importância assumida pelos Procedimentos de Manifestação de


Interesses (PMI). Trata-se de uma chamada pública destinada à
formulação por agentes privados de propostas para ações gover-
namentais que envolvam contratos de parceria público-privada.
Com isso o planejamento das concessões também passa a ser
delegado aos agentes privados, para que eles formulem a mode-
lagem da proposta que será efetivada pelo poder público. No
caso das ações ligadas a projetos de urbanização, vem sendo
comum o lançamento de editais de PMI que envolvam desde
o desenho urbanístico ao modelo econômico-financeiro a ser
adotado (PEREIRA, 2015).
No âmbito das ações de urbanização, outro instrumento a
ser considerado são as Operações Urbanas Consorciadas. Esse
instrumento consta no Estatuto das Cidades (artigos 32º, 33º,
34º), sendo definido como conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação
dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investi-
dores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transfor-
mações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização
ambiental (BRASIL, 2001).
A lei determina também que cada operação deverá ser insti-
tuída por lei municipal e poderá emitir Certificados de Poten-
cial Adicional de Construção (CEPAC) a serem leiloados como
forma de levantar recursos para a realização das intervenções
propostas. Esse instrumento passou a ser usado para criar novas
centralidades e viabilizar o retorno dos investidores a áreas consi-
deradas “degradadas” (FIX, 2009). Fix (2009) coloca algumas
considerações sobre esse instrumento, apontando que o seu uso
estaria levando o poder público a atuar como uma “empresa de
desenvolvimento imobiliário”, tendo que incentivar e criar condi-
ções para atrair investidores privados interessados em desen-
volver determinada área. Em caso de a operação fracassar, quem
arca com os custos é a prefeitura. Ao limitar a aplicação dos
recursos no perímetro determinado para cada operação, cria-se
um circuito de valorização e investimento que tende a favorecer
áreas onde já exista algum dinamismo imobiliário. Ressaltando
que em muitos casos essas operações envolvem processos de
remoção de núcleos habitacionais irregulares localizados no perí-

414
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

metro da operação e iniciativas de “limpeza social” (FIX, 2009).


Além disso, as operações urbanas contribuiriam para aumentar
o controle privado sobre as decisões de investimento. No caso do
uso dos CEPAC’s isso se intensifica, pois o poder público se vê
obrigado a seguir investindo na área para garantir a valorização
dos títulos no mercado.
Se no passado recente esta forma de produção de bens
públicos e de provisão de serviços coletivos tinham como justifi-
cativa a suposta superioridade da eficiência do mercado, no ciclo
ultraliberal em curso surge o argumento da incapacidade fiscal
do setor público. Essa tendência já está presente com clareza
na proposta econômica das forças que articularam o golpe e
sustentam o governo de Michel Temer, através do documento
“Uma Ponte Para o Futuro”16. No plano dos governos estaduais
e municipais observa-se a criação de instituições governamentais
e não governamentais com o intuito de incentivar a dar suporte
aos programas que se fundam no instrumento das PPP’s. Por
exemplo, no governo do Estado de Minas Gerais observa-se a
disseminação dessa política, através do Programa de PPP do
Estado de Minas Gerais e de uma instância chamada de Unidade
Central de PPP17. O Observatório PPP Brasil18 constitui-se em
outro instrumento de difusão e legitimação do mercado de
consultoria, suporte técnico e formação de quadros capacitados
a elaborarem projetos de PPP’s no âmbito das chamadas públicas
de PMI por parte dos governos interessados.

Referências
ARANTES, Pedro. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID
para as cidades. Revista Pós, n. 20, 2006, pp. 60-75.

16
No documento consta a diretriz “de executar uma política de desenvolvimen-
to centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se
fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraes-
trutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a
regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direi-
to de preferência”. Ver: http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/
RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf.
17
Ver: http://www.ppp.mg.gov.br/sobre/projetos-municipais.
18
Ver: http://www.pppbrasil.com.br/portal/.

415
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

ARRETCHE, Marta. Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado


federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14(40), 1999, pp.111-141.
BANCO MUNDIAL. World Developement Report. Reshaping Economic
Geography, Washington, DC, 2009.
BEAUREGARD, Robert. The textures of property markets: downtown
housing and office conversions in New York City. In: Urban Studies, vol. 42,
n. 13, December 2005.
BIENEFELD, Manfred. Suppressing the double movement to secure the
dictatorship of finance. In: BUGRA, Ayse; AGARTAN, Kaan (Org.) Reading
Karl Polanyi for the twenty-first century. Nova York: Palgrave Macmillan, 2007.
BRAGA. José Carlos de Souza. Financeirização global. O padrão sistêmico
de riqueza no capitalismo. In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José
Luis (Orgs.) Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petró-
polis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1997.
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm.
BONICENHA, Rodrigo. Financeirização e território: uma revisão da lite-
ratura recente. XVIII ENAPUR. São Paulo. 2017. Disponível em: http://
anpur.org.br/xv iienanpur/principal/publicacoes/XVII.ENANPUR_
Anais/ST_Sessoes_Tematicas/ST%203/ST%203.9/ST%203.9-01.pdf.
BOTELHO, Adriano. O urbano em fragmentos. A produção do espaço e da
moradia pelas práticas do setor imobiliário. São Paulo: Annablume, 2007.
CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, interna-
cionalização, efeitos econômicos e políticos. In: CHESNAIS, F. A finança
mundializada, raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo:
Boitempo, 2005.
CHRISTOPHERS, Brett. Revisiting the urbanization of capital. Annals of
the Association of American Geographers, v. 101, n. 6, p. 1.347-1.364, 2011.
FERNANDES, Edésio (Org.) Direito urbanístico e política urbana no Brasil.
Belo Horizonte: Del Rio, 2001.
FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma
miragem. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
______. Uma ponte para a especulação: ou a arte da renda na montagem de
uma “cidade global”. Caderno CRH, 22(55), 2009, pp. 41-64.
______. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário
no Brasil. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-
mento Econômico da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2011.
FOX GOTHAM, Kevin. Creating Liquidity out of Spatial Fixity: The
Secondary Circuit of Capital and the Subprime Mortgage Crisis. Interna-
tional Journal of Urban and Regional Research, vol. 33.2, junho, 2009.
HARVEY, David. The Urbanization of Capital: studies in the History and

416
Inflexão ultraliberal e a financeirização da ordem urbana brasileira:
explorando algumas hipóteses

Theory of Capitalist Urbanization. USA: The Johns Hopkins University


Press, 1985.
______. A condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens das mudanças
culturais. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
______. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
______. Cidades rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
______. Paris, capital da modernidade. São Paulo: Boitempo: 2015.
______. The enigmas of capital and the crises of capitalism. Londres: Profile
Books, 2010.
LOGAN, John; MOLOTCH, Harvey. The city as a growth machine: toward
a political economy of place. The American Journal of Sociology, vol. 82, n. 2,
1976, pp. 309-332.
PAULANI, Leda. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de
Marx para pensar o capitalismo. Rio de Janeiro, ANPEC, 2016.
______. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações
sobre o caso brasileiro. In: Estudos Avançados, 27 (77), 2013.
______. A inserção da economia brasileira no cenário mundial: uma
reflexão sobre a situação atual à luz da história. Boletim de Economia Política
Internacional, n. 10, abr./jun., 2012.
PECK, Jamie. Austerity urbanism: the neoliberal crisis of American cities.
Nova York, Rosa Luxemburg Stiftung, 2015
PECK, Jamie; TICKEL, Adam. Neoliberalizing Space. Antipode (12), 2000,
pp. 380-404.
PECK, Jamie; THEODORE, Nick. Variegated Capitalism. In: Progress in
Human Geography, 31(6), 2007.
PEREIRA, Álvaro. Intervenções em centros urbanos e conflitos distribu-
tivos: modelos regulatórios, circuitos de valorização e estratégias discur-
sivas. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de
Janeiro: Editora Compus, 2000.
RIBEIRO, Luiz Cesar. Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana. Rio
de Janeiro: Letra Capital, 2015.
RIBEIRO, Tarcyla Fidalgo. Da MP 759 à Lei 13.465/17: os novos rumos
da regularização fundiária no Brasil. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em:
http://observatoriodasmetropoles.net/images/abook_file/artigo_tarcyla-
ribeiro2017.pdf.
ROCHA, Marco. Grupos econômicos e capital financeiro: uma história
recente do grande capital brasileiro. Tese de doutorado. Programa de

417
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade Estadual de


Campinas. Campinas, 2013.
ROLNIK, Raquel et al. Regularização fundiária sustentável – conceitos e dire-
trizes. Brasília. Ministério das Cidades, 2007.
ROUBINI, Nouriel; MIHM, Stephen. A economia das crises. Um curso-relâm-
pago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Rio de Janeiro:
Editora Intrínseca, 2010.
SANFELICE, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano
no Brasil: uma contribuição ao debate. EURE (Santiago), vol. 39, n. 118,
setembro de 2013.
SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas. O ensaio desenvolvi-
mentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Novos Estudos, 102, 2015,
pp. 39-67.
SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à “rege-
neração” urbana como estratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHA-
RIASEN, C. De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de
“revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.
SOUZA, Marcos Barcelos. Variedade de capitalismo e reescalonamento
espacial do Estado no Brasil. Campinas: Tese de doutorado defendida no
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, 2013.
TAVARES, Maria da Conceição (Org.) Celso Furtado e o Brasil. Fundação
Perseu Abramo. São Paulo, 2001.
UQBAR. Manual do Investidor de Fundos Imobiliários. São Paulo, 2009.
VASQUEZ, Daniel. Mecanismos institucionais de regulação federal e seus
resultados nas políticas de educação e saúde. DADOS - Revista de Ciências
Sociais, 57(4), 2014.

418
Capitalismo sob dominância financeira
e a terra urbana – uma análise do caso
brasileiro a partir da regulação fundiária1

Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Introdução

A s relações entre cidades, terra, regulação e capitalismo


estão presentes desde o surgimento deste último em
múltiplos arranjos, promovendo sinergias diversas conforme as
necessidades da acumulação capitalista e os diversos tensiona-
mentos com lutas e demandas sociais.
No momento atual, caracterizado pela dominância finan-
ceira e pela difusão do neoliberalismo, esses elementos assumem
importância destacada, exigindo uma sinergia específica, voltada
para as necessidades de um crescente processo de financeirização
das cidades.
No Brasil, os arranjos entre os elementos acima destacados
apresentam dimensões e características peculiares, seja por especi-
ficidades históricas, seja pela forma de inserção do país no capita-
lismo global. Essas peculiaridades, no entanto, podem ser interpre-
tadas no momento atual como um empecilho para determinadas
formas de inserção do país na dinâmica financeira global.
Nesse sentido, impõe-se a necessidade de mudanças na
articulação de tais elementos para a promoção de sinergias que
se coadunem com as necessidades atuais de um capitalismo
dominado pelas finanças. Sendo assim, o presente texto pretende
abordar um dos aspectos dessa articulação, problematizando
o que se sugere ser uma tentativa de aproximação entre terra
urbana e circuito capitalista financeiro por meio de recentes alte-

1
Uma versão original desta capítulo foi apresentada como forma de comuni-
cação no seminário “El Complejo Urbano Financiero-Inmobiliario en América
Latina”, realizado na Universidad de Chile y Centro de Estudios del Conflicto y
la cohesión social (COES) em abril de 2019.

419
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

rações regulatórias, notadamente a nova Lei de Regularização


Fundiária, n. 13.465, em vigor desde 2017.
A hipótese principal que se pretende estabelecer é a de
que estamos diante da criação de bases de uma nova rodada de
mercantilização da terra urbana no Brasil, desta vez informada
pelas necessidades do capitalismo sob dominância financeira.
Esse movimento se mostra mais claramente a partir da tomada
do poder pelo governo golpista de Michel Temer e da priorização
da agenda da regularização fundiária no país, sob um paradigma
de homogeneização jurídica do estoque fundiário brasileiro com
a capilarização do regime da propriedade privada plena.
Como será analisado, tal processo é visto como um requisito
básico para o incremento da mercantilização da terra e para o
avanço de seu processo de financeirização e sua busca parece ter
sido o principal objetivo da drástica mudança regulatória repre-
sentada pela Lei 13.465/17.

A regulação jurídica e o capitalismo sob


dominância financeira
De acordo com Weber (2004), o capitalismo só pôde existir
a partir de um determinado arranjo jurídico que garantisse as
condições mínimas para a mercantilizaç ão e para a reali-
zação de transações comerciais.
Nesse sentido, as relações entre capitalismo e regulação
jurídica são tão antigas quanto o próprio surgimento daquele. Ao
longo dos séculos, essas relações se desenvolveram e constituíram
arena de constantes disputas entre a promoção de interesses capita-
listas – das suas mais diversas frações – e a luta social por direitos.
Esse caráter conflitual da dimensão regulatória revela grande
importância na dinâmica social. As leis, em sentido amplo, são
fundamentais para capitalistas e trabalhadores, visto que têm a
capacidade de tornar perenes conquistas sociais ou avanços capi-
talistas, ditando o ritmo e a direção de determinada sociedade.
Para além do aspecto social da regulação jurídica, não se pode
perder de vista que ela se trata de atribuição exclusivamente estatal,
que a partir da produção normativa interfere diretamente na socie-
dade. Como o Estado não deve ser entendido como uma formação

420
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

monolítica (POULANTZAS, 1985), sua produção normativa varia


entre o privilégio de interesses capitalistas e sociais, tendendo mais
para um lado ou outro de acordo com as configurações das coali-
zões de poder dominantes em determinado período.
Nos dias atuais, assistimos à dominância do paradigma neoli-
beral, constituinte de uma nova forma de pensar as relações sociais,
culturais, econômicas e os indivíduos (DARDOT e LAVAL, 2016),
marcado pelo empreendedorismo, individualismo, assunção
privada de riscos sociais e quebra de arranjos de solidariedade
social. Essa dominância tem rebatimentos nas coalizões de poder
locais, seja na sua composição e/ou forma de atuação, o que por
consequência se reflete na dimensão regulatória.
Assim, a regulação em um cenário neoliberal assume uma
tendência mais expressiva em direção ao privilégio de interesses
capitalistas, definida frequentemente como um processo de
desregulamentação. Entretanto, essa “desregulamentação” não
deve ser compreendida apenas como um processo de revogação
de leis e atos normativos protetivos preexistentes, sob o risco de
uma simplificação excessiva do processo, com distorção de seu
conteúdo. Nesse sentido, propomos que a leitura das relações
atuais entre capitalismo e regulamentação sejam lidas a partir de
quatro movimentos: (i) revogação, (ii) criação, (iii) alteração e (iv)
ressignificação de normas.
O movimento de revogação consiste na supressão de normas
já existentes, via de regra por determinação direta do poder
Executivo. Juridicamente, a revogação apenas pode produzir
efeitos para situações futuras. A revogação corresponde, em
larga medida, aos processos de desregulamentação descritos na
literatura nacional e internacional sobre neoliberalismo e domi-
nância financeira. No presente contexto, trata-se do desmonte de
sistemas normativos protetivos de direitos de cunho mais social.
Por sua vez, a criação é o movimento mais intuitivo de
atuação direta do Estado na sociedade, sendo aquele pelo qual se
permite a instituição de novos arranjos, instrumento e políticas
sociais e econômicas. A criação de normas também pode ser
entendida como parte de um processo de desregulamentação em
sentido amplo, no sentido de desmonte de uma regulação mais
alinhada aos interesses dos trabalhadores e das classes populares.

421
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

Outro movimento é o da alteração de normas já existentes,


que se coloca no mesmo cenário dos movimentos descritos
anteriormente, sendo que toda alteração envolve a revogação e
criação normativa, com diferença apenas na extensão de seus
efeitos. Enquanto anteriormente tratávamos de movimentos
incidentes sobre a totalidade da norma, aqui falamos de movi-
mentos de incidência parcial sobre o texto normativo, revogando
e recriando partes de normas já existentes.
Por fim, dentre os movimentos regulatórios, cabe traçar
breve panorama sobre a ressignificação normativa. Dá-se aqui o
nome de ressignificação normativa ao processo de alteração de
significado das normas sem alteração de seu texto. Trata-se de
alteração focada na interpretação dada à norma por aplicadores,
juristas, juízes e tribunais.
Essa possibilidade, há muito reconhecida no âmbito dos
estudos jurídicos (BARROSO, 2013), cresce em importância no
momento atual. Isso porque pode encaminhar mudanças sociais,
econômicas e políticas significativas sem os custos políticos de
uma revogação/criação ou o tempo necessário para endereçar os
trâmites necessários para uma alteração formal da norma.
A partir dos processos acima descritos, entende-se pela
necessidade de complexificar o suposto processo de “desre-
gulamentação”, frequentemente referido na literatura como
expressão do momento atual, de dominância neoliberal e finan-
ceira (KOTZ, 2008). A desregulamentação não pode ser enten-
dida como sinônimo de revogação normativa ou destruição de
arranjos jurídicos protetivos. Trata-se de processo mais amplo e
complexo, que envolve as quatro dimensões acima descritas e
ainda a promoção de mudanças no imaginário social, que se rela-
ciona diretamente com as normas que regulam a sociedade.
Apesar de diversos autores da sociologia da lei e do direito
atribuírem mudanças sociais a um conceito expandido de norma
(EDELMAN e STRYKER, 2005), que abrangeria dispositivos
institucionais diversos, argumenta-se, no presente texto, sobre a
importância em si da norma jurídica inscrita em um texto legal,
a lei, para a promoção de tais mudanças.
Acredita-se que a inscrição de determinado modelo ou regra
em um texto legal tenha, por si, a importância de tornar possível

422
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

e dar respaldo à atuação, omissiva ou comissiva, do Estado no


sentido do alcance da descrição legal. Sendo assim, ainda que
determinada lei não seja aplicada e não ganhe uma expressão
prática significativa, o simples fato de existir tem um significado
simbólico e político de grande importância, muitas vezes criando
as condições para uma ação estatal em momento futuro.
É exatamente nesse cenário que inserimos as regula-
mentações recentes sobre a terra no Brasil, em especial a Lei
13.464/17, que corresponde ao novo marco nacional sobre regu-
larização fundiária. Trata-se de texto legal que regulamenta um
ativo fundamental para o capitalismo, qual seja, a terra, fixando
as bases para uma nova rodada de mercantilização e abrindo as
portas para um aprofundamento de processos de financeirização
que a tenham como base.
A partir dos movimentos recentes de regulação estatal da
terra no Brasil, especialmente a partir da combinação de movi-
mentos revocatórios e criativos, espera-se demonstrar a montagem
das bases para um processo de abertura de novas frentes de
acumulação capitalista, especialmente no âmbito financeiro, em
conformidade com os interesses de frações capitalistas ligadas ao
capital financeirizado, dominante na etapa atual do capitalismo.
No próximo item serão analisadas as relações entre a terra,
em especial a urbana, e o capitalismo sob dominância financeira.
Pretende-se problematizar a importância da atuação do Estado,
neste momento histórico, em prol do aprofundamento da
conversão da terra em mercadoria e, em última instância, ativo
financeiro (HARVEY, 2015).

A terra urbana e o capitalismo sob dominância


financeira
Atualmente, o espaço urbano se revela como lócus privile-
giado de observação das transformações impressas pela capila-
rização da financeirização no território. Como se sabe, o capi-
talismo influencia e é influenciado diretamente, e de forma
determinante, ao longo da história, pelas cidades.
Essa influência recíproca, em um movimento em ampla
medida dialético, se expressa no território de diferentes formas:

423
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

seja pelo (re)desenvolvimento territorial como nova fronteira


de acumulação, seja pela utilização das cidades como saída
preferencial em situações de sobreacumulação2, estas últimas
comuns, tendenciais e cada vez mais frequentes no capitalismo
(HARVEY, 2015).
Dada essa relação histórica entre capital e cidade3, não se
poderia imaginar que a atual organização do capitalismo sob
dominância financeira não trouxesse impactos significativos na
esfera urbana. Sendo assim, nas últimas décadas é inegável o
reconhecimento de que as cidades, em especial as metrópoles,
vêm se transformando de forma acelerada e conforme o “ritmo”
das finanças (SANFELICI, 2013).
A adoção desse “ritmo” financeiro pelas cidades, em um
cenário que as coloca como fronteira de acumulação e saída
preferencial para situações de sobreacumulação, passa necessa-
riamente pela regulação da terra urbana. Esta última se coloca
como elemento base das transformações que se apresentam
como obrigatórias para que as cidades cumpram seu papel na
ordem capitalista atualmente instalada.
Nesse sentido, a terra urbana precisa ser homogeneizada –
jurídica e socialmente – em conformidade com a visão capitalista.
Isto para que possa circular, o mais perfeitamente possível, como
mercadoria e ativo financeiro, a serviço das novas demandas de
um capitalismo financeirizado.
Esse processo de homogeneização, requerido em maior ou
menor grau pelas cidades conforme sua inserção nos parâmetros
de propriedade fundiária capitalistas, no Brasil ganha importância
destacada pelo histórico de desarticulação da terra em relação a
tais parâmetros, conforme será analisado no próximo item.
2
Isto porque os investimentos no espaço urbano, ao mesmo tempo em que
estimulam os setores produtivos e absorvem capital sobreacumulado, podem
retornar como condição futura de desenvolvimento da esfera produtiva, contri-
buindo para o crescimento da acumulação.
3
Presente antes mesmo da estruturação do capitalismo como modo de pro-
dução. Apesar de certo dissenso sobre qual teria sido o primeiro aglomerado
urbano a poder ser considerado “cidade”, há consenso de que, no momento
de florescimento do modo de produção capitalista diversas cidades já estavam
constituídas em diversas partes do mundo, muitas delas criadas para atender
a necessidades de sistemas de produção pré-capitalistas como o mercantilismo,
que fez florescer a cidade italiana de Gênova, por exemplo.

424
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

Sendo assim, a funcionalização da terra urbana no sentido


da representação de uma nova fronteira de acumulação e de uma
saída virtuosa para crises de sobreacumulação (especialmente
externas) ainda encontra empecilhos substanciais na heteroge-
neidade das relações e arranjos jurídicos estabelecidos com a
terra no Brasil.
No que se refere à terra como lastro de capitais fictícios,
permitindo o incremento de sua acumulação, temos a indicação
de processos de securitização de títulos com origem na proprie-
dade fundiária urbana, que passam então a ser comercializados
em um mercado secundário – perdendo qualquer vinculação
com o valor e o preço efetivo dos imóveis urbanos.
No cenário brasileiro, os exemplos mais claros dos instru-
mentos que levam à construção desse tipo de capital fictício, nos
dias atuais, são os títulos derivados da securitização de gravames
imobiliários – Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI’s)
e Letras de Crédito Imobiliário (LCI’s) – e os Certificados de
Potencial Adicional de Construção (CEPAC’s). Por meio desses
instrumentos aumenta-se a permeabilidade da terra urbana ao
capital financeiro e à sua lógica própria de acumulação, apro-
fundando a já conhecida transmutação da própria orientação
das políticas públicas e da gestão da cidade: do incremento do
bem-estar de seus habitantes e garantia de seus direitos à opera-
cionalização da lógica financeira dos resultados de curto prazo e
da valorização acionária.
No entanto, conforme destacado acima, tais instrumentos
dependem de uma homogeneização das relações jurídicas e sociais
estabelecidas com a terra para ganharem maior expressão no
cenário nacional e internacional, colocando o estoque fundiário
brasileiro – de dimensões continentais – a serviço da acumu-
lação financeira. Isso porque a homogeneização seria capaz de
promover um incremento de volume e da segurança necessária
para transações que tenham a terra urbana como lastro.
Essa homogeneização, dado o cenário fundiário brasileiro,
depende diretamente da atuação do Estado, especialmente via regu-
lação, para ser efetivamente capilarizada e surtir o efeito desejado.
A hipótese que se pretende demonstrar é que o aspecto regulatório
vem sendo encaminhado a passos largos desde a inflexão ultrali-

425
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

beral vivenciada no país em 2016, com o golpe jurídico parlamentar


que retirou do poder a presidente Dilma Rousseff.
A regulação seria o primeiro passo, a criação de um estru-
tura que possa abrir espaço para a efetivação de políticas –
públicas ou por meio das cada vez mais comuns parcerias com
agentes privados – para a disseminação do modelo capitalista de
propriedade privada individual, com registro cartorial, no amplo
estoque fundiário brasileiro.
Essa questão parece decisiva para “destravar”, em linguagem
propositadamente desotiana (DE SOTO, 2001), não apenas as
riquezas diretamente ocultadas pela informalidade territorial,
mas também as potencialidades de seu rebatimento na esfera dos
ganhos fictícios, estes últimos na ordem do dia da acumulação
capitalista.
A questão é entender que cidades serão (re)construídas a
partir da disseminação deste paradigma proprietarista individual
em nosso país e o porquê do investimento regulatório pesado
nos dias atuais para promover essa disseminação. A compreensão
dessas questões exigirá uma breve incursão histórica sobre o
que se chama de “a questão fundiária brasileira”, sobre a qual
passamos a tratar.

A questão fundiária brasileira


Conforme visto anteriormente, o aprofundamento das
imbricações entre espaço construído e circulação de capital
depende da conversão, o mais completa possível, da proprie-
dade fundiária em propriedade capitalista, a partir de um movi-
mento de mudanças no sentido da homogeneização das relações
sociais e jurídicas que envolvem a terra urbana, com o objetivo
de garantir o volume e a segurança necessária para investimentos
e fluxos financeiros que a tenham como base.
No entanto, sabe-se que a gestão da terra no Brasil se
conformou como um problema mesmo em período anterior à
formação do Estado brasileiro. Ainda nos séculos de colônia, a
necessidade de ocupação de um território de dimensões continen-
tais seguida pelos desafios de estabilização das fronteiras fez com
que o controle fundiário no país fosse praticamente inexistente.

426
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

Pode-se dizer que o primeiro regime fundiário estabele-


cido em território nacional foi o das Capitanias Hereditárias,
espécie de concessão administrativa dada a famílias nobres
portuguesas para gozar, usar e fruir de extensos tratos de terra
(FAORO, 1984). A partir dessas concessões, a Coroa portuguesa
transferia para os particulares os ônus decorrentes da ocupação
do território que, sem dúvidas, passava também pela criação
e desenvolvimento de núcleos de povoamento (COSTA, 1989),
algo como protótipos de cidades constituídas ao largo da regu-
lação estatal.
Essas concessões administrativas, as Capitanias Hereditá-
rias, por sua vez podiam ser subdivididas em porções menores
de terra chamadas sesmarias, que obedeciam ao mesmo
critério quanto a beneficiários: nobres e funcionários públicos
que gozassem de prestígio junto à Coroa. Essas subdivisões
eram admitidas para facilitar o alcance do objetivo maior da
ocupação do território, uma vez que o tamanho das capita-
nias muitas vezes inviabilizava sua ocupação e exploração por
apenas uma família.
O sistema de Capitanias Hereditárias e sesmarias vigorou
oficialmente até 1822, quando foi então expressamente retirado
da ordem jurídica, embora se aponte um esgotamento anterior
dada a não observância prática dos seus requisitos, com o conse-
quente esvaziamento do sistema, e o fim do estoque de terras
livres a distribuir (FAORO, 1984).
Nesse paradigma sesmarial, a terra esteve ligada aos requi-
sitos da moradia efetiva e cultura habitual. Esses requisitos
permitiram que durante três séculos se estabelecesse um privi-
légio da situação fática de posse em detrimento da propriedade
juridicamente estabelecida, enfraquecendo o controle fundiário
em nome do objetivo maior de consolidação da ocupação portu-
guesa no vasto território da então colônia brasileira.
Tal situação perdurou por séculos com poucas altera-
ções até a edição da Lei de Terras e Imigração – Lei n. 601,
de 18/09/1850. Essa legislação foi responsável por reforçar a
opção pela propriedade privada no país (já presente na Cons-
tituição Imperial de 1824 e aperfeiçoada posteriormente pelo
Código Civil de 1916), instituindo a compra e venda (além da

427
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

sucessão hereditária) como único meio de aquisição da terra e


dando a ela um caráter excludente e elitista, visto que inaces-
sível aos mais pobres4.
No âmbito da gestão territorial, a Lei de Terras instituiu um
modelo de registro fundiário que, no entanto, dada a situação
de séculos de inefetividade do controle estatal e o preciosismo
burocrático de que se revestiu, não teve a efetividade prática
necessária.
Além de afastar as camadas mais pobres da condição de
proprietários, a Lei de Terras favoreceu abertamente a concen-
tração de terras nas mãos da elite nacional ao estabelecer uma
preferência legal para a aquisição de terras devolutas para
aqueles que já tinham posses desde que pudessem comprovar
que possuíam os meios necessários para seu aproveitamento
(artigo 15 da Lei 601 de 1850).
Cabe destacar que não obstante a instituição de um novo
regime fundiário a partir da Lei de Terras, com foco na aqui-
sição formal da propriedade privada, o regime sesmarial não foi
completamente extinto. Os regimes encontraram um ajuste em
justaposição ao qual ainda foram acrescidos outros arranjos fáticos,
como a posse de pequenas propriedades rurais. Esse verdadeiro
amálgama de regimes e soluções fundiárias contribuiu de forma
decisiva para a formação de dinâmicas territoriais e econômicas
distintas no Brasil, tendo por base a relação estabelecida com a
terra pelas suas diferentes regiões.
Com a Lei de Terras e o posterior aperfeiçoamento do
regime fundiário marcado pela propriedade privada a partir do
Código Civil de 1916, outro fator de destaque foi o desenvolvi-
mento de uma ideologia proprietária que, tornada hegemônica,
garantiria uma posição social mais privilegiada a seus detentores.
Já no contexto urbano, a situação fundiária se coloca a partir
do intenso desenvolvimento das cidades brasileiras após a Procla-
mação da República, e assume destaque com o desenvolvimento
urbano mais generalizado no país a partir da década de 1930,

4
Havia ainda uma preocupação implícita com o estímulo à vinda de imigrantes
europeus para o Brasil. Acreditava-se que a possibilidade real de aquisição de
terras por meio da venda da força de trabalho estimularia a vinda dessa mão
de obra para o Brasil.

428
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

com a “Era Vargas”. Nesse período, uma série de transformações


econômicas e físicas nas cidades tornaram-nas polos de atração
populacional, proporcionando um crescimento de demandas
por habitação e infraestrutura.
Todo esse complexo cenário histórico descrito anterior-
mente levou a que o desenvolvimento urbano no Brasil se desse
sob uma base fundiária primordialmente irregular, sendo certo
que apesar da ausência de dados confiáveis, estima-se que pelo
menos 50% dos imóveis brasileiros padecem de alguma irregula-
ridade fundiária5 nos dias atuais.
Esse grave quadro fundiário tem consequências em diversas
esferas, prejudicando desde a inserção do Brasil no circuito
econômico atual do capitalismo sob dominância financeira,
passando pelo desenvolvimento da gestão urbana até a garantia
de direitos daqueles que fazem dessas áreas irregulares seu lar ou
espaço de trabalho.
É sobre tal quadro, e especialmente a partir da necessidade
de sua alteração, que se estruturam os interesses capitalistas
em torno da terra no Brasil. Acredita-se que tais interesses
estejam amalgamados na atuação estatal regulatória recente
sobre o tema, tema que será explorado no próximo item do
presente texto.

5
Conforme entrevista do secretário do Ministério das Cidades para o jornal O
Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/regularizacao-de-
domicilios-beneficiara-quem-ganha-ate-dez-salarios-20837789>. Acesso em 28
de abril de 2017.
Os dados produzidos pelo IBGE se referem tão somente aos assentamentos
subnormais, categoria que se refere ao conjunto constituído por 51 ou mais
unidades habitacionais caracterizadas por ausência de título de propriedade
e pelo menos uma das características abaixo: irregularidade das vias de cir-
culação e do tamanho e forma dos lotes e/ou carência de serviços públicos
essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica
e iluminação pública). A partir dessa categorização chegou-se ao dado de que
11,4 milhões de pessoas vivem em assentamentos subnormais no Brasil, apro-
ximadamente 6% da população. Apesar da importância desse mapeamento, em
termos de irregularidade fundiária ele representa apenas uma parte dos casos
que envolvem ainda condomínios fechados, loteamentos clandestinos, além de
imóveis com problemas registrais ou sem qualquer registro, o que faz com que a
estimativa da irregularidade fundiária supere em muito os números produzidos
pelo IBGE para os assentamentos precários.

429
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

A regulação, a terra urbana e o capitalismo sob


dominância financeira no Brasil – a sinergia em
torno da regularização fundiária
Em um cenário como o descrito acima, a irregularidade
passa a permear as transações envolvendo a terra no Brasil,
dando margem ao estabelecimento de diversas relações sociais
e jurídicas distantes do paradigma capitalista de obtenção do
maior lucro possível, com perturbações nos mecanismos de
renda da terra, descritos na literatura desde os economistas clás-
sicos como Ricardo e Marx.
Apesar do aprofundamento dessa situação ao longo da
história, desde a inefetiva Lei de Terras de 1850, houve o
decurso de mais de 150 anos até que o Estado se utilizasse de
seu poder regulador para a definição de uma política de regula-
rização fundiária ampla no país. Ainda assim, essa política não
foi desenhada por lei própria, mas sim colocada no bojo da Lei
11.977/09, que versa sobre o Programa Minha Casa Minha Vida.
O capítulo III da Lei 11.9777/09, trazia uma visão da regula-
rização fundiária como instrumento prioritariamente de garantia
de direitos aos moradores de áreas irregulares, prevendo medidas
de urbanização, construção de equipamentos urbanos, suporte
social, dentre outras com o fim último de melhoria das condições
de vida da população no seu território de origem.
Dada a pesada burocracia estatal e federativa brasileira, bem
como a repartição de competências constitucional que deu aos
municípios a competência exclusiva para questões locais, como
a regularização fundiária, essa legislação mal teve tempo de ser
incorporada pelos mais de 5.500 municípios, sendo substituída,
oito anos depois, pelo novo marco normativo nacional sobre o
tema, a Lei 13.465/17.
Essa nova legislação, que teve por base a Medida Provisória
759/16, revela a preocupação básica com o embasamento legal
para a adoção de um novo regime de governança de terras, privi-
legiando a propriedade privada plena e relegando a segundo
plano as medidas passíveis de garantir os direitos dos moradores,
de forma que parece se alinhar aos interesses do capital imobi-
liário e financeiro.

430
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

De fato, no cenário brasileiro, marcado fortemente pela irre-


gularidade fundiária conforme anteriormente exposto, a regula-
rização fundiária baseada na disseminação ampla de títulos de
propriedade privada da terra parece ser do interesse do capital
financeiro e imobiliário ao promover a homogeneização do
estoque fundiário nacional, constituindo-se em medida estraté-
gica para o aprofundamento da inserção do país no cenário de
dominância financeira que marca o capitalismo atual.
Como visto anteriormente, é fundamental a realização de uma
adequação jurídica para o aperfeiçoamento da utilização da terra
como mercadoria e sua eventual transformação em ativo financeiro,
que passa necessariamente pela homogeneização e formalização
de seu regime jurídico no formato da propriedade privada indivi-
dual, com registro cartorial. O instrumento que possibilitaria tal
adequação seria exatamente a regularização fundiária – apesar desta
se apresentar como arena de disputa entre diversos interesses e
propósitos, de diferentes frações do capital e da classe trabalhadora.
A promoção ampla da regularização fundiária, em seu
aspecto dominial, por meio da propriedade privada parece ser
de grande importância para facilitar a difusão do capital nas
cidades, além de permitir a criação de novas fronteiras de acumu-
lação, por diversas formas.
A partir de uma base fundiária formalizada e homogenei-
zada com base na propriedade privada é possível não apenas
dinamizar as negociações envolvendo a terra como mercadoria,
mas também impulsionar sua utilização como ativo financeiro a
partir da garantia aos investidores de maior segurança quanto
ao retorno de seus investimentos, bem como de maior indepen-
dência da intervenção estatal no território, que traz sempre o
risco associado à instabilidade inerente aos pactos políticos.
O movimento estatal de revogação e criação normativa
descrito anteriormente adotou como referência o modelo de
“governança de terras”, apoiado em recomendações do Banco
Mundial6. Esse modelo se baseia no aumento do controle

6
Conforme relatório Avaliação da governança fundiária no Brasil, editado pelo
Banco Mundial em 2014. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/
INTLGA/Resources/Brazil_land_governance_assessment_final_Portuguese.
pdf. Acesso em: 5 de maio de 2017.

431
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

fundiário pelo Estado por meio de mapeamento, regularização


registral, informatização e modernização de registros fundiários.
A adoção desse novo paradigma tem por pressuposto uma
política forte de regularização fundiária que garanta as condições
básicas para o controle territorial por meio da titulação. Por sua
vez, o fortalecimento da titulação em detrimento das medidas
urbanísticas e sociais prioritárias no modelo anterior de regulari-
zação fundiária plena, parece também contribuir para o aumento
da permeabilidade do território ao capital por meio da homoge-
neização e formalização da terra, que pode então funcionar de
forma mais efetiva como mercadoria e como ativo financeiro.
Por certo, com um controle mais forte e um sistema regis-
tral efetivo e moderno, tanto as transações envolvendo a terra
em si como a criação de uma estrutura financeira lastreada na
sua propriedade são largamente facilitadas, permitindo uma
ampliação do movimento de financeirização no país.
Nas últimas décadas foi delineado no país um sofisticado
sistema jurídico e financeiro referente à securitização de títulos
lastreados na propriedade imobiliária7. No entanto, apesar dos
esforços de regulamentação e do efetivo crescimento das transa-
ções com esses títulos, estas ainda apresentam um volume muito
baixo de circulação de capital (PEREIRA, 2015). Com um sistema
financeiro e jurídico bem delineado, essa dificuldade de desen-
volvimento deve ser investigada especialmente nos aspectos rela-
tivos a sua base, no caso, imbricada na questão fundiária.
Conforme anteriormente exposto, uma hipótese que pode
ser levantada é que o cenário de irregularidade fundiária no país
é um entrave para transações envolvendo a propriedade imobi-
liária – ainda que haja transações comerciais tendo por objeto
a terra mesmo em áreas irregulares – e, principalmente, para
a alavancagem de um mercado de títulos dela derivados. Cabe
reiterar que a irregularidade fundiária no Brasil não se circuns-
creve em recortes de classe social. Há a percepção de que muitas
7
Vide as leis:
8.668/93 – Institui os Fundos de Investimento Imobiliário (FII’s);
9.514/97 – Cria o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e dispõe sobre a aliena-
ção fiduciária de imóveis;
10.931/04 – Amplia o rol de instrumentos financeiros de base imobiliária que
integram o SFI.

432
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

propriedades imobiliárias pertencentes a classes abastadas, com


grande potencial de comercialização e altos valores de mercado
também padecem dessa espécie de “vício originário”, o que difi-
culta o desenvolvimento do setor.
Desse modo, sugere-se que o processo recente de revogação e
criação regulatória envolvendo a regularização fundiária se situa
em um cenário de alterações necessárias para o aprofundamento
da inserção do Brasil em uma dinâmica mundial de dominância
financeira. Trata-se da criação das bases que poderão possibi-
litar um processo amplo de regularização fundiária com base na
consolidação da propriedade privada individual, promovendo a
desejada homogeneização da qual parecem depender os esforços
de abertura de novas frentes de acumulação, real ou fictícia, que
tenham por base a terra urbana no país.
Nesse sentido, o texto legal em si apresenta um papel de
grande relevância, qual seja, o de estruturar um modelo de
atuação governamental no que se refere à regularização fundiária
guiado pelo interesse da promoção, ampla e rápida, de uma
homogeneização do estoque fundiário brasileiro nos moldes da
propriedade privada individual capitalista.
A partir de agora pretende-se destacar, ainda que sem a
pretensão de esgotamento do tema, os elementos presentes no
processo legislativo e no texto da Lei 13.465/17 que permitem a
sustentação do argumento de lançamento das bases de um processo
de homogeneização do regime jurídico da propriedade no Brasil

A Lei 13.465/17
Em um momento político conturbado – logo após um golpe
jurídico parlamentar que levou ao poder um presidente não eleito
e menos ambíguo quanto ao seu nível de comprometimento com
o aprofundamento da inserção do país no cenário de um capita-
lismo sob dominância financeira –, assistimos ao rompimento de
um paradigma mais protetivo da regularização fundiária, repre-
sentado pelo capítulo III da Lei 11.977/09, por meio de um ato
unilateral do chefe do Executivo: a Medida Provisória 759, publi-
cada em 22 de dezembro de 2016.
Sem qualquer participação democrática, a referida Medida
Provisória (MP) alterava o paradigma das políticas de regulari-

433
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

zação fundiária pelo país, estabelecendo princípios como os da


competitividade e eficiência, além de firmar compromisso claro
com a titulação irrestrita, rápida e barata, sem responsabilização
de agentes imobiliários ou exigência de construção de infraestru-
turas urbanas aptas a melhorar a vida dos habitantes das áreas
irregulares e das cidades em geral.
Essa Medida Provisória deu origem à Lei 13.465/17, cujo
texto final foi resultado de diversas modificações sofridas pelo
texto da Medida Provisória originária ao longo do processo legis-
lativo, em parte motivadas pelo engajamento de profissionais e
movimentos sociais ligados à questão fundiária na tentativa de
mitigar alguns dos retrocessos presentes no texto original.
Importante destacar que, durante o trâmite legislativo, a
referida MP recebeu mais de 700 emendas, oriundas de mais
de 20 legendas partidárias (CONGRESSO NACIONAL, 2017),
deixando clara a dimensão dos problemas que trazia. Além disso,
teve um processo de aprovação controverso nas Casas do Legis-
lativo, tendo sua votação final no dia em que o Distrito Federal
encontrava-se ocupado pelas Forças Armadas e sem a presença
da oposição no plenário (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017).
Quanto ao conteúdo, apesar das alterações em relação ao
texto original da referida Medida Provisória, a Lei 13.465/17
ainda representa uma mudança de paradigma em termos de
modelo de regularização fundiária. Conforme visto anterior-
mente, passou-se de um modelo que, ao menos no papel, prio-
rizava a melhoria das condições dos moradores e a garantia de
seus direitos – por meio do privilégio da dimensão urbanística da
regularização fundiária e da urbanização – para um modelo que
prioriza e alarga tanto quanto possível a regularização dominial
por meio da titulação nos moldes da propriedade privada.
A partir de agora, serão apresentados, de forma objetiva e
com caráter exemplificativo, alguns dispositivos da referida lei
que demonstram a mudança de modelo aqui apontada, de modo
a dar ao leitor – ainda que não familiarizado com as formas e
terminologias inerentes ao direito – a percepção prática da argu-
mentação aqui realizada.
O primeiro ponto surge logo na leitura do primeiro artigo
da Lei, destinado à regularização fundiária urbana. Trata-se do

434
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

próprio conceito de regularização fundiária que, em relação ao


anteriormente estabelecido pela Lei 11.977/09, retira sua parte
final na qual se lia: “de modo a garantir o direito social à moradia,
o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade
urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado” (BRASIL, 2009).
A retirada expressa dessa oração pelo legislador (visto que
o resto do conceito permaneceu fundamentalmente igual) já
demonstra o descompromisso do novo modelo de regularização
fundiária com a garantia de direitos, o que introduz a ideia –
reforçada em outros dispositivos– de que seu foco é a dimensão
econômica, conforme já suposto em momentos anteriores do
presente texto.
Ainda no primeiro artigo, a Lei 13.465/17 estabelece os
princípios que nortearão as políticas de regularização fundiária
instituídas durante a sua vigência. O primeiro princípio elencado
é o da sustentabilidade econômica, seguido pela eficiência na
ocupação do solo.
Apesar do conteúdo indeterminado de ambos os princípios,
inéditos no ordenamento jurídico nacional, sustentabilidade
econômica remete à ideia de transformar os territórios irregu-
lares em áreas que possam trazer retorno econômico aos investi-
mentos eventualmente realizados para sua regularização, conse-
guindo se sustentar no sentido de gerar ganhos equiparáveis aos
seus gastos. Por sua vez, eficiência na ocupação do solo evoca
uma ideia cara ao neoliberalismo que é justamente a de valo-
rizar as ações que conseguem obter maiores resultados a partir
do menor dispêndio, seja de recursos monetários ou energéticos.
Embora não seja claro o sentido prático que possa ser atri-
buído a cada um dos princípios, a partir das considerações reali-
zadas acima e do ineditismo de ambos no ordenamento jurídico
nacional, eles parecem corroborar com a sinalização no sentido da
primazia de uma visão economicista da regularização fundiária,
alinhada a paradigmas neoliberais e financeiros como a eficiência.
O terceiro ponto que cabe ser destacado se refere ao instru-
mento da legitimação fundiária, também uma inovação da lei em
análise. O referido instrumento pode ser considerado a maior
inovação da lei ao permitir que ocupantes de áreas irregulares,

435
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

públicas ou privadas, adquiram o título de propriedade de seus


imóveis de forma bastante desburocratizada e rápida, sem neces-
sidade de maiores intervenções no território.
Esse instrumento traduz a essência da Lei 13.465/17,
conforme defendida no presente texto, que pode ser resumida
em duas expressões: desburocratização de procedimentos e titu-
lação via propriedade privada individual, reforçando a sobre-
posição dos aspectos formais sobre os materiais (HERMANY e
VANIN, 2017).
Importante ressaltar que o instrumento da legitimação
fundiária traz a oportunidade, inédita até então, para que os
ocupantes de áreas públicas irregulares obtenham a titulação
direta via propriedade de seu imóvel. Até então, pela vedação
da utilização do usucapião em áreas públicas, estas poderiam ser
tituladas em relação a seus ocupantes na forma de concessões de
uso, com requisitos específicos e prazo determinado, ou passar
pelo procedimento de demarcação urbanística e legitimação de
posse, demorado e de natureza discricionária em relação à admi-
nistração pública.
Sendo assim, dado o grande volume de ocupações em terras
públicas, inclusive pela herança histórica das terras devolutas defi-
nidas nessa categoria, o instrumento representa uma facilitação
sem precedentes quanto ao volume e rapidez de titulações via
propriedade privada plena, permitindo o alcance do objetivo da
homogeneização do regime jurídico, já abordado anteriormente.
Como visto, essa homogeneização de forma ampla, rápida e
barata parece fundamental para inaugurar uma nova rodada de
mercantilização da terra no Brasil, permitindo, no limite, o desen-
volvimento de um mercado de títulos securitizados lastreados
nela. Mercado este que se apresenta como importante fronteira
de expansão ao processo de financeirização pelas dimensões
territoriais continentais do país.
No âmbito procedimental e registral, cabe destacar a clara
intenção de uma simplificação procedimental da regularização
fundiária urbana – inclusive a partir de determinações legais de
constitucionalidade duvidosa – e um incremento das disposições
específicas sobre registro, que agora passam a ocupar todo um
extenso capítulo (Capítulo IV da Lei 13.465/17).

436
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

Para além da simplificação do próprio procedimento


de registro, a partir da figura da Certidão de Regularização
Fundiária (CRF), espécie de documento único e simplificado
apto a promover o registro dos imóveis regularizados, o novo
marco regulatório busca sanar a questão da falta de controle da
veracidade do conteúdo dos registros pela exigência do memorial
descritivo das áreas e a previsão de unificação nacional do acesso
aos registros locais por meio da informatização.
A simplificação do procedimento administrativo e regis-
tral reduz custos e também o tempo necessário para a regulari-
zação, indo ao encontro da hipótese defendida de um modelo de
regularização capaz de ser mais amplo, rápido e barato a fim de
homogeneizar, tanto quanto possível, o regime jurídico das terras
nacionais com base na propriedade privada.
Por sua vez, as inovações registrais, especialmente relacio-
nadas com a segurança, homogeneidade e facilidade de acesso
aos registros fundiários/imobiliários também cumprem um
papel em nossa hipótese ao garantir maior segurança às tran-
sações envolvendo a terra de forma direta ou indireta, possibili-
tando seu crescimento no país.
Todos esses dispositivos, e ainda outros presentes no novo
marco normativo da regularização fundiária no país, reforçam a
hipótese de que estamos diante de uma reforma regulatória com
o objetivo de fixar as bases jurídicas para uma nova rodada de
mercantilização da terra urbana no Brasil.
Como já referido anteriormente, a fixação das bases de um
processo de mercantilização – especialmente a homogeneização
do regime jurídico fundiário a partir da propriedade privada indi-
vidual – é fator fundamental para a difusão de processos de finan-
ceirização que tenham por base a terra urbana, dada sua depen-
dência da homogeneização desta dentro dos padrões capitalistas

Conclusão
A partir do exposto, a hipótese trazida no presente texto é que
o investimento em um processo rápido e barato de regularização,
com foco no âmbito dominial e registral, seria um passo importante
para um movimento de homogeneização do estoque fundiário brasi-

437
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

leiro com base na propriedade privada plena, fundamental para o


aprofundamento das relações entre o espaço urbano nacional e o
circuito do capitalismo sob dominância financeira.
Podemos afirmar que estamos diante da fixação das bases de
uma nova rodada de mercantilização da terra urbana brasileira,
que embora seja incompleta pela própria inconversibilidade da
terra em mercadoria segundo a teoria do valor, está ainda muito
pouco instituída nos limites de suas possibilidades no Brasil.
Assim, a garantia dos pressupostos dessa mercantilização se
coloca como importante passo para a financeirização do estoque
fundiário nacional que, por sua vez, pressiona pela implantação
de tais pressupostos.
O alcance de tal objetivo depende diretamente da inter-
venção estatal, especialmente em sua dimensão regulatória, para
determinar a mudança de modelo da regularização fundiária de
modo a torná-la instrumento dessa homogeneização da forma
mais rápida e barata possível.
Ainda que sem dados seguros sobre o rebatimento prático
da Lei 13.465/17, espera-se ter demonstrado que a mesma tem
uma importância em si e por si, ao representar a estruturação de
um modelo de regularização fundiária voltado para a homoge-
neização do regime jurídico da terra urbana no país, aclarando
os rumos e objetivos da atuação estatal brasileira em um cenário
de inflexão ultraliberal.
De fato, não parece possível considerar como uma mera
coincidência a alteração do marco normativo e do modelo de
regularização fundiária de uma forma tão importante, com
privilégio exatamente dos pressupostos de interesse do capital
financeiro e imobiliário, justamente em momento imediatamente
posterior a um golpe jurídico parlamentar.
Apesar do cenário delineado, não se pode deixar de alertar
o leitor que a terra é elemento fundamental da luta social e
política, se constituindo como condição para a garantia de
muitos direitos, inclusive positivados como fundamentais pela
Constituição Federal de 1988.
A derrubada de um paradigma de regularização como
instrumento de garantia de direitos para a instituição de
outro preocupado primordialmente com as dimensões

438
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

dominial e registral, alinhado aos interesses de frações capi-


talistas afinadas com a lógica financeira, tende a trazer graves
consequências socioespaciais, com um agravamento das
desigualdades.
A homogeneização irrestrita da terra urbana no Brasil sob
o regime da propriedade privada individual tende a agravar o
processo de vulnerabilização das camadas mais pobres da socie-
dade, especialmente daqueles que conseguem habitar áreas mais
valorizadas das cidades. O aumento do custo de vida acarretado
pela regularização e o assédio do mercado imobiliário tendem a
tornar ainda mais difícil a permanência nesses locais.
Além disso, em uma perspectiva de tempo um pouco mais
prolongada, com um hipotético sucesso do projeto cujas bases
ora se colocam, é possível prever os riscos associados à disse-
minação de títulos securitizados lastreados na propriedade
fundiária. Os exemplos espalhados pelo globo, incluindo os dos
Estados Unidos da América, deixam clara a dimensão espoliativa
de um mercado fundiário financeirizado.
Este é o futuro que está sendo estruturado no presente, a
partir de um arcabouço regulatório do qual a Lei 13.4645/17 é
peça central. O aprofundamento das desigualdades, processos de
espoliação direta e negação de direitos básicos como a moradia
se colocam como horizonte quase inescapável.
Espera-se, no entanto, que a compreensão da dimensão da
ameaça possa ajudar na luta, social e política, a partir da disputa
de sentidos do próprio instrumento da regularização fundiária,
a ser feita na prática e em âmbito local, em detrimento dos inte-
resses plasmados no texto legal que atualmente o regulamenta.

Referências
AALBERS, Manuel B. The potential for financialization. In: Dialogues in
Human Geography, vol. 5 (2), 2015.
AGLIETTA, Michel. Le capitalisme de demain. Paris: Fondation Saint-
Simon, 1998.
ARANTES, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial
e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado. São
Paulo: USP, 2004.

439
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de


nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 2003.
BALDEZ, Miguel Lanzelloti. Solo urbano: propostas para a Constituinte. Rio
de Janeiro: Apoio Jurídico Popular/Fase, 1996.
BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São
Paulo: Saraiva, 2013.
BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global – O padrão sistê-
mico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
BRASIL. Lei 11.977, 2009.
CHESNAIS, François. A teoria do regime de acumulação financeirizado:
conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11,
n. 1 (18), p. 1-44, jan./jun., 2002. Disponível em: http://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086.
______. A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.
CHRISTOPHERS, Brett. The limits to financialization. In: Dialogues in
Human Geography, vol. 5 (2), 2015.
______. Revisiting the urbanization of capital. In: Anals of the Association of
American Geographers, 2011.
CONGRESSO NACIONAL. Tramitação Medida Provisória n. 759/16.
Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-
provisorias/-/mpv/127879. Acesso em: 23 de setembro de 2019.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3.ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1989.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo:
Boitempo, 2016.
DE SOTO, Hernando. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001.
DURAND-LASSERVE, Alain. Regularization and integration of irregular
settlements: lessons from experience. Nairobi: World Bank, 1996.
EDELMAN, Lauren; STRYKER, Robin. A sociological approach to law
and the economy. In: SMELSER, Neil; SWEDBERG, Richard (org.). The
handbook of economic sociology. Nova Iorque: Princeton University Press,
2005.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1984.
FOLHA DE SÃO PAULO. Protesto em Brasília termina com 49 feridos, 7
detidos e exército nas ruas. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/
poder/2017/05/1887139-protesto-em-brasilia-termina-com-49-feridos-7-deti-
dos-e-exercito-nas-ruas.shtml. Acesso em: 10 de junho de 2019.

440
Capitalismo sob dominância financeira e a terra urbana – uma análise
do caso brasileiro a partir da regulação fundiária

GOTHAM, Kevin Fox. The secondary circuit of capital reconsidered:


globalization and the U.S. real estate sector. AJS, Chicago, v. 112, n. 1, p.
231-275, jun. 2006. Disponível em: http://www2.tulane.edu/liberal-arts/
upload/GothamAJSArticle.pdf.
GUTTMANN, Robert. Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas
finanças. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 82, p. 11-33, nov. 2008.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&-
pid=S0101-33002008000300001>.
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: Cidades rebeldes: passe livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
______. Cidades rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
______. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2015.
______. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
______. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
______. Flexible accumulation through urbanization: reflections on ‘post-
modernism’ in the American city. In: AMIN, Ash. Post-Fordism, a reader.
Oxford: Blackwell, 1994.
HERMANY, Ricardo; VANIN, Fábio. Análise crítica das mudanças promov-
idas pela Medida Provisória n. 759/2016 na regularização fundiária do
Brasil. In: Revista de Direito da Cidade, vol. 9, n. 2, 2017.
JESSOP, Bob. Spatial Fixes, Temporal Fixes and Spatio-Temporal Fixes. In:
HARVEY, David. A Critical Reader. Antipode Book Series. Oxford: Black-
well Publishing, 2006.
KOTZ, David. Neoliberalism and Financialization. Working Paper, University
of Massachusetts, 2008. Disponível em: http://people.umass.edu/dmkotz/
Neolib_and_Fin_08_03.pdf. Acesso em: 28 de março de 2018.
PAULANI, Leda. A crise do regime de acumulação com dominância da
valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados, São Paulo,
v. 23, n. 66, p. 25-39, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142009000200003.
______. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações
sobre o caso brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 77, p. 237-261,
2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0103-40142013000100018>.
______. O Brasil na crise da acumulação financeirizada. In: Anais do IV
Encuentro Internacional Economía Política y Derechos Humanos, 2010.
POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal,
1985.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Dos cortiços aos condomínios fechados:
as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; IPPUR, UFRJ: FASE, 1997.

441
Tarcyla Fidalgo Ribeiro

SANFELICI, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no


Brasil: uma contribuição ao debate. EURE, Santiago, v. 39, n. 118, 2013.
Disponível em: http://www.scielo.cl/pdf/eure/v39n118/art02.pdf.
______. A metrópole sob o ritmo das finanças: implicações socioespaciais da
expansão imobiliária no Brasil. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2013.
THEODORE, Nik; PECK, Jamie; BRENNER, Neil. Urbanismo Neoli-
beral: La ciudad y el imperio de los mercados. In: Temas Sociales, n. 66.
Santiago, 2009.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2. São Paulo: Editora UNB, 2004.
ZWAN, Natascha. Making sense of financialization. In: Socio-economic review,
n. 12, 2014.

442
A financeirização do Estado por meio
da securitização de ativos no Brasil

Igor Pouchain Matela


Nelson Diniz

Introdução

N os últimos anos, sobretudo após a crise financeira


mundial de 2007-9, observou-se um crescente interesse
no conceito de financeirização. Ao lado dos conceitos de globali-
zação e neoliberalização, ele se tornou uma das principais chaves
explicativas das dinâmicas recentes de transformação do capita-
lismo. Isso posto, para introduzir seus significados mais abran-
gentes, pode-se considerar, inicialmente, a seguinte definição de
Paulani (2013):

Utilizo aqui o termo na forma como vem se consagrando na


literatura corrente de economia política nacional e interna-
cional desde meados dos anos 1990. [...] Resumidamente, as
teses da financeirização do capitalismo advogam que, a par-
tir de meados dos anos 1970, o capitalismo ingressa numa
fase em que a valorização financeira vai adquirindo um papel
cada vez mais importante, até assumir o comando do proces-
so de acumulação. Em outras palavras, atualmente, o proces-
so de valorização do valor que é definidor do capitalismo,
estaria sob o comando da lógica financeira, que é rentista e
curto-prazista, além de ainda mais contraditória do ponto de
vista do funcionamento do sistema como um todo, ou se qui-
sermos, do ponto de vista da acumulação sistêmica (p. 255).

O interesse pelo conceito de financeirização não se restringiu


à literatura específica da economia política. Isto é, um conjunto
cada vez maior de esforços, nos mais diversos campos do pensa-
mento e disciplinas científicas, assumiu a centralidade da valo-
rização financeira e de sua lógica como objeto de reflexão. O

443
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

que é verdadeiro para a geografia, a sociologia, as ciências polí-


ticas, a antropologia, dentre outras disciplinas. Cresceram, igual-
mente, iniciativas de investigação de caráter multidisciplinar.
Hoje, o debate a respeito da dominância financeira perpassa,
por exemplo, grande parte das pesquisas no campo dos estudos
urbanos, que apresentam um viés que abrange múltiplas disci-
plinas. Tudo isso, enfim, conduzindo as análises sobre as finanças
para além de um círculo muito restrito de especialistas1.
Os objetivos deste artigo se inscrevem, então, justamente
no contexto do interesse aumentado pelo conceito de financeiri-
zação e pelos processos que ele designa. Tendo em vista que as
pesquisas avançaram para o tratamento da dominância financeira
em distintos níveis e domínios, permitindo falar, por exemplo,
da financeirização do capitalismo, da gestão corporativa, da
vida cotidiana, da propriedade imobiliária etc., nosso objetivo é
examinar um nível em particular: o da financeirização do Estado.
Mas se falta consenso ao redor do que seria a própria
financeirização – a vasta literatura, nacional e internacional,
apontando diversas definições e perspectivas –, o que dizer da
financeirização do Estado, uma expressão difundida mais recen-
temente e para a qual foi dada, até agora, menos atenção?
Consideradas indagações como essa, pretendemos, em
primeiro lugar, delimitar o que seria a financeirização entendida
nesse nível específico de análise. Em seguida, propomos que ela
seja inscrita no nível mais geral da financeirização como domi-
nância da lógica de valorização do capital fictício. O que, em
nossa opinião, torna o conceito mais preciso. Além disso, para
atribuir fundamentação empírica aos nossos argumentos, ofere-
cemos uma intepretação da financeirização à luz dos primeiros
ensaios de securitização de ativos no âmbito do Estado brasileiro,
em distintos níveis de governo. Ao fazê-lo, consideramos, princi-
palmente, o exemplo da cessão de royalties de petróleo do Estado
1
Como afirma Aalbers: “A literatura acerca da financeirização é verdadeiramen-
te multidisciplinar, no sentido de que a maioria dos colaboradores do debate
parece se sustentar na literatura de diferentes disciplinas. Os autores das 25 pu-
blicações mais citadas (ou seja, pelo menos 250 citações no Google Acadêmico)
sobre a financeirização têm formação em economia, sociologia, ciência política,
estudos culturais e artes, história e geografia” (FINANCIALIZATION, 2019, p.
1, tradução nossa).

444
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

do Rio de Janeiro e a proposta em discussão no Congresso


Nacional acerca da cessão de créditos tributários e não tributá-
rios, que busca regulamentar tal prática entre os entes federados.
Concluímos com uma reflexão sobre o caráter mais amplo da
financeirização no contexto da acumulação de capital e, parti-
cularmente, de suas relações com o advento de novas formas de
despossessão.

Definições abrangentes do conceito de


financeirização
Sem dúvida, compreender os significados conferidos à
chamada financeirização do Estado exige, antes, tornar explícito
o que se quer dizer com o conceito de financeirização. Conceito
cujos sentidos variam muito, a depender do viés teórico, do nível
e das escalas de análise, dos recortes temáticos e disciplinares,
dentre outros aspectos. Até o presente momento, já foram publi-
cadas diversas revisões da literatura sobre a financeirização que
reúnem e põem em contraste esses distintos sentidos.
Chesnais (2002), por exemplo, resume as diferentes posições
relacionadas à hipótese da emergência do regime de acumulação
financeirizado, ou com dominância financeira, descrevendo o
que seriam os traços sistêmicos desse novo regime. Ao fazê-lo,
associando os conceitos de regime de acumulação e modo de
regulação à ideia marxista da superação temporária dos limites
imanentes do modo de produção capitalista, o autor assinala
que é pouco provável que esse regime se constitua num regime
de acumulação em sentido pleno, quer dizer, com legitimidade
social, viabilidade econômica e passível de difusão e transferibi-
lidade internacional. Opinião que o coloca numa posição diame-
tralmente oposta à da abordagem de Aglietta (1998), para quem
esse regime seria capaz, ao menos nos Estados Unidos, de esta-
bilizar as contradições da acumulação capitalista, tal como foi
possível nos marcos do regime de acumulação fordista.
Van der Zwan (2014), por sua vez, em seu State of the art:
making sense of financialization, oferece uma revisão que consi-
dera não só os debates macroeconômicos de inclinação marxista,
keynesiana e regulacionista, como também as abordagens sobre

445
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

a maximização do valor aos acionistas, isto é, acerca da financei-


rização das empresas e da gestão corporativa e, por fim, a litera-
tura que existe ao redor da financeirização da vida cotidiana2. A
autora destaca, ademais, as convergências e divergências entre os
estudos da financeirização e os trabalhos de economia política
de orientação institucionalista, especialmente os que se baseiam
na perspectiva das variedades de capitalismos. Perspectiva que,
em sua opinião, abriria espaço para leituras que transponham a
ênfase no contexto geoinstitucional anglo-americano3.
Christophers (2015) percorre mais ou menos a mesma lite-
ratura que Van der Zwan (2014), incluindo, no entanto, o nível
da financeirização da propriedade imobiliária e apresentando
seus polêmicos argumentos em torno dos limites da financeiri-
zação. Do seu ponto de vista, a financeirização é limitada tanto
como conceito quanto como processo, o que lhe permite traçar o

2
A expressão maximização do valor aos acionistas (maximizing shareholder value,
em inglês) refere-se ao poder e à influência crescente dos acionistas na admi-
nistração das empresas capitalistas contemporâneas. A esse respeito, Aglietta
(2000), por exemplo, observa o seguinte: “Os mercados financeiros têm o po-
der de avaliar as empresas publicamente. Esse processo de avaliação ocorre
sob o escrutínio permanente da comunidade de investidores, porque as regras
e os padrões tornaram possível abstrair as especificidades da organização da
empresa. [...] As estruturas elaboradas do mercado de capitais e a capacidade
relacionada de movimentar fundos em mercados líquidos são fontes de poder
para os investidores institucionais que gerenciam suas carteiras e estão sujeitos
a critérios rigorosos de desempenho relativo. O princípio que enfrenta a gestão
corporativa é um código abstrato formal: a lógica de um sistema de avaliação
pública. O valor para o acionista é apenas a norma da transformação do capi-
talismo que promoveu esse sistema de avaliação pública. A governança corpo-
rativa é o conjunto de comportamentos que induz a empresa a maximizar o
valor para os acionistas” (p. 149, tradução nossa). O nível da financeirização da
vida cotidiana, por sua vez, poderia ser definido, em consonância com Sanfelici
(2013), como o que indica que, cada vez mais, “o crédito e as finanças medeiam
a relação entre os indivíduos, impõem ritmos no uso do tempo e engendram
um ethos que define as expectativas e modela as disposições subjetivas dos in-
divíduos” (p. 32).
3
Para um exemplo de debate sobre a financeirização que vai além do contexto
anglo-americano, com especial interesse no caso das economias latino-ameri-
canas, cf. Abeles et al. (2018). Trata-se de uma coletânea de artigos elaborados
no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Artigos que, segundo os editores da publicação, procuram superar o fato de
que a maioria dos estudos sobre a financeirização tende a manter o foco nas
economias desenvolvidas.

446
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

que seriam os limites analíticos, teóricos, estratégicos, ópticos e


empíricos da financeirização. O autor o faz sobretudo para enfa-
tizar que, em virtude de sua acelerada e nem sempre criteriosa
difusão, a financeirização corre o risco de se transformar numa
ideia desgastada pelo excesso de uso e falta de precisão4.
Lapavitsas (2011) conduz sua revisão tendo em vista o
que designa como as abordagens radicais da financeirização,
que corresponderiam principalmente aos estudos nos campos
da economia política marxista e das análises pós-keynesianas5.
O primeiro campo estaria referido, na origem, à teoria clássica
do capital monopolista de Baran e Sweezy ([1966] 1988), mas
também ao resgate das teorias do imperialismo e do capital
financeiro de autores como Lênin ([1917] 2011) e Hilferding
([1910] 1985). O segundo, à atualização do debate keynesiano
sobre o papel do rentier na expansão das finanças, em detrimento
dos lucros industriais. O autor sublinha, ao mesmo tempo, a
importância de outras perspectivas heterodoxas, como a já citada
matriz regulacionista e a que deriva dos argumentos de Arrighi
([1994] 2003), para quem a financeirização é um fenômeno
cíclico e recorrente na longa duração do capitalismo histórico
como sistema mundial. Lapavitsas (2011) assume, enfim, o viés
que remonta à tradição da teoria do imperialismo e do capital
financeiro e define a financeirização do seguinte modo:

A financeirização é uma das ideias mais inovadoras que surgi-


ram da economia política radical nos últimos anos e tem sido
empregada frequentemente na análise da crise de 2007-9. Seu
apelo teórico reside na capacidade de conectar a crise atual ao
crescimento secular das finanças nos últimos anos. De maneira
mais ampla, pode dar uma ideia da transformação estrutural
das economias capitalistas durante as últimas três décadas, com
suas implicações sociais correspondentes. [...] A financeirização
é colocada como uma transformação sistêmica das economias
capitalistas maduras que compreende três elementos funda-
4
O artigo de Christophers (2015) foi publicado em um número de Dialogues in
Human Geography no qual também está inserido um conjunto de respostas aos
seus pontos de vista. Cf., por exemplo, a réplica de Aalbers (2015), intitulada
The potencial for financialization.
5
Lapavitsas (2013) atualizou e ampliou sua revisão do debate em uma obra
posterior, intitulada Profiting without producing: how finance exploits us all.

447
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

mentais: primeiro, as grandes empresas não financeiras reduzi-


ram sua dependência de empréstimos bancários e adquiriram
capacidades financeiras; segundo, os bancos expandiram suas
atividades de mediação nos mercados financeiros, bem como
empréstimos a famílias; terceiro, as famílias se envolveram cada
vez mais no campo financeiro, como devedoras e detentoras de
ativos (p. 611-612, tradução nossa).

Há outras revisões sistemáticas do debate, mas, levando


em conta os objetivos deste artigo, o que foi dito acima é sufi-
ciente para estabelecer que ele tende a girar em torno de uma
definição abrangente da financeirização6. Trata-se de um tipo de
definição sintetizada, em geral, na forma da alusão à dominância
financeira ou das finanças. Considere-se, por exemplo, a defi-
nição de Aalbers (2015):

Dominância crescente de atores, mercados, práticas, medi-


das e narrativas financeiras, em múltiplas escalas, resultando
na transformação estrutural das economias, das corporações
(incluindo instituições financeiras), dos Estados e das famí-
lias (p. 214, tradução nossa).

Trata-se, em suma, de uma definição dita guarda-chuva


(umbrella definition) pelo próprio Aalbers (2015) e que já foi enun-
ciada, de modo semelhante, por outros autores. Epstein (2005),
por exemplo, sustenta que a financeirização corresponde ao “cres-
cente papel da racionalidade, dos mercados, dos atores e das insti-
tuições financeiras no funcionamento das economias domésticas
e internacionais” (p. 3, tradução nossa). Braga (1997), por seu
turno, defende que ela constitui o padrão sistêmico de riqueza
do capitalismo contemporâneo, manifestando-se, portanto, “nas
finanças das famílias (até porque seus rendimentos provenientes
do trabalho vêm sofrendo limitações), nas finanças empresariais,
na rentabilidade dos financistas e nas finanças do Estado” (p. 227).
Guttmann (2008), por fim, observa que, desde a crise econômica
6
Ainda sobre as revisões da literatura a respeito da financeirização, cf., nesta
obra, os artigos de Ribeiro e Diniz e de Klink e Barcelos de Souza. Artigos que
procuram não só apresentar um estado da arte desse debate como oferecer
horizontes para sua condução no campo dos estudos urbanos, regionais e ter-
ritoriais.

448
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

mundial ocorrida na década de 1970 e no início dos anos 1980,


“que desregulamentou os bancos e permitiu-lhes remodelar os
trabalhos da nossa economia, vivemos em um sistema dominado
pelas finanças” (p. 11).
Para Aalbers (2015), definições como essas contribuiriam
para a afirmação de uma relativa unidade entre as distintas pers-
pectivas que caracterizam a literatura sobre a financeirização.
Acreditamos que elas podem, de fato, cooperar, de alguma
maneira, com a organização e a sistematização do debate em
tela. O que é verdadeiro desde que, a partir e ao lado dela, sejam
situados e problematizados processos e categorias mais precisos,
dentre os quais destacamos, neste artigo, a produção e a circu-
lação do que Marx ([1894] 1986c) chamou de capital fictício. Ou
seja, por si só, essas definições guarda-chuvas são demasiada-
mente genéricas. Ponto de vista mais ou menos assimilado pelo
próprio Aalbers em seu verbete acerca da financeirização escrito
para a enciclopédia da American Association of Geographers
(AAG). Em suas palavras:

Até certo ponto, os críticos estão certos: a financeirização


pode ser um conceito muito pouco definido que abrange
muitos processos, estruturas, práticas e resultados em dife-
rentes escalas e molduras temporais. Além disso, a financei-
rização é algumas vezes o explanandum (o fenômeno a ser
explicado), outras, o explanans (a coisa que explica) e, outras
vezes, nem sequer é claro qual dos dois é (FINANCIALIZA-
TION, 2019, p. 2, tradução nossa).

Ao mesmo tempo, o autor sugere que a popularidade acadê-


mica e mesmo midiática do conceito de financeirização reside, justa-
mente, em sua imprecisão, “isto é, na capacidade de transcender
diferentes linhas de argumentação, originárias de diferentes disci-
plinas e ocorrendo em diferentes escalas” (FINANCIALIZATION,
2019, p. 2, tradução nossa). Seja como for, ao menos para os obje-
tivos deste artigo, essas primeiras definições abrangentes foram
consideradas porque ajudam a entender os sentidos atribuídos, a
partir da próxima seção, à financeirização do Estado.

449
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

A financeirização do Estado
Embora tenham colaborado, de um modo ou de outro, com
a difusão de definições pouco delimitadas do conceito de financei-
rização, autores como Aalbers reconhecem que existem caminhos
de análise e de reflexão menos vagos, que permitem superar a
genérica, além de frequentemente confusa, alusão à dominância
financeira ou das finanças. No verbete acima mencionado, por
exemplo, o autor delineia esses caminhos considerando sete temas
relacionados a diferentes dimensões da financeirização contempo-
rânea. Temas indicados e resumidos no Quadro 1.

Quadro 1 – Temas abrangidos pelos estudos contemporâneos da


financeirização (verbete da American Association of Geographers)
A financeirização como um processo historicamente recorrente, que
sinaliza o “outono”, no sentido arrighiano-braudeliano, das potências hege-
mônicas. Dito de outro modo, a financeirização como um processo cíclico e
correspondente ao declínio e à sucessão de hegemonias (holandesa, britânica
e norte-americana) no sistema interestatal.
A revolução dos serviços financeiros: ou seja, o crescimento das instituições
financeiras não bancárias e a importância cada vez maior da alavancagem e
da cobrança de taxas para os modelos de negócios dos bancos.
A financeirização da economia em termos estritos: isto é, o setor financeiro
se tornando cada vez mais dominante em termos econômicos.
A financeirização das empresas não financeiras: quer dizer, as empresas
tradicionalmente não financeiras se tornando dominadas por narrativas,
práticas e medidas financeiras. Essas mesmas empresas participando cada
vez mais de atividades que têm sido típicas do setor financeiro.
A financeirização como assetization (no original em inglês): ou seja, a trans-
formação de uma gama de mercadorias em títulos e ativos negociáveis nos
mercados financeiros.
A financeirização do Estado e do setor público: isto é, governo, autoridades
públicas, educação, assistência médica, habitação social e vários outros setores
sendo dominados por narrativas, práticas e medidas financeiras.
A financeirização das famílias (households, no original em inglês): quer
dizer, motivos, justificativas e medidas financeiras se tornando cada vez mais
dominantes tanto na maneira como os indivíduos e as famílias estão sendo
avaliados e abordados quanto na maneira como tomam decisões.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de Financialization (2019).

Neste artigo, dois recortes temáticos a respeito da financeiri-


zação são especialmente importantes e isso porque se conectam

450
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

e podem ser articulados numa problematização dos processos


empíricos mencionados na introdução, isto é, a securitização de
royalties de petróleo e de direitos creditórios estatais no Brasil.
Em primeiro lugar, importa, para nós, o que tem sido
chamado de financeirização do Estado não só por Aalbers, mas
também por autores como Lagna (2016) e Wang (2015).
Para Lagna (2016), a literatura existente em torno da
financeirização tem dedicado pouca atenção ao modo como os
governos manejam práticas orientadas pelo mercado e tecnolo-
gias de inovação financeira para perseguir seus objetivos (statecraft
objectivies, no original em inglês). Expressão com a qual o autor,
acompanhando Baldwin (1985), refere-se à gestão do poder do
Estado em assuntos domésticos e estrangeiros. Ainda conforme
Lagna (2016), foi exatamente em virtude dessa atenção insufi-
ciente que os estudiosos perderam a oportunidade de examinar
um aspecto crucial da dominância financeira contemporânea,
ou seja, a financeirização do próprio Estado. A passagem abaixo
sintetiza seus argumentos e destaca o uso de derivativos como
referência principal das reflexões do autor:

É surpreendente que a crescente literatura sobre a financei-


rização – apesar dos esforços substanciais para explorar a
tendência das finanças modernas e sua dinâmica baseada no
mercado para permear numerosas esferas da vida humana
– tenha dedicado atenção insuficiente a como e por que os
governos usam derivativos. Devido a essa desatenção, estu-
diosos críticos perderam a oportunidade de examinar como
a adoção governamental de derivativos reflete um fenômeno
crucial do capitalismo atual: os governos muitas vezes exer-
cem ação política ao empregar os métodos e instrumentos da
inovação financeira. Essas atividades representam uma faceta
fundamental da financeirização do Estado, ou seja, a reestru-
turação das instituições e do poder do Estado em consonân-
cia com a crescente influência das finanças no mundo atual
(LAGNA, 2016, p. 2, tradução nossa).

Lagna (2016) desenvolve seus argumentos tendo em vista


o contexto das lutas políticas iniciadas na Itália a partir do final
da década de 1980. Sua investigação descreve como, já nos anos
1990, uma aliança neoliberal deslocou o establishment político e

451
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

empresarial do país, chegando ao poder central e recorrendo a


inovações financeiras para cumprir os critérios de admissão na
União Econômica e Monetária (UEM) europeia. Trata-se, basi-
camente, da alusão ao uso de contratos de derivativos para rees-
truturar a dívida pública italiana, modificando, profundamente,
os parâmetros de ação econômica do Estado e satisfazendo os
referidos critérios de ingresso na UEM.
Wang (2015), por sua vez, afirma que a ascensão da lógica
de maximização do valor aos acionistas e a crescente proemi-
nência de instrumentos, inovações e canais financeiros permitem
vislumbrar correspondências entre o que ocorre na China e o que
tem sido designado como financeirização pela literatura inter-
nacional. No entanto, de acordo com sua abordagem, a onipre-
sença dos atores estatais na economia chinesa impõe restrições
aos pressupostos centrais dessa literatura, ao menos quando se
trata de analisar esse caso específico. Nos termos do autor:

Primeiro, nos relatos existentes sobre a financeirização, o


‘objeto’ que está sendo ‘financeirizado’ é, antes de tudo, a
economia; os Estados são fornecedores de políticas de (des)
regulamentação que facilitam a financeirização [...]. Em se-
gundo lugar, o investimento financeiro é percebido como
um jogo de soma zero em relação às atividades produtivas
[...]. Essas duas pressuposições, embora fazendo justiça aos
casos de economias liberais e desenvolvidas, provavelmente
encontrariam dificuldades quando comparadas com instân-
cias históricas e contextos nacionais em que os Estados são
atores financeiros importantes (WANG, 2015, p. 604, tradu-
ção nossa).

Partindo dessas restrições aos pressupostos da literatura


internacional, Wang (2015) sugere que a financeirização também
diz respeito a uma tendência por intermédio da qual os Estados
dependem cada vez mais de um conjunto de meios financeiros
(mercados, indicadores e instrumentos financeiros, por exemplo)
para alcançar seus objetivos, gerenciar seus ativos e financiar
investimentos públicos. O autor estabelece que, no caso chinês,
esses meios envolvem três componentes básicos inter-relacio-
nados, quais sejam: i) a introdução da lógica de maximização de

452
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

valores acionários na administração de empresas e ativos estatais,


o que o leva a sublinhar a hipótese da emergência do Estado acio-
nário (shareholding state, no original em inglês); ii) a criação de
instituições financeiras não bancárias para gerir ativos estatais;
e iii) a provisão de veículos de financiamento por essas institui-
ções para fomentar investimentos locais em ativos fixos ligados
a processos de urbanização e expansão de infraestruturas. Nesse
sentido, o autor sustenta a seguinte definição concernente à
financeirização do Estado chinês:

A financeirização do Estado refere-se ao processo no qual


o Estado chinês transforma sua gestão da economia substi-
tuindo a intervenção administrativa e a alocação fiscal pela
supervisão de seus ativos massivos de Estado de acordo com
o valor do acionista. A expressão institucional desse proces-
so é a proliferação de órgãos estatais de gestão de ativos e
uma nova onda de competição acionária e geração de cré-
dito nessas plataformas estatais de gestão de ativos. Suas
consequências são a orientação de atores burocráticos para a
competição acionária, a crescente dívida soberana incorrida
por uma variedade de agências governamentais e o crescente
uso de produtos financeiros para investimentos em ativos
fixos (WANG, 2015, p. 621, tradução nossa).

O relato de Wang (2015) fundamenta-se na descrição da


reforma econômica chinesa desde o final dos anos 1970, sobre-
tudo no que tange à transformação das empresas estatais. O
autor observa que, na década de 1980, a reforma dessas empresas
baseou-se na melhoria da gestão e que, mais adiante, na década
de 1990, os reformadores chineses se esforçaram para ativar o
efeito disciplinador dos acionistas. Uma mudança de filosofia,
do gerencialismo para a lógica de maximização do valor aos
acionistas, compatível com o que aconteceu com as corporações
ocidentais entre os anos 1960 e 1990. O que, pode-se dizer, a
despeito das especificidades, vincula o caso chinês ao caso geral
da financeirização.
Para nós, relatos e definições como as de Wang (2015),
Lagna (2016) e Aalbers (FINANCIALIZATION, 2019) contri-
buem para defender que, atualmente, o recurso aos meios e aos

453
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

instrumentos financeiros por atores estatais sugerem, de fato,


a pertinência da ideia da financeirização do Estado, ou seja, da
reestruturação das instituições do Estado em consonância com
o poder e a influência cada vez maior das finanças no mundo
contemporâneo. Financeirização, enfim, referida ao advento de
padrões de ação dos Estados que, no mínimo: i) buscam finan-
ciamento além dos mecanismos tradicionais do endividamento
público e da intermediação bancária; e ii) operam nos mercados
e conduzem a gestão dos seus ativos e passivos segundo uma
racionalidade semelhante à da maximização do valor aos acio-
nistas, com o que essa mesma racionalidade financeira tende a
se sobrepor a qualquer outro parâmetro da ação estatal. Tudo
isso indicando, em consonância com a definição abrangente
de Aalbers, a internalização de práticas, medidas e narrativas
financeiras no interior do próprio Estado. É isso que, em nossa
opinião, está em questão quando se trata da securitização de ativos
estatais no Brasil. O que remete ao segundo recorte temático da
financeirização importante para os objetivos deste artigo, que diz
respeito à “assetização”, processo que, por seu turno, pode ser
melhor entendido quando associado à produção e circulação de
capital fictício e à dominância da lógica de valorização desse tipo
de capital.

A financeirização como dominância da lógica de


valorização do capital fictício
Quando se examina a literatura a respeito da financeirização,
conclui-se, imediatamente, que nela há uma grande influência
não só das abordagens críticas em geral, mas, nomeadamente,
da tradição da economia política de inspiração marxista. Como
observa Lapavitsas (2011), o conceito de financeirização possui
fortes raízes nessa tradição, ainda que, como visto acima, também
tenha sido mobilizado por outras vertentes da análise econômica
heterodoxa, como as de viés keynesiano/pós-keynesiano e as
fundadas na teoria da regulação.
Assim, cabe sublinhar que o conceito de financeirização
é eminentemente crítico, utilizado, em geral, para explorar as
crises e as contradições da acumulação capitalista contempo-

454
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

rânea, tendo pouca ou nenhuma penetração no mainstream do


pensamento econômico. Como assinalam Abeles et al. (2018),
“a corrente principal ou neoclássica também analisa a ascensão
das finanças nas últimas décadas, ainda que não utilize o termo
financeirização” (p. 21, tradução nossa). O que é verdadeiro para
as demais disciplinas. Onde quer que seja acionado, na geografia,
na sociologia, na antropologia, dentre outras, o conceito de finan-
ceirização apresenta esse conteúdo marcadamente crítico.
Seja como for, o que importa dizer é que essa influência da
economia política de inspiração marxista resultou na presença
e na difusão crescentes de algumas de suas principais catego-
rias no âmbito do debate acerca da financeirização, particular-
mente das categorias por intermédio das quais Marx lidou com
os aspectos monetários e financeiros da acumulação capitalista,
quais sejam: o capital portador de juros, o sistema de crédito e o
capital fictício. Ao referir-se, novamente, ao que denomina como
as teses da financeirização, Paulani (2016), por exemplo, propõe
o seguinte:

A tese mais importante que deve ser mostrada, portanto, é


que a lógica financeira, externa e estranha às necessidades
da produção, foi internalizada no próprio espaço produtivo.
Não se trata, portanto, de asseverar que a valorização finan-
ceira tornou-se mais importante do que a valorização produ-
tiva (o que pode ou não ser verdade a depender de cada ne-
gócio e de cada momento específico da conjuntura). Não se
trata também simplesmente de afirmar que, nas três últimas
décadas, o crescimento da riqueza financeira se deu a um rit-
mo muito mais elevado que o crescimento da riqueza real (o
que é verdadeiro, de qualquer forma, a julgar pelos dados).
Não se trata tampouco de advogar que a valorização financei-
ra tem se autonomizado em relação à valorização produtiva
(ainda que, do ponto de vista categorial, exista, a meu ver, um
processo de autonomização das formas sociais mais abstra-
tas que está ontologicamente determinando a proeminência
que vem assumindo o capital fictício). Trata-se de insistir que,
para além da parcela do lucro que sempre assumiu a forma
de renda pois, enquanto juro, é encarado inclusive como cus-
to do capital, atualmente, pelo menos no que concerne aos
capitais mais ou menos estabelecidos, é a posição externa do

455
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

detentor de ações que acaba por comandar as decisões ati-


nentes à produção. Hoje, além da pugna distributiva básica
em torno do valor produzido, que coloca salários de um lado
e lucros de outro, além de uma segunda ‘disputa’ que coloca
juro de um lado e lucro líquido de outro, há agora, de modo
cada vez mais incisivo, uma terceira disputa, que coloca, de
um lado, os lucros retidos (a serem reinvestidos) e, de outro,
os lucros distribuídos aos detentores de ações (dividendos)
(p. 532-533).

Esse também é o ponto de vista de autores como Fine


(2014), para quem a financeirização deve ser definida “como a
acumulação intensiva e extensiva de capital fictício ou, em outras
palavras, o crescente escopo e prevalência do capital portador de
juros na acumulação de capital” (p. 55, tradução nossa). Ponto
de vista compartilhado, ainda, por autores como Carcanholo e
Sabadini (2015), que sustentam, por sua vez, o que se segue:

Que características apresenta a nova etapa do capitalismo


mundial iniciada em fins dos anos 1970 e início dos 1980?
Quais são as perspectivas para sua continuidade e para sua
superação? Essas são perguntas sumamente importantes na
atualidade, e a resposta adequada a elas, como temos assina-
lado em trabalhos anteriores, passa pelo conceito marxista
de capital fictício (p. 125).

Mas como definir esse complexo e, afinal de contas, inaca-


bado conceito elaborado por Marx em O capital? Como, além
disso, articulá-lo numa compreensão da natureza da financeiri-
zação contemporânea?
Como se sabe, Marx ([1894] 1986b; [1984] 1986c) desen-
volveu, na Seção V do Livro III de O capital, um argumento
conforme o qual o capital fictício aparece como desdobramento
dialético do capital portador de juros que circula por meio do
sistema de crédito. De fato, desde a apresentação de sua teoria
monetária, no Livro I, passando por suas considerações sobre
os ciclos do capital, no Livro II, o autor estabelece e consolida
uma imagem da autonomização do capital monetário, isto é, do
capital em forma de dinheiro, vis-à-vis os processos de produção
de valor e mais-valor. Após referir-se ao capital portador de

456
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

juros em termos do momento ou do ponto em que “a relação-


capital atinge sua forma mais alienada e fetichista”, Marx ([1894]
1986b) afirma o seguinte: “Temos aí D – D’, dinheiro que gera
mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo que
medeia os dois extremos” (p. 293). Para Harvey (2014), passa-
gens como essas sugerem “quase como se o plano de Marx em
O capital fosse revelar os fetichismos que regem o sistema capita-
lista, e como se ele o tivesse concluído aqui”7 (p. 194). Enfim, é
justamente a partir da existência generalizada do capital portador
de juros circulando por intermédio do sistema de crédito que
Marx ([1894] 1986c) assenta o pressuposto que está na base do
conceito de capital fictício. Nas palavras do autor:

A forma de capital portador de juros faz com que cada rendi-


mento monetário determinado e regular apareça como juro
de um capital, quer provenha de um capital ou não. Primei-
ro, o rendimento monetário é convertido em juro e com o
juro se acha então o capital de que se origina. [...] A coisa é
simples: suponhamos que a taxa média de juros seja de 5%
ao ano. Uma soma de 500 libras esterlinas, se transformada
em capital portador de juros, proporcionaria portanto anual-
mente 25 libras esterlinas. Considera-se, assim, toda receita
fixa anual de 25 libras esterlinas como juro de um capital de
500 libras esterlinas. Isso, entretanto, é e permanece uma re-
presentação puramente ilusória, excetuado o caso em que a
fonte das 25 libras esterlinas [...] seja diretamente transferível
ou assuma uma forma em que se torna transferível (MARX,
[1894] 1986c, p. 10).
7
Em nossa opinião, a observação de Harvey (2014) é pertinente, ao menos
quando se leva em conta, por exemplo, o que Marx ([1984] 1986b) diz, logo
a seguir, no mesmo capítulo do Livro III de O capital: “[...] enquanto o juro é
apenas parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capitalista funcionante extor-
que do trabalhador, o juro aparece agora, ao contrário, como o fruto próprio
do capital, como o original, e o lucro, agora na forma de ganho empresarial,
como mero acessório aditivo que lhe advém no processo de reprodução. Aqui
a figura fetichista do capital e a concepção do fetiche-capital está acabada. Em
D – D’ temos a forma irracional do capital, a inversão e reificação das relações
de produção em sua potência mais elevada: a figura portadora de juros, a fi-
gura simples do capital, na qual este é pressuposto de seu próprio processo
de reprodução; a capacidade do dinheiro, respectivamente da mercadoria, de
valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – a mistificação
do capital em sua forma mais crua” (p. 294).

457
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

Acompanhando esse pressuposto e analisando os títulos da


dívida pública e as ações como partes constitutivas do capital
bancário, Marx ([1984] 1986c) expõe, então, seu conceito de
capital fictício. Vejamos, primeiro, o que o autor diz sobre os
títulos da dívida pública:

O que o credor do Estado possui é 1) um título de dívida con-


tra o Estado, digamos de 100 libras esterlinas; 2) esse título
de dívida lhe dá direito sobre as receitas anuais do Estado,
isto é, sobre o produto anual dos impostos, em determinado
montante, digamos de 5 libras esterlinas ou 5%; 3) ele pode
vender esse título de dívida de 100 libras esterlinas quando
quiser a outras pessoas. Se a taxa de juros for de 5%, supon-
do-se ainda a garantia do Estado, o proprietário A pode, em
regra, vender o título de dívida por 100 libras esterlinas a B,
pois para B é o mesmo emprestar 100 libras esterlinas a 5%
ao ano ou assegurar-se mediante o pagamento de 100 libras
esterlinas um tributo anual do Estado, no montante de 5 li-
bras esterlinas. Mas, em todos esses casos, o capital, do qual
o pagamento feito pelo Estado considera-se um fruto (juro),
permanece capital ilusório, fictício. A soma que foi empres-
tada ao Estado já não existe ao todo. Ela em geral jamais se
destinou a ser despendida, investida como capital, e apenas
por seu investimento como capital ela teria podido converter-
-se num valor que se conserva. Para o credor original A, a
parte que lhe cabe dos impostos anuais representa o juro de
seu capital [...] A possibilidade de vender o título de dívida
contra o Estado representa para A o refluxo possível da soma
principal. Quanto a B, de seu ponto de vista particular, seu
capital está investido como capital portador de juros. Vir-
tualmente, ele apenas apareceu no lugar de A, cujo crédito
contra o Estado ele comprou. Por mais que essas transações
se multipliquem, o capital da dívida pública permanece pu-
ramente fictício, e a partir do momento em que os títulos de
dívida se tornam invendáveis, desaparece a aparência desse
capital (MARX, [1894] 1986c, p. 10).

Consideremos, agora, o que é dito acerca das ações:

Viu-se acima como o sistema de crédito gera capital associa-


do. Os papéis são considerados títulos de propriedade que

458
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

representam esse capital. As ações de companhias ferrovi-


árias, de mineração, de navegação etc. representam capital
real, a saber, o capital investido e que funciona nessas empre-
sas, ou a soma de dinheiro que é adiantada pelos sócios para
ser despendida em tais empresas como capital. Do que não se
exclui, de modo algum, a possibilidade de que representem
mera fraude. Mas esse capital não existe duplamente, uma
vez como valor-capital dos títulos de propriedade, das ações,
e outra vez como capital realmente investido ou a investir
naquelas empresas. Ele existe apenas nesta última forma, e a
ação nada mais é que um título de propriedade, pro rata, so-
bre a mais-valia a realizar por aquele capital. A pode vender
esse título a B e B a C. Essas transações em nada alteram a
natureza da coisa. A ou B transformou então seu título em
capital, mas C transformou seu capital em mero título de pro-
priedade sobre a mais-valia a ser esperada do capital acioná-
rio (MARX, [1894] 1986c, p. 11).

Assim, tal como sustentam Palludeto e Rossi (2018), pode-se


“definir o capital fictício, de forma geral, como direitos transa-
cionáveis sobre um fluxo de renda futuro”, destacando, ainda,
“três atributos que perfazem sua constituição: a renda futura, os
mercados secundários e a inexistência real” (p. 8). Em suma, é
possível definir o capital fictício de acordo com o princípio básico
da capitalização8 de rendas oriundas de sobrevalores futuros,
sublinhando, ademais, os seguintes atributos: i) o do ajuste
desses rendimentos futuros às taxas de juros presentes; ii) o da
existência de mercados secundários nos quais esses rendimentos,
transformados em títulos, circulam e são comercializados; e iii) o
que corresponde ao fato de que esses rendimentos, convertidos
em títulos, não existem como capitais efetivos ou são, no mínimo,
a duplicação de capitais que existem efetivamente.
8
Note-se que esse princípio de capitalização está presente na formulação origi-
nal de Marx ([1894] 1986c). Em suas palavras: “A formação do capital fictício
chama-se capitalização. Cada receita que se repete regularmente é capitalizada
em se a calculando na base da taxa média de juros, como importância que um
capital, emprestado a essa taxa de juros, proporcionaria; se, por exemplo, a
receita anual = 100 libras esterlinas e a taxa de juros = 5%, então as 100 libras
esterlinas seriam o juro anual de 2 000 libras esterlinas, e essas 2 000 libras es-
terlinas são agora consideradas o valor-capital do título jurídico de propriedade
sobre as 100 libras esterlinas anuais” (p. 11).

459
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

Para nós, são exatamente esse princípio e esses atributos


que assumiram proeminência crescente desde que mecanismos,
inovações e instrumentos, como os contratos de derivativos e
a securitização, generalizaram-se no contexto da atual fase de
expansão financeira do capitalismo. Vejamos, então, do que se
trata, em linhas gerais, o mecanismo da securitização e quais são
os argumentos básicos de quem propõe que ele seja adotado pelo
Estado.

A securitização e sua adoção pelo Estado


Para Davis e Kim (2015), a securitização não é nada mais
do que “o processo de capturar ativos com fluxos de caixa, como
hipotecas mantidas por bancos, e transformá-los em títulos
negociáveis” (p. 5, tradução nossa). A passagem abaixo amplia a
compreensão do funcionamento desse mecanismo:

Uma única hipoteca é ilíquida e seu pagamento geralmen-


te é imprevisível: o proprietário pode perder seu emprego
devido a uma emergência médica, ou o proprietário pode
ganhar na loteria e pagar a hipoteca mais cedo, ou o bairro
pode ser atingido por um tornado. Porém, quando agre-
gado a centenas de outras hipotecas em outras partes do
país, o pagamento se torna mais previsível, devido à lei de
grandes números, e adequado para ser dividido em títulos,
com fatias diferentes tendo perfis de risco diferentes. Os
títulos lastreados em hipotecas são a forma mais familiar
de securitização, mas o mesmo processo básico pode ser
feito com quase qualquer tipo de fluxo de caixa, incluindo
empréstimos para automóveis, empréstimos para universi-
dades, dívidas com cartão de crédito, contas a receber de
empresas, pagamentos de seguros e loterias, pensões de ve-
teranos, gravames de propriedade e muito mais (DAVIS E
KIM, p. 5-6, tradução nossa).

Cabe enfatizar, além disso, que as operações de securiti-


zação envolvem uma desintermediação financeira. Isso quer
dizer que há um deslocamento da centralidade dos bancos
comerciais enquanto intermediadores do crédito e da captação

460
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

de recursos em geral, permitindo a interconexão de uma varie-


dade de iniciativas de investidores e agentes econômicos direta-
mente no mercado de capitais. O que é convergente com a defi-
nição mais ampla de securitização elaborada por Braga (1997).
Conforme o autor:

A securitização é, em sentido amplo, o processo pelo qual


empresas produtivas, bancos, demais empresas financeiras, e
governos emitem títulos de dívida, com inúmeras finalidades,
envolvendo e interligando, desta forma, os chamados
mercados creditício, de capitais, de derivativos (swaps, opções
e futuros). Ela é uma modalidade financeira que torna os
títulos negociáveis, flexibiliza prazos e taxas de rendimento,
adaptável a múltiplos agentes, funcional à administração de
riscos, substituta dos empréstimos bancários e, ao mesmo
tempo, propícia aos bancos na captação de fundos. Como tal,
é peça-chave do padrão de riqueza em questão, disseminan-
do-se nas operações nacionais e transnacionais, nos regimes
monetário-financeiro e cambial (p. 198).

Ou seja, como ressalta Silva Filho (2014), os investidores


e agentes econômicos têm, desse modo, a possibilidade de
emitirem e adquirirem títulos de forma direta, enquanto os
bancos perdem a exclusividade do controle dos canais de
financiamento. Citando estimativas do Banco Mundial, o
autor afirma que o financiamento de projetos de infraestru-
tura, por exemplo, tradicionalmente baseado em emprés-
timos bancários, têm passado por uma mudança acelerada na
direção do mercado de títulos securitizados. Tais estimativas
indicam, nesse caso em particular, um montante global de US$
5,03 trilhões financiados via securitização frente a US$ 3,81
trilhões financiados através de linhas de crédito convencionais
no período de 2012 a 2022. Fenômeno compatível com o que
têm sido chamado de financeirização da infraestrutura por
autores como O’Neil (2018) e que seria explicado pelo fato de
que a securitização representa, para o emissor dos títulos, e,
portanto, tomador de recursos, uma forma de financiamento
que não aumenta a exposição financeira imediatamente.
Quer dizer, diferentemente do que ocorre em um emprés-

461
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

timo convencional, ao securitizar um ativo, o emissor não está


contraindo dívidas, mas transferindo direitos de rendimentos
futuros a outros agentes. Ademais, como dito, esse procedi-
mento permite transformar ativos com baixa liquidez e não
comercializáveis em títulos passíveis de negociação com maior
facilidade nos mercados de capitais.
Silva Filho (2014) defende, ainda, que essa forma de finan-
ciamento via mercado, quando adotada pelo Estado, constitui-se
numa alternativa vantajosa diante das crises fiscais dos governos
centrais e subnacionais, já que não se configuraria como um
recurso que aumenta o endividamento, além de influenciar
modelos de gestão pública mais eficientes de acordo com critérios
de mercado. Ou seja, a maior eficiência na gestão do patrimônio
público também induziria o Estado a adotar outros mecanismos
de governança compatíveis com a racionalidade mercantil, uma
vez que a necessidade de captação de recursos levaria a procedi-
mentos visando a obter uma melhor avaliação de seus ativos e a
diminuição dos riscos a eles associados. Isso contribuiria, enfim,
para criar um ambiente positivo para os investimentos interna-
cionais, com o consequente aumento do financiamento a custos
decrescentes.
Será mesmo esse o caso? Tudo isso, que Aalbers sintetiza
com a expressão assetization, permite sustentar, de fato, a perti-
nência da ideia da financeirização do Estado? Operações como
as que se ensaiam no Brasil contemporâneo configuram, efetiva-
mente, mecanismos de securitização? Antes de esboçar respostas
para essas questões, consideremos alguns exemplos.

Antecipação de royalties de petróleo pelo Estado


do Rio de Janeiro9
Um dos exemplos brasileiros mais destacados e com maior
volume de antecipação de receitas por ente federado, através do
mecanismo da securitização, é o caso da cessão dos royalties do
petróleo do Estado do Rio de Janeiro.
9
Esse tópico está baseado no processo 108.168-2/2016 do Tribunal de Contas
do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ). Agradecemos as explicações adicionais
de Henrique Diniz de Oliveira sobre os detalhes da operação.

462
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

Em 2005, o governo estadual incorporou ao patrimônio do


Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro
(RioPrevidência) os valores obtidos com os royalties e participa-
ções especiais (R&PE) relacionados à exploração de petróleo10.
Até 2012, essas receitas garantiram o equilíbrio financeiro do
fundo previdenciário, mas, a partir de 2013, o RioPrevidência
começou a apresentar déficits sucessivos11.
Como solução para o déficit de 2013, o governo do Estado
decidiu antecipar, pela primeira vez, as receitas futuras de R&PE
como alternativa ao aporte de recursos do Tesouro estadual.
Assim, foram realizadas duas operações de cessão de R&PE: uma
com a Caixa Econômica Federal (CEF) no valor de R$ 2,3 bilhões
e a outra com o Banco do Brasil (BB), de R$ 1 bilhão. O ingresso
desse montante permitiu fechar as contas do RioPrevidência
naquele ano, porém implicaram em uma retenção das receitas
de R&PE de R$ 738 milhões já em 2014, num total de R$ 5,8
bilhões até 2025.
O ano de 2014 foi ainda mais complicado do ponto de vista
das finanças do fundo previdenciário. Além dos já mencio-
nados R$ 738 milhões comprometidos com as operações de
antecipação do ano anterior, houve um crescimento de 16,7%
nas despesas associado a um baixo crescimento dos R&PE
(+5,9%). Assim, o déficit de 2014 foi maior do que o do ano
anterior. Para resolver essa questão, novamente sem recorrer a
aportes do Tesouro, a solução foi, mais uma vez, a antecipação
das receitas futuras de R&PE num valor aproximado de R$ 5,1
bilhões. Dessa vez, entretanto, em busca de taxas mais vanta-
josas, a captação dos recursos foi realizada através da estrutu-
ração de uma operação externa.
10
Royalties e participações especiais são categorias que compõe as participações
governamentais de recursos oriundos de atividades de exploração petrolífera,
de acordo com o artigo 45 da Lei 9.478/1997. Os valores incorporados ao
RioPrevidência excluem as parcelas vinculadas e destinadas aos municípios,
à dívida com a União, ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor
Público (Pasep) e ao Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvi-
mento Urbano (Fecam).
11
Em função dos limites e objetivos deste capítulo, não entraremos nas causas
do déficit orçamentário do fundo previdenciário do Estado do Rio de Janeiro.
Nos interessa apenas sublinhar que esse déficit ensejou o recurso ao mecanismo
em questão.

463
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

Com o objetivo de realizar a cessão de créditos dos R&PE


no mercado externo, o RioPrevidência criou uma Sociedade
de Propósito Específico (SPE), a Rio Oil Finance Trust (ROFT),
constituída no Estado de Delaware, Estados Unidos, sob legis-
lação desse país12. Desse modo, em 2014, antecipou-se parte da
arrecadação de R&PE até 2027 em troca de um ingresso líquido
imediato para o RioPrevidência de R$ 5,3 bilhões. Porém, nesse
contrato de cessão dos direitos sobre R&PE foi estabelecido um
mecanismo de proteção aos investidores caso a arrecadação apre-
sentasse uma redução que pudesse pôr em risco o pagamento das
parcelas. Esse mecanismo estabelecia uma série de penalidades
se o chamado Índice de Cobertura apontasse para um “default
técnico”, isto é, um risco de inadimplência determinado pelos
parâmetros do contrato.
A situação prevista acima veio a ocorrer quase que imedia-
tamente após a assinatura do contrato. A forte desvalorização
do Real frente ao Dólar, que passou de R$ 2,22, em julho de
2014, para R$ 3,87, em dezembro de 2015, associada à queda
acentuada no preço do barril de petróleo (de US$ 106,77 para
US$ 37,97 no mesmo período) levou o Índice de Cobertura
para o nível de default já no primeiro semestre de 2015. Isso
implicou, entre outras penalidades, num aumento de 2% nos
juros de todas as operações mais a antecipação de amortização
dos títulos.
Com o intuito de suspender algumas penalidades (como
a proibição de novas emissões de títulos no mercado e a
retenção de 60% da receita líquida de R&PE para amortização
antecipada), o RioPrevidência propôs um waiver aos investi-
dores (um acordo de remissão das penalidades ocasionadas
pelo descumprimento do contrato) que consistia nos seguintes
pontos: i) pagamento de taxa de remissão de 40% das receitas
líquidas dos R&PE do RioPrevidência no trimestre seguinte
– equivalente a R$ 105 milhões; ii) acréscimo de mais 1% de
juros em todas as operações – que somados ao aumento já
12
O fato de estar sob jurisdição do Estado de Delaware (EUA) impossibilitou os
técnicos do TCE-RJ de analisarem aspectos legais sobre a ROFT. Além disso,
quase todos os 160 documentos relativos à operação se encontram somente em
língua inglesa, inclusive os elementos centrais da contratação, o que limita a
análise dos órgãos de controle nacionais.

464
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

mencionado de 2% em virtude da quebra contratual, têm um


custo extra estimado de cerca de R$ 3 bilhões até 202713; e iii)
elevações do Índice de Cobertura.
A renegociação do contrato foi assinada em outubro de
2015, porém, como o Índice de Cobertura foi aumentado, a
perspectiva de uma nova quebra contratual num futuro próximo
tornou-se ainda mais provável. Os gestores do RioPrevidência
assumiram, sem embasamento em critérios técnicos, um alto
risco de repetir o default. Previsivelmente, a segunda quebra
contratual ocorreu em março de 2016 (apenas seis meses após
a primeira), fazendo com que a renegociação anterior tenha
sido praticamente inócua (gerando apenas mais custos, sem
resultar em nenhum benefício prático). Dessa vez, a cláusula
de aceleração dos pagamentos aos investidores foi acionada
(de 2027 para 2020). Como resultado, segundo cálculos do
TCE-RJ, a Taxa Interna de Retorno (TIR) para os investi-
dores após as renegociações passou a girar em torno de 20%
no segundo semestre de 2016. Além dos custos operacionais
envolvidos em todo esse processo de antecipação de receitas e
dos custos decorrentes das quebras de contrato, acrescentam-
se também os custos administrativos, relacionados à gestão
das cessões, manutenção das SPEs e pagamentos de tributos;
os custos financeiros, em função de prêmios pela amortização
antecipada com a CEF e o BB (R$ 75 milhões); e os custos de
estruturação, decorrentes do pagamento de comissões a escri-
tórios e consultorias (R$ 174 milhões).
Em resumo, em 2013 e 2014, o RioPrevidência captou pouco
mais de R$ 8 bilhões e comprometeu-se com pagamentos da
ordem de R$ 19 bilhões entre 2014 e 2020 (com base no câmbio
de 2016). Para completar, em 2018, com a melhora relativa
do preço do petróleo, o governo do Estado do Rio de Janeiro
realizou mais uma operação no valor de R$ 1,86 bilhão com taxas
de juros de 8,2% em Dólar, taxas superiores às das captações
anteriores. Dessa forma, o total das operações de antecipação das

13
Esse acréscimo de juros poderia ser revertido caso o Estado do Rio de Janeiro
conseguisse dar prioridade de recebimento dos R&PE aos investidores sobre as
parcelas já comprometidas com o Fecam, com a dívida com a União e com os
pagamentos relacionados às antecipações feitas com a CEF e o BB.

465
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

receitas de R&PE aponta para uma captação de R$ 10,3 bilhões


em face de pagamentos totais aos investidores estimados em R$
25,6 bilhões, sendo que R$ 11,4 bilhões foram pagos até 2018 e
o restante está previsto para ser quitado até 2027.
Cabe destacar, ainda, a controvérsia em torno da própria
natureza dessas operações. A agência de classificação de risco
Fitch, por exemplo, responsável pelo rating do Estado do Rio de
Janeiro, não considera, em seus relatórios, tais antecipações de
receita como operações de securitização stricto sensu:

A Fitch considera as obrigações relativas a securitizações


de petróleo como dívida (‘outras dívidas classificadas pela
Fitch’) do estado, apesar de nem o ERio nem a Rioprevidên-
cia registrarem essas obrigações em seus balanços (Relatório
Analítico do Estado do Rio de Janeiro Fitch 2014, folha 5
apud TCE-RJ Processo: 108.168-2/2016).

Mas as operações de “securitização” não indicariam, como


observa Santos Filho (2014), a diminuição dos custos e uma
maior eficiência na tomada de recursos por parte do Estado?
Esse não foi o caso nas operações em questão: as captações por
antecipação de receitas descritas acima apresentaram taxas de
juros mais elevadas em comparação com formas de financia-
mento tradicionais. Todas as operações de crédito realizadas
pelo Estado do Rio de Janeiro entre 2014 e 2016 – com o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) e o Credit Suisse – tiveram taxas menores do que
as operações de cessão de receitas dos R&PE. O que aponta
para a necessária reflexão sobre mecanismos como esses, bem
como sobre sua fiscalização e regulamentação, no contexto da
tendência geral à financeirização do Estado. Consideremos,
então, o que tem sido proposto, no Brasil, em termos de tenta-
tivas de regulamentação legal de controversas operações como
essas e se, de fato, essas iniciativas contribuem para torná-las
mais transparentes ou não.

466
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

Proposições legislativas e a defesa da securitização


como forma de financiar investimentos em
infraestrutura no Brasil
Em 2016, foi apresentado, pelo senador José Serra (PSDB-
SP), o Projeto de Lei 204/2016 (atual PLP 459/2017, em
tramitação na Câmara dos Deputados). Trata-se de um projeto
que dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de
créditos tributários e não tributários dos entes da Federação.
Em linhas gerais, o projeto tem o objetivo de regulamentar a
venda de direitos sobre créditos da União, do Distrito Federal,
de estados e municípios, permitindo sua compra por investi-
dores privados. Assim, o Estado receberia o dinheiro anteci-
padamente, repassando aos investidores o direito de receber
futuramente os créditos públicos. Isso seria, resumidamente,
nos termos do projeto, o mecanismo da securitização. A justi-
ficação do senador José Serra ajuda a entender o que está em
questão. Em suas palavras:

Este projeto de lei complementar tem por objetivo autorizar


e regulamentar operações de cessão de direitos creditórios
inscritos ou não em dívida ativa pelas três esferas de governo
(...). Com isso, as operações de cessão de direitos creditórios,
que hoje já são efetuadas por alguns estados e municípios,
ganharão maior segurança jurídica.
A União, segundo avaliações preliminares, poderia obter
uma receita de R$ 110,0 bilhões com operações de cessão
de direitos creditórios sobre a dívida ativa. O potencial de
arrecadação nos diversos estados e municípios é igualmente
relevante, como demonstram as operações já feitas com base
em leis locais e em resoluções do Senado (...).
Ocorre que tais operações, por seu caráter inovador, reque-
rem aperfeiçoamentos na legislação de finanças públicas,
para lhes garantir maior segurança, reduzir seus custos, evi-
tar dificuldades operacionais e eliminar potenciais controvér-
sias jurídicas. (...).
Embora tais operações se distingam claramente das de cré-
dito, uma vez que não há compromisso de pagamento futuro
pelo ente público, ainda há controvérsia a esse respeito. Para
que essa controvérsia deixe de existir, o projeto prevê explici-

467
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

tamente que as operações (...) não sejam caracterizadas como


operações de crédito, especialmente para os fins da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
A medida permitirá a obtenção de caixa com a venda de di-
reitos que, hoje, não têm liquidez (...). Essa vantagem é cru-
cial nesse momento de queda significativa da arrecadação. As
operações disciplinadas neste projeto sem dúvida contribui-
rão, sem comprometimento da responsabilidade fiscal, para
que os entes da Federação possam superar esta dificílima eta-
pa por que passa o País (BRASIL, 2016).

Portanto, o objetivo manifesto do projeto é assegurar um


arcabouço legal que dê garantias aos entes federados nas opera-
ções de cessão de direitos creditórios, permitindo o financia-
mento público num contexto de crise fiscal. Essas garantias jurí-
dicas são consideradas importantes na medida em que alguns
estados e municípios já vêm realizando tais operações, mas
enfrentam questionamentos jurídicos em virtude dos limites de
endividamento público estabelecidos pela Lei de Responsabi-
lidade Fiscal14 (Lei 101/2000). Por isso, o projeto busca clara-
mente distinguir a cessão de direitos creditórios das operações
de crédito, considerando-as como venda definitiva de patrimônio
público (art. 1º, § 4).
Para realizar tais operações, o projeto permite que a cessão
dos direitos creditórios possa ser feita através da criação, pelo
ente cedente, de SPEs, estabelecidas como empresas estatais não

14
Canettieri (2018) aponta que, além do caso pioneiro de Belo Horizonte,
com a PBH Ativos S/A, criada em 2010, já ocorre uma generalização des-
se tipo de política através da utilização de SPEs em vários municípios do
Brasil, “como é o caso da criação de sociedade de propósito específico, por
meio da lei 9.524 de 2014 em Goiânia para a securitização; a lei 40.198 de
2015 de cria a Companhia Carioca de Securitização; a lei 11.991 de 2015
que, em Porto Alegre, cria a Investe POA; a lei 90 de 2015 que cria o Fun-
do Especial da Dívida Ativa em Vitória; o mesmo acontece em Ribeirão
Preto (lei 2.720 de 2015); em Florianópolis (lei 1.424 de 2015); em Brasília
(lei 23 de 2015); em Salvador (lei 8.961 de 2016); em Guarulhos (lei 451
de 2016) e em São Paulo (lei 179 de 2017)” (p. 180). Há, ainda, registros
da criação de SPEs para esse fim em diversos estados, como Minas Gerais
(MGi), São Paulo (CPSec), Paraná (PRSec), Rio de Janeiro (CFSec) e Goiás
(Goiás Parcerias).

468
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

dependentes15 (art. 1º, § 7). Essas instituições funcionam como


intermediárias na transação. Nesses casos, como observa Sales
(2016), a SPE adquire os créditos do ente federado e, com lastro
neles, emite títulos (debêntures) que serão negociados direta-
mente no mercado de valores mobiliários.
Essa modalidade de securitização, mais comum no setor
privado, é considerada vantajosa por promover uma segregação
de risco entre as partes. Como assinala Silva Filho (2014), a
criação de uma SPE isola a transação “dos efeitos de eventuais
passivos que podem afetar o patrimônio da companhia geradora
dos ativos no futuro, tais como dívidas e encargos trabalhistas,
débitos fiscais, riscos ambientais etc.” (p. 16). Ou seja, os inves-
tidores têm a garantia de que os créditos fazem parte do patri-
mônio da empresa (SPE) e de que qualquer problema de caixa ou
no orçamento do ente federado não irá ameaçar o recebimento
dos créditos adquiridos.
A securitização também pode ser realizada diretamente pela
instituição detentora dos ativos, que pode lançar os títulos no
mercado sem intermediação de uma SPE. Nesse caso, trata-se
de uma operação sem segregação de riscos, pois os investidores
assumem a exposição ao inadimplemento do crédito e não há
caução por parte do cedente. Por isso, aqui a tendência é que
haja um maior desconto do valor original dos ativos negociados.
Segundo Sales (2016), esse modelo passou a ser adotado pelos
entes federados brasileiros, em algumas situações, em virtude
de questionamentos jurídicos ocorridos no Tribunal de Contas
da União (TCU). Silva Filho (2014), por sua vez, afirma que, em
função de limitações legais para a criação de subsidiárias, as
concessionárias de serviço público no Brasil acabam utilizando,
igualmente, esse expediente.
Defensores do uso da securitização de ativos estatais, como
Velloso (2016; 2017), argumentam que esse instrumento contor-
15
Em contraposição à definição de empresa estatal dependente prevista no
artigo 2º, inciso III da Lei 101/2000, as empresas estatais não dependentes são
aquelas que não recebem do ente controlador recursos financeiros para paga-
mento de despesas com pessoal, de custeio ou de capital. A Emenda Constitu-
cional (EC) 95/2016, conhecida como Emenda do “teto de gastos”, define que
uma das poucas exceções à restrição dos limites de gastos públicos seja com as
despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes.

469
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

naria os problemas fiscais, ao permitir a mobilização de novos


recursos para aumentar investimentos públicos, por exemplo,
em infraestruturas. De acordo com essa perspectiva, o montante
auferido com as operações de securitização deveria ser utilizado
na criação de um fundo garantidor para o pagamento do Estado
às concessionárias de infraestrutura, o que daria maior segu-
rança e estimularia os investimentos privados no setor. Essa visão
deriva do entendimento de que há um receio dos investidores
em relação aos projetos de Parcerias Público-Privadas (PPPs),
uma vez que, nos casos em que os pagamentos dos usuários
dos serviços não cobrem totalmente a expectativa de receitas, o
Estado geralmente realiza contraprestações para complementar
o rendimento das concessionárias. Entretanto, essas contra-
prestações seriam sempre ameaçadas pelas políticas de ajuste
fiscal, trazendo forte insegurança para os investimentos na área.
Portanto, se o valor obtido com as securitizações se destinarem a
formar um fundo garantidor desses contratos, isso facilitaria um
maior investimento privado em infraestrutura através de PPPs,
em função da segurança contra o risco de não recebimento das
contrapartidas públicas estipuladas em contrato.
Como mencionado acima, Silva Filho (2014) também
defende a securitização dos ativos públicos como uma forma de
recuperar a capacidade de financiar investimentos em infraestru-
tura. A utilização desse expediente seria uma alternativa ao endi-
vidamento do Estado, especialmente por não entrar em contra-
dição com as políticas de austeridade. Isto é, esse mecanismo
propiciaria possibilidades de aumento dos investimentos em
contextos de desaceleração econômica, sem entrar em conflito
com o ajuste fiscal e contornando, ao mesmo tempo, as conse-
quências recessivas que, normalmente, acompanham esse tipo de
ajuste. O que, por fim, daria um caráter anticíclico a essa moda-
lidade de financiamento. A passagem abaixo resume esse tipo de
raciocínio:

Do ponto de vista dos governos, tanto centrais como subna-


cionais, a vantagem mais evidente desse novo enfoque para
avaliação e alienação de seus ativos é a possibilidade de con-
servar sua capacidade de investimento sem comprometer a
trajetória da dívida pública, ao contrário dos empréstimos

470
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

bancários convencionais. Isto porque as diversas modalida-


des de securitização de ativos permitem rentabilizar os fun-
dos de recebíveis constituídos sobre ativos públicos já exis-
tentes – por exemplo, concessões – e ou a serem explorados
no futuro – por exemplo, royalties da exploração de recur-
sos naturais – para financiar os investimentos necessários,
sem impactar diretamente o balanço patrimonial do setor
público. Além disso, aumenta o espaço fiscal para investi-
mentos em ativos cujos ganhos são mais difíceis de captura
via tarifas – e, portanto, menos atrativos para os canais de
financiamento do setor privado (p. 13-14).

Esse é, mais ou menos, o tipo de raciocínio que orienta o PLP


459/2017, que vincula a receita de capital decorrente da venda
dos ativos da seguinte maneira: pelo menos 50% para despesas
associadas ao regime de previdência social e o restante aos inves-
timentos públicos (art. 1º, § 6), ficando vedada a utilização desses
recursos para gastos em despesas correntes do Estado.
Entretanto, algumas organizações da sociedade civil16 têm
feito críticas contundentes ao projeto de lei e denunciam que ele
busca legalizar práticas fraudulentas que vêm sendo realizadas
por diversos entes federados através de SPEs. Segundo elas:

O PLP 459/2017 (a) atende exclusivamente aos interesses da


especulação financeira com grave lesão ao interesse público;
(b) contraria frontalmente os princípios da publicidade e
transparência abrindo as portas para corrupção desenfrea-
da; (c) significa a perda do controle sobre a parcela da arre-
cadação tributária cujo fluxo é cedido, com grave ofensa às
normas de finanças públicas e lesão aos cofres públicos; (d)
promove a antecipação de receita pública de forma extrema-

16
Uma interpelação extrajudicial com os principais argumentos contra o pro-
jeto foi endereçada ao presidente da Câmara dos Deputados e aos líderes par-
tidários no Congresso, denunciando o texto do PLP 459/2017. A interpelação
foi subscrita pelas seguintes entidades da sociedade civil: Auditoria Cidadã da
Dívida, Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil
(ANFIP), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
(ANDES-SN), Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO),
Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do
Brasil (FENASTC) e Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional
(SINPROFAZ).

471
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

mente onerosa e ilegal, gerando perdas financeiras vultosas e


irreparáveis, além do comprometimento por tempo indefini-
do de todas as administrações e gerações futuras (AUDITO-
RIA CIDADÃ DA DÍVIDA et. al., 2018, p. 10).

O texto do projeto daria margem à realização de operações


financeiras inconstitucionais e lesivas ao Estado, causando graves
prejuízos ao erário público. Para fundamentar essa acusação, tais
organizações mencionam o fato de diversos órgãos de controle
regionais estarem questionando e até mesmo suspendendo opera-
ções semelhantes realizadas por governos estaduais e municipais.
Afirma-se, ainda, que o projeto de lei irá permitir a cessão de
créditos líquidos e certos (e não os créditos “podres”) em troca
de taxas de desconto bastante elevadas e com uma remuneração
de juros acima da praticada no mercado, como foi o caso veri-
ficado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da PBH
Ativos S/A em Belo Horizonte.
Na prática, o crédito tributário não seria vendido definitiva-
mente, pois continuaria a ser cobrado, fiscalizado e administrado
pelos órgãos da administração pública (Secretaria da Receita
Federal e Procuradoria da Fazenda Nacional, estaduais ou muni-
cipais). Somente o fruto da arrecadação é que seria cedido aos
investidores privados. Além disso, esse dinheiro arrecadado seria
destinado diretamente da rede bancária para as SPEs, sem passar
pelos cofres públicos, em desacordo com toda a legislação de
finanças do país. Em suma, conforme o projeto de lei, a arreca-
dação, fiscalização e cobrança dos créditos tributários continua
sob responsabilidade do Estado. Portanto, os entes federados
estariam cedendo apenas o produto da arrecadação tributária
dos créditos inadimplidos realizada pelos órgãos estatais, e
mantendo, por outro lado, o risco de receber ou não créditos
cujo pagamento é incerto.
Críticas como essas também são apontadas por Carneiro
(2018), ex-diretor executivo na área de renda fixa do Banco BTG
Pactual e ex-secretário-adjunto do Meio Ambiente do Estado de
São Paulo. Para ele, o projeto também é ambíguo ao mencionar
a cessão definitiva da dívida ativa (art. 1º, § 1, inciso IV), pois
prevê em seu art. 1º, §1, inciso V que a cessão abrange “apenas

472
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

o direito autônomo ao recebimento do crédito”, negando, dessa


maneira, a natureza definitiva da cessão. O autor questiona,
igualmente, a constitucionalidade da cobrança dos créditos
permanecer sob responsabilidade do governo e argumenta que,
ao manter essa prerrogativa, o Estado assume dever fiduciário
perante o investidor, que poderia cobrar indenização caso
entendesse que há omissão ou desinteresse na cobrança. Esse
ponto do projeto tenderia a elevar o deságio sobre os créditos
negociados pelo Estado.
Carneiro (2018) conclui que, da forma como o projeto foi
construído, os entes federados acabarão repetindo o mesmo tipo
de operação de emissão de títulos (debêntures) realizadas até
o momento, em que os governos antecipam o recebimento de
créditos parcelados, mas se comprometem a ressarcir os investi-
dores em caso de inadimplência. Portanto, o autor afirma que,
em função dessas características, o que o projeto de lei proporia
seriam, na verdade, operações de “pretensa securitização”.
Críticas como as sinalizadas acima costumam se basear, prin-
cipalmente, no caso da PBH Ativos S/A, onde o município de
Belo Horizonte se comprometeu a complementar com recursos
próprios e até mesmo indenizar investidores quando o fluxo de
arrecadação dos créditos cedidos não fosse suficiente. Some-se a
isso os custos administrativos das SPEs (elaboração dos contratos,
consultorias jurídicas, remuneração de administradores, advo-
gados, seguros etc.) e as taxas cobradas pelas instituições que
estruturam as operações financeiras (taxas de estruturação,
distribuição, administração, performance). Ainda a esse respeito
e citando outro caso, Fattorelli (2018) menciona que, em edital
lançado em 2018, pela Goiás Participações S/A – SPE do Estado
de Goiás – para contratar a instituição que seria responsável pela
estruturação da emissão de debêntures, estavam previstos R$ 325
milhões somente para o pagamento de taxas. Já no caso de Belo
Horizonte, a instituição contratada para realizar a emissão dos
títulos – o Banco BTG Pactual – acabou adquirindo a integrali-
dade das debêntures, o que indica a alta rentabilidade dos títulos
oferecidos.
Esse é, de maneira geral, o modelo já em curso nos diversos
estados e municípios brasileiros que adotaram tais procedi-

473
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

mentos de venda de créditos. E, sendo o objetivo expresso do


PLP 459/2017 dar segurança jurídica às operações “que já estão
sendo efetuadas por alguns estados e municípios”, conclui-se que
esse é o modelo que se pretende legalizar. Dessa forma, também
a interpelação extrajudicial das organizações da sociedade civil
supramencionada indica que tais operações não devem ser consi-
deradas como securitização de créditos, mas sim como contra-
tação de dívida pública disfarçada com o objetivo de escapar dos
controles dos órgãos públicos de fiscalização.
Esses e outros questionamentos são justamente os que nos
permitem colocar algumas questões em relação ao que de fato
está em jogo quando se fala da securitização de ativos estatais no
Brasil. Assim, para concluir esse artigo, oferecemos, na próxima
e última seção, uma tentativa de enquadrar a reflexão sobre
esse mecanismo em um horizonte de abordagem que sublinha e
problematiza as correspondências entre financeirização e despos-
sessão. Note-se que esse é, ainda, um horizonte de abordagem
em construção, que pode e deve ser melhor desenvolvido por
pesquisas e esforços subsequentes.

Conclusão: o nexo Estado-finanças e as relações


entre financeirização e despossessão
O empréstimo de dinheiro e a cobrança de juros não surgem
no modo capitalista de produção. Marx ([1894] 1986c), ao
apontar esse fato, afirma que o capital portador de juros, assim
como o capital comercial, pertence às formas “antediluvianas” do
capital. Quer dizer, o capital portador de juros existe muito antes
do modo de produção capitalista se desenvolver plenamente e
pode ser encontrado nas mais diversas formações socioeconô-
micas. Essa manifestação arcaica do capital portador de juros é
chamada, pelo autor, de capital usurário.
O capital usurário teria cumprido um importante papel na
ruína do modo de produção feudal, ao enfraquecer e destruir
as antigas sociedades feudais, a autonomia da produção dos
pequenos camponeses e pequenos burgueses, além das formas
de organização política características dessas sociedades. Isso
porque, nos termos de Marx ([1894] 1986c), o capital usurário

474
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

carrega consigo uma força destrutiva da produção, que tende


a dominá-la parasitariamente, forçando-a a funcionar sob
condições cada vez mais deploráveis. Não à toa, surgem, na
Idade Média, como observa Harvey ([1982] 2013), uma série
de proibições e sanções legais contra a usura. Nesse sentido,
o capital usurário foi fundamental para o processo de acumu-
lação primitiva e para criar grandes concentrações de capital
monetário, que levaram ao surgimento do modo de produção
capitalista.
O contexto das formas “antediluvianas” do capital portador
de juros ganha importância central nas abordagens de longa
duração do capitalismo histórico como sistema mundial, como
a de Giovanni Arrighi ([1994] 2003). Nessa abordagem, ainda
que o autor não utilize o termo acima, o predomínio dessas
formas pode ser encontrado, por exemplo, no exame das fases
de expansão financeira dos ciclos sistêmicos de acumulação
genovês e holandês, que guardariam semelhanças com a finan-
ceirização contemporânea. Além disso, a perspectiva arrighiana
enfatiza a competição interestatal pelo capital circulante como
motor fundamental para o desenvolvimento do próprio capi-
talismo, numa dialética entre as lógicas capitalista e territoria-
lista do poder. Harvey (2011) se aproxima dessa abordagem ao
descrever a fusão dessas lógicas a partir do conceito de “nexo
Estado-finanças”, com o qual procura sublinhar, como sua deno-
minação sugere, exatamente as interligações entre o poder dos
Estados e o poder das finanças.
Entretanto, Marx ([1894] 1986c) distingue a forma arcaica
de capital usurário da forma moderna do capital portador de
juros, sob o modo de produção capitalista. A primeira tenderia
a se apropriar de todo o mais-valor, contendo a circulação do
capital, enquanto a segunda se constituiria apenas numa parte do
mais-valor (que é dividido entre lucro, juros e renda). Enquanto a
primeira teria uma tendência parasitária e destrutiva, a segunda
seria funcional à acumulação de capital, uma vez que o capital
portador de juros estaria subordinado às condições e necessi-
dades do modo de produção capitalista. Essa subordinação teria
sido resultado da evolução e da imposição do capital industrial,
em condições tais como a da criação do sistema de crédito e

475
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

a da redução compulsória das taxas de juros pela ação estatal.


Portanto:

O que distingue o capital portador de juros, na medida em


que este constitui um elemento essencial do modo de produ-
ção capitalista, do capital usurário, não é de modo algum a
natureza ou o caráter desse capital. São apenas as condições
modificadas em que funciona (MARX, [1894] 1986c, p. 112).

Mesmo assim, Marx ([1894] 1986c) não deixa de considerar


a possibilidade de que as práticas usurárias permaneçam e
convivam com o moderno capital portador de juros, não sendo
formas excludentes. Em suas palavras: “O capital portador de
juros mantém a forma de capital usurário em face de pessoas e
classes ou em condições nas quais os empréstimos não se efetuam
[...] no sentido do modo de produção capitalista” (p. 111). Mas
como tudo isso pode ser articulado numa leitura dos processos
que têm sido designados a partir do termo financeirização do
Estado?
A questão aqui não é buscar definir se a financeirização
do Estado e a financeirização em geral se sustentam no capital
portador de juros ou no capital usurário. Na verdade, essa
distinção não parece ter tanta relevância. Como sugere Harvey
(2014), se a história mostra que a usura teve de ser disciplinada
e submetida às exigências do modo de produção capitalista,
particularmente à circulação do capital industrial, em O capital,
no desenvolvimento de seu argumento sobre os juros, Marx
também indica que o sistema de crédito tende a sair totalmente
do controle, ameaçando o mundo da produção de mais-valor e
comprometendo a estabilidade da acumulação de capital. Nesse
caso, o cerne do sistema de crédito se deslocaria e abriria espaço
para uma economia baseada, por exemplo, na acumulação por
despossessão, ao invés da exploração do trabalho na produção. O
que indicaria que o sistema de crédito “reintroduz práticas usurá-
rias na economia, embora de maneira muito diferente da usura
de outrora” (p. 254). Nesses termos, o sistema de crédito tornar-
se-ia um dos veículos mais efetivos para a geração de fraudes e
crises. Tudo isso conduzindo à seguinte questão colocada por
Harvey (2014): “Quanto da riqueza da atual aristocracia finan-

476
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

ceira foi acumulada pela expropriação da riqueza alheia (inclu-


sive de outros capitalistas), pelas manobras do sistema finan-
ceiro?” (p. 226).
O conceito de acumulação por despossessão foi desen-
volvido por Harvey (2005) a partir do que Marx ([1867] 2011)
chamou de acumulação primitiva, ou seja, processos de acumu-
lação fundados antes na força, na fraude, no roubo e na violência
do que nas dinâmicas internas da reprodução ampliada de valor,
a partir da exploração do trabalho na produção. E, na medida
em que tais processos de acumulação desempenham um papel
contínuo e persistente na longa geografia histórica do capita-
lismo, não seria muito adequado qualificá-los como “primitivos”
ou “originais”. Por isso a substituição da expressão acumulação
primitiva por acumulação por despossessão.
A própria descrição da acumulação primitiva realizada por
Marx ([1867] 2011) revela uma ampla gama de processos que
podem ser encontrados ao longo de toda a história do capita-
lismo, dentre os quais se destacam: i) a mercantilização/privati-
zação da terra e a consequente expulsão pela força de populações
camponesas; ii) a conversão de direitos de propriedade comuns,
coletivos e/ou estatais em direitos exclusivos de propriedade
privada; iii) a supressão do acesso e dos direitos dos camponeses
às terras comuns; iv) a transformação da força de trabalho em
mercadoria; v) a eliminação de formas alternativas de produção
e consumo; vi) as práticas coloniais, neocoloniais e imperiais de
apropriação de ativos, em especial de recursos naturais; vii) o
comércio de escravos; e viii) a usura, o endividamento nacional
e o uso do sistema de crédito como meio radical de acumulação
por despossessão. Processos que, em geral, dependeram da inter-
venção e/ou da manipulação dos poderes estatais.
Ainda conforme Harvey (2008), a acumulação por despos-
sessão apresentaria quatro características principais: i) priva-
tização e mercantilização, especialmente de ativos públicos,
abrindo à acumulação de capital novos campos que estavam até
então fora do cálculo de lucratividade – processos que transferem
ativos do domínio público e popular para domínios privados
e privilegiados de classe; ii) financeirização, uma vez que, a
partir de 1980, uma série de desregulamentações econômicas

477
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

permitiu que “o sistema financeiro se tornasse um dos principais


centros de atividade redistributiva por meio da especulação, da
predação, da fraude e da roubalheira” (p. 172-173); iii) adminis-
tração e manipulação de crises, onde a dívida entra como recurso
primordial na redistribuição de riquezas dos Estados mais pobres
para os Estados mais ricos; iv) redistribuições via Estado, com a
instituição de políticas que direcionam o fluxo de rendimentos
para as classes mais altas, por meio de isenções fiscais, estruturas
tributárias regressivas, corte de gastos e de serviços públicos etc.
É justamente com base nesses processos e características
gerais que podemos dizer que relações como as que existem
entre financeirização e acumulação por despossessão não apenas
não são inéditas, como são intrínsecas ao desenvolvimento do
capitalismo. Rosa Luxemburgo ([1912] 1970), por exemplo, ao
enfatizar o caráter permanente da acumulação primitiva, alegava
que um dos aspectos centrais da acumulação de capital se refere
às relações entre o capitalismo e os modos de produção não capi-
talistas. Nessa relação, a força, a fraude, a opressão e a pilhagem
eram exibidas abertamente através da guerra, da política colonial
e do sistema internacional de empréstimos. O que também
coloca o nexo Estado-finanças no centro da reflexão. Entretanto,
para Harvey (2005), esses processos têm, hoje, uma importância
maior que outrora. Nas palavras do autor:

Alguns dos mecanismos da acumulação primitiva que Marx


enfatizou foram aprimorados para desempenhar hoje um pa-
pel bem mais forte do que no passado. O sistema de crédito
e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding
e Luxemburgo observaram no começo do século XX, gran-
des trampolins de predação, fraude e roubo. A forte onda
de financialização, domínio pelo capital financeiro, que se
estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu
estilo especulativo e predatório. Valorizações fraudulentas de
ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destrui-
ção estruturada de ativos por meio da inflação, a dilapidação
de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis
de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mes-
mo nos países capitalistas avançados, a prisioneiros da dívi-
da, para não dizer nada da fraude corporativa e do desvio de

478
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

fundos (a dilapidação de recursos de fundos de pensão e sua


dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente
de manipulações do crédito e das ações — tudo isso são carac-
terísticas centrais da face do capitalismo contemporâneo. [...]
Mas temos de examinar sobretudo os ataques especulativos
feitos por fundos derivativos e outras grandes instituições do
capital financeiro como a vanguarda da acumulação por es-
poliação em épocas recentes (p. 122-123).

Essa relação imbricada entre os processos de acumulação


por despossessão e a financeirização tem a ver com a busca
de soluções para o problema da sobreacumulação de capital,
situação em que há capitais em excesso vis-à-vis as possibilidades
de reinvesti-los com lucro – o que, em outros termos, pode ser
descrito como excesso de liquidez. Esses excedentes exercem uma
pressão para a abertura de novas fronteiras de acumulação de
capital através da mercantilização generalizada de bens públicos,
relações sociais, elementos da natureza etc., que em seguida
podem ser transformados em ativos financeiros em condições
de absorverem os capitais superacumulados e concentrados no
sistema de crédito.
Para nós, o que foi dito acima, corresponde aos exemplos
citados e descritos nos tópicos anteriores. Como visto, a securiti-
zação e a capitalização são mecanismos que servem exatamente
para criar mercadorias – na forma de títulos – a partir de fluxos de
rendimentos que, de outra forma, não poderiam ser negociados.
Portanto, os processos de mercantilização e de acumulação por
despossessão se intensificam na medida em que a financeirização
passa a ditar os ritmos e a lógica da acumulação em geral.
Quando analisamos a antecipação das receitas dos royalties
do petróleo do Estado do Rio de Janeiro e o projeto de cessão
de direitos creditórios pelos entes federados, verificamos que
esses casos dificilmente poderiam ser considerados como formas
estritas de securitização. O ponto fundamental aqui seria o fato
de que não ocorre a venda definitiva dos ativos públicos com
a consequente assunção do risco pelos investidores. Há, na
verdade, garantias reais por parte do Estado. Assim, ao não trans-
ferir o risco envolvido em processos necessariamente especula-
tivos, o Estado brasileiro, em seus distintos níveis de governo,

479
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

internaliza os potenciais prejuízos decorrentes da não realização


dos capitais que circulam segundo a lógica do capital fictício.
Essa é, em grande medida, uma explicação para a crise fiscal do
Estado do Rio de Janeiro, já que as operações de antecipação de
receitas no mercado internacional levaram ao agravamento da
insolvência no RioPrevidência e à consequente necessidade de
cobertura com recursos orçamentários. Nesse sentido, fica claro
como o movimento em direção à financeirização do Estado abriu
caminho para práticas de acumulação por despossessão. Priva-
tizaram-se lucros, socializando-se prejuízos.
Mas o que se passa quando a securitização ocorre realmente
com a transferência dos riscos aos investidores? Haveria um nível
de taxa de juros em que essas operações seriam vantajosas para
o Estado? As antecipações de receita não seriam uma forma de
ajustar um fluxo de capital para as necessidades do presente,
flexibilizando a gestão estatal? Não haveria aí benefícios ao agente
que securitiza, no caso, o Estado? A racionalidade do mercado
não poderia introduzir padrões de eficiência na administração
pública? Qual é o limite que separa a funcionalidade do sistema
de crédito da “destrutividade” da acumulação por despossessão?
Esses processos são completamente discerníveis e operam sepa-
radamente ou caminham lado a lado?
Em primeiro lugar, como evidenciou a recente crise das
hipotecas subprime nos Estados Unidos, a securitização não
oferece garantias de que as possibilidades de crise no sistema de
crédito sejam afastadas. E, no final das contas, a crise teve que
ser resolvida com volumosos aportes de recursos estatais. Como
já observado por Marx ([1894] 1986c), os mercados de títulos –
capitais fictícios – têm uma tendência inerente a perder comple-
tamente a conexão com os processos reais de produção, criando
uma série de “formas insanas” de acumulação e a multiplicação
de reivindicações sobre rendimentos futuros totalmente distor-
cidos em relação à economia real.
Se o capital usurário foi domado pelo capital industrial
na história da constituição do modo de produção capitalista,
podemos pensar que, hoje, no capitalismo sob dominância finan-
ceira, o capital industrial se subordina ao capital portador de
juros o que faz com que seu viés parasitário – típico da usura –

480
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

prevaleça. Ao se libertar da dominação do capital industrial e da


sua necessária funcionalidade para a produção de mais-valor, a
distinção entre o capital portador de juros “funcional” e o capital
usurário “destrutivo” acaba se perdendo no moderno sistema de
crédito. Essa perspectiva se aproxima, em termos gerais, do argu-
mento de Carcanholo e Nakatani (2015), que entendem a espe-
cificidade do capitalismo contemporâneo exatamente a partir da
maneira diferenciada de síntese entre as formas funcionais do
capital. Para esses autores, atualmente, o capital fictício se desen-
volveu para um modo especulativo parasitário e subordina à sua
lógica de valorização os capitais produtivo, comercial e portador
de juros, subvertendo a síntese do capitalismo industrial, que
prevaleceu até os anos 1970, quando as formas funcionais do
capital estavam subordinadas ao capital produtivo.
Portanto, tudo indica que, no contexto da financeirização
contemporânea, o sistema de crédito desenvolve os mecanismos
necessários – especialmente com o atual nível de desregulação
financeira – que criam condições para uma acumulação de
capital fictício cada vez mais ampliada, bem como para brechas
que tendem a institucionalizar todo tipo de fraude nesse sistema.
Os casos descritos acima, que nos parecem tornar pertinente a
ideia da financeirização do Estado brasileiro, ajudam a corro-
borar essa hipótese.
Dito isso, seria ilusório pensar num sistema de crédito estrita-
mente funcional, que, operando em condições ideais de regulação,
com juros determinados pelo mercado e com agentes econômicos
alocando seus recursos racionalmente, traria apenas virtuosidade
à acumulação. Hoje, e provavelmente desde sempre, as práticas
usurárias e de acumulação por despossessão são imanentes ao seu
funcionamento. Assim, não há sentido em falar em processos de
securitização virtuosos para o Estado brasileiro, muito menos em
defender que a incorporação das métricas, narrativas e práticas do
mundo das finanças no interior do aparelho estatal possa contri-
buir com a eficiência e o aperfeiçoamento do serviço público.
Quando o capital fictício não se realiza, quando as contradições se
acumulam, alguém tem que pagar pelas desvalorizações e crises.
Se a usura “antediluviana” causou a ruína de formações econô-
micas pré-capitalistas, a acumulação por despossessão via sistema

481
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

de crédito tem causado a ruína de populações inteiras, Estados,


famílias e empresas. E esse parece ser o sentido geral que se aponta
diante do que tem sido chamado de financeirização do Estado: a
configuração de um nexo Estado-finanças que, no limite, compro-
mete os próprios poderes autônomos do Estado.

Referências
Auditoria Cidadã da Dívida. Interpelação Extrajudicial dirigida ao Presidente
da Câmara dos Deputados Federais. Assunto: PLP 459/2017 - SECURITI-
ZAÇÃO DE CRÉDITOS. 20 nov. 2018. Disponível em: https://auditoriaci-
dada.org.br/wp-content/uploads/2018/11/Interpela%C3%A7%C3%A3o
-extra-judicial-RODRIGO-MAIA-1.pdf Acesso em: 29/10/2019.
ABELES, Martín; CALDENTEY, Esteban Pérez; VALDECANTOS, Sebas-
tián (Ed.) Estudios sobre financierización en América Latina. Santiago: CEPAL,
2018.
AGLIETTA, Michel. Le capitalism de demain. Paris: Fondation Saint Simon,
1998.
______. Shareholder value and corporate governance: some tricky ques-
tions. Economy and Society, v. 29, n. 1, p. 146-159, 2000.
AALBERS, Manuel. The potential for financialization. Dialogues in Human
Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de
nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 2003.
BALDWIN, David Allen. Economic statecraft. Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 1985.
BARAN, Paul; SWEEZY; Paul. El capital monopolista: ensayo sobre el
orden económico y social de Estados Unidos. México, D.F: Siglo Veintiuno
Editores, 1988.
BRASIL. PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 204, DE 2016 – COMPLE-
MENTAR. Dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de
créditos tributários e não tributários dos entes da Federação.
BRASIL. Projeto de Lei Complementar PLP 459/2017. Altera a Lei n.
4.320, de 17 de março de 1964, para dispor sobre a cessão de direitos
creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes da
Federação, e a Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário
Nacional), para prever o protesto extrajudicial como causa de interrupção
da prescrição e para autorizar a administração tributária a requisitar infor-
mações a entidades e órgãos públicos ou privados.
BRASIL. Lei Complementar Nº 101/2000. Estabelece normas de finanças

482
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras provi-


dências.
BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global – O padrão sistê-
mico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da
Conceição; FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.
CANETTIERI, Thiago. Dívida, território e a nova forma de financiamento
do desenvolvimento urbano por meio do mercado financeiro: O caso da
PBH Ativos S/A em Belo Horizonte, Brasil. In: SHIMBO, Lucia; RUFINO,
Beatriz (Orgs.) Anais do Seminário Internacional Financeirização e Estudos
Urbanos: Olhares Cruzados Europa e América Latina. São Paulo: Instituto
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2018.
CARCANHOLO, Reinaldo; SABADINI, Maurício de S. Capital fictício
e lucros fictícios. In: GOMES, Helder (Org.) Especulação e lucros fictícios:
formas parasitárias da acumulação contemporânea. São Paulo: Outras
Expressões, 2015.
CARCANHOLO, Reinaldo de A.; NAKATANI, Paulo. O capital especu-
lativo parasitário: uma precisão teórica sobre o conceito de capital finan-
ceiro, característico da globalização. In: GOMES, Helder (Org.) Especulação
e lucros fictícios. São Paulo: Outras Expressões, 2015.
CARNEIRO, Antônio Velloso. Securitização de dívida ativa: o omelete e
os ovos. O Estado de São Paulo. 3 jan.2018. Disponível em: https://politica.
estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/securitizacao-de-divida-ativa-o-ome-
lete-e-os-ovos/ Acesso em: 29/10/2019
CHESNAIS, François. A teoria do regime de acumulação financeirizado:
conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n.
1 (18), p. 1-44, jan./jun. 2002.
CHRISTOPHERS, Brett. The limits to financialization. Dialogues in Human
Geography, v. 5, n. 2, p. 183-200, 2015.
EPSTEIN, Gerald. Introduction: financialization and the world economy.
In: EPSTEIN, Gerald. Financialization and the world economy. Northampton:
Edward Elgar, 2005.
FATTORELLI, Maria Lucia. Crime contra o Estado tem data marcada em
Goiás. Auditoria Cidadã da Dívida. 07 ago. 2018. Disponível em: https://
auditoriacidada.org.br/conteudo/crime-contra-o-estado-tem-data-marca-
da-em-goias/ Acesso em: 29/10/2019
FINANCIALIZATION. In: RICHARDSON, Douglas; CASTREE; Noel;
GOODCHILD, Michael F.; KOBAYASHI, Audrey; LIU, Weidong;
MARSTON, Richard A. (Ed.) The International Encyclopedia of Geography:
people, the earth, environment and technology, 2019. Disponível em:
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/book/10.1002/9781118786352.
Acesso em: 04/05/2019.

483
Igor Pouchain Matela e Nelson Diniz

FINE, Ben. Financialization from a marxist perspective. International


Journal of Political Economy, v. 42, n. 4, p. 47-66, 2014.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.
______. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
______. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo,
2011.
______. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
______. Para entender o capital: livros II e III. São Paulo: Boitempo, 2014.
HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
LAGNA, Andrea. Derivatives and the financialisation of the Italian State.
New Political Economy, v. 21, n. 2, p. 167-189, 2016.
LAPAVITSAS, Costas. Theorizing financialization. Work, Employment &
Society, v. 25, n. 4, p. 611-626, 2011.
______. Profiting without producing: how finance exploits us all. London:
Verso, 2013.
LÊNIN, Vladimir. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas:
FE/UNICAMP, 2011.
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital: estudo sobre a interpre-
tação econômica do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Volume 2. O processo
de circulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1986a.
______. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 1. O
processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986b.
______. O capital: crítica da economia política. Volume 3, Tomo 2. O
processo global da produção capitalista. São Paulo: Abril Cultural, 1986c.
______. O capital: crítica da economia política. Livro 1. O processo de
produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
O’NEIL, Phillip. The financialisation of urban infrastructure: A framework
of analysis. Urban Studies, 2018. Disponível em: http://journals.sagepub.
com/doi/full/10.1177/0042098017751983. Acesso em: 16/03/2018.
PALLUDETO, Alex Wilhans Antonio; ROSSI, Pedro. O capital fictício: revi-
sitando uma categoria controversa. Texto para discussão n. 347. Campinas:
IE-Unicamp, 2018.
PAULANI, Leda. Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo:
observações sobre o caso brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n.
77, p. 237-261, 2013.
______. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx
para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São
Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016.

484
A financeirização do Estado por meio da securitização de ativos no Brasil

RIO DE JANEIRO. Tribunal de Contas do Estado. Processo 108.168-


2/2016.
SALES, Pedro Henrique Ramos. PLS 204/16 e o mito da securitização da
dívida pública: um mau negócio à vista. JOTA.15 out. 2016
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/
pls-20416-e-o-mito-da-securitizacao-da-divida-publica-um-mau-negocio-
vista-16102016 Acesso em: 24/10/2019
SILVA FILHO, Edison Benedito. Securitização de ativos públicos para finan-
ciamento de projetos de infraestrutura: o caso brasileiro e a experiência dos
BRICS. Textos para discussão IPEA. n. 1989, jul. 2014.
VAN DER ZWAN, Natascha. State of the art: making sense of financializa-
tion. Socio-Economic Review, v. 12, n. 1, p. 99–129, 2014.
VELLOSO, Raul. O projeto certo para crescer mais. O Globo. 11 dez. 2017
Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/o-projeto-certo-para-
crescer-mais-22169430. Acesso em: 24/10/2019.
VELLOSO, Raul. Securitizar do jeito certo. O Globo. 08 ago. 2016.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/securitizar-do-jeito-
certo-19869556 Acesso em: 24/10/2019.
WANG, Yingyao. The rise of the “shareholding state”: financialization
of economic management in China. Socio-Economic Review, v. 13, n. 3, p.
603-625, 2015.

485
Parte IV

Estudos de Caso
Grupos econômicos e acumulação
urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken1

Lucas Faulhaber2
Hipolita Siqueira2

Introdução

A concentração da propriedade de ativos reais e finan-


ceiros sob controle de um pequeno grupo de empresas,
famílias e indivíduos é um fenômeno de grande destaque no capi-
talismo contemporâneo3. No entanto, tal fenômeno é ocultado
por uma com-plexa gama de arranjos institucionais e mecanismos
de propriedade, em distintos contextos históricos e geográficos.
Nesse sentido, torna-se relevante o estudo dos grupos econô-
micos como forma de organização empresarial predominante. A
partir de suas estratégias de acumulação sob hegemonia finan-
ceira, são capazes de controlar e coordenar estratégias e ativi-
dades de um amplo espectro de agentes econômicos. Além da
dimensão econômica, são importantes por sua dimensão cultural
e política, exercendo poder e influência sobre o Estado e a socie-
dade (PORTUGAL, 1994).
Em termos teóricos, a categoria grupos econômicos
distingue-se conceitualmente de empresas/firmas. Ao permitir
a construção de mediações entre as abordagens mais gerais e
abstratas das frações do capital e aquelas baseadas em firmas,
1
Capítulo publicado originalmente na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regio-
nais, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 586-604, set.-dez. 2019. Os autores agradecem o apoio
da CAPES e os valiosos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos, isentan-
do-os de quaisquer falhas remanescentes.
2
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3
Segundo publicação da Oxfam (2017), oito pessoas detêm patrimônio seme-
lhante ao da metade mais pobre da populaç5o mundial. No Brasil, apenas seis
brasileiros possuem riqueza equivalente à soma do que possui a metade mais
pobre da populaç5o (mais de 100 milhões de pessoas).

489
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

famílias e indivíduos, o conceito de grupo econômico é opera-


cional para estudos de casos concretos sobre o processo de
acumulação urbana. Trata-se de um enfoque importante, quando
são consideradas as distintas estratégias e os recursos de poder
mobilizados pelos agentes econômicos no âmbito de processos
de acumulação e de produção desigual do espaço.
A análise da atuação de grupos econômicos na cidade do
Rio de Janeiro é ilustrativa, pois, ao longo de sua trajetória histó-
rica, constituiu-se como a segunda maior metrópole nacional,
profundamente desigual espacial e socialmente. No passado e
no presente, a hegemonia política e econômica de um circuito
de acumulação urbana formado por agentes econômicos do
setor imobiliário, proprietários de terra, empreiteiras e conces-
sionários de serviços urbanos pode ser considerada como um
dos principais elementos explicativos da trajetória de formação e
configuração dessa metrópole (RIBEIRO, 2015).
Ao mesmo tempo, tal análise ilustra alguns aspectos impor-
tantes dos processos econômicos e políticos nacionais, particu-
larmente em termos das estratégias de acumulação e de orga-
nização dos grupos econômicos e suas relações com o Estado.
Os processos atuais que se desenvolvem na cidade do Rio de
Janeiro estão em ampla sintonia com a dinâmica de internacio-
nalização econômica, na qual vêm sendo disseminadas políticas
urbanas pautadas por projetos hegemônicos de cidade que visam
à mercantilização. Alianças de interesses de grupos políticos e
econômicos, consubstanciadas nesses projetos através de múlti-
plas práticas e instrumentos, lograram a imposição de um modelo
liderado pela atração de megaeventos esportivos internacionais
(SÁNCHEZ; BRODEHOUX, 2013).
Utilizando o referencial analítico das teorias não convencio-
nais sobre grupos econômicos, o objetivo deste artigo é analisar
as estratégias de acumulação de dois grupos fundamentais para a
produção do espaço urbano carioca: Odebrecht S.A. e Carvalho
Hosken. Eles foram selecionados levando em consideração suas
distintas trajetórias históricas de atuação nos setores imobiliário
e da construção civil e seu grau de influência política e econô-
mica, principalmente em contextos de grandes transformações
urbanísticas. No caso do grupo Odebrecht, seu papel é crucial

490
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

para a compreensão da conjuntura econômica e política nacional.


A análise aqui empreendida é mais descritiva do que compara-
tiva, buscando, com isso, compreender distintas formas de estru-
turação organizacional e identificar estratégias de acumulação
urbana que possam contribuir para outros trabalhos.
Além desta introdução, o artigo está dividido em outras três
seções. Na primeira, procura-se realizar uma reflexão sobre os
principais elementos do referencial analítico dos grupos econô-
micos e sua contribuição para os estudos da acumulação urbana.
São destacados alguns aspectos de sua influência política, social,
econômica e em mudanças regulatórias e institucionais no Brasil e
no Rio de Janeiro nas últimas décadas. Na segunda, foram exami-
nadas as distintas trajetórias históricas e as estratégias de acumu-
lação dos grupos Odebrecht e Carvalho Hosken na cidade do Rio
de Janeiro. Por último, encontram-se as considerações finais.

Articulações entre grupos econômicos e


acumulação urbana: apontamentos teóricos e os
contextos brasileiro e carioca
No campo da economia política urbana crítica, os estudos
são orientados para um debate sobre distintas frações de capital,
agentes econômicos e circuitos de acumulação no espaço urbano.
Diversos autores se dedicaram à elaboração de tipologias de
agentes (proprietário, incorporador, financiador, construtor,
corretor, industrial e empreiteiro) e ao exame de suas estraté-
gias de acumulação, bem como de suas articulações e conflitos.
São consideradas por esses estudos as variadas formas de apro-
priação, transformação e extração de renda da mercadoria terra
(CAPEL, 1974; TOPALOV, 1979; HARVEY, 1980; LOGAN,
MOLOTCH, 1987; ABRAMO, 1988; RIBEIRO, 1997). Em geral,
eles demonstram os conflitos existentes entre as dimensões da
cidade como valor de uso/espaço de vivências e da cidade como
valor de troca/mercadoria capitalista, em que o espaço urbano
é tido como uma dentre as várias frentes da acumulação capita-
lista (ARANTES, 2000). Tendo como base essa última dimensão,
são organizadas coalizões de interesses visando a ganhos com

491
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

o crescimento das cidades, transformando-as em verdadeiras


“máquinas de crescimento”, tal como na expressão original
elaborada em Molotch (1976).
Cox (2017) revisita a abordagem da cidade como máquina
de crescimento destacando sua relevância e pertinência para
os estudos urbanos atuais. Com base na realidade norte-ameri-
cana contemporânea, argumenta que, embora a constituição das
alianças de interesses para o crescimento urbano mantenha-se
central, seria relevante explorar o entendimento do processo de
acumulação. No cerne da análise estaria a concorrência entre os
capitais, uma vez que o objetivo não é o crescimento em si, mas
as rendas geradas no espaço urbano. Além disso, alerta para as
distintas trajetórias e os contextos específicos nos quais se dão
tais processos.
Sob outra perspectiva teórica, Marques (2016) enfatiza a
necessidade de renovação dos arcabouços teóricos nesse campo,
a partir de um estimulante enfoque centrado nos “capitais do
urbano”.
Reconhecendo a relevância e a necessidade de atualização
dessas abordagens, neste artigo entende-se que um enfoque a
partir do referencial analítico dos grupos econômicos pode
contribuir para o debate. É importante destacar que, diferen-
temente da literatura econômica norte-americana e francesa,
na qual há áreas de estudos consolidadas sobre grupos econô-
micos (por exemplo, a linha inaugurada por Alfred Chandler),
esse enfoque não é tradicional na literatura econômica brasi-
leira. Recentemente, alguns estudos críticos foram produzidos
na área da História Econômica, tais como os de Campos (2014),
que buscam compreender as relações entre empreiteiras e os
governos militares no Brasil. Já no que se refere aos estudos
urbanos e regionais, a literatura que se baseia no referencial dos
grupos econômicos ainda é muito incipiente.
Considerando tais limitações na literatura nacional,
merecem destaque algumas importantes análises empreendidas
sobre o conceito e os instrumentos de controle e dominação dos
grupos econômicos.
Segundo Gonçalves (1991), grupo econômico pode ser
entendido como um conjunto de empresas que, embora juri-

492
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

dicamente independentes, estão interligadas, seja por relações


contratuais, seja pelo capital, com propriedade (de ativos especí-
ficos e, principalmente, do capital) pertencente a indivíduos ou
instituições que exercem o controle efetivo sobre o conjunto. Já
nos estudos de Tavares (1986) foram destacadas as formas de
dominação dos grupos econômicos, através do controle da tecno-
logia e dos instrumentos financeiros e de suas práticas restritivas
de comercialização e dominação do mercado, no âmbito do
processo de concentração e centralização de capital e da intensi-
ficação da concorrência oligopolista.
Na busca de um conceito mais adequado de grupo econô-
mico, à luz das distintas contribuições da teoria econômica, em
Portugal (1994) são elencados três aspectos essenciais: controle
e poder centralizado; atuação financeira e produtiva de grande
porte e complexidade; e estruturação produtiva diversificada
e descentralizada. O aspecto mais relevante seria a submissão
dos grupos a um único centro de controle e direção estratégica.
Dentre as principais decisões estratégicas, estão a escolha de
executivos, a administração do conjunto dos fundos estratégicos
e os recursos financeiros líquidos, a pesquisa e o desenvolvimento
e a informação contábil financeira.
Com base em tais noções, indo além de concepções
restritas ao campo da organização empresarial e dos grupos
econômicos como expressão institucional do capital finan-
ceiro, Portugal (1994) define grupo econômico como centros
de poder:

[...] o grupo econômico é um centro de poder no sentido am-


plo: tem poder internamente, diante dos recursos materiais e
financeiros que movimenta (isto é, próprio e de terceiros) e
frente à massa de pessoas que emprega, e possui poder fora
do grupo, por sua capacidade de interferir no mercado, nos
circuitos financeiros, nas relações políticas (partidárias ou
não) na legislação e no Estado (Portugal, 1994, p. 26).

Esse conceito é importante para compreender a posição


privilegiada dos grupos econômicos em relações interempre-
sariais (horizontais e verticais) e com o Estado. Associações
e acordos de cooperação entre grupos difundem e impõem

493
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

padrões con-correnciais oligopólicos, ao mesmo tempo que


possibilitam aos grupos dotarem-se de especializações que
ainda não dominam. As relações com o Estado, por sua vez,
oferecem limitações e estímulos à acumulação dos grupos
econômicos. O acesso privilegiado a fundos públicos, incen-
tivos e isenções fiscais são de grande importância, sobretudo
em países como o Brasil, em que os mercados de capitais são
relativamente pouco desenvolvidos. Outros aspectos relevantes
dessas relações dizem respeito ao grande impacto da reali-
zação dos projetos de investimento sobre o desenvolvimento
de países, regiões e cidades, à importância do componente
público da demanda por bens e serviços e à capacidade do
Estado na implementação de políticas de desenvolvimento
tecnológico, produtivo, urbano e regional e na regulação
trabalhista e ambiental. Em todos esses campos os grupos
econômicos exercem pressão para decisões favoráveis ou para
impedir decisões prejudiciais (PORTUGAL, 1994).
Nesse sentido, é expressiva a capacidade dos grupos
econômicos de controlar e coordenar estratégias e atividades
de um amplo espectro de agentes econômicos, tendo em
vista o comando centralizado de grandes massas de recursos
financeiros e de recursos materiais, simbólicos e políticos.
Com relação à articulação desse referencial com a acumu-
lação urbana, pode ser destacada a capacidade dos grupos
de articulação e coordenação de um conjunto de estratégias
de diversos agentes da produção do espaço urbano (proprie-
tário, incorporador, financiador, construtor, corretor, indus-
trial e empreiteiro).
O referencial analítico dos grupos econômicos permite
captar a complexidade dos processos atuais de acumulação
urbana, considerando a sua atuação em distintos mercados e
escalas espaciais (global, nacional, regional e local). Como argu-
mentado em Portugal (1994), sob mecanismos de descentrali-
zação variados, as estratégias de acumulação são moldadas por
matrizes históricas específicas de países e regiões. Para além da
multiplicidade de divisões, áreas geográficas e estruturas hierár-
quicas, são im-portantes as particularidades das histórias empre-
sariais e das dinâmicas de acumulação dos grupos (por exemplo,

494
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

holdings familiares no Brasil e conglomerados asiáticos). Tais


especificidades revelam que há grande dependência e influência
dos contextos históricos e espaciais nos quais os grupos econô-
micos estão inseridos e atuam, tal como considerado por Cox
(2017). Na literatura econômica são mais destacados os exemplos
de empresas transnacionais, para as quais os contextos de origem
são tão importantes quanto os dos países e regiões de destino. No
caso brasileiro, tendo em vista sua trajetória de desenvolvimento
econômico, vale ressaltar a relevância dos grupos estatais e das
holdings familiares.
A trajetória histórica de acumulação, bem como a conjun-
tura econômica e política crítica brasileira, demonstram a impor-
tância da compreensão dos grupos econômicos como centros de
poder. Com relação ao espaço urbano, especificamente, a análise
da atuação desses grupos permite compreender como eles se
adaptam e, ao mesmo tempo, moldam o padrão de acumulação
urbana e impõem seus projetos de cidade através de distintas
estratégias. Sendo assim, a centralidade dos grupos econômicos
traz grande contribuição para a discussão dos processos políti-
co-econômicos da “urbanização planetária emergente, profunda-
mente desigual e variada”, debatida por Brenner (2016).
No período mais recente, foram reveladas as relações quase
imediatas entre poder político e poder econômico no Brasil,
sendo central, para isso, o histórico modus operandi dos grupos
econômicos denominados como empreiteiras. A partir de suas
estra-tégias de acumulação e poder, os grupos econômicos
atuantes no espaço urbano foram amplamente beneficiados pelas
políticas voltadas para o mercado interno brasileiro (valorização
do salário mínimo e a ampliação do crédito ao consumo) e pelos
programas de infraestrutura econômica e habitacional, durante
os governos Lula e Dilma (2003-2016). Os programas mais impor-
tantes foram o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento),
criado em 2007 para promover a execução de investimentos
em infraestrutura (social, urbana, logística e energética), e o
PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida), criado, em 2009,
com objetivo de financiar a aquisição de terrenos e a construção
de unidades habitacionais, sendo destinado, principalmente, a
famílias de baixa renda.

495
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

Os grupos econômicos exercem, historicamente, grande


influência no ambiente regulatório e institucional brasileiro. No
setor imobiliário, desde a abertura comercial e financeira nos anos
1990, ocorreram mudanças na legislação financeira que criaram
vários mecanismos de financiamento. De acordo com Royer (2014),
as organizações de classe desse setor participaram ativamente na
elaboração do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e na criação
dos Fundos de Investimentos Imobiliários (FII)4, como alterna-
tivas ao financiamento e à atração de recursos para o mercado
brasileiro. A partir desses movimentos, a crescente participação
do capital financeiro foi tornando-se um importante elemento
para a reprodução do capital investido na produção imobiliária,
ao permitir o aumento da escala da produção, a antecipação do
capital ao produtor e o pagamento parcelado pelo consumidor.
Além disso, foram criados pelo governo federal regimes
especiais de tributação. Por exemplo, a Lei 12.024/2009
(PMCMV) reduziu a alíquota de tributação aplicável às
incorporações imobiliárias de 7% para 6%; posteriormente, com
a Lei 12.844/2013, houve nova redução para 4%. No caso de
projetos de Habitação de Interesse Social, a alíquota era de 1%.
Diante de um novo ambiente regulatório e macroeconô-
mico, em 2005, os grupos econômicos do setor de incorporação
e construção imobiliária iniciaram ofertas públicas de suas ações
na Bolsa de Valores. Segundo Fix (2011), após a abertura de
capital, os grupos do setor imobiliário aumentaram seus inves-
timentos de forma agressiva. Ocorreram várias fusões e aquisi-
ções e a formação de grandes empresas de atuação em escala
nacional. Além da dispersão geográfica dos investimentos, essa
autora ressalta a diversificação da produção imobiliária desses
grupos, não se restringindo mais a apenas um uso ou segmento
de renda. Como consequência, intensificou-se a competição pelo
solo urbano, levando à expansão das cidades para periferias e/
ou áreas rurais.

4
Criados pela Lei 8.668/1993 e regulamentados pela Lei 9.779/1999, esses
fundos consistem em um condomínio de investidores com o objetivo de apli-
car recursos financeiros em empreendimentos imobiliários. Como forma de
difundir os FIIs, seus investimentos são isentos de algumas tributações, como
Imposto de Renda.

496
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

Com relação à cidade do Rio de Janeiro, grande parte dos


grupos imobiliários continuou atuando à margem da dinâmica
da Bolsa de Valores. Por outro lado, entre os grupos econô-
micos nacionais com capital aberto, apenas a empresa João
Fortes Engenharia tem origem carioca. Na maioria dos casos –
demonstrando a importância das especificidades dos contextos
regionais/locais –, a entrada de empresas na capital flumi-
nense aconteceu de modo conseguinte à abertura de capitais
e através da fusão ou aquisição de empresas locais, tais como a
compra da RJZ pela Cyrela, da CHL pela PDG e da Patrimóvel
pela LPS-Brasil. A inserção financeira foi fundamental para que
esses grupos alcançassem um caráter regional ou nacional. No
entanto, isso não necessariamente expressa o seu poder sobre
a determinação das grandes intervenções públicas, essenciais
para a reprodução desse tipo de capital. Tais grupos são compe-
lidos a aliar-se aos agentes de dominância local ou até intralocal
que possuem diferentes estratégias territoriais de produção ou
comercialização de bens imobiliários. Dessa forma, centenas
de empreendimentos se caracterizam por incorporações conju-
gadas entre empresas que possuem um maior capital de investi-
mento e outras que possuem um capital fundiário e expertise de
atuação no mercado local.
A cidade do Rio de Janeiro vivenciou no período do “Lulismo”
uma retomada na dinâmica da produção imobiliária, induzida por
novos marcos urbanísticos e por um número expressivo de obras
públicas, com participação de diferentes esferas de governo.
Além da conjuntura macroeconômica e de implementação de
programas públicos de infraestrutura, a atração de megaeventos
internacionais foi um elemento crucial para o estabelecimento
de alianças políticas que permitiram elevados aportes financeiros
e a realização de grandes intervenções urbanas. Foram imple-
mentadas as obras de mobilidade urbana (BRTs – corredores
viários TransCarioca, TransOeste, TransOlímpica e TransBrasil),
as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), os conjuntos habita-
cionais do PMCMV e o projeto Porto Maravilha.
Como pode ser observado na Figura 1, os principais lança-
mentos imobiliários nessa cidade estão no entorno de grandes
intervenções, bem como das ações de remoção de favelas e UPPs.

497
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

Figura 1: Mapa das intervenções, lançamentos imobiliários e remoções


de favelas no município do Rio de Janeiro, segundo Áreas de
Planejamento (AP).

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da Gerência de Informações


Urbanísticas da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) e Associação dos
Dirigentes do Mercado Imobiliário (ADEMI/RJ).
Nota: AP1: Porto, Centro e São Cristóvão; AP2: Botafogo, Copacabana, Rocinha e
Tijuca; AP3: Ilha do Governador, Ramos, Penha, Inhauma, Méier, Irajá, Anchieta,
Pavuna, Jacarezinho, Complexo do Alemão, Maré e Vigário Geral; AP4: Barra da
Tijuca, Jacarepaguá e Cidade de Deus; AP5: Bangu, Campo Grande, Santa Cruz e
Guaratiba.

Cabe ressaltar que, desde a década de 1990, a cidade do


Rio de Janeiro notabiliza-se por uma série de planos estratégicos
com auxílio e consultoria de órgãos internacionais, visando a
melhorar sua competitividade no mercado internacional. No
entanto, a viabilidade desses projetos ocorreu apenas com o novo
ambiente macroeconômico, regulatório e político dos anos 2000.
Do ponto de vista regulatório, foi importante a aprovação da Lei
11.079/2004, que disciplinou para todo o território nacional
as Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou concessões de serviços
públicos. A partir de 2009, uma gestão tipicamente neoliberal
consolidou-se com a eleição de Eduardo Paes e a formação de
uma nova coalizão político-partidária entre os governantes das
três esferas de governo. A escolha do Rio de Janeiro como sede
dos Jogos Olímpicos de 2016 foi o fator essencial que viabilizou
a atração de elevados aportes financeiros para as intervenções
urbanas. No primeiro ano da gestão de Paes, a prefeitura criou
o Programa Municipal de PPPs, denominado PROPAR-RIO

498
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

e a Agência Rio-Negócios (Decreto Municipal 31.182/2009),


inspirada na agência inglesa Think London e na colombiana
Invest Bogotá, para atrair o potencial investidor e auxiliá-lo
na compreensão das leis de incentivo vigentes no município,
além de aproximar o empresariado aos dirigentes políticos e à
imprensa local. A partir desses marcos, constituiu-se a maior PPP
do Brasil e o Consórcio Porto Novo, formado pelas empreiteiras
Odebrecht, OAS e Carioca, para a viabilização do projeto Porto
Maravilha.
Com o ciclo de grandes investimentos públicos em infraes-
trutura econômica e urbana e dos equipamentos vinculados aos
megaeventos, grupos econômicos nacionais tornaram-se agentes
cruciais na produção do espaço urbano carioca. A Odebrecht,
em particular, tornou-se responsável por Operações Urbanas
Consorciadas, concessionárias de transportes, obras de sanea-
mento, arenas esportivas, além de outras atividades, sendo
grande parte delas sob o regime de PPP e com amplo financia-
mento do BNDES e da Caixa. Outros grupos de atuação local,
tais como o grupo Carvalho Hosken, foram amplamente benefi-
ciados pelos efeitos das intervenções urbanas sobre a valorização
do solo e dos preços imobiliários.
Na seção seguinte, pretende-se focar no exame das trajetó-
rias e das estratégias diferenciadas de acumulação dos grupos
Odebrecht e Carvalho Hosken na cidade do Rio de Janeiro, com
o objetivo de compreender mais detalhadamente sua atuação na
produção desigual do espaço urbano carioca.

Trajetórias e estratégias dos Grupos Odebrecht e


Carvalho Hosken na cidade do Rio de Janeiro
A escolha desses dois grupos econômicos, de perfis e
atuações escalares diversos, foi feita com base em sua relevância
política e econômica e na configuração e apropriação do terri-
tório da cidade do Rio de Janeiro, reforçada em períodos de
grandes transformações urbanísticas. A descrição das trajetórias
históricas deles permite compreender formas diferenciadas de
estruturação do capital imobiliário e identificar estratégias de
acumulação urbana. Juntos, tais grupos realizaram os empreendi-

499
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

mentos mais emblemáticos do contexto atual, o Parque Olímpico


e a Vila dos Atletas. Importante ressaltar que foram os principais
financiadores de campanhas eleitorais5 do grupo político que
comandava o governo local da época.
As distinções entre esses grupos se refletem na disparidade
das fontes de informação sobre sua formação e estratégias de
acumulação urbana. Cabe ressaltar que há grande ausência ou
opacidade de informações publicadas, o que impõe dificuldades
para o estudo dos grupos econômicos no Brasil. Por não se tratar
de empresas de capital aberto, não estão submetidas às deter-
minações da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para dar
transparência aos balanços patrimoniais. Também não neces-
sitam demonstrar seus resultados a fim de atrair novos compra-
dores de ações. As informações sobre um dos principais ativos
– a terra – são justamente as mais ocultadas, tanto pelos grupos
quanto pelo Estado. Após várias tentativas, a Secretaria Muni-
cipal de Fazenda do Rio de Janeiro negou-se a fornecer informa-
ções solicitadas sobre o cadastro do Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU) dos proprietários dos imóveis, declarando que os
dados são protegidos pelo sigilo fiscal (art. 198 do Código Tribu-
tário Nacional).
Desse modo, a pesquisa baseou-se em dados oficiais sobre
produção imobiliária fornecidos pela Secretaria Municipal de
Urbanismo (SMU) do Rio de Janeiro e em informações das asso-
ciações de classe, como Associação dos Dirigentes do Mercado
Imobiliário (ADEMI/RJ) e Câmara Brasileira da Indústria da
Construção Civil (CBIC), além de fontes da BOVESPA, da Junta
Comercial de São Paulo (JUCESP)6, de estudos acadêmicos,
informações públicas de processos judiciais, operações investi-
5
Segundo o TSE, a Carvalho Hosken foi a principal financiadora do PMDB nas
eleições de 2012 com o aporte de R$ 650 mil. Do mesmo modo, de acordo com
informações divulgadas pela Operação Lava Jato em reportagem do Estado de
São Paulo de 23 de março de 2016, intitulada “Lava Jato acha superplanilha da
Odebrecht com valores para 279 políticos e 22 partidos”, o ex-prefeito do Rio
de Janeiro, Eduardo Paes, recebeu uma doação da Odebrecht de R$ 5 milhões
para a mesma campanha.
6
Diferentemente da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro, a JUCESP
disponibiliza as certidões de todas as pessoas jurídicas registradas no Estado de
São Paulo, sendo possível encontrar os fatos mais relevantes da constituição das
empresas, por exemplo, a alteraç5o de capital social ou mudanças acionárias.

500
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

gativas, sites das empresas e jornais. Sobre o grupo Odebrecht,


especificamente, o acesso a mais informações está relacionado
à deflagração das operações judiciais e à publicidade dos autos.

Grupo Odebrecht
O Grupo Odebrecht, tal como as principais empreiteiras do
pais, tem origem em empresas familiares. Entre as décadas de
1920 e 1930, o engenheiro Emilio Odebrecht criou a empresa
Isaac Gondim & Odebrecht, que realizava obras públicas, prin-
cipalmente em Salvador e Recife. No início da década de 1940,
Norberto Odebrecht assumiu os negócios do pai e fundou a
empresa que deu origem à Odebrecht S.A., atuando mais forte-
mente no Estado da Bahia, em estreita relação com os projetos
de infraestrutura do governo de Otávio Mangabeira (1947-1951).
No entanto, sua expansão ocorreu a partir da década de 1950.
Com a fundação da Petrobras, em 1953, e a criação da Superin-
tendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959,
abriram-se novas oportunidades para a empresa. Nos projetos
do setor privado financiados por recursos públicos, a Odebrecht
atuou fortemente na construção e instalação de grandes plantas e
complexos industriais. Para a Petrobras foram construídas refina-
rias, plataformas, estradas e, em 1969, a empreiteira construiu o
edifício-sede da estatal na cidade do Rio de Janeiro. Também foi
responsável por outros projetos relevantes no Estado do Rio de
Janeiro: o campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), o Aeroporto Internacional – ambos na zona norte da
cidade do Rio – e a Usina Termonuclear Angra I, no município
de Angra dos Reis, no sul do estado7.
O grande crescimento da Odebrecht ocorreu sob forte arti-
culação de interesses políticos e de contratos públicos para cons-
trução de obras de infraestrutura no âmbito dos projetos de
desenvolvimento nacional, particularmente durante os governos
militares (1964-1980). Segundo Campos (2014), o grupo constava
na 19ª posição no ranking das empreiteiras de atuação nacional
7
Publicação da Odebrecht em homenagem aos 60 anos da corporação (2004).
Disponível em: http:// www.odebrechtonline. com.br/edicoes/60anos/pt/.
Acesso em: 2 fev. 2016.

501
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

em 1971, subindo para a quarta posição no início dos anos 1980.


A concentração de capital no setor foi viabilizada pelo Decreto
64.3451 de 10 abril de 19698, do Presidente Costa e Silva, que
proibia a atuação de empresas estrangeiras em obras de infraestru-
tura no Brasil. Nesse mesmo período iniciou-se a expansão inter-
nacional do grupo Odebrecht através de contratos no Peru, Chile
e Angola. Em 1985, as obras fora do Brasil já representavam cerca
de 30% dos contratos da empresa, que, anos mais tarde, chegaria
a operar em mais de 20 países na Europa, América, África e Ásia.
Na década de 1980, a Odebrecht iniciou um processo de
fusões e aquisições, sendo-lhe incorporadas a empresa paulista
Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), a Técnica
Nacional de Engenharia S.A. (Tenenge) e a construtora portu-
guesa José Bento Pedroso & Filhos. O grupo tornou-se uma
companhia aberta, assumindo sua condição de holding; em 1991,
abriu seu capital e os seus sócios tornaram-se acionistas – a
família Gradin, representada na sociedade Graal Participações,
com 20,6% das ações, e a família Odebrecht, por meio da Kieppe
Participações, com cerca de 62%.
Embora a trajetória desse grupo esteja intimamente asso-
ciada ao setor público, a defesa da adoção de políticas neoliberais
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990
foi estratégica para sua concentração. Com as desestatizações,
a Odebrecht adquiriu o controle de diversas empresas do setor
petroquímico9; anos mais tarde, com a consolidação da Braskem
(braço petroquímico do grupo), ingressou em um processo de
fusões e aquisições de diversas empresas como o Grupo Ipiranga10.
Com a crise econômica ao final da década de 1990 e a ausência de
programas de investimento público em infraestrutura, a empresa
sofreu impactos financeiros e os acionistas da Odebrecht S.A.
fecharam o capital da companhia em 2000.
Com a retomada dos investimentos em infraestrutura
durante os governos de Lula e Dilma Roussef, a Odebrecht
8
Essa proibição foi revogada apenas em 1991 pelo presidente Fernando Collor.
9
“Governo vende ações da Salgema com ágio de 138%”, Folha de São Paulo, 6 de
outubro de 1995; “Empresa ligada ao Econômico assume Copene”, Folha de São
Paulo, 16 de agosto de 1995; “Petroquímicas vivem expansão pós-privatização”,
Folha de São Paulo, 04 de fevereiro de 1996.
10
Disponível em: http:// www.braskem.com.br/ historia. Acesso em: 6 abr. 2016.

502
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

voltou a crescer. Segundo o Banco Credit Suisse11, antes do


fechamento de capital em 1999, a Odebrecht era avaliada em
US$ 154 milhões; em 2004, já valia US$ 972 milhões; cinco anos
mais tarde, US$ 7,412 bilhões. A valorização gerou disputas entre
os grupos controladores, quando a família Odebrecht resolveu
exercer o direito de compra das demais ações12.
Durante esse período, a empresa foi uma das mais privilegiadas
pelo financiamento público, através de linhas de crédito subsidiado
ou de aporte direto de capital por meio da participação do BNDES.
A partir do lançamento do PAC e da difusão das PPPs, aumentou-se
a quantidade de projetos de infraestrutura e concessões no país. O
grupo Odebrecht tornou-se um dos principais agentes envolvidos
nesses projetos, passando novamente por um período de expansão
de suas atividades. Foram criadas diversas empresas do grupo em
diferentes segmentos, tais como agroindústria, imobiliário, trans-
porte, defesa e tecnologia e concessões públicas. Dessa forma,
consolidou-se como um dos principais grupos econômicos no Brasil.

Gráfico 1: Receita bruta da Construtora Norberto Odebrecht e


participação dos contratos públicos (2003-2015)

Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da CBIC (Disponível em: www.
cbicdados.com. br. Acesso em: 24 jan. 2016).

11
“Disputa na Odebrecht segue na Justiça”, Valor Econômico, 22 de janeiro de 2011.
12
Esse litígio está em aberto até hoje, com discordância dos valores que repre-
sentam a quantia das ações da família Gradin.

503
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

No ramo da construção civil, a Construtora Norberto


Odebrecht foi a primeira colocada no ranking anual da CBIC
(divulgado em sua revista O Empreiteiro) entre 2003-2015. O
crescimento da receita está intimamente relacionado ao grande
aumento de obras públicas, após a criação do PAC em 2007,
como pode-se verificar no Gráfico 1. A participação dos contratos
públicos no total da receita foi superior a 50% entre 2003-2011,
oscilando entre 40% e 30% entre os anos de maior crescimento
de sua receita (2012-2015).
No Rio de Janeiro, o grupo instalou uma filial na década
de 1960 e transferiu sua matriz de Salvador para essa cidade em
1992. Além das intervenções durante a ditadura militar mencio-
nadas anteriormente, foi responsável pela construção da Torre
do Shopping Rio Sul (prédio mais alto da cidade), dos Centros
Integrados de Educação Pública (CIEPs), da expansão do Metrô,
da autoestrada Lagoa-Barra, da Linha Vermelha, dentre outras
obras13.
No ciclo recente de grandes investimentos em infraestru-
tura articulados aos megaeventos esportivos, o grupo Odebrecht
tornou-se agente crucial. Conforme Quadro 1, desde 2009, parti-
cipa de vários contratos públicos referentes às principais inter-
venções urbanas da cidade, seja no controle das operações, seja
na execução das obras.
Embora existam denúncias de formação de cartel pelas
maiores empreiteiras do país nos principais contratos públicos da
cidade do Rio de Janeiro, há um predomínio da Odebrecht em
relação às demais. Esse fato pode ser compreendido não somente
por seu papel de destaque como a principal empresa do setor da
construção civil do Brasil, mas também pelas sucessivas denúncias
de corrupção e favorecimento envolvendo a empresa e o grupo
político – liderado pelo Partido do Movimento Democrático do
Brasil (PMDB) – que governou o estado e o município do Rio de
Janeiro nos últimos anos, no âmbito legislativo ou executivo14.
13
Informações extraídas do site do grupo http:// odebrecht.rio/. Acesso em:
12 fev. 2016
14
Segundo reportagem intitulada “Lava Jato acha superplanilha da Odebrecht
com valores para 279 políticos e 22 partidos”, do jornal Estado de São Paulo, em
23 de março de 2016, o suposto sistema clandestino de financiamento de cam-
panhas eleitorais envolveu centenas de políticos e dezenas de partidos, entre

504
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

Quadro 1: Participação das grandes empreiteiras nos principais


contratos públicos de infraestrutura na cidade do Rio de Janeiro, 2013.
Empreiteiras
Obras e contratos
públicos Camargo Andrade
Odebrecht OAS
Correa Gutierrez
Linha 4 – Metrô O C/O O
Teleférico do
C/O O
Alemão
PAC Alemão O O
PAC Manguinhos
VLT C/O C/O C/O C/O
Supervia C
Maracanã C/O O
Parque Olímpico C/O C/O
Vila dos Atletas C/O
Arco Metropoli-
O O O O
tano
TransOlímpica C/O C/O C/O C/O
Porto Maravila C/O C/O
Engenhão O O
Aeroporto Galeão C/O
TransBrasil O O
TransCarioca O O
TransOeste O
Foz Águas 5 C/O
Fábrica de Escolas O
Novo Joá O
Museu do Amanhã O
Barcas S/A C C
Nota: (C) Controle de operações; (O) Participação nas obras.
Fonte: elaboração própria, com base em dados do Relatório Anual da Comissão de
Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, em 2013.

Com as repercussões das investigações da Operação Lava Jato,


foram descobertos esquemas de corrupção envolvendo impor-
tantes intervenções urbanas propagadas como um legado dos
megaeventos, por exemplo, a reforma do Estádio do Maracanã15

os quais, Eduardo Paes, Luiz Fernando Pezão, Sérgio Cabral, Jorge Picciani e
outras figuras públicas notáveis da política do Estado do Rio de Janeiro.
15
“Ex-executivos da Andrade acusam Cabral de receber mesada de propina”,
jornal O Globo de 13 de maio de 2016.

505
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

e o Porto Maravilha, principal projeto urbanístico da prefeitura,


com o processo lici-tatório e de financiamento, através da Caixa,
sob suspeita16.
No entanto, a Odebrecht vem atuando com destaque no
Rio de Janeiro não somente através de grandes obras públicas.
Após a criação da Odebrecht Realizações Imobiliárias em 2007, a
empresa passou a investir mais no ramo da incorporação e cons-
trução. O grupo lançou mais de 4.000 unidades em variados usos,
segmentos de renda e localizações na cidade. Como demons-
trado na Figura 2, a maioria dos seus projetos foi implementada
nas mesmas áreas das intervenções urbanísticas promovidas pelo
grupo. Nesses casos, a terra pública foi repassada para a inicia-
tiva privada como forma de compensação financeira aos seus
investimentos. Por exemplo, a construção dos edifícios comer-
ciais no Porto Maravilha (AP1), do conjunto habitacional no PAC
do Alemão na zona norte (AP3) e do condomínio de luxo (Vila
Olímpica dos Atletas) no Parque Olímpico, na Barra (AP4).

Figura 2: Mapa de grandes obras e empreendimentos lançados pelo


grupo Odebrecht (2009-2015).

Fonte: elaboração própria, com base nos dados da Gerência de Informações


Urbanísticas da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) e Associação dos
Dirigentes do Mercado Imobiliário (ADEMI/RJ).
Nota: AP1: Porto, Centro e São Cristóvão; AP2: Botafogo, Copacabana, Rocinha
e Tijuca; AP3: Ilha do Governador, Ramos, Penha, Inhauma, Méier, Irajá, Anchieta,
Pavuna, Jacarezinho, Complexo do Alemão, Maré e Vigário Geral; AP4: Barra da Tijuca,
Jacarepaguá e Cidade de Deus; AP5: Bangu, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba.
16
Informação extraída de reportagem do Portal UOL em 22 de março de 2016,
intitulada “Lava Jato aponta propina em 2ª obra mais cara da Olimpíada”.

506
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

Grupo Carvalho Hosken


Fundada pelo engenheiro Carlos Fernando de Carvalho, na
cidade do Rio de Janeiro em 1951, a Carvalho Hosken começou
como empreiteira de obras públicas, atuando em todo o país.
Nas décadas seguintes, a empresa entrou no setor imobiliário
a partir da construção de empreendimentos residenciais desti-
nados aos segmentos de média e baixa renda, com financiamento
via recursos públicos17. Inicialmente, os conjuntos habitacionais
construídos pela empresa eram financiados pelos Institutos
de Aposentadoria e Pensão (IAPs), em seguida, pelo extinto
Banco Nacional de Habitação (BNH), cuja primeira presidente,
Sandra Cavalcanti (ex-secretária de Serviços Sociais no governo
de Carlos Lacerda,1960-1965), notabilizou-se como uma das
figuras centrais para a concepção de uma política sistemática de
remoções de favelas na zona sul do Rio de Janeiro. Os valiosos
terrenos expropriados proporcionaram ao capital imobiliário
novas fronteiras de produção, beneficiando dentre outras compa-
nhias, a Carvalho Hosken, da qual Sandra Cavalcanti tornou-se
funcionária após sua saída do governo18.
Na década de 1970, a Carvalho Hosken iniciou sua especiali-
zação no segmento de alta renda, com empreendimentos residen-
ciais nos bairros mais caros da cidade, apostando na concepção
de um produto exclusivo. Com o esgotamento de terrenos com
custos acessíveis nas áreas mais valorizadas que possibilitassem
um elevado ganho de incorporação, a empresa buscou novas
áreas para a expansão do seu capital. Em 1973, por meio de
17
Informações extraídas das seguintes fontes: “Assinados os contratos para a
construção do prédio da Prefeitura de Volta Redonda”, Correio da Manhã, 4 de
maio de 1957; “Rodovia Lucio Meira – BR-57-RJ”, Diário Carioca, 31 de janeiro
de 1958; “Porto Alegre inaugura penitenciária”, Diário Carioca, 1º de feverei-
ro de 1959; “IAPETC constrói apartamento”, Diário Carioca, 4 de fevereiro de
1964; “IPASE vai construir em Jacarepaguá”, Diário Carioca, 25 de fevereiro de
1964; “CEPE-1 escolhe firma para construir apartamentos de 14 andares na Ci-
dade Nova”, Jornal do Brasil, 21 de novembro de 1967; “Belém moderna aponta
para o céu”, revista O Cruzeiro, 21 de setembro de 1968; “COHAB fluminense
começa a entregar 2.400 casas dentro de dez meses”, Jornal do Brasil, 9 de agos-
to de 1969; “Manaus tem alfândega de 18 andares”, revista O Cruzeiro, 29 de
novembro de 1972.
18
Informação extraída de reportagem do Portal UOL em 22 de março de 2016,
intitulada “Lava Jato aponta propina em 2ª obra mais cara da Olimpíada”.

507
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

sucessivas transações controversas, a Carvalho Hosken adquiriu


latifúndios urbanos na região da Baixada de Jacarepaguá, com
a compra da Barra da Tijuca Imobiliária S.A. e da Imobiliária
Curicica. Segundo Cardoso (1987, p. 234), “[o] resultado destas
operações é um patrimônio de cerca de 12 milhões de m2, na
região, em terras que abrigam [...] elevado índice de densidade
de ocupação”.
De acordo com Consentino (2015), outros três grandes
proprietários de terra da Barra da Tijuca – Pasquale Mauro,
Tjong Hiong Oei (ESTA S.A.) e Múcio Athayde (Grupo Desen-
volvimento) – tiveram estratégias semelhantes ao apostar nessa
região como uma nova fronteira de apropriação do mercado
imobiliário. Tal apropriação foi possibilitada pelos novos parâ-
metros urbanísticos e edilícios do Plano Piloto concebido pelo
urbanista Lúcio Costa, encomendado pelo governador Negrão
de Lima (1965-71).
A origem do patrimônio dos “donos da Barra” remonta a
uma polêmica transição sucessória que perdura desde o século
XIX. Ao longo dos anos, foram negociados e loteados milhões de
hectares sem qualquer controle dos cartórios e sem demarcações
precisas dos terrenos, inclusive contrariando decisões judiciais.
Embora as grandes propriedades estejam aparentemente conso-
lidadas em nome de poucos donos, ainda há inúmeras disputas
judiciais questionando a legalidade desse processo.
Apesar de uma série de denúncias de ilícitos cometidos
por esses grupos, a concentração fundiária da Baixada de Jaca-
repaguá criou o seleto grupo de bilionários que se mantém no
período atual. Em 1981, Carlos Carvalho foi apontado como
o homem mais rico do Brasil19; em 2015, reapareceu na 13a
posição20, com uma fortuna líquida de US$ 4,2 bilhões. Muitos
empreendimentos foram construídos no enorme banco de
terras da Carvalho Hosken, porém, a fortuna é mensurada
principalmente pelo que ainda há disponível para construção
na região.

19
“Os supermilionários: Carlos Carvalho o homem mais rico do Brasil”, revista
Veja, 17 de junho de 1981.
20
“Dono de empreiteira se torna 13ª pessoa mais rica do Brasil”, revista Exame,
24 de agosto de 2015.

508
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

Diferentemente das maiores empresas do setor imobiliário


do país, a Carvalho Hosken S.A. optou por seguir sob controle
familiar. Além do patriarca, os outros sócios da empresa são
seus dois filhos, Carlos Fernando Andrade de Carvalho e
Carlos Felipe Andrade de Carvalho. Segundo demonstrações
financeiras, em 2014, a empresa possuía um patrimônio líquido
de mais de R$ 15,2 bilhões, sendo cerca de R$ 1,2 bilhão em
imóveis a comercializar, concluídos ou em fase de construção.
Em toda sua história, já foram comercializados mais de 30 mil
unidades residenciais e ainda restam, de acordo com os empre-
sários, entre 2,5 e 4 milhões de metros quadrados em terrenos
para elaboração de novos projetos.
Embora possua uma receita bruta anual de cerca de R$
300 milhões, o grupo Carvalho Hosken não aparece entre os
maiores do setor. Esses expressivos números certamente justi-
ficariam a presença da empresa nos rankings nacionais e regio-
nais es-tipulados pela CBIC. Do mesmo modo, a ausência de
informações sobre ela ocorre quando analisados os dados da
ADEMI/RJ a respeito da produção imobiliária na cidade do
Rio de Janeiro. No levantamento feito nessa última, desde 1995,
constam apenas alguns empreendimentos em que a empresa
articulou-se com outras.
Por não possuir capital aberto, o grupo não necessita
demonstrar seus resultados para atrair investidores. Seu grande
ativo continua sendo o enorme estoque de terras. Na Figura 3,
pode-se observar que, além dos lotes vazios nos bairros plane-
jados já lançados, existem outras vastas áreas ainda não ocupadas
ou sequer incorporadas. Todas elas servidas pelos projetos de
mobilidade urbana dos corredores viários (TransOlím-pica,
TransOeste e TransCarioca) construídos pela prefeitura.
A atuação da Carvalho Hosken na Barra da Tijuca iniciou-
se com empreendimentos que visavam a atrair a classe média
-alta, vendendo um novo estilo de vida com apartamentos mais
amplos. Segundo a empresa, o bairro seria a zona sul “passada
a limpo”, sem violência e desordem, onde se poderia contar
apenas com a “boa vizinhança”.

509
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

Figura 3: Mapa dos empreendimentos da Carvalho Hosken e seu banco


de terras na zona oeste carioca.

Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da ADEMI/RJ e da reportagem


“Justiça é que vai dizer quem são os reis da Barra”, publicada no Jornal do Brasil, em
02 de agosto de 1981.

A partir da década de 1980, a consolidação do bairro da


Barra da Tijuca foi o foco do grupo. Com isso, ela começou
a dedicar-se à realização de projetos, preponderantemente,
a megaempreendimentos de condomínios fechados. Nos
terrenos que permaneciam vazios, a Carvalho Hosken, assim
como outras companhias, entravam com a licença prévia
apenas com o intuito de garantir o direito de construir no
futuro, com base em uma legislação mais permissiva. Dessa
forma, além dos conflitos fundiários, a atuação do mercado
imobiliário na região foi marcada por disputas que envolviam
o potencial construtivo dos terrenos.
Lançado no início da década de 1990, logo após o anúncio
da construção da Linha Amarela, o primeiro “bairro planejado”
foi o Rio 2, fruto de uma parceria entre a Carvalho Hosken, cons-
trutora e proprietária do terreno, e a Encol, construtora e incor-
poradora. No entanto, após dificuldades financeiras e falência da
parceira, a Carvalho Hosken foi obrigada a assumir a totalidade
da construção nessa primeira fase do empreendimento. Nas
etapas seguintes, buscou outras empresas para assumir o investi-

510
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

mento conjuntamente, como a Calper, CHL, Mozak, Rossi, CR2,


Helbor, Cyrela, Pactual e Calçada.
Seguindo a mesma estratégia, a Carvalho Hosken lançou,
em 2002, o projeto de condomínio de luxo Península. A proposta
do empreendimento ocupou uma grande área verde, ambiental-
mente frágil, e gerou diversas polêmicas. Depois de sucessivas
reviravoltas no processo, a empresa venceu a disputa pela cons-
trução de centenas de edifícios de 18 pavimentos em decisão final
da justiça. O empreendimento contou com a parceria de diversos
outros promotores imobiliários (Calçada, Cyrela, Opportunity,
Gafisa, Multiplan, Canopus, Via, Comasa, Rio Massa, MDL e
Cycohrp). Em seguida, apostando no conceito dos bairros plane-
jados, foi criado o empreendimento Cidade Jardim (em 2006),
com as empresas Cyrela, Helbor e CR2, e, posteriormente, o
Centro Metropolitano (em 2008), com a Cyrela.
Interessante observar a articulação que se repete nas fases
de incorporação, construção e comercialização desses grandes
empreendimentos. Proprietária do terreno, a Carvalho Hosken,
em busca de um investimento maior de capital, costuma associar-
se a outras empresas para que elas possam construir os edifícios e
comercializar suas unidades. Apenas em 2010 o grupo criou uma
imobiliária própria, CH Barra Consultoria Imobiliária Ltda. No
caso dos bairros planejados, grandes glebas servem de reserva para
futura incorporação, conformando um mecanismo especulativo,
de controle de oferta e de expectativa de maiores ganhos futuros.
Desde os anos 2000, o grupo Carvalho Hosken passou a
investir na relação de parceria com o poder público para a conso-
lidação da Barra da Tijuca como o maior polo de crescimento
imobiliário da cidade. A empresa passou a executar intervenções
paisagísticas, de iluminação pública, anéis viários, dragagem da
lagoa, sistema de captação de esgoto, dentre outras obras, com
o objetivo de valorizar os próprios empreendimentos. Em certos
casos, a empresa foi obrigada a executar as obras como medida
de compensação, porém, foram propagandeadas como um bene-
fício da companhia concedido ao bairro, devido a uma suposta
ausência do poder público.
Sob tais circunstâncias, surge a imagem de Carlos Carvalho
como o grande mecenas da Barra da Tijuca. O empresário,

511
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

além de promover as intervenções urbanísticas, doou do monu-


mento dos Jogos Panamericanos até viaturas e estande de tiros
ao batalhão policial local. Carlos Carvalho foi uma das poucas
figuras chamadas para compor o Conselho da Cidade, fórum
auxiliar de revisão e acom-panhamento do Plano Estratégico da
Prefeitura, tanto na gestão de Cesar Maia quanto na de Eduardo
Paes. Sua empresa foi uma das principais financiadoras das
campanhas eleitorais de ambos.
Em 2009, quando o ex-subprefeito dos bairros da Barra da
Tijuca e Jacarepaguá, Eduardo Paes, historicamente ligado aos
interesses do setor imobiliário local, tomou posse como prefeito
do Rio de Janeiro, a empresa ganhou ainda mais notoriedade.
Naquele mesmo ano, com a eleição do Rio de Janeiro como cidade-
sede dos Jogos Olímpicos 2016, a Carvalho Hosken foi uma das
principais beneficiadas. A implantação dos corredores viários
(BRTs) e a proposta de concentração da maioria dos equipamentos
para o evento na região da Barra favoreceram, sobretudo, o grande
proprietário de terras, que também se beneficiou com a realização
de duas PPPs diretamente ligadas aos Jogos Olímpicos.
No caso da PPP da Vila Olímpica, enquanto a prefeitura
foi encarregada de investir nas intervenções de infraestrutura, a
Odebrecht e a Carvalho Hosken, com financiamento de R$ 2,33
bilhões da Caixa, ficaram responsáveis por construir em uma
área de cerca de 900 mil m2, 31 prédios, totalizando 3.604 apar-
tamentos da Vila dos Atletas21. Com o término do evento interna-
cional, esse empreendimento passou a ser comercializado como
de alto luxo, chamado Ilha Pura, com expectativa de render cerca
de R$ 4 bilhões em vendas. Quando questionado sobre o legado
social da operação, em entrevista à BBC, em 11 de agosto de
2015, intitulada “Como é que você vai botar o pobre ali, diz bilio-
nário dono da Barra”, Carlos Carvalho classificou a iniciativa da
seguinte forma:

nós achamos que isso é que é fazer o lado social: ter a inte-
ligência de gerar conforto para aqueles que podem usufruir
dele. Se não as pessoas ficam só desejando, mas nunca che-

21
“Imóveis da Vila dos Atletas sofrem reformas e serão entregues em junho”,
Valor Econômico, 19 de março de 2017.

512
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

gam lá. Temos que fazer com que aquilo seja um encanta-
mento, que faça com que muitas pessoas melhorem de vida
para poderem usufruir. A Ilha Pura vai ter os Jardins do Rei.
Nós vamos transformar todo mundo em rei.

No que diz respeito à outra PPP, a Carvalho Hosken


compõe o consórcio Rio-Mais, junto com os grupos Odebrecht
S.A. e Andrade Gutierrez, vencedor da licitação para construir
o Parque Olímpico com o financiamento da Caixa de R$ 1,4
bilhões22. A grande área que era ocupada pelo Autódromo de
Jacarepaguá e por moradores da Vila Autódromo abrigou um
hotel, um centro de imprensa e diversos equipamentos espor-
tivos. Encerrados os jogos, esse imenso terreno doado pelo
poder público foi convertido em um enorme condomínio.
Ao contrário do que foi proposto por um projeto vencedor
de concurso internacional para o local, a Vila Autódromo foi
quase totalmente removida. Dentre as quase 700 famílias que
viviam ali, menos de 30 ainda permanecem na comunidade
através de muita resistência. Embora com grande estoque
de terras, para o empresário, a eliminação dos indesejáveis
continua sendo uma condição primordial para a valorização
pretendida da Barra da Tijuca.

Considerações finais
Neste artigo foram enfatizadas as potencialidades do refe-
rencial analítico dos grupos econômicos para o entendimento
das complexas lógicas dos processos político-econômicos de
urbanização múltipla, desigual e socialmente injusta. A análise
das trajetórias de atuação dos grupos econômicos Odebrecht
S.A. e Carvalho Hosken na cidade do Rio de Janeiro buscou
compreender e identificar suas estratégias de acumulação urbana.
Apesar de suas distintas estruturação organizacional e atuação
escalar, esses grupos foram escolhidos por sua centralidade na
acumulação urbana da cidade do Rio de Janeiro. Historicamente,
foram responsáveis pela realização de grandes obras de infraes-
22
“Caixa libera financiamento de R$ 1,4 bilhão para Parque Olímpico”, O Globo,
2 de junho de 2015.

513
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

trutura e pela orientação dos vetores de incorporação imobiliária


e, mais recentemente, pela construção dos equipamentos espor-
tivos e dos demais projetos estruturantes para os megaeventos.
Desse modo, foi possível observar como os dois grupos
econômicos não apenas se beneficiaram amplamente das polí-
ticas de crescimento e de infraestrutura e da valorização imobi-
liária delas resultante, mas também atuaram intensamente na
imposição de mudanças regulatórias e institucionais favoráveis a
seus interesses. Isso ocorreu especialmente por meio de relações
não republicanas com o setor público, denunciadas por opera-
ções judiciais.
Além do lucro com as grandes intervenções urbanas, foram
beneficiados pelos efeitos sobre a valorização do solo e preços
imobiliários. Em suas operações, aliaram-se a promotores imobi-
liários locais e, em alguns casos, representaram uma fração
considerável dos proprietários fundiários. Com isso, destacou-
se sua centralidade na articulação e coordenação de estratégias
de diversos agentes da produção do espaço urbano. Do mesmo
modo, a análise permitiu observar como os grupos econômicos
moldam o padrão da acumulação urbana e ao mesmo tempo
adaptam-se às dinâmicas locais. Entretanto, algumas particulari-
dades na estruturação organizacional e na atuação desses dois
grupos foram observadas.
No caso da Odebrecht, trata-se de uma holding familiar, prin-
cipal grupo da construção civil do país, cuja atuação se expande
ao longo do tempo para múltiplas escalas espaciais, desde a
internacional até a local/intraurbana. Em sua trajetória, foram
centrais os contratos públicos para a construção de obras de
infraestrutura. No período mais recente, sua atuação foi ampliada
para diferentes segmentos, tais como agroindústria, imobiliário,
transporte, defesa e tecnologia e concessões públicas. Diante
dos objetivos deste artigo, cabe destacar que suas estratégias de
acumulação urbana foram intensificadas nesse mesmo período.
Embora tenha realizado importantes obras urbanas em períodos
anteriores no Rio de Janeiro, recentemente, esse grupo tornou-
se responsável por Operações Urbanas Consorciadas, concessio-
nárias de transportes, obras de saneamento, arenas esportivas,
dentre outras atividades. Conforme demonstrado, participou de

514
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

vários contratos públicos que envolveram as principais interven-


ções urbanas da cidade. Para tal, foram importantes os consórcios
com outros grupos, o acesso a financiamento via bancos públicos
(BNDES e Caixa), a influência política consubstanciada em PPPs
e as concessões, bem como o financiamento de campanhas polí-
ticas. Também ampliou investimentos no ramo da incorporação e
construção imobiliária, articulando-se, inclusive, ao outro grupo
estudado, Carvalho Hosken.
O grupo Carvalho Hosken, por sua vez, diferentemente dos
demais do setor imobiliário no país, segue sob controle familiar,
é especializado no segmento de empreendimentos residenciais
de alta renda e tem atuação na escala local. Em sua trajetória
na cidade do Rio de Janeiro, tendo em vista seus negócios prin-
cipais, destacam-se o conhecimento do mercado e a influência
sobre o jogo político local, conferindo-lhe capacidade estratégica
de antecipar vetores prospectivos do crescimento de parte sig-ni-
ficativa do tecido urbano da cidade. Entretanto, a acumulação
de amplo estoque de terras na zona oeste carioca é a estratégia
mais significativa. Como proprietário dos terrenos, esse grupo
costuma associar-se a outras empresas na construção dos edifí-
cios e comercialização de suas unidades. Seu enorme banco de
terras funciona como reserva para futura incorporação, cons-
tituindo-se em importante mecanismo de controle e de ganhos
especulativos.
Em ambos os casos, foram ilustrados aspectos importantes
do conceito de grupo econômico como centro de poder, para
dentro e para fora do grupo. Dentre os mais relevantes, estão as
relações com o Estado, que foram mais de estímulos à acumulação
urbana dos grupos econômicos do que de limitações, muitas
vezes transbordan-do as fronteiras entre o lícito e o ilícito. Apesar
da identificação das particularidades dos grupos, predominaram
práticas e lógicas fundiárias e patrimonialistas, em consonância
com a trajetória histórica da acumulação capitalista no Brasil.
Certamente, os casos analisados neste artigo demandam estudos
futuros mais aprofundados, considerando tanto a centralidade do
grupo Carvalho Hoskem na produção do espaço carioca como os
desdobramentos das operações judiciais enfrentadas pelo grupo
Odebrecht para sua estratégia de acumulação urbana.

515
Lucas Faulhaber e Hipolita Siqueira

Por fim, cabe considerar o caráter desigual e injusto desse


ciclo de acumulação urbana pautado pela atuação desses grupos
econômicos. O mapa das remoções forçadas de população coin-
cidiu com o das grandes intervenções urbanas e dos lançamentos
imobiliários. Embora não seja a proposta central de abordagem
deste artigo, é preciso ressaltar que isso ocorreu em uma metró-
pole já bastante desigual e segregada em termos socioespaciais,
na qual são muito acirradas as disputas em torno do ambiente
construído.

Referências
ABRAMO, P. A dinâmica imobiliária: elementos para o entendimento
da espacialidade urbana. Dissertação (Mestrado), IPPUR/UFRJ, Rio de
Janeiro,1988.
ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas.
In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento
único. Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 11-73.
BRENNER, N.; SCHMID, C. La “era urbana” en debate. Eure, v. 42, n. 127,
p. 307-339, set. 2016.
CAMPOS, P. H. P. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a
ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Editora da UFF, 2014.
CAPEL, H. Agentes y estrategias en la producción del espacio urbano
español. Revista de Geografía, Barcelona, v. VII , n. 1-2, p. 19-56, 1974.
CARDOSO, A. L. O espaço do capital: a Barra da Tijuca e a grande
promoção imobiliária. In: RIBEIRO, L. C. Q. Produção imobiliária e uso
do solo urbano: estudos das relações entre capital e propriedade. Rio de
Janeiro: IPPUR/ UFRJ, 1987.
COSENTINO, R. Barra da Tijuca e o projeto olímpico: a cidade do capital.
Dissertação (Mestrado), IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.
COX, K. Revisiting ‘the city as a growth machine’. Cambridge Journal of
Regions, Economy and Society, v. 10, n. 3, 14, p. 391-405, oct., 2017.
FIX, M. A. B. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário
no Brasil. Tese (Doutorado) – IE/UNICAMP, Campinas, SP, Brasil, 2011.
GONÇALVES, R. Grupos econômicos: uma análise conceitual e teórica.
Revista Brasileira de Economia, v. 45, n. 4, p. 489-656, out./dez. 1991.
HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: HUCITEC, 1980.
LOGAN, J. R.; MOLOTCH, H. Urban Fortunes: the political economy of
place. Berkeley: University of California Press, 1987.

516
Grupos econômicos e acumulação urbana na cidade do Rio de Janeiro:
Odebrecht e Carvalho Hosken

MARQUES, E. De volta aos capitais para melhor entender as políticas


urbanas. Novos Estudos Cebrap, v. 35, n. 2, p. 15-33, julho 2016.
MOLOTCH, H. L. City as a Growth Machine. American Journal of Sociology,
82, n. 2, p. 226-238, 1976.
OXFAM. A distância que nos une. Um retrato das desigualdades brasileiras.
OXFAM Brasil, 2017.
PORTUGAL, J. P. (Coord.) Grupos econômicos: expressão institucional da
unidade empresarial contemporânea. São Paulo: FUNDAP/IESP, 1994.
RIBEIRO, L. C. Q. Dos cortiços aos condomínios fechados. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira,1997.
RIBEIRO, L. C. Q. (Ed.). A metrópole do Rio de Janeiro na transição da ordem
urbana brasileira: 1970/2010. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
ROYER, L. O. Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas.
São Paulo: AnnaBlume Editora, 2014.
SÁNCHEZ, F.; BRODEHOUX, A. M. Mega-events and urban regeneration
in Rio de Janeiro: planning in a state of emergency. International Journal of
Urban Sustainable Development, v. 5, n. 2, p. 132-153, 2013.
TAVARES, M. C. T. Acumulação de capital e industrialização no Brasil.
Campinas: Editora da Unicamp, 1986.
TOPALOV, C. La urbanización capitalista: algunos elementos para su
análisis. México: Edicol, 1979.

517
Arranjos Multiescalares da atividade
imobiliária e a (re)produção da metrópole

Alexandre Yassu

Introdução

A importância do setor imobiliário para acumulação


capitalista já foi destacada por Lefebvre1 quando ele
afirma que o circuito secundário (imobiliário), pela sua capa-
cidade de absorver excedentes de capital do circuito primário
(indústria), cumpriria o papel de deslocar temporalmente as
crises capitalistas, de sobreacumulação, e bloquear tempora-
riamente a queda tendencial da taxa de lucro, através de ciclos
de urbanização. Harvey2 acrescenta que a transferência entre
os circuitos processa-se através do sistema de crédito e dos
agentes financeiros. Esse movimento foi chamado, em inglês,
de capital switching. O momento atual de financeirização da
economia seria a exacerbação desse movimento, a partir da
compreensão que a hegemonia financeira, que transforma
o Estado, a empresa e o trabalho, manifesta-se em massas
de capital-dinheiro à procura de valorização fictícia. Desse
modo, são os canais e dutos do sistema financeiro que operam
essa transferência entre os circuitos. São as redes sociotéc-
nicas que conectam agentes, mecanismos e territórios em
distintas escalas.
Essas redes que articulam fluxos de capitais a espaços
na metrópole são estruturas fundamentais da financeirização
do setor imobiliário e na produção do espaço metropolitano
na contemporaneidade. Assim, neste artigo, apresentamos
algumas operações destas redes na região metropolitana de
São Paulo. Entretanto defendemos, a partir da constituição

1
Lefebvre ([1970] 2008).
2
Harvey (1996, 2005, 2013).

519
Alexandre Yassu

social das escalas espaciais, que essas redes, ao criar novos


vínculos entre escalas, não são estruturas estáticas, perenes ou
imutáveis e nem têm o poder de controlar, em direção única os
processos, ao contrário, são arranjos temporários, instáveis e
contraditórios, que criam vínculos e sofrem tensões em múlti-
plas escalas na busca de uma articulação estável que permita a
acumulação ocorrer.
As metrópoles brasileiras passaram, na última década, por
uma explosão da atividade imobiliária, fruto do contexto
macroeconômico favorável, da disponibilidade de crédito via
fundo público e da financeirização do setor, que intensificaram
as desigualdades socioespaciais e a privatização do espaço.
Esta conjuntura trouxe novos agentes para as dinâmicas de
produção capitalista do ambiente construído. Neste momento,
no Brasil, são as grandes incorporadoras nacionais, os fundos
imobiliários e os agentes globais (ROLNIK; SANTORO, 2017),
articulados ao Estado e ao Fundo Público, que protagonizam
esse processo e conduzem a expansão das fronteiras da ativi-
dade imobiliária financeirizada. Expansão que ocorre em
várias direções: para as bordas da metrópole, para as cidades
médias (MELAZZO, 2013), para outras regiões do país e para
outros segmentos de classe. Esses protagonistas são conectados,
em grande parte, aos agentes do sistema financeiro nacional
e global, como investidores institucionais, fundos mútuos,
bancos de investimento e etc. Esse conjunto de agentes forma
o quadro principal da financeirização do setor.
Neste trabalho pretendemos entender algumas dimensões
do que a financeirização é, através do estudo de seus agentes,
do seu funcionamento interno e de seus elementos constitu-
tivos, em um foco distinto de muitos trabalhos que se concen-
tram no que ela faz, nos seus impactos e nas suas consequências
em diversas dimensões. Portanto, almejamos entender alguns
aspectos de como ela se constitui socialmente, para apontar
algumas particularidades desse processo no Brasil. Para isso,
é necessário entender o modo de operação dos agentes que
protagonizam esse processo, suas formas de atuação e suas
estratégias. Além disso, é necessário identificar como se esta-
belecem as novas conexões, que intensificam as relações entre

520
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

agentes localizados em escalas distintas, que acontecem por


meio de extensas e intrincadas redes (SWYNGDOUW, [1997],
2017). Portanto, é desvendar alguns caminhos por onde
ocorre um rearranjo dos vínculos escalares que conduzem
as dinâmicas de produção da metrópole (SANFELICI, 2013,
2015; HALBERT; ROUANET, 2013).
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é, através do estudo
da atividade imobiliária na cidade de Cajamar, na Região Metro-
politana de São Paulo (RMSP), compreender como ocorrem
as articulações em múltiplas escalas na condução de negócios
imobiliários. Cajamar recebeu, na última década, uma intensa
atividade imobiliária, através de empreendimentos residen-
ciais e, principalmente, logísticos. Essas atividades colocam
Cajamar como uma nova localização de oferta residencial
em escala metropolitana, nos empreendimentos do Portal
dos Ipês, e transforma a cidade no principal polo logístico
da RMSP. Esse processo alterou, profundamente, a paisagem
do município e foi conduzido por grupos econômicos nacio-
nais e internacionais ligados ao sistema financeiro. Portanto,
aqui, sublinhamos a atuação de novos agentes, localizados em
múltiplas escalas, que em consonância com Sanfelici (2013,
2015) estão promovendo o rearranjo escalar do processo de
urbanização. Além de corroborarmos com a tese de Sanfelici,
a contribuição deste trabalho é sublinhar que para ocorrer
esse rearranjo escalar foram necessários dois fatores: as arti-
culações estabelecidas com o agente local ligado à proprie-
dade fundiária e o papel do grupo econômico, com seu poder
político e econômico, conduzindo o arranjo multiescalar de
agentes em torno de um projeto comum.
Este artigo se organiza em três partes. Na primeira abor-
damos a financeirização do setor imobiliário nacional e a
cidade de Cajamar. A segunda parte faz um panorama do
debate das escalas espaciais. Na terceira, nos debruçamos
sobre os arranjos multiescalares que conduziram atividade
imobiliária em Cajamar, e fechamos com algumas considera-
ções finais.

521
Alexandre Yassu

A financeirização do setor imobiliário e a cidade


de Cajamar

Mapa 1 – Mapa da Macrometrópole Paulista, em destaque


o município de Cajamar.

Fonte: Google Maps (2018); elaboração: Maíra Fernandes

A financeirização da atividade imobiliária no Brasil3, assim


como em outros países (AALBERS, 2008; VAN LOON; AALBERS,
2017), prescinde de uma arquitetura regulatória que viabilize a
flexibilização da propriedade fundiária e sua transformação em
ativo financeiro. Aqui, essa arquitetura regulatória, no setor
imobiliário, desenvolve-se a partir dos anos 1990, com a criação
do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e dos Fundos de Investi-
mento Imobiliário (FII), ampliando as formas de financiamento
do setor e disseminando novos produtos financeiros a partir da
securitização de dívidas lastreadas em propriedades imobiliárias.
Ela cria um primeiro arcabouço regulatório alinhado a interesses
de grupos nacionais (ROYER, 2008) e aos parâmetros internacio-
nais disseminados pelo Banco Mundial, que visam normatizar e
homogeneizar os mercados. Uma adequação dos produtos, das

3
Fix (2011), Botelho (2005), Sanfelici (2013), Rufino (2012), Shimbo (2010), Royer
(2009), Volochko (2011), Tone (2016), Sigolo (2014).

522
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

práticas e dos procedimentos aos interesses de agentes privados


nacionais e em diálogo com o padrão conhecido, também,
pelos investidores internacionais. Um primeiro salto de escalas,
saindo, estritamente, do âmbito local ao flexibilizar a proprie-
dade fundiária, permitindo-a circular nos mercados de capitais.
Inicia-se, também, neste período a entrada de incorporadoras
estrangeiras no setor de lajes corporativas em São Paulo. Esse
movimento atinge outro patamar a partir de 2006-2007 com
a abertura de capital das empresas do setor, as incorpora-
doras, que atraem bilhões de reais em recursos, de investidores
nacionais e internacionais, gerando novo salto de escalas. As
transformações das incorporadoras prosseguem num período
subsequente de fusões e aquisições, conformando um cenário
de grandes incorporadoras de atuação nacional e até interna-
cional. Assim, a financeirização do imobiliário no Brasil pode
ser dividida em dois momentos4 mais definidos, dois saltos esca-
lares (SANFELICI, 2013): um primeiro período que se inicia
com as novas regulações do SFI e na formação de fundos imobi-
liários. Período marcado por investimentos altamente concen-
trados em lajes corporativas em São Paulo e na cidade do Rio
de Janeiro. Em 2007, inicia-se um segundo momento, ligado à
abertura de capital das incorporadoras e a expansão do crédito
com recursos do FGTS5 e SBPE6, atingindo outro patamar em
2009 com o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). Poste-
riormente, em 2014, instala-se uma crise político-institucional
e econômica no país, que, também, atinge o setor imobiliário.
A partir de 2018, com a progressiva baixa da taxa de juros,
chegando em 2019 a cerca de 5% a.a. nominalmente, agentes
do setor anunciam uma possível retomada da atividade imobi-
liária, levando algumas incorporadoras a fazer novas captações
de recursos no mercado de capitais por meio de nova emissão
de ações e de certificados recebíveis imobiliários (CRI), entre-
tanto este período ainda foi pouco estudado.

4
Articulado, de algumas formas, a essa periodização está o processo de neoli-
beralização do planejamento urbano pela disseminação de operações urbanas
consorciadas e os projetos urbanos (STROHER, 2019).
5
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
6
Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo.

523
Alexandre Yassu

Nesse segundo momento, iniciado em 2009, é um ponto


comum de uma série de pesquisas sobre as transformações da
atividade imobiliária no Brasil o avanço do setor sobre novas
áreas da cidade e para outras regiões do país. As incorporadoras,
recém-capitalizadas, pressionadas para entregar resultados aos
novos investidores e, nesse momento, com farta disponibilidade
de recursos, iniciam um processo de expansão. Uma expansão
em variadas dimensões. É uma expansão regional, de segmento
social de mercado e de novos produtos.
A atividade imobiliária de Cajamar, objeto empírico deste
trabalho, se encontra numa área de expansão na periferia metro-
politana, entretanto essa dimensão será pouco abordada. Na
RMSP tal movimento já havia sido diagnosticado por diversos
autores7, indicando a entrada de grandes grupos através de
diversos tipos de empreendimentos (loteamentos residenciais,
condomínios residenciais verticais e galpões logísticos), trans-
formando a paisagem da periferia metropolitana, marcada pelo
casario residencial, intensificando a privatização do espaço e
produzindo novos padrões de segregação socioespacial.
A recente e intensa dinâmica imobiliária em Cajamar reuniu
agentes globais em negócios no município, tendo, em pouco mais
de oito anos, alterado profundamente a paisagem da cidade.
Contudo, como veremos, este estudo é menos sobre Cajamar e
mais sobre as dinâmicas de reprodução do espaço metropolitano.
Não que a escala do município não seja relevante, mas, nesse
caso, ela é considerada através de sua articulação às diversas
escalas que atuaram nessa reconfiguração do município.
Cajamar é um pequeno município, com cerca de 70 mil
habitantes, localizado no eixo noroeste da RMSP, nas margens
das rodovias Anhanguera e Bandeirantes, que levam à Região
Metropolitana de Campinas. A cidade, a partir de 2004, passa
por grandes transformações promovidas pelo setor imobiliário.
Nesse período a cidade também passou pelo boom imobiliário no
setor residencial que ocorreu no país e se tornou o principal polo
logístico da RMSP.
No setor residencial a cidade recebeu três grandes incor-
poradoras de capital aberto na produção de quase cinco mil
7
Volochko (2011), Tone (2016), Sigolo (2014), Rolnik e Santoro (2016).

524
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

unidades habitacionais no distrito de Polvilho, no loteamento


Portal dos Ipês, confirmando os apontamentos de Rufino (2016)
sobre a dispersão da produção das grandes incorporadoras para
a periferia metropolitana. São grandes torres de apartamentos
com mais de 20 andares, em condomínios-clube, nas margens
da metrópole, numa paisagem que é composta, até hoje, por um
casario simples, típico da periferia metropolitana e a mata da
Serra do Japi. A maior protagonista desse processo foi a Brook-
field Incorporadora (BI) – hoje TEGRA –, propriedade do grupo
canadense Brookfield Asset Mannegement, uma grande gestora de
ativos multinacional. As incorporadoras HM, da empreiteira
Camargo Corrêa, e a MRV foram outras que produziram unidades
habitacionais no município. Aqui vamos analisar a atuação da BI,
pois sua atividade foi determinante no desenvolvimento imobi-
liário residencial na região, e a Pillar Empreendimentos, como
construtora local que teve papel-chave na viabilização de toda
essa atividade.
O setor imobiliário logístico chegou a Cajamar em 2007,
através do grupo Marabraz, na construção do primeiro galpão
logístico da cidade, nos moldes atuais do mercado logístico
A partir de então, a cidade recebeu grandes agentes globais,
conforme já apontou Rolnik (SANTORO, 2016) ao falar do
entorno do rodoanel metropolitano, na produção de gigan-
tescos galpões, transformando a cidade, em cerca de cinco anos,
no principal polo logístico da RMSP, superando as cidades de
Barueri e Guarulhos, que à época eram, até então, os principais
polos da RMSP e contavam com uma metragem de galpão muito
superior a Cajamar. Cajamar, mais especificamente o distrito de
Jordanésia, parte do zero e se torna a “Faria Lima dos galpões
logísticos”, em alusão à avenida que é um importante centro
de negócios e foco do mercado de lajes corporativas em São
Paulo. Apesar do papel importante do Grupo Marabraz, é a
joint venture Prologis/CCP que capitaneia o desenvolvimento do
setor imobiliário logístico no município, com importante parti-
cipação da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) através da
Correios Log+. Portanto, vamos nos aprofundar nos meandros
da chegada e do estabelecimento da Prologis/CCP (hoje só
Prologis) em Cajamar.

525
Alexandre Yassu

As escalas espaciais nos estudos urbanos: o setor


imobiliário e o Brasil
A reestruturação contemporânea do capitalismo, condu-
zida pelas finanças, é, também, um reescalonamento econômico
e político (SWYNGDOUW, [1997] 2018). Neste artigo vamos
explorar o reescalonamento da atividade imobiliária e da metró-
pole. Apesar de boa parte da bibliografia recente sobre escalas
tratar das transformações da espacialidade do Estado, este
debate não se restringe a isso. Ele é, sobretudo, uma reflexão
sobre a espacialidade das relações sociais no capitalismo. A
proposta de Smith ([1997] 2000) é criticar a concepção da escala
espacial (local, regional, global) como algo autoevidente, estático
e passivo, um receptáculo dos processos sociais; ao contrário, ele
propõe que as escalas são ativamente conformadas pelas relações
sociais, a partir de tensões, de disputas, de colaboração e de
convergência. A escala

[...] é produzida por estruturas geográficas de interação so-


cial […] A produção da escala geográfica é um lugar de luta
política potencialmente intensa. […] É possível conceber a
escala como uma resolução geográfica de processos sociais
contraditórios de competição e cooperação (SMITH, [1997]
2000, p.139-142).

Smith ([1997]2000) destaca o Estado-Nação “como um


compromisso territorial entre necessidades diferenciadas da
classe capitalista. […] Uma solução territorial duradoura, porém,
em última instância, temporária e historicamente específica” (p.
142). Nessa mesma linha, Brenner8 discute as mudanças recentes
do Estado articuladas às transformações da espacialidade da
acumulação capitalista, o reescalonamento do Estado. A escala
Nacional, como “compromisso territorial”, instância privile-
giada de coordenação capitalista no período fordista keyne-
siano, nos países desenvolvidos, com foco no pleno emprego e
no mercado interno, perde seu protagonismo em benefício de
escalas subnacionais, que são geridas de forma competitiva, num

8
Brenner ([2010] 2018, [2013] 2018, 2000).

526
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

ajuste às demandas do capital internacional. Uma competição


entre territórios em busca de investimento externo direto (IED).
Assim, acompanhando o movimento dos capitais internacionais
em direção a territórios específicos, ganham destaque as escalas
metropolitanas e outras escalas subnacionais de gestão estatal e
de controle das atividades capitalistas, mas isso não ocorre sem
conflitos e tensões que moldam esse reescalonamento.
Lefebvre ([1970] 2001) já afirmava que é a operação de
múltiplas redes de controle sobre o território que conduzem à
implosão-explosão das formas urbanas e das escalas pretéritas.
Essas redes são as ferramentas para a expansão da urbanização
em um novo patamar, em uma multiplicidade de novas escalas.
São elas que operam os fluxos de capital do circuito primário
ao secundário, e que levariam até o protagonismo do segundo,
tornando a urbanização o centro da acumulação capitalista. A
partir da leitura de Lefebvre, Brenner ([2010] 2018) defende que
“o urbano não é somente o nível onde hierarquias supra urbanas
se aninham e sim o produto de uma densa redeinterescalar,
conectando localizações geográficas dispersas” (BRENNER,
2000, p. 366, tradução nossa). A partir dessa afirmação, nos ques-
tionamos sobre como se encadeia, no processo físico da urbani-
zação, essa “densa rede interescalar” em busca de rendas e lucros?
Para nos embrenharmos nas dificuldades de tecer uma resposta
a essa pergunta pensamos as escalas, do ponto de vista meto-
dológico: “Aceitamos que a escala é um instrumental metodoló-
gico [...] que nos permite adentrar na identificação de agentes e
processos no território com fins de explicitar redes de relações”
(VELASQUEZ, 2018).
Esse instrumental nos auxilia a entender como, a certa altura,
os interesses se cristalizam e voltam a se reorganizar a partir da
emergência de um novo ator, ou de uma tensão entre forças,
fruto das relações interescalares estabelecidas. É uma forma de

[...] analisar os caminhos e trajetórias contextualmente variá-


veis através das quais as configurações urbanas estão sendo
reescalonadas, decifrar diversas estratégias políticas, forças
sociais e alianças territoriais que se mobilizam em torno, ou
contra, estratégias particulares para reorganizar as escalas dos
processos de urbanização (BRENNER, [2013] 2018, p. 129).

527
Alexandre Yassu

Esse conjunto de alianças e estratégias constitui o que


estamos chamando de arranjos multiescalares, que são sempre
instáveis, flexíveis, temporários e historicamente determinados.
Portanto, é através do estudo da formação desses arranjos que
pretendemos explorar as transformações do setor imobiliário.

O setor imobiliário e as escalas


O setor imobiliário, por produzir uma mercadoria especí-
fica, a mercadoria imobiliária, que, como um bem durável ela
demanda uma grande soma de recursos para sua produção e
para sua circulação, exige um longo prazo para sua produção e
sua depreciação é lenta, ou seja, ela possui uma liquidez parti-
cular. Nesse sentido, é, historicamente, dependente do sistema
de crédito para sua produção e para sua circulação. Mas, apesar
de compartilhar essas características, ela difere de outros bem
duráveis, pois, na sua produção a propriedade da terra é um
insumo e é “embutida” nessa mercadoria (TOPALOV, 1977;
JARAMILLO, 1980; RIBEIRO, 1997). Isso torna específica essa
mercadoria, pois a terra é um bem que não tem valor, por não
ser produzido pelo homem, mas, possui um preço, a renda
fundiária, que, sem lastro em um valor, é um valor fictício,
sujeito à especulação e outras convenções sociais para sua
precificação. Portanto, por se valorizar de maneira fictícia, essa
mercadoria é propícia a se constituir como um ativo financeiro
(HARVEY, 2003). Entretanto, de maneira contraditória, possui
uma liquidez particular que travaria a acumulação no setor.
Então, como ajustar esse objeto fixo aos fluxos de capital? As
formas de resolver esse problema são parte da especificidade da
forma como se organiza a atividade imobiliária e tem impacto
direto no processo de acumulação de capital do setor. Assim,
para a financeirização do setor é fundamental a superação dos
problemas da circulação dessa mercadoria para transformá-la
em um ativo financeiro dotado de liquidez. Isso ocorre através
da construção de uma arquitetura regulatória, que normatize
e regularize os processos e procedimentos de flexibilização da
propriedade fundiária.
Somado a isso, devido à relevância da propriedade da terra
no funcionamento desse circuito, como fonte dos ganhos especu-

528
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

lativos materializados na renda fundiária, os mercados imobiliá-


rios são muito mais fragmentados geograficamente que outros,
pois estes guardam uma dimensão territorial irredutível, a escala
local, em configurações socioespaciais existentes. Por isso, a
expansão do setor imobiliário sobre outros mercados depende da
criação de vínculos com a escala local (SANFELICI, 2013, 2015).
Uma reafirmação de que o local importa, frente ao discurso hege-
mônico da globalização (MASSEY, 2000; SMITH, [1997] 2000;
BRENNER, 2018; SWYNGEDOUW, [1997] 2018). Portanto, é
necessário de um lado uma arquitetura regulatória, que facilita
a articulação entre escalas, e de outro uma complexa gama de
agentes financeiros, que através de suas práticas, métricas e
procedimentos (AALBERS, 2008) operam os arranjos multiesca-
lares, para uma melhor coordenação do movimento das massas
de excedentes à procura de novos espaços para capturar rendas
imobiliárias.
Sanfelici (2013) vale-se da perspectiva das escalas para analisar
as transformações recentes no setor imobiliário brasileiro.

[O autor destaca que] o êxito maior ou menor das finanças


em extrair rendimentos do processo de produção do espaço
urbano depende da eficácia na construção de vínculos mais
duradouros entre agentes, processos e estruturas que predo-
minam e/ou privilegiam diferentes escalas geográficas. […]
Com isso em vista, pode reler a financeirização do circuito
imobiliário examinando a natureza dos elos e relações escala-
res construídos (SANFELICI, 2013, p. 7).

Essas formulações dialogam com os trabalhos de Halbert (;


ROUANET, 2013; RUTHERFORD, 2012) sobre negócios imobi-
liários na Índia. Os autores orientam-se por dois pontos princi-
pais: primeiro, pela grande importância do que eles chamam de
agentes locais-regionais para os negócios imobiliários; e, segundo,
pela teoria do ajuste espacial de Harvey (2005), com um foco nas
redes sociotécnicas que operam esse ajuste.
Esses trabalhos também tecem uma crítica à dicotomia entre
global/local, presentes nos debates sobre globalização, através
de um paralelo com a dicotomia entre os fluxos e os lugares.
Para os autores, os lugares e fluxos se constituem mutuamente

529
Alexandre Yassu

na comutação9. Não existem fluxos sem origem e destino: no


destino o fluxo encontra seu uso e na origem se desenham suas
estratégias. Portanto, os autores defendem que a comutação é o
“coração” da produção do urbano contemporâneo. Dessa forma,
destaca-se o papel das cidades e das Tecnologias da Informação e
da Comunicação (TIC) na globalização como pontos que emitem
e recebem diversos tipos e volumes de fluxos. As cidades, então,
sob essa perspectiva, modelam os fluxos e são modeladas por eles
na comutação, pela concentração de grupos multinacionais e de
redes de informação.

Os arranjos multiescalares e a (re)produção


da metrópole
A partir desse arcabouço, esta pesquisa consiste em identi-
ficar o processo de constituição dos arranjos multiescalares que
conduziram a atividade desses grupos em Cajamar. Portanto, utili-
zamos esse instrumental como uma forma de compreender a cons-
tituição da financeirização do setor imobiliário e como o processo
de urbanização está sendo reescalonado (BRENNER, [2010]
2018). Aqui, nós faremos uma abordagem das escalas diversa da
que foi empreendida por Sanfelici (2013,2015), que se debruçou
sobre a arquitetura regulatória e sobre as tensões na constituição
de novos vínculos escalares estabelecidos por algumas incorpo-
radoras, do ponto de vista da coordenação econômica. O autor
procurou explorar, principalmente, como se deu a relação inte-
rempresarial, entre incorporadoras nacionais e locais. Não aban-
donamos os aspectos regulatórios, nem as relações interempresa-
riais, mas nós nos concentraremos em dois fatores: i) o agente local
e a propriedade da terra; ii) os grupos econômicos e seu poder
político e econômico sobre um amplo leque de agentes, em torno
de um projeto comum. Tomamos como base esses dois eixos por
entender que eles capturam as articulações multiescalares em dois
momentos: i) a entrada e a viabilidade do empreendimento, ligado
ao agente local; ii) as articulações em torno do projeto comum,

9
O autor empresta o termo do meio informacional, onde comutação significa a
simultaneidade da mobilização de pontos para a passagem de fluxos.

530
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

comandada pelo grande grupo, que pode apresentar diversas


temporalidades, diferentes vínculos com suas tensões e suas estra-
tégias. Portanto, é a partir desses dois eixos que iremos apresentar
a atividade imobiliária em Cajamar.

Mapa 2 – Cajamar e a atividade imobiliária estudada em destaque.

Fonte: Google Earth – Elaboração própria.

Os grupos econômicos e a condução do projeto comum


As empresas envolvidas no desenvolvimento imobiliário de
Cajamar são multinacionais com capital aberto, com diversos
ramos de atuação e com grande capacidade financeira e produ-
tiva e que possuem formas particulares de atuar no mercado.
Portanto, julgamos relevante somar ao debate de escalas e sua
aplicação para os estudos da atividade imobiliária, o conceito
de grupos econômicos10, como a forma de organização empre-
sarial predominante no capitalismo contemporâneo. Esses
10
Grupos econômicos (PORTUGAL JÚNIOR, 1994) são a expressão contempo-
rânea da grande empresa capitalista. Estão sob controle do capital financeiro,
são multissetoriais e têm como foco a acumulação de capital e poder.

531
Alexandre Yassu

grupos, orientados sob a lógica financeira, têm na centralização


de capitais a sua estratégia de expansão, que se reflete numa
gestão patrimonial da empresa, assim, passam a diversificar seus
ramos de atuação pela fusão e aquisição, operando através de
uma lógica de portfolio de negócios. Portanto, o capital finan-
ceiro é o centro de comando dos grupos econômicos. “Tais
empresas ampliam, então, as relações patrimoniais, jurídicas ou
financeiras, que unem hierarquias […], o que faz com que um
conjunto de empresas passe a agir segundo um projeto comum”
(PORTUGAL JUNIOR, 1994, p. 17).
O grupo econômico: i) se orienta por uma lógica patri-
monial rentista de captura de excedentes; ii) opera através do
controle de outras corporações que estão em seu portfolio, e sob
um novo prisma, na relação entre empresas que não fazem parte
do “conglomerado” (TAVARES,1972). É um centro de poder de
controle interno, de suas propriedades e externo “por sua capa-
cidade de interferir no mercado, nos circuitos financeiros, nas
relações políticas (partidárias ou não), na legislação e no Estado”
(PORTUGAL, 1994, p. 26). Ou seja, a sua estratégia de centra-
lização de capital e de poder opera através de relações assimé-
tricas com outras empresas e instituições, assumindo controle
de atividades para além das suas propriedades, sobre um amplo
espectro de agentes. Essa forma de atuação expande, ainda mais,
suas possibilidades de constituir arranjos espaciais flexíveis, com
a finalidade de controlar e dominar um mercado.
Em Cajamar podemos verificar essa forma de organização e
atuação dos grupos econômicos tanto na atuação da Brookfield
Incorporadora (BI), como na atuação da joint venture Prologis/
CCP. Ambas utilizaram seu poder e sua capacidade de mobili-
zação de recursos e agentes em múltiplas escalas para efetivar
seus projetos. Entretanto, podemos apenas deduzir esse poder
pela sua capacidade para constituir vínculos multiescalares com
agentes relevantes, como empresas multinacionais, instituições
multilaterais, o Estado etc., em movimentos sincronizados no
desenvolvimento imobiliário de Cajamar.
A BI (hoje TEGRA) foi a protagonista da atividade imobi-
liária residencial em Cajamar na última década, construindo
cerca de 2.500 apartamentos no Portal dos Ipês, no distrito de

532
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

Jordanésia. Isso foi parte do projeto de expansão das atividades


da empresa a partir da constituição de um novo arranjo multies-
calar. A BI é uma empresa com sede no Rio de Janeiro e contro-
lada pelo grupo canadense Brookfield Asset Mannagement, um
conglomerado que atua em diversos segmentos econômicos em
todo o mundo. Esse grupo tem sua origem totalmente ligada ao
Brasil. Em abril de 1899, no Canadá, foi fundada The São Paulo
Trainway, Light and Power Company Limited, para operar espe-
cificamente na pequena cidade de São Paulo. A empresa atuava
tanto na implantação e operação de sistemas de bondes por tração
elétrica como na geração e distribuição de energia elétrica. Odette
Seabra (2013) evidencia o caráter territorial desse ramo indus-
trial de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. A
autora desenvolve sua tese em torno dessa característica territo-
rial e rentista da atuação do grupo no desenvolvimento da cidade
de São Paulo, através da retificação dos seus principais rios e apro-
priação de suas margens em negócios imobiliários.
Através do setor elétrico a empresa conquistou enorme
poder político e econômico. A Light foi uma das primeiras
empresas no mundo a receber um empréstimo do Banco Inter-
nacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), em
1948, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) e do
Banco Mundial (BM), e utilizou esse empréstimo em manobras
financeiras, contando com o governo brasileiro como avalista
(CPDOC/LIGHT, 2018). No fim dos anos 60, o grupo passa a se
chamar Brascan, nome que mantém até o processo de abertura
de capital de seu braço imobiliário na Bolsa de Valores, Bovespa
(hoje B3). Logo em seguida, inicia o processo de centralização de
capitais através da aquisição da incorporadora paulista Company
e da empresa goiana MB Engenharia em 2009, e passa a adotar o
nome de sua matriz, Brookfield Incorporadora.
Em 2006, ano da abertura de capital da Brascan na bolsa,
o grupo mobiliza seu poder político e econômico e firma, nova-
mente, uma parceria de investimento, nos moldes de uma joint
venture, com a Corporação das Finanças Internacionais (CFI),
braço financeiro para o desenvolvimento do setor privado do
BM. Essa parceria no valor de US$ 70 milhões tem o objetivo
de estruturar o desenvolvimento de um braço de atuação no

533
Alexandre Yassu

segmento econômico residencial na BI. É importante notar


que o programa MCMV, com foco no segmento econômico, só
seria criado em meados de 2009. Em 2008, o CFI exigia da BI
(BROOKFIELD, 2008) que esse novo braço seria constituído
pela aquisição da MB Engenharia e Marcelo Borba, o diretor
da empresa à época seria, também, diretor do novo braço. A
entrada da BI no segmento econômico foi estruturada pelos
vínculos escalares estabelecidos com o CFI, na escala global,
e com a MB Engenharia, na escala regional. A aquisição da
Company visava expandir os negócios da empresa em São
Paulo, com foco principalmente no seu banco de terras.
Após a centralização de capitais, a BI passa por uma rees-
truturação e o desenvolvimento de seu novo braço com atuação
no segmento econômico é um dos eixos principais do projeto de
expansão de suas atividades. O primeiro passo dessa expansão
são os empreendimentos em Cajamar, no Portal dos Ipês, que
representam metade de todos os lançamentos do grupo no
segmento econômico no país em 2009 e 100% dos empreendi-
mentos fora da região de atuação da MB Engenharia. Portanto,
os empreendimentos do Portal dos Ipês foram um primeiro
grande experimento desse novo arranjo escalar (2019) que, além
da BI, do CFI, da antiga MB Engenharia, precisa estabelecer
novos vínculos escalares na escala local, no caso, em São Paulo,
e também em Cajamar. O que gostaríamos de destacar é que o
poder da BI, vinculado a um grupo econômico, permitiu acessar
recursos para além de sua captação no mercado de capitais para
a expansão de suas atividades. Essa parceria diminui seus riscos
e amplia seu poder financeiro nessa nova empreitada, além da
CFI trazer credibilidade ao investidor, por ser uma instituição
financeira ligada ao BM. Entretanto, mesmo com esses agentes,
esse arranjo multiescalar não se sustentou, a empresa apresentou
sucessivos prejuízos e em 2010 encerra sua expansão no segmento
econômico e em 2014 faz a recompra de suas ações e encerra
suas atividades na Bolsa de Valores.
Protagonista no desenvolvimento do polo logístico de
Cajamar, pelo seu porte como empresa e pelo porte de seus
empreendimentos, a empresa norte-americana de condomínios
logísticos Prologis iniciou sua presença no município através de

534
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

uma joint venture com a Cyrela Comercial Properties (CCP) em


2008, para implantação de empreendimentos logísticos de alto
padrão. Essa joint venture e esses empreendimentos são parte do
projeto da Prologis de entrada no mercado brasileiro e do projeto
da CCP de entrar no setor logístico. A CCP11 é uma empresa
de incorporação imobiliária com foco no desenvolvimento de
imóveis de uso comercial. A empresa é um braço da Cyrela Brazil
Realty, uma companhia consolidada no mercado imobiliário e
uma das maiores do país, focada em incorporação e construção
de imóveis residenciais. Logo após o lançamento de seu novo
braço empresarial na BOVESPA, em 2007, a Cyrela transferiu à
CCP suas atividades relacionadas ao desenvolvimento e aquisição
de edifícios corporativos, shopping centers e, mais tarde, centros
logísticos. Em 2008 é feita com a AMB Property Corporation,
hoje Prologis, a consolidação da joint venture para a concreti-
zação do empreendimento Cajamar I, sendo a parceria batizada
de Prologis/CCP.
Essa joint venture ampliou a capacidade de articulação e
controle sobre agentes em múltiplas escalas para a efetivação
dos projetos compartilhados e individuais. Em Cajamar, isso foi
mobilizado em quatro situações: na venda de ativos à Previ12, em
prêmios e certificações que os empreendimentos de Cajamar
receberam, na parceria com a gigante mundial do e-commerce
Amazon e, mais recentemente, no processo de lançamento do
fundo imobiliário da Prologis.
Em 2009, o grupo fez seu primeiro lançamento: o empreen-
dimento Cajamar I. Logo, em 2011, com apenas 30% da obra
executada, o grupo vende 90% do projeto ao fundo de pensão
Previ. Assim, consegue recurso para alavancar a construção do
segundo conjunto de galpões, o empreendimento Cajamar II, no
mesmo ano. Provavelmente, a Previ foi mobilizada pela CCP, que
no ano seguinte, em 2012, também adquire da CCP as Torres
Matarazzo, empreendimento de lajes corporativas de alto padrão
na Avenida Paulista, importante centro empresarial da cidade,
também em fase de obras. São vínculos escalares constituídos

11
Cyrela Commercial Properties S.A. Empreendimentos e Participações (BM&F
BOVESPA: CCPR3), fundada em 1997 e lançada na Bolsa de Valores em 2007.
12
Fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil.

535
Alexandre Yassu

em temporalidades específicas, ajustadas ao projeto do grupo.


A Previ, em ambos os casos, entra na fase de obra. No caso do
empreendimento da Avenida Paulista, a CCP entra, novamente,
no negócio através da aquisição de uma cota adicional que é
criada com o empreendimento quase pronto. Essa estratégia
pode ser lida de várias formas: uma alternância de posições de
comprado e vendido que, numa defasagem de tempo, podem
apresentar uma oscilação dos valores de face dos títulos reali-
zando lucros financeiros; pode ser a mobilização da credibilidade
de um investidor institucional, como a Previ, para gabaritar o
empreendimento ou mesmo a nova localização; e, até, a simples
realização prévia da mercadoria para antecipar capital-dinheiro,
com o lucro da transformação de uso do solo, para aplicação em
outro negócio. Qualquer uma das estratégias só pode ser mobi-
lizada através de um poder político e econômico, um poder que
permite o acesso aos centros de decisão e orientam o conjunto de
agentes numa direção. São lucros provenientes do exercício do
poder político e econômico.
Outra camada de articulações do arranjo multiescalar são
as certificações e outras validações de instituições do mercado.
O empreendimento Cajamar I, além de ser vendido ainda em
obra, recebe em 2012 o Prêmio Master Imobiliário, o maior
prêmio do setor imobiliário, organizado pelo SECOVI13, impor-
tante organização de classe do setor. “O Prêmio tem a função
de divulgar nacional e internacionalmente os conceitos inova-
dores e as experiências bem-sucedidas que possam servir de
modelo para o desenvolvimento global das atividades do setor”
(MASTER, 2019). Além do prêmio, o empreendimento Cajamar
I é o primeiro a receber o certificado triple A do Núcleo de Real
State da Universidade de São Paulo (NRE-USP), destinado a
certificar galpões de alto padrão. Essas certificações, segundo o
próprio NRE-USP, têm a função de orientar tanto clientes como
investidores sobre as qualidades do ativo e de seu bom desem-
penho e liquidez.
Essas classificações, na medida em que se consolidam,
podem se tornar um notório referencial, tanto na concepção
13
Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imó-
veis Residenciais e Comerciais de São Paulo.

536
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

do produto pelo incorporador como para orientar o investidor


em suas estratégias de formação de portfolio, uma influência no
ciclo completo da mercadoria, na concepção, na produção e na
circulação. A disseminação de certificações que buscam homo-
geneizar mundialmente os ativos pode ser vista como mais uma
dimensão da imposição do sharedholder value ou a lógica do acio-
nista14 (tradução livre). Essa seria a imposição das expectativas
dos investidores/acionistas sobre os demais agentes privados e
instituições, por ganhos crescentes de dividendos e valorização
do preço de face dos títulos. Portanto, a premiação e essa certifi-
cação conquistadas pelo empreendimento Cajamar I são camadas
de credibilidade ao investidor sobre a qualidade do ativo, que
pode gabaritá-lo como um ativo com bom rendimento e liquidez.
Por último, e, talvez, a articulação mais importante da
Prologis, após a CCP vender sua atividade logística, a Prologis, em
2017, numa transação financeira um tanto complexa, envolvendo
o fundo de pensão canadense CPPIB15, que foi monitorada pelo
CADE16. A Prologis, em 2018, anuncia que os empreendimentos
de Cajamar vão receber a operação logística da gigante do varejo
eletrônico Amazon. A Amazon tem participação acionária de
10% da Prologis nos Estados Unidos da América e traçam estra-
14
O termo ou conceito, disseminado entre agentes do mercado financeiro, foi
estudado por FROUD et.al. (1999). Os autores apontaram uma dificuldade da
sua definição, pois como outros “conceitos” e “práticas” de mercado surgem e
logo são disseminadas por novas consultorias e empresas de marketing como
um novo produto, onde cada um procura diferenciar seu produto criando sob o
mesmo termo uma série de “conceitos”. A autora busca no diálogo com agentes
do mercado uma definição em conjunto com a pesquisa acadêmica. A autora
indica uma disseminação de práticas contábeis de avaliação da performance, do
crescimento do valor da empresa, sintetizadas em acrônimos EVA, MVA etc. Em
conjunto com uma série de lições “quasi religiosas” (FROUD et.al., 2000), colo-
cações retóricas e apontamentos exotéricos de (–) busca do sucesso e melhoria
da performance. Sharedholder value seria, para os autores, a prática de “combinar
páginas de tecnicismo sobre métricas com discussões curiosamente indecisas
sobre política de negócios e exemplos homiléticos de sucesso corporativo”
(FROUD et.al.,1999, p. 7) – “thus combine pages of technicality about metrics
with curiously indecisive discussions of business policy and homiletic examples
of corporate success” (tradução nossa).
15
Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB).
16
Conselho Administrativo de Defesa Econômica que tem a função de arbitrar
e monitorar atividades de mercado que alterem a concorrência e criem mono-
pólios e outros tipos de restrição de mercado.

537
Alexandre Yassu

tégias espaciais de expansão de atividades em conjunto, fato que


parece ter se repetido no Brasil. No início de 2019, a Amazon
passa a operar sua atividade completa no país, em Cajamar, e em
abril a Prologis lança seu fundo de investimento imobiliário, o
Prologis Brazil Logistics Fundo de Investimento, e faz a captação
de R$ 2.3 bilhões de investidores profissionais e se torna o maior
fundo de investimento imobiliário do setor logístico do mercado
brasileiro. A captação via investidores profissionais demonstra o
poder desse arranjo multiescalar de mobilizar recursos e agentes.
Investidores profissionais são aqueles que investem acima de
R$ 10 milhões. Na constituição desse arranjo multiescalar não
é somente a lógica imobiliária que orientou o desenho desse
projeto de expansão; ele é fruto da combinação da estratégia
desse gigante varejista eletrônico, a Amazon, e da incorpora-
dora Prologis. Esse vínculo também apresenta uma temporali-
dade e um ritmo específico conectado a um planejamento maior
do projeto de expansão desse arranjo, que tem seu mais recente
movimento na abertura do fundo de investimento. Mas, de que
forma as estratégias desses arranjos adentram e se confrontam
com os agentes locais em busca das rendas fundiárias?

Ilustração 1 – Foto área do Portal dos Ipês.

Autor: JTO Imobiliária.

538
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

O agente local e as fronteiras da acumulação


Apesar do poder e do capital adquirido, a expansão da ativi-
dade imobiliária não ocorre sem percalços e tensões. Devido à
mercadoria imobiliária ter a particularidade de se assentar sobre
a propriedade da terra, como já pontuamos, o circuito de acumu-
lação que a produz e a circula também é particular. O funcio-
namento do circuito imobiliário é tradicionalmente vinculado à
escala local e regional. São questões culturais, o mercado de solo,
as articulações políticas, os trâmites burocráticos e outros conhe-
cimentos que estruturam o funcionamento de cada mercado, ou
seja, questões de âmbito local e regional que se constituem como
uma barreira à entrada de agentes externos. Soma-se a isso o fato
de esse ser um setor econômico relativamente fácil de adentrar,
pois exige um baixo investimento inicial (JARAMILLO, 1982)
para formação de uma pequena empresa local. Assim, apesar da
entrada de importantes agentes das finanças globais na consti-
tuição das grandes incorporadoras, em um processo de centra-
lização de capitais através da fusão e da aquisição, essa centra-
lização encontra esses limites na particularidade de constituição
dos mercados imobiliários. Portanto, para os investidores aces-
sarem as rendas imobiliárias que se encontram na escala local,
eles dependem da constituição de vínculos mais estáveis entre as
escalas. A concretização ou não das expectativas dos investidores
passa pelo êxito do pacto constituído nos arranjos multiescalares,
porque a expansão das atividades traz consigo vários riscos, como:
erros de avaliação, instabilidade dos vínculos com agentes locais/
regionais, diferenças nas práticas contábeis, construtivas e de
gestão. A abordagem sobre as escalas no processo de urbanização
no Brasil, de Sanfelici (2013, 2015), destaca que olhar para essa
tensão na constituição de vínculos mais duradouros é uma impor-
tante chave para entender as particularidades do desenvolvimento
desigual da financeirização do imobiliário no Brasil. Uma forma
de compreender como ela vai da escala nacional, das incorpora-
doras e do arcabouço regulatório, para as escalas subnacionais,
como regiões metropolitanas e municípios. Essa articulação entre
o nacional e local já se deu, anteriormente, entre o Banco Nacional
de Habitação (BNH) e as incorporadoras, construtoras e coope-
rativas. Entretanto, agora, com agentes financeiros internacionais

539
Alexandre Yassu

e incorporadoras nacionais, é um novo arranjo de escalas que, em


alguns casos, não foi bem sucedido, levando algumas incorpora-
doras a reverem as suas estratégias e, mesmo, levando algumas a
voltar a atuar em seus mercados de origem (SANFELICI, 2013,
2015), um recuo de escalas.
Numa abordagem que também destaca o agente local,
mas, a partir da reflexão sobre o par fluxo/lugares, na comu-
tação, se desdobra o conceito de arranjo territorial transescalar
(HALBERT; ROUANET, 2013, tradução nossa), um sistema de
“ancoramento” de fluxos de capital em um determinado pedaço
de terra, ele reúne recursos próximos e distantes. Esse arranjo
também visa diminuir o risco e, consequentemente, os custos da
transação17, principalmente em atividades nos países periféricos,
supostamente mais expostos a riscos. É, também, uma metodo-
logia que busca “seguir o dinheiro” e classificar os agentes. Nesse
sentido, devido à relevância da escala local no mercado imobi-
liário, o agente local/regional destaca-se. Esse agente não é um
indivíduo singular, mas um conjunto de agentes, uma agência
local/regional que trabalha diariamente na redução das texturas
sociais para o estabelecimento das condições demandadas
pelo investidor, de acordo com os instrumentos, mecanismo e
tecnologias que cada um dispõe. Num país periférico marcado
por uma heterogeneidade socioespacial estrutural, as locali-
zações padrão triplo A18 devem ser produzidas, um processo
duplo de diferenciação do espaço e homogeneização do contexto
em relação aos padrões conhecidos pelos investidores. É uma
reafirmação de que controle territorial é chave para garantir os
rendimentos esperados, como já havia colocado Lefebvre ([1970]
2001). Nesse arranjo, a propriedade da terra destaca-se como o
ponto de convergência. É o agente local/regional que “regula-
riza” a propriedade fundiária, tem o acesso ao jogo político local,

17
Os custos de transação são os custos totais associados a uma transação. A
análise de transações visa obter eficiência na gestão dessas transações ou, em
outras palavras, visa à minimização dos custos de transação.
18
Esse tipo de classificação foi importado do setor financeiro, onde é usado
para classificação da qualidade de determinado título. No setor imobiliário,
ele é utilizado para a mesma finalidade, porém, pela natureza da mercadoria
pode designar uma localização, o padrão construtivo de um empreendimento
ou mesmo para classificar os clientes.

540
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

a burocracia e, também, faz a aprovação prévia de empreendi-


mentos, “prepara o terreno”.
No caso de Cajamar, destacamos o agente local como aquele
que facilita a entrada de outros agentes que operam em escalas
distintas, e a escala local como um conjunto e características
históricas que trazem instabilidade e conflito na constituição
dos arranjos multiescalares. Nosso foco é distinto do de Sanfelici
(2013, 2015), que se concentrou na coordenação econômica inte-
rempresarial entre grandes incorporadoras nacionais e pequenas
empresas locais. Nossa proposta é mais alinhada à proposição de
Halbert (; ROUANET, 2013), sobre um agente local/regional,
mas não como agência, ou seja, o conjunto de agentes interme-
diários, como consultorias, escritórios de advocacia etc., mas
apenas os diretamente ligados à propriedade fundiária e seus
trâmites burocráticos.
O proprietário da terra possui, tradicionalmente, partici-
pação notável no processo de acumulação do setor imobiliário.
No caso estudado neste trabalho, isso é potencializado, pois,
todas as propriedades que serviram de base para o desenvol-
vimento dos empreendimentos estudados são de apenas uma
família, a família Abdalla.
A origem da cidade de Cajamar está ligada às atividades
da antiga Fábrica de Cimento Portland de Perus, em São Paulo,
propriedade da família, que tinha suas minas de calcário onde
hoje é Cajamar. A família do falecido patrono J. J. Abdalla, que
foi um dos homens mais ricos do país, é, ainda, grande proprie-
tária de terras no Estado de São Paulo. Conhecido como “mau
patrão” (CPDOC/ABDALLA, 2018) pelas dezenas de processos
trabalhistas que acumulava, por sonegação de impostos e outros
crimes, foi preso algumas vezes. Até que no governo Geisel, na
ditadura militar, grande parte de suas propriedades foi confis-
cada. Após o fim da ditadura e a abertura política, a família inicia
a recuperação judicial de algumas delas. Em Cajamar isso ocorre
no início dos anos 2000, onde a família é dona de cerca de um
quarto de todas as propriedades do município. Também, no
início de 2000, junto com a elaboração do Plano Diretor, todas
as legislações urbanas do município foram revisadas. Foram
adotados índices construtivos absurdamente altos, permitindo,

541
Alexandre Yassu

em alguns casos, a construção de doze vezes19 a área do terreno, e


autorizados uma miríade de usos para regiões lindeiras às matas
da serra do Japi, com urbanização de baixa densidade, ou mesmo
não urbanizadas. Nesse momento também são elaboradas
algumas leis de incentivos fiscais às atividades imobiliária e indus-
trial, concentrando-se principalmente nos aspectos imobiliários
das instalações industriais.
Esse contexto, de recuperação das propriedades confiscadas,
permissão de uso e altos índices construtivos é propício para a
inserção dessas terras de vez no mercado imobiliário. Isto ocorre
pelas mãos da Pillar Empreendimentos, que, apesar de ser uma
pequena construtora, é fundamental no desenvolvimento imobi-
liário de Cajamar. Ela é responsável pelo desenvolvimento do
“bairro planejado”, loteamento do Portal dos Ipês e também pelo
desenvolvimento de parte importante do loteamento do polo de
logística de Jordanésia. Além disso, aprovou e construiu galpões
logísticos e outros empreendimentos residenciais no município.
Firmino Machado da Costa20 é o proprietário da Pillar. A empresa
tem como escopo de atividades a elaboração de projetos, sua
aprovação e sua construção. Em alguns casos ela atua como incor-
poradora imobiliária. A atuação da empresa pode se enquadrar
ao que Jaramillo (1982) chama de construtor por encomenda,
que por vezes alça voos como pequeno promotor imobiliário e
se orienta pela lógica mercantil. Visando a compra e venda com
um pequeno ágio, vale-se de pequenas oportunidades para obter
ganhos mercantis, numa defasagem de preços, mobiliza alguns
recursos para o loteamento de terras, mas não possui capital para
se tornar um incorporador e mobilizar massas de recursos regu-
larmente. Nesse sentido, é profundamente enraizado no contexto
local, além de conhecer os meandros burocráticos e políticos,
cumpre o papel de desenvolvedor às terras do grande proprie-
tário, a família Abdalla. Ao cumprir essa função, a partir de 2004,
com o lançamento do loteamento “bairro planejado” Portal dos
Ipês, conecta-se a novos agentes, nesse caso a Brookfield Incorpo-
radora (BI) (hoje TEGRA).

19
Na cidade de São Paulo o maior índice permitido é 4.
20
Firmino possui, também, a Vercal Empreendimentos, outra construtora de
atuação na região.

542
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

O loteamento Portal dos Ipês é um empreendimento muito


bem localizado no município, com equipamentos públicos
e boa infraestrutura, entretanto com um padrão periférico
de ocupação com loteamentos irregulares autoconstruídos e
algumas favelas. Localizado no distrito de Polvilho e junto à
Avenida Tenente Marques, o empreendimento foi executado
em três fases: a primeira lançada em 2004, entregue somente
em 2008; a segunda em 2005. Mas, é com a chegada da BI,
em 2009, que a paisagem se transforma. Os empreendimentos
do Portal dos Ipês são parte fundamental da estratégia da BI
após abertura de capital e diversificação e expansão de ativi-
dades por meio da fusão e aquisição da Company e da MB
Engenharia, como já mencionamos. A BI tinha suas ativi-
dades concentradas no Rio e em São Paulo, com seu plano de
expansão, suportado pelo CFI, para o setor econômico pela
aquisição da MB Engenharia. Esta empresa que tinha sede e
atuação concentrada no Estado de Goiás e no mesmo segmento
econômico. Portanto, a expansão do segmento econômico se
deu em direção ao Sudeste, foco de atuação e base da BI e não
para fora do Sudeste, como ocorreu com as outras incorpora-
doras que expandiram suas atividades. Nessa expansão, 95%
dos empreendimentos estão no Portal dos Ipês, onde cons-
truiu cerca de 2.500 apartamentos, dentro de um planejamento
de cerca de 10 mil unidades, no Portal, em cerca de 10 anos.
Para isso, o controle sobre essa expansão é condição básica,
uma produção monopolista, a exploração exclusiva de novas
fronteiras de acumulação. Essa condição foi dada pela Pillar
Empreendimentos em parceria com a família Abdalla21 por seu
controle sobre as terras no Portal dos Ipês, que, em meio à
construção da fase 2 do Portal, reserva e reparcela quase toda a
fase 2 para a BI, permitindo que esta consiga prever o preço da
terra no seu plano de expansão através de uma produção mono-
polista. Como parte dessa estratégia, a BI produziu imensas
torres em condomínios clube características pouco comuns

21
É interessante frisar que a Brookfield já havia feito negócios milionários com
a família Abdalla nos anos 1940, vendendo uma imensa gleba na várzea do rio
Pinheiros, que nos anos 1990 foi desapropriada, no maior valor pago numa
desapropriação no Brasil, R$ 2.5 bilhões.

543
Alexandre Yassu

na produção do MCMV, modelo de empreendimento que vai


se consolidar no MCMV posteriormente, entretanto, em áreas
mais consolidadas, como forma de ampliar os ganhos por conta
do aumento do preço da terra e não nas bordas da metrópole
como foi em Cajamar. Contudo, em 2011 a empresa passou por
diversos problemas devido à alavancagem financeira e a acumu-
lação de dívidas, que a levou a interromper sua atividade no
segmento econômico e posteriormente encerrar o capital na
Bolsa de Valores. Portanto, o Portal de Ipês ficou como o prin-
cipal experimento no segmento econômico da BI no Sudeste e
que foi viabilizado pela sua articulação com os agentes locais.
A Pillar Empreendimento também atuou como agente
local para a entrada da joint venture Prologis/CCP em Cajamar,
no distrito de Jordanésia, na construção de empreendimentos
logísticos, parte do planejamento da entrada do grupo ameri-
cano no mercado brasileiro e da entrada da CCP no setor logís-
tico. Os galpões logísticos22 demandam grandes áreas para sua
implantação, áreas na casa das dezenas de milhares de metros
quadrados, uma localização em torno de 30 quilômetros dos
mercados consumidores, uma boa infraestrutura rodoviária
e um teto de preço do m2, pois, em função dessa localização
flexível, o que determina em grande parte a sua localização é o
preço da terra. Esses três fatores foram encontrados em Cajamar.
Aqui, coloca-se novamente o controle sobre essa nova fronteira
de expansão como essencial para atingir os ganhos planejados,
porém, de um novo jeito. Demandando grandes áreas para sua
implantação e sendo um tipo específico de empreendimento, a
abertura dessa nova fronteira de acumulação ocorreu na arti-
culação da Prologis/CCP, Pillar Empreendimentos, Prefeitura
de Cajamar e José João Abdalla Filho. Ou seja, é a articulação
entre um agente global, uma grande incorporadora nacional, o
poder público, uma empreiteira local e o grande proprietário de
terras. A materialização desse arranjo se dá em um loteamento
para galpões logísticos, com abertura de avenidas, canalização
de córregos, intervenções na área pública e privada, inclusive,

22
Os galpões logísticos atuais são, em sua grande parte, para armazenamento e
operação logística de grandes grupos de varejo físico ou digitais, como sites de
comércio eletrônico.

544
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

cometendo alguns crimes ambientais23, onde a Prologis/CCP fez


sua expansão nessa nova fronteira. Essa expansão e consolidação
da Prologis/CCP através de três grandes empreendimentos
logísticos em Jordanésia, numa produção monopolista, só foram
viáveis através da constituição desse arranjo multiescalar, com
vínculos específicos com a escala local e seus agentes.
Portanto, a partir desses dois arranjos podemos verificar
o papel essencial desempenhado pelos agentes locais, ligados à
propriedade fundiária, nos arranjos multiescalares. Através deles
viabiliza-se o controle monopolista das fronteiras de acumu-
lação, que podem dar acesso a rent gaps (SMITH, 2007), ou seja,
um montante de renda que pode ser apropriada pela atividade
imobiliária entre uma frente de expansão e outra. Esse controle
monopolista tende a garantir a lucratividade esperada para o
empreendimento, em oposição à produção concorrencial, onde
boa parte da renda vai para o proprietário fundiário.

Conclusão
A partir deste estudo, podemos concluir que, diferentemente
do apontado por grande parte da bibliografia sobre a consti-
tuição da financeirização no Brasil, que indica uma financeiri-
zação particular conduzida, principalmente, por agentes nacio-
nais, privados e públicos, o processo ocorrido em Cajamar é um
processo de financeirização do imobiliário, protagonizado por
grupos econômicos globais, investidores institucionais e outros
agentes financeiros globais, com participação do Estado e com
papel-chave do agente local, algo mais próximo a financeirização
idealizada (STROHER, 2019).
Ao longo do trabalho, nós ressaltamos, as escalas espa-
ciais como uma forma de compreender a constituição da finan-
ceirização do setor imobiliário no Brasil. A financeirização, ao
conectar agentes em múltiplas escalas, do local, ao nacional e
ao global, altera as configurações escalares preexistentes. Essa
23
Esse conjunto de agentes foram autuados, na execução das obras desse lo-
teamento logístico, pela CETESB, por crimes ambientais como: a supressão de
nascentes e a execução de aterros irregulares, mas, já estão executando medidas
compensatórias.

545
Alexandre Yassu

forma de abordar a questão se volta para a espacialidade dos


processos contraditórios e conflitivos de constituição de vínculos
entre escalas, na formação de arranjos multiescalares. As “rede-
finições de escalas alteram a geometria do poder social, fortale-
cendo o poder e o controle de alguns e enfraquecendo outros”
(SWYNGEDOUW, [1997] 2018, p. 60). Esses arranjos são instá-
veis, temporários e tensos, e são produtos da luta política cons-
tante entre os agentes. Uma arena de reorganização de interesses.
Utilizamos esse prisma analítico para entender as particulari-
dades do desenvolvimento das atividades imobiliárias na periferia
metropolitana de São Paulo, mais especificamente em Cajamar.
Para isso, nos focamos nas redes sociotécnicas (HARVEY, 2005),
que transmitem os fluxos financeiros até os lugares, e a comu-
tação, que é a expressão da constituição simultânea de fluxos e
lugares (HALBERT; ROUANET, 2013; HALBERT; RUTHER-
FORD, 2012).. A partir desses autores, demos atenção especial
a dois fatores: ao agente local, como elo inexorável a ser consti-
tuído pelo arranjo multiescalar com a propriedade privada da
terra, para extrair dela a renda fundiária; e aos grupos econô-
micos, como a forma de organização empresarial contemporânea
que, orientada sob a lógica financeira, faz uso do seu grande
poder político e econômico para controlar e orientar um vasto
conjunto de agentes em torno de um projeto comum. A junção
dessas matrizes teóricas pretende trazer novos elementos para

[...] enxergar os processos socioespaciais como uma sucessão


de momentos de conflito e de estabilização de interesses, im-
plicando em um jogo de identificação de processos com con-
texto ou em ocasiões-contextos com agentes que se movem
em dimensões territoriais diversas em momentos específicos
e diferentes (VELASQUEZ, 2018, p. 120).

Portanto, em concordância com Sanfelici (2013, 2015), são


os agentes em múltiplas escalas reunidos em arranjos multiesca-
lares e com objetivos e temporalidades distintos que estão condu-
zindo o processo de urbanização no contexto contemporâneo da
financeirização da economia.
A atenção dada ao agente local, ligado à propriedade
fundiária, nos permitiu perceber como ele foi fundamental para

546
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

desenvolvimento das atividades imobiliárias em Cajamar, tanto


residencial como logística. Ele permitiu aos agentes globais,
Brookfield Incorporadora e Prologis/CCP, acessar novas fron-
teiras de acumulação e as explorarem de maneira monopolista
para atingir o objetivo de seus respectivos projetos de expansão.
Isso demonstra uma possível transformação desse agente, antes
conhecido por seu caráter rentista dentro de uma lógica mercantil,
agora conectado a agentes orientados pela lógica financeira, um
rentismo 2.0 que precisa ser mais estudado.
O encontro entre a abordagem por escalas e o conceito de
grupos econômicos nos auxiliaram a entender como, através
do seu poder político e econômico, eles mobilizam uma série
de agentes, supostamente exteriores ao setor imobiliário, para
efetivar suas estratégias e atingir seus objetivos. Isso nos incen-
tivou a olhar a relação entre os setores e estudar, mais profunda-
mente, a constituição histórica desses grupos. Identificar indiví-
duos (executivos) e sua circulação por diversas instituições nos
ajudou nesse caminho. Por isso, como apontamentos de pesquisa,
primeiro gostaríamos de enfatizar a necessidade de aproximar
teoricamente, as escalas espaciais do conceito de grupos econô-
micos, na intenção de entender como discernir o núcleo do arranjo
escalar, que conduz o projeto comum do grupo, e as articulações
conjunturais e suas distintas temporalidades. Segundo, a partir
da compreensão das relações entre agentes sob o controle direto e
indireto do grupo econômico, julgamos ser importante entender
como ocorrem os lucros financeiros nas transações com títulos e
papéis, como a forma dominante de negociação de propriedades.
A financeirização tem produzido profundas transformações
na atividade imobiliária como vimos, com a entrada de grandes
grupos econômicos e uma reconfiguração do papel dos proprie-
tários fundiários nas estratégias do acumulação do setor. Esta
ampliação do poder do capital na produção da cidade traz novos
impactos sociosespaciais, através de uma intensificação da priva-
tização do espaço e da segregação. Promove impactos ambientais
ao ampliar as bordas da metrópole, com uma política urbana
voltada ao desenvolvimento do setor imobiliário, como vimos em
Cajamar. Este novo quadro exige estratégias renovadas para a
promoção de uma cidade mais justa e democrática.

547
Alexandre Yassu

Referências
BRENNER, Neil. A globalização como reterritorialização: o reescalona-
mento da governança urbana na União Europeia, p. 63-104. [2010] In:
BRENNER, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica
/ Neil Brenner. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das
Metrópoles, 2018.
BRENNER, Neil. The Urban Question: Reflections on Henri Lefebvre,
Urban Theory and the Politics of scale. p. 361-378. In. IJURR, International
Journal of Urban and Regional Research. v. 24, issue 2, 2000.
AALBERS, Manuel. The financialization of home and the Mortgage Market
Crisis. In: Competition & Change, v. 12, 2008.
VAN LOON, Jannes; AALBERS, Manuel. How real estate became ‘just
another asset class’: the financialization of the investment strategies of
Dutch institutional investors. European Planning Studies, 25, 2017, p.
221-240. 10.1080/09654313.2016.1277693.
HALBERT, Ludovic; ROUANET, Hortense. Filtering Risk Away: Global
Finance Capital, Transcalar Territorial Networks and the (Un)Making of
City-Regions: An Analysis of Business Property Development in Bangalore,
India. Regional Studies, 2013. DOI: 10.1080/00343404.2013.779658.
HALBERT, Ludovic; RUTHERFORD, J. Flow-Place Reflections on cities,
commutation and urban production processes. Ga WC – Research Bulletin,
352, 2012.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução: Carlos Szlak.
São Paulo: Annablume, 2005.
______. Os limites do capital. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Boitempo,
2013.
______. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.
JARAMILLO, Samuel. Produccion de vivienda y capitalismo dependiente: el
caso de Bogota. Bogotá, Colômbia: Editora Dintel,1980.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Tradução: Sérgio Martins. Belo
Horizonte: UFMG, 2008 [1970].
MASSEY, Doreen. Um sentido Global do Lugar, p.176-185. In: ARANTES,
Antonio A. (Org.) O espaço da diferença. [1997] 2000.
PORTUGAL JUNIOR, José Geraldo (Coord.) Grupos econômicos: expressão
institucional da unidade empresarial contemporânea. São Paulo: FUNDAP/
IESP; 1994, p. 62.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Dos cortiços aos condomínios fechados:
as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; IPPUR/UFRJ; FASE, 352 p., 1997.

548
Arranjos Multiescalares da atividade imobiliária e a (re)produção da metrópole

ROLNIK, Raquel; SANTORO, Paula Freire. Novas frentes de expansão do


complexo imobiliário-financeiro em São Paulo. Cadernos Metrópoles, São
Paulo, v. 19, n. 39, p. 407-431, 2017.
ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirização da política habitacional:
limites e perspectivas. Tese (doutorado na área de contração Habitat),
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010.
RUFINO, Maria Beatriz Cruz. A incorporação da metrópole: centralização
do capital no imobiliário e nova produção do espaço em Fortaleza. 2012.
Tese (doutorado em Habitat), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
RUFINO, Maria Beatriz Cruz. Transformação da periferia e novas formas
de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças
na produção habitacional. Cadernos Metrópoles (PUCSP), v. I, p. 217, 2016.
STROHER, Laisa Eleonora. A constituição da financeirização urbana no
Brasil: O papel das operações urbanas com Cepac / Laisa Eleonora Marós-
tica Stroher – 2019. 283 fls.: il. Orientador: Jeroen Johannes Klink. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do ABC, Programa de Pós-Graduação
em Planejamento e Gestão do Território. São Bernardo, 2019.
TAVARES, Maria Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo
financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
TOPALOV, Christian. Análise do ciclo de reprodução do capital investido
na produção da indústria da construção civil. In: FORTI, Reginaldo (Org.)
Marxismo e urbanismo capitalista: textos críticos. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1979, p. 53-80.
SANFELICI, Daniel. A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo
escalar do processo de urbanização. Confins [En ligne], 18. 2013.
SANFELICI, D. M. As escalas de acumulação na produção das cidades. In:
CARLOS, A. F. A; VOLOCHKO, D.; ALVAREZ, I. P. (Org.) A cidade como
negócio, 1. ed. São Paulo: Contexto, 2015, p. 121-144.
SMITH, Neil. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto
e produção da escala geográfica, p. 132-175. In: ARANTES, Antonio A.
(Org.) O espaço da diferença. [1997] 2000.
SMITH, Neil. “Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço
urbano.” Tradução do original: Daniel de Mello Sanfelici. Revista Geousp,
tempo e espaço, n. 21, 2007, p.15-31.
SWYNGEDOUW, Erik. Globalização ou glocalização? Redes, territórios e
reescalonamento. In. BRANDÃO, Carlos Antônio; FERNANDEZ, Víctor
Ramiro; RIBEIRO, Luiz Cesar Queiroz. (Org.) Escalas espaciais, reescalona-
mentos e estatalidades: lições e desafios da América Latina Rio de Janeiro:
Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018 [1997].
VELASQUEZ, Blanca Rebeca Ramírez. Do debate de escalas à apologia loca-

549
Alexandre Yassu

lista na América Latina. In: BRANDÃO, Carlos Antônio; FERNANDEZ,


Víctor Ramiro; RIBEIRO, Luiz Cesar Queiroz. (Org.) Escalas espaciais,
reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios da América Latina. Rio de
Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018.

Mídias
BROOKFIELD. Relatório da administração. Site de documentos e relató-
rios aos investidores. Disponível em: <http://ir.br.brookfield.com/mobile/
conteudo_mobile.asp?tipo=37674&id=0&idioma=0&conta=28&ano=2008>.
Acesso em: 20/08/2018.
CPDOC/ABDALLA. Portal de informações de personalidades Disponível
em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/
jose-joao-abdalla>. Acessado em: 06/09/2018.
CPDOC/LIGHT. Portal de informações de personalidades Disponível
em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/
antonio-gallotti>. Acessado em: 06/09/2018.
MASTER, Prêmio. Site da premiação Master Imobiliário, destinado ao setor
imobiliário. Disponível em: <http://www.premiomasterimobiliario.com.
br/site/vencedoresAno.asp?ca=2012> Acesso em: 15/09/2018.

550
Parceria público-privada para construção
de moradia popular: fundamentos
institucionais para a expansão do mercado
de habitação em São Paulo1

Alvaro Luis dos Santos Pereira2


Gabriel Maldonado Palladini3

Introdução
Este trabalho busca oferecer uma contribuição ao debate
sobre as tendências recentes no campo da política habitacional
a partir da experiência de formulação de um projeto de parceria
público-privada (PPP) de produção de moradia popular pela
Agência Casa Paulista do governo do Estado de São Paulo, abor-
dando sobretudo a dimensão institucional desse processo.
O setor habitacional vem figurando como um importante
campo de incubação de ambientes regulatórios forjados sob a
hegemonia do pensamento neoliberal, podendo-se observar
ações recorrentes no sentido da difusão de arranjos de mercado
nesse segmento econômico. Podem-se mencionar ao menos duas
razões principais por trás desse fenômeno: em primeiro lugar,
o caráter estratégico de se impulsionar o desenvolvimento de
relações de mercado num setor com tamanha dimensão econô-
mica; em segundo lugar, a necessidade de se forjar tecnolo-
gias institucionais consideravelmente sofisticadas para que seja
possível contornar as barreiras à introdução de relações de
mercado num campo árido como esse.
O ímpeto de incorporação do setor habitacional à esfera
do mercado esbarra em diversos obstáculos, tais como a tempo-

1
Capítulo originalmente publicado nos Cadernos Metrópole, Número 43, 2018.
2
Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Política, Economia e
Negócios. Osasco, SP/Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6553-997X. alvaro.
pereira@unifesp.br.
3
gmpalladini@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0360-0437

551
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

ralidade de realização do capital investido, a fixidez territo-


rial do produto, a carência de demanda solvente, a existência
de lutas sociais por sua desmercantilização, sua assimilação
como direito social por legislações e decisões judiciais, entre
outros. Tais fatores fazem com que a internalização do setor
habitacional ao mercado seja um processo truncado, exigindo
o emprego de doses consideráveis de imaginação e experimen-
talismo institucional. Tais dificuldades tornam-se ainda mais
intensas no contexto de países periféricos como o Brasil, em
que o acesso à moradia digna nunca foi socialmente assimi-
lado como parte integrante do custo de reprodução da força de
trabalho (OLIVEIRA, 1976; KOWARICK, 1979; MARICATO,
2001), e em que parte significativa das relações de ocupação e
posse de imóveis não se enquadram em formatações jurídicas
reconhecidas pelo direito estatal.
Argumenta-se que as dificuldades envolvidas e as possibilidades
oferecidas pela incorporação do setor habitacional ao mercado
fazem com que esse setor figure como alvo estratégico da agenda
teórica e prática da chamada nova economia institucional4, que
acompanhou a ascensão do pensamento neoliberal. Como será
discutido ao longo deste trabalho, essa agenda teve forte impulso
no Brasil a partir dos anos 1990, podendo-se observar um
processo lento, porém persistente, de introdução de mudanças
regulatórias e institucionais de caráter incremental voltadas para
a promoção do aprofundamento de uma lógica de mercado no
setor habitacional, assim como a implementação de políticas
públicas voltadas para a ampliação do acesso à casa própria com
base em mecanismos que emulem uma relação de mercado5.
Há significativa produção bibliográfica sobre os impulsos do
processo de mercantilização ocorridos no setor habitacional no
4
A pesquisa de doutorado de Luciana Royer (2014), intitulada “Financeirização
da política habitacional: limites e perspectivas”, pode ser apontada como um
estudo pioneiro na investigação do processo de aplicação de uma agenda
política inspirada no pensamento da nova economia institucional no campo da
regulação do setor habitacional no Brasil. Segundo a autora, a nova economia
institucional figurou como “matriz ideológica” das reformas regulatórias e
institucionais promovidas nesse setor a partir dos anos 1990.
5
A expressão “habitação social de mercado”, utilizada por Lúcia Shimbo
(2012), sintetiza de modo preciso os fundamentos das políticas habitacionais a
que estamos nos referindo.

552
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

contexto de difusão das políticas neoliberais, bem como sobre


processos anteriores de ação estatal voltadas para a estruturação
de uma dinâmica de mercado nesse setor, como a amplamente
estudada experiência do Banco Nacional da Habitação (BNH)
— política habitacional forjada no âmbito de um modelo econô-
mico dirigista e centralizado que exerceu papel-chave na transfor-
mação do setor habitacional brasileiro num circuito de acumu-
lação de capital. Ainda que algumas referências a períodos
anteriores sejam necessárias, fugiria aos objetivos deste trabalho
fazer uma recapitulação em detalhes de toda essa trajetória.
Buscamos oferecer uma contribuição específica para o estudo do
tema a partir da análise de transformações recentes no modo de
organização do setor habitacional, tendo por objeto de análise
principal a disseminação de parcerias público-privadas como
forma de provisão habitacional para segmentos sociais de baixa
e média renda. Trataremos especificamente de experiências
situadas no Estado de São Paulo. Esse recorte analítico se justi-
fica pelo fato de haver uma trajetória minimamente estabelecida
de formulação e implementação de ações desse tipo no contexto
paulista (ainda que em pequena escala até o presente momento),
e por sua possível influência na consolidação de uma agenda de
política pública para o setor.
Como metodologia, avaliou-se como opção mais adequada o
estudo de caso. A PPP de habitação do centro de São Paulo foi o
primeiro projeto do Estado de São Paulo a utilizar o instrumento
jurídico contratual da PPP para a provisão de moradia popular.
Nesse sentido, optou-se por estudar essa experiência em profun-
didade em virtude do entendimento de que ela figure como uma
espécie de projeto-piloto, tendo sido concebida com o intuito de
ser replicada. Como forma de coleta de dados, optou-se pela reali-
zação de entrevistas em profundidade com alguns dos principais
agentes envolvidos no projeto, divididos em dois grupos: funcio-
nários do governo paulista e representantes do setor privado de
diferentes áreas (consultores, advogados, empreendedores do
setor de construção civil, entre outros). Além das entrevistas, a
pesquisa envolveu também a análise documental de processos
administrativos da Secretaria de Habitação (Processo SH n°.
625/05/2011 vol. I – XVIII), bem como de editais de licitação

553
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

(Chamamento Público nº 004/2012 e Concorrência Interna-


cional nº 001/2014) e de atas de reuniões disponibilizados pelo
governo estadual.

O neoliberalismo, a nova economia institucional


e o avanço da lógica de mercado sobre o setor
habitacional no Brasil
Os impulsos de disseminação e aprofundamento de relações
de tipo mercantil que se sucederam à ascensão do neolibera-
lismo — receituário que se consolidou como agenda governa-
mental no Brasil a partir dos anos 1990 — manifestaram-se de
modo heterogêneo conforme o segmento econômico conside-
rado. O setor habitacional brasileiro pode ser apontado como
um campo de implantação tardia e relativamente truncada de
ambientes regulatórios e padrões organizacionais característicos
da agenda neoliberal. Outros segmentos econômicos, tais como
telecomunicações, finanças, energia elétrica, metalurgia e certos
ramos da indústria de transformação, foram mais diretamente
atingidos pelas reformas neoliberais em seu estágio inicial.
Diante do processo de reconfiguração do capitalismo que se
sucedeu à emergência desse “novo” receituário econômico em
escala mundial, tais segmentos tornaram-se alvos de uma agenda
de reformas que almejou aproximá-los ao máximo das condi-
ções que caracterizariam o funcionamento de um mercado ideal,
teoricamente fundado na livre iniciativa e na concorrência, sendo
submetidos a processos de maior ou menor alcance de desesta-
tização, quebra de monopólios, abertura a fluxos internacionais
de capital, precificação de bens e serviços e sujeição de agentes
e atividades econômicas a regimes jurídicos de direito privado.
Como amplamente ressaltado em estudos de diferentes
matrizes teórico-metodológicas (EVANS, 1998; FARIA, 1999;
PANITCH & KONINGS, 2009; AALBERS, 2016), a despeito da
difundida caracterização do ajuste neoliberal como um processo
de retração do Estado e desmantelamento de seus aparatos regu-
latórios, o que ocorreu efetivamente foi uma redefinição de obje-
tivos e instrumentos de atuação estatal, e não a mera passagem de
uma ordem dirigista e burocrática a outra marcada pelo absten-

554
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

cionismo estatal. Ao invés de uma mera desregulação econômica,


o que se observou na prática foi a montagem de novos aparatos
regulatórios, frequentemente mais complexos que os anteriores
(LEVI-FAUR, 2005; BRAITHWAITE, 2008; RACO, 2014). Nos
termos propostos por Mark Purcell (2009), a metáfora que desig-
naria o papel assumido pelo Estado na ordem econômica neoli-
beral em sua real complexidade não seria a ideia de laissez-faire,
mas sim a de aidez-faire, que expressa simultaneamente o enga-
jamento estatal e a progressiva perda de sentido de oposições
dicotômicas entre Estado e mercado.
Em diversos segmentos econômicos, o processo de implemen-
tação da agenda neoliberal deparou-se com entraves à introdução
do que seriam arranjos ideais na ótica de seus defensores — ou
seja, uma ordem fundada na livre iniciativa, na concorrência e na
ausência de interferências e controles por parte de forças supos-
tamente estranhas ao mercado. Nesses casos, como apontam
Pierre Dardot e Christian Laval (2016), a tônica da agenda neoli-
beral foi a introdução parcial de relações de mercado, a criação
de quase-mercados, a mobilização de dispositivos de regulação
menos intrusivos, buscando promover a maximização do prin-
cípio mercantil nos limites de sua aderência à realidade.
É importante atentar para as imbricações entre a agenda de
reformas que vem sendo efetivamente implementada ao redor
do mundo ao longo das últimas décadas e a recente ascensão
de uma das vertentes do institucionalismo no âmbito do debate
teórico e da ação governamental — a chamada nova economia
institucional6. Seja enquanto referencial analítico ou enquanto
6
O chamado neoinstitucionalismo não se caracteriza como uma corrente de
pensamento uniforme, com um conjunto de premissas teórico-metodológicas
e objetos de investigação comuns claramente definidos. Trata-se de um
campo epistêmico amplo e bastante heterogêneo, que integra diversas
áreas do conhecimento e que tem como fator de convergência o interesse
pelo tema das “instituições”. No artigo “The Theoretical Core of the New
Institutionalism”, que se tornou um dos trabalhos de maior repercussão no
debate sobre o neoinstitucionalismo, Ellen Immergut (1998) destaca três
vertentes principais: a da “escolha racional”, a da “teoria das organizações” e
a do “institucionalismo histórico”. Em linhas simplificadas, a autora mostra
como o espectro das teorias institucionalistas se estende desde variantes do
utilitarismo, elaboradas a partir da assimilação de proposições da teoria dos
jogos, até perspectivas metodologicamente alinhadas à Escola da Regulação e
ao neomarxismo, mostrando o ecletismo desse campo de reflexão. Outra obra

555
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

projeto normativo, essa corrente de pensamento constitui uma


das mais acuradas representações discursivas do capitalismo
contemporâneo. A paisagem ideológica assentada na hegemonia
da nova economia institucional não se traduz nem numa crença
ilimitada na possibilidade de se alcançar uma ordem econômica
eficiente de modo “espontâneo”, a partir do consentimento à
atuação livre e desimpedida das forças atomizadas do mercado,
nem numa busca consciente de se conter as esferas de atuação do
princípio utilitarista enquanto dispositivo de racionalização do
comportamento de agentes econômicos e de alocação de recursos,
mas sim na disseminação de modelos analíticos e/ou prescritivos
em que o Estado e as instituições figuram como catalisadores
da estruturação e do desenvolvimento de forças de mercado.
O subtítulo de um relatório publicado pelo Banco Mundial em
2002 – “Building institutions for markets” – expressa de modo
preciso o leitmotiv da agenda política subjacente à regulação do

de referência no debate sobre o institucionalismo em se que se propõe uma


tipologia bastante semelhante à de Immergut é o artigo “Political Science and
the three New Institutionalisms”, de Peter Hall e Rosemary Taylor (1996). No
artigo “Institutional Economics and Planning Theory: a Partnership between
Ostriches?”, Frank Moulaert (2005), por sua vez, traça uma distinção bastante
clara entre o que seria o “neoinstitucionalismo” e a “nova economia institucional”.
Segundo a diferenciação estabelecida por esse autor, o “novo institucionalismo”,
tendo o economista Geoffrey Hodgson como um de seus principais expoentes,
manteria proximidade com a “velha economia institucional” norte-americana
do final do século XIX (referenciada na obra de Thornstein Veblen), e com a
escola histórica alemã. Essa vertente beberia também das teorias evolucionistas
(que remetem ao darwinismo de modo mais ou menos imediato) e à escola
da regulação francesa. Teria como traço central o coletivismo metodológico,
abarcando preocupações com o contexto, os processos históricos, as relações
de poder, os processos de cognição e os conflitos e negociações coletivas.
A “nova economia institucional”, por sua vez, teria o mérito de refutar as
premissas do sujeito plenamente racional e do mercado competitivo que
fundamentam o discurso neoliberal mainstrem, enfatizando problemas como a
racionalidade limitada, a assimetria de informações e os custos de transação.
Entretanto, não se contraporia ao individualismo metodológico do pensamento
econômico dominante. Teria uma forte carga normativa, gravitando em torno
da problemática da correção de falhas de mercado, principalmente por meio
da minimização dos chamados custos de transação. Teria Ronald Coase e Oliver
Williamson como seus principais precursores, remetendo também à tradição da
Escola Austríaca. O emprego da expressão “nova economia institucional” neste
trabalho faz referência fundamentalmente a essa segunda acepção do termo.

556
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

capitalismo contemporâneo. Tal enunciado evidencia, ao mesmo


tempo, a condição de dependência dos mercados em relação às
instituições, bem como a disseminação de um projeto normativo
de instrumentalização das instituições ao imperativo de expansão
dos domínios da forma mercadoria7.
A introdução das PPPs habitacionais no Estado de São Paulo
constitui um fenômeno representativo da difusão dessa agenda.
Tal processo, entretanto, não representa um divisor de águas na
configuração do ambiente regulatório e institucional da habi-
tação, mas fundamentalmente um novo impulso numa agenda
persistente de desenvolvimento de instituições para o mercado.
Ao longo das próximas seções, elencamos alguns marcos impor-
tantes dessa trajetória, buscando dar subsídios para a reflexão
sobre o que as PPPs habitacionais representam em termos de
mudança e de continuidade.

O governo do Estado de São Paulo e a Provisão de


Habitação
A década de 1980 foi marcada por uma forte retração
do papel exercido pelo governo federal na esfera da política
habitacional, o que fez com que muitos estados e municípios
criassem suas próprias estruturas administrativas, ou ampliassem
aquelas já existentes, para prover habitação à população de baixa
e média renda, resultando no que Arretche (1996) chamou de
“descentralização por ausência”. A extinção do Banco Nacional
de Habitação (BNH) em 1986 marcou o início de um período de
progressiva perda de capacidade de gestão por parte do governo
federal com relação à política habitacional (ARRETCHE,
1996). Para além da questão da crise fiscal, esse processo foi
impulsionado também pela própria estrutura do pacto federativo
estabelecido na Constituição de 1988, em que se buscou promover

7
Nesse sentido, o estudo desenvolvido por Pedro Arantes (2004) sobre o
papel exercido pelo Banco Mundial na definição do rumo de políticas urbanas
em cidades da América Latina nos anos 1990 identificou a difusão de uma
agenda política de teor fortemente programático, protagonizada pela referida
instituição financeira, na qual se buscava orientar as práticas governamentais
para o estímulo ao desenvolvimento de ações “no” mercado e “para o” mercado.

557
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

maior descentralização político-administrativa e ampliar as


competências das esferas de poder local. Como exemplo desse
processo, definiu-se como competência comum dos três entes
federativos a promoção de programas habitacionais, de modo
que as atividades de formulação e implementação de políticas
públicas nessa área foram institucionalizadas como poder-dever
da administração pública em todos os seus níveis8. É importante
ressaltar que a atuação de estados e municípios na provisão
habitacional não se iniciou nesse contexto, podendo-se observar a
presença desses entes federativos nessa área já na época marcada
pelo protagonismo do BNH, e mesmo em momentos anteriores à
sua criação. No entanto, seu engajamento na política habitacional
intensificou-se nesse contexto.
Em São Paulo, no final dos anos 1980, constituiu-se um
sistema estadual de habitação com programas próprios e
formulou-se, no âmbito da companhia estadual de habitação,
uma política de produção, comercialização e concessão de subsí-
dios, cujos mecanismos de decisão passaram a ser inteiramente
independentes do governo federal (ARRETCHE, 1998, p. 116).
A constituição de um fundo público foi o ponto de maior
relevância na estrutura criada para suportar os investimentos em
habitação no estado. A principal fonte de financiamento foi a
previsão de destinação de uma parcela da arrecadação do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) — tributo de
competência estadual — a essa finalidade9. O fluxo contínuo de
recursos destinado exclusivamente ao setor foi o que propiciou
o surgimento de um sistema estadual próprio de habitação. Em
virtude de uma decisão judicial que considerou inconstitucional
a vinculação de receitas ao financiamento de políticas públicas
setoriais específicas, a obrigatoriedade do repasse deixou de

8
Nesse sentido, vale mencionar os seguintes dispositivos da Constituição de
1988: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios: [...] IX – promover programas de construção de moradias e a
melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.
9
O artigo 3º da Lei Estadual nº. 6.556/ 1989 elevou a alíquota de 17% prevista
no inciso I do artigo 34 da Lei Estadual nº. 6.374/ 1989 em 1 ponto percentual,
passando para 18%. O artigo 5º da lei estadual previu a obrigatoriedade de
se destinar os recursos adicionais decorrentes do aumento da alíquota ao
financiamento de programas habitacionais.

558
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

existir a partir de 1998. No entanto, segundo Royer (2002), o


governo estadual seguiu repassando o valor equivalente à referida
quota, apesar da inexistência de obrigatoriedade.
Uma análise atenta da dinâmica da política habitacional promo-
vida pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano
(CDHU) e de sua evolução ao longo do tempo permite identificar
a simultaneidade de lógicas e modos de atuação estatal associados
a momentos históricos distintos, consubstanciando a passagem
gradual de um modelo de Estado intervencionista, calcado no
ideário nacional-desenvolvimentista, em direção a um modelo
de Estado neoliberal, orientado para a ampliação das esferas de
atuação do setor privado. Por um lado, o arranjo de política habi-
tacional centrado na CDHU tem como traços gerais a primazia de
uma empresa estatal e do financiamento público como expedientes
de organização da ação governamental, o que expressa a relativa
permanência das estruturas burocráticas associadas ao período
nacional-desenvolvimentista. Por outro lado, o modus operandi desse
arranjo de política pública passa a sofrer mudanças consideráveis
em face dos ajustes macroeconômicos e do chamado processo de
“reforma do Estado” dos anos 1990 (BRESSER PEREIRA, 1996).
De uma companhia habitacional propriamente dita, dotada de
corpo técnico especializado, equipamentos e recursos próprios
empregados na produção habitacional pública, a CDHU vai
se convertendo progressivamente numa gestora de licitações e
contratos, passando a delegar um rol crescente de obras e serviços
antes executados diretamente pelo setor público a agentes privados
(PULHEZ, 2016). Embora a aparência da sistemática de provisão
habitacional organizada por uma empresa como a CDHU seja a
de um serviço público prestado por uma estrutura burocrática do
Estado, sua materialidade, ou seja, as atividades de elaboração de
projetos, construção civil, implantação de equipamentos urbanos,
prestação de serviços de administração e manutenção predial, entre
outros, assume progressivamente o caráter de atividade empresarial
privada. Essa transformação, que avança de modo gradual, porém
continuado, é representativa do processo de reorganização das ativi-
dades estatais sob a égide de um dos mantras da difusão do modelo
da chamada “New Public Management” e do “Estado Regulador”,
em que se preconiza que este deve se concentrar em conduzir o

559
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

barco, abstendo-se de remá-lo – a conhecida máxima do steer, don’t


row (HOOD, 2009; LYNN JR., 2009).
A reorganização do sistema estadual de política habitacional
a partir dessa racionalidade veio ganhando novo impulso a partir
do início da década de 2010, quando se deu a criação da Agência
Casa Paulista em vista da introdução de um modelo de provisão
habitacional centrado no instrumento contratual da parceria
público-privada. Como buscamos evidenciar, a introdução desse
“novo” modelo não representa uma ruptura radical em relação
à sistemática anterior, mas sim uma mudança de natureza incre-
mental, em que algumas tendências que já estavam em andamento
se acentuam. Sua caracterização como modalidade de provisão
habitacional centrada no protagonismo da iniciativa privada, em
contraste com um modelo anterior supostamente baseado na
primazia do Estado, é antes de mais nada uma construção simbó-
lica, por meio da qual se busca difundir a imagem da superação
de um paradigma alegadamente anacrônico de administração
burocrática — representado de forma caricatural em discursos
hegemônicos — e da adaptação dos aparatos de implementação
de políticas públicas a uma lógica gerencial, que teoricamente os
tornaria mais modernos, enxutos e eficientes.
Feita essa ressalva quanto aos exageros presentes nas repre-
sentações discursivas das mudanças supostamente trazidas pela
introdução das PPPs, argumentamos que algumas transforma-
ções relevantes de fato vêm ocorrendo no bojo da adoção do
modelo de política habitacional centrado nesse instrumento.
Destaca-se, nesse sentido, o modo como as PPPs vêm interfe-
rindo em dois aspectos de importância fundamental nas políticas
habitacionais: sua formulação e seu financiamento. Entretanto,
para que se possa colocar em perspectiva histórica a entrada em
cena das PPPs no setor habitacional em São Paulo e no Brasil e
avaliar o que elas de fato representam em termos de mudança e
de continuidade, é necessário resgatar alguns aconteccimentos
importantes da trajetória da política habitacional e da regu-
lação do setor imobiliário na escala nacional no período recente.
Com essa finalidade, tratamos sucintamente das experiências do
Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e do Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV) na próxima seção.

560
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

Governo federal e a política habitacional nos


anos 2000.
No final dos anos 1990, uma importante inovação no setor,
ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi a criação do
Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Tal ambiente regulatório foi
introduzido com o intuito de se estruturar um mercado de securi-
tização de hipotecas semelhante ao existente nos EUA (FIX, 2011;
ROYER, 2014; SANFELICI, 2013). Um acontecimento anterior à
criação do SFI, e que já sinalizava as mudanças que seriam intro-
duzidas no ambiente regulatório do financiamento imobiliário
no Brasil naquele período, foi a criação dos fundos de investi-
mento imobiliário (FIIs) em 1993 — figura inspirada nos Real
Estate Investment Trusts (REITs) norte-americanos. A promoção
de reformas legais com tais características foi uma diretriz ampla-
mente defendida por agências internacionais como alternativa
para se ampliar o acesso à habitação pela via do mercado. O
raciocínio baseava-se na tese de que a introdução de um ambiente
institucional visto com bons olhos pelos agentes do mercado de
capitais levaria à redução da percepção de risco, o que propiciaria
a elevação do volume de investimentos e a redução dos custos
de crédito para o financiamento habitacional no contexto de
economias ditas “emergentes”, como a brasileira. A premissa por
trás da introdução dos FIIs e do SFI no ordenamento jurídico
brasileiro era a de que seria estratégico ampliar os elos entre o
mercado de capitais e o setor imobiliário. Não é por acaso que,
paralelamente à estruturação jurídica desses novos ativos e moda-
lidades de investimento de base imobiliária, a agenda de reformas
regulatórias promovida no período promoveu também uma
série de medidas orientadas para o fortalecimento da segurança
jurídica de credores em atividades de financiamento à produção
e à compra de imóveis, tais como a alienação fiduciária, o patri-
mônio de afetação e o regime fiduciário. Em síntese, defendia-
se que a estruturação de um ambiente institucional e regulatório
adequado tenderia a impulsionar o desenvolvimento do mercado
de habitação, eventualmente possibilitando sua extensão a
segmentos populacionais de menor renda e contribuindo para o
enfrentamento das carências habitacionais.

561
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

Tal aposta, entretanto, não se concretizou conforme os


prognósticos dos idealizadores das reformas mencionadas.
O SFI vem sendo operado de forma praticamente “artesanal”
desde a sua criação (ARAGÃO e CARDOSO, 2013; PEREIRA,
2017). Embora apresente uma curva de crescimento relativa-
mente alta, está longe de ter desencadeado um salto no volume
de crédito imobiliário no Brasil. Sua contribuição enquanto
fonte direta de financiamento para imóveis em geral, e para
imóveis residenciais em particular, é pouco significativa, e
praticamente inexistente no caso de empreendimentos habi-
tacionais destinados à população de baixa renda. Os recursos
provenientes desses canais de financiamento são direcionados
sobretudo a edifícios corporativos, shopping-centers, galpões de
logística e hotéis.
Embora não tenham impulsionado diretamente o avanço
da produção habitacional mercantil em direção a segmentos de
renda mais baixa, pode-se identificar uma contribuição indireta
dessas reformas para transformações nesse sentido. Como se
pode depreender dos estudos de Royer (2014), Fix (2011) e
Sanfelici (2013), a tentativa de replicação do modelo de securi-
tização de hipotecas dos EUA desencadeou um esforço abran-
gente de reformas orientadas para a montagem de um ambiente
regulatório palatável ao mercado. Se a securitização de recebíveis
não se desenvolveu de modo vigoroso, a regulação introduzida
para lhe dar suporte pavimentou o caminho para o aprofunda-
mento de relações de tipo mercantil no setor por outras vias,
contribuindo para a afirmação de um paradigma da habitação
enquanto commodity no país.
Já nos anos 2000, pode-se observar uma nova onda de trans-
formações na dinâmica de funcionamento do mercado imobi-
liário no país. Acompanhando o movimento geral de aqueci-
mento econômico, o setor imobiliário teve forte impulso nesse
período. Um dos fatores constitutivos desse processo foi a diver-
sificação do perfil dos produtos imobiliários ofertados pelas
empresas do setor, destacando-se o crescimento exponencial
da produção de imóveis residenciais para grupos de renda mais
baixa — o chamado “segmento econômico” (SHIMBO, 2012) —,
nunca atendidos pelo mercado imobiliário formal.

562
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

Um dos fatores que impulsionaram tal processo foi a doção


de novas formas de capitalização pelas principais empresas do
setor imobiliário. Especialmente a partir de 2005, muitas dessas
empresas, buscando aproveitar-se do cenário de elevada liquidez
no mercado de capitais no período que antecedeu a crise finan-
ceira internacional, abriram seu capital na Bolsa de Valores,
passando a ser mais diretamente influenciadas por dinâmicas,
padrões gerenciais e métricas de desempenho características do
mercado financeiro. Como apontam diversos estudos (FIX, 2011;
SHIMBO, 2012; SANFELICI, 2013), muitas dessas empresas —
grupos até então geridos em bases familiares em sua maioria —
foram induzidas a adotar práticas mais “agressivas” para aumentar
suas projeções de resultados, sendo levadas a “desbravar” o até
então incipiente mercado habitacional de baixa renda. Embora
seja frequentemente caracterizada como um processo de desen-
volvimento endógeno do “mercado”, a entrada massiva de capitais
que impulsionou tal mudança de cenário no setor imobiliário
brasileiro, conforme já apontado acima, foi amplamente favore-
cida pelas reformas regulatórias da década anterior. Se a imple-
mentação dessas reformas não foi condição suficiente para que
tal processo ocorresse, combinando-se com fatores como o forte
desempenho da economia brasileira e a abundância de liquidez
no cenário internacional no período, certamente figurou como
condição necessária para que houvesse um afluxo de capitais de
tal proporção para o setor imobiliário brasileiro, e particular-
mente para que o processo alcançasse o segmento habitacional
de baixa renda.
O ciclo de expansão do circuito da habitação de mercado
no Brasil vivenciado durante os anos 2000, aparentemente capi-
taneado por forças do próprio mercado, atingiria seu esgota-
mento com a eclosão da crise financeira internacional. Diante
da inversão do cenário econômico mundial, da contração
generalizada do crédito e do refluxo de recursos financeiros
para as economias centrais, as bases de sustentação do cresci-
mento do circuito imobiliário brasileiro do período anterior se
esvaíram. As empresas do setor viram-se subitamente diante de
uma tendência de forte retração da demanda, combinada a uma
situação de alavancagem excessiva, forte exposição a dívidas e

563
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

acumulação de estoques de insumos e produtos de baixa liquidez.


Configurou-se inclusive um temor de quebra generalizada das
grandes empresas do setor nesse período. A crise internacional
teria interrompido drasticamente o processo de expansão do
mercado para habitação no país se não fosse o advento de uma
nova rodada de intervenção estatal que, nas palavras de Mariana
Fix (2011), levou tais empresas “do inferno ao céu”: o Programa
Minha Casa Minha Vida (PMCMV).

O Programa Minha Casa Minha Vida


Em 2009 o governo federal lançou o que veio a se tornar o
maior programa habitacional dos últimos 20 anos: o Programa
Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A extensa literatura exis-
tente sobre o programa mostra que, mais do que atacar o
problema das necessidades habitacionais não atendidas,
pretendia-se mitigar os impactos da crise a partir dos efeitos
multiplicadores da indústria da construção civil. A utilização
de políticas públicas no setor da habitação para mitigar efeitos
de crises ou para aquecer a economia é uma prática que vem
sendo adotada pelo menos desde a época do BNH (AURE-
LIANO, 1976; BOLAFFI, 1972). Além da questão macroe-
conômica, o programa também tinha por intuito solucionar
a crise específica das empresas do setor de construção civil,
seriamente ameaçadas pela súbita inversão do cenário econô-
mico decorrente da crise financeira internacional.
O PMCMV foi fortemente inspirado nas experiências de
política habitacional chilena e mexicana, calcadas no protago-
nismo do setor privado (ROLNIK, 2015). No caso brasileiro,
conforme relatou Andrade (2011), foram os representantes das
empresas do setor imobiliário que apresentaram a proposta que
mais se aproximou do que veio a ser o programa efetivamente
implementado.
A sistemática adotada no PMCMV, assim como ocorre
nas políticas habitacionais mexicana e chilena, tem como pilar
fundamental a concessão de subsídios à demanda por meio
de recursos públicos. O programa conta com um conjunto de
modalidades específicas, com públicos-alvo, fontes de financia-

564
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

mento, critérios de seleção de demanda e volumes de subsídio


distintos. A maior parte das unidades produzidas no âmbito do
programa enquadra-se na modalidade “PMCMV – Empresas”,
observando-se forte protagonismo das empresas privadas de
construção civil na produção habitacional promovida no âmbito
dessa política pública.
A aposta na iniciativa privada como protagonista do
programa é acompanhada de um discurso de falta de capacidade
gerencial da administração pública, em especial dos municípios.
Como aponta Fix:

A justificativa é a dificuldade do poder público (sobretudo


municipal) na aplicação de recursos induzindo o governo fe-
deral a optar por uma produção diretamente de mercado.
Deste modo, ao invés de atuar para reverter o quadro de en-
traves à gestão pública, fortalecendo-a, assume a premissa de
que a eficiência está mesmo do lado das empresas privadas
(FIX, 2011, p. 52).

O arranjo constituído no PMCMV poderia ser caracteri-


zado como exemplo de criação de um “quase-mercado” por
meio da ação do Estado. A produção da mercadoria imobi-
liária fica a cargo da iniciativa privada. A realização dessa
mercadoria, por sua vez, é garantida pelo Estado. Nas dife-
rentes modalidades e linhas de financiamento existentes no
programa, o Estado garante, direta ou indiretamente, a exis-
tência de demanda solvável para as mercadorias produzidas
pelas empresas privadas. As construtoras não se sujeitam ao
risco de inadimplência do mutuário final ao produzirem no
âmbito do programa, sendo tal risco absorvido pelos fundos
públicos que financiam de modo subsidiado a compra das
unidades — Fundo de Arrendamento Residencial(FAR), Fundo
de Desenvolvimento Social (FDS) e Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS), conforme a modalidade e a faixa
de renda em questão.
O elevado volume de recursos públicos e da poupança
de fundos semipúblicos (FGTS) canalizados para o programa
permitiu que se suprisse a ausência de demanda efetiva (ou seja,
com capacidade de pagamento) em volume suficiente para dar

565
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

vazão aos estoques e à alta capacidade instalada que as empresas


de construção haviam constituído no período anterior à crise,
evitando que se configurasse um cenário de crise de superpro-
dução no setor no curto prazo. Esse programa deu sustentação
ao processo de desenvolvimento de relações de mercado no
âmbito do assim chamado “segmento econômico”. É importante
ressaltar que, ao ampliar a escala de atividades empresariais
voltadas para esse nicho populacional, o programa não apenas
permitiu a absorção das tendências de crise gestadas no ciclo
anterior, como também estimulou um processo de mudanças
técnicas e gerenciais no processo produtivo da habitação que
reduziram seus custos (SHIMBO, 2012; BARAVELI, 2014). Dessa
forma, possibilitou que se desenvolvessem condições objetivas
para um processo mais perene de avanço do circuito imobiliário
mercantil sobre a produção habitacional destinada a segmentos
de menor renda.
O PMCMV constituiu um momento importantíssimo na
trajetória recente de provisão de estímulos institucionais e
regulatórios para o desenvolvimento de um mercado de habi-
tação no país. Embora não seja denominado dessa forma, o
programa apresenta diversas semelhanças com as parcerias
público-privadas, podendo ser considerado um catalisador do
atual processo de difusão desse modelo no campo da política
habitacional. A sistemática estabelecida no âmbito do programa
atribuiu protagonismo às empresas privadas em aspectos como
a elaboração de projetos arquitetônicos, a aquisição de terrenos
e a construção dos empreendimentos. No entanto, manteve a
primazia do setor público em atribuições como a elaboração de
modelagens econômico-financeiras e jurídicas, o financiamento
dos empreendimentos e a prestação de serviços posteriores à
entrega das unidades habitacionais. A tentativa de transferência
— ainda que parcial — dessas atribuições à iniciativa privada é o
que representa um passo adicional na agenda de estruturação de
um circuito mercantil para a habitação, como buscamos eviden-
ciar na próxima seção por meio do caso das PPPs promovidas
pela Agência Casa Paulista.

566
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

A atividade privada no setor de habitação


paulista
A criação da agência de habitação popular Casa Paulista se
insere em um contexto de crescente participação da atividade
privada na prestação de serviços públicos no Estado de São Paulo.
O objetivo do órgão, segundo texto do decreto de sua criação,
é o de “atuar como agente indutor e estimulador da atividade
privada para o setor de habitação de interesse social” (Decreto
nº. 57.370 de 2011).
Desde a sua criação, a agência tem atuado em duas
frentes principais: a promoção de parcerias com o PMCMV e
a constituição de uma espécie de laboratório de modelagem de
projetos de moradia popular10. Foi com o intuito de promover
a atividade privada no setor e de desenvolver um arcabouço
jurídico para fomentar um ambiente de negócios que se concebeu
o Chamamento Público nº 004/2012, por meio do qual se
encomendou a elaboração de estudos técnicos e modelagens de
projetos de parceria público-privada de Habitação de Interesse
Social por agentes privados.
A possibilidade de participação da iniciativa privada na
modelagem de serviços públicos já havia sido prevista no artigo
21º da Lei Federal n°. 8.987/1995, conhecida como a lei geral de
concessões. Essa lei prevê que o trabalho de modelagem realizado
por instituições privadas seja remunerado pelo concessionário
vencedor da licitação. Diferentemente de alguns países em que
se proíbe a participação de instituições privadas que atuaram no
desenvolvimento de estudos no processo licitatório principal, no
caso brasileiro, a participação de instituições que desenvolveram
os estudos na licitação subsequente é permitida pelo artigo 31º
10
A parceria do governo estadual com o PMCMV consistiu no aporte adicional
de até 20 mil reais por unidade habitacional construída no estado, de modo
que se pudesse viabilizar a construção de empreendimentos em regiões onde
os custos de produção eram demasiadamente elevados em face dos limites
financiáveis por unidade no âmbito do programa. Segundo relato obtido em
entrevistas realizadas com funcionário da agência, essa parceria resultou na
construção de 150 mil unidades no Estado de São Paulo. Apesar da quantidade
expressiva de unidades da parceria com o governo federal, o cerne da criação
da Agência Casa Paulista era a proposição de novas formas de produção de
moradia popular a partir da atuação da iniciativa privada.

567
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

da Lei Federal n°. 9.074/1995. Esse tipo de prática, que até


então não havia recebido nomenclatura e tratamento jurídico
específico, passou a ser regulamentada nas casas legislativas dos
estados e municípios a partir de 2004, após a aprovação da Lei
Federal n°. 11.079/200411. No Estado de São Paulo, a Lei Estadual
n°. 11.688/2004 regulamentou as parcerias público-privadas
e o Decreto n°. 57.289/2011 criou o conceito de Manifestação
de Interesse Privado (MIP), definindo-o em seu artigo 2° como
“a apresentação de propostas, estudos ou levantamentos, por
pessoas físicas ou jurídicas da iniciativa privada, com vistas à
inclusão de projetos no Programa de PPP”.
O instrumento da MIP foi primeiramente utilizado no
Estado de São Paulo em 2011 na elaboração de estudos para
um projeto de parceria público-privada a ser estabelecida com
a Fundação para o Remédio Popular (Furp), englobando a reali-
zação de obras de adequação da infraestrutura existente, bem
como sua gestão, operação e manutenção. A ideia de publicar um
edital de chamamento no setor de habitação popular, segundo
funcionário da Secretaria de Habitação, veio dessa primeira
experiência da Furp, tida como exitosa.
A PPP de Habitação consiste num projeto de parceria públi-
co-privada para a construção de 14 mil unidades no centro expan-
dido da capital, com aproximadamente 9 mil unidades de Habi-
tação de Interesse Social (HIS) e 5 mil unidades de Habitação
de Mercado Popular (HMP). A modelagem inclui a prestação de
serviços pelo concessionário (serviços de pré e pós ocupação a
serem prestados aos futuros residentes dos empreendimentos,
apoio à gestão condominial e manutenção predial), conforme
definido no Contrato SH 001/2015. O prazo de vigência do
contrato previsto no edital é de 20 anos, período ao longo do
qual são distribuídas as contraprestações pecuniárias pagas pelo
governo paulista ao concessionário vencedor da licitação.

11
Os estados e municípios atribuem dois principais nomes aos estudos,
levantamentos e projetos visando ao desenvolvimento de PPPs: Procedimentos
de Manifestação de Interesse (PMI) e Manifestação de Interesse Privado (MIP).
Com algumas variações entre as unidades estaduais e municipais, essas são
as denominações pelas quais o instrumento aparece com mais frequência na
legislação.

568
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

A tentativa de se transferir o protagonismo na provisão de


moradia popular para o setor privado tem como ponto de partida
uma mudança no significado do próprio conceito de déficit habi-
tacional. Conforme observou funcionário da Casa Paulista em
entrevista:

Nas condições de uma economia de mercado, quem tem


necessidade e poder de compra, vira demanda. O poder de
compra da habitação, ou seja, a capacidade do cidadão de
comprar uma casa, quase que para a maioria da população, é
a capacidade que ele tem de contrair um financiamento habi-
tacional. Tem um contingente enorme da população que tem
necessidade, mas não consegue alavancar crédito. Como ele
resolve essa situação? Na oferta irregular: favela, área invadi-
da, área de risco. Esse é o problema da política habitacional.
É essa oferta irregular que satisfaz essa demanda que não
consegue se resolver no mercado.

Pode-se perceber uma mudança no tratamento do próprio


setor habitacional, que deixa de ser tratado como política
social. A necessidade habitacional da população de baixa
renda que, sob a perspectiva de políticas públicas sociais
poderia ser encarada como um direito social, se transforma
em demanda por moradia, obedecendo ao raciocínio intrín-
seco à relação oferta/ demanda. Segundo o funcionário entre-
vistado, o objetivo da criação da Agência Casa Paulista foi o de
criar um mercado em que a população de baixa renda pudesse
ser vista como demanda por moradia pelo setor privado. Em
suas palavras:
Em uma economia capitalista ninguém atende necessidade,
atende demanda. Como fazemos para pendurar essa população
de baixa renda na curva da demanda? Se o problema é a capaci-
dade de contrair crédito, começamos a estudar a possibilidade de
ter uma política de fomento. Foram nessas bases que começou a
se estruturar uma política de fomento ao setor privado para que
ele oferecesse imóveis para a população-alvo da política pública
habitacional.

569
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

Figura 1 – Estrutura Governamental Paulista –


Setor de Habitação Popular

Fonte: Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo, 2015

A agência é então criada com foco no fomento ao setor


privado e na proposição de novas formas de produção de
moradia popular com protagonismo do setor privado (ver Figura
1). A proposta de parceria público-privada, formulada pelo setor
privado a partir do instrumento de MIP, priorizou grandes cons-
trutoras e empreiteiras, reservando papel secundário às cons-
trutoras de pequeno e médio porte que historicamente atuavam
no setor de moradia popular como subcontratadas de empresas
públicas como a CDHU e as companhias municipais de habi-
tação. O próprio desenho do programa foi pensado de modo que
a apresentação de propostas se restringisse aos grandes players do
mercado, deixando a construção da moradia stricto sensu como
mais um de vários elementos de um contrato com um conjunto
de obrigações mais complexas. Conforme sintetizou um dos idea-
lizadores da PPP habitacional no governo:

A PPP queria introduzir um modelo de risco no mercado de


habitação popular, para quem conhece estruturação do mer-
cado financeiro. Construir os apartamentos poderia ser qual-

570
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

quer empresa, é como uma commodity, a construção é a parte


menos complexa da PPP. O que a gente queria de verdade era
criar um modelo diferente de oferta de habitação e ampliar o
volume de oferta de moradia popular no estado. Queríamos
criar um mercado do tamanho que é o negócio do metrô. A
ideia era que a gente trouxesse grandes players como tem os
de metrô, por exemplo. Era a criação de um novo mercado.

Essencialmente, são duas as principais mudanças que ocor-


reram na PPP habitacional em relação aos programas anteriores:
i) processo de formulação da política; e ii) sistemática do seu
financiamento. Conforme explicado no tópico anterior, com a
aprovação da lei federal das PPP em 2004, o Estado de São Paulo
regulamentou a Manifestação de Interesse Privado (MIP), que foi o
artifício jurídico usado pela Secretaria de Habitação para construir
o projeto de PPP Habitacional em conjunto com o setor privado.
Diferentemente dos projetos anteriormente realizados pela
CDHU, em que o setor público era o responsável pelo desenho
do programa, a PPP da Casa Paulista transferiu essa responsabili-
dade ao setor privado, utilizando o instrumento da MIP para tal.
Em entrevista, um advogado que atua no mercado de consultorias
relacionadas a projetos desse tipo definiu a MIP como:

um instituto que procurou pavimentar as conversas entre a


iniciativa privada e o setor público. Essas conversas existem
hoje, sempre existiram e sempre vão existir. Como essas con-
versas ocorrem em bases institucionais? Como você regula
esses diálogos para serem transparentes, republicanos, pauta-
dos em regras iguais para todos?

É interessante notar que, apesar de caracterizado como


republicano pelo entrevistado, nenhum dos decretos e leis que
regulam o instrumento faz menção à participação popular no
processo de modelagem dos projetos. Trata-se de um instituto
criado fundamentalmente para mediar a relação entre a
administração pública e empresas privadas, não atribuindo
qualquer papel relevante à população em geral, nem mesmo a
grupos diretamente impactados pelos projetos em questão.
Do ponto de vista dos gestores públicos, a MIP é apontada
também como uma forma de financiar estudos com equipes

571
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

dotadas de qualificação técnica e diversificação profissional.


Conforme apontou um funcionário público em entrevista:

É a possibilidade de o mercado trazer coisas que a gente


não viu. Porque a gente é muito burocrático, tradicional,
não gosta de mudar. Na escala que queríamos atuar, não
tínhamos dinheiro para bancar o estudo. O URBEM gastou
no mínimo R$ 10 milhões para fazer o estudo. O Estado
pôde receber uma proposta muito melhor do que ele faria.
Se você pegar a composição técnica do URBEM, são 70
pessoas, um sociólogo, um urbanista, advogado, economista,
é uma gama de equipe que eu jamais conseguiria pagar. É
uma oportunidade que o Estado tem de se bancar e receber
estudos sem custo direto aos cofres públicos12.

As empresas privadas, por sua vez, têm como uma das


motivações para se envolver no processo de criação em conjunto
com o setor público a possibilidade de construir um edital que
lhe garanta condições competitivas na concorrência licitatória
a partir da captura da assimetria de informação13 gerada no
processo da MIP. Conforme colocou um dos entrevistados que
participou como proponente da MIP da Casa Paulista:

As construtoras entram nisso (MIP) para ganhar a conces-


são. Trata-se de uma assimetria de informação que todas as
empreiteiras costumam capturar para poder ganhar a con-
cessão, ou seja, elas investem numa modelagem de estrada de
rodagem ou hidrelétrica, por exemplo, para depois quando
sair o edital de licitação elas saberem mais do que os concor-
rentes. No final das contas, quem tem a assimetria de infor-
mação acaba ganhando a concorrência.

12
O funcionário faz referência ao Instituto de Urbanismo e Estudos para a
Metrópole (URBEM), organização do terceiro setor que ganhou a fase de
modelagem da PPP habitacional e desenvolveu 58% do conteúdo presente no
edital de licitação. A remuneração por esse estudo, segundo legislação federal,
é de responsabilidade do concessionário vencedor da licitação.
13
Assimetria de informação ocorre quando dois ou mais agentes econômicos
estabelecem transações entre si com uma parte detendo informações que a outra
desconhece, tanto de ordem qualitativa quanto quantitativa. Na microeconomia,
assimetria de informação é considerada como falha de mercado (PINDYCK;
RUBINFELD, 2008).

572
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

Outro ex-funcionário da Prefeitura de São Paulo, especia-


lista no mercado de concessões e PPPs, afirmou que os governos,
no geral, têm dificuldade de manter internamente equipes com
capacitação necessária para modelar projetos de grande porte e
que, por isso, existe uma necessidade de se recorrer ao mercado:

Há duas alternativas possíveis nos casos de projetos de grande


porte: ir ao mercado e contratar consultores ou fazer a MIP.
Para contratar é complicado, tem a lei 8.666, a lei de licitações,
que tem um monte de dificuldades, limitações, privilegia custo
ao invés da qualidade. Às vezes o processo é moroso, pode
ter questionamento dos tribunais de contas. Aí surge o PMI,
que funciona da seguinte forma: tenho uma ideia do que fazer,
mas não sei exatamente como. É ir a mercado e capturar a sua
engenhosidade para desenvolver o projeto.

Diferentemente dos projetos anteriores, em que a Secretaria


de Habitação era a responsável pela execução e pelo desenho dos
projetos de habitação popular, com a criação da Casa Paulista e a
estruturação da política de fomento ao setor privado, delegou-se
também a definição da política habitacional ao setor privado por
meio da MIP.
É difícil determinar com precisão, a partir da fala dos
funcionários públicos entrevistados, qual era a inovação que se
esperava conseguir no caso da PPP de habitação. Em contraste
com alguns setores que lidam diretamente com tecnologia, como
foi o caso do projeto de parceria público-privada para iluminação
pública na cidade de São Paulo, a produção de moradia popular
e serviços inerentes a essa produção vem sendo feita pelas
companhias estaduais e municipais desde os anos 1940. Dessa
forma, entende-se que, mais do que atender a uma necessidade
específica da população, o objetivo da Agência Casa Paulista é o
de desenvolver novos modelos para a provisão habitacional, figu-
rando como um laboratório de incubação de projetos com forte
atuação da iniciativa privada.
A segunda mudança relevante do projeto da PPP habitacional é
a sistemática de financiamento. Na produção via CDHU, é a compa-
nhia pública a responsável pelo financiamento às famílias para aqui-
sição da moradia. A CDHU contrata a construção do empreendi-

573
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

mento, paga a construtora após a entrega da obra e financia a venda


das unidades às famílias beneficiárias. A diferença entre os valores
envolvidos nessas duas transações (ou seja, entre o valor pago pela
CDHU às construtoras e o valor pago por cada família à CDHU
ao longo do período de amortização do financiamento) configura
o subsídio público paulista à política habitacional. Na PPP Habita-
cional, o concessionário faz o investimento necessário à construção
do empreendimento (com recursos próprios ou com crédito obtido
no mercado financeiro), sendo remunerado ao longo do período
de execução do contrato de PPP, e não logo após a conclusão da
obra. O financiamento da compra das unidades pelas famílias é
feito pela Caixa Econômica Federal (CEF). A diferença entre o valor
global de remuneração da concessionária da PPP e a somatória dos
valores pagos pelas famílias beneficiárias ao longo da amortização
do financiamento é coberta pelo governo estadual sob a forma de
contraprestação pecuniária prevista no contrato da PPP.

Figura 2 – Modelo proposto na PPP habitacional

Fonte: Elaboração própria

574
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

Em ambos modelos de produção estatal, tanto pela CDHU


quando pelo PMCMV, o tempo entre o investimento inicial e
o momento em que as construtoras recebem pela construção
das unidades não passa dos 24 meses (exposição ao mercado).
No caso da PPP habitacional, o pagamento pela construção
dos conjuntos é diluído ao longo de 20 anos. A remuneração,
portanto, no modelo CDHU ou PMCMV, ocorre pela construção
das unidades habitacionais propriamente ditas, enquanto que
o valor unitário pela habitação na PPP inclui não só os custos
inerentes à sua construção, mas também uma remuneração pelo
capital investido do concessionário ao longo dos 20 anos de
contrato. Em síntese, a relação econômica estabelecida é análoga
a de uma concessão de crédito pelo concessionário da PPP ao
governo estadual, de modo que a equação financeira prevista no
contrato leva em conta o tempo de recuperação do investimento.
Essa mudança no regime de financiamento do projeto
demandou do governo a estruturação de um esquema de garantias
de pagamento ao concessionário que fosse visto como confiável,
de modo a evitar que um eventual calote do governo fizesse com
que o concessionário ficasse sujeito a receber eventuais débitos
pela via de precatórios14. Como é de praxe no governo do Estado
de São Paulo, seis contraprestações mensais são garantidas pela
Companhia Paulista de Parcerias (CPP), um fundo com recursos
dos cofres estaduais instituído para garantir pagamentos em
projetos de PPPs. A novidade na PPP habitacional foi a forma
como se estruturaram as garantias subsidiárias: criou-se um
fundo provisório com os recebíveis da CDHU15 e se ofereceu
um penhor provisório desse fundo à concessionária no caso de
14
Precatórios são requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário
para cobrar de municípios, estados ou da União, assim como de autarquias
e fundações, o pagamento de valores devidos após condenação judicial
definitiva. Segundo entrevistas com consultores privados, disputas judiciais
por falta de pagamento do setor público frequentemente ultrapassam os 20
anos e acabam sendo executadas pela via de precatórios. Foi possível notar,
ao longo das entrevistas, uma desconfiança generalizada por parte do setor
privado em relação a contratos com o setor público, encarando as garantias de
pagamento previstas em contrato como essenciais para projetos de longo prazo
que envolvem a remuneração do capital privado investido.
15
Os recebíveis da CDHU são as prestações que as famílias pagam mensalmente
pelas unidades habitacionais adquiridas.

575
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

inadimplência do governo estadual. Foi possível perceber ao


longo das entrevistas a existência de uma preocupação grande
por parte de agentes do mercado com relação às garantias de
pagamento. Um consultor de projetos de infraestrutura ressaltou
que as garantias são um elemento essencial em projetos de longo
prazo, sendo exigidas pelas instituições bancárias que financiam
esses projetos.
A PPP é caracterizada pelos seus próprios idealizadores
como uma forma de financiar o Estado:

O negócio da PPP é fundamentalmente um negócio finan-


ceiro. Alguém que está botando dinheiro no Estado em uma
obra e recebendo, obtendo retorno pelo risco tomado, que
é o que a gente chama de taxa interna de retorno do capital.

Outro entrevistado, representante do mercado privado,


afirmou que o concessionário atuaria como uma unidade de
financiamento de todos os serviços inerentes à oferta de habi-
tação (construção dos empreendimentos, manutenção predial,
auxílio à gestão condominial) e não apenas à construção dos
edifícios. Segundo o entrevistado, as atribuições do concessio-
nário seriam as atividades que antes eram realizadas pela própria
CDHU:

a PPP Casa Paulista é nada mais do que uma desestatização


da CDHU. O que a CDHU faz? Pra você entender a PPP, en-
tenda o que a CDHU faz. Historicamente no Brasil, quem fa-
zia o papel dos atuais concessionários ou parceiros privados
são as empresas estatais. Por que uma Petrobras, Eletrobrás
foi criada? Para que a CDHU foi criada? Foi criada não só
para construir unidades habitacionais, mas para prestar uma
série de serviços para que uma pessoa se fixe no lugar, tenha
boas condições de vida. A atuação da CDHU é muito mais
ampla do que apenas a construção de novos conjuntos.

A comparação do custo final por unidade habitacional


em relação ao modelo de produção via CDHU é de difícil
estimativa, visto que a PPP inclui obras públicas16, serviços de

16
Consta no contrato assinado (lote I) duas principais intervenções: i) a construção

576
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

pré e pós ocupação e de manutenção predial, além do fato de o


projeto encontrar-se ainda em fase inicial de implementação17.
No entanto, apesar de a PPP habitacional ser exaustivamente
caracterizada em discursos como uma alternativa que poderia
proporcionar custos inferiores aos do modelo de produção da
CDHU, tanto um ex-secretário estadual de Habitação estadual18,
quanto gestores públicos da própria Casa Paulista entrevistados,
admitiram a possibilidade de o modelo da PPP vir a custar mais
caro ao governo estadual. Segundo relato de um gestor público,
funcionário da Casa Paulista, o modelo da PPP pode custar mais
ao Estado em razão da remuneração do capital privado:

Qual o custo do capital? Para o privado utilizar recursos pró-


prios ou buscar crédito privado para depois receber do Esta-
do, quanto custa isso? A PPP eventualmente pode ficar mais
cara não é porque o modelo de operação é mais caro, mas
porque estou remunerando o capital de terceiros, um dinhei-
ro que eu não tenho e quero antecipar a meta.

de uma passarela para transposição dos trilhos da CPTM, interligando a praça


Nicolau de Moraes Barros e a rua Lopes Chaves e ii) a requalificação paisagística
da Praça Nicolau de Barros (recuperação de calçamento, plantio de grama e
recuperação de mobiliário urbano) (Contrato SH nº001/2015, item 2.1.3.1.1.b).
No entanto, está previsto em contrato que os equipamentos públicos mudem,
desde que representem 3% da área computável do projeto. De acordo com
funcionário da Casa Paulista entrevistado, essa cláusula foi colocada de modo
que, devido à dificuldade na definição dos terrenos, os equipamentos públicos
possam ser redefinidos de acordo com as necessidades do entorno dos terrenos.
No lote I, por exemplo, os equipamentos públicos previstos foram uma escola
de música (Escola de Música Tom Jobim) e uma creche para 200 crianças. Ao
longo das entrevistas, não foi possível identificar qual o critério para definição
dos equipamentos públicos.
17
Dos três lotes ofertados pela Secretaria de Habitação totalizando 14 mil
unidades em 2014, apenas um teve contrato assinado, com 3.600 previstas
(habitação de interesse social e habitação de mercado popular). Até março
de 2018, o concessionário havia entregue dois empreendimentos com menos
de 200 unidades, o que tornaria qualquer estimativa de custo por unidade
habitacional superficial.
18
Numa fala no evento “Formação em PPPs”, ocorrido nos dias 23 e 24 de
novembro de 2016 no Hotel Meliá Paulista, em São Paulo, o então secretário
estadual de Habitação mencionou a possibilidade de o modelo da PPP custar
mais aos cofres públicos do que a CDHU. Segundo o secretário, a opção pelo
modelo seria ainda assim justificável devido às externalidades que o projeto
traria para a região central da cidade.

577
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

A justificativa para o uso de PPPs permeia a baixa capaci-


dade de investimento do setor público e coloca o investimento
privado, mesmo que mais caro aos cofres públicos no longo
prazo, como essencial para “antecipar a meta”. Segundo estima-
tiva da própria Secretaria de Habitação, o déficit habitacional
do Estado de São Paulo é de 1.2 milhão de unidades. Com
orçamento anual de 2 bilhões de reais e um custo por unidade
habitacional de 70 mil (números trazidos por funcionário da
Casa Paulista para o ano de 2016), seriam necessários 42 anos
para zerar o déficit de 2017. O argumento que o governo utiliza
para justificar a utilização da PPP como forma de financiamento
do Estado é de antecipar o cumprimento dessa meta utilizando
recursos privados.
Parcerias público-privadas têm sido cada vez mais utili-
zadas como alternativa para a provisão de moradia popular, e
a PPP de Habitação do centro vem figurando como referência
nesse processo. O próprio governo do estado lançou em
2016 a segunda PPP de Habitação, conhecida como Fazenda
Albor, com características parecidas com as do projeto do
centro no tocante à sua modelagem econômica e jurídica. No
âmbito local, é possível identificar a proliferação de propostas
voltadas à provisão de moradia popular pela via das PPPs.
No município de São Paulo, por exemplo, foi realizada uma
apresentação pública sobre a estruturação de um programa de
locação social utilizando o instrumento da PPP. As garantias
dessa PPP municipal seriam o penhor temporário dos rece-
bíveis da COHAB, algo muito parecido com o que foi feito
pela Casa Paulista com os recebíveis da CDHU. O objetivo de
política pública perseguido por meio da concepção da PPP do
centro, muito mais do que a entrega de unidades habitacionais,
foi o desenvolvimento de um modelo replicável de utilização
do instrumento jurídico-contratual da parceria público-pri-
vada para a construção de moradia popular. A Agência Casa
Paulista coloca-se, dessa forma, como um laboratório de novas
formas de provisionamento de moradia popular, tendo como
foco atribuir à iniciativa privada papel central na proposição e
execução de projetos.

578
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

Conclusão
A experiência da PPP promovida pela Agência Casa
Paulista para a produção de moradia destinada à população de
baixa renda na área central de São Paulo constitui um exemplo
bastante ilustrativo da dinâmica das articulações entre Estado e
mercado que vêm se proliferando com a ascensão do neolibera-
lismo e a difusão de uma agenda de políticas públicas calcada
na hegemonia teórica e política da nova economia institu-
cional. Esse caso mostra a existência de entraves à introdução
de relações de produção e consumo de caráter propriamente
mercantil em determinadas esferas da vida, como a habitação,
bem como a necessidade do emprego intensivo de expedientes
de intervenção na esfera econômica por parte do Estado, que
abrangem fatores como a provisão de condições regulatórias,
a estruturação de arranjos institucionais e a alocação de subsí-
dios, para que se possa, em alguma medida, promover a incor-
poração dessas esferas à racionalidade e aos circuitos de acumu-
lação propriamente mercantis. Buscamos mostrar que, nesse
contexto, o Estado nem sai de cena para dar espaço ao mercado,
nem se impõe como obstáculo ao seu desenvolvimento, mas que,
ao contrário, as instituições públicas exercem o papel de cata-
lisadoras da estruturação e do desenvolvimento de forças do
mercado, figurando como pilares fundamentais de uma ordem
política e econômica que poderia ser sintetizada na noção de
aidez-faire. A análise de discursos de gestores públicos revelou
que, para além de uma alternativa de política pública que venha
proporcionar redução de custos, ganhos de qualidade ou outros
aspectos percebidos como vantajosos no curto prazo, o engaja-
mento do governo paulista na organização de uma sistemática
de provisão habitacional pela via da PPP é, antes de mais nada,
uma ação de caráter estratégico e programático, orientada para
a incubação de novos circuitos mercantis.
Buscamos mostrar, a partir da análise da trajetória recente
de transformações no aparato de política habitacional do Estado
de São Paulo, as mudanças e continuidades que podem ser
observadas na passagem do período desenvolvimentista para o
período neoliberal, argumentando haver um aprofundamento da

579
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

lógica mercantil nessa transição. As relações de tipo mercantil


não surgem nem se estabelecem de modo pleno e irrestrito na
esteira dessa passagem, mas avançam de modo incremental sobre
esferas cuja internalização ao mercado deparava-se com entraves
de difícil superação. A construção institucional exerce papel
fundamental nesse processo, figurando como mediação indis-
pensável à ampliação dos domínios da forma mercadoria.
Dentre os principais indicadores de mudança associados
à introdução das PPPs no setor habitacional no Estado de São
Paulo, destacam-se o que se poderia entender como uma tenta-
tiva de deslocamento da primazia nas atividades de formulação
e financiamento de políticas habitacionais para o setor privado.
No tocante à formulação, o uso crescente dos chamados
Procedimentos de Manifestação de Interesse (PMIs) na
concepção e modelagem de ações governamentais vem operando
um processo de paulatina transferência dessa atribuição tradi-
cionalmente exercida por entes públicos à iniciativa privada. Tal
processo desencadeia uma crescente subordinação dessas polí-
ticas a um paradigma mercadológico, colocando o equilíbrio
econômico-financeiro dos projetos à frente do interesse público.
No tocante ao financiamento, a sistemática introduzida pela
PPP busca estimular o maior engajamento da iniciativa privada
no esforço de financiamento da habitação, introduzindo uma
dinâmica de prazos mais longos para a recuperação de investi-
mentos em comparação às formas anteriores de articulação entre
os setores público e privado. O principal gargalo enfrentado
para a concretização de um objetivo como esse — que, a prin-
cípio, implica na elevação do risco dos parceiros privados — é a
estruturação de formas de garantia tidas como confiáveis, o que
vem se configurando como um dos aspectos centrais na agenda
de mudança institucional das PPPs.

Referências
AALBERS, M. “Regulated deregulation”. In: SPRINGER, S; BIRCH, K;
MACLEAVY, J. (Org.). Handbook of Neoliberalism. Londres: Routledge, 2016.
ANDRADE, L. Política urbana no Brasil: o paradigma, a organização e a
política. Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 18, p. 117-148, 1976.

580
Parceria público-privada para construção de moradia popular:
fundamentos institucionais para a expansão do mercado de habitação em São Paulo

ARAGÃO, T.; CARDOSO, A. “Do fim do BNH ao Programa Minha Casa


Minha Vida”. In: CARDOSO, A. (Org.) O Programa Minha Casa Minha Vida
e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2013.
ARANTES, P. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID
para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado. São Paulo,
FAU/USP, 2004.
ARRETCHE, M. Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência
nas políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 3, n. 11, p.
44-66, 1996. 
ARRETCHE, M. “Política habitacional entre 1986 e 1994”. In: ARRETCHE,
M.; RODRIGUEZ, V. (Orgs.) Descentralização das políticas sociais no Estado de
São Paulo. São Paulo: FUNDAP/IPEA/FAPESP, 1998.
BANCO MUNDIAL. Building institutions for markets. Nova York: Oxford
University Press, 2002.
BARAVELI, J. Trabalho e Tecnologia no programa MCMV. Tese de douto-
rado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de
São Paulo, 2014.
BOLAFFI, G. Aspectos socioeconômicos do Plano Nacional de Habitação.
Tese de doutorado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, 1972.
BRAITHWAITE, J. Regulatory Capitalism: How it Works, ideas for making
it work better. Reino Unido: Edward Elgar publishing, 2008.
BRESSER-PEREIRA, L. C. Da administração pública burocrática à geren-
cial. Revista do Serviço Público. Brasília, v. 120, n. 1, p. 7-29, 1996.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVANS, P. Análise do Estado no mundo neoliberal: uma abordagem insti-
tucional comparativa. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v.
4, p. 51-85, 1998.
FARIA, J. E. O direito na economia globalizada. São Paulo, Malheiros, 1999.
FIX, M. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário
no Brasil. Tese de Doutorado. Campinas, IE UNICAMP, 2011.
HALL, P.; TAYLOR, R. As Três Versões do Neoinstitucionalismo. Lua
Nova. São Paulo, n. 58, p. 193-224, 2003.
HOOD, C. “Public management: the word, the movement, the science”.
In: FERLIE, E.; LYNN, L. E. J.; POLLITT, C. (Eds.) The Oxford Handbook of
Public Management. Oxford, New York: Oxford University Press, 2009.
IMMERGUT, E. The Theoretical Core of the New Institutionalism. Politics
Society, Nova Iorque, v. 26, n. 1, p. 5-34, 1998.
KOWARICK, L. A Espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

581
Alvaro Luis dos Santos Pereira e Gabriel Maldonado Palladini

LEVI-FAUR, D. The global diffusion of regulatory capitalism. Annals of the


American Academy of Political and Social Science. Filadélfia, n. 598.1, p. 12–32,
2005.
LYNN, L. “Public Management: a concise history of the field”. In: FERLIE,
E.; LYNN, L. E. J.; POLLITT, C. (Eds.) The Oxford Handbook of Public Manage-
ment. Oxford, New York: Oxford University Press, 2009.
MARICATO, E. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis:
Vozes, 2001.
MOULAERT, F. Institutional economics and planning theory: a partner-
ship between ostriches? Planning Theory, Auckland, v. 4(1), 2005.
OLIVEIRA, F. Acumulação capitalista, estado e urbanização: a nova quali-
dade do conflito de classes. Revista Contraponto, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1,
p. 5-13, 1976.
PANITCH, L.; KONINGS, M. Myths of neoliberal deregulation. New Left
Review, Reino Unido, v. 57, p. 67-83, 2009.
PEREIRA, A. Financialization of Housing in Brazil: New Frontiers. Inter-
national Journal of Urban and Regional Research, Nova Jersey, v. 41(4), p.
604-622, 2017.
PINDYCK, R.; RUBINFELD, D. Econometric Models and Economic Forecast.
Irwin, McGraw-Hill, 2008.
PULHEZ, M. A gestão da política habitacional em São Paulo: notas sobre
as interações entre Estado e empresas privadas. Novos Estudos CEBRAP, São
Paulo, v. 105, p. 99-116, 2016.
RACO, M. Delivering Flagship Projects in an Era of Regulatory Capitalism:
State-led Privatization and the London Olympics 2012. International Journal
of Urban and Regional Research, Nova Jersey, v. 38(1), p. 176-197, 2014.
ROLNIK, R. A guerra dos lugares. São Paulo: Boitempo, 2017.
ROYER, L. Política habitacional no Estado de São Paulo: estudo sobre
a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de
São Paulo (CDHU). Dissertação de mestrado, São Paulo, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2002.
______. Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas. São
Paulo: Annablume, 2014.
SANFELICI, D. (2013) Financeirização e a produção do espaço urbano no
Brasil: uma contribuição ao debate. EURE (Santiago), Santiago, vol. 39 n.
118, 2013.
SHIMBO, L. Habitação social de mercado: a confluência entre Estado,
empresas construtoras e capital financeiro. Belo Horizonte: Editora C/
Arte, 2012.

582
Parte V

Roteiro de leituras a partir da experiência


do Grupo Metrópole, Estado e Capital:
bibliografia comentada
O que se segue é um breve roteiro de algumas leituras já
realizadas pelo Grupo Metrópole, Estado e Capital, na
forma de uma bibliografia comentada. Acredita-se que esse roteiro
pode contribuir com esforços subsequentes de pesquisas indivi-
duais e/ou coletivas acerca dos temas dos quais nos ocupamos
até aqui, sobretudo no que tange às relações entre financeirização
e transformações urbanas/metropolitanas contemporâneas.

ARANTES, Pedro. O ajuste urbano: as políticas do Banco


Mundial e do Bid para as cidades. Pós. Revista do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, n.
20, p. 60-75, 2006.
O texto traz uma análise sobre a influência de organizações
internacionais multilaterais – notadamente o Banco Mundial
e o BID – na construção e/ou alteração de políticas públicas
voltadas para as cidades. O fio condutor da análise é a ideia
de que estaria em curso uma espécie de ajuste urbano, em
escala mundial, com essas organizações atuando como difu-
soras/gestoras desse ajuste.

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as


origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São
Paulo: Editora Unesp, 1996.
Publicado, originalmente, em 1994 e ganhador do Prêmio
Distinguished Scholarship da American Sociological Asso-
ciation, O longo século XX oferece uma perspectiva que
busca compreender a atual crise da hegemonia estaduni-
dense à luz da comparação com os processos de formação,
expansão e crise das hegemonias anteriores que moldaram
o capitalismo histórico como sistema mundial em sua longa
duração. Para tanto, estabelece a teoria dos ciclos sistêmicos
de acumulação, de inspiração braudeliana, que permite
interpretar a atual fase de expansão financeira como um
processo cíclico e recorrente.

BIENEFELD, Manfred. Suppressing the double movement


to secure the dictatorship of finance. In: BUGRA, Ayse;

585
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

AGARTAN, Kaan. Reading Karl Polanyi for the Twenty-First


Century: market economy as a political project. New York:
Palgrave Macmillan, 2007.
Escrito no âmbito de uma obra coletiva que retoma a teoria
do duplo movimento de Karl Polanyi para refletir sobre a
economia de mercado no século XXI, esse artigo orienta-se
por um argumento que sugere a supressão ou o retardamento
dos contramovimentos de proteção da sociedade diante
do que seu autor denomina como o advento da ditadura
das finanças. Ou seja, essa ditadura seria responsável pela
intensificação dos movimentos de expansão dos mercados
globais autorreguláveis, os quais não encontrariam, necessa-
riamente, resistência nos princípios de proteção social que
Polanyi vislumbrou em sua análise das transformações que
acompanharam o advento da Revolução Industrial.

BRAGA, José Carlos de Souza. Financeirização global – O


padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo.
In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. Poder e
dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis:
Vozes, 1997.
Inserido na coletânea de artigos intitulada Poder e dinheiro:
uma economia política da globalização, esse texto está orga-
nizado em torno da definição da financeirização como
o atual padrão sistêmico de riqueza do capitalismo. Seu
autor descreve e analisa, sucessivamente, a “financeirização
originária” dos Estados Unidos, a ascensão da lógica finan-
ceira geral das corporações capitalistas e o advento do que
denomina como a macroestrutura financeira. Macroestru-
tura onde se dão as operações monetário-financeiras e patri-
moniais dos principais agentes financeiros contemporâneos.

BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro:


Rocco, 1987.
Como estabelecido pelo próprio autor, esse pequeno
volume reproduz os argumentos de três conferências profe-
ridas, em 1977, na Universidade de Johns Hopkins nos

586
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

Estados Unidos. Cada uma das quais correspondentes aos


três volumes de sua obra Civilização material, economia e capi-
talismo, que seriam publicados posteriormente, em 1979.
Grosso modo, esse livro pode ser lido como uma introdução
ao pensamento de Fernand Braudel.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capita-


lismo, séculos XV-XVIlI: I. As estruturas do cotidiano; II. Os
jogos da troca; III. O tempo do mundo. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. 3v.
Obra mais importante do historiador francês Fernand
Braudel, comparável somente, talvez, ao seu O Mediterrâneo
e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. Aqui, encontram-
se as principais contribuições analíticas e teóricas do autor,
dentre as quais se destacam, no que tange aos possíveis
aportes aos estudos acerca da financeirização contempo-
rânea, sua referência às recorrentes fases de expansão finan-
ceira como o “sinal do outono” dos grandes desenvolvi-
mentos da história de longa duração do capitalismo.

CHRISTOPHERS, Brett. Revisiting the urbanization of capital.


Annals of the Association of American Geographers, v. 101, n. 6,
p. 1.347-1.364, 2011.
Como o próprio título sugere, esse artigo é uma retomada
das contribuições teóricas de Henri Lefebvre e David
Harvey sobre a urbanização do capital. Refere-se, em
primeiro lugar, ao modo como Harvey, inspirado nos argu-
mentos de Lefebvre, propôs a ideia de que as recorrentes
crises de sobreacumulação do capitalismo são, parcial e
temporariamente, superadas por transferências de capital
(capital switches, no original em inglês) do circuito primário
(produtivo) para o circuito secundário (financeiro-imobi-
liário). Além disso, considerado o contexto do pós-crise de
2007-9, seu autor busca encontrar padrões de transferência
de capital entre esses circuitos nos Estados Unidos e, princi-
palmente, no Reino Unido.

587
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

CHRISTOPHERS, Brett. The limits to financialization.


Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 183-200, 2015.
Nesse artigo, propõe-se uma reflexão em torno do que
seriam os principais limites da financeirização. Financeiri-
zação entendida tanto como conceito quanto como processo.
Trata-se de uma revisão crítica do debate a respeito desse
conceito, que assinala, sobretudo, a diminuição do poder
explicativo do referido conceito, na medida em que ele se
expande demais e tende a se transformar no que o autor
designa como uma buzzword, um termo excessivamente em
voga e utilizado sem maiores rigores. Cabe ressaltar, ainda,
que, no volume de Dialogues in Human Geography em que
esse artigo foi publicado, há um conjunto de contestações
aos argumentos de Christophers, bem como uma tréplica
do autor.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo:


ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo,
2016.
Nessa obra, os autores realizam uma análise sobre os diversos
aspectos que envolvem o neoliberalismo como ideologia domi-
nante na atualidade. Retomam o histórico de seu surgimento,
traçando e sublinhando as diferenças em relação ao libera-
lismo, bem como discutem o surgimento de um ethos e de uma
governamentalidade neoliberal que seriam fundamentais para a
compreensão das mudanças econômicas, políticas e sociais da
atualidade.

FERNANDEZ, Rodrigo; AALBERS, Manuel. Financialization


and housing: between globalization and varieties of capitalism.
Competion & Change, v. 20, n. 2, p. 71-88, 2016.
O artigo trata do processo de financeirização do imobiliário
como parte de um cenário macroeconômico de dominância
financeira. O imobiliário é definido como um instrumento
preferencial de absorção de capitais excedentes, embora
nem sempre de maneira homogênea. No artigo são anali-
sadas as trajetórias de quatro países no que se refere à

588
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

financeirização do imobiliário, buscando relacionar as dife-


renças entre eles com variações do próprio capitalismo, que
se apresenta de maneira distinta em diferentes contextos
geográficos, políticos e econômicos.

FIORI, José Luis. A propósito de uma construção interrom-


pida. Economia e Sociedade, v. 9, n.1, p. 1-19, 2000.
Nesse artigo, José Luiz Fiori dialoga com a hipótese de Celso
Furtado de que o ressurgimento de uma agenda política libe-
ral-internacionalizante na década de 1990 corresponderia a
uma interrupção do processo, iniciado nos anos 1930, de
construção de uma formação econômica nacional no Brasil
capaz de autodirigir-se através de centros de decisão endó-
genos e autônomos. De acordo com Fiori, na verdade, o
período desenvolvimentista deve ser entendido como um
interregno que, ao chegar fim, recolocou o Brasil de volta
nos trilhos de uma história que remonta às origens de sua
inserção periférica no sistema interestatal. Para sustentar
seu argumento, expande a tese do “duplo movimento” de
Karl Polanyi de forma a destacar que os princípios do libe-
ralismo econômico e da autoproteção social se manifestam
de maneiras distintas no centro e na periferia do sistema.
A periferia latino-americana caracterizou-se por não gerar
reações protecionistas ou de expansionismo regional. Uma
vez que sempre estiveram articuladas às ordens mundiais
liberal-internacionalizantes e nunca precisaram desenvolver
um projeto nacional e popular para defender a acumulação
de suas riquezas, o projeto secular das elites econômicas
brasileiras estaria mais associado à transnacionalização dos
centros de decisão e das estruturas econômicas do país.

FOX GOTHAM, Kevin. Creating Liquidity out of Spatial Fixity:


The Secondary Circuit of Capital and the Subprime Mortgage
Crisis. International Journal of Urban and Regional Research, v.
33, n. 2, p. 355-371, 2009.
O artigo trata do papel do Estado na configuração e fluxo
das atividades do mercado imobiliário por meio do controle

589
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

da liquidez dos ativos. Nesse cenário, a análise tem como


foco a dimensão legal/regulatória e seu papel na expansão
dos títulos lastreados em hipotecas e no desenvolvimento de
um mercado imobiliário financeirizado. Na visão do autor,
haveria um esforço do Estado – expresso em sua atuação
legal/regulatória para tornar os ativos imobiliários aptos a
transitar em mercados globais de capital.

GARCÍA-LAMARCA, Melissa ;KAIKA, Maria. “Mortgaged


lives”: the biopolitics of debt and housing financialisation.
Transactions of the Institute of British Geographers, v. 41, n. 3, p.
313-327, 2016.
O artigo busca analisar o aspecto biopolítico do fenômeno
da financeirização das hipotecas pelo mundo. A partir do
estudo de caso da crise hipotecária espanhola, o artigo
destaca o caráter ideológico e de capilaridade na vida coti-
diana dos moradores das hipotecas, sem os quais não seria
possível levar seu mercado ao nível que permitiu a eclosão
da grande crise de 2008. No cenário dessa crise, o artigo
descreve como o mercado hipotecário se tornou uma tecno-
logia punitiva para a classe trabalhadora, ressaltando os
aspectos relacionados à sua imbricação na vida cotidiana.

GOMES, Helder (Org.). Especulação e lucros fictícios. São Paulo:


Outras Expressões, 2015.
Essa obra contém um conjunto de artigos escritos por
Reinaldo A. Carcanholo, Paulo Nakatani, Maurício S.
Sabadini, François Chesnais e seu próprio organizador.
Artigos que lidam com a atual dominância da lógica de
valorização do capital fictício, o que assume o aspecto da
emergência do que os autores designam como o capital
especulativo e o capital especulativo parasitário. Trata-se,
em suma, do resgate e da atualização das categorias da
economia política marxista – como capital portador de
juros, sistema de crédito e capital fictício – para investigar
os atributos fundamentais do capitalismo contemporâneo.

590
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

HAILA, Anna. Four types of investment in land and property.


International Journal of Urban and Regional Research, v. 15, n. 3,
p. 343-365, 1991.
A autora inicia o artigo apresentando o que seria uma
dicotomia entre teorias sobre a propriedade fundiária. A
autora defende que essa suposta dicotomia é falsa e não
resiste ao crivo da análise empírica sobre a propriedade da
terra. A autora apresenta quatro teorias de investimento
em terra e propriedade, destacando que uma das carac-
terísticas do investimento na terra é a variedade de usos,
investidores e motivos de investimento, o que já afastaria
teorias baseadas em apenas um foco de análise. A partir
disso constrói uma tipologia de quatro formas de investi-
mento em terra e propriedade. Essa tipologia se baseia em
duas dimensões principais: o propósito e os horizontes
temporais dos investimentos em relação a seus agentes.
Apresentada sua tipologia, a autora faz uma relação desta
com as teorias sobre a terra e a propriedade. Para ela,
é possível, a partir das tipologias propostas, diferenciar
etapas do desenvolvimento urbano que terão diferentes
agentes, investimentos e lógicas dominantes. Na conclusão
do artigo, a autora sugere a superação da suposta dico-
tomia representada pelas duas correntes (neoclássicos x
institucionalistas/marxistas) a partir do recurso à empiria
na análise do desenvolvimento urbano.

HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo,


2013.
Nessa obra fundamental, David Harvey estabelece as bases
teóricas que vão orientar grande parte de suas pesquisas e
trabalhos futuros. A teoria marxista da crise é reconstruída
em torno de três diferentes recortes – considerados não como
momentos separados e sequenciais, mas aspectos simultâ-
neos dentro da unicidade orgânica do capitalismo: o primeiro
recorte se refere às contradições internas da produção capi-
talista que resultam numa tendência à sobreacumulação de
capital; o segundo recorte examina os “ajustes temporais”,

591
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

ou seja, os aspectos financeiros e monetários de formação/


resolução das crises; o terceiro recorte incorpora os “ajustes
espaciais”, as expansões e reestruturações geográficas que
produzem configurações espaciais e desencadeiam desenvolvi-
mentos geográficos desiguais como respostas às contradições
internas do capitalismo. Ao integrar os aspectos espaço-tempo-
rais da acumulação dentro da estrutura geral do argumento
de Marx, Harvey oferece uma importante contribuição para a
construção de um “materialismo histórico-geográfico”.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revo-


lução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014 (Capítulo 2).
No contexto dos debates subsequentes à crise no mercado
financeiro-imobiliário nos Estados Unidos, esse capítulo
busca retomar o argumento de Harvey de que o processo
urbano no capitalismo está relacionado com as tendências
cíclicas de sobreacumulação de capital na produção. Nesse
sentido, apresenta a hipótese das transferências recorrentes
de excedentes de capital do circuito primário (produção)
para o circuito secundário (imobiliário) em ondas de inves-
timento no meio ambiente construído que, por sua vez,
deslocam as tendências de crise para as cidades. Por fim,
apresenta uma análise da recente urbanização chinesa e seus
efeitos sistêmicos na economia mundial.

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capita-


lismo. São Paulo: Boitempo, 2011 (Capítulo 6).
Esse capítulo, que integra um livro que retoma as análises da
dinâmica de acumulação de capital e da formação das crises,
trata especificamente da produção de uma geografia própria
do capitalismo. Argumenta que a diversidade geográfica é
uma condição necessária para a reprodução do capital e que
ela é recriada constantemente através de processos inerentes
à acumulação – como a competição e as crises, por exemplo.
Assim, o desenvolvimento geográfico desigual capitalista
(re)constrói um mundo complexo e dinâmico interligado
por diferentes paisagens e atividades humanas.

592
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.


Escrito no contexto da invasão do Iraque pelos Estados Unidos,
em 2003, O novo imperialismo superou essa conjuntura especí-
fica, tornando-se fundamental para a compreensão do capita-
lismo contemporâneo por ao menos três motivos. Primeiro,
por resgatar, sintetizar e, ao mesmo tempo, ampliar a teoria
dos ajustes espaço-temporais, acomodando-a ao debate sobre
o imperialismo, algo que estava desenvolvido apenas de forma
incipiente em Os limites do capital. Segundo, por oferecer uma
leitura renovada do que Marx chamou de acumulação primi-
tiva, sugerindo, por intermédio do conceito de acumulação
por despossessão, sua permanência no decorrer da longa
geografia histórica do capitalismo. Argumento que, diga-se de
passagem, não é completamente novo e remonta, no mínimo,
às elaborações de Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt, as quais
o autor reconhece e incorpora à sua própria formulação. Por
último, cumpre destacar o modo como Harvey assimila a ideia
arrighiana da interdependência entre as lógicas capitalista e
territorialista do poder. O que está na origem da elaboração,
em obras subsequentes, do conceito de nexo Estado-finanças.
Conceito a partir do qual o autor propõe a fusão entre as duas
lógicas supramencionadas na forma de um conjunto de meca-
nismos e instituições de poder e de acumulação que estão no
centro da coordenação do sistema de crédito, bem como da
expansão e da estabilização do capitalismo.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as


origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2008.
Nessa obra, que se tornou uma importante referência para
o campo dos estudos urbanos, David Harvey descreve uma
série de mudanças nas práticas culturais, políticas e econô-
micas ocorridas a partir dos anos 1970. Argumenta que essas
mudanças estariam relacionadas a uma transformação mais
geral nas formas de acumulação de capital – transformações
superficiais, uma vez que não confrontam ou superam os
fundamentos da acumulação capitalista. Ao invés disso, elas
indicariam o ocaso do fordismo do pós-Guerra e a emer-

593
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

gência de padrões mais flexíveis de acumulação associados


a um novo ciclo de compressão do tempo-espaço na organi-
zação do capitalismo, com especial destaque para o floresci-
mento e expansão dos mercados financeiros.

JESSOP, Bob. Knowlegde as a fictitious commodity: insights


and limits of a polanyian perspective. In: BUGRA, Ayse;
AGARTAN, Kaan. Reading Karl Polanyi for the Twenty-First
Century: market economy as a political project. New York:
Palgrave Macmillan, 2007.
O texto trata da crescente visão do conhecimento como uma
mercadoria no capitalismo. A partir de uma análise do tema
com base na obra de Karl Polanyi, e portanto do paradigma
das mercadorias fictícias, o texto aborda o caminho que
levou o conhecimento à posição de fator de produção mais
importante e chave da economia competitiva. O texto lança
também um olhar sobre as resistências a esse processo.

LAGNA, Andrea. Derivatives and the financialisation of the


Italian State. New Political Economy, v. 21, n. 2, p. 167-189, 2016.
Esse artigo parte do pressuposto de que a maioria das
pesquisas em torno da financeirização tende a desconsi-
derar o modo como os governos manejam e utilizam instru-
mentos e inovações financeiras para atingir seus objetivos
estratégicos. Nesse sentido, levando em conta a gestão da
dívida pública italiana por intermédio do uso de derivativos,
a partir dos anos 1990, toma como objeto principal a rees-
truturação das instituições e do poder do Estado em conso-
nância com a crescente influência das finanças no mundo
contemporâneo. Tudo isso correspondendo, nos termos do
autor, ao processo de financeirização do próprio Estado.

LAPAVITSAS, Costas. Financialised capitalism: crisis and


financial expropriation. Historical materialism, v. 17, n. 2, p.
114-148, 2009.
Partindo da retomada das teorias marxistas do imperia-
lismo e do capital financeiro, sobretudo da formulação

594
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

clássica de Hilferding, Lapavitsas define a financeirização


como uma transformação sistêmica das economias capi-
talistas avançadas. Transformação descrita conforme os
seguintes aspectos básicos: i) as grandes corporações não
financeiras diminuíram sua dependência de empréstimos
bancários, adquirindo capacidades financeiras relativa-
mente autônomas; ii) os bancos expandiram suas atividades
de mediação nos mercados financeiros, bem como seus
empréstimos aos indivíduos e às famílias; e iii) as famílias
tornaram-se crescentemente envolvidas no domínio das
finanças, tanto como devedoras quanto como proprietárias
de ativos. Ademais, o autor propõe o conceito de expro-
priação financeira, com o qual sublinha a conversão de
rendas, ativos e passivos de indivíduos e famílias em fontes
de lucros financeiros.

PAULANI, Leda. Acumulação sistêmica, poupança externa e


rentismo: observações sobre o caso brasileiro. Estudos Avan-
çados, São Paulo, v. 27, n. 77, p. 237-261, 2013.
O artigo discute o papel do Brasil em um cenário de domi-
nância financeira internacional, defendendo a tese de seu
funcionamento como uma plataforma de valorização finan-
ceira a partir de políticas de juros elevados e baixo inves-
timento produtivo. O argumento da autora relaciona esse
tipo de funcionalização da economia nacional com a manu-
tenção do país em uma posição subordinada, com acen-
tuação de sua dependência econômica.

PAULANI, Leda. Inserção da economia brasileira no cenário


mundial: uma reflexão sobre a situação atual à luz da história.
Boletim de Economia e Política Internacional, n. 10, p. 89-102,
2012.
O artigo pretende trazer uma retrospectiva histórica das
diferentes fases atravessadas pela economia brasileira em
sua relação com o capitalismo mundial. A partir de um
panorama mais geral, a autora foca nos últimos 40 anos para
analisar, de forma mais detida, a consolidação da posição

595
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

brasileira como potência financeira emergente, a partir de


um modelo de plataforma de valorização de capitais.

PECK, Jamie; THEODORE, Nik. Variegated capitalism.


Progress in Human Geography, v. 31, n. 6, p. 731-772, 2007.
Na década de 1990, em meio ao discurso hegemônico do
triunfo histórico do capitalismo, uma série de autores busca
recolocar em pauta a heterogeneidade existente nos dife-
rentes contextos nacionais. Os estudos sobre as “variedades
de capitalismo” enfatizaram as diferentes formas de organi-
zação das instituições nacionais e a lógica de atuação de suas
empresas. Entretanto, Peck e Theodore afirmam que esses
trabalhos tenderam a uma “reificação” das fronteiras econô-
micas nacionais, deram um excesso de centralidade à lógica
de operação empresarial, além de não terem considerado
suficientemente as relações de interdependência entre os
países. Frente a esses pontos críticos, os autores propõem que
a abordagem de “variegações do capitalismo” pode contribuir
ao incorporar as “grandes geografias” da reestruturação capi-
talista, o desenvolvimento desigual e os processos de globa-
lização e financeirização, ampliando as análises a partir de
outras dimensões escalares e de processos de longa duração.

TAYLOR, Peter J. World cities and territorial states under


conditions of contemporary globalization. Political Geography,
v. 19, n. 1, p. 5-32, 2000.
Nesse artigo o autor pretende rever a ideia segunda a qual
as cidades substituem os Estados como centro espacial e
institucional chave do mundo moderno, que fica no centro
das teorias da globalização. A partir da concepção de capita-
lismo de Braudel, o autor defende que as cidades mundiais
contemporâneas são uma forma específica do nexo anti-
mercado regionalismo. As cidades mundiais são as prin-
cipais concentrações de inúmeros poderes de monopólio.
Mais precisamente a ideia é de analisar em que medida as
empresas participam do processo de formação das cidades
mundiais. Onde ficam e qual o critério que se deve utilizar

596
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

para definir uma cidade mundial, levando a uma lista de 55


cidades que abrigam os serviços superiores. Na conclusão,
o autor critica a concentração no Estado nos estudos sobre
globalização e aponta necessidade de estudar a rede global
de cidade como um tudo.

TAYLOR, Peter J. et al. Explosive city growth in the modern


world-system: an initial inventory derived from urban demo-
graphic changes. Urban Geography, v. 31, n. 7, p. 865-884, 2010.
Esse artigo tem com objetivo identificar as mudanças econô-
micas nas cidades a partir da análise da demografia urbana.
A partir da base teórica de Wallerstein e Jacob, e sua visão
sobre as cidades no desenvolvimento econômico, os autores
procuram os casos de crescimento – explosivo – de cidade
de 1500 até o período atual. O rápido crescimento da popu-
lação sendo assim um indicador do crescimento econô-
mico das cidades. Os resultados mostram que a frequência
e a magnitude desses 184 surtos econômicos aumentam
com a expansão geográfica e econômica do sistema-mundo
moderno. A geografia dos surtos econômicos releva duas
categorias de cidades: a primeira remete às cidades concen-
tradas em regiões mundiais, revelando processos de formação
de centros; a segunda corresponde às cidades isoladas, carac-
terizando centros nas regiões periféricas, definindo a semi-
periferia. O autor conclui defendendo que as cidades são o
motor do crescimento econômico. Assim, elas não são resul-
tados da hegemonia, mas produtoras da hegemonia.

TOPALOV, Christian. Capital et proprieté foncière: introduction


a l’étude des politiques foncières urbaines. Paris: Centre de Socio-
logie Urbaine, 1973.
A obra busca definir o papel da propriedade do solo urbano
nas transformações do modo de produção capitalista e nos
processos de urbanização que são por ele gerados. O debate
proposto passa pelos processos de reprodução do capital
que têm por base as cidades, bem como por uma análise
detida sobre a temática da renda da terra urbana.

597
Roteiro de leituras a partir da experiência do Grupo Metrópole,
Estado e Capital: bibliografia comentada

WALLERSTEIN, Immanuel. Impensar a ciência social: os limites


dos paradigmas do século XIX. São Paulo: Ideias e Letras, 2006
(Capítulos 1 e 10).
Como o próprio título da obra sugere, Wallerstein propõe
o desafio de identificar e superar os limites dos para-
digmas que influenciaram o desenvolvimento das ciências
sociais desde o século XIX. De fato, nos termos do autor,
esses paradigmas teriam se tornado verdadeiros obstá-
culos à compreensão da sociedade contemporânea. Nesse
sentido, destacam-se, particularmente, os capítulos 1 e 10. O
primeiro, por enfatizar o modo como a Revolução Francesa,
entendida como um evento-mundo histórico, abriu caminho
para a constituição de três conjuntos de instituições cultu-
rais indispensáveis à expansão da economia-mundo capi-
talista como sistema-mundo, quais sejam: i) as ideologias;
ii) as ciências sociais; e iii) os movimentos antissistêmicos.
O segundo, por retomar e ampliar as categorias do tempo
social tal como concebidas por Fernand Braudel, problema-
tizando a hipótese da existência de espaços correlatos aos
tempos dos eventos, das conjunturas e das estruturas.

WANG, Yingyao. The rise of the “shareholding state”: finan-


cialization of economic management in China. Socio-Economic
Review, v. 13, n. 3, p. 603-625, 2015.
O autor desse artigo apresenta uma leitura alternativa da
financeirização tendo em vista o caso repleto de singulari-
dades que é o da economia chinesa. Grosso modo, em sua
opinião, não só os estudos sobre a dominância financeira
contemporânea deveriam considerar o que se pode chamar
de financeirização do Estado, como deveriam levar em
conta casos em que esse mesmo Estado conduz o processo
de financeirização segundo seus próprios objetivos e sem
comprometer, necessariamente, sua soberania.

598

Você também pode gostar