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TRES ALQUEIRES E UMA VACA

GUSTAVO C O R £ Á O

TRÉS ALQUEIRES
E UMA VACA
CAPA COM DESENHO DE
G. K. CHESTERTON

6.a edigáo

1 9 6 1
^7/vrar/o AGIR S'c/z/ora
RIO DE JANEIRO
Copyright de
ARTES GRAFICAS INDÚSTRIAS REUNIDAS S A
(AGIR )

Tres alqueires e urna vaca

1.a ed. 194


2“ ed. 194
3* ed. 195
4* ed. 195
5.» ed. 195
6» ed. 196

^7/vrar/a AGIR S'c/z/ora


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ENDERÉgO TELEGRAFICO: “AGIRSA”
Í N D I C E

PARTE I
O HUMANISMO DE CHESTERTON
Um grande escritor .................................................................. 11
Reflexóes inúteis sóbre escritores inúteis .............................. 14
O falso e o genuino ................................................................. 16
Há um enigma cm cada carta ................................................... 20
Há urna carta em cada livro .................................................... 24
“Ecce Homo” ........................................................................... 30
O homem que nao quis urna ilha............................................. 35
Reflexóes sóbre a quantidade.................................................. 39
A variedade na unidade .......................................................... 41
Urna apariQáo e urna objecáo................................................. 43
Pés e polegadas ...................................................................... 48
Acróbata do bom-senso .......................................................... 50
O paradoxo contra o lugar-comum ........................................ 56
O combate e o conflito ........................................................... 60
>
PARTE II

O HOMEM E SUAS IDÉIAS


Campeáo de idéias ................................................................. 67
Trés ou quatro capítulos omitidos ................................. ........ 69
A coroa de idéias .................................................................... 75
Um bom parceiro ................................................................... 81
Idéias e doutrina ..................................................................... 85
Trés idéias e trés damas .......................................................... 89
PARTE III

PARA NAO SER DOIDO ...


Apolo ...................................................................................... 93
Dionisos ................................................................................. 102
8 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

O mistério ................................................................................ 107


O difícil torna-se fácil ........................................................ 111
Urna quadrilha de ladróes ................................................ 114
A primeira vez .................................................................. 116
A monotonia .................................................................... 125
O mistério da infancia ...................................................... 133
O crime ........................................................................... 14°
Um gigante de duas cabegas ............................................. 146
Urna restrigáo .................................................................. 156
A casa do mistério ............................................................ 159

PARTE IV
P A RA N A O SF.R B Á RBA RO ...

O bárbaro ........................................................................ 168


O esperto ......................................................................... 16P
Ditadura e divórcio ........................................................... 173
A história da astúcia ........................................................ 175
A lei da memória .............................................................. 181
A superstigao do juramento .............................................. 188
A história do juramento .................................................... 196
O contrato ....................................................................... 21)0

Diálogo sem principio nem fim .......................................... 207


Carta expressa s6bre o vinculo conjugal ............................ 217
Democracia e tradigao ...................................................... 225

PARTE V
P A RA N A O S ER E S C RA VO . ..

O paraíso terrestre ........................................................... 233


O herdeiro ....................................................................... 236
O asceta .......................................................................... 241
O distributismo ................................................................ 249
Objegóes .......................................................................... 255
Capitalismo e socialismo .................................................. 259
O gigantismo .................................................................... 263
Propriedade e uso ............................................................. 273
A casa ............................................................................. 283
Sao Martinho, distributista ............................................... 300
O direito de possuir os próprios cábelos ............................ 309
PARTE I

HUMANISMO DE CHESTERTON

‘Tu o colocaste logo abaixo dos arijos”.


Salmo XX.
U M GRANDE ESCRITOR
Nao me lembro de ter notado, em 1936,
a repercussáo produzida pelo desaparecimien-
to dessa grande figura do pensamento mo-
derno que foi Gilbert Kpith Chesterton.
Naquele tempo, é verdade, um luto próximo
trazia-me desinteressado dos acontecimentos
literários e das mortes distantes; devo assi-
nalar, todavia, que ocorreu nesse tempo, exa-
tamente na época de seu desaparecimento, o
meu primeiro encontro com sua obra, eome-
Qando entáo a viver para mim a voz poderosa
e cordial, que durante meio século vivificara
urna civilizado adoentada, com um riso sa-
lubre e com um atlético bom-senso. Nao dei
pelo seu desaparecimento, mas senti, com a
impetuosa evidencia de uma janela aberta,
o seu aparecimento. E creio que ésse fato, que
para mim teve tamanha importancia e se re-
vestiu de tao nítido contraste, vem se proces-
sando de modo análogo em relagáo ao mundo
inteiro: Chesterton está crescendo. O mundo
que o perdeu nao avaliou a justa medida do
que perdia; agora, os que o encontram come-
gam a se admirar com o que encontraram.
Chesterton é, efetivamente, um grande
escritor. Receio que esta simples frase nada
diga ao leitor, que mil vézes já a viu aplicada,
ou como revelagáo de escritores que apare-
12 TRÉS ALQUEIKES E UMA VACA

cem, ou como elogio fúnebre dos que desapa-


recem. As admiragoes estao cansadas. Preci-
samos instalar amplificadores no estilo para
conseguir um pequeño movimento de solici-
tude e de interésse; ou entáo, se nao gosta-
mos de descomedimentos, devemos tentar a
frase em outra ordem, na esperarla de dar
ás palavras um novo ánimo. Direi, pois, que
Chesterton é um escritor grande.
Sua grandeza é extensa e intensa: ex-
tensa pela enorme área de assuntos que sua
obra cobriu; intensa pela fórga, pela viril
energía com que aderiu, em todos os pontos,
com violencia, com infatigável confianza, aos
principios básicos sóbre os quais repousam as
destinos do género humano. Chesterton, no
mais exato sentido, é um escritor. Tenho
como certo que nao há vidas inúteis, mas te-
nho como certíssimo que a maior parte dos
livros sao inúteis, no sentido mais duro e
mais triste do térmo. Nao há vidas inúteis:
a mais obscura, que ainda traga aceso e
quente o mais malogrado coragáo, é ainda
um bem inestimável e insubstituível, único
no género, necessário á harmonía do univer-
so. A vida daquele homem que passa com um
cesto de legumes na cabega é — éle talvez
nao saiba — urna coisa cobigada! A vida mais
amena daquele outro que pisa o arranco do
automóvel — éle talvez já o tenha esquecido
— é disputada em áspera luta entre os ar-
canjos.
Nao há vidas insignificantes; mas há
escritores insignificantes, escritores cujas
obras pouco ou nada significam. E quando
O HUMANISMO DE CHESTERTON 13

digo que Chesterton é um escritor, quero


afianzar que sua obra tem um sentido, ocupa
um lugar, representa um papel, pesa, fun-
ciona. Quero dizer, em outras palavras, que
a inteligencia que se interesse, hoje, por en-
trar em contato com as realidades mais signi-
ficativas da cultura universal, que deseje vi-
vamente estar inserida nesse hoje do mundo,
nao pode deixar de lado, como pega mera-
mente acessória, e quigá inútil, a imensa obra
de Gilbert Keith Chesterton.
REFLEXÓES INÚTEIS SÓBRE
ESCRITORES INÜTEIS
As obras escritas, em todos os muitos
géneros, sao em grande parte meros aciden-
tes, ondas fortuitas, que nao chegam a íicar
incorporadas, realmente incorporadas, nessa
pirámide das grandes ofertas que o homcm
faz ao homem. Se nao tiram, tambem nao
acrescentam. Formam depósitos secundários
de que vivem os livreiros e as tragas. Funcio-
nam como os assuntos do dia, escándalos ou
banquetes, nao chegando a ser própriamente
obras, mas acontecimentos. Entram no calen-
dario, nos saloes, ñas colunas da crítica e
muitas vézes ñas academias, mas nao ade-
rem ao compacto e concreto mundo da ver-
dade. Tém a natureza dos passos de danga
de que nem o chao guarda memoria, ou a
semelhanga do palito que só entretém um
breve e subalterno contato com o alimento.
Há escritores (ai de nós!) cujo maior
título é urna pontualidade ou uma atitude:
estar escrevendo. Vivem num participio pre-
sente que nao participa de um presente. Es-
táo na literatura como os generáis na ativa.
Reformados, vai-se-lhes o prestigio; mortos,
fica um registro nos almanaques e outro na
sepultura. Há no mundo dois mundos, um
de pedra e outro de neblina: geología e me-
O HUMANISMO DE CHESTERTON 15

teorologia. Na literatura há também monta-


nhas e brisas. Os livros que encontramos sao,
na maior parte, como as correntes de ar; e
sua leitura tem a brevidade e o enfado de
urna gripe. Leu-se; sofreu-se; acabou-se.
O FALSO E O GENUINO
Esta divisáo um pouco sumária, e talvez
cándida demais, entre bons e maus livros,
deve ser esclarecida e subordinada a um cri-
tério para que o lei tor nao a interprete mal.
Antes de mais nada afasto qualquer idéia
moralista, depois ponho também de lado o
nivel literario, isto é, a aristocrática demar-
cagáo entre as obras requintadas e as mais
rústicas e populares.
Quando falo em livros que pesam, e me
lamento dos que nao pesam, quero me referir
a urna distingáo mais delicada — ou talvez
mais brutal — do que aquela que geralmente
se estabelece entre um bom e um mau bife,
entre o casaco bem feito e um outro de mau
paño ou defeituosa costura. Essas seráo, na
acepgáo aqui adotada, avaliagoes puramente
adjetivas. Tém incontestável importancia,
sem dúvida, e cada dia maior, porque um dos
aspectos mais tristes da política moderna ou
das mais recentes concepgóes de vida é certa-
mente a degradagao geral das qualidades.
A distingáo que investigo, entretanto, é mais
interior á natureza das coisas. Um mau bife
ainda é um bife; um mau casaco ainda veste.
Será entáo a verdade, ou a exatidáo, do
conteúdo de um livro o critério que estou
buscando? Será, por exemplo, o fato de ter
O HUMANISMO DE CHESTERTON 17

sido Chesterton um católico, e portanto ver-


dadeiro na medida em que foi ortodoxo, o
que constituí o primeiro título positivo de sua
obra, e o que me permite considerá-lo um
grande escritor?
Ouso dizer que nao é isso. Um livro pode
ser grande e digno de interésse mesmo quan-
do escrito contra a verdade. Estarei mais
próximo, mais quente, se disser que o pri-
meiro divisor das obras humanas, de onde se
tira a condigáo primeira e eliminatoria, nao
é tanto a verdade nelas contida, mas a sua
ligagáo com a verdade. Com amor ou com
odio, acertó ou desacertó, o primeiro trago
íisionómico de urna obra humana deve ser a
sua humanidade. Deve ser a conexáo vital
e real com as coisas do homem, sua invencí-
vel tendencia, colérica ou cordial, para tudo
que1 nos toque na carne e no sangue. Ésse
é o si nal que urnas obras possuem e outras
nao. Sinal de participado na concordia ou
no combate; noticia boa ou má (a ser verifi-
cada logo depois), verdadeira ou falsa (a ser
cuidadosamente examinada); mas noticia
que me faga pensar: “Isto é comigo.”
Antes de qualquer averiguagáo posterior,
eu quero saber se o livro está escrito num
idioma terrestre, urna vez que os problemas
selenitas ou marcianos só me interessam na
medida, remotamente provável, em, que me
possam dar algumas das solugóes perdidas ou
esquecidas dos nossos próprios problemas.
Tornou-se moda, hoje, ser antiindividualista,
antimatrimonial, anticaseiro, antibairrista, e
antipatriota; mas ainda nao houve filósofo,
18 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

creio eu, que desdobrasse a bandeira antiter-


restre em nome de um internacionalismo si-
deral. Apeguemo-nos pois ao planeta; á terra;
ao barro; ao homem.
Ora, o que eu quero dizer, sem pretender
entretanto um largo desenvolvimento de de-
monstragóes, é que existem obras, em arte e
filosofia, desprovidas désse interésse profundo
e vital, obras que nao tratam do homem, que
nao lhe concernem, e que, nem ao menos para
o destruir, procuram atingi-lo. E é nesse pon-
to, nessa falta de contato, a meu ver, que se
localiza a mediocridade. Náo sao as blasfe-
mias — nessa ordem de idéias — que excluem
a obra de Nietzsche do campo onde os homens
se golpeiam ou se abragam; náo diminuem a
grandeza do poeta, que pagou por elas eleva-
do prego, e náo é fácil rir e zombar de seus
delirios. O que imprime á sua obra um sinal
de irremediável ridículo sáo os atentados ao
homem em nome do super-homem. O ateísmo
dos marxistas náo é também, nesse ponto de
vista, a mancha mais repulsiva dos seus tra-
tados, mas o atentado contra o homem em
nome do sub-homem. Ambos sáo ridículos
porque, sendo o mundo redondo, o super e
o sub se tornam relativos e muitas vézes se
confundem.
Para dar mais nitidez á distingáo pesqui-
sada, direi que há duas grandes classes de
autores separadas por um abismo: os genuí-
nos (melhores ou piores) e os falsificados. Os
primeiros andam na grande linha que liga as
origens aos destinos do homem, para acertar
ou errar, para blasfemar ou louvar; andam
O HUMANISMO DE CHESTERTON 19

no encalgo de urna pista, curvados, com pa-


ciencia ou em delirio, atentos as inúmeras e
perturbadoras marcas deixadas pelos pés hu-
manos. Os outros sao imitadores de gestos,
indios de opereta, e pouco lhes importa que
exista urna tribo amiga ou que estejam acam-
pados, além, numa clareira escondida, os san-
guinarios inimigos.
O primeiro sinal que um leitor prevenido
deve procurar num livro, a meu ver, é o da
autencidade. Antes de qualquer avaliagáo
final, antes de urna colocagáo mais firme, im-
porta distinguir se a obra vem das profunde-
zas de um sujeito ou das meras superficies,
que . apenas espelham os gestos dos outros.
O que importa, na voz de um livro, é que seja
urna voz de homem, que as palavras dessa
voz estejam ligadas á lenda désse rei que cada
esfinge de esquina tenta devorar. Q que im-
porta, em suma, é que a obra sejá urna Men-
sagem.
HÁ UM ENIGMA EM CADA CARTA
Suponha o leitor que eu tenha encon-
trado em cima da mesa um papol com os
seguintes sinais:
“asdx...jhkloda:gjkjhgfdslkjeto&umadoigdt...”
Conforme o humor ou as circunstancias,
formularei hipóteses diferentes. A mais ro-
manesca consistirá em supor urna mensagem
cifrada, contendo ameagas de urna sociedade
secreta ou a noticia de um tesouro enterrado.
Nesse caso, eu terei um interésse febril em
decifrar a mensagem, pois sempre tive grande
atragáo pelos enigmas. Em menino, lembro-
me bem, fiquei com a respiragáo suspensa
quando deparei o criptograma achado pelo
aventureiro de Júlio Verne no Alto Amazonas.
Haverá quem nao se emocione diante de um
segrédo?
O enigma tem qualquer coisa de germi-
nal: o arcano é o agasalho de urna verdade
nascente, é um ninho escondido, urna semen-
te sepultada. Consta que Galileu guardou em
palavras enigmáticas a descoberta dos anéis
de Saturno. A primeira vista, o florentino
estaría se precavendo contra as severidades
eclesiásticas; mas essa explicagáo nao suporta
a análise porque o mesmo Galileu nao pos
em cifra, ao contrário publicou-a, sua duvi-
O HUMANISMO DE CHESTERTON 21

dosa exegese de textos bíblicos que interes-


sava á Inquisigáo de modo mais vivo do que
os anéis de Saturno. Para mim, Galileu, como
tantos outros, estava simplesmente esconden-
do; ou entáo, plantando. Escondía na terra,
como qualquer crianga, que ainda tenha dois
palmos de quintal, costuma fazer com peda-
eos de boneca. Sentía que estava no limiar
de urna ciencia, e sabia, como todos sabemos,
que as grandes coisas nascem de urna semen-
te de mostarda.
O enigma é urna grande coisa. “Agora é
em enigma que vemos”, diz Sao Paulo. Por
isso, o fato de encontrar mensagem táo bizar-
ra como a que acima mencionei (ou como
alguns versos de Claudel ou Rimbaud), nun-
ca produzirá em mim, em primeira e defini-
tiva instancia, um movimento de incredulida-
de e desdém. Alíás, nao há carta sem enigmas.
Por mais corpóreo que seja o carteiro e por
mais exata a nogáo que tenhamos de um ser-
vico postal, a simples chegada de urna carta
já é um encantamento. Pouca coisa existe
melhor do que receber urna carta: quando se
abre a caixa e, lá no fundo, no escuro, se vé
a vaga brancura do envelope, a impressáo
dominante é a de um achado. E haverá coisa
melhor do que achar? Haverá maior lucro do
que ésse que nao tem merecimento? Com a
carta na máo, leio o ende regó e logo pensó:
“Isto é comigo.” Dentro está o segrédo. Os
fiomens de negocio abrern as cartas a faca,
aos montes e sem emogao; mas nós, leitor,
que temos rara correspondencia, gostamos de
prolongar o segrédo, gostamos de adiar a lei-
22 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

tura, á espera de um désses momentos em


que nos parece que um minuto amadureceu.
Tudo isso fica dito para esclarecer (ou
obscurecer) um ponto: náo é o enigma, a bi-
zarría da missiva, que me desencorajará e
me aconselhará a amarrotar o papel para
deitá-lo na cesta. O enigma, ao contrário, é
urna fórga. Palavras, náo as há inteiramente
claras, pois todas fazem parte da peregri-
nante situagáo que levou o Apóstolo a dizer:
“Agora é em enigma que vemos.” Há um mis-
tério num bom-dia. E, se dentro do envelope
achado, leio urna participagáo de casamento,
numa dessas fórmulas geminadas cm que os
pais dos nubentes dáo noticias de urna data,
e oferecem um enderégo logo esquecido, resta
ainda um mundo de misterios, de hipóteses,
de previsóes e presságios, depois da simples
leitura do mais simples dos textos. Náo. O
enigma, o segrédo, nao sáo obstáculos defini-
tivos: antes sáo convites.
Mas agora devemos considerar atenta-
mente urna outra hipótese relativa áquela
estranha mensagem que encontrei, a qual,
como o leitor perceberá, analisando a parti-
cularidade dos sinais e considerando as cir-
cunstáncias, é mais plausível do que a do
tesouro ou a da sociedade secreta. Naqueles
sinais, na posigáo do papel, na proximidade da
máquina de escrever, e na suspeita proximi-
dade de minha filhinha de quatro anos, eu
vejo, com elevado grau de convicgáo, que náo
há enigma algum, mas apenas o resultado
de um ensaio dactilográfico. Trata-se de urna
simples imitagáo, ou da conseqüéncia de urna
O HUMANISMO DE CHESTERTON 23

travessura, ou do fenómeno que Spencer cha-


ma “transbordamento vital”. Aos quatro anos
de idade o fenómeno assenta bem, e nao lhe
pesa de mais a faiscante denominagáo do psi-
cólogo. Para Maria Luisa, escrever a máquina
é bater ñas teclas; e, desde que o ruido das
teclas e som da campainha se jam os mesmos,
o resultado lhe parece táo legítimo e táo bom
como qualquer outro. Em certos casos, po-
rém, essa confianza nos puros gestos se man-
tém até a idade madura, e o produto literário
sai com o ruido de literatura. Ora, essa imi-
tapao, sem clareza e sem segrédo, que lembra
aos quarenta o transbordamento vital dos
quatro anos, provém de urna coisa que nem
transbordou nem é vital; de urna coisa que
nao cresceu; ou entáo, de urna espécie de
aborto, que transbordou para morrer.
HÁ UMA CARTA EM CADA LIVRO
Foi Stevenson que assim escreveu: “Cada
livro é, num sentido profundo, urna carta
particular aos amigos do escritor. Sómente
éles apreendem a significado inteira, des-
cobrem a noticia íntima, as afirmares de
amor, as expressóes de gratidáo, espalhadas
para éles em cada linha. O público é apenas
o generoso patrocinador que se incumbe das
despesas postais.” Por ai já se ve que a idéia
náo é nova, nem minha. Discordo porém de
Stevenson no ponto em que éle excluí a pos-
sibilidade de urna compreensáo ge ral e
comum. Temos que separar o principio e o
fato. O fato em que éle se baseia é verdadeiro:
a maioria dos leitores vive sepultada numa
crosta espéssa, e já os gregos diziam “que nem
os deuses podem com a burrice dos homens.”
Em principio, porém, um livro bem feito, urna
obra marcada com o sélo da autenticidade,
náo é urna carta especialmente dirigida a
uma minoría privilegiada; é uma mensagem
comum. Entre o principio e o fato, isto é,
entre o que a obra tem de comum e a comu-
nicabilidade que encontra, estáo os problemas
graves, e cada dia mais agravados, da cultura,
da educagáo e da remogáo dos obstáculos. O
leite continua a ser lácteo no úbere das vacas,
mas vai se tornando cada vez mais incom-
O HUMANISMO DE CHESTERTON 25

preensível como se as vacas se tivessem tor-


nado herméticas. O pao que nos chega em
casa é, para os dentes e para o estómago, um
enigma sem solugáo. Assim, também, a pala-
vra comum, nessa crise de comunicado e de
distribuido que atinge o leite, o pao, a arte
e a filosofía, nao consegue atravessar nossas
cidades cheias de escombros. Houve uma épo-
ca na Historia em que o homem nao tinha
caminhos cortados, só podendo uma epístola
chegar ao seu destino com grandes dificulda-
des e através de aventuras terríveis. Peregri-
nos caminhavam meses para buscar junto a
um eremita tres palavras santas. O próprio
Verbo encarnado andou em lombo de burro.
Ncsse tempo, a superficie da Terra era recal-
citrante á palavra; mas uma vez vencida, ras-
gado o caminho, a rústica dureza se trans-
formava em rústica fidelidade. Os obstáculos,
hoje, nao estáo nos caminhos do chao, mas
nOvS caminhos do espirito. O mundo está atra-
vancado de falsificagóes.
A obra de Chesterton nao é destinada a
uma dúzia de individuos com certas afinida-
des temperamentais: é uma obra comum. Se
alguém teve e manteve uma inquebrantável
confianza, apesar de tudo, no entendimento,
foi éle, ésse combativo escritor para quem o
público era o destinatário, e nao o generoso
patrono de um servido postal. Nao enviava
sua mensagem, é certo, diretamente para o
homem da rúa, mas confiava em que alguns
intelectuais lhe fizessem o favor de 1er seu
enorme recado para o pequenino e humilde
personagem, que foi sempre o objetivo final
26 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

de sua obra. Acreditava no entendimento,


mas acreditava também na variedade social,
na necessidade de intermediários, e na neces-
sidade maior de remover os obstáculos. Sabia
que tinha de comegar pelos intelectuais, e
comegava vivamente por éles.
Num sentido, porém, concordo inteira-
mente com Stevenson. Se um livro nao é, e
nao deve ser, para quem o escreve, urna carta
dirigida a um pequeño grupo de amigos, na
máo de um leitor é muitas vézes urna carta
recebida de um amigo. Para cada livro, por
melhor que seja, existe um grupo pequenino,
um só leitor talvez, que o recebe de um modo
particularmente decisivo. Ésse — o leitor de
nossos sonhos — nao recebe o conteúdo do
livro apenas como quem lucra alguma coisa
e déla se sente acrescentado: recebe-o como
se estivesse esperando por éle, como se fósse
urna carta, sim, mas urna carta de resposta.
Linhas atrás referi-me ao prazer de receber
cartas. Que dizer, entáo, do gósto das respos-
tas? Outra coisa nao fazemos na vida, na
maior parte de nossas horas, senáo esperar
urna resposta. Os momentos mais decisivos,
para cada individuo, e para a humanidade,
foram expectativas de urna resposta.
Por isso, quando acontece que um livro
traga a fórga de urna resposta, urna profunda
reorganizagáo se opera em nossa vida, como
aconteceu com Riviére quando encontrou a
obra de Claudel. Outros poderáo ensinar de
maneira mais completa, trazer novas informa-
góes, mais copiosos dados — ésse traz, porém,
o que eu andava procurando, sem saber muitas
O HUMANISMO DE CHESTERTON 27

vézes que procurava; ésse, dá corpo as sombras


que eu pressentia, e responde a coisas que eu
nem sabia perguntar. E produz em mim um
forte abalo com o mais estranho dos efeitos;
faz-me ser o que sou. Devolve-me a mim mes-
mo. E a primeira frase que ocorre é esta: “O
livro que eu queria ter escrito.” Mas a frase
mais exata, mais aberta, mais generosa e mais
grata é essa: “O livro que foi escrito para
mim.”
Muitos sáo os livros bons e proveitosos;
mas raros sáo os que retificam nossos ñervos
e nossas idéias em conformidade com o que
somos. E o encontro de um déles náo é fácil,
porque, assim como as árvores se escondem
na floresta e os homens na multidáo, os livros
se escondem na literatura e ñas livrarias.
Além disso, o encontro de um livro náo con-
siste simplesmente na intersegáo de trajetó-
rias mecánicas que um dia o coloca ñas máos
do leitor. Essa condigáo, evidentemente ne-
cessária, náo é bastante, pois o livro é um
objeto situado no mundo do espirito. Certos
intermediários e certas preparares sáo in-
dispensáveis para o verdadeiro encontro com
um livro.
Voltando, para maior precisáo, a algumas
consideragdes feitas atrás, diria que as obras
genuínas se comunicam, formando uma tra-
ma orgánica e quase viva; tocando uma délas,
entramos em contato com todas as que estáo
penduradas na mesma teia. Quem lé um dés-
ses autores, lé também, através de uma espe-
cial refragáo, os livros que éle leu e muitos
que, por sua vez, éle recebeu através do mesmo
28 TRES ALQUEIRES E DMA VACA

processo indireto de assimilagóes. Há qualquer


coisa de Homero, de Tertuliano, de Santo
Agostinho, de Erasmo, de Pascal, de Verlaine
e de Proust, num romance de Otávio de Faria
ou num poema de Murilo Mendes. Citei aque-
les nomes ao acaso. A lista verdadeira e
completa seria extensíssima e deveria incluir
escultores, arquitetos e músicos, de todos os
tempos e todas as ragas, sem falar ñas influen-
cias menores, extraliterárias, proporcionadas
pelas frases que se ouvem na rúa, pelo olhar
que se intercepta num segundo e que se perde
para sempre. Na cultura universal corre unía
seiva comum, tornando as obras comunicadas
e comunicantes.
Ao contrário, no pastiche, na falsificagáo,
na contrafagáo, há qualquer coisa de inassi-
milável e inassimilado, como um cálculo, que
obstruí, que impede a circulagáo, e que pro-
porciona ao desprevenido a ilusáo de ter en-
contrado a poesía, o romance, a filosofía.
E que simboliza ésse desprevenido diante de
um muro. O homem goza do estranho e in-
quietante privilégio de poder falsificar tudo:
o pao, o livro, a sua própria humanídade.
Pode falsificar um deus. E no paroxismo de
todas essas falsificagoes, toma-se mais estra-
nho e mais inquietante quando concluí que
nao existem falsificagoes.
O encontro de um livro, que represente
para nós urna carta de resposta, depende por-
tante do auxilio de um bom intermediário,
e do obstáculo formado pelo entulho de que
o mundo está cheio. E, nesse sentido, eu creio
que a obra de Chesterton tem um mérito
O HUMANISMO DE CHESTERTON 29

especial. Se nao está nela, está próxima a


desejada resposta. Há certos autores que se
situam em ricas intersegóes, onde inúmeros
pensamentos e destinos se cruzam e, ainda
mesmo que suas obras sejam explícitamente
contrárias á Verdade, como as de Gide ou
Nietzsche, podem perfeitamente conduzir ás
zonas sadias da verdadeira tradigáo, porque
a verdade, embora ultrajada, mutilada, mar-
tirizada, ainda as vivifica com seu plasma.
De Chesterton (como de Maritain ou de New-
man) pode-se dizer que é um foco de conver-
gencia onde fácilmente teremos noticia do
ignoto autor que muitas vézes procuramos.
Se é exato o que diz Stevenson, e o que desen-
volví neste capítulo, isto é, se existem livros
decisivos, mais próximos e mais fraternais,
para cada um de nós, Chesterton nos dará
uma boa informagáo a ésse respeito, porque
sua obra é extraordinariamente comum e
extraordináriamente original.
«ECCE HOMO»

É original num sentido que éle mesmo


vai definir, ao defender Robert Browning, que
alguns críticos de idéias avanzadas tachavam
de convencional, por ter o poeta, o inglés, o
gentleman, o marido, proibido á esposa a fre-
qüentagáo de certas rodas espiritas de duvi-
dosa honestidade.
Robert Browning era, sem dúvida alguma, um homem
completamente convencional. Muitos acham e dizem que
o convencionalismo é lamentável e deselegante, e assim
estabelecem o que se pode chamar a convengáo do incon-
vencional. Mas ésse horror ao convencional, quando se
trata da pessoa de um poeta, só é possível para quem náo
se lembra mais do sentido das palavras. Convengáo signi-
fica simplesmente concordancia e entendimento, e como
todos os poetas devem basear suas obras numa concor-
dáncia emotiva entre os homens, resulta que todos os
poetas baseiam suas obras em convengóes. Todas as
artes — nem pode ser de outro modo — tém como fun-
damento uma convengáo, e pressupóem que certas obje-
góes náo sejam levantadas entre o autor e o leitor ou
espectador. A arte mais realista ainda está á mercé de
objegóes realistas. Ao mais exato drama de cada dia
vindo da Noruega, o realista pode objetar que a cena
se passa numa sala em que uma das paredes foi retirada,
e que os personagens estáo durante todo o tempo se
comportando de modo excéntrico, porque seus atos, os
mais triviais e mais íntimos, se realizam diante de uma
carreira de lámpadas e de uma multidáo de estranhos.
O HUMANISMO DE CHESTERTON 31

Ao mais meticuloso e fiel desenhista que se possa conceber


ainda é possível dizer que éle está sendo convencional
trabando ao longo de um nariz um risco préto que na
realidade nao existe. O poeta também, precisamente do
mesmo modo, e pela natureza das coisas, deve ser con-
vencional. Terá de descrever emogoes que outros possam
partilhar, porque de outro modo seu trabalho será com-
pletamente váo. Se um poeta tivesse um sentimento
original, como dizem, sentindo-se por exemplo súbitamente
apaixonado pelos amortecedores de um vagáo de estrada
de ferro, éle teria uma grande dificuldade e levaría
muito tempo para comunicar seus sentimentos.

A poesia cuida das coisas primeiras e convencionais


a fome de pao, o amor das mulheres, o riso das
crianzas, o desejo de uma vida imortal. Se os homens
tivessem, realmente, alguns sentimentos novos, a poesia
nflo os poderia traduzir. Se, por hipótese, um homem
nao tivesse um ávido desejo de comer pao, mas, á guisa
de variante, sentisse uma fresca e original ansiedade de
comer parafusos de latáo ou mesas de mogno, a poesia
nao o poderia ajudar na expressáo désses novos senti-
mentos. Se um homem, em vez de se enamorar de uma
mulher, íicasse súbitamente apaixonado por um íóssil
ou por uma anémona, a poesia também nao o poderia
servir. A poesia só pode exprimir o que é original em
um sentido: no sentido em que falamos do pecado ori-
ginal. Ela é original, nSo pelo mesquinho motivo de ser
nova, mas pelo profundo motivo de ser antiga; é origina)
porque lida com as origens.

A obra de Chesterton tem essa mesma


marca de originalidade; éle mesmo se procla-
ma um independente, em relagáo ao precon-
ceito do inconvencional, quando diz que rei-
vindica a livre escolha de todos os instrumentos
do universo e que nao pode admitir que um
déles seja condenado e escarnecido simples-
mente por já ter sido usado. Sua mensagem
toma conhecimento dos antigos enderegos e
32 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

dos primeiros compromissos. Nao desdenha


o passado. Nao quer “armar um ninho na
árvore do porvir.” Tratando dos problemas
da redistribuido da propriedade, que ocupam
parte considerável de sua obra, e que seus
contemporáneos consideravam urna utopia,
diz éle: “Eu mantenho o velho e místico
dogma segundo o qual aquilo que o homem
féz o homem pode tornar a fazer; meus crí-
ticos parecem defender um dogma muito mais
místico quando dizem que o homem nao pode
fazer urna coisa, porque já a féz.” Chesterton
ouve, com indignagáo sublimada em humo-
rismo, os rumores de uma estranha conspira-
do promovida pelos homens de seu tempo:
eles organizam a derrota da própria espécie,
em nome de uma espécie nova que será talvez
como a dos deuses. Sabotam e malbaratam
o que já possuem, em nome de uma esperanga
cromossómica ou económica. Renegam reli-
quias e fósseis, deitam fora os guardados do
mundo, ossos de mártires e faces de faraós,
para organizaren! um álbum com os invisíveis
retratos dos que ainda náo nasceram. Em
todos os tempos os homens fizeram as últi-
mas vontades dos mortos; na nova era deve-
ráo fazer as primeiras vontades dos recém-
nascidos. A traigáo, porém, chama a traigáo;
e ésses Azefs do género humano, com o mes-
mo entusiasmo com que rasgam os testamen-
tos antigos e novos, trapaceiam a primeira
de todas as vontades humanas, que é nascer.
Sao futuristas que combatem sob a rubra
oandeira do aborto e sob o multicor pavilháo
do divorcio. Chesterton denuncia a pusilani-
O HUMANISMO DE CHESTERTON 33

midade désses revolucionarios que já festejam


o fim da própria espécie.
O espirito moderno é impelido para o
futuro por um sentimento de l'adiga a que
também náo falta o terror com que olha para
o passado. O homem moderno náo mais pre-
serva a memoria de seus avós, mas empreen-
de a tarefa de escrever a detalhada e minu-
ciosa biografía dos seus bisnetos. Náo créem
nos fantasmas dos mortos, mas estremecem
com médo abjeto perante a sombra dos lan-
tasmas dos bebés que ainda náo nasceram.
Chesterton é, em cada linha de sua enor-
me missiva, fiel á humanidade do homem.
Cré no everlasting man. De suas idéias, um
leitor sincero e atento poderá dizer que sáo
extremamente audaciosas e extremamente
triviais. Suas descobertas náo sáo suas: “Deus
e a humanidade as fizeram.” Quanto ás suas
aventuras, terríveis e fascinantes, éle as des-
creve no primeiro capítulo de Orthodoxy,
quando conta como veio, após travessia for-
midável, armado até os dentes, e falando por
sinais, arribar em país ignoto, onde plantou
a bandeira británica num templo bárbaro que
depois, observando melhor, verificou ser o
pavilháo de Brighton, em sua terra natal.
Descobria assim, com grande exultagáo, o
que já estava descoberto: o cristianismo, a
Inglaterra, a paróquia de sua infáncia.
Sua mensagem é extensa, rica e variada,
mas há nela uma nota insistente que tem a
simplicidade, a monotonia e a inexauribili-
dade de um bom-dia. Uma palavra de Pínda-
ro, citada por Maritain na primeira página
34 TEÉS ALQUEIRES E UMA VACA

de seu grande livro sobre educagáo, e escolhi-


da por Nietzsche para epígrafe de seu último
livro, Ecce Homo, essa palavra se encontra
subjacente da primeira á última página de
Chesterton: “Tornemo-nos o que somos”. E
essa palavra é desíraldada por éle como a
bandeira de uma verdadeira revolugáo.
Terminando o livro sobre socialismo e
capitalismo, The Outline o/ Sanity, onde
mostra a profunda semelhanga daqueles dois
regimes, e onde ad voga a distribuido da pro-
priedade como um elemento indispensável á
dignidade e á liberdade do homem, diz éle:
Contento-me em sonhar com a velha e fatigante
democracia que pode proporcionar um pouco de vida
humana, tanto quanto possível, a cada ser humano;
enquanto o brilhante autor de Os Primeiros Homens na
Lúa tenciona, decerto, nos deleitar brevemente com um
romance chamado O último Homem na Terra. E, na
verdade, eu creio que, 110 dia em que perderem o garbo
da propriedade pessoal, ¿Mes teráo perdido algutna coisa que
faz parte da ereta postura, do equilibrio e da firmeza dos
pés sobre o planeta. Nesse meio tempo, eu estou sentado
entre rebanhos de operarios supcrfatigados e de funcio-
nários subnutridos; leio a futura lenda dos Homens como
Deuses; e me pergunto quando os homens se parecerao
com homens.
O HOMEM QUE NAO QUIS
UMA ILHA
Um dia (faltam-me os detalhes) alguém
organizou um inquérito literario que conti-
nha, entre outras, a seguinte pergunta: “Que
livro quereria vocé salvar se naufragasse
numa ilha deserta?” Evidentemente a metá-
fora era ociosa; a ilha e o naufrágio eram
inúteis. O inquiridor queria simplesmente
um nome de livro; mas, levado pela comple-
xidade mental que atinge certos individuos
ao se aproximaren! das zonas literárias, achou
mais elegante meter na pergunta catástrofes
e acidentes geográficos. Estou certo, e apos-
taría, que muitos entrevistados, compreen-
dendo a intengáo da pergunta, e já farta-
mente habituados á idéia de que literatura
é um ameno exercício de palavras inúteis,
responderam com nomes de livros raros ou
notórios, sutis ou portentosos. Houve certa-
mente quem escolhesse Homero ou Pascal por
Sexta-Feira. Alias, aproveitando esta oportu-
nidade, devo dizer que nao creio em inquéri-
tos, e que os considero como provocadores de
muita vaidade adormecida. Interrogar um
sujeito sóbre o que prefere, é quase sempre
despertar néle uma dúzia de demonios. O
interrogado geralmente diz que gosta do que
gostaria de gostar. Raramente confessará,
36 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

com a grande simplicidade do Presidente


Roosevelt, que gosta de romances policiais.
Dois entrevistados, porém, prestaram
atengáo as circunstancias que a pergunta
envolvia. Um déles, sabendo que ia afinal
naufragar numa ilha deserta, entrou em hila-
riantes convulsóes antiliterárias: — “Livro?
Livro? Permitam-me que na ilha deserta, ao
menos, fique livre déles!” Essa é a resposta
previsível e característica dessa espécie de
individuos chamados intelectuais, que prova
uma irremediável fadiga intelectual e um
mal disfargado desgósto da humanidade. Ou
entáo é simplesmente a resposta de um en-
granado por oficio.
O outro, que considerou atentamente a
hipótese da ilha, foi Chesterton. Tomou a
pergunta ao pé da letra, como éle mesmo
disse que Sáo Francisco de Assis costumava
fazer. Símbolos, alegorías, metáforas, hipér-
boles e parábolas, teráo seus valores próprios,
incontestávelmente, mas para ambos, o santo
e o homem de bom-senso, as perguntas mere-
cem atencáo, primeiro, para o sentido imedia-
to e direto. Uma vez, em éxtase, Sáo Fran-
cisco ouviu uma voz dizer que a Igreja de
Deus ameagava cair. Como estivesse numa
igreja, a primeira idéia singela que ocorreu
ao bom idiota de Deus foi olhar as paredes
que, efetivamente, estavam em mau estado.
Tomou o aviso ao pé da letra e féz-se pedreiro
do Cristo. Aconteceu, porém, que, tendo con-
sertado as paredes, consertou também, com
o auxilio de Domingos, as outras que Inocén-
cio III vira oscilar em sonhos.
O HUMANISMO DE CHESTERTON 37

Essa capacidade de ouvir, tornada hoje


um fenómeno, quase um exotismo, pertence
aos homens fortes. Caracteriza verdadera-
mente os espíritos combativos. A ésse respeito
diz Chesterton: “O sincero polemista é acima
de tudo um bom ouvinte. O entusiasmo ver-
daderamente fogoso nunca interrompe; ao
contrário, éle presta atengáo aos argumentos
do adversário táo ardentemente quanto o
espiáo sonda e ausculta as disposigóes do
campo inimigo.”
Tendo pois ouvido, e tomado ao pé da
letra a pergunta, éle respondeu como Sao
Francisco de Assis teria, talvez, respondido;
pois, no dizer de Chesterton, * o Santo sur-
preendia sempre com o que fazia, mas logo
depois deixava ñas pessoas a impressao de
que éle tinha dito ou feito a única coisa pos-
sível e razoável. Assim, Chesterton respondeu
que desejaria ter na ilha deserta O Manual
do Construtor de Botes.
Nao é o bom humor inesperado da res-
posta o que mais importa; há dentro déle um
sentido profundo que constituí o trago mais
forte de sua fisionomía. Diante do malsáo
aspecto da pergunta, sua reagáo foi brusca
e retificadora. Ao contrário do cético, éle nao
quería a ilha deserta, e já que o forgavam a
admitir a hipótese, éle tratava de se precaver
com os meios de sair da ilha o mais depressa
possível, e de voltar para a comunidade dos
homens e para a sua povoadíssima ilha. Que-

* Chesterton — St. Francis of Assis. (Nao deve


ser lido na traducáo brasileira!)
38 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

ria o bote. Queria também os livros de sua


biblioteca, todos, um por um, porque era bom
filho da antiga Sabedoria “que se deleitava
em brincar na terra, entre os homens.”
REFLEXÓES SOBRE A
QUANTIDADE
Disse atrás que a obra de Chesterton era
extensa. Sao quase oitenta volumes. Nao sei
se o leitor faz uma idéia, aproximada sequer,
da magnitude dessa cifra em livros. A mim,
que estou num magro segundo volume, e já
cansado, ésse número evoca as páginas da
Astronomía Popular de Flammarion, onde o
autor faz comparares entre a Terra e o Sol,
ou se diverte com malabares de anos-luz para
mostrar que a distancia de Sírius escapa com-
pletamente á idéia que temos de distancia.
Na verdade, nao há nada menos expressivo
do que um número. Foi Taine que provou,
já nao me lembro como, que o homem nao
consegue imaginar, realmente, um número
maior que cinco ou sete. Uma das provas
dessa incapacidade do número em suscitar
idéias é, aliás, fornecida pelos individuos que
diante dos menores problemas costumam re-
clamar severamente as cifras. Muitas estatís-
ticas, por exemplo, sao traduzidas em figuras
onde se vé um homenzinho crescer ou dimi-
nuir, de ano em ano, de um modo anormal.
Na mais abstrata das hipóteses, os relatórios
se traduzem em mapas coloridos com que os
atuários adornam suas paredes, seguindo
aliás um velhíssimo instinto porque, confor-
40 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

me Chesterton notou no seu Everlasting Man,


o mais antigo sinal do homem das cavernas
sáo figuras muráis. A figura é mais forte do
que o número: ésse é o principio básico da
geometría cartesiana.
Por ésse ou por aquéle motivo é difícil
imaginar o que se jam oitenta volumes escri-
tos durante uma vida. Como a presente edi-
gáo déste livro náo comporta ilustragoes, faga
o leitor, se quiser, as figuras ou cálculos.
Mas agora percebo que me enredei em
contradigoes e que náo deveria ter escrito éste
capítulo sobre os oitenta volumes. Apesar
das ressalvas arrisquei-me a gravar no leitor
a impressáo de que sou um admirador de
metros cúbicos. Na verdade, eu admiro oitenta
volumes, mas quando sáo chestertonianos.
Todo mundo sabe que a fecundidade mais se
encontra ñas pragas, e que a tolice humana
parece dispor de todos os recursos de repro-
dugáo, multiplicagáo e cissiparidade.
Sai de uma dificuldade para cair em
outra. Fui simples demais diante dos oitenta
volumes; sou agora amargo diante de outras
fecundidades, deixando descoberto algum res-
sentimento pela mesquinharia da área de
papel que já conseguí cobrir com caracteres.
O escrúpulo, como a gaffe, é recorrente:
emendar é piorar; corrigir é agravar. O me-
lhor, nesses casos, é dar de ombros e deixar
ao leitor todas as suposigoes. Resta o fato:
Chesterton escreveu cerca de oitenta volumes;
mas para fazer uma idéia mais exata é pre-
ciso multiplicar o número pela variedade e
peía qualidade.
A VARIEDADE NA UNIDADE
Quanto aos géneros literários, Chesterton
escreveu poemas, ensaios, biografías, roman-
ces, hagiografías, e con tos policiais; quanto
aos assuntos, abordou a religiao, a filosofía,
a historia, a etnología, a pedagogía, e a lite-
ratura. Toda essa variedade forma em sua
obra um bloco, porque justamente o que éle
sempre procurou foi a unidade. Por uma
extraordinária faculdade de se interessar ra-
ramente igualada, escreveu sóbre Chaucer,
Browning e Dickens; e depois sóbre Santo
Tomás de Aquino e Sao Francisco de Assis.
E o mesmo ardor se encontra ñas páginas
que tratam da poesía e ñas páginas que tra-
tam da santidade; nao porque fósse um bor-
bulhante e inquieto investigador de contras-
tes, que pula de coisa em coisa com gritos
entusiásticos, sem se deter em nenhuma, mas
porque descobria sempre a mesma inesgotá-
vel coisa, a mesma unidade dentro da diversi-
dade, a mesma humanidade comum no poeta
excepcional e no Doutor Comum.
Em Sao Francisco de Assis, através dos
mais romanescos acidentes, éle via, e nos mos-
trou, a fraternal e essencial semelhanga entre
o santo e o vendeiro da esquina, como já tinha
mostrado a semelhanga entre o vendeiro e o
poeta. A página que atrás citei, sóbre origi-
42 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

nalidade e convengáo, tanto se aplica á poesia


como ao comércio de secos e molhados,
porque na verdade o que o autor procurou
ali expor foi uma espécie de sistema métrico
em que o padráo, conforme Aristóteles, é o
Homem.
UMA APARICÁO E UMA OBJEQAO

Detenho-me neste ponto porque tive uma


aparigáo. Vi diante de mim um leitor mal-hu-
morado, a mexer-se na cadeira com ar de
homem que tem muito o que dizer. Instado
por éle, passei-lhe a pena e o papel; e aqui
está o que disse: “Ora essa! Isto que vocé diz,
ou ainda vai dizer, sobre o humanismo de
Chesterton, se aplica a todos os escritores do
Universo, maus ou bons. Qualquer individuo
que escreve algumas linhas sobre a educagáo,
para gabar os testes de Binet-Simon ou para
comparar o interésse pelo estudo ao apetite
por uma salada como Decroly, está, automá-
ticamente, tratando de um problema humano.
Vocé deixou-se arrastar por frases, deixou-se
enlear em adjetivos, e acabou dizendo coisas
inevitáveis que todo mundo está farto de
saber. Com Aristóteles ou sem éle, ninguém
duvida que o rei Carlos Magno tinha duas
peinas, olhos e nariz, tudo distribuido apro-
ximadamente segundo o padráo universal. O
Sr. Silva Meló, por exemplo, também escreveu
sobre o homem. A mais estúpida e dulgurosa
vida de Sao Francisco de Assis, mal ou bem,
está présa a essas condigóes elementares: se
o Santo quisesse tomar uma sopa de pedra,
como ñas historias de Pedro Malas-Artes, nao
tinha outro remédio senáo fazer um milagre
44 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

para tornar a sopa menos indigesta. O mais


idiota dos livros sobre planificagóes econó-
micas ou reformas pedagógicas, também, em
última análise, denota um interésse pela cau-
sa do homem. Diga-me vocé, se quiser, e
prove-o, que Chesterton foi mais verdadeiro
no detalhe, ñas solugoes, na doutrina, mas
náo me venha convencer de que éle foi um
dos raríssimos autores que cuidou das coisas
comuns.”
A objegáo désse leitor tem tragos com
que eu simpatizo e sua franqueza náo me é
de todo desagradável; mas sou forgado a di-
zer-lhe que leia com atengáo. As páginas que
até aqui escrevi seriam completamente invi-
téis, e a divisáo que procurei adotar entre o
genuino e o falso completamente arbitrária,
se náo fósse possível ao homem trair a sua
humanidade. Tentarei explicar-me melhor.
Na maioria dos casos, quando escreve
sobre os testes de Binet-Simon, ou sobre a
melhor reconstituigáo do Homem de Neander-
thal, o autor é forgado a se fechar dentro de
sua especializagáo, dizendo com seus botóes:
“Estou tratando de pedagogía.” Ou entáo:
“Estou investigando em pré-história.” Essa
atitude é perfeitamente legítima e nesse sen-
tido nada tenho a dizer, senáo elogios, dos
livros do Sr. Decroly ou do Sr. Lourengo Fi-
lho. Os técnicos sáo bons e úteis; ótimos e
utilíssimos. Quando porém se trata de usar
os resultados parciais fornecidos pelo peda-
gogo, pelo arqueólogo, pelo astrónomo, pelo
gramático e pelo dentista, é indispensável,
para que a soma seja uma soma e náo um
O HUMANISMO DE CHESTERTON 45

mero ajuntamento, que todas aquelas fragóes


sejam reduzidas a um denominador comum.
Ora, é essa regra elementar da adigáo, trans-
portada para o plano das idéias, que a maio-
ria dos chamados pensadores desconhece.
Dir-se-ia que éles gostam mais dos pedagos
do que da inteireza, e que o QI de uma crianga
lhes parece mais deleitoso e menos decepcio-
nante do que a própria crianga.
É nesse sentido que eu digo que a obra
de Chesterton é uma soma. Diría até uma
suma. Ela nao se opóe ao meticuloso e res-
peitável trabalho dos técnicos que pesam e
analisam os pedagos do homem; mas opóe-se
belicosamente aos pensadores que confund'ím
um anfiteatro de estudos anatómicos com
uma sala de jantar; e denuncia os que erram
ñas contas, e nao atinam com a medida do
homem, a que se referiu Aristóteles e que
Carlos Magno concretizou no tamanho do
seu pé.
Em resumo, a obra de Chesterton podia
ter o título geral de Humanismo Integral,
como o livro de Jacques Maritain. Fala-se
muito de um mal da época. Tornou-se mesmo
fastidioso falar désse assunto e adotar o tom
do individuo que indica remédios. Mas, ape-
sar de tudo, ésse mal existe, e pode ser caracte-
rizado por um simples nome: desumanismo.
Nunca foram táo estudadas as partes do ho-
mem, mas também nunca foi táo esquecido
o seu todo, aquilo que éle é. Ou nunca foi táo
desejado que éle fósse o que nao é. Ésse é o
ponto central da questáo. Náo posso desen-
volvé-lo aqui sem deixar de lado éste livro,
46 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

como já deixei um outro, e iniciar um ter-


ceiro; mas posso propor um teste ao leitor.
Estamos numa sala de repartigáo pública
moderna (devo acrescentar, para maior fórga
demonstrativa, que somos de uma outra ge-
ragáo, ou que chegamos de setores distantes
e anacrónicos) e observamos, entáo, diversas
cenas. Vemos logo, por exemplo, que as mesas
dos funcionários sao lisas e nuas como lápi-
des de defuntos esquecidos: nem um retrato
de noiva, nem um pedago de quartzo um dia
trazido de uma excursáo e onde a lembranga
de uma cascata se mistura á lembranga de
um sorriso. Nem uma imagem de santo. Há
uma portaría, ou coisa que o valha, proibindo
ao funcionário a ilusáo de posse e de dominio
sobre aquéle metro quadrado, em que éle pro-
cura, pelo trabalho, um pouco do paraíso per-
dido. Além disso, observamos uma gritante
desproporgáo entre o fáustico edificio e a
visível avitaminose dos habitantes. Os escra-
vos sao os mesmos, mas as senzalas se torna-
ram magníficas á custa das suas ragóes.
Numa sala de chefes assistimos á admissáo
de um novo conquistador désse triste país.
Recebe uma guia e é conduzido a um gabi-
nete de médico, onde um mogo cortés per-
gunta ao postulante se o parto de sua máe
foi normal, de que doengas sofre, e se entre-
tém ligagóes sexuais permanentes ou semi-
permanentes. No caso de ser u’a moga, sol-
teira ou casada, perguntam pelas regras, pela
quantidade do sangue e pelo número de abor-
tos. Enchem fichas. Todas as fichas juntas,
em outra sala, formam mapas coloridos, que
O HUMANISMO DE CHESTEHTON 47

um cavalheiro entusiasta em cifras e riscos


aponta com uma vara a meia dúzia de visi-
tantes atónitos.
Ora, meu caro leitor, ésse é o teste que
lhe proponho. Se nao sente um movimento
de indignagáo ou de susto, se nao lhe passa
pela mente que há qualquer érro enorme,
qualquer monstruosa subversáo nessa con-
cepQáo do homem, entáo a nossa divergencia
nao é mais uma questáo de idéias ou de filo-
sofía; nossa completa divergencia — lamento
profundamente dizé-lo — é uma questáo clí-
nica.
PÉS E POLEGADAS
Tendo falado atrás no pé de Carlos Mag-
no, ocorreu-me uma idéia. O sistema de me-
didas que os ingléses se obstinam em con-
servar sempre me pareceu bizarro. Sempre
achei que o sistema decimal, pelo fato de ser
decimal, deveria ter sido adotado com gran-
de entusiasmo por todas as nagóes. No co-
légio, aprendi que os ingléses sáo teimosos,
mas náo me ensinaram o motivo dessa tei-
mosia. Aliás, se há teimosia náo há motivos,
por definigáo. Os anglo-saxóes sáo realmente
obstinados; e essa qualidade, virtude ou defei-
to, que os nazistas náo avaliaram na justa
medida, aparece-me agora como uma terrível
fidelidade. E se a teimosia é uma coisa que
dispensa motivos, a fidelidade é a coisa que
mais fortes motivos invoca. Chesterton deu-
me uma grande ligáo de fidelidade, e indire-
tamente ajudou-me a compreender o caso dos
pés e das polegadas.
Hoje eu vejo que o aspecto mais desa-
gradável do sistema métrico francés está na
sua origem. Alguns geodesistas tiveram a
idéia de tirar o metro de um meridiano ter-
restre, julgando que essa fonte era mais
digna para a ciencia do que o pé de um rei
medieval. Há nesse caso uma singular coin-
cidéncia entre essas e as consideragóes feitas
O HUMANISMO DE CHESTERTON
49
por Chesterton em Orthodoxy sóbre o cír-
culo e a cruz. Os homens da era científica
trocaram a cruz, que tem a medida do ho-
mem, pelo círculo do meridiano terrestre.
Pode-se dizer que Laplace e Condorcet quise-
ram abragar o mundo com as pernas. E o
resultado final das medidas foi um padráo
metálico, guardado em Paris, e que ñas veri-
ficares subseqiientes ficou provado nao ter,
dentro de cinco casas decimais, a perfeita
definicao dos geodesistas. Ficou sendo um
mero bastáo de duvidosa origem.
ACROBATA DO BOM-SENSO

Chesterton raramente escreveu um livro


de ensaio sobre um determinado assunto, di-
ferindo nisso, por vocagáo, do filósofo, obri-
gado a uma sistematizado. Nao tem, por
exemplo, um tratado sobre a familia; mas
tem em todos os seus livros, inclusive ñas
novelas policiais, as mais ricas descobertas
sobre ésse problema. Essa é uma das caracte-
rísticas de sua obra. Os mais diversos assun-
tos se acotovelam, numa vital anarquía, que
é, realmente, a manifestado visível de uma
ordem profunda. Poderíamos dizer, em outras
palavras, que os mais diversos assuntos se
acotovelam porque nao sao diversos. As asso-
ciagóes improvisadas e inopinadas, geralmcn-
te acompanhadas de um bom riso, constituem
um dos recursos principáis do método ches-
tertoniano. Bem feitas, tém duas vantagens.
A primeira, de ordem puramente tática, é o
choque produzido no leitor, obrigando-o a
uma atencáo viva que habitualmente nao se
mantém na leitura de um livro. F. S. Sheed,
numa introdudo pedagógica a What is wrong
with the World salientando essa particularida-
de do processo chestertoniano, diz, muito bem,
que a maioria dos autores prepara toda a ta-
refa para o leitor, que nao precisa mais do
O HUMANISMO DE CHESTERTON 51

que deixar-se ficar numa atitude de agradável


receptividade. Chesterton, ao contrário, traz
sempre uma provocagáo. A segunda vanta-
gem dessas associacóes, entre assuntos tidos
como distantes, é de ordem estratégica, e con-
siste na descoberta das comunicagóes e no
estabelecimento de sólidas rotas de abasteci-
mento.
Dessa capacidade de associar decorre
uma outra como corolário: a faculdade de
reduzir os mais abstrusos e especiáis assuntos
ao plano da familiaridade. Para éle, que
tanto se bateu pela familia, pela familia con-
creta, formada de pai, máe e filhos, o mundo
das idéias deve também ser familiar; deve ser,
digamos, uma casa para as idéias. Por isso,
e quando menos se espera, a propósito de
evolugáo ou de crítica da razáo, a página é
invadida por objetos caseiros e fica colorida
e ilustrada. Désse modo Chesterton responde
a Alice no País das Maravilhas que pergunta-
va: “De que serve um livro sem figuras?” Suas
figuras sáo familiares. A casa de familia é o
poderoso vórtice que atrai todas as idéias de
Chesterton. E assim, apresentada a idéia,
reforgadas as associagóes, compreendida a fa-
miliaridade, pode entáo o leitor descobrir a
misteriosa ligagáo, que o pedantismo oculta,
entre a pedagogía e uma crianga chamada
Margarida; entre a economía política e uma
terrina de sopa fumegante em torno da qual
pai, máe e filhos se reúnem dando gragas a
Deus.
Há ainda um trago na obra de Chester-
ton, que se refere mais diretamente ao estilo
52 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

literario, e que está ligado as necessidades de


sua tática e de sua estratégia, como já ficou
dito. Sua maneira de compor um ensaio, e
mesmo suas frases, decorre do propósito de
manter o leitor acordado, e ás vézes surpreen-
dido. Seu estilo é falado; seu pensamento é
elaborado na hora, diante do leitor, que chega
a sentir sua presenta pessoal, solícita como a
de um maitre-cL’hotel, ágil como a de um bom
mágico. Claudel disse uma vez que o nasci-
mento de sua obra era uma espécie de “grom-
mellement intérieur”, em que todos os elemen-
tos, já presentes, procuravam colocagáo e
saída. Em Chesterton há uma espécie de
“grommellement extérieur.” Náo chega diante
de nós com a ligáo decorada e elaborada, em
laudas de papel, em quadros sinópticos, em
cristalizacóes definitivas. Tem a ligáo profun-
damente assimilada. Chega com ela na ca-
beca, no peito e na barriga. E as idéias váo
saindo com a naturalidade brusca do impro-
viso e das conversas. Provoca e desafia; mas
dá-nos também a impressáo de estar sendo
éle mesmo provocado. É o que se pode chamar
um escritor brioso que espera do leitor um
brio igual e uma bela contenda. É um espa-
dachim, ágil e leal. Náo usa os botes oblíquos,
náo ensaiou escondido um coup de Jarnac: é
em cheio que éle procura atingir; é o peito
do adversário, e mais particularmente o pe-
queño ás de copas desenhado no plastráo, que
éle quer tocar.
Seu estilo é falado. Emprega com relati-
va freqüéncia o speaking e o talking. É dia-
logado, conversado, disputado. Náo lhe basta
O HUMANISMO DE CHESTERTON 53

o vago apelo ao leitor: dirige-se a éle direta-


mente, pessoalmente tratando-o por you. As
vézes fica obscuro por algum tempo, como se
tivessem chegado de outros pontos da sala
objetos que nao vimos; defende-se désses
golpes laterais e, num salto, volta á questáo.
Tenho a impressáo de estar vendo sua agigan-
tada figura, em pé, andando de um lado para
outro, e parando de repente diante de mim
com o olhar divertido e faiscante e com as
idéias prontas, nascidas de fresco.
O paladar que sinto é o dos bons pratos
feitos na hora e nao me espanto que o bom
cozinheiro seja uma espécie de acróbata que,
no júbilo do trabalho, atira para o alto a fri-
tura fumegante e crepitante. Já acusaram
Chesterton de acrobacias verbais; eu o elogio
por essas acrobacias que na realidade sao os
mais belos gestos. Désse supérfluo sao feitos
o encanto das criancas, a grapa das mulheres
e a inigualável elegancia dos gatos. A moca
que atira os cábelos para trás, a crianga que
vem correndo e esconde o rosto no regago da
máe, também fazem acrobacias, antigas, anti-
qüíssimas acrobacias, que defendem o mundo
de uma epidemia, total e definitiva, de lou-
cura.
Nao devemos esquecer que Chesterton é
um poeta que vive cercado de lunáticos. Por
isso, como o seu herói de The Poet and the
Lunatics, é éle, e nao o lunático, que vira
cambalhotas e dá saltos mortais. O lunático
é geralmente grave e só canta de galo depois
de estar sólidamente convencido de que é um
t¡tu. galo. Chesterton é um escritor que ouve o
54 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

que diz. Ouve e gosta de ouvir o ruido que


as idéias fazem. É poeta. As palavras, para
éle, náo sáo meros sinais inteligíveis, simples
intermediários acústicos entre um verbo men-
tal e outro verbo mental. Sáo coisas que exis-
tem, como uma rosa existe. Sáo sinais que
guardam em si mais do que dizem, e que
além do núcleo lógico tém uma aura super-
lógica. Tal palavra, por causa do som, do
contraste do som com outro som, por causa
da articulacáo das consoantes e da série de
gestos a que essa articulagáo obriga, além de
significar o que pretende, tem uma impre-
vista fecundidade.
Freqüentemente, as palavras de Chester-
ton andam geminadas, sendo contrárias ou
semelhantes, mas ligadas por uma simetría
musical. Ora é sómente a consoante inicial
que marca o par, ora é a rima, ora o simples
ruido. Essa particularidade é insustentável
numa tradugáo, * mas no original imprime
ao estilo um caráter de jógo que faz lembrar
um retinar de armas. Abrindo ao acaso What

* A tradugáo de Chesterton é difícil, náo sómente


por causa dos jogos de palavras e das aliteragóes que
tím importáncia secundaria, mas sobretudo por causa da
unidade de tom. A linguagem humorística, como a poé-
tica, nao é inteiramente transparente ao objeto; ela tem
em si mesma, ocluso ñas palavras, o que pretende signi-
ficar. Raisa Maritain estabeleceu em Situation de la
Poesie uma sutil distingáo a ésse respeito. O leitor deverá,
de preferéncia, procurar Chesterton no original. As tra-
dugóes francesas sáo excelentes; a tradugáo portuguésa
de Orhhodoxy, insípida e em alguns pontos inexata, é,
entretanto, escrita em portugués; as tradugóes brasileiras
estáo geralmente abaixo da crítica e nao merecem CQ*
mentónos,
O HUMANISMO DE CHESTERTON 55

is Wrong with the World encontro ésse exem-


plo: “The tinker and tailor, as well as the
soldier and sailor, require a certain regidity
of rapidity of action. . . ” Em Barbarism of
Berlin diz éle do Kaiser: “He is merely an
old gentleman who wishes to share the crime
though he cannot share the creed. He desires
to be a persecutor by the pang without the
palm.’’ Ésses recursos anunciam geralmente
a proximidade de uma conclusáor de um golpe
a fundo. Em grandes intervalos preparató-
rios, entretanto, o debate é dirigido com certo
desnudamento. De repente salta uma chispa.
As vézes sucedem-se argumentares intrica-
das e complexas. Depois vem uma pausa com
frases curtas e obvias. Éle está zangado. Essa
pausa é um frémito que se contém, uma
impaciencia que morde os freios, um comedi-
mento de inglés. Quando éle sente que se
dominou, o estilo se liberta, se amplifica, e
avanza impetuosamente para a conclusáo.
O PARADOXO CONTRA O
LUGAR-COMUM
Uma das observagóes que mais comumen-
te se fazem sobre o estilo chestertoniano diz
respeito ao uso, ou abuso, de formas parado-
xais. Essa observagáo é justa num sentido;
mas injusta quando atribui ao autor de Or-
thodoxy um gósto pela paradoxia. Sua obra
está realmente crivada de paradoxos, se en-
tendermos por tal as proposigóes que se cho-
cam com as opinióes geralmente admitidas.
Nao podia, aliás, ser de outro modo. O autor
que no seu tempo e no seu meio mais se
interessou pelo homem comum deveria, ne-
cessáriamente, ter o mais vivo interésse por
ésse disseminado, heteróclito e vario material
que chamamos opinióes admitidas. Na verda-
de, o confronto entre o ortodoxo e seu mundo
de desvairada doxia teria que produzir, lógi-
camente, o paradoxo. Nao era éle que os fa-
zia; era éle que os cagava.
A vivacidade e o brilho da reagáo em cada
caso constituem o principal mérito do luta-
dor, o principal título désse espadachim do
senso-comum que lutou contra os inumerá-
veis monstros, cuja maior ferocidade consis-
tía precisamente numa completa auséncia de
pugnacidade, e cuja maior fórga estava na
evasao. Nao foi Bernard Shaw, o jovial heré-
O HUMANISMO DE CHESTERTON 57

tico, que maior resistencia opós á ortodoxia.


Náo foi H. G. Wells, com seu delirante futu-
rismo e suas historias sóbre unborn babies
que mais trabalho deu ao monstro que Shaw
chamava de Chesterbelloc, formado pelo nosso
autor e seu melhor amigo, Hilaire Belloc.
Entre ésses havia um jógo cordial e alegres
cutiladas. O temível adversário de Chesterton
era o que recusava a luta, e que numa de suas
novelas aparece encarnado em um duque,
espirito largo, que se esforgava por conciliar
todas as doutrinas — o que o levava a náo
compreender nenhuma; e que fazia o possível
para agradar a todo mundo — o que o con-
duzia a náo agradar a ninguém. Dessa men-
tal idade, ou dessa tática, disse Chesterton
mais tarde:
Ouvi dizer que o método de combate do jiu-jitsu
consiste, nao em repentinos avangos, mas em repentinas
retiradas. Esta é uma das muitas razóes que tenho para
nao apreciar a civilizagao japonésa. O uso da rendigáo
como arma é a pior disposigao de espirito do Oriente.
Nao há, cortamente, fórga alguma tao difícil de combater
como aquela que fácilmente se conquista: essa fórga que
sempre se entrega, o depois volta á carga. Tal é a
fórga do preconceito que o mundo moderno possui em
tantas questdes...

Essa mentalidade complacente e informe


que recusa o combate, e por isso mesmo se
atribui o premio; que se esquiva de uma real
e forte investigaqáo, e por isso mesmo se atri-
bui a posse de todas as verdades medianas;
essa mentalidade é justamente a do mundo
liberal e cínicamente otimista que Chesterton
encontrou, e contra a qual se armou em cru-
zado até o fim da vida. O romance The Ball
58 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

and the Cross, um de seus mais belos livros,


é a história alegórica de dois combatentes, o
católico e o ateu, que ao longo das mais va-
riadas circunstancias náo conseguem cruzar
os ferros, porque o clima da doxia, conciliado-
ra e medianeira, punha entre éles, invariá-
velmente, um obstáculo. Ora, em tal clima,
perante táo difíceis adversários, que poderia
fazer o ortodoxo? A meu ver, a única coisa
razoável que podia fazer — e que féz — era
a tentativa de incutir o gósto pela luta briosa.
Era a provocagáo, a galvanizagáo, o desafio.
Éle quería dialogar e argumentar com um
mundo de almas vivas, e náo com uma socie-
dade que logo admite o primeiro, o segundo e
o último argumento, principios e conclusóes,
inserindo tudo numa ilimitada toleráncia.
Chesterton foi, ainda mais infatigável-
mente do que Léon Bloy, um cagador de luga-
res-comuns. Onde encontrava um désses
monstros adormecidos, éle o provocava. Seria
fácil citar uma boa dúzia de exemplos, mas
os textos, arrancados do contexto e desligados
da exegese, perderiam a fórga e talvez o sen-
tido. No segundo capítulo de Orthodoxy en-
contramos uma extraordinária conclusáo: “o
louco é o homem que perdeu tudo, exceto a
razáo.” Essa conclusáo, longe de ser um pas-
sageiro gracejo, é uma das principáis idéias
da mensagem chestertoniana, como me pro-
ponho mostrar mais adiante. Em What is
wrong with the World refere-se éle á idéia
vulgar de que é necessário um homem de
agáo, um homem prático, cada vez que atra-
vessamos uma crise política ou económica; e
O HUMANISMO DE CHESTERTON 59

diz-nos que, nesses momentos, nós precisamos


realmente de um unpractical man. E o que
parece uma arbitrária agressáo á opiniáo
admitida, é na verdade uma idéia nuclear,
defendida logo depois com golpes ágeis até a
conclusáo que consiste na defesa do dogma.
Chesterton, a bem dizer, exige de nós al-
guma coisa mais elementar e mais primordial
do que a boa vontade para compreender: éle
exige a boa vontade, ao menos para brigar.
Isso, a seu ver, constitui a exigéncia mínima,
fraternal e crista que se pode fazer ao próxi-
mo. E por isso langa-se contra o liberalismo
conciliador, o espirito largo do século, que
transformava o patrimonio da inteligéncia
humana num bric-á-brac indiscriminado. Li-
beral em política prática, foi o inimigo núme-
ro-um do liberalismo filosófico. Defensor do
homem comum, foi o acérrimo combatente
das idéias vulgares guindadas a filosofía. De-
fensor das tavernas, da cerveja, do vinho, e
da ampia risada, afirmava entretanto que a
fórga do homem está nos seus limites. Uma
colegáo dos famosos paradoxos de Chesterton
provaria que éle foi um ortodoxo. Mas pro-
varia também outra coisa, e ésse é um dos
grandes méritos de sua obra: o assombroso
número de lugares-comuns que atravancavam
o mundo, tomando o lugar, já nao digo da Sa-
bedoria, mas o lugar, a liga, onde pelo menos
o nao e o sim entrem num atlético encontro.
Os oitenta volumes de Chesterton sao, nesse
sentido, um formidável purgante. Ou entáo,
por paradoxo, a mais perfeita suma das toli-
ces denunciadas.
O COMBATE E O CONFLITO

Há entretanto um sentido em que náo é


justo dizer que Chesterton foi paradoxal. Náo
é lícito dizer tout court que éle foi paradoxal,
isto é, que era dentro déle, no interior de sua
obra e de seu pensamento, que o paradoxo
vivía enrolado, formando um ninho de víbo-
ras para a delicia dos apreciadores de contra-
digóes. A fim de tornar mais compreensível
ésse pensamento convido o leitor a distinguir
duas coisas muito simples que chamarei res-
pectivamente de combate e conflito. Caracte-
rizam dois mundos, e pode-se dizer, de modo
aproximado, que o conflito está para o ho-
mem moderno como o combate para o medie-
val. Para os antigos, o caminho da verdade
era considerado árduo e cheio de perigos, mas
a verdade era um vértice. Para o moderno, a
gloria consiste em chegar completamente der-
rotado a uma dúvida táo perfeita que chega
a ser uma certeza. Uma esgotada certeza.
A clara diferenga entre o conflito e o combate,
no sentido que aqui lhes atribuo, está na po-
sigáo do adversário. No combate, o adversário,
visível e concreto, está diante dos olhos e da
arma; no conflito, para encontrá-lo, é preciso
descer aos subterráneos do próprio eu, onde
mora o inimigo traigoeiro, que se diverte em
aplicar chaves de jiu-jitsu ás suas próprias
visceras. O combatente é um; o agónico, em
O HUMANISMO DE CHESTERTON 61

luta consigo mesmo, é dois. Chesterton era


um. Era da antiga raga de combatentes que
uma vez por outra se atirava contra moinhos
de vento com a fórga e a singeleza dos super-
vivos. Parecia-se nisso com aquéle garqon
“que preferia o fregués que dá logo as ordens,
ainda que sejam ibis ensopados ou bife de ele-
fante, á raga de fregueses que íicam sentados
com a cabega ñas máos, mergulhados em co-
gitagóes.”
O inconveniente désse último tipo de per-
sonalidade foi excelentemente salientado por
Chesterton numa história para criangas, que
éle mesmo ilustrou: A Desvantagem de Ter
Duas Cabeqas. Nessa história, o pequeño
Redley consegue libertar a princesa Japónica
com grande assombro de quatro vigorosos ca-
valheiros que haviam malogrado no mesmo
intento. O castelo onde vivia a princesa estava
situado além da última floresta do mundo,
e dois caminhos lá iam ter. No primeiro havia
um feroz gigante de uma cabega, no segun-
do, um ferocíssimo gigante de duas cabegas.
Os vigorosos cavalheiros, fracos de inteligén-
cia, acharam mais fácil atacar o primeiro gi-
gante, e voltaram destrogados e humilhados.
O menino Redley percebeu que o segundo
devia ser mais fraco porque tinha duas cabe-
gas. Efetivamente, encontrou-o empolgado por
uma discussáo consigo mesmo sobre a política
británica na guerra dos Boers. Atacou pois
o ferocíssimo gigante, matou-o e casou-se com
a princesa.
Aliás, nessa pequeña história encontra-
mos uma outra idéia que ressurge em diversos
62 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

pontos da obra de Chesterton, em virtude da


qual o título da historia poderia ser éste
outro: A Desvantagem de Ser Gigantesco.
Chesterton nao era, como Prederico o Gran-
de, um apreciador de gigantes, porque tinha
grande respeito pela medida humana. E nesse
desaprego ia alguma modéstia, porque éle
mesmo era gigantesco. Era enorme, física-
mente enorme. Bernard Shaw dizia que era
difícil discutir com Chesterton, pessoalmente,
pois havia sempre uma substancial parte de
seu corpo fora do campo de visáo.
Mas agora o que nos interessa nao é o
gigantismo, e sim o desdobramento de cabe-
gas. A ésse respeito convém assinalar um
outro desdobramento que aflige a natureza
humana e do qual Chesterton se ocupou cons-
tantemente. Refiro-me ao casamento. Para
marcar com insistencia a solidez do bloco fa-
miliar e sua inacessibilidade as intervengóes
do Estado, disse éle: “o Estado nao dispóe de
um instrumento bastante delicado para extir-
par os hábitos enraizados e para desemba-
ragar o novélo das afeigóes familiares; os dois
sexos, felizes ou infelizes, estáo colados estrei-
tamente de mais, para permitir que a lámina
legal se meta de permeio. O homem e a mu-
lher sao uma carne — sim, mesmo quando
nao sao um só espirito. O homem é um qua-
drúpede.”
Chesterton também foi um bom quadrú-
pede. Preferiu ésse desdobramento, quando
quatro pernas se dobraram diante de um
altar, ao desdobramento mental. Levava sobre
o gigante a vantagem da unidade de cabega
O HUMANISMO DE CHESTERTON 63

(veja o leitor a epístola de Sao Paulo aos


efésios) aliada ao maior equilibrio proporcio-
nado pela duplicagáo das pernas. Além disso,
a liberdade de espirites imprime ao casamento
um caráter que o aproxima do combate e que
o distingue do conflito. “É um duelo eterno.”
Há na ligagáo entre homem e mulher, no ma-
trimonio, um elemento salvador, que é a pro-
pria separagáo; ou melhor, uma certa elasti-
cidade na carne única, grabas á qual os dois
esposos se podem defrontar como dois adver-
sarios. Os combates matrimoniáis sao saluta-
res; diria até salvadores. E náo é por outro
motivo, talvez, que o homem moderno, amo-
lecido durante séculos pelo pacifismo das
concessóes, e pela filosofía do meio térmo,
demonstra táo pouca resisténcia no matrimo-
nio. Quando o conteúdo sacramental é igno-
rado, quando a promessa jurada pouco ou
nada vale, as últimas amarras de uma possí-
vel recuperacáo sao cortadas pela repugnán-
cia, pela aversáo ao combate. Ésse é o último
elo de um casamento periclitante: o duelo
franco e aberto, segundo as regias, sem gol-
pes baixos: o tenaz atletismo: a persistente
tentativa de esgrimista que procura tocar o
peito do adversário e mais especialmente
aquéle ponto vermelho do plastráo que marca
o trunfo déste jógo.
Chesterton foi um bom quadrúpede. E eu
o vejo, por vézes, surgir em minha imagina-
qáo (ao contrário do sonéto de Herédia) como
um vigoroso Centauro que avanga em diregáo
aos nossos tempos.
PARTE H
HOMEM E SUAS IDÉIAS
“Tu lhe puseste na cabega uma coroa d
pedras preciosas.”

Salmo XX.
CAMPEÁO DE IDÉIAS
Disse eu atrás, a fólhas tantas, que Ches-
terton explorou muitos géneros literários, e
que além de ensaios e artigos polémicos escre-
veu romances e novelas. Na realidade, porém,
éle foi sempre um campeáo de idéias. Seus
romances nao sao romances. Suas biografías
nao sao rigorosamente biográficas. Na hagio-
grafía, também, deixa o santo durante pági-
nas e páginas para assistir á luta das idéias.
Éle mesmo reconhece o fato quando diz na
Autobiografía (que também nao é perfeita-
mente autobiográfica) que nunca escreveu
romances e que julga ter estragado algum
bom material mais de uma vez. E acrescenta
que seu maior desejo era o de assistir as lutas
das idéias nuas.
Seria entretanto um erro supor que suas
novelas alegóricas, como por exemplo The
Ball and the Cross, sao constituidas com puros
símbolos, sendo os personagens meras idéias.
Os personagens sao realmente personagens,
as cenas sao dotadas de uma grande visibili-
dade, e nesse ponto eu posso dizer que suas
lutas de idéias sao mais plásticas e mais hu-
manas do que a maior parte dos romances
onde se tem a impressáo de que os escritores
nasceram cegos. Chesterton era desenhista
e tinha alta estima pelas cores. Sabia que
68 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

uma das missóes do escritor, e talvez a mais


difícil, consiste em dotar a palavra de uma
presunta real, de uma presenta presente, visí-
vel mais do que audível. Éle é mais adolíneo
que dionisíaco; mais pintor que dangarino;
mais visual que auditivo. Há qualquer coisa
de latino, de romano, no seu temperamento,
em combinagáo com o recatado bom gósto
inglés.
O estudo désse aspecto de sua obra mere-
cería maior atengáo, mas náo quero ocultar
que já escolhi minhas perspectivas para éste
ensaio. Depois de ter mostrado, em seus tra-
gos principáis, o humanismo de Chesterton,
tenho em mente agora a análise do conteúdo
de sua mensagem, ou melhor, o estudo das
principáis idéias contidas nessa mensagem.
Fica registrado aqui, de passagem, que a lei-
tura dessa imensa missiva escrita em tantos
volumes proporciona, ao lado dessa alegría
intelectual, uma outra alegría de caráter mais
artístico ou mais infantil. De fato, é como se
léssemos uma carta escrita com figuras: as
mais sutis verdades váo surgindo debaixo de
cenas coloridas, numa curiosa combinagáo de
evidencia e de enigma. Mas agora deixemos
as iluminuras e vamos á substancia da men-
sagem. Vamos as idéias.
TRÉS OU QUATRO CAPITULOS
OMITIDOS
Náo. Vejo agora que é preciso explicar a
omissáo de trés ou quatro capítulos, onde se
tratasse da situagáo social do autor, do orga-
mcnto com que vivia, das taras que sóbre éle
pesavam, e do boletim médico de seus últimos
dias. Parece admitido que os homens que mais
se exteriorizaran! numa obra, sáo aquéles que
menos conseguiram dizer. Os diagnósticos mé-
dicos, nessas pesquisas, aparecem com uma
precisáo que raramente possuem quando o
médico está na cabeceira de um doente. Pa-
rece também admitido, científicamente, que
náo há obra inteligível onde faltam informa-
góes sóbre a cór ou os achaques do autor.
Sabe-se, por exemplo, pouca coisa a respeito
de Shakespeare, além do que éle mesmo disse
em sua obra. A Crítica científica, náo se po-
dendo conformar com um autor pouco conhe-
cido, descobre que tudo fica mais claro quando
se diz que Shakespeare foi Bacon; ou quando
se diz que Homero foi uma boa dúzia de indi-
viduos homéricos.
O ideal, nesse tipo de estudo, é ter em
máo uma doenga terrível ou uma negra
miséria vivida pelo autor. Os Possessos, por
exemplo, foi um livro escrito pela Epilepsia
em pessoa. A Nona Sinfonía foi composta
70 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

pela Surdez. Dom Casmurro tem por incon-


testável autor a Cor-Parda. E assim por dian-
te. Ora, a impressáo que me dá essa crítica
— e duvido que alguém consiga dissipá-la —
é que seus praticantes nao tém o menor inte-
résse do mundo pelo objeto que estáo estu-
dando. Passa entáo um homem a vida inteira
escrevendo palavras para que um crítico ve-
nha dizer que as únicas inteligíveis e garan-
tidas sao aquelas que éle nao escreveu? Nesse
ponto estou com Pilatos: o que está escrito
está escrito. A meu ver, deve comecar pelo
que está escrito o estudo de um escritor; e
muitas vézes nao seria mal parar nesse ponto.
Imaginemos, leitor, o caso de um personagem
de extraordinária importancia histórica que
nao tenha deixado um único bilhete escrito:
é fácil imaginar, nesse caso, a pressurosa azá-
fama de todos os eruditos do mundo, se fósse
anunciada a descoberta do arquivo completo
de uma intensa correspondéncia trocada com
ésse personagem. Ora, no caso da literatura,
onde o arquivo já está descoberto, a crítica,
num movimento que me parece bizarro, passa
a preferir a obscuridade de um rol de roupa
á claridade de um poema. Tratam assim o
poeta como se a regra geral, no mundo das
letras, fósse a mais deslavada mentira, e como
se nada houvesse mais traigoeiro e menos
significativo, em crítica literária, do que uma
obra escrita.
Tenho particular aversáo por essa raga de
individuos que anda á cata das doengas dos
mortos quando há tantos vivos por ai com
carencia de medicina. O génio se explica com
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 71

a doenga. É claro que um grande morto mor-


reu, e que morreu de alguma coisa. É clarís-
símo que a máe e a avó do grande morto tam-
bém morreram de alguma coisa. A medicina
é uma grande profissáo, e está longe de mim
a idéia de ridicularizá-la; mas difícilmente
ela forma uma boa combinagáo com a arte,
com a crítica literária, com a história, com
qualquer coisa enfim que náo seja um doente
em carne e osso. Nessa ordem de idéias, náo
posso perdoar a Ibsen (e creio que Chesterton
concordaría comigo) a base clínica de seu
drama A Casa da Boneca. Toda a intriga se
arquiteta em cima de uma doenca e de uma
cura na Suíga: chamasse Nora outro médico
e náo haveria drama. Evidentemente, nem eu
o contesto, muitas tragédias se originam em
diagnósticos médicos, verdadeiros ou falsos.
O que eu reclamo em Ibsen náo é própria-
mente o uso de um dado clínico no drama,
mas a sericdade, o ar de infalibilidade profis-
sional com que éle enreda as coisas em torno
das receitas. Náo é o fato dramatizado, mas
a perspectiva formal. A contraprova do ca-
botinismo está no outro personagem, o Dr.
Ranck, que é a encarnagáo moribunda, cien-
tíficamente moribunda (agonizando com a
precisáo dos eclipses), das leis de hereditarie-
dade que no tempo de Ibsen gozavam esplén-
dido prestigio.
Náo pretendo negar o direito de pesquisar
coisas obscuras, mesmo onde existem coisas
claras, pois nada é mais legítimo e humano.
Mas pretendo afirmar, na ordem da pesquisa,
a precedéncia das coisas claras. Em filosofía,
72 TRÉS ALQUEIRES E UM* VACA

o processo de explicar o claro pelo obscuro


teve um extraordinário sucesso quando Des-
cartes descobriu que o melhor modo de com-
preender todas as coisas é meter-se o filósofo
num quarto escuro, deixando ordens á gover-
nante para despachar os fornecedores e andar
ñas pontas dos pés. Na sua doutrina Deus
explica o homem, e parece muito piedosa
porque Deus comparece em primeiro lugar.
Essa razáo, todavía, é mais diplomática do
que teológica. Para Santo Tomás (e para
Chesterton) é o homem que explica Deus.
Para ambos, comega-se pelo que está diante
do nariz.
Chesterton náo foi sómente autor de um
Santo Tomás de Aquino, foi também discípu-
lo, e sua figura humana, como a de seu gran-
de mestre, é eclipsada pelo volume da obra.
Sua vida foi muito simples. Suas aventuras
terríveis e fantásticas passaram-se ñas rúas
de Londres onde descobria o que já estava
descoberto. Usava enorme chapéu de vaquei-
ro, capa espanhola, era gigantesco, e dizem
que trazia um florete escondido na bengala
e uma velha pistola carregada no bolso, ima-
ginando talvez que em qualquer esquina po-
deria ter inicio a volta do mundo ou o com-
bate com um dragáo.
Consta também que era um distraído, o
que constituí mais um trago de semelhanga
com o Doutor Angélico, mas tenho para mim,
com firme convicgáo, que ambos foram ex-
traordináriamente atentos, e por isso mesmo,
em certas circunstáncias, profundamente dis-
traídos. O homem que vé demais, que ouve
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 73

demais, que se interessa de um modo prodi-


gioso pelo que ve e ouve, é como o homem que
come demais. Precisa, para assimilar tudo,
de um intenso trabalho de digestáo. As pes-
soas realmente distraídas, a meu ver, nao sáo
aquelas que, num colapso de atengáo, dariam
um murro na mesa do rei, ou chegariam á
janela para ver um boi voar; sáo antes as
que vivem meticulosamente distraídas, sem
anedotas de distragáo, e que chegam ao fim
da vida com a vaga idéia de terem atravessado
uma paisagem encantada, onde uns esquisi-
tos séres riam, dangavam e choravam, por
obscuros e desencontrados motivos.
Nao duvido, entretanto, que alguns dados
secundários, relativos á pessoa do autor e á
sua vida, tenham apreciável valor e se jam
capazes de elucidar alguns pontos da obra.
Em alguns casos sáo indispensáveis para dis-
tinguir o auténtico do apócrifico, mas no caso
de Chesterton ainda nao houve quem dissesse
que éle era um pseudónimo. Seus livros nao
sáo contestados; e éle ainda nao atingiu o
apogeu da gloria para merecer que um crítico
científico descubra que éle nao existiu.
Seria muito interessante estudar em sua
obra as influéncias dos acontecimentos e dos
outros autores contemporáneos, sendo ésse
trabalho de colocagáo uma das principáis
fungóes do crítico que, além do estudo obje-
tivo da obra, tem o dever de pesquisar as
relagóes que a situam, calculando, como féz
Le Verrier, a ascensáo reta e a declinagáo do
novo planéta, para que o leitor possa apontar
74 TRES ALQUEIRES E UMA VACA
o seu telescopio para a regiáo do firmamento
em que éle se acha.
Deixo de lado essa tarefa porque pretendo
salientar o sentido duradouro da mensagem.
Como jornalista, Chesterton viveu e construiu
sua obra em estreita ligagáo com os aconteci-
mentos do tempo. Podemos portanto subme-
ter sua mensagem a uma prova difícil, aban-
donando os dados que se referem a ambiente
e época, a fim de realgar o que ela contém
de forte e perene. E o autor resiste á prova.
O leitor náo perderá muito, vendo nomes de
personagens esquecidos e de instituigoes se-
pultadas perpassarem como sombras impreci-
sas. O contraste entre a nitidez das idéias e
a fluidez do cenário tem um esquisito sabor.
E o Everlasting Man, o Homem de Sempre,
forte e trágico, destaca-se contra o fundo esba-
tido de fatos que no tempo foram gritantes
e pareceram definitivos.
A COROA DE IDÉIAS
Cada um de nós, rei ignorado, anda com
uma invisível coroa de idéias. Ou entáo, com
um par de lunetas, de maior ou menor aber-
ragáo, através das quais vé o mundo. O indi-
viduo que escreve um livro intitulado Como
Eu Vejo o Mundo está, na verdade, descre-
yendo o seu par de óculos. A história dessas
dioptrías, e o modo como vieram a se encava-
lar no nariz do sujeito, varia indefinidamente,
e nesse ponto eu creio ñas influéncias meno-
res, e nos pequeños fatos ridículos, que fazem
da vida humana, tomada em si, uma sucessáo
de desproporcionados absurdos. Náo duvido
que uma colite produza uma alteragáo de fo-
cos,. e que do éxito dos negocios resulte uma
aberragáo cromática que derrame uma agua-
dilha rosada ñas paisagens da vida. No meio
de todas essas influéncias, porém. o sujeito
náo fica inerte. Éle escolhe; bem ou mal, mas
escolhe. Escolhe, e muitas vézes glorifica-se
da escolha. Mete-a na cabega como coroa de
rei. Há no conjunto de idéias pessoais essa
dupla natureza que me leva a duplicar as
imagens, contrariando as melhores regras do
estilo.
Quando eu era pequenino, e depois de ter
ouvido um velho e bondoso párente discorrer
uma hora sobre as maravilhas do universo,
76 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

tive a idéie de fazer uma luneta para olhar


a Lúa. Catei diversas lentes, desmanchando
óculos velhos, e arrancando as oculares de uns
aparelhos estereoscópicos de meus irmáos, e
enfiei tudo num canudo de cartáo. Nesse arbi-
trário procedimento, do ponto-de-vista óptico,
senáo do moral, eu estava seguindo a filosofía
dominante da época, que glorificava de modo
absoluto a relatividade dos sistemas e das opi-
nióes. Olhando para a Lúa, vi monstros, que
talvez fóssem minhas próprias pestañas, e que
logo admití como auténticos selenitas. Com o
decorrer dos anos aprendí que havia uma re-
gra para as lentes, e muito mais tarde —
gragas a Chesterton — aprendí a distinguir
os verdadeiros lunáticos.
Cada um de nós tem sua colegáo de idéias
principáis. Umas vézes se imobiliza durante
muito tempo, outras vézes náo pára de dan-
zar. Em regra geral move-se lentamente com
a idade. A conseqüéncia désse sistema, Lsto é,
a operagáo de filtragem e selegáo que éle pro-
porciona na visáo das coisas, é chamada con-
cepqáo de vida, modo de pensar, ou conjunto
de opinióes. O mais comum dos homens tem
sua equagáo pessoal que influí fortemente no
conselho interior que preside á escolha de seus
atos, mesmo que náo saiba traduzir em for-
ma de sistema ou de filosofía.
Ora, uma das características dos homens
como Chesterton, capazes de uma obra rica e
variada, é a grande simplicidade das idéias-
mestras, e a perfeita harmonía das suas posi-
góes. Deixam de ser um instrumento postigo
pendurado á inteligéncia e passam a consti-
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 77

tuir um sentido interno e intermediário entre


o espirito e os olhos. Instalam-se no tecido
vivo do senso-comum, e dáo aos atos e as
opinióes ésse torn de autenticidade que se
chama bom-senso.
Os homens chamados simples tém, geral-
mente, idéias complicadíssimas. Conhego um,
entre muitos, que tem opinióes hesitantes
sobre a imortalidade da alma e sobre a vera-
cidade dos Evangelhos. Encontrando-se o as-
sunto dentro dessa nebulosa regiáo, éle está
pronto a recusar ou conceder, por boa educa-
gáo; mas se alguém abordar a palpitante
questáo do gado zebu, ou o fascinante assunto
da imigragáo japonésa, éle será capaz de dis-
cutir com fervor, e até com certo talento. Nao
consegui descobrir qual é a idéia mais sim-
ples, e portanto mais fundamental, a que se
reduzem e se subordinam no seu sistema o
zebu e o japonés. Pesquisei sob as duas idéias
a existéncia de um sentimento patriótico que
explicasse a aversáo pelo homem do Japáo e
o amor pelo gado da India. Por meio de testes
cuidadosos cheguei á conclusáo de que o seu
patriotismo estava adormecido demais para
explicar a efervescéncia daqueles efeitos. Con-
cluí portanto que, no personagem em ques-
táo, o zebu e o japonés sáo idéias mestras,
irredulíveis, fundamentáis, instaladas entre
dez mil outras sobre trocadores de ónibus,
relógios de ponto, planificagáo económica,
tratamento de gripe, monocultura, etc., tudo
nevoentamente iluminado por algumas idéias
moráis e religiosas. Ou entáo (e talvez seja
essa a verdadeira explica gao), ésse eclético
78 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

individuo tem uma só idéia mestra, que fica


dentro déle como um ólho único, duro e imo-
bilizado, a gozar durante a vida inteira o
espetáculo de um caos. E essa idéia, ao con-
trario da Idéia criadora, acha bom o caos.
Pego a Chesterton emprestada uma citagáo
de Nietzsche, para provar que aquéle triste
individuo teve também o seu cantor: “Quero
um caos interior para dar luz a uma estréla
dangante.”
Se Chesterton tivesse sido romancista, no
sentido justo, seria mais difícil identificar
suas idéias mestras. Teríamos de apalpar
cenas e personagens, para descobrir a sub-
jetividade debaixo da objetividade. Ninguém
consegue fazer um objeto sem deixar a marca
dos seus dedos: o romance mais objetivo do
mundo é impossível sem uma particular pers-
pectiva. Quando um homem desenha um gato,
deixa logo marcado um ponto-de-vista, isto é,
desenha também o invisível perfil do homem
que viu o gato. Ninguém poderá fazer o retra-
to de um personagem visto por todos os lados,
numa espécie de panorama. As criangas cos-
tumam desenhar perfis com dois olhos, por-
que a crianga é qualquer coisa caótica e efer-
vescente, que náo tem pontos-de-vista e
opinióes. O adulto é o homem que descobriu
seus limites, e o mais perfeito adulto é aquéle
que conserva a vitalidade da infancia dentro
de nova e terrível conquista: uma ordem.
Chesterton é um désses homens. Sua obra,
crepitante e cintilante, afirma uma simplici-
dade e uma ordem. Suas idéias-mestras sáo
poucas e simples. Náo me refiro ao seu credo,
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 79

mas á peculiar disposigáo dos artigos désse


credo na sua personalidade. Era um católico.
Alias, já era um pensador católico muito
antes de sua demorada conversáo. Os elemen-
tos de sua inteligéncia eram portanto dogmá-
ticos, e estáo no Símbolo dos Apóstolos. Mas
dentro désse quadro é possível uma infinita
variedade de arrumagóes pessoais. A orto-
doxia é inexaurível; é mesmo a doutrina da
inexauribilidade. Desde os tempos antigos, os
robustos crentes e santos mártires gostavam
de adotar, dentro da riqueza sem fim, a Ver-
dade, uma partícula, uma palavra que guar-
dava a substancial inteireza, mas que acomo-
dava essa inteireza, modesta e pequeña, á sua
vida. Andava assim um santo agarrado ao
apoftegma que recebera de outro; e nessa
transmissáo de elementos semináis, colhidos
no Verbo de Deus, havia uma verdadeira pa-
ternidade de espirito.
No homem moderno, porém, as idéias sáo
mais próprias. Mesmo no caso do ortodoxo,
que recebe a doutrina de fora, por tradigáo,
o arranjo das idéias nela inscritas, a maior
ou menor acentuacáo de urnas em prejuízo de
outras, é fruto de experiencia pessoal. O mo-
derno tem maior consciéncia de si mesmo, é
mais adulto, com todos os riscos, e sendo essa
tomada de consciéncia irreversível, éle náo
pode sem artificio adotar uma atitude idén-
tica á dos antigos. Os processos de educagáo,
por isso, tém de levar em conta, além de tra-
digáo sem a qual o homem deixaria de ser
humano, a autoformagáo á custa de proces-
sos imanentes em relagáo aos quais o pedago-
80 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

go deve manter uma discreta isengáo. No pro-


blema da formacáo das idéias existe a mesma
delicada e difícil competigáo entre a autori-
dade e a liberdade.
As idéias de Chesterton, e de qualquer um
de nós, mesmo dentro da ortodoxia, sáo frutos
de experiéncia própria. Nasceram, sabe Deus
como. Colocaram-se. Algumas se extingui-
ram enquanto outras surgiam vivamente, co-
mo as novae do firmamento astronómico. E
todas circundaram nossas cabegas com um
diadema. Ou com uma coroa de espinhos.
UM BOM PARCEIRO
Uma das grandes alegrias que nos é dada,
neste mundo tantas vézes inóspito e doido,
é o encontro de um bom parceiro de idéias.
Tal vez se ja essa a razáo de existirem a bisca
e o xadrez: o homem precisa viver com outro
homem sob a mesma regra. Dessa necessi-
dade fundamental resultam os cassinos e os
mosteiros, pois o falso e o genuino se encon-
tram em torno das mesmas necessidades.
O homem precisa de uma lei, ainda que seja
para logo depois a ultrapassar. Foram neces-
sários o Levítico, o Decálogo, e todos os livros
e preceitos da Lei, para que Santo Agostinho
pudesse promulgar a terrível anarquia crista:
“Ama e faze o que quiseres.” O homem pre-
cisa de uma lei para superá-la; de uma regra,
para nao sentir sua prisáo; de uma casa, para
estar á vontade; de uma clausura para se
libertar.
Por isso gostamos do jógo e temos necessi-
dade de uma regra de jógo. O que todos pro-
curam nos mosteiros e ñas casas de negocio
é um lucro. Varia a natureza, mas há uma
coisa que nao varia: a idéia de que só há
lucro, verdadeiro, adequado á natureza do
homem, rezando ou vendendo gravatas, quan-
do foram cumpridas certas regras. O lucro é
a vitória sobre os limites, conquistada dentro
82 TRES ALQUEIRES E UMA VACA
dos próprios limites. Com isso eu afirmo a
realidade moral do homem, e pensó explicar
sua propensáo, as vézes excessiva e imoral,
para os jogos de azar.
O estabelecimento das legras, que perdu-
ram enquanto dura o jógo tem uma impor-
tancia particularmente dramática na lase
inicial. Nesse momento as regras sáo princi-
pios ou juramentos, sendo cuidadosamente
estipuladas onde o jógo é liso. No duelo, os
padrinhos verificam a igualdade das espadas
e examinam escrupulosamente se restam pos-
sibilidades de acórdo que afaste os parceiros
do campo de combate; no casamento, se as
há de desacórdo que os afaste também désse
jógo sem fim, onde iguais sáo as regras e táo
desiguais as armas.
Há porém um jógo desconcertante, um
jógo de regras difíceis e escondidas, cujo pacto
inicial remonta a geraqoes. Refiro-me a essa
coisa trivial e cotidiana que é uma troca de
idéias. Pensava nisto quando disse, e agora
repito, que uma das grandes alegrias que nos
pode ser dada é o encontro de um bom par-
ceiro de idéias. Náo basta a concordancia
sobre um certo número de assuntos. Náo
basta mesmo que os dois individuos parti-
lhem o mesmo credo. Ainda que sejam ambos
católicos, ligados pela mesma Fé e no mesmo
Pao, choeam-se na hora de trocar idéias.
E nesses casos os choques sáo maiores e mais
dolorosos; mas, ainda bons. Pior do que o
choque é o desencontro, que é uma falsa con-
ciliagáo. A divisáo, mesmo dentro da Igreja,
náo é um mal em si, como parecem supor os
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 83

espíritos largos a que já me referí e que se


caracterizam pela falta de pugnacidade. In-
vocam éles a universalidade da Igreja e o pa-
cifismo dos santos para impedir os choques
saudáveis e necessários, que separam os Be-
neditinos dos Dominicanos, ou Jesuítas dos
Franciscanos. A escolha, porém, é um ato vio-
lento; e se todos ouvissem os conciliadores
que falam em unificagáo, ninguém escolheria
Santo Inácio ou Sáo Bento, mais ficaria a
meia distancia dos dois votos, imaginando
um hábito intermediário e uma regra mista.
A divisáo, em si, náo é má; de outro modo
o Apóstolo náo diria que o homem casado é
um dividido, e que o matrimonio é um gran-
de sacramento. O que é mau e péssimo é a
trapaza. A desobediéncia ás regras do jógo.
Porque entáo náo há mais troca de idéias
opostas que sejam, mas troca de golpes es-
cusos, em busca do mau lucro e da defeituosa
vitória em que a verdade é ultrajada. E, se
grande é a alegria causada pelo encontro de
um bom parceiro de idéias, grandes também
sáo a tristeza e o no jo causados pelo encontro
de um parceiro que marca as cartas de seu
baralho, ainda que seja com o sinal da cruz.
Chesterton é um bom parceiro. Para mim,
quando o encontrei, mais do que um grande
autor, éle significou a inesperada valorizagáo
de uma antiga coroa de idéias, abandonada
como um chapéu velho e fora de moda de
que a gente se envergonha. O que em mim
havia de verdadeiro, e de que me envergo-
nhava — o simples amor pela familia, o sim-
plíssimo amor pela simplicidade, o gósto pelo
84 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

riso, a preferencia do claro sóbre o obscuro,


o bom-senso, o bom-humor — aparecía, anun-
ciado por ésse supervivo corretor, numa alta
imprevista.
Veja bem o leitor que náo me estou ga-
bando de aproximares literárias, mas de
aproximaQÓes humanas. A afinidade de idéias
é uma semelhanqa e náo uma igualdade;
equipara os ángulos mas ressalva as propor-
góes. Encontrei-me a mim mesmo em Ches-
terton, porque as mais simples e triviais idéias
que para mim pareciam reliquias de familia,
desprezíveis ñas altas esferas da cultura, eram
suas idéias mestras, e eram realmente reli-
quias de familia. E, sobretudo, eram idéias
regeneradoras e fecundas. Faga o leitor a
mesma experiéncia. Leia Chesterton; jogue
com éle ésse melhor dos jogos, em que as
idéias sáo atiradas de campo para campo, e
em que o lucro pode perfeitamente ser a re-
cuperado do tempo perdido que Proust, em
quatorze volumes, náo encontrou.
IDÉIAS E DOUTRINA

Disse atrás que Chesterton é ortodoxo e


tomista. Tsto náo quer dizer, entretanto, que
sua obra seja a transmissáo de uma doutrina.
É antes a conseqüéncia de uma doutrina. Es-
tando embora bem centrada (e é por isso que
eu digo ser éle ortodoxo e tomista) sua obra
náo evolui, como a do filósofo, pela conquista
de todos os quadrantes, em extensáo e inten-
sidade. Inscreve-se como um complexo polí-
gono estrelado, cheio de pontas, e algumas
dessas, numa análise rigorosa, talvez se pres-
tem á crítica dos filósofos. No problema da
causalidade, por exemplo, em relagáo aos de-
terministas, leva sua argumentacáo a ponto
de diminuir o valor das causas eficientes na
ordem natural, pendurando todas as coisas
numa direta, mas enfraquecida, dependencia
da vontade divina. Para afirmar um Deus
pessoal, chega quase a afirmar um Deus má-
gico. Nesse caso, e em outros análogos, náo
se deve julgar que tal seja o pensamento do
autor. Trata-se mais de uma atitude, e tam-
bém de uma intengáo revestida de forma poé-
tica ou humorística que náo se desliga da
verdade, mas que a inculca de um modo espe-
cial, em fungáo do adversário e do imperativo
do tom adotado.
Náo advogo a perfeita emancipagáo da
poesia e do humorismo, a ponto de julgar que
86 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

o tom, o ritmo e a intengáo possam substi-


tuir ou dispensar a verdade. Quero apenas
dizer que devem servir á verdade, mas de um
modo especial. A poesía sem verdade náo
passa de uma algaravia; o humorismo sem
verdade náo passa de um gracejo. Dizer que
uma afirmacáo é inatacável porque dita em
versos, náo é sómente faltar com o respeito á
verdade, é também destruir a poesía. O que
é certo, porém, é que o ataque á poesía é di-
fícil. A verdade está nela interiorizada, assim
como a bondade, e nessa arrumacáo o que
fica de fora, ao nosso alcance, é essa coisa
misteriosa que chamamos beleza. Ora, désses
trés grandes astros que iluminam os nossos
julgamentos e as nossas escolhas, a beleza é
ao "mesmo tempo o mais distante, por trans-
cendéncia, e o mais próximo pela pressáo que
exerce nos sentidos. Daí a dificuldade.
No espirito da crianga há uma indiferen-
ciagáo entre a bondade e a beleza, que a faz
achar a máe e o pai as pessoas mais bonitas
do mundo, porque sao efetivamente as que
ela olha com mais agrado. No espirito do
adulto a diferenciagáo se estabelece, e muitas
vézes, como no caso do esteta, se torna uma
verdadeira separacáo.
O que caracteriza o objeto poético é a
ordem das órbitas, sendo através de uma
atmosfera por si mesma fulgurante que sen-
timos a verdade e a bondade, e é isso que
toma difícil, náo sómente distinguir em poe-
sía como, principalmente, avaliar sua verdade.
A linguagem de Chesterton é geralmente ló-
gica, com a verdade exteriorizada, mas fre-
O HOMEM E SUAS IDÉIAS 87

qüentemente se transforma, pondo para fora


o fulgor que ora tem o caráter poético, ora o
caráter retórico da certeira e elegante argu-
mentagáo, a que os próprios matemáticos náo
sáo indiferentes. E num désses casos, a aná-
lise do seu pensamento náo pode ser feita
com os mesmos processos usados para veri-
ficar um teorema ou uma proposiqáo filosó-
fica. Mas também, repito-o, náo é lícito dizer
que ésse pensamento, pelo mérito de sua in-
dumentária, ficou dotado de imunidades
absolutas.
O crítico que náo leve em conta as refra-
góes poéticas ou retóricas, e náo tome conhe-
cimento da intengáo manifesta, achará em
Chesterton um grande número de proposigóes
arriscadas. Aliás, levado ésse processo a ri-
gor, encontraremos proposigóes falsas em
Santo Agostinho e em toda a literatura pa-
trística. O grande mérito de Santo Tomás
conslituiu em ter exposto a doutrina de Santo
Agostinho e dos Santos Padres desvencilhada
da retórica acidental, pondo-lhe de fora a ver-
dade. Ou talvez seja melhor e mais simples
dizer que o seu mérito foi o de ter sabido 1er
os antigos.
É possível descobrir em Chesterton algum
trecho onde o arrebatamento da argumenta-
gáo tenha induzido a érro de detalhe. Defen-
dendo o homem, como centro e coroa da
ordem natural, o que é perfeitamente orto-
doxo, parece ás vézes atingir o que Maritain
chamou de “humanismo antropocéntrico.”
Defendendo a pequeña propriedade e repelin-
do os avangos das intervengóes estatais, chega
88 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

a falar quase como um anarquista. Reagin-


do contra os nacionalistas, submete a ordem
natural, náo á vontade de Deus que nesse pla-
no se traduz justamente pelas leis naturais,
mas ao capricho de um demiurgo.
Ainda um ponto. Depois da ressalva que
acabo de fazer e que tem certas feigóes an-
tipáticas, bem o sei, a primeira suposigáo que
ocorrerá a um homem de nossos dias, rebelde
a tudo (exceto á tirania), é que Chesterton
ultrapassa os limites da ortodoxia. Estaría
entáo, de tesoura na máo, pronto para cor-
tar as pomtas interessantes, as chispas, os
bicos de estréla, que ultrí-passaram um risco
de carváo.
Mas a idéia que temos do erro, desde
Aristóteles, náo é essa. Cada verdade é o
pico de uma montanha, e quando dizemos
que alguém ultrapassou a ortodoxia, quere-
mos dizer, simplesmente, que transpós a lom-
bada do morro, ao lado do vértice, e escorre-
gou do outro lado. O érro é sempre deficien-
te. E se em algum ponto Chesterton náo é
perfeitamente ortodoxo é porque ai lhe fal-
tou o ímpeto e a fórca para atingir e se man-
ter no vértice.
Insisto, porém, na diferenca entre um
livro de idéias e um livro de doutrina. Ches-
terton náo nos quis transmitir sua doutrina
mas suas idéias. E se o leitor quiser conhecer
mais exatamente a doutrina de Chesterton,
depois ou antes de conhecer suas idéias, posso
adiantar-lhe um bom alvitre: leia Jacques Ma-
ritain, o filósofo.
TRÉS IDÉIAS E TRÉS DAMAS

As idéias-mestras de Chesterton sáo trés.


É claro que num caso déstes, em que se pro-
cura uma sistematizado e um esquema, o
primeiro número que nos ocorre é o trés. Já
náo me recordo se comecei pelo número, pro-
curando depois os objetos, ou se comecei ho-
nestamente pelos objetos e aceitei o número.
A atragáo produzida pelo trés, numa opera-
do que encerra uma análise e uma síntese,
é compreensível, porque ésse número contém
ao mesmo tempo diversidade e unidade. O
número um é uma insustentável e vertigino-
sa origem; nu, cru, imóvel e absoluto, éle
lembra a solidáo de um deus. No número dois
comeca uma historia, ou uma caminhada.:
um. dois, um, dois.. . Todo casal jovem, que
obedece ás regras do jógo, comega por ésse
ritmo dual, por ésse compasso binário, á es-
pera do dia em que os dois sejam trés e em
que as desproporgóes do casal se nivelem
numa outra proporgáo. Em geometi'ia, tam-
bém, enquanto estamos nos teoremas das re-
tas que se encontram, a historia parece irreal,
como se estivéssemos a vasculhar os infinitos
com varas desmedidas em nossas máos. Quan-
do encontramos o triángulo temos a impressáo
de uma conquista ou de um terreno bem de-
marcado: Trés Alqueires e Urna Vaca. Déste
90 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

ponto em diante somos proprietários e, no


mundo abstrato e deserto do plano, temos es-
tacas fincadas para um primeiro acampamen-
to. A preparado acaba no número tres e néle
comega a fecundidade.
Temos além disso uma forte razáo para
ver no número tres um sinal de perfeigáo:
sáo tres as Pessoas da Santíssima Trindade,
e é estranho pensar que sáo Tres, do mesmo
modo que na familia humana e nos lados de
um triángulo. O número em geral é uma coi-
sa terrivelmente pura que logo no primeiro
encontro diz tudo o que é. ,
No caso que nos interessa, o número tres
só se refere, evidentemente, ás principáis
idéias de Chesterton que sáo, a bem dizer, trés
núcleos planetários de idéias. Náo fago muito
empenho em discutir essa questáo do número,
estando pronto a ceder se alguém provar que
o quatro ou o cinco dariam melhor esquema.
Aliás, ooorre-me agora que a origem dessa
trindade esteja talvez ligada a uma pequeña
historia que tem a fórga de uma alegoría.
Chesterton, como já disse, era gigantesco,
e, como bom medieval, dotado de uma cor-
tesía que se torna cada vez mais rara. O fato
é que um dia, viajando de ónibus, pode fazer
um gesto de que um de nós, difícilmente, se
poderia gabar: cedeu lugar a trés damas.
Seus nomes náo foram registrados, o que me
ajuda a transformá-las em símbolos. Ó volu-
moso Gilbert Keith Chesterton féz ao mundo,
ésse ónibus de incerta rota, uma rasgada cor-
tesía: cumprimentou, saltou, e deixou bem
instaladas em seu lugar trés idéias matronas.
PARTE III

PARA NAO SER DOIDO ...

“O mistério é a saúde do espirito”.

C. K. Chesterton — Orthodoxy.
APOLO

Para encontrar na obra de Chesterton a


primeira idéia-mestra ou o primeiro sol ao
centro de um sistema planetário, tomemos
como ponto de partida a triste e fantástica
mansáo “onde brilha a estréla fixa da cer-
teza, e onde os homens créem em si mesmos
mais colossalmente que Napoleáo ou César, e
onde podemos chegar junto aos degraus do
trono do super-homem.” Comecemos, pois,
pela casa dos doidos. A idéia que procuramos
diz respeito á saúde do espirito, e por isso é
perfeitamente lógico que iniciemos nossa in-
vestigagáo onde falta essa saúde. Sentiremos
assim mais vivamente, gragas á parte de
saúde que porventura ainda nos reste, a que
extremidades sombrías nos poderá conduzir a
parte que por desventura já nos falte.
O primeiro confronto de Chesterton, para
langar um desafio a uma opiniáo geralmente
admitida, é entre o poeta e o louco. Em mui-
tas outras páginas, em numerosas novelas,
ésse confronto é aproveitado sob variados, fi-
gurados e coloridos aspectos. Um livro inteiro
The Poet and the Lunatics tem origem nessa
chispa produzida pelo choque entre duas coi-
sas táo diferentes que um vulgar preconceito
considera táo semelhante. Mas é no segundo
94 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

capítulo de Orthodoxy que encontramos a


primeira e mais nítida apresentagáo da
questáo.
Fala-se geralmente dos poetas como de pessoas em
quem náo se pode depositar muita confianza, sob o ponto-
de-vista psicológico, mas os íatos e a história contradizem
completamente ésse preconceito. Muitos dos poetas ver-
daderamente grandes íoram, náo sómente equilibrados,
mas também dotados de senso prático; e, se Shakespeare
foi realmente guardador de cavalos, é de crer que o jul-
garam um dos homens capazes disso. A imaginagáo náo
gera a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente
a razáo. Os poetas náo enlouquecem, mas os jogadores
de xadrez, ésses, sim, enlouquecem. Os matemáticos e
os contadores muitas vézes ficam doidos; os artistas
criadores muito raramente. Náo pretendo, como se verá
adiante, atacar a lógica: quero apenas frisar que é ai,
na lógica, e náo na imaginagáo, que está o perigo. A
paternidade artística é táo salutar como a paternidade
física. Deve-se notar, além disso, que os poetas real-
mente mórbidos foram os que tiveram algum ponto fraco
de racionalismo. Poe, pqr exemplo, era de fato um mór-
bido; náo por ser poeta, mas por ser excess i vamente
analítico. O próprio jógo de xadrez era poético de mais
para éle; desgostava-se por estar cheio de torres e peóes,
como um poema. Confessadamente, éle prefería o jógo
de damas que melhor lhe sugería a idéia de um diagra-
ma com pontos pretos.
Homero é completo e bastante calmo: sao os seus
críticos que o dilaceram em muitas extravagantes cria-
turas. Shakespeare era bem éle mesmo: foram seus
críticos que descobriram que éle era somebody else. E
Sao Joáo Evangelista, embora tenha visto muitos monstros
estranhos, nunca chegou a ver criatura táo medonha
como um de seus comentadores. O fato geral é simples.
A poesia é sá porque flutua á vontade num mar infinito;
a razáo, porém, procura atravessar o mar infinito, tor-
nando-o finito. O resultado disso é um esgotamento
mental, como o esgotamento físico de Mr. Holbein. Acei-
tar todas as coisas é um exercício, mas compreender todas
PARA NÁO SER DOIDO. 95

as coisas é um frenesí. O poeta procura apenas a exal-


tado e a expansáo, isto é, procura um mundo onde se
possa distender. Pretende éle, simplesmente, enfiar a
cabega nos céus, ao passo que o lógico se esforga por
enfiar os céus na cabega. E é a cabega que estala.
Mais adiante, seguindo a mesma ordem de
idéias, encontramos o tipo especial de racio-
cinador que aplica aos atos humanos um de-
terminismo rígido. Um déles, o Sr. R. B.
Suthers, marxista por convicgáo e oficio, diz
que o livre arbitrio seria uma loucura, por-
que levaría o homem a agir sem causas, isto
é, como louco. Chesterton passa rápidamente
sobre a falta de lógica determinista désse
discípulo de Marx: realmente, se os loucos
pudessem agir sem causas o determinismo
estaría perdido. Mas o ponto principal da
questáo é outro: o Sr. Suthers pode perfeita-
mente ignorar o que seja o livre arbitrio,
mas é pouco razoável que a tal ponto ignore
o que seja um louco, porque a última coisa
que déle se pode dizer é que age sem causas.
O louco é, ao contrário, o único determinis-
ta rigoroso:
Se alguns atos humanos podem ser considerados sem
causa, sao os pequeninos atos gratuitos e simples do
homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama
com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou
esfregar as máos. E’ ésse homem feliz que faz coisas
inúteis; o doente náo é bastante forte para ésses desper-
dicios. Sáo exatamente ésses atos descuidados e sem
motivos que o doido náo pode compreender; porque o
doido (como o determinista) vé geralmente causas demais
em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas éle é
capaz de descobrir uma significagáo conspiratória. Pen-
sará que o vergastar a grama é um ataque á propriedade
96 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

privada; e que o bater de calcanhares é um sinal trans-


mitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse
ficar um só instante descuidado ficaria curado. Aquéles
que tiveram a infelicidade de privar com uma pessoa
mergulhada ou mesmo na orla da desordem mental saben
que a mais sinistra qualidade désse estado é uma hor-
rível clareza nos detalhes; é a conexáo de uma coisa com
outra numa espécie de mapa mais elaborado do que um
labirinto. Se um de nós quiser discutir com um doido,
é extremamente provável que éle leve a melhor, porque
em muitos pontos seu espirito é mais rápido do que o
nosso, náo estando préso a certas coisas que atrasam um
bom julgamento. Éle náo se embaraga com o senso de
humour, com a caridade, ou com algumas certezas da
experiéncia. Tornou-se mais lógico pela perda de certas
fraquezas saudáveis. Realmente, a definigáo vulgar da
insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido
náo é o homem que perdeu tudo, exceto a razáo.
Suas explicates de cada coisa sáo sempre completas,
e muitas vézes, num sentido puramente racional, satis-
fatórias. Ou entáo, mais exatamente, a explicagáo do
louco, se náo é convincente, pelo menos é irrespondivel.
E isso se pode ver em dois ou tres dos casos mais comuns
em loucura. Se um homem diz, por exemplo, que o
resto da homanidade conspira contra éle, náo podemos
discutir senáo dizendo que todos os homens negam uná-
nimemente que sejam conspiradores; ora, se éles o fóssem
diriam exatamente isso. A explicagáo do doido, portanto,
está de acórdo com os fatos táo bem como a nossa. Se
um homem diz que é o legítimo rei da Inglaterra, náo
será satisfatório dizer-lhe que as autoridades existentes
o consideram doido; porque se éle fósse o rei da Ingla-
terra as autoridades usurpadoras náo teriam melhor coisa
a dizer. Ou entáo, se um homem diz que é Jesús Cristo,
náo adianta responder que o mundo nega sua divindade,
porque o mundo nega a divindade de Cristo.

A seguir, ainda no mesmo extraordiná-


rio capítulo, Chesterton apresenta as duas
características da demencia: uma completa-
PARA NÁO SER DOIDO. 97

gao e uma retracáo. Uma completado pe-


quena. Uma exaustáo. Um círculo. Éle bem
sabe que a inteligencia humana tem seus
limites e que a liberdade que ela possa go-
zar tem, digamos assim, o premio (ou o pre-
go) de uma limitagáo. Ésse ponto constituí
a cúpula de todo o arcabougo de idéias. Mas
antes de chegarmos a éle observemos que a
filosofía materialista é mais limitadora e
impóe mais restrigóes do que qualquer reli-
giáo.
O cristáo tem plena liberdade de crer que existe
no Universo uma ordem estabelecida e um inevitável
crescimento, mas ao materialista náo é permitido admitir
dentro de sua imaculada máquina a mais ligeira nódoa
de espiritualidade ou milagre. O pobre materialista que
é o Sr. McCabe náo tem permissáo de crer no mais mi-
núsculo diabinho escondido numa pimpinela. O homem
normal sabe que tem em si um pouco de animal, um
pouco de demonio, um pouco de santo e um pouco de
cidadáo. Ainda mais, o homem realmente normal sabe
que tem em si um pouco de doido. Mas o mundo do
materialista é perfeitamente sólido e simples; como tam-
bém o doido está perfeitamente convencido de que é
normal. Os materialistas e os doidos nunca tém dúvidas.

Mais adiante, referindo-se ainda á liber-


tagáo de que se gaba o materialista:
E’ absurdo dizer que estamos progredindo em liber-
dade quando só nos utilizamos do livre pensamento para
destruir o livre arbitrio. Os deterministas vieram para
amarrar e náo para afrouxar. Fazem bem em chamar á
sua lei "cadeia” de causalidade, pois nunca houve pior
cadeia do que essa para acorrentar um ente humano.
Podem usar a linguagem da liberdade, se quiserem, na
doutrina materialista, mas é claro que ela é táo inapli-
cável a essa doutrina como, de um modo geral, ao homem
98 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA
aferrolhado no hospicio. Podem dizer, se quiserem, que
o homem é livre de se considerar um ovo cozido. Mas
o fato mais macigo e mais importante, seguramente, é
que, sendo um ovo cozido, éle náo terá liberdade de
comer, beber, dormir, passear ou fumar um cigarro. Do
mesmo modo éles podem dizer, se quiserem, que o ousado
pensador determinista tem a liberdade de descrer na
realidade da vontade; mas o fato mais importante e mais
macigo é que, nesse caso, éle náo é livre para louvar,
maldizer, agradecer, justificar, implorar, punir, resistir
ás tentagóes, promover arruagas, formar bons propósitos
no Ano-Novo, perdoar os pecadores, apostrofar os tiranos
ou até para dizer um simples “obrigado” a quem lhe
passar a mostarda.

Agora, deixando ésse tipo de materialista


que troca todas as liberdades pela liberdade
de descrer, encontramos um personagem ain-
da mais sombrio:
Há um céptico mais terrível do que aquéle que acre-
dita que tudo comegou na matéria; há um que acredita
que tudo comegou néle mesmo. Já náo é dos an jos e
dos demonios que éste duvida, mas dos homens e das
vacas. Para éle, os próprios amigos náo passam de uma
mitología que éle próprio construiu. Criou seu pai~e
sua máe. Essa horrível fantasia contém qualquer coisa
atraente para o egoísmo mais ou menos místico de nossos
dias. Aquéle editor que pensava que os homens vencem
quando créem em si mesmo; aquéles que andam em
busca do Super-Homem e o váo procurar no espelho;
aquéles escritores que falam em modelar a própria per-
sonalidade em vez de criarem vida para o mundo; toda
essa gente está realmente a dois dedos désse vácuo hor-
roroso. E entáo, quando todas as coisas boas désse mundo
estivéíem enegrecidas como unja mentira; quando os
amigos se esvaírem em fantasmas e os alicerces do mundo
ruírem; entáo, o homem que náo eré em nada e em
ninguém, sózinho em seu pesadelo, deverá ser marcado
com a vingadora ironía da divisa individualista. As estré-
las seráo meros pontos no negrume de seu cérebro; a
PARA NÁO SER DOIDO. 99

face de sua máe será sómente um esbógo de seu insano


lápis ñas paredes de seu cárcere. Mas em cima da porta
de sua cela deve ser escrito, com terrível verdade: “Éle
eré em si mesmo.”

Agora, depois de uma longa caminhada


pelos infernos da deméncia, onde encontra-
mos as diferentes perturbacóes que afligem
o espirito, sob as formas das filosofías mate-
rialistas e idealistas (que nem sempre, alias,
se revestem dos aspectos clínicos oficialmen-
te estabelecidos, e muitas vézes conduzem,
náo ao manicomio, mas aos altos postos da
política racionalista), agora é justo que fa-
gamos um inventário e que perguntemos: “Se
é isso que enlouquece o homem, o que será
que mantém a saúde do espirito?" E aqui
responde Chesterton:
E' a idéia do mistério que conserva o homem sao.
O mistério é a saúde do espirito; sua negagáo é a loucura.

E aqui chegamos ao núcleo principal do


seu pensamento e da sua mensagem. Esta é
a delicada e esquisita linha que separa o lú-
gubre Hanwell * daquele outro país da ima-
ginagáo, da poesía e da Fé, daquele “ensola-
rado rincáo do senso comum” que vamos en-
contrar no admirável capítulo A Ética do
País das Fadas.

E esta é a primeira idéia-mestra de Ches-


terton : ou o mundo conserva a nogáo do mis-
tério, ou se transforma num imenso pátio de

* Hospicio, perto de Londres.


100 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

hospicio. E essa idéia, como as outras, nao


é sua. É antiga como o mundo; e é no plano
sobrenatural a idéia central da liturgia cató-
lica: o Sacrificio da Missa é o centro da vida
crista, e o “mistério da Fé” (mysterium fidei)
é o centro do sacrificio do altar. O autor,
que mais de uma vez confessou ter descober-
to o que já havia sido descoberto, tem entre-
tanto um mérito, o único, aliás, a que pode
pretender um auténtico pensador: náo foi éle
que descobriu o sol, náo foi éle que inventou
a luz que banha sua rica palhéta fazendo o
cobalto ser azul e o cádmio amarelo: mas
foi éle, em larga medida, que soube aceitar
essa luz, servir-se déla como de uma dádiva,
e que soube olhar em volta, maravilhado,
para descobrir e redescobrir a beleza ofere-
cida de todas as coisas.
Cedo-lhe mais uma vez a palavra para
que éle termine éste capitulo como terminou
seu magistral capítulo O Maníaco :
O Lógico mórbido procura tornar tudo lúcido, e con-
segue tornar tudo misterioso. O místico admite que
uma coisa seja mistério, e tudo se torna lúcido. O de-
terminista constrói a teoría clara da causalidade, e des-
cobre entáo que náo pode dizer um “faga o favor” á
sua arrumadeira. O cristáo permite que o livre arbitrio
seja um sagrado mistério, e por isso suas relagóes com
a arrumadeira ganham uma cintilante e cristalina cla-
ridade. Éle coloca a semente do dogma numa escuridáo
central; mas os ramos brotam e crescem em todas as
diregóes com a natural pujanga da saúde. Como já to-
mamos o círculo para o símbolo da razáo e da loucura,
tomamos agora a cruz para o símbolo do mistério e da
saúde. O budismo é centrípto, mas o cristianismo é cen-
PARA NÁO SER DOIDO. 101
trífugo: éle explode. Pois o círculo, sendo embora per-
feito e infinito em sua natureza, está fixado para sempre
no seu tamanho; nunca poderá ser maior ou menor. Mas
a cruz, apesar de ter em seu centro uma colisáo e uma
contradigáo, pode estender sempre os seus quatro bracos
sem que a forma se altere. Porque tem um paradoxo
em seu coragáo, pode crescer sem mudar. O círculo gira
sobre si mesmo e está atado. A cruz abre os bragos aos
quatro ventos como um indicador de caminhos para os
viajantes livres.
Sómente os símbolos podem ter algum valor neste
profundo assunto; tomarei, pois, um outro símbolo, tirado
da natureza física que exprimirá suficientemente bem o
verdadeiro lugar do mistério perante o género humano.
A única coisa criada que náo podemos olhar é aquela
em cuja luz vemos todas as coisas. Como o sol ao
meio-dia, o mistério esclarece todas as coisas pelo fulgor
de sua vitoriosa invisibilidade. O intelectualismo isolado
é como o luar, porque é uma luz sem calor, uma luz
secundária refletida por um mundo morto. Os gregos
tinham razáo quando tomaram Apolo como deus da ima-
ginagáo e da saúde, fazendo-o igualmente patrono da
poesia e da medicina. Falarei mais adiante de um credo
especial e dos dogmas necessários. Mas ésse transcen-
dentalismo pelo qual todos os homens vivem tem, prima-
riamente, algo da posigáo do sol no firmamento. Temos
consciencia déle como de uma espléndida confusáo; é
qualquer coisa brilhante e informe, ao mesmo tempo
claráo e mancha. Mas o círculo da lúa é táo claro e
táo inequívoco, táo recorrente e táo inevitável, como um
círculo de geómetra no quadro-negro. Porque a lúa é
completamente racional; a lúa é máe dos lunáticos, e a
todos éles deu o seu nome.
DIONISOS
Ouco no fundo da memoria, pronunciada
com indefinível angústia, com uma triunfante
angústia, a seguinte proposigáo: “É a certeza
que enlouquece, e nao a dúvida.” Pode ser
cotejada com essas outras de Chesterton: “Na
casa dos doidos é que brilha a estréla fixa da
certeza”; “o louco é o homem que perdeu tu-
do, exceto a razáo”; “os matemáticos, os en-
xadristas e os contadores ficam loucos, os
poetas quase nunca.” Mas quem disse aquela
frase que me vem á memoria náo foi Chester-
ton. Náo foi o espirito de Apolo que a ditou;
foi o espirito de Dionisos. A frase é de
Nietzsche.
Da comparagáo dessas diferentes propo-
sigoes tiramos a esquisita conclusáo de que o
autor de Orthodoxy e o autor de Ecce Homo,
os dois poetas mais diferentes que já houve
no mundo, se encontraram num ponto. Como
se explica ésse encontro? Ou melhor, como
se conciliam ésse pensamento central comum
e as veementes divergéncias que déle resul-
tam?
Antes de mais nada, notemos um aspecto
de importáncia considerável embora náo pa-
recendo: a frase de Nietzsche podia ser atri-
buida a Chesterton; mas nenhuma das ou-
tras frases de Chesterton poderia ser atribuida
PARA NAO SER DOIDO. 103

a Nietzsche. Há, entre as duas idéias, uma di-


ferenga que pode ser definida com duas pala-
vras: retragáo e expansáo. Em Chesterton, a
idéia é um ponto de partida para uma aven-
tura; em Nietzsche é um ponto, uma ponta,
um térmo, de onde náo se pode tirar outra
coisa senáo a forma de um buraco. E qual era
a espécie de certeza a que se referia Nietzsche?
Porque há duas coisas que recebem essa de-
nominagáo, dois tipos de julgamento, duas es-
pécies de satisfagáo intelectual: há uma cer-
teza que esgota tudo, e outra que se banha
num limitado mar. A primeira é um tiro; a
segunda, o comégo de uma viagem. A certeza
que mata e que enlouquece tem a máxima
expressáo na redonda e nítida negagáo, na
forma do círculo que é o símbolo do nada;
a certeza que vivifica e que se alimenta do ser,
tem a forma da cruz que é o símbolo dos
acréscimos. A bússola dos navegantes é um
círculo que tenta aprisionar os quatro ventos
do mundo; mas as quilhas audaciosas inves-
tem contra a linha do horizonte e fazem do
aventureiro um devorador de círculos.
A certeza que nega, a mais perfeita cer-
teza, é uma noite polar em que todos os as-
tros tragam uma coroa em tomo da cabega
do solitário conquistador. A certeza do poeta
e do místico, Chesterton chamou-a de dúvida,
acidentalmente, ao dizer que “os loucos náo
tém dúvidas”, mas logo se emancipou dessa
imprecisáo para afirmar que o mistério do
conhecimento é uma coisa positiva e ensola-
rada. Há, na verdade, da parte de ambos os
poetas uma certa imprecisáo no sentido das
104 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

palavras; mas a contradigáo, e até diria a in-


coeréncia, se torna manifesta e trágica em
Nietzsche, porque éle possuía (e gabava-se de
possui-la) a mais fixa certeza que um homem
pode nutrir. Tornou-se mais tarde coerente,
quando enlouqueceu.
Realmente, no mesmo livro em que assi-
nala a genial descoberta sobre o efeito mortal
da certeza, éle afirma que o problema reli-
gioso é coisa que nem se deve discutir. A exis-
téncia de Deus é uma questáo grossa e vul-
gar que náo merece ser abordada. Deus náo
existe, ponto. Éle apregoa, como ninguém
o féz, a certeza do náo. O assunto é “grosso
como um punho”. É um ponto; é um círculo;
é um peáo que faz dama; é um zero negro.
Náo há Deus; acabou-se.
Ora, se isto é uma certeza, eu náo sei
onde se poderá encontrar o que melhor me-
reja ésse nome. E essa é a certeza que enlou-
quece; e que enlouqueceu. Negar náo é duvi-
dar; negar é afirmar de um modo absoluto.
Quem afirma a existencia de Deus abre um
campo infinito, tanto para a ortodoxia como
para a heresia. O filho de Deus será entáo
sómente homem, ou sómente Deus, ou uma
uniáo das duas naturezas, mas se Deus existe,
éle pode ser filho de Deus, para o ortodoxo e
para o herético. Cem mil volumes podem ser
escritos sobre o mistério da Santíssima Trin-
dade, a partir dos quais podem existir cismas,
apostasias e tribunais da inquisigáo. A nega-
gáo absoluta, ao contrário, encerra a questáo
e estanca náo só o louvor como a própria blas-
femia. Que sentido terá um punho fechado
PARA NÁO SER DOIDO. 105

dirigido para o vazio? Que sentido terá o soli-


tário combate contra o adversário que náo
existe?
Nietzsche tentava ser coerente ao inves-
tir contra o cristianismo e mais especialmente
contra a moral crista, mas náo se equilibrava
nessa posigáo compreensível. Apesar de ter
dito que Deus era uma “grossa questáo” que
náo merecia ser abordada e na qual era proi-
bido pensar^ vivia procurando blasfemias, co-
lecionando-as como borboletas, e quando en-
contra em Stendhal uma espécie nova, espe-
ta-a na sua prancha. Dionisos, o dangarino,
tem repugnáncia pelas certezas, mas abraca-
se á mais mortal — e destrói a própria danga,
que exige espago plástico, transformando-a
num giro vertiginoso pivotado em si mesmo.
Mas ninguém passa a vida a girar e a
negar; deslocada a afirmagáo positiva da inte-
ligéncia, transfere-se para a vontade. Nietzs-
che quería para, entáo, conhecer; queria uma
nova história, uma nova era, um novo uni-
verso e uma nova humanidade que o curasse
do nojo pelo homem. Amava apaixonada-
meníe ésse mundo criado na sua vontade e
onde a inteligéncia só tinha por alimento re-
lámpagos de esmeralda num horizonte de tor-
menta.
A vontade, porém, náo pode viver de puras
antecipagóes sem se negar a si mesma; em-
bora domine a inteligéncia, ela náo pode ca-
minhar sem dados do conhecimento. O gran-
de lírico, o desvairado, que queria receber
alimento do bico das águias, dizia que a mo-
ral cristá com sua glorificagáo dos fracos
106 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

era um insulto á lei da selecáo. Agarrava-se


ao instinto e ao naturalismo como um con-
dor que andasse de muletas, náo sendo de
admirar que os seus discípulos, de asas ves-
tigiais, tenham copiado sómente as muletas.
Náo ficam mais, como Dionisos, diante do
Crucificado, executando um giro interminá-
vel e louco. Sáo naturalistas e evolucionis-
tas que reduzem todas as verdades ás pe-
queñas e efémeras certezas que andam nos
jornais. Sáo revolucionários que desejam,
com trés seixos, criar um novo universo;
com o passado do cavalo abolir o do homem,
e com o culto dos fósseis condenar o culto
das reliquias.
O MISTÉRIO

Como se vé da imagem usada por Ches-


terton, mistério é mais uma claridade do que
uma obscuridade. Nao é aquilo que náo se
sabe; náo é o ignoto; náo é o inimigo da in-
teligéncia que difícilmente se rende. O mis-
tério náo está no ignorabimus do investiga-
dor que sen te a hostilidade do objeto e que
se embaraza na trama dos problemas; náo é
o enigma; náo é o criptograma. Na lingua-
gem comum a palavra mistério pode desig-
nar qualquer uma dessas coisas sem grandes
compromissos. Mas náo é a essas coisas que
o místico e o filósofo se referem.
Estou pronto em convir que o método
de exclusóes sucessivas náo é bom, porque
náo há nada que possa ser definido á custa
de eliminares; e a idéia de mistério é a últi-
ma a que se possa aplicar tal processo. Éle
é entretanto necessário, para que a nogáo
seja preliminarmente desvencilhada da falsa
nogáo. O Mistério do Quarto Amarelo, por
exemplo, náo é um mistério, ou, pelo menos,
náo o é no sentido que o novelista adota. Um
assassino náo é misterioso por estar escondi-
do e ignorado, mas é misterioso por ser as-
sassino. A Ilha Misteriosa de Júlio Verne náo
é misteriosa por causa do submarino do ca-
pitáo Nemo, mas é exuberantemente miste-
108 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

riosa por ser uma ilha. “Digamos que o mis-


tério é a plenitude ontológica á qual a inteli-
géncia se une vitalmente e onde ela mergu-
lha sem a esgotar” * É a inexauribilidade do
ser, mas náo a sua inacessibilidade. É o ines-
gotável possuído.
Em toda atividade intelectual, desde que
o sujeito entre em contato com o objeto, exis-
tem dois aspectos que Jacques Maritain, to-
mando a terminología de Gabriel Marcel, em-
bora num sentido diferente, chamou de pro-
blema e mistério. “O mistério está do lado
da coisa, do objeto, de sua realidade extra-
mental; o problema está do lado das nossas
fórmulas.” Mas deve-se acrescentar que “da
inteligéncia, como da fé, é preciso dizer que
seu ato náo se ultima na fórmula, mas na
coisa; non terminatur ad enutiabile, sed ad
rem. O mistério é aquilo de que se nutre:
o outro que ela assimila.”
A Gabriel Marcel ** o mistério aparece
como um metaproblema ou como “un problé-
me qui empiéte sus ses propres données.”
Mas até onde conseguí penetrar o seu sutil
estudo, parece-me que a esta definigáo falta
justamente o conteúdo ontológico, sem o
qual, como éle próprio encarece, náo há no-
gao de mistério. A posigáo de Jacques Mari-
tain me parece mais tradicional, e portanto
mais adequada para exprimir o senso de mis-

* Jacques Maritain — Sept Legons Sur l’Étre.


** Gabriel Marcel — Le Monde Cassé, suivi de
Position et Approches Concretes du Mystére Ontologique
PARA NÁO SER DOIDO. 109

tério a que se refere Chesterton e a que ade-


rem instintivamente todos os auténticos poe-
tas. O problema que “invade a regiáo de seus
próprios dados” náo é o mistério mas, a meu
ver, o problema do mistério. Está mais do
lado do sujeito que formula que do objeto que
¿, sendo portanto mais lógico do que onto-
lógico. A posigáo de Gabriel Marcel tem qual-
quer coisa de intensamente intelectual, e
julgo náo desacertar imaginando que Ches-
terton náo gostaria muito désse problema
circular que volta e pisa nos seus próprios
dados .
A nogáo do mistério exige candura, e nao
uma febril agilidade. A inteligéncia pura (no
sentido em que a entendem os lógicos que
estáo na iminéncia de perderem tudo exceto
a razáo) náo sente o mistério do ser: ainda
que ela o ataque com redobrados e sucessivos
golpes, e que reconhega, decepcionada, que
nunca decifrará a infinidade de problemas
que uma flor ou um pássaro propóem — ela
náo estará sentindo a inesgotabilidade do
ser, mas a sua inacessibilidade. A nogáo de
limite matemático, ou de um número infinito
de operagóes, náo aproxima o homem dessa
nogáo, que por sua própria esséncia náo é
formulável. Náo é no sentido de Maritain,
Gabriel Marcel e Chesterton, que um natura-
lista diz que sua ciéncia nunca esgotaiá a
totalidade da flor e do pássaro. Quando os
primeiros afirmam o inexaurível, é uma tota-
lidade e uma presen ga possuída que afirmam;
o naturalista persegue uma aproximagáo,
uma sucessáo, afirmando mais uma dificul-
110 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

dade do processo do que uma riqueza do ob-


jeto.
O verdadeiro senso do ontológico tem li-
gacjoes secretas com o amor, e diante do mis-
tério, a inteligéncia, dilatada pelo sópro do
amor, náo se crispa decepcionada, mas se di-
lata e se nutre. Náo se humilha, mas se torna
humilde. O objeto — a inteligéncia afetiva
bem o sabe — é o seu companheiro para a
eternidade.
O DIFÍCIL TORNA-SE FÁCIL
Abro éste capítulo com pressa e solicitude
para tranqüilizar o leitor. No precedente, le-
vado pelo desejo de alguma precisáo, andei
buscando nos filósofos uma aproximagáo do
mistério ontológico, e deixei talvez na mente
do leitor menos habituado a tais incursóes, a
idéia assustadora de que o equilibrio de seu
espirito depende de uma coisa dificílima. Na
realidade, porém, o mistério é uma coisa fací-
lima porque emana da exuberáncia do criado
sob a luz do Incriado. Na ordem vital náo
constituí problema, é antes uma aceitagáo;
é quase uma respiragáo. E a mensagem de
Chesterton, melhor nesse sentido do que a dos
filósofos, tem a eficácia de uma janela aberta
para uma paisagem humana, permitindo-nos
ver “o ensolarado rincáo do senso comum”
onde uma figura semelhante á nossa — muito
mais corpulenta, ornada de um imenso chapéu
e de uma capa espanhola — passeia em seus
legítimos dominios: “Trés alqueires e uma
vaca.”
A idéia do mistério, em Chesterton, é vivi-
ficante. O tom em que a transmite deixa
transparecer uma grande confianca na natu-
reza do homem enquanto obedece e aceita.
E com razáo, porque o senso do mistério, que
na ordem sobrenatural está acima de nossas
112 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

fórgas, sendo objeto de revelagáo e dádiva


gratuita de Deus, na ordem natural é próprio
do homem, como o riso, o uso da palavra e a
posse das coisas. Excede-o sempre, mas já é
pressentido, e mesmo possuído na saúde do
espirito. Pode-se dizer que sua forma mais
rudimental' e mais comum é o simples bom-
senso.
Quando digo ordem natural, entretanto,
convém notar que náo quero designar o con-
junto de fungoes da natureza animal do ho-
mem, mas a realidade inteira, que é a natu-
reza do homem, sob o primado do espirito.
E essa realidade está envolvida, banhada, pela
ordem sobrenatural, ainda que o homem a
ignore ou a repila.
Chesterton confia nessa natureza do ho-
mem, mas náo ignora também que éle tem
uma faculdade que nenhum outro ente do
universo, inclusive as nove ordens angélicas,
pode se gabar de possuir: a liberdade de se
tornar desumano. E essa inquietante facul-
dade tanto pode ser exercida por um indivi-
duo, por conta própria, como por uma escola,
dentro de um sistema e sob a diregáo de um
desorientador profissional. A insanidade anda
por ai, no varejo e no atacado, acolhida pelo
solitário cogitador que de repente reconstrói
um universo a seu gósto, ou recebida oficial-
mente numa academia .
O autor de Orthodoxy sabe que o caminho
do hospicio tem seus guias e seus arautos, e
que o antigo e eterno instinto que mantém
“a forte raga dos cenobitas”, que procura o
convivio numa regra comum, náo abandona
PARA NÁO SER DOIDO. 113

os homens na desregra; ou que os abandona


sómente depois do noviciado filosófico, quan-
do cada um escreve na porta de sua cela os
nomes de Napoleáo ou Júlio César. E 'por isso,
o grande cruzado do humanismo, que morreu
com o coragáo partido nos tempos da guerra
da Abissínia e da revolugáo espanhola, e que
desde a sua mocidade pressentira o desenlace
do frenético desumanismo que invadia o mun-
do, langou máos de todos os recursos e apelou
para todas as faculdades naturais, a fim de
manter ésse senso do mistério, ésse ar vivifi-
cante, sem o qual o inferno se antecipa ao
julgamento.
UMA QUADRILHA DE LADRÓES

Diz Chesterton, pela boca de seu principal


personagem em The Poet and the Lunatics,
que o poeta olha as mesmas coisas todos os
dias como se as estivesse vendo pela primeira
vez. A idéia náo é déle; já está em Shelley.
E náo duvido que esteja em Píndaro ou Vir-
gilio. Aliás, éle se gabou, uma vez por todas,
de náo ter idéias novas e próprias. O grande
defensor da propriedade privada, que recla-
mava para o mais simples cidadáo a proprie-
dades de trés alqueires e o dominio sóbre ama
vaca, sabia que o mundo das idéias é um
imenso campo de pilhagens. Percorria-o com
a jovialidade e a jogralidade de um Robin
Hood; bom arqueiro e mau reconhecedor de
priviiégios. E encontrava-se com Shakespeare,
que também passou a vida a roubar.
A literatura e as artes de todos os géne-
ros náo passam, efetivamente, de uma vasta
contraria de ágeis batetores de carteiras, na
qual eu me matriculei como aprendiz. Per-
mita o leitor que eu comece pelas escamotea-
res mais fáceis e que assim vá exercitando
a máo, lucrando em agilidade e perdendo em
escrúpulos.
PARA NAO SER DOIDO. 115

Alias, mal ou bem, destro ou canhestro,


eu já pertengo a uma outra quadrilha, que
opera há vinte séculos pelos caminhos do
mundo, desde que um dos nossos, com pés
e máos pregados, conseguiu arrebatar ao
Senhor o próprio reino do Céu.
A PRIMEIRA VEZ

Aquela frase, seja qual for seu dono, escla-


rece a idéia do mistério, e ajuda-nos a com-
preender o incalculável valor que Chesterton
atribuía á poesía na restauracáo do equilibrio
mental. A poesía é útil, e hoje mais do que
nunca, porque renova as coisas. Mas renova
de um modo radicalmente diverso do inven-
cionismo que andou afligindo as artes, impri-
mindo-lhes um movimento de translagáo. pró-
prio da técnica. Essa renovacáo trazida pela
arte torna-se mais compreensível se dissermos
que ela repete a primeira vez, isto é, que ela
busca o gósto das origens. Ou entáo torna-
se definitivamente incompreensível. Tudo de-
pende da faculdade que tenhamos de sentir,
imaginar e pensar o que seja uma primeira
vez. Tudo depende da infáncia que ainda te-
nhamos no coragáo, da candura sob o péso
da ciéncia e da experiéncia da vida.
Minha penúltima filhinha viu há días o
mar pela primeira vez, e há poucos meses viu
um boi pela primeira vez. A outra, mais cres-
cida, e que já sabe 1er, vai comungar pela pri-
meira vez dentro de quinze dias. Pergunto ao
leitor se faz uma idéia do que isso quer dizer.
Se faz é poeta, ou pelo menos tem o senso do
mistério. Se, ao contrário, imagina que a ati-
tude característica da primeira vez é a sur-
PARA NÁO SER DOIDO. 117

presa, o susto, o choque, ou a admiragáo dis-


cursiva e grandiloqüente que nos assaltou
quando vimos pela prim eirá vez e já adultos
um Zepellin; se julga que aquéles objetos ou
situagóes pareceram, na primeira visáo infan-
til, gritantes, novos de novidade; entáo, náo é
sensível á poesia, ao mistério, e difícilmente
saberá de que estou eu falando.
A visáo primeira da crianga é verdadera-
mente primeira; a visáo primeira do adulto
mecanizado é última. As novidades maiores
désse adulto sáo as últimas novidades: o úl-
timo chapéu, o último modelo de rádio, a
última noticia. A surprésa espantada do adul-
to fica na ponta final de uma série de repe-
tigóes exaustas e tem a marca de uma fadiga
mortal. Na crianga, a maravilha é monótona,
igual, lisa, tranqüila: é o cháo onde, durante
o resto de sua vida, poderáo florir alguris sor-
risos de verdadeira alegría e algumas expe-
riéncias de verdadeira poesia. A infáncia é
um depósito de mistérios.
Lembro-me de numerosos pequeños inci-
dentes de minha primeira infáncia, e entre
éles ocorre-me agora o som de uma trombeta.
As circunstáncias sáo confusas. Teria eu
dois para trés anos. Havia uma porta aberta
para uma sala onde dois pintores caiavam as
paredes trepados em escadas finas e altas que
me pareciam oscilantes. Um cheiro fresco e
úmido. Uma ressonáncia de vozes ñas pare-
des nuas. Ao meu lado duas pernas enormes,
e lá do alto délas, a voz de meu pai. Foi nesse
momento que o som da trombeta rasgou os
ares e tragou um meridiano em minha histó-
118 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

ria. Veio de fora, de uma outra casa e mistu-


rou-se, uniu-se no ar que eu respirava, ao
cheiro de cal molhada, ás paredes, ás escadas,
ás pernas de meu pai, como se fósse um can-
to, singelo e azul, de todas as coisas.
Seria talvez, imagino, algum clarinetista
que tocava seus exercícios numa hora de fol-
ga ou num domingo. Por mais que me esforce
náo encontro novamente a sensagáo perdida.
Sei que teve lugar e que foi imensa; mas o
que déla disser, e o que já disse, náo passa de
uma hesitante aproximado. Insistindo na
pesquisa, encontro duas idéias sóltas que de-
signo com essas palavras: amplitude e solida-
riedade. Vejo também um intenso azul.
Proust queimou seus últimos dias (e em
quatorze volumes nos deixou a noticia) numa
luta terrível e desigual entre a pressáo da
memoria inconsciente e a capacidade analí-
tica da memoria voluntária, e, “náo podendo
recolher as chamas do passado, contentou-se
com uns restos de calor ñas suas cinzas; e,
náo podendo, com a memoria gelada, ressus-
citar o que fóra, desejou ao menos descrever
e constituir sua ciéncia.” Um cheiro, um som,
uma torre de igreja, o gósto de um chá, de
repente, despertavam um outro adormecido,
um morto e um sempre vivo, um inconsciente,
presente naquele passado, e náo sabendo por-
tanto que era a inteligéncia — e éle, ávida-
mente, desbrucava a inteligéncia sóbre ésse
instante de eternidade, e chamava a memoria
voluntária em seu socorro. E a memoria ma-
ta va a memoria; a recordado intelectual ex-
tinguía a anamnese, o mistério da memoria.
PARA NÁO SER DOIDO. 119

E o grande explorador do tempo perdido


tinha que se contentar com um séqüito de
sombras.
Essa onda que vem das coisas idas e pri-
meiras, realmente, náo pode ser traduzida
num memorial. Creio estar certo afirmando
que o mais prodigioso efeito da memória con-
siste em a gente náo se lembrar de nada.
Nos momentos em que tornei a encontrar o
cheiro ou o som que me vinham das profun-
dezas da infáncia, a sensagáo mais violenta
que de mim se apoderou náo foi a lembranga
das coisas, mas uma lembranga total de mim
mesmo. Foi um estado que náo precisava dos
objetos de minha primeira infáncia para se
constituir. Ali, naquela poltrona, próximo
dos cinqíienta anos, quantas e quantas vézes
por um nada, as idades coam no meu sangue
uma memória total, vital, que resiste aos
objetos, aos próprios objetos novos, que du-
rante dois ou trés segundos sáo vistos com
os antigos olhos do menino. E’ uma memória
vazia de fatos. E se me debrugo, se me crispo,
quebra-se o encanto; e na falta do génio prous-
tiano, o séqüito de sombras é ainda mais vago,
e mais frias as cinzas.
As vézes, numa experiéncia intermediária,
meia atenta, como quem espia de soslaio um
pássaro, com receio de espantá-lo mesmo com
o olhar, meio vigilante e meio entregue, eu
ouvi o som daquela trombeta. Mas era lon-
gínquo, aéreo, isolado. E em lugar daquele
ambiente que reconstituo fazendo violéncia
— (a sala, os pintores, as pernas de meu pai)
e que entrevejo com febril curiosidade, como
120 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

se espiasse num buraco de fechadura, vinham


com o som coisas estranhas, superpostas, oblí-
quas, de anarquizada cronología: e numa só
onda de lembrangas eu via uma carteira no
colégio, a estréla séxtupla de Orion, um rosto
próximo, e uma perspectiva onírica de rúa
comprida em bairro tranqüilo...
Como num largo rio, eu vía ésses destro-
zos de vida vogando e passando: e o vento,
que impelía numa fantasmática festa os bal-
cedos arrancados as margens de minhas sau-
dades, vinha daqueles lábios perdidos, de um
préto talvez, de um morto talvez, que qua-
renta e tantos anos atrás fizeram fremir os
ares de um domingo.

Creio que seja a fórga dessas coisas pri-


meiras que nos defende a cada instante da
loucura, em cuja atmosfera pode-se dizer que
todas as coisas sáo segundas. E’ possível que
o som daquela trombeta esteja ñas máos de
meu Anjo da Guarda. E é quase certo que,
sem ésse influxo dos primeiros encontros, ne-
nhum de nós, em circunstáncia alguma, tor-
naría a sentir admiragáo pelo mistério das
coisas. Imagine o leitor essa situagáo sinistra
e quase indispensável: o homem definitiva-
mente privado de admiragáo; o homem defi-
nitivamente prevenido; o homem definitiva-
mente esgotado de infáncia. Ésse é o triste
retrato do racionalista, do astuto intérprete
de todos os movimentos do universo. A éle
PARA NÁO SER DOIDO. 121
ninguém engana. Dá-se a si mesmo o nome
de morto dizendo-se um que já viveu.
Náo sei até que ponto pode existir real-
mente ésse sombrío individuo. Alguns filó-
sofos reclamam para si o retrato mas eu creio
que éles se gabam de serem mais doidos do
que os doidos. Mal ou bem, todos nós conser-
vamos essa capacidade de renovagáo que nos
permite ver as coisas mais cotidianas com
olhos lavados. A poesía, como arte própria-
mente dita, é um dom especial, mas é comum
o odor da poesía, o gósto pela beleza e pelo
mistério. E eu creio que ésse gósto tem raízes
nos primeiros encontros. Nunca mais, por
certo, ouvi um som de trombeta táo despeja-
damente novo, mas renovei o encontro primi-
tivo, ao longo da vida, em mil circunstáncias
diferentes. Diante de um rosto, lendo dois
versos, ouvindo um concérto de Mozart. Sem-
pre que adivinho a beleza e o mistério, no
mais simples objeto, já visto e revisto, éle
me aparece como sendo visto pela milésima
primeir a-vez.
O mistério das coisas — as lágrimas das
coisas nesse mundo atravessado pela dor —
surge diante de nós como testemunhos de
uma perene infáncia. A repetígáo é a nossa
maior afligáo quando falta um espirito reno-
vador. O universo se reduz diante de nossa
retina cansada a uma relojoaria de ridicula
magnitude. Por que tanta pedra nos montes?
Por que tantos astros no céu? A repetigáo
póe em nossa alma um cansago mortal. Por
que tantos días?
122 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

Um rosto próximo, dia a dia, se torna a


coisa mais fatigante que existe. Onde estáo
as reservas que nos faziam gritar, diante do
brinquedo mais banal: “Mais!... mais!...
mais!...?”
A amarga ciencia, que examina e dissocia,
gaba-se de conhecer melhor na medida em
que esgota as coisas. E’ uma competigáo de
senectude. O ouro deixa de ser áureo; a rosa
deixa de ser rosa; o homem deixa de ser hu-
mano. A técnica acelera a liquidagáo, propor-
cionando-nos a faculdade de envelhecer mil
anos ao nos exibir uma impressáo digital ou
uma radiografia. Lucramos uma caduca ma-
licia quando desmontamos a molécula da água
e nos permitimos dizer que o cadáver da mo-
lécula é mais verdadeiro e mais científico do
que uma gota de chuva. A ciéncia é boa, a
técnica é boa, mas péssima é a filosofía e a
concepgáo de vida que destilamos das máqui-
nas e dos teoremas. Péssima é a supressáo
do mistério da criagáo, para a implantagáo,
em seu lugar, do regime dos problemas.
Há dias vi um filme considerado instru-
tivo. Mostrando os prodigios dos Raios X, em
cinematografía, apresentava u’a moga, pri-
meiro no seu natural, bonita, sadia, e alegre,
e depois em sua caveira. E logo, entre dois
gracejos, o técnico deu largas á sua filosofía
tentanto nos inculcar que a verdadeira rea-
lidade, a científica, era a caveira. A outra,
que se! refere ao rosto cheio e bonito, seria
uma realidade menor, apenas tolerável como
primeira aproximagáo, vulgar e caseira. Se-
PARA NÁO SER DOIDO. 123

ria, quando muito, digna de interésse para a


máe da moga.
Na verdade, todos nós, fatigados, exaus-
tos, acabamos por ter a visáo estreita e des-
truidora dos Raios X, isto é, acabamos por ver
sómente as caveiras das coisas. O papel da
poesia no mundo — ou pelo menos seu papel
social e clínico — é o de um constante exor-
cismo da loucura. O homem que admira e
louva, que aceita e agradece, que chora e que
ri, tem saúde de espirito. Seus atos, as vézes,
sáo faltos de lógica. Freqüentemente, absur-
dos. O personagem predileto de Chesterton,
o Poeta, é um homem que vira cambalhotas
na rúa, sob o severo e desaprovador olhar do
doido. Os homens graves que fazem seu no-
viciado de loucura nos negocios e na política,
náo véem também com bons olhos o su jeito
que vira cambalhotas na rúa, pois pertencem
áquela espécie dos que se resolvem a cantar
de galo sómente quando estáo firmemente
convencidos de que sáo galos. Éles náo sabem
que as mil e uma pequeñas extravagáncias
que fazemos, em gestos e palavras, sáo muitas
vézes o epílogo de uma breve luta em que a
loucura foi vencida. Os atos gratuitos escon-
juram o sombrío convite ao determinismo que
os demonios nos fazem. A cada instante nossa
razáo é assaltada e seduzida pela volúpia do
giro solitário; mas também em cada instante
há um nada que nos salva: uma pedra;
uma flor.
Há no mundo, gragas a Deus, o amor
das pessoas, a voz dos poetas, a beleza e a
verdade das coisas; o mundo está cheio de
124 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

um Espirito renovador: Emitte Spiritum


tuum, et creabuntur, et renovabis faciem
terrae. * E’ nesse Espirito que o cristáo, o
homem-novo, assiste cada dia a renovagáo do
“novo e eterno testamento” no Mistério da
Fé. E é désse Espirito que procedem os lam-
pejos do mistério das coisas. Quando nós
admiramos uma árvore carregada de frutos,
é pelo Espirito Santo que a admiramos. A be-
leza nunca é inteiramente natural; e uma
árvore bela é, para nós, mais do que uma ár-
vore: é uma presente, é uma árvore de Natal.
A poesia pressente ésse mistério maior.
Ligada ás origens como a uma promessa, ela
anda correndo no encalgo da Esperanza. A
arte renova e repete, como a Esperanza re-
nova, cada dia, a mesma promessa repetida.
A arte vence a monotonia das coisas, como a
Esperanza vence a monotonia dos dias.
A arte socorre o espirito de infáncia, e
ajuda a manter vivas em nós as alegrías dos
primeiros encontros, como se elas fóssem a
melhor e mais clara garantía dos últimos en-
contros. E’ um grande segrédo de Deus, fe-
chado a sete selos, a alegría do Céu. Creio
porém que náo é demais pensar que já lhe
vimos os sinais. E creio, por mim, que náo
será temerário esperar que a trombeta, ou vi-
da há quarenta e seis anos num domingo
quieto e azul, seja um dia novamente ouvida,
e novamente óuvida pela primeira vez.

* Salmo CIII.
A MONOTONIA

Gabriel Marcel, no mesmo estudo sobre a


ontologia do mistério, atrás mencionado, con-
íessa que muitas vézes se pergunta com uma
espécie de ansiedade o que será a vida e a
realidade interior de um funcionário do metro
que picota bilhetes. O mais terrível espe-
táculo do mundo é o das vidas perdidas, das
vidas que parecem inúteis. No primeiro ca-
pitulo déste livro referi-me a essas vidas e
agora relendo-o descubro néle o tom conven-
cional de quem anda na intimidade dos anjos.
Náo gostei do tom. Mas lá fica como está,
porque, se a gente fósse retomar indefinida-
mente o de que náo gostou nos capítulos an-
teriores, cada livro que se escreve seria um
nunca-mais-acabar.
Na verdade é um terrível espetáculo, o das
vidas que parecem perdidas e aprisionadas
dentro de uma rotina. E’ terrível pensar que
um homem possa ficar reduzido a uma fun-
?áo. E na maior parte, as pessoas que vemos
viver dáo-nos essa impressáo de um tédio irre-
mediável como se estivessem pacientemente
na fila-de-morrer.
Digamos logo: o homem tem pavor da
monotonia. O capítulo precedente sobre a
renovagáo proporcionada pela poesía, lido á
sombra désse pavor, poderia ser mal interpre-
126 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

tado, deixando supor que o senso do mistério


das coisas e da vida é atingido pelo individuo
que freqüenta diariamente exposigóes e con-
certos ou que anda correndo pelos campos a
cheirar todas as flores e a se extasiar diante
de todas as perspectivas. Ésse individuo muito
provávelmente ficaria louco, pois, fugindo de
uma monotonia, entrega-se a outra pior: a
monotonia funcional, maquinal, acelerada e
vertiginosa.
A arte é completa em si mesma, e náo é
meu intento dizer, por Chesterton e por mim,
que a poesia tem por finalidade o arej amento
das cidades, como uma espécie de monumen-
tal gerador de ozona; mas julgo náo lhe dimi-
nuir a independéncia dizendo que ela tem
essa virtude. Sob o ponto-de-vista da saúde
do espirito e, mais precisamente, sob o ponto-
de-vista do senso do mistério, a poesia é um
tónico: sua presenta em torno de nós (na
forma de um pé de cadeira ou de um simples
péso de papéis) é um poderoso antídoto do
racionalismo e do determinismo.
Mas a grande ligáo da poesia, que é o fré-
mito renovador, é ao contrário a fidelidade;
sua renovagáo é uma renovagáo de votos. Na
arte e na mística, tomadas como exercícios,
encontramos a preponderáncia de um elemen-
to que o homem moderno recalcitra a admi-
tir: a monotonia. A fórga do poeta está na
tranqüilidade, numa ritmada tranqüilidade
que imita a criagáo; a fórga do místico, seu
atletismo, sua ascese, consiste na paciéncia e
na humildade. Se alguma coisa no corpo do
homem exprime fórga e vida é o compassado
PARA NÁO SER DOIDO. 127

alentó da respiragáo e a tranqüilidade do sono.


Na vida espiritual há também uma larga e
pausada respiragáo que denota saúde, em con-
traste com a dispnéia dos agonizantes. Os
habitantes das cidades modernas, náo sabendo
mais distinguir entre o siléncio da vida e o
siléncio da morte, adotam, como sinais de má-
xima vitalidade, os estertores da agonia. Essa
é uma idéia que reaparece em Chesterton com
certa insisténcia, e náo é difícil compreender
que seja tributária da idéia central do mis-
tério. A vida é silenciosa; o mistério da vida
e da fórga está no siléncio e na tranqüilida-
de. Nossas rúas sáo agitadas e ruidosas
porque somos cada dia mais fraeos; as pes-
soas passam febrilmente porque náo agüen-
tam mais a estabilidade. Os antigos cele-
bravam a majestade da fórga na escultura;
os modernos contorceram colinas e contor-
cer am a forma do homem; a idéia de fórga
estando ligada, para éles, á idéia de movi-
mento. O universo tornou-se u’a máquina e o
homem tornou-se u’a máquina desarranjada.
Perdemos cada dia a fórga da vida porque
perdemos o gósto pelo siléncio e pela mono-
tonía. O mistério das coisas é como um rio
largo, tranqüilo e sempre renovado. O rio é
uma origem que se derrama incessantemente.
Um dos antigos filósofos que negou o mistério
do ser, um antepassado de Hegel, viu no rio
um sinal de contradigáo, mas nos salmos o rio
se afirma como um contentamente e aplaude
a apoteose final da criagáo.
O homem de hoje, de qualquer categoría,
é o picotador de bilhetes que Gabriel Marcel
128 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

considerava como ansiedaae: éle náo pode pa-


rar. Sua vida é uma fungáo, uma série de
movimentos necessários que se prolongam
pelas horas de seus dias numa série de tiques.
O picotador continua picotando indefinida-
mente, em casa e em sonhos. O tabeliáo ou
o general trocam o mistério do homem pelo
cartório e pela farda, que acabam rompendo
os limites e invadindo a vida toda.
A mulher, que tinha, digamos assim, mais
densidade humana do que o homem, estando
mais emancipada de fungóes, tornou-se tam-
bém funcionária. Aliás seria difícil definir
melhor do que Ches terton essa chamada eman-
cipacáo da mulher moderna: “As mulheres
disseram um dia: os homens náo mais nos
ditaráo suas vontades! Ora, poucos dias de-
pois havia vinte milhoes de estenógrafas.”
E nunca a nossa pobre companheira foi táo
fraca como hoje. Continua a parir com dores,
e passou a ganhar o páo com o suor do rosto.
Completou-se num pequeño ser que nunca foi
táo incompleto.
Devo declarar muito explícitamente que
náo duvido do crescimento do mundo e de
uma emancipagáo do homem em todos os
dominios. A cond cao da mulher, principal-
mente na sociedade capitalista burguesa, tem
qualquer coisa de infamante, agarrada, como
um cancro, a qualquer coisa de venerável.
A crise de emancipagáo, entretanto, se pro-
cessa de um modo que me deixa extrema-
mente apreensivo. A mulher era, e é por na-
tureza, mais forte do que o homem nesse
especial sentido que estou procurando carac-
PARA NÁO SER DOIDO. 129

terizar. Agüentava melhor do que éle a mo-


notonia, ou ainda e mais exatamente, estima-
va a monotonia. Eu me pergunto, um pouco
ansioso, onde estará hoje a mulher forte
capaz de ficar simplesmente sentada. Onde
está a máe estável, a máe que em nossas lem-
brangas de menino parece uma figura ma-
ciza, mesmo em sua graga frágil, como um
busto em cima de um saco de saias? Onde
está a moga capaz de ficar em casa como
num paraíso, capaz de acalentar um filho
horas a fio, instalada, estabilizada, eterni-
zada no mistério da paciéncia e da mater-
nidade?
Já tentaram a anestesia do parto a que,
evidentemente, nenhum artigo de nossa Fé
se opóe; mas também já pensaram em aliviar
a paciéncia da mulher, ou em abreviar sua
ineficiéncia de funcionária, transplantando o
feto no terceiro més para o útero de um bi-
cho. Os cuidados maternais já sáo transpor-
tados hoje para o regago da ama-séea que
deve possuir, para plena satisfagáo da máe
que paga, a perfeita imbecilidade de um ani-
mal que náo reclama, aliada á perfeita santi-
dade que náo se impacienta.
Um casal moderno depara com freqüéncia
o seguinte problema: pai e máe sáo funcio-
nários de uma Caixa ou de um Ministério.
Antes de nascer o primeiro filho a vida lhes
transcorre numa admirável suavidade buro-
crática. Tém do que falar á noite, quando se
encontram: filas de ónibus, esquisitices dos
colegas, injustigas dos chef es, relógios de pon-
to e outros fascinantes detalhes da vida ñas
130 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

repartigóes. Chega, porém, o primeiro filho,


náo se sabe bem como, e arma-se o problema.
Uma pessoa sensata e antiga dirá que a máe
deve ficar em casa, agravando a utopia com
a sugestáo de que o pai poderia ganhar os
dois salários e fazer perfeitamente as duas
tarefas. Uma outra pessoa, afetada de uma
ligeira perturbagáo mental, dirá que é o pai
quem deve ficar em casa. Uma terceira, com-
pletamente doida, dirá que é o bébe que deve
ir para o Ministério: e ésse é o alvitre que
vai sendo preferido.
O mundo está perdendo o senso da vitali-
dade, da tranqüilidade, da fórga monótona —
e, por conseqüéncia, o senso do mistério. E
parece-me que cada um tem pressa de trans-
mitir ao vizinho a sua agitagáo, e de a trans-
mitir aos filhos. Pouca gente sabe ainda, por
instinto ou por ciencia, que a infáncia é a
única idade da vida em que o divertimento
náo faz falta. A crianga tem em si, normal-
mente, a fórga da monotonia, e náo precisa
divertir-se porque brinca. Náo precisa mudar
de situagóes e de sensagóes, porque sente a
inexauribilidade das coisas e das horas, náo
se cansando na repetigáo. Sua efervescéncia
e sua instabilidade sáo profundamente dife-
rentes das nossas. As máes, tias e avós de
quarenta anos atrás tinham essa ciéncia in-
fusa e náo inundavam a crianga de brinque-
dos engenhosos, brinquedos de velhos, e náo
a arrastavam em todo lugar para que ela
partilhasse a neurastenia dos adultos. As
familias de hoje, em sua maior parte, — la-
mento dizé-lo — tem, como os sociólogos de
PARA NÁO SER DOIDO. 131

hoje, um suspeito e malsáo interésse pelas


criangas; tal vez os aguilhoe o constante re-
morso de ter feito contra elas, ñas próprias
fontes da vida, alguma sangrenta traigáo.
A mensagem de Chesterton tem particular
veeméncia e insistencia 110 que toca o misté-
rio da vida, da mulher e da crianga; sendo
de notar que o autor de oitenta volumes bor-
bulhantes, com um paradoxo perfeitamente
infantil, é o arauto da monotonia e da tran-
qüilidade. Em centenas de passagens a idéia
aparece; mas é no quarto capítulo de Ortho-
doxy que encontramos o enunciado mais ex-
tenso e mais explícito:
Todo o orgulhoso materialismo que domina a men-
talidade moderna reduz-se, em última análise, a uma su-
posigáo; a uma falsa suposigáo. Admitem, nessa con-
cepgao, que uma coisa que se repete está provávelmente
morta, como uma pega de relojoaria; imaginam que o
universo seria variável se fósse uma entidade pessoal, e
que o sol dangaria se fósse vivo. Ora, isto é inteiramen-
te falso, mesmo em relagáo aos fatos mais triviais. As
variagóes ñas atividades humanas sáo produzidas geral-
mente pela morte e náo pela vida; sáo produzidas pelo
amortecimento ou pela interrupgáo da fórga que as ani-
ma. Um homem varia seus movimentos porque se can-
sa. Toma um ónibus porque está fatigado de andar;
ou anda porque náo agüénta ficar quieto. Mas se sua
vida ou sua alegria fósse táo portentosa que nunca se
cansasse de ir a Islington, entáo éle iria a Islington táo
regularmente como o Tamisa vai a Scheerness. O pró-
pr7o~andamento e o éxtase da vida teriam a tranqüi-
lidade da morte. O sol se levanta todas as manhás; eu
náo, nem em todas as manhá me levanto; mas essa ir-
regularidade náo é devida á minha fórga e sim á minha
inércia. Em suma, o sol nasce todas as manhás porque
nunca se cansa de nascer. Sua rotina é devida a uma
transbordante vitalidade.
132 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

Para explicar melhor a minha idéia tomemos o exem-


plo da crianga. Ela mexe as pemas ritmadamente por
causa de um excesso e náo pela ausencia de vida. E’
capaz de querer coisas repetidas e imutáveis, e por isso
pede: “Mais! mais!” e as pessoas grandes repetem até
ficarem quase mortas. Porque essas pobres pessoas gran-
des náo sáo bastante fortes para exultarem na monotonia.
E’ possível que Deus diga ao sol cada manhá: “Mais!”
e cada noite á lúa: “Outra vez!” Náo foi uma automática
necessidade que fez todas as margaridas iguais. E’ por-
sivel que Deus faga as margaridas uma por uma e que
náo se canse de fazer margaridas. E’ possível que Éle
tenha um eterno apetite de infáncia; nós, que pecamos,
somos envelhecidos; mas nosso Pai é mais mógo do que
nós. A repetigáo da natureza também náo deve ser uma
simples recorréncia, mas uma espécie de bis teatral. Os
céus dizem bis ao pássaro que póe óvo. E se um ente
humano concebe e dá a luz uma crianga humana, e náo
um peixe, e náo um morcego, e náo um grilo, náo quer
isto dizer que estamos necessáriamente fixados num des-
tino animal, sem vida e sem objetivos. Pode bem ser que
nossa pequeña tragédia tenha comovido os deuses e que
éles a admirem lá do alto de suas rutilantes galerías, e
que no fim de cada drama o homem seja chamado á
boca de cena, outra vez, e mais outra vez...
O MISTÉRIO DA INFANCIA

O mistério é o clima da infancia. A maior


parte dos pensadores modernos (principal-
mente a raga especial que denota aquéle per-
tinaz e malsáo interésse pela infancia a que
atrás me referí) anda convencida de que a
infáncia é uma passagem. Uma espécie de
canudo na máquina de fabricar soldados, fun-
cionários e proletários. E’ justo dizer que um
embriáo é em si uma coisa incompleta, e que
o oficio do embriáo é transformar-se em
crianga. Mas já náo é justo nem razoável
dizer que a crianca é um estágio, uma tran-
sigáo, com a finalidade única de se transfor-
mar em oficial de gabinete ou senador.
Essa uniformidade na maneira de consi-
derar as coisas seria admissível, ou pelo me-
nos compreensível, em outras circunstáncias.
Um estudante, por exemplo, pode ser consi-
derado como um elo sob vários pontos-de-
vista, já pela pista de obstáculos escolares
que vai galgando, já pelo bigode que se es-
boga. Um presidente da república pode ser
também considerado como uma etapa. Mas
entre o embriáo e a crianga há um aconteci-
mento dramático de mais para ser esquecido:
o parto. Os gritos e o sangue da máe náo
podem ser subestimados a ponto de se dizer
que a crianga é um embriáo que substituiu
134 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

o umbigo pela mamadeira. Se adotarmos essa


idéia de um constante devenir, eu náo vejo
como seria possível deixar um homem, em
certa época, de ser embriáo. Sé-lo-ia no bergo
e na escola, sé-lo-ia mais tarde na presidencia
da república. Sé-lo-ia até a morte. A menos
que o evolucionista faga uma especial e arbi-
traria concessáo e marque uma data oficial
para o individuo nascer, já que as dores da
máe e o falatório de todas as tias náo o con-
seguiram despertar de seu filosófico torpor.
Um amigo, há dias, contou-me horrorizado
a visita que féz a um instituto: um funcio-
nário-médico, esgrimindo uma vara contra
mapas coloridos na parede de seu escritorio,
provou que era melhor atacar o problema da
tuberculose do adulto do que o da mortali-
dade infantil. Seu grande argumento era a
diferenca de prego. O adulto de vinte anos
custara á sociedade tantas vézes mais do que
um garóto de quatro. (Meu amigo náo escla-
receu se o critério era o dos anos ou dos
quilos, mas estou inclinado a crer que seria
uma feliz combinagáo algébrica envolvendo o
péso e a idade). Aquéle Herodes, pertencendo
á sombría e repulsiva classe de individuos
que falam no futuro das espécie humana, pa-
rece estar em contradigáo. Mas náo está. Seu
raciocinio tem a mesma sinistra e irrespon-
dível coeréncia que Chesterton assinalou a
propósito do raciocinio dos doidos. Justa-
mente porque eré na redengáo do mundo pelas
novas geragóes éle pós em gráficos o massa-
cre das criangas, porque o adulto curado re-
PARA NAO SER DOIDO. 135

pora fácilmente nos quadros sociais o insigni-


ficante defuntinho.
Outro exemplo do moderno interésse pela
infáncia pode ser encontrado num livro de
Henri Pieron, onde ésse triste personagem
descreve a pequeña experiéncia que féz com
uma menina de dois ou trés anos. Mancomu-
nado com uma enfermeira, arranjou uma
velha boneca e deu-a á menina. Depois ficou
rondando por ali, ou deixou recado á sua
cúmplice, para observar o momento em que
a crianga tomasse interésse bem marcado e
bem afetivo pela boneca. Chegado ésse mo-
mento, comega a experiéncia. (Quería éle, pa-
rece-me, observar o fenómeno de associagóes
psicológicas ou coisa que o valha). Muniu-se
de um gongo ensurdecedor e pos a boneca ao
alcance da menina. Quando ela estendeu a
máo para pegar a boneca, deu éle uma forte
pancada no gongo. A crianga assustou-se, féz
bico, mas ao cabo de algum tempo voltou a
pegar a boneca. Novo estampido. A crianga
chora. Novo intervalo e lá volta ela, obsti-
nada, a estender a máo. Agora a enfermeira
puxa o lengol da cama e a crianga caí. No
fim de uma dúzia dessas interessantes expe-
riencias o Sr. Pieron anota, satisfeito, que
a crianga já náo pode mais suportar a bo-
neca. Basta mostrar-lhe a boneca para que
ela chore.
O leitor terá observado que descrevi a ex-
periéncia do psicólogo com uma certa objeti-
vidade, defendendo-me de um natural senti-
mento, que prejudicaria certamente a sere-
nidade da demonstragáo. Se éles querem ser
136 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

científicos, eu também quero. E’ justamente


o aspecto intelectual daquela experiéncia que
mais me impressiona; principalmente consi-
derando que o doutor era assistido por u’a
mulher. Chego a admitir, nessa ordem de
idéias, que éle tivesse feito a experiéncia, mas
o que me custa a admitir, é que náo lhe tenha
passado pelo espirito cotejar o seu magro re-
sultado. Bastava-lhe sair pela rúa, pergun-
tando a todas as boas mulheres que fósse
encontrando, cozinheiras e lavadeiras, para
que elas lhe dissessem que há seis mil anos,
pelo menos, as crianzas maltratadas choram
e pegam cismas. E tenho para mim que o
observador deixou escapar um detalhe: pro-
vávelmente a crianga chorava, mesmo sem
boneca, vendo o psicólogo.
Com ésses e outros exemplos, eu chego á
conclusáo de que os pedagogos e sociólogos se
interessam pela crianga porque ela é a reserva
de pelotóes e porque ela é um material ba-
rato. Ou entáo eu chego á conclusáo mais
exata de que éles náo se interessam absoluta-
mente pela crianga. E nesse ponto, deixando
de lado problemas moráis da mais relevante
importáncia (que sáo aliás corolários de um
desvio da razáo), eu insisto em dizer que o
ñervo da questáo está numa incapacidade de
sentir o mistério onde éle se apresenta mais
fulgurante, mais palpável, mais feérico, mais
banal, mais extraordinário e mais cotidiano:
a infáncia.
O desumanismo ataca os celeiros do mun-
do quando mais invoca as novas geragóes.
Torna-se cegó diante de uma menina de dois
PARA NÁO SER DOIDO. 137

ou trés anos porque está mergulhado num


pesadelo horrível onde o psicólogo passeia
num jardim acariciando as crianzas que ainda
náo nasceram: os unborn babies a que Ches-
terton se refere muitas vézes. A incapacidade
de acertar em moral, em política, em comér-
cio, em tomates e em ovos; a incapacidade de
organizar um servido de ónibus ou a mais
grave incapacidade de permitir que os nego-
cios humanos tenham uma sadia desorgani-
zado, tudo isso, náo receio dizé-lo, tem origem
numa simples incapacidade de ver. E’ a inte-
ligéncia que está toldada, antes de mais nada.
Ou melhor, é a inteligéncia que está desligada
do mistério do ser e que gira no vazio, pro-
duzindo por cima dos telhados um lamentoso
grito de sirene de tristes presságios.
“Se náo fordes como as criancinhas, náo
entrareis no reino dos Céus.” Mas o que é
uma crianga? Por que motivo, em nome de
todos os anjos e de todos os demonios, temos
ésse culto da infancia se náo é o culto da
virgindade?” — Pergunta um personagem de
The ball and the Cross — “Quem se lem-
braria de venerar uma coisa pelo simples fato
de ser pequeña e de náo estar madura?”
Chesterton disse: virgindade; e eu creio
que éle localizou o mistério da infáncia. Mas
é preciso náo deixar ao leitor o tempo de se
instalar numa falsa interpretagáo. Náo se
trata sómente da auséncia do ato sexual na
crianga; nem fazemos questáo de defender a
teoría da sua perfeita inocéncia. Antes de
Freud, autores como Michelet escreveram pá-
ginas indignadas contra a bárbara prática do
138 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

batismo que supunha nesses querubins uma


culpa. Hoje, os autores riem-se de nós porque
ainda queremos ser como as crianzas. Vir-
gindade implica inocencia e castidade, mas é
um conceito maior e mais fundamental. Ou
melhor, é mais uma realidade de mistério on-
tológico do que uma realidade moral. Virgin-
dade, no antigo sentido cristáo, é integridade.
A crianca é íntegra. Em outras palavras:
suponhamos que eu queira saber, intensa-
mente, vitalmente, o que é um homem, o que
eu sou; suponhamos que um dos an jos, lá do
alto de suas rutilantes galerías, queira mos-
trar a algum outro an jo distraído o que é um
homem. Mostraría primeiro o Cristo; depois
mostraría o santo; e finalmente, movido por
um frémito de ternura e esperanza, mostra-
ría uma crianca. Náo por causa de seu estado
moral, mas pela completidáo e pela inteireza
de seu ser. A crianca está tóda ali. Se mos-
trasse um de nós o anjo teria que entrar
numa laboriosa e abstraía argumentado para
explicar que faltavam tais e tais coisas, por-
que nós estamos dispersos, porque espalha-
mos pelos quatro ventos os pedamos de nossa
infáncia. A crianca náo, está ali; pequenina
e náo experimentada embora, suspensa por
um fio, empurrada para vida, mais ainda
está ali. Inteira. Virginal. Misteriosa.
O mundo, mesmo o mundo dos doidos, es-
pera na crianga; e tem razáo. Seus métodos
e suas provas sáo freqüentemente insanas
como nos exemplos que dei, mas na raíz da
mais delirante insanidade há uma teimosa
esperanca. E está certa essa esperanza, por-
PARA NÁO SER DOIDO. 139

que a crianga náo é sómente no sentido social


e progressista a esperanga do mundo, ela é
o exemplo vivo e corpóreo do mistério da es-
peranga. Peguy via a segunda virtude teolo-
gal numa “petite filie de rien de tout.’’ Ches-
terton via na crianga a fórga da eternidade
diante da monotonia.
A mensagem de Chesterton é um convite
á recuperagáo da infáncia, já pelo tom, pelo
riso do humorista, já pelo constante cuidado
de apresentar a solidariedade de todas as
coisas e de todos os assuntos, em torno da
realidade integral e virginal, da crianga, do
santo, e do Cristo Jesús.
O CRIME
A idéia do mistério, fundamento do bom-
senso e do realismo prático, é o ponto central
da obra de Chesterton. Em Orthodoxy é a
substancia dos capítulos básicos; nos roman-
ces e nos contos, é táo onipresente e funda-
mental que náo dá a idéia de ser uma idéia.
Mas onde ela tem a mais curiosa e talvez
decisiva atuagáo, é nos cinco volumes de no-
velas policiais com as aventuras do Padre
Brown. Al é que Chesterton combate no re-
duto predileto do racionalismo. Pois é diante
do crime e da iniqüidade em geral, que o deter-
minismo e todas as formas do materialismo
se sentem á vontade, mais protegidos de qual-
quer espécie de mística: a doenga, o mal, o
crime, parecem-lhes coisas extremamente cla-
ras. O racionalista é irresistivelmente atraído
a racionalizar o mistério da iniqüidade, e os
trabalhos désse género costumam produzir um
grande desafógo em nosso espirito.
A doenga tem uma causa, geralmente mais
nítida que a saúde; o crime tem mui to mais
lógica do que os passos e gestos de um bom
pai de familia. E ésse encontro dramático
de causa e efeito, na doenga e no crime, dá
ao determinista a desvairada alegría do su-
jeito que pilhou o universo num bom flagran-
te. O crime é lógico. A doenga é muito mais
PARA NÁO SER DOIDO. 141

lógica do que a saúde. Ninguém costuma se


perguntar á noite: “Ora essa, o que será que
me féz bem hoje?” Ou entáo: “Por que mo-
tivo náo corta meu vizinho sua mulher em
pedagos?” Ninguém raciocina sóbre a norma-
lidade, nem existiu até hoje o arguto detetive
que, á custa de impressóes digitais e pontas
de cigarro, tenha descoberto a pista do extra-
ordinário individuo que volta tranqüilamente
para casa.
O crime é realmente lógico em quase todas
as etapas, e os passos do criminoso podem
ser acompanhados pelo raciocinio porque sáo
passos razoáveis, pensados e medidos. Há po-
rém um passo que escapa á lógica e ésse é
justamente o primeiro. Nesse ponto o crime
é como a queda. O individuo que se atira de
um oitavo andar faz uma incontestável in-
cursáo, embora breve, no mundo exato da
mecánica. A partir daquele primeiro movi-
mento, sua trajetória pode ser cronometrada
de andar em andar, e com uma sombria cer-
teza pode ser determinado o instante preciso
em que éle se esborrachará na calgada. Há
na queda uma lógica mortal; mas ninguém
aceitaría um diagrama parabólico como plau-
sível explicagáo de um suicidio. A clareza
fulgurante daquela trajetória física tem as
duas pontas perdidas ñas trevas, como as
estrélas cadentes que riscam o céu num fu-
gitivo instante. O racionalista é o homem
que se contenta com uma pequeña exatidáo,
manejando um metro fantástico cujas pon-
tas se perdem em fumaga; ou entáo é o ho-
mem que forja trés elos de uma cadeia que
142 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

nao se prende a coisa alguma. A historia do


crime costuma ser contada com excessiva
simplicidade, tomando por base que há no
crime um proveito. Na pesquisa dos motivos,
o racionalista admite que certos interésses
pessoais expliquem o crime. A primeira vista
essa atituae parece uma negagao do pecado
original. Seria mais exato dizer, entretanto,
que o racionalista, nesses casos, eré demais
no mistério da iniqüidade. O que sua filosofia
recusa é a misteriosa fórga que impede o uni-
versal massacre. Fascinado pela iniqüidade,
o materialista tem a impressáo de que, expli-
cado convenientemente o homicidio, fica ex-
plicado também o enigmático motivo que in-
cita as mulheres a carregarem durante nove
meses a pesada semente de uma vida nova.
Com a álgebra, o tiro ou a facada explicaráo
o amor.
A novela policial, por isso, é um campo
convidativo para os lógicos. Edgard Poe foi
atraído por ésse género, fundando escola
com numerosíssimos discípulos. Suas novelas,
como as ingénuas e bem humoradas de Conan
Doyle, se caracterizam pelo perfeito encadea-
mento lógico dos diferentes elementos do cri-
me. Dupin e Sherlock Holmes seriam dois
personagens extraordináriamente verídicos se
o mundo tivesse sido feito por Conan Doyle
ou por Edgard Poe. No caso atual, porém,
de um mundo feito por Deus, os dois dete-
tives só mantém uma impecável lógica por-
que seus respectivos autores estáo acumpli-
ciados com éles.
PARA NÁO SER DOIDO. 143

Lembro-me do prazer há tantos anos en-


contrado na leitura de Conan Doyle, mas
sondando a memória eu verifico que náo me
ficararn as sagacidades do policial. O que me
ficou foi Baker Street. Foi qualquer coisa
que comegaria assim: “Numa tarde chuvosa
de novembro, Holmes e eu...” E o resto me
aparece ligado á seiva de vida dos meus dez
anos: a sala obscura, o Dr. Watson mexendo
na lareira, o Holmes, de pernas estendidás,
sonhador, acompanhando as ilógicas volutas
do cachimbo. Lá fora, neva. De repente, de-
pois de um sinal de campainha, a porta se
abre e assoma no limiar um desconhecido de
meia-idade e cábelos cor de fogo!... Do mais
eu náo me lembro, mas basta-me essa porta
que se abre e ésse desconhecido de cábelos
cór de fogo, para que eu encontre um pouco
da fórga perdida de minha distante meninice.
Chesterton assinalou que o maravilhoso é
tanto mais simples quanto menor a idade.
Aos quatro anos, por exemplo, bastaria ouvir
“a porta se abriu”... para sentir a presenga
do maravilhoso, mesmo sem o estranho per-
sonagem ruivo.
Os contos policiais de Poe e de seus discí-
pulos eram rigorosamente arquitetados sobre
a lógica do crime por sua vez desvendado pela
lógica dos motivos. Dupin e Sherlock dedu-
ziam passos de homem como um geómetra
deduz propriedades de triángulos. E por isso
eu tenho a certeza de que falhariam lamen-
távelmente se fóssem arrancados do papel e
postos diante do mais banal assassinato.
144 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

A superioridade do Padre Brown náo con-


siste, a bem dizer, na falta de lógica. Éle
raciocina como qualquer pessoa medianamente
sagaz, mas a fórga do seu génio está num
outro conhecimento: éle conhece o mal. Co-
nhece-o como um mistério, e como uma he-
ranga. Antes de perseguir ladróes e assassi-
nos cá fora, já os perseguirá ñas almas dos
penitentes, e na sua própria. Tinha a expe-
riéncia da santidade, que é a única experiéncia
frutuosa do mal; e tanto deslindava o crime
como levava, ás vézes, o criminoso a se arre-
pender e a pedir-lhe a absolvigáo dos pecados,
o que aliás produzia nos outros personagens
os mais vivos acessos de incredulidade. Acei-
tavam a sagacidade do padre, mas náo po-
diam crer no arrependimento do ladráo,
para o qual, efetivamente, náo existe expli-
cagáo cabal.
A fórca do Padre Brown está no bom-
senso e no olhar poético e místico com que
vé o mundo. Está até numa certa dose de
distragáo e sonoléncia com que se alivia do
penoso trabalho de catar pontas de cigarros e
impressóes digitais. Diante dos dados con-
cretos, cándidamente apreendidos, interpre-
tados muitas vézes ao pé da letra, éle se en-
contra em simpatía com o criminoso, e inventa
poéticamente, ou recorda místicamente, como
praticaria éle o crime.
O leitor que ainda náo conhega as faga-
nhas do Padre Brown estará nesse momento,
eu o receio, pensando que sáo novelas carre-
gadas de tese e ostentadoras de uma idéia
fixa. Mas náo é isso. A constáncia de uma
PARA NÁO SER DOIDO. 145

idéia náo forma uma tese nem merece o nome


de idéia fixa. Há certas constáncias que sáo
essenciais a qualquer novela, e uma idéia ver-
dadeira é justamente a que melhor se dissolve,
deixando de ser uma idéia. Por mais variadas
que sejam as situagoes dos personagens sáo
necessárias certas constáncias, sem as quais
náo haveria novela. Deve haver por exemplo,
entre os mais diversos personagens, uma pro-
funda semelhanga no modo de andar, falar e
assoar o nariz. Se tentarmos introduzir uma
nota orginal e inteiramente nova nessas ati-
tudes os personagens deixaráo de ser isso que
entendemos por homem, mulher e crianga.
O que eu quero dizer, é que a idéia que
Chesterton tem do mistério do homem é aná-
loga á idéia que éle tem do nariz e das pernas
do homem. Por isso suas novelas náo cheiram
a tese mas guardam a profunda constáncia
pela qual se descobre a semelhanga entre o
padre e ladráo. Sáo cúmplices. Há entre
éles uma comunháo. Pertencem á mesma qua-
drilha, e moram ambos na ampia e feérica
caverna onde se partilham o lucro da rapi-
nagem e o prémio da santidade.
UM GIGANTE DE DUAS CABELAS

O nome de Edgard Poe já aparecen mais


de uma vez nestas páginas, e por isso achei
que náo seria descabido abrir um capítulo
sobre o sombrío poeta de Baltimore, apre-
sentando-o como um antípoda do humorista
inglés. Seria fácil comegar pelos pontos em
que Poe e Chesterton parecem os homens
mais diferentes do mundo. Um é triste, outro
é jovial; um é analítico até o desespero, outro
se bate ao longo de quase cem volumes contra
o determinismo e o racionalismo; ao humo-
rismo do inglés corresponde simétricamente
o senso do grotesco no americano. O próprio
vinho os separa, pois enquanto Chesterton
celebrou a alegría das velhas tavernas, Poe
só encontrou no álcool a melancolía e a morte.
Seria fácil, pois, comegar dizendo que ésses
dois poetas foram antípodas. Mas nesse ponto
estou com Santo Agostinho. Náo creio em
antípodas. Acidentalmente os homens podem
fazer a ginástica que o poeta de Chesterton
fazia ñas rúas de Londres e que Sáo Pedro
féz no martirio: podem ficar de cabega para
baixo. Mas tanto o poeta como o apóstolo, a
meu ver, procuraram demonstrar que a posi-
gáo acidental náo destrói a fundamental se-
melhanga. Sáo Pedro, de cabega para baixo
na cruz, náo queria ser o Anticristo; o poeta,
PARA NÁO SER DOIDO. 147

de cabega para baixo na rúa, só pretendía


provar que o ser do homem é mais forte que
a mobilidade.
Na verdade, entre Poe e Chesterton há
semelhangas mais profundas do que as des-
semelhangas. Ambos sáo poetas, ambos escre-
veram novelas policiais, ambos tiveram no
mais alto grau o senso plástico do descritivo,
como se pode ver na última parte de The ball
and the Cross e na The Island of the Fay de
Poe. E foram ambos gigantescos. Mas aqui
volta a dessemelhanga, e lembrando aquela
historia do pequeño Redley, eu direi, para
comegar um rápido perfil, que Edgard Poe
foi um gigante de duas cabegas. O imenso
poeta de pequeños poemas, que Beaudelairt
e Mallarmé reverenciaran!, o autor de The
Raven e de Annabel Lee tinha uma segunda
cabega que fiearia perfeitamente bem nos
ombros de Gauss. E viveu éle, fartamente,
até o delirium tremens, a patética desvanta-
gem de ter duas cabegas. Viveu um conflito
entre a poesia e o racionalismo.
Náo sei bem em que sentido é costume
dividir os escritores em diurnos e noturnos.
Se noturno é o luar da magia, ou o ténue bri-
lho do mistério, e diurno é a luz da lógica,
Poe foi diurno até o exagéro, até o paroxismo;
mas foi um ofuscado que se defendeu da ce-
gueira como quem fita o sol em vidro esfu-
magado. Foi um escaldado, um insolado, que
mergulhava ñas sombras de paisagens inven-
tadas para alivio de seus olhos; ou se refu-
giava em subterráneos para repousar da in-
cleméncia da razáo. Náo eram as sombras
148 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

que o perseguiam, era uma luz crua demais;


um sol de deserto, que lhe calcinava a poesía.
Se noturno é ainda o escritor de cenas con-
fusas e indeterminadas, onde se ouvem os
personagens num nevoento e indeciso cenário;
ou aquéle que raramente apela para a visáo
do leitor, contentando-se com o seu ouvido,
usando sómente as peregrinas palavras que
nunca afirmam uma presenca real plástica e
possuída — entáo eu tornarei a dizer que há
poucos autores mais diurnos do que Poe.
Seus contos tém geralmente uma atmos-
fera de pavor, e freqüentemente se passam
á noite; mas seria mais exato dizer que éles
pretendem ter aquela atmosfera. The fall of
the House of Husher e King Pest ressumam
melancolía e médo, mas proporcionam ao
mesmo tempo uma dura e rígida tranqüi-
lidade pela excessiva nitidez. Mais depressa
encontramos o horror ñas páginas de Wutehr-
ing Heights de Emily Bronte do que na no-
vela em que Poe faz um morto falar. Ten-
tou conciliar o médo e a nitidez; ou talvez
tenha procurado o médo com médo da nitidez.
Seus quadros sáo admirávelmente plásticos,
luminosos e coloridos, mesmo quando se des-
tinam ao cenário de fantasmas. Em King
Pest, por exemplo, o palácio está vivamente
iluminado, cada saláo é intensamente colo-
rido de uma cór viva, e o espectro da Peste
exibe u’a máscara escaríate. Ao contrário
dos indecisos e crepusculares, Poe tem, numa
rara medida, o talento de trazer as coisas
para dentro das palavras; mas um conflito se
estabelece no seu próprio processo, durante
PARA NÁO SER DOIDO. 149

sua atividade artística, entre a intencáo de


sombra e a realizacác de cores fortes. Sua
composicáo quer seguir ao mesmo tempo a
diregáo de duas cabecas. Por isso, náo conse-
guindo a semi-obscuridade que por um lado
deseja, e náo podendo, por outro lado, aceitar
jamais a imprecisáo, freqüentemente resolve
a dificuldade destruindo a nitidez das formas
sem destruir a nitidez dos contornos. Apela
para o grotesco. Descansa no grotesco. E’ o
seu paradoxo e o seu humorismo.
Só é possível dizer que Poe é noturno se
adotarmos uma outra convengáo, dizendo que
noturna é a lógica, que noturna é a trian-
gulagáo do universo, que noturna é a razáo
que só eré em si e acaba descrendo até de si
mesma; e que noturna é a loucura, consu-
magáo do perfeito racionalismo.
Mas na verdade qualquer que seja a con-
vengáo, Poe tem dois hemisférios. Sua grande
paixáo, entretanto, é sem dúvida o raciocinio
decifrador, e sempre que a poesia relaxa suas
solicitagóes para o mistério éle se entrega
sem restrigóes a essa paixáo pelos problemas.
Constrói uma metafísica, ou melhor uma cos-
mogonia, que é a engenhosíssima decifragáo
de um universo que éle mesmo inventa para
depois decifrar. Ou fica semanas inteiras a
espiar, a analisar os movimentos de um bo-
neco que joga xadrez, para descobrir, ao longo
de trinta páginas, incluindo um diagrama,
que dentro do autómato de Maelzel havia um
homenzinho escondido. Ou entáo dehruga-se
noites seguidas “over many a quaint and.
curious volume of forgotten lore... ” e analisa
150 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

Isaías em hebraico e Sáo Lucas em grego, fa-


zendo uma sagaz política de sinais e palavras,
como personagem do Golden Bug que, pela
análise de um documento cifrado, descobre
um tesouro enterrado pelos piratas. O tesouro
porém, tanto em Isaías como em Sullivan’s
Island, interessa-lhe muito menos do que a
vitória lógica sobre o segrédo.
Desee mais de uma vez a um cientificismo
juliovernesco, e náo é de estranhar que o pró-
prio Júlio Verne tenha procurado acrescentar
alguns capítulos de sua lavra as aventuras de
Gordon Pym. Preocupa-se com o diámetro da
Terra e com as ondas sonoras; é atraído pelo
magnetismo e seduzido pelo mesmerismo. E
em todas essas tristes experiéncias náo pode
ter a ingenua simplicidade de Júlio Verne,
e cobre-se de ridículo com Nietzsche, como
todas as grandes “aves de rapiña que andam
rogando as asas pelo cháo.”
A única solucáo que encontra para sua
dupla mentalidade é a de um universo tam-
bém duplo: o da poesia e o da razáo. Ten-
tando uma filosofía da arte, éle se torna si-
multáneamente racionalista e irracionalista
ao mais alto grau, vendo na poesia uma ver-
tiginosa libertagáo das leis da verdade em
favor de um puro musicalismo. Náo há ver-
dade na poesía; há música, há palavras ar-
rancadas do vocabulário comum para servi-
rem sob o império da música. Diz éle em The
Poetical Principles : “Com a mais profunda
reveréncia pelo Verdadeiro que jamais inspi-
rou um peito de homem, eu limitarei entre-
tanto seus modos de inculcacáo. Limitarei
PARA NÁO SER DOIDO. 151

para reforgá-los. Náo os quero enfraquecer


com dissipagoes. As exigencias da verdade
sáo severas. Ela náo tem nenhuma simpatia
pelas murtas. Tudo aquilo que no Canto é
táo indispensável é precisamente aquilo com
que a verdade nada tem a ver. Seria fazer
déla um fútil paradoxo o enguirlandá-la com
gemas e flores.” Ao contrário de Keats éle po-
derla dizer: “Truth is not beauty.”
É na música que éle encontra a liberta-
dora amplidáo de um mundo para sua poesía:
“É na música, talvez, que a alma atinge
mais de perto o grande fim pelo qual luta
quando inspirada pelo Sentimento Poético —
a criagáo da Supernal Beleza.” Sua poesia é
extraordinariamente musical; pelo ritmo e
pelas rimas éle quer dissolver as palavras em
música, em tempo, em números. Mas o senso
plástico visual náo o abandona e, apesar de
sua estranha filosofia, realizou os poemas do
mais elevado teor. Poemas que deixaram
longamente pensativos os maiores poetas do
mundo. Pequeños e raros poemas que sáo
ilhas (The Island of the Fay ) de sua intér-
mina agonía.
Mas de repente, quando menos se espera,
o demonio racionalista desembarca na ilha e
transforma a poesia em agrimensura. Em
The Philosophy of Composition Poe dá mo-
tivos abundantes para que Chesterton o trate
de doentio. Náo sáo os ratos no fundo de um
pogo escuro, náo sáo os gatos pretos, náo é o
Anjo do Bizarro, que autorizam táo severa
qualificacáo. É a explicagáo cabal, viciada e
em círculo, que o poeta pretende fornecer de
152 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

cada pétala e cada rima, que marca uma ine-


gável insanidade. O leitor certamente co-
nhece O Corvo, ésse poema traduzido e retra-
duzido pelos maiores poetas, mas nunca apro-
ximado da beleza original, porque cada pa-
lavra conta e vale pelo som, pela música e
pelo ruido consonantal que recorda a musi-
calidade das vogais numa espécie de submú-
sica escondida :
Once upon a midnight dreary, while I
pondered weak and weary . . . "
Pois bem, o próprio autor vai nos explicar
como conseguiu compor ésse maravilhoso
poema: “É meu intento tornar manifesto que
nenhum dos pontos de sua composigáo pode
ser atribuido ao acaso e á intuicáo — que o
trabalho prosseguiu passo a passo, até seu
térmo, com a precisáo e a rígida coeréncia
de um problema matemático.” Quem diz isto
é éle, Poe, o poeta, o infortunado viúvo de
Virginia Clemm, o lírico autor de Annabel
Lee, o desventurado solitário que morreu por
delirium tremens chamando trés vézes por
um amigo que ninguém conheceu. Náo é um
glacial professor diante de um quadro-negro
que nos fala em precisáo e rigidez, expulsando
o acídente e a intuigáo dos seus dominios com
mais desembarago do que os próprios mate-
máticos que até hoje disputam sobre a natu-
reza da descoberta na mais nua das ciéncias
— é o próprio autor que viveu, que sofreu e
que morreu pela poesía.
Depois de passar rápidamente (demais)
sobre o detalhe da intenqáo, admitido que éle
quer fazer um poema, comega sua impíacável
PARA NÁO SER DOIDO. 153

demonstragao pela consideragáo do tamanho


da pega. Tem uma teoria a ésse respeito, mais
de uma vez manifestada. O poema deve ser
pequeño; o Paraíso Perdido é um poema que
nunca pode ser lido, porque náo pode ser lido
de uma só vez. Sua teoria tem certa seme-
lhanga com os principios de unidade que, se-
gundo Aristóteles, devem ser observados na
tragédia; mas seus principáis argumentos sáo
de duragáo e de ritmo. O poema deve ser lido
fácilmente de uma só vez, inscrevendo seus
ritmos no ritmo vital do homem. Concluí
que o poema que está planejando deverá ter
cem versos; saiu com cento e oito, isto é, com
érro de oito por cento.
Em seguida demarca seu dominio, o da
Realeza, reafirmando mais uma vez a idéia de
um mundo á parte; e logo depois escolhe o
tom, a Melancolía, como o mais legítimo e
impressionante dos tons poéticos. Daí fácil-
mente se concluí que o key note do poema
de ve ser um refráo. “Levan tou-se a questáo
do caráter da palavra para o refráo. Tendo
fixado a escolha no refráo, a divisáo do poema
em estáncias decorre como um corolário, for-
mando o refráo o arremate de cada estáncia.
E náo havendo dúvida de que ésse arremate,
para ter fórga, deva ser sonoro e enfático, fui
inevilávelmente levado a pensar no o longo,
como a mais sonora vogal, em conexáo com
um r, como a consoante de mais efeito.'’
Donde, mediante algumas obvias transforma-
góes algébricas, resulta o refráo Nevermore.
E a explicagáo prossegue, minuciosa, inafe-
tiva, cerebral, como a de um escriba que esti-
154 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

vesse a por em termos da lei fatos que nas-


ceram das lágrimas e do sangue.
Náo pense o leitor, porém que tal de-
monstrado seja simplesmente artificiosa e in-
sincera. A hipocrisia é uma explicado crua
de mais e certamente náo se aplica ao caso
de Poe. O cabotinismo vem sempre acompa-
nhado de uma inequívoca mediocridade, e
náo há engano possível nessa matéria. Eu
creio na sinceridade de Poe; para mim, al-
guma coisa se passou assim como éle nos
conta. * Os cálculos íoram realmente feitos,
as suputagoes e as computagóes foram real-
mente suputadas e computadas; náo pela ca-
bega do poeta, mas pela outra, pela segunda
cabega, a mais tiránica, que durante o tempo
todo da composigáo estéve a cravar estacas
ñas rimas, a raciocinar perdidamente, a re-
clamar a paternidade de cada estancia que

* Encontrei em Mallarmé (Les Poémes de Edgar


Poe) a seguinte informagáo: “En discutant du Corbeau
(écrit Mme. Stizan Achard Wirds á M. William Gill) M.
Poe m’assura que la relation par lui publiée de la métho-
de de composition de cette oeuvre n’avait rien d'authen-
tique; et qu’il n’avait pas comptié qu’on lui accordát ce
caractere. L’idée lui vint, suggérée par les commentai-
res et les investigations des critiques, que le poéme au-
raiti pu étre ainsi composé. II avait en consequence pro-
duit cette relation, simplement á titre d’expérience inge-
níense. Cela Vavait amusé et surpris de la voir si
promptement acceptée comme une declaration faite bona
íide”. Eu mantenho, entretanto, minha interpretagáo
porque o texto em questáo está na mesma linha de todos
os trabslhos de Poe sóbre a filosofía da arte, e náo
creio, nem consta de nenhum documento, que todo ésse
trabalho tenha sido uma mistificagáo ou um puro diver-
timento.
PARA NÁO SER DOIDO. 155

ia saindo e terminando num Nevermore. O


que eu quero dizer é que houve um fenómeno
latera], um perfil de teorema acompanhando
numa rígida poligonal o perfil vivo da poesía.
No mesmo instante em que achava o Never-
more num solugo antigo e numa lembranga
de viuvez, deduzia-o rápidamente como uma
necessidade fonética. O que admira é que Poe
tenha suportado Poe — e que o poema tenha
saído táo perfeito.
É nesse sentido que Poe é insano, sendo
analítico de mais e dando razáo a Ches-
terton. Há qualquer coisa de doentio, de
quase doido, nessa filosofía da composigáo.
Há uma contradigáo de atitudes gerada den-
tro do poeta por essa preocupacáo de ser
exato, levada ao paroxismo. O metódico e
perspicaz investigador aplica a ponta de sua
análise para nos mostrar que dentro do bo-
neco enxadrista de Maelzel estava um homem
escondido; depois, aplica a mesma perspicá-
cia e o mesmo método para nos mostrar que
dentro de Edgard Poe havia um boneco escon-
dido. Diante do boneco denunciava a inca-
pacidade da mecánica para escolher um lance
de peáo; diante do homem denunciava a in-
capacidade da poesía para escolher uma rima.
Sua obra e suas conclusóes dependiam da ca-
bega que as ditava; e toda a vida désse frágil e
triste gigante dá sobeja razáo a Chesterton re-
lativamente á desvantagem das duas cabegas.
UMA RESTRIQÁO

Mas náo posso acompanhar Chesterton no


tom sumário demais com que afasta de seu
caminho os vultos de Poe e Nietzsche. Sua
apreciagáo simplista se aproxima do riso vul-
gar dos apologetas que recordam o susto de
Nietzsche diante de uma vaca. Acho razoável
que um homem se assuste diante de uma
vaca; como também acho razoável, com Ches-
terton, que o homem se aflija por náo ter
uma vaca. Náo será pois ésse animal, bravo
ou manso, que nos poderá esclarecer conve-
nientemente sobre obras e vidas. Na verdade,
Poe e Nietzsche foram poetas enormes, diante
dos quais o inglés podia se inclinar sem des-
douro. Há uma beleza patética. Há uma ter-
rível beleza na figura de um encarcerado;
uma sombría beleza no enlouquecido esvoagar
que fere as asas contra as grades da prisáo.
Há talvez uma fulgurante beleza na queda de
um anjo.
Mas todas elas exigem um certo recuo. “É
preciso ter olhos” — disse Chesterton — “para
ver que um ceguinho é pitoresco”. E é preciso
conhecer o ar, a sombra das mangueiras, o
azul dos horizontes, para descobrir no fundo
de um calabougo a patética beleza do cati-
PARA NÁO SER DOIDO. 157

veiro. Ah! se eu visse um anjo cair num longo


gemido de fogo, compreenderia a profundida-
de do inferno pela terrível altura do céu.
A beleza é sempre claridade, ainda que
seja sómente um relámpago dentro de um
cárcere escuro. Seu perfil é sempre riscado
de luz, sua significagáo é sempre a de uma
vitória, ainda que nos escape o desenlace final
da luta que se fere entre um poeta e um anjo.
Se é exato que tudo nos leva a admirar as
viloriosas e diurnas apoteoses, é também ine-
gável que muitas vézes admiramos, a reveren-
ciamos, as chagas e as mutilagóes que nos
aparecem na ponta final de uma lenda e na
ponta inicial de um mistério.
Sou forgado a contrariar Nietzsche para
aqui lhe prestar uma pequeña homenagem,
lembrando que somos capazes de admirar
melhor uma derrota e um opróbrio, depois que
aprendemos a adorar uma crucificacáo. E
nada me impede de ver, na deméncia de
Nietzsche ou no delirio de Poe, os sinais da
luta terrível que na alma lhes deixaram tan-
tos vergóes luminosos, e que talvez sejam
— quem sabe? — os sinais da vitória.
Náo acompanho, pois, o sumário juízo do
humorista. Mas desconfío de alguma coisa...
Desconfío que Chesterton se pareceu com
Poe, mais do que suas obras anunciam. Na
sua autobiografía vejo que éle viajou pelas
desoladas provincias da teosofía; e no tom de
sua obra, por análoga experiéncia própria,
eu reconhego o sentimento de libertagáo que
158 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

nos impele a certas atitudes desabridas e as


vézes um pouco ridicula. O bom-senso náo
é apenas um prémio da moderagáo e do bom
comportamento: é um troféu violentamente
arrebatado.
A CASA DO MISTÉRIO

Voltando á aldeia central de Chesterton —


a idéia do mistério — temos agora alguns ele-
mentos para compreender que ela significa
também uma libertagáo da inteligéncia. Quer
tomemos os símbolos de Chesterton, o círculo
e a cruz, quer consideremos o poeta e o lu-
nático (separados em dois homens ou unidos
num só), temos sempre os dois sentimentos
opostos: liberdade e prisáo. Poe era um en-
carcerado, embora, como o engenhoso La-
tude, tenha fúgido mais de quatorze vézes de
sua bastilha. Chesterton foi um libertado.
Foi realmente um livre-pensador, porque sua
razáo conheceu seus limites, ou melhor sua
forma.
Podemos, se quiserem, libertar o tigre das barras de
sua jaula; mas náo podemos libertá-lo das barras de
sua pele. Se emancipássemos o camelo de suas bossas,
té-lo-íamos de fato emancipado de ser camelo. Náo ire-
mos pelos caminhos, como os demagogos, a incitar os
triángulos a romperem a prisáo de seus trés lados,
porque, se o triángulo romper essa prisáo, terá um fim
lamentável. Alguém escreveu um livro intitulado O
Amor dos Triángulos. Náo o li, mas estou certo de que,
se algum dia, os triángulos foram amados, foi por serem
triangulares. O artista ama seus limites: éles dáo forma
ao que éle está fazendo. O pintor sente-se feliz porque a
tela é plana, e o escultor regozija-se por ser o barro
incolor.
160 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

O homem livre náo é o que “traz dentro


de si um caos para dar á luz uma estréla dan-
cante.” O homem livre é aquéle que ama a
terra em que pisa e a casa em que mora.
A inteligéncia conhece a exultagáo da liber-
dade quando encontra o seu objetivo e náo
quando o nega, nem quando se afirma como
seu próprio e único objeto. A liberdade da
inteligéncia é na verdade uma obediéncia —
uma perfeita obediéncia. Mas a liberdade é
um mistério; e o homem só é livre porque tem
a capacidade de se despojar de sua liberdade;
só é obediente, porque pode desobedecer. Éle
é como o triángulo que tivesse a estranha fa-
culdade de afligir sua própria natureza e de
desgostar-se, até a náusea, da triangularida-
de. Por isso éle só é livre depois da vitória
sobre a sua estranha e dissolvente capacidade
e náo durante o processo em que se dissolve.
O homem pode ser desumano. Para que a
obediéncia e o amor tenham uma eminente
perfeigáo, é necessário que o homem tenha
a capacidade de ser desumano. Por isso, fre-
qüentemente, encontramos individuos que se
livram das jaulas e das peles, formando essa
fremente legiáo de esfolados, que se acotove-
lam e se maldizem. Mas por causa dessa pos-
sibilidade e evasáo, muitos pensadores con-
sideram que a verdade é uma coagáo; antes
mesmo de porem em dúvida que a verdade
seja verdadeira. E urna vez que essa lingua-
gem de pánico se generaliza e se enfeita com
uma usurpada nobreza, fica o remoque de pa-
radoxal para quem disser que a casa e o
dogma libertam.
PARA NÁO SEE DOIDO. 161

O pensamento livre é o que encontra sua


perfeigáo no objeto e que lucra nesse encontro
descobrindo a perfeigáo do objeto em si mes-
mo. Trata-se pois de ama descoberta, de um
achado, de uma chegada, de uma volta. Ou
de um linmite, se quiserem, porque o limite é
a forma. Ou de uma regra. Ou de um dogma.
E o mistério, que liberta a razáo, também
mora, quando é o maicr dos mistérios, dentro
de um tabernáculo.

N
PARTE IV

PARA NAO SER BARBARO...


“O juramento é aquilo que nos diferencia,
já náo digo dos selvagens, mas das béstas e
dos reptis”.
G. K. Chesterton — Barbarism of Berlim.
O BÁRBARO

A segunda idéia-mestra da mensagem de


Chesterton (espécie de estréla tripla ou quá-
drupla, que fácilmente se desdobla) náo diz
respeito á saúde mental do sujeito, mas a
uma coisa que poderíamos chamar de saúde
social. Vimos nos capítulos anteriores o que
impede o homem de ser doido; veremos agora
o que impede o homem de ser bárbaro. A idéia
é extremamente simples e pode ser abordada
sem grandes preocupares. Em Barbarism oj
Berlin, escrito em 1915, quando a Inglaterra
suportava duros golpes em terras de Franga,
ela é bastante explícita.
Como já disse, a mesquinha e sincera demencia do
prussiano consiste em querer destruir suas idéias que
sáo raizes geminadas da sociedade humana. A primeira
é a idéia de registro e promessa; a segunda, a idéia de
reciprocidnde. E’ claro que a promessa, ou extensáo de
responsabilidade no tempo, é aquilo que melhor nos di-
ferencia, náo digo dos salvagens, mas das béstas e dos
reptis. Assim o reconhece com sagacidade o Antigo
Testamento, quando resume nestas palavras a sombría
e irresponsável monstruosidade do Leviatá: “Fará éle
um pacto contigo?”
A promessa, como a roda, é desconhecida da nature-
za: é a primeira marca do homem. Relativamente á
civilizacáo humana, é que se pode dizer com toda a
convicgáo que no principio era a Palavra. O juramento
está para o homem como o canto para o pássaro e como
o latir para o cao; é a sua voz.
166 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

Náo é íácil citar uma coisa da qual se possa dizer


que déla dependa toda a enorme complexidade da vida
humana; mas se de alguma coisa depende, é dessa frágil
corda estendida entre as colinas do ontem e as monta-
nhas invisíveis do amanhá. Neste fio solitário e vibrá-
til estáo penduradas todas as coisas, desde o Armageddon
até o almanaque, desde uma revolugáo bem sucedida
até um bilhete de ida e volta.

Ai está a idéia a que me refiro. Diz res-


peito á promessa, ao juramento, ao voto, ao
pacto, á alianga, á palavra dada. Trata-se, em
suma, da fidelidade, désse elemento dual e
primeiro, que é a própria base do direito, e
sem o qual o homem, com todas as suas ma-
ravilhosas e orgulhosas conquistas — seus na-
vios aéreos, seu Radar e sua Bomba Atómica
- se tornará um Bárbaro. Um bárbaro-po-
sitivo, como Chesterton o definiu, para distin-
gui-lo daquele que é apenas o imperfeitamente
civilizado (a Rússia de 1915), e cuja prin-
cipal característica é a recusa da reciproci-
dade. O bárbaro-positivo náo é apenas o ini-
migo da civilizacáo, mas o que procura uma
nova civiiizagáo, uma civilizacáo de segunda
ordem. A nova ordem.
Ésse pequeño livro. Barbarism o/ Berlin,
escrito durante a pen vil tima guerra mundial,
ultrapassa pela fórga das idéias o estrito qua-
dro dos acontecimentcs, e chega até nossos
dias com a sonoridade de uma profecía. É já
o nazismo que Chesterton estigmatiza com
precisáo e veeméncia, quando traca o perfil
do prussiano de entáo para quem um tratado
era um farrapo de papel.
Como a segunda guerra terminou com a
segunda derrota dos rasgadores de tratados,
PARA NÁO SER BÁRBARO. 167

pode o leitor pensar que o livro perdeu a opor-


tunidade, devendo ser arquivado para sempre
como um jornal velho. Muita gente, na ver-
dade, associa os acontecimentos históricos a
localizares geográficas e raciais. O nazismo
acabou porque a Alemanha foi vencida; mas
o barbarismo positivo, o que golpeia inces-
santemente aquéle fio estendido entre as mon-
tanhas, continua sua obstinada e mesquinha
devastagáo da sociedade humana. A política
— essa complicada trama de promessas e tra-
tados — pretendendo tornar-se técnica, tor-
na-se maquiavélica e oportunista. A Rússia,
depois que Chesterton escreveu seu grande
livro, virou bruscamente da barbaria nega-
tiva para a positiva, e foi com espanto que o
mundo viu, em 1941, dois leviatás tentarem
uma alianga. Ainda hoje os exegetas da nova
política falam exatamente a mesma lingua-
gem irresponsável de Guilherme II, exaltando
a conveniencia de firmar um pacto e a incon-
veniencia de o manter, e sobrepondo á idéia
de compromisso o conceito novo de etapa.
O ESPERTO

Deixando o limiar dos gabinetes onde se


manipulam as conveniéncias políticas da nova
ordem, da direita ou da esquerda, encon-
ti’amos hoje ñas rúas, ñas esquinas, ñas casas,
um difuso maquiavelismo, espécie de barbaria
a varejo, elevada á categoría de suprema
virtude social. O cidadáo de nossos dias ga-
ba-se de ser esperto. É verdade que tudo
conduz a ésse resultado, pois a vida das ci-
dades vai se tornando, dia a dia, mais intri-
cada e problemática, e portanto mais selva-
gem, do que a vida dos selvagens. A con-
quista de um lugar no bonde tem qualquer
coisa da abordagem de um junco por piratas
malaios; a compra de um páo requer a astú-
cia do cagador.
Já vai longe, esbatido numa lembranga
quase irreal, o tempo em que um homem, an-
dando na cidade em compras ou em boémia,
tirava o relógio do bolso e dizia aos amigos,
com simplicidade, essa frase prodigiosa: “Vou
para casa.” E ia. la para casa com o espi-
rito livre; ia andando com plenos direitos á
distragáo e ao sonho, sentindo-se legítimo
herdeiro de um imenso patrimonio que, entre
outras maravilhas, constava de bondes dóceis
e de padarias fartas.
PARA NÁO SSR BÁRBARO. 169

Hoje, tudo se arma em problema: e é


nisso, exatamente nisso, que consiste a selva-
geria. O selvagem é selvagem porque nao
tem o espirito livre. O civilizado é civilizado
porque náo sente a presenta e os entrecho-
ques da maquinaria que move a cidade. O sel-
vagem é selvagem porque sua maior virtude
é a astúcia. O civilizado é civilizado na me-
dida em que pode manter uma candura muni-
cipal. É lícito dizer, portanto, que o mundo
se torna bárbaro, quando em política, na vida
das rúas, e no interior das casas, reina um
imperativo de tecnicalidades, aceitas e glo-
rificadas, para todos os atos simples que o
homem já havia superado. O selvagem é o
técnico por excelencia; o selvagem é o mais
tecnicológico e tecnicocrático dos homens. Se
é rústica a sua engenharia. rigorosamente
técnica e spengleriana é a sua concepgáo tá-’
tica da vida.
A leí supera a esperteza e o amor supera
a lei; e tanto na leí como no amor a base é
o senso da reciprocidade e o reconhecimento
do outro enfáticamente exaltados até o pro-
pósito do sacrificio. O assassino e o ditador
sáo criminosos, cada um em seu género, por-
que negam a reciprocidade, rompem um pacto,
e julgam que um ímpeto de suas vontades
pode ser uma lei, ou um decreto-lei, dentro
do mundo dos homens. Mas o ditador é pior
do que o assassino, já por causa da impuni-
dade em que se instala, já pelo próprio resul-
tado material que se traduz, mais cedo ou
mais tarde, náo em um cadáver esfaqueado
que a ronda da madrugada descobre num
170 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

ángulo escuro da cidade, mas em milhóes de


cadáveres esqueléticos que o lápis da estatís-
tica insere num gráfico.
É difícil determinar com precisáo a re-
lagáo de causa e efeito entre a esperteza po-
lítica que triunfa na ditadura e a esperteza
generalizada do povo. Parece-me que o fenó-
meno progride por meio de avangos alterna-
dos, ora de um lado ora do outro, até o dia
em que a atmosfera popular de esperteza,
isto é, de desmoralizado, se transforma num
apelo, numa invocagáo, num imprecatorio
apetite de tiranía. Nasce entáo o mágico,
náo menos responsável, porém mais explicá-
vel. E ao cabo de uma dezena de anos agoniza
uma nagáo.
A legislagáo de uma sociedade tem uma
dura contingéncia: ninguém pode alegar igno-
rancia da lei. Todo mundo sabe que náo seria
possível legislar deixando para as mais sim-
ples infragóes essa escapatoria que, por fim,
certamente, atingiría os mais graves delitos.
Mas também todo o mundo sabe que quase
todo o mundo ignora o conteúdo dos códigos.
Náo sómente o homem simples, mas o pró-
prio civilizado será mais civilizado na me-
dida em que ignorar a lei e nela viver com
simplicidade e desembarago. Entre os poucos
feitos gloriosos que lego a meus filhos, e de
que me gabo, está o de ter sido um dia préso
na passagem de uma fronteira por falta de
passaportes, e estáo as miúdas infragóes em
que repetidamente caí por uma incapacidade
irremediável de compreender os caprichos de
minha prefeitura, consignados em misteriosos
PARA NÁO SER BÁRBARO. 171

papéis cobertos de caracteres ilegíveis e de


iluminuras com monstros aquáticos.
Na base de uma legislagáo há um binomio
indispensável: de um lado, a lei deve ter a
medida do homem, deve estar impregnada do
espirito que mora nos mais simples e antigos
instintos populares; de outro lado, o povo
que a recebe deve possuir, além désse vivo
instinto, a corajosa disposigáo de aceitar a
dureza da lei em nome do bem comum.
Quando falta um désses elementos comega a
corrida para um reajustamento que se torna
cada vez mais difícil, pois onde perdem a
fórga os mandamentos e a nogáo do bem
comum, debalde tentaráo os técnicos inter-
polar minuciosos artigos para apertar as ma-
lhas da lei. O abismo se torna cada vez maior
e o cidadáo, perdendo a inocéncia cívica, tende
para o esperto, e dessa tendéncia, como numa
incubagáo, surge o triste herói dessa triste
cidade: o mais esperto. E quando numa tarde
embandeirada, entre fanfarras e discursos,
o pajé astuto toma conta do poder, podemos
dizer que está partido aquéle fio estendido
entre as colinas do ontem e as invisíveis
montanhas do amanhá. E podemos marcar,
com a precisáo dos cálculos de eclipse, as
datas da fome, da desolagáo e da desmora-
lizagáo.
A esperteza é feia, é ignóbil, mas é sobre-
tudo estéril; fecunda é a inocéncia. Fecunda
é a fidelidade. Os homens de nossos dias es-
pezinham a inocéncia e a fidelidade. E per-
dem a memoria. E tornam-se espertos. O es-
perto é o homem de longa malicia e curta
172 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

memória; seus impulsos sáo breves como um


piscar de ólho; suas reagóes sáo as elemen-
tares, as glandulares, de que sáo capazes os
ratos.
DITADURA E DIVORCIO

Admiro-me que náo tenham feito ainda,


que eu saiba, a aproximacáo entre dois fenó-
menos evidentemente semelhantes: a ditadura
e o divorcio. Em ambos existe o mesmo opor-
tunismo que pretende dar golpes na vida, e a
mesma recusa de pacto ou juramento. Em
ambos, a mesma miopia de memória; a mesma
miragem do sucesso imediato.
O divórcio é o maquiavelismo a domicilio.
A ditadura é o divórcio em política. Corre
nos dois fenómenos, como idéntica seiva, a
coleante traicáo diante dos obstáculos, isto é,
a esperteza. Em política, está maduro (ou
podro) para a ditadura o povo convencido de
que um tratado ou uma constituigáo sáo meros
farrapos de papel, sendo admissível sómente
a conveniéncia ou a etapa. Na vida familiar,
a esperteza, que pretende se ajustar aos mi-
nutos que passam, conduz á faléncia do ma-
trimonio. É dura a vida civil, com suas leis,
seus úteis embarazos, e seus inevitáveis sacri-
ficios; mas muito mais dura é a vida conjugal.
O casamento é uma empresa temerosa que só
pode ser levada a cabo quando queimarmos
em nossos coragóes todos os vermes da astúcia
que pedem alimento de meia em meia hora.
É uma vida de longo alcance, de incalculável
alcance. Uma artilharia pesada que precisa
174 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

de instalagáo muito firme para atirar obuses


por cima dos séeulos.
Admiro-me pois que essa aproximagáo,
táo clara a meu ver, náo tenha sido tentada.
Mas, como já tenho visto muita contradigáo
neste vale de lágrimas, náo me espanta em
demasía que muitos ardorosos demócratas,
que fulminam o maquiavelismo político em
alto jornalismo, defendam ao mesmo tempo o
maquiavelismo caseiro. Náo me espanto por-
que, antes disso, eu vi os ardorosos defensores
do casamento sacramental e dos costumes, os
pilares da Igreja, defenderem a ditadura, e
respirarem, como um ar de delicias, a atmos-
fera dos decretos-leis.
A HISTORIA DA ASTÚCIA

Chesterton escreveu um admirável capí-


tulo sobre a Historia do Juramento, * mas
foi pena que náo tivesse escrito também o
seu complemento, isto é, a Historia da Astucia
que, a meu ver, esclarecería muito do que pa-
rece obscuro na antiguidade, e escureceria
muito do que parece claro em nosso sáculo.
Todas as vézes que li alguma coisa da
historia antiga com meus olhos de moderno,
tive a esquisita impressáo de que havia um
elemento inteiramente absurdo toldando a
clareza dos fatos narrados. Enquanto usava
os olhos do racionalista náo pude compreen-
der, por exemplo, o que impedia Telémacc de
urdir, com Penélope e suas fiéis servigais,
um plano para assassinar os audaciosos pre-
tendentes “que todos os dias invadiam sua
morada, matando seus bois, suas ovelhas ten-
ras, suas cabras gordas, comendo magnífica-
mente, e bebendo o mais escuro vinho de
suas cavas.”
Tinham-me ensinado que o pagáo era as-
tuto. Que Odisseus era sutil e astuto. Fo-
lheando Homero, encontro efetivamente, com
singular freqüéncia, a palavra astucia. Rara

• Em The Superstition o/ Divorce.


176 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

é a página em que ela náo aparece adornando


um herói. A informagáo que eu recebera, era
portanto exata. Foi preciso que os anos ti-
vessem passado, e que eu tivesse encontrado
Chesterton, Maritain e Peguy, para descobrir
o que está escrito com refulgente evidéncia
ñas lendas dos antigos: a astúcia homérica
em nada se assemelha á esperteza do bárbaro
que rasga tratados ou do povo que glorifica
o mais esperto. A astúcia antiga é, por assim
dizer, uma elegáncia na bravura, uma habili-
dade na fidelidade. Abra o leitor sua Odisséia.
e verifique os momentos em que a palavra
astúcia é singularmente acentuada. Quando
Penélope é acusada pelos jovens de “urdir
muitas astúcias”, ela está, justamente, dei-
xando um imorredouro exemplo de fidelidade;
e quando Calipso langa em rosto de Odisseus
estas palavras aladas: “Certamente és menti-
roso e astuto, porque assim o pensaste e assim
o disseste”, estava o herói desejando ardente-
mente fugir da ilha para tornar a ver sua
ítaca, suas altas moradias, sua cara esposa.
Porque, na ilha perfeita, entre as caricias da
deusa ilustre, “sua doce vida se consumia em
gemer e desejar a volta.”
Mais tarde, interrogado pelo Ciclope, co-
medor de homens, tiránico e ditatorial, o sutil
Odisseus mente, dizendo que seu nome é
Ninguém. Mas depois, com todos os riscos,
contrariando os companheiros de barco, o
guerreiro féz questáo de pronunciar seu tes-
temunho verídico, interrompido pela fúria do
Ciclope que atirava montanhas no mar, e
gritou bem alto o seu nome: Odisseus, filho
PARA NÁO SER BÁRBARO. 177

de Laertes, devastador de cidadelas, rei de


Itaca.
De página em página, agora, o conceito
da astúcia grega me aparece sob a verdadeira
e clara luz antiga: um floreic da mais verí-
dica e sonora lealdade. Uma lealdade que
fala de longe e que conta com a recíproca,
mesmo com a recíproca de um ciclópico dita-
dor. Os diálogos sáo claros, os pensamentos
sáo vertidos em lamentacóes, em suplicacoes,
em depredagóes, em imprecagóes, mas nunca
passam entre os dentes dos heróis com a ver-
dade pelo avésso. E é por isso que Telémaco,
em lugar de assassinar pérfidamente os inde-
sejáveis convivas, foi dizer alto e bom som,
na reuniáo pública, que éle era destituido de
fórgas e de astúcias. E conclamava, e procla-
mava, sua fraqueza no tom imprecatorio dos
suplicantes gregos.
Ñas circunstancias mais decisivas, como
por exemplo no momento em que Telémaco
foge de casa para buscar noticias de seu pai,
tudo se urde com aquéle fio do juramento:
“Éle assim falou e a velha ama pronunciou
o grande juramento dos deuses. E, depois de
ter jurado, e preenchido as formas do jura-
mento, despejou o vinho ñas ánforas e encheu
de farinha os sacos bem cosidos...”

Abraáo também foi astuto. Usou estrata-


gemas estranhos, comprometendo Sara, sua
esposa, para enfrentar os egipcios e a tiranía
do Faraó É curioso notar uma certa seme-
178 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

lhanga entre o Ciclope e o Faraó: ambos re-


presentara o poder, o pólo magnético da astú-
cia, prefigurando o César romano e os falsos
Césares modernos.
Mas o fato é que Abraáo foi astuto. Indo
aos textos, lendo-os com atengáo, descobrimos
que em Abraáo a astucia era uma habilidade
de crente, uma desenvoltura da Fé. O Senhor
ordenara que éle deixasse sua terra e sua
casa; éle obedecia, e ia pelo caminho tomando
suas precaugoes humanas na certeza de que
o Senhor as apoiaria. O Senhor ordenara que
éle sacrificasse o próprio filho; éle obedecia,
e ia pelo caminho respondendo a Isac, que
o interrogava sóbre a vítima, que o Senhor se
incumbiria déla. Foi astuto com a esposa e
com o filho para ser incondicionalmente obe-
diente a Deus.
E náo foi vá a sua Fé. Deus castigou o
Faraó com grandes flagelos, advertiu Abimé-
leque em sonhos, forneceu a Vítima do altar,
e féz com éle uma Alianza.

Em Roma confluem os descendentes de


Homero e de Abraáo. No império se encon-
tram os elementos que iriam desencadear
uma guerra sem fim. Na esfera política ga-
nham énfase, simultáneamente, o Direito e a
Tiranía; na esfera religiosa, enfrentam-se
Cristo e César. O Império é o campo de ba-
talha, dessas duas batalhas, e agora vemos o
povo cristáo enfrentar o Ciclope com a leal-
dade de Odisseus e com o fervor de Abraáo.
PARA NÁO SER BÁRBARO. 179

E agora o homem verídico e fiel se apresenta


completamente despojado de astúcias. O su-
plicante antigo agora canta.
Mesmo diante de César, do poder político
(pólo magnético da astúcia), o mártir cristáo
náo tem um gesto de malicia, um adiamento
de testemunho (como Ulisses na caverna) ou
um equívoco de atitudes (como Abraáo no
Egito). O amor á verdade viva, o amor ao
amor, sáo as bandeiras desfraldadas pelos no-
vos atletas dos anfiteatros romanos. Chegou
a hora do destino de Odisseus; a hora do Se-
nhor de Abraáo. E a Igreja Mártir pisa a seus
pés os escombros de um Império. A astúcia
foi vencida, mesmo a elegante astúcia do gre-
go, mesmo a fervorosa astúcia do pai dos
crentes. A astúcia foi calcada; a coleante
astúcia foi pisada pelos pés de u’a Mulher.
E durante um milénio correrá pelo mundo
um frémito de exaltada e turbulenta candura;
o juramento ganhará uma énfase incrível, e
a bravura se tornará uma inaudita loucura.

Mas o Dragáo ainda tem direitos sobre o


mundo. O Ciclope está cegó, mas ainda atira
montanhas sobre o mar. A política, num salto
de reptil, escapa á influéncia e á subordinagáo
espiritual da Igreja. O homem interpreta
como rebeldía sua emancipacáo, e julga neces-
sário, nos dias de sua maioridade, esbofetear
ritualmente sua máe.
O poder constituiu-se á parte, afirma-se
autónomo, antropocéntrico primeiro, estato-
180 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

céntrico depois. E ressurge na face do mundo


pisado pelo Cristo, molhado pelo sangue
do Cristo, uma astúcia que náo tem equivalen-
te na história, e cujo sombrio e senil aspecto
talvez náo tenha exemplo na pré-história, mas
sómente na barbaria, na selvageria, isto é, na
época de cada povo e cada raga em que ter-
mina a história. Na pós-história; na nova
ordem; no milénio dos nazistas; na sociedade
sem classes dos marxistas.
A LEI DA MEMÓRIA

A finalidade pode ser considerada sob


diversos aspectos, dignos todos de grande
consideragáo. O homem deve ser fiel á sua
condigáo humana: á sua verticalidade, por
exemplo. Deve ser fiel aos seus próprios dons,
fazendo versos, pintando quadros, ou estu-
dando os costumes dos insetos. Há uma ne-
cessária continuidade na vida e só poderemos
colhér frutos dentro da fidelidade. Essa vir-
tude náo me impede de ser fantástico, mas
me impede de ser fantástico de muitos modos
ao mesmo tempo. Alias, o homem fiel é o
único que pode ser fantástico. A esperteza
de nada me adianta quando se trata de de-
terminar a soma de ángulos de um triángu-
lo. Posso adotar uma geometria em que essa
soma seja maior ou menor que dois retos,
nada me obrigando á dupla retidáo nessa ma-
téria. Mas há uma retidáo sem a qual eu
nada poderei asseverar sobre os triángulos: a
fidelidade dos postulados. O solitário e desa-
conselhável jógo de paciencia também só con-
serva uns vestigios de encanto se aceitarmos
fielmente a arrumacáo das cartas, qualquer
que seja a conseqüéncia da fatalidade. A pro-
pria fatalidade, estímulo dos jogos, só tem
algum sentido depois de uma fidelidade. A
182 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

esperteza destrói o jógo como destrói a geo-


metría.
Mas o tipo de fidelidade a que se refere
Chesterton, quando define o Bárbaro, é mais
simples e ainda mais indiscutível do que essas
que dizem respeito á natureza das coisas. É
uma fidelidade ao pacto consentido, á pro-
messa feita, á palavra dada e por conseqüén-
cia uma coisa inteiramente artificial. Trata-
se aqui, náo mais dos artigos da harmonía
cósmica, mas do primeiro artigo que se esta-
belece quando um homem encontra outro.
Nada me impede, por exemplo, de ir amanhá
pescar em Niterói. Náo existe nenhum impe-
dimento entre minha natureza e tal ato. Náo
existe um só sinal, em todo o universo cons-
telado, na terra e no mar, advertindo-me que
náo devo amanhá atravessar a baía com os
apetrechos de pesca. Mas se ontem eu apra-
zei com um amigo um encontro para ama-
nhá, na mesma hora em que teria lugar a
pesca, entáo eu náo deverei ir a Niterói.
Um pequeño e quase imperceptível elemento
foi inventado por nós dois dentro da criagáo,
um débil trago sulcou nossas memórias, e isto
bastou para que entre meu anzol e a capi-
tal fluminense se erguesse uma inacessível
cordilheira.
O homem é um grande inventor de obstá-
culos. Os estudos das tribos mais desviadas
da civilizagáo mostram que o selvagem difí-
cilmente abandona o incomparável gósto de
ser um embarazado. E o fio em que se amba-
raba é aquéle mesmo pelo qual se comunica,
por cima dos sáculos, de montanha em mon-
PARA NÁO SER BÁRBARO. 183

tanha; fio da fidelidade e da sociabilidade,


que se enrola, se urde e se tece na memoria
dos homens.
Memoria sempre foi nobreza; mas na era
crista a memoria ganha um imprevisto realce,
sendo sacralizada e diretamente empenhada,
amarrada, envolvida, no sacrificio do altar.
Todos estáo de acórdo que o homem seja
um ente social, mas equivocam-se os que ima-
ginam que éle seja necessáriamente e auto-
máticamente sociável; que o seja com natu-
ralidade. Imaginam que a sociedade humana
decorre da necessidade de cooperagáo ou de
algum instinto semelhante ao das formigas;
e concluem que a nogáo de direio deve ser
substituida pela de eficiencia técnica. Ora, a
idéia clássica, tradicional, sobre a qual Ches-
terton insiste é que a sociabilidade humana
está sempre suspensa por um fio: náo con-
seguiremos pensar, nos nossos maiores arre-
batamentos imaginativos, numa sociedade
humana libertada da lei moral da memoria.
É claro que temos a nosso favor o passado,
a historia do homem, os registros, os costu-
mes de todos os tempos; mas trocando isso
tudo por um futuro que somos livres de in-
ventar, ou considerando isso tudo como uma
etapa semelhante á do uso da pedra em ar-
mas e utensilios, ainda assim, ainda mesmo
deixando de lado todos os dados positivos e
abrindo uma fólha em branco para uma nova
sociología, — náo conseguiremos inventá-la
na base dos encontros falhados. Nada fun-
cionará, dos códigos aos letreiros de ónibus,
184 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

se o homem abandonar definitivamente a


confianza na palavra do homem. E ainda
mais difícil nos parece inventar um tipo de
sociedade em que ésse precioso elemento seja
segregado como um hormónio pelo poder po-
lítico. Se a confianga distribuida náo fun-
ciona, como funcionará a confianga concen-
trada?
O poder político tende para o leviatá, e
quanto mais absoluto tanto mais difícil será
um pacto com éle. Há sempre dois, numa
promessa ou num pacto; ora, um dos carac-
terísticos do poder político absoluto é a recusa
á reciprocidade como demonstra Chesterton
e como todos os países, assolados por ditadu-
ras nesses últimos anos, tiveram ocasiáo de
verificar. A ditadura fala sózinha, o povo
ouve: ouve e fica sabendo pelo rádio e pelos
j ornáis que o ditador falou em seu nome, isto
é, que as palavras do ditador foram aquelas
mesmas que o povo diria se tivesse voz, e que,
de fato, disse através da ventriloquia totali-
tária. Antes de verificar se a ditadura é boa
em matéria de esgotos, luz, água e mesmo
páo, é preciso resolver essa quiestáo funda-
mental: se é possível uma sociedade humana
onde falta a lei da promessa e da recipro-
cidade.
Evidentemente, eu náo posso discutir em
térmos de teología moral com desembarca-
dos individuos que, logo de inicio, recusam
os primeiros principios do jógo. Mas posso
fazer um apelo para que considerem o fenó-
meno da memória em sua máxima singeleza.
Seja como fór e para o que fór, o homem é
PARA NAO SER BÁRBARO. 185

um ente que registra, que recorda, que tem


saudades, que se arrepende, que usa cadernos
de enderecos e de aniversários, e que, náo
tendo mais nada para celebrar, celebra a data
da vitória da revolucáo vermelha. É pos-
sível que uma análise perfectamente cientí-
fica venha provar um dia que a memoria dos
homens é semelhante á dos gatos; mas nesse
caso eu pergunto, com Chesterton, por que
diacho deverá ésse animal, que tem a pura
memoria das visceras, arriscar a vida e bater-
se com denodo pelas bandeiras que ainda náo
foram desenliadas e que o vento do porvir
desfraldará. Se a memoria do homem náo é
moral, por que o será sua esperanca? No
dia que eu admitir minha perfeita animali-
dade e me convencer de que náo devo pagar
uma divida contraída há dois meses, e da qual
o amigo náo quis outro documento além de
minha palavra, náo me irei embaracar com
delicados sentimentos a respeito das futuras
geragóes. Como é possível desprezar a memo-
ria e honrar a esperanza?
Se eu fósse materialista já consideraría
bastante opressiva a idéia de morrer para
agravar ainda com a idéia de morre deson-
rado; náo querer ia venerar reliquias, mas
também náo desejaria que meus ossos se co-
brissem com o vexame de minha inculta era.
Se eu fósse materialista seria indiferente aos
esqueletos, mas também o sería aos unborn
babies. Mandaría ás favas os juramentos mas
náo formularia novos juramentos, e prezaria
ainda menos o solene compromisso que meus
186 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

bisnetos esperam de mim. Eu seria, em suma,


indiferente ao futuro.
O fututro é uma parede branca onde qualquer um
pode escrever seu nome táo grande quanto queira: o
passado, eu já o acho coberto com sinais ilegíveis tais
como Platáo, Isaías, Shakespeare, Miguel Angelo, Napo-
leáo. Posso fazer o futuro táo pequeño como eu mesmo
o sou; o passado é por fórga táo largo e turbulento como
a humanidade. O resultado final da atitude moderna
é realmente éste: os homens inventam novos ideáis por
náo ousarem atingir os antigos. Olham para a frente
com entusiasmo, porque tém médo de olhar para trás.
Náo há uma revolugáo na história que nao tenha sido
uma restauragáo, e entre as muitas coisas que me dei-
xam desconfiado a respeito do hábito moderno de fixar
os olhos no futuro, nenhuma é táo forte quanto esta:
todos os homens na História, que fizeram aiguma coisa
pelo futuro, tinham os olhos postos no passado. Náo
preciso citar a Renascenga, pois seu próprio nome in-
dica o seu sentido. A originalidade de Miguel Angelo,
como a de Shakespeare, comegou pela exumagáo de
velhos vasos e velhos manuscritos, e o arrebatamento
dos poetas surgia da suavidade dos antiquários. Do
mesmo modo, o grande ressurgimento medieval era uma
lembranga do Império Romano; a Reforma voltava-se
para a Biblia e para os tempos bíblicos; o movimento
litúrgico moderno volta-se para olhar os tempos patrís-
ticos, e ésse movimento, que muitos considerariam o
mais anárquico de todos, foi, nesse sentido, o mais con-
servador. Nunca o passado foi táo venerado pelos ho-
mens como no tempo da Revolugáo Francesa. Os revo-
lucionários invocaram as pequeñas repúblicas da anti-
guidade com a completa confianga do crente que invoca
os deuses. Os sans-culottes, como o nome indica, acre-
ditavam numa volta á simplicidade; acreditavam muito
piedosamente num passado remoto, ainda que o pudes-
sem considerar um passado mítico. Por algum estranho
motivo os homens plantaráo suas árvores frutiferas na
terra dos cemitérios. O homem só acha a vida entre
os mortos. O homem é um monstro disforme, que tem
os pés virados para a frente e o rosto para trás. Está
ñas suas maos fazer um futuro exuberante e gigantesco,
PARA NÁO SER BÁRBARO. 187

desde que pense no passado. Ao contrário, quando tenta


pensar no próprio futuro, sua mente se imbeciliza e se
reduz a uma ponta de alfinéte que alguns chamam de
Nirvana. O porvir é uma Medusa; o homem só o pode
ver espelhado na brilhante couraga do Outrora — litan-
do-o diretamente transforma-se em pedra.
A SUPERSTICÁO DO JURAMENTO
É impossível fugir á lei da memória e do
juramento. A maior parte dos rebeldes faz
questáo de jurar, ainda que seja um perjúrio.
Jura falso, mas jura. Esquece o primeiro e o
segundo juramento mas pronuncia o terceiro.
Esquece; mas esquece que esqueceu. Náo
cumpre, mas promete. Nenhuma nagáo do
mundo, em época alguma da história, assi-
nou tantos farrapos de papel como a Alema-
nha nazista. Nenhum govémo promete mais
do que o tiránico; nenhum homem formula-
ria mais minuciosas e complexas promessas
do que o sedutor.
Em política oportunista, cada decreto-lei
é um abuso mas também é uma promessa.
A primeira vista ésses repetidos compromis-
sos aparecem como puras manobras de um
esperto, que já está disposto a enganar. Eu
creio, porém, que o fenómeno é mais compli-
cado e confuso. Observando, por exemplo, a
muito divulgada fotografía da assinatura do
pacto russo-alemáo, descobre-se ñas fisiono-
mías de Ribentropp e Molotoff um sentimento
comum, algo de indefinido a que, na falta
de melhor, eu chamaría de candura contente.
Éles estáo visivelmente contentes com aquela
história do pacto. E creio ter adivinhado que
os dois inocentes comparsas, depois do saque
PARA NÁO SER BÁRBARO. 189

á Finlandia (que era uma necessidade mili-


tar) e da tortura da Polónia (que era outra
necessidade militar), estáo ali no cliché pen-
sando assim: “Os ingleses háo de ver que nós
também sabemos prestar juramentos.”
Há um delirio de jurar e perjurar, antes
que se atinja a casmurra etapa histórica em
que o próprio perjúrio deixe de ter algum sen-
tido. Assim e que os divorcistas só existem
porque créem de um modo desmedido e exas-
perado no rito do casamento. Muitos já sao
os casais que estáo de acórdo sóbre a inutili-
dade dos acórdos e que náo se dáo ao traba-
lho de encher colunas ou tribunas com suas
reivindicagóes. Mas o divorcista náo pertence
a essa categoría, “éle acredita a tal ponto no
juramento prestado sóbre reliquias que faz
questáo de perjurar sóbre reliquias.”
A mesma idéia de juramento, para Ches-
terton, está na raiz dos problemas interna-
cionais e dos problemas familiares. Do seu
The Superstition of Divorce, escrito pouco
depois de Barbarism of Berlin, destaco essa
passagem:
Podemos dizer que temos um apégo definitivo a
certas instituigóes, e provisório a outras. Andamos de
lo ja em loja í procura do que precisamos, mas náo
andamos assim de nagáo em nagfio, a menos que per-
tengamos a um certo grupo predesUnado aos pogroms.
No primeiro caso a nossa fórga é a ameaga de retirar-
mos a freguesia; no segundo caso é a ameaga de nunca
nos retirarmos e de pertencer á instituigáo até o íim.
Nos tempos difíceis em que as lojas perdem seus fre-
gueses, é que a cidade mais precisa de seus cidadáos, e
precisa déles para que a critiquem. Náo é necessário in-
sistir agora nessa capital exigéncia de uma dupla ener-
190 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

gia de reforma interna e de defesa externa; a espantosa


tragédia que escurece o mundo em nossos dias • é um
exemplo terrificante. O golpes nos martelam, pesados
e rápidos, enchendo o mundo de um trováo infernal; e
ainda há o fragor de alguma coisa que náo pode ser
quebrada, mais profundo e mais potente do que todas
as coisas que se quebram. Podemos maldizer os reis, du-
vidar dos capitáes, murmurar sóbre a aparente inexis-
tencia de nossos exércitos: sabemos entretanto que nos
mais sombríos dias que possam advir ninguém abando-
nará sua bandeira.
Passando agora da fidelidade á nagáo para a fideli-
dade á familia, náo pode haver dúvida a respeito de
uma diferenga evidente.
A familia é uma coisa muito mais livre. O jura-
mento de uma fidelidade voluntária, e entre todos os
votos de lealdade, o do matrimonio se distingue pelo
fato de ser também uma escolha. O homem, nesse caso,
náo é sómente o cidadáo de uma cidade: é ainda seu
fundador e seu construtor. Náo é sómente o soldado que
se bate pelas cores de seu país mas o artista que por si
mesmo as escolheu e as combinou, como as cores de um
vestido. E, se é admissível exigir déle que se mantenha
fiel á comunidade que o criou, náo será certamente um
exagéro esperar que se mantenha fiel á comunidade
que éle mesmo criou. Se a lealdade cívica é uma neces-
sidade, é também num certo sentido uma coagáo. Um
velho gracejo contra o patriotismo felicita o inglés pelo
refinado gósto que provou nascendo na Inglaterra. E
pode-se acrescentar: “Sim, porque éle poderia ter sido
um russo. ” O que é um argumento especioso; se bem
que já vivemos bastante para conhecer individuos que
julgam fácil virar russo. Ora, se o simples bom-senso
considera que uma fidelidade táo involuntária é natural,
por que náo há de considerar também natural, por mais
forte razáo, a fidelidade voluntária? O pequeño estado
fundado sóbre a diferenga de sexos é ao mesmo tempo
o mais voluntário e o mais natural dos estados autó-
nomos. De modo algum poderia o Sr. Brown ser um

* Em 1916, durante a primeira grande guerra.


PARA NÁO SER BÁRBARO. 191

russo; mas poderia acontecer perfectamente que a Sra.


Brown fósse a Sra Robinson.
Agora nao é difícil compreender por que essa pe-
quena comunidade, táo livre ñas suas causas, deve estar
táo ligada no que diz respeito aos seus efeitos. Náo é
difícil compreender que o juramento mais livremente
pronunciado deve ser mais firmemente guardado. Estáo
presas a éle, pela natureza das coisas, conseqüéncias
táo tremendas, que nenhum contrato lhe pode ser com-
parado. Nenhum contrato, a náo ser éste que se diz
assinado com sangue, chama as almas das insondáveis
profundezas e traz querubins (ou demonios) para povoar
um bangaló moderno. Náo há trago de pena capaz de
criar verdadeiros corpos e verdadeiras almas, ou capaz
de trazer á tona da vida os personagens de uma novela.
Essa instituigáo que tanto perturba os intelectuais pode
ser explicada por um simples fato material que até um
intelectual compreenderá: os filhos, talando de um modo
geral, sáo mais mogos do que os pais. “Até que a morte
nos separe” náo é uma fórmula irracional, pois os que
a pronunciam morreráo certamente antes de ver a me-
tade da maravilhosa (ou alarmante) coisa que fizeram.
Defendendo o casamento e a familia con-
tra uma onda de divorcismo produzida pela
guerra, Chesterton náo insiste na principal
razáo da indissolubilidade do matrimonio,
que é o seu caráter sacramental, porque essa
razáo, e todo o plano em que ela se coloca,
náo sáo admitidos pelo divorcista. Sua argu-
mentagáo estaria viciada na origem, mesmo
sendo a origem verdadeira. A argumentagáo,
como os convites e cartas, náo pode ignorar
o destinatário e náo deve proceder de um
principio que éle recusa. Mas a recusa de
uma verdade náo corta todas as possibilida-
des de comunicagáo, uma vez que é impossí-
vel alguém recusar tudo. Chesterton, crendo
na significagáo e na eficácia do sacramento,
192 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

eré, por isso mesmo, na adequagao entre o


sacramento e a natureza humana. Como o
perdáo de Deus, no sacramento da penitén-
cia, náo encontraría ponto de contato e seria
uma coisa inútil e perdida, se náo existisse
no homem a capacidade de arrependimento
e o desejo de vida eterna, a instituigáo sacra-
mental do casamento, ainda que um deus a
houvesse promulgado, seria uma coisa abs-
trata e vagamente disponível, se náo existisse
no coragáo humano o desejo de uma uniáo
duradoura. Se a uniáo dos sexos fósse algo
como um cruzeiro de turistas no Mediterrá-
neo, o casamento indissolúvel náo teria ne-
nhum sentido dentro de nossa humanidade,
porque nunca se notou nos homens a tendén-
cia pertinaz, resistente ás épocas e aos costu-
mes, de empreenderem aos pares uma viagem
até a morte.
Entre um de nós e o mais ardente divor-
cista há, como ponto de contato, o mesmo
empenho em valorizar o casamento. O divor-
cista, como Chesterton notou muito finamen-
te, eré no casamento, em alguma coisa do
casamento; e eré cegamente, como um su-
persticioso. A retórica chestertoniana pro-
cura, como é boa regra, o ponto misterioso
e sensível em que éle e o adversário se pos-
sam encontrar simplesmente como homens, e,
possivelmente, como irmáos. Aliás, em toda
a sua obra, éle náo tem outro empenho e náo
procura outro fundamento. Confia generosa-
mente na permanente possibilidade de uma
recuperagáo, no dominio da inteligéncia e no
dominio moral. Enquanto há vida, há essa
PARA NÁO SER BÁRBARO. 193

possibilidade de recuperar, e assim como es-


pera que um campeáo do divorcio possa um
dia compreender o que é o casamento, tam-
bém, com a mesma fórga, éle espera que dois
esposos possam sempre restaurar a pericli-
tante ligagáo gragas ao juramento pronun-
ciado diante do altar.
O mundo, éle bem o sabe, é um lugar de
reparagóes. Campo de batalha, se quiserem,
mas também um campo de reconciliagóes e
restauragóes. Cada um de nós, assim como
vive tapando daqui e cortando dali, no den-
tista ou no barbeiro, vive também no campo
das cerziduras invisíveis, como escudeiro da
própria alma. Enquanto Quixote desfere cuti-
ladas, Panga costura e prepara compressas.
E enquanto houver um alentó de vida haverá
sempre um pouco de fio para atar e bálsamo
para pensar. Ora, o casamento, sob ésse ponto-
de-vista, é uma instituigáo particularmente
salutar. Cada um é escudeiro do outro, como
se o outro fósse sua própria alma. Cada um
é Sancho Panga de um D. Quixote que muitas
vézes passa a medida da sandice, pois náo há
piores loucuras do que as praticadas pelos
sujeitos imperfeitamente loucos.
Para defender essa instituigáo em todos
os seus absurdos aspectos, e náo podendo efi-
cazmente salientar a verdade do sacramento,
Chesterton náo cai no érro elementar de lan-
gar máo das vantagens puramente materiais.
Naturalmente, no sentido em que o materia-
lista toma essa palavra, o casamento é uma
emprésa que náo se justifica. É obvio que todos
os entes humanos querem ser felizes. Náo tem
194 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

a vida outro sentido senáo a perpétua busca


da ventura. Corremos mundo, resolvemos es-
cavanes, deseemos crateras, sondamo-nos, es-
piamos atentamente dentro dos olhos alheios,
seguimos a pista das vidas, na ansia de des-
cobrir finalmente o tesouro escondido. Há
pérolas no fundo dos mares e dracmas per-
didos. E’ claro pois, claríssimo, que os homens
querem ser felizes. Ao tomarmos, porém, ésse
ponto comum como inicio de argumentagáo,
o divorcista entrará em convulsóes estatísti-
cas para nos provar que a maior parte dos
casamentos torna o homem infeliz. Certas
ou erradas as estatísticas, acabaríamos no
mais baixo nivel intelectual (mais baixo do
que as próprias estatísticas) se fóssemos tam-
bém enumerar casos e cometer indiscrigóes.
Ou deveríamos entáo brandir, diante do des-
crente, a nossa convicgáo de que a felicidade
só é perfeita no céu. Essa idéia é, sem dúvida,
verdadeira. Nela pomos todo o fervor, toda a
esperanga, e temos dez mil razóes razoáveis
para crer que é verdadeira. Mas a palavra
de Deus náo é uma pedra. Se quiséssemos
escolher outra coisa em todo o universo, mais
tenra e mais aceitável, náo precisaríamos pro-
curar muito, porque Éle próprio a escolheu:
sua palavra é um páo. Isso mesmo, porém,
já foi julgado duro de mais.
Há certas recusas, diretas, pessoais, que
eliminam qualquer possibilidade de um en-
tendimento. Mas quem escreve supóe tódas
as dificuldades menos essa; ou melhor, ainda
que a admita, náo é em fungáo déla que es-
creve. Por isso, náo pode atirar a verdade
PARA NÁO SER BÁRBARO. 195

como uma pedrada, sem adaptad0 e sem pre-


paragáo. As maiores verdades do Evangelho,
postas assim num bodoque polémico, se trans-
formariam num séco e duro vacábulo humano
que lapida antes de converter.
No dominio de um problema que interessa
o homem, como o casamento, e no decurso
de uma argumentado digna, que náo con-
sinta em fazer cócegas nos sentimentos, é di-
fícil escolher com acertó o elemento comum
indispensável para que o bom combate possa
terminar numa reconciliagáo. E’ difícil desco-
brir o golpe que move e que como ve. No caso
do divórcio, náo podendo ficar no nivel da
terra, e náo podendo levar o adversário até
as alturas do céu, Chesterton escolheu, como
moeda comum, essa coisa misteriosa, — a fi-
delidade ao juramento — táo absurda como
o próprio casamento e táo forte como o desejo
da felicidade; escolheu essa pequenina coisa
que sempre acompanhou os homens e que fica
entre o céu e a terra, ou melhor, que une
a terra ao céu como o fumo das lámpadas
votivas.
A HISTORIA DO JURAMENTO

Éste capítulo é inteiramente tirado do


livro The Superstition of Divorce, e diz res-
peito, como o título indica, á história dessa
manía que em todos os tempos levou os ho-
mens aos lagos voluntários.
Charles Lamb, com seu belo instinto fantasista
para aproximagóes que também sáo contrastes, obser-
vou certa vez um contraste entre Sáo Valentim e os
valentinos. Aparentemente há tuna cómica incongrui-
dade em associar um costume de festivos e frívolos
namoros ao dia e ao nome de um bispo ascético e celi-
batário da Idade Média. O paradoxo presta-se ao tra-
tamento que lhe deu aquéle autor, e há uma verdade
no que éle disse. Talvez parega mais paradoxal dizer
que náo há paradoxo. Em tais casos a aproximagáo se
afigura mais provocadora do que a separagáo, podendo
parecer uma ociosa contradicáo negar a contradigáo.
Mesmo assim, na verdade, náo existe a contradigáo.
Num sentido mais profundo, existe uma semelhanga
verdadeira, pela qual Sáo Valentim e os valentinos estáo
unidos em oposigáo ao mundo moderno. Eu hesitaría
em pedir, mesmo a um professor alemáo, que fizesse
um estudo sistemático de todos os valentinos do mundo
com o objetivo de formular o principio filosófico que os
governa. Mas se ésse estudo fósse feito, náo tenho dú-
vidas quanto ao principio filosófico que seria descoberto.
Ainda que se considere banal ou imbécil, vulgar, insípi-
do ou estereotipado, o aspecto de que se reveste o fenó-
meno, há sempre néle uma idéia, a mesma idéia que
leva os namorados a gravarem laboriosamente suas ini-
ciáis ñas árvores e ñas rochas, numa espécie de mono-
PARA NÁO SER BÁRBARO. 197

grama da monogamia. Talvez seja uma molecagem ou


uma infragáo de gósto discutível essa manía de publicar
seu amor numa árvore: Orlando, entretanto, o féz, e hoje
seria certamente préso pela polícia por estar infringindo
os regulamentos da floresta de Ardennes. Náo é aqui
meu intento recomendar esse hábito de se gravar nome
e enderezo, em enormes letras, na fachada do Parte-
non, na testa da Esfinge ou em qualquer outro lugar
onde haja uma oportunidade de despertar o interésse
sentimental da posteridade. Mas ésse hábito popular,
como muitos outros que encontramos em Shakespeare,
tem uma significagao que um poeta menas popular,
Shelley, por exemplo, deixaria passar despercebida. Há
uma verdade muito permanente no fato de que duas
pessoas livres procurem, deliberadamente, se enlagar
num tronco de árvore. E’ a idéia de se enlagar alguém
a alguma coisa que corre através de tóda a velha ale-
goría do amor numa guirlanda de cadeias. Encontramos
sempre essa nogáo de coragóes encadeados juntos, ou
flechados juntos, ou de algum outro modo seguros um
no outro; há uma idéia de seguranga que pode ser cha-
mada cativeiro. Náo vem ao caso considerar aqui que essa
seguranga freqüentemente falha; o que importa é notar
que qualquer filosofía sóbre o sexo falhará se náo levar
em conta o apetite de fixidez e constancia do amor,
mesmo ñas suas experiéncias malogradas. Nada obriga-
va Orlando a se comprometer com um juramento na
primeira árvore que encontrou. Éle náo estava obrigado
a se obrigar; está constrangido mas ninguém o cons-
trange a se constranger. Em suma, Orlando féz voto
de se casar exatamente como Valentim féz voto de náo se
casar. E nenhum asceta, ñas mais violentas reagóes de
ascetismo, poderia dizer, sem se tornar herético, nue o
juramento de Orlando náo era táo legítimo como o jura-
mento de Valentim. Mas é digno de nota que, mesmo
náo sendo legal ou legítimo, ainda seria um juramento.
Através de tóda a cultura medieval que nos legou a lenda
do romance, corre aquéle desenho de cadeias que liga-
vam, mesmo quando náo tinham o poder legal. Os amó-
res ilegítimos das lendas medievais tém uma lei e sobre-
tudo uma lealdade que lhes sáo particulares, como ñas
histórias de Tristáo ou Lancelote. Pode-se dizer, nesse
sentido, que a libertinagem medieval tinha regras mais
198 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

estritas do que o casamento moderno. Náo estou discu-


tindo aqui a moral moderna ou medieval, seus princi-
pios ou os que deveriam ter. Estou apenas notando, como
um fato histórico, a insistencia da imaginagáo medie-
val, mesmo nos seus grandes desvarios sóbre uma certa
idéia: a idéia do juramento. Ésse juramento podía ser o
de Sáo Valentim, ou o juramento menos grave que o
santo bispo considerava legítimo; ou o juramento desati-
nado que éle considerava inteiramente ilegítimo. Tóda
aquela sociedade táo festiva que nos legou tais tradi-
góes estava impregnada da idéia do voto; e somos for-
jados a reconhecer que essa nogáo, ainda que a julgue-
mos insensata, caracteriza tóda uma civilizagáo. Foi isso
que Valentim e os valentinos exprimiram, ainda o;ue di-
gamos que ambos exageravam ou que exageravam o con-
traste. Aquéles extremos se encontram, e se encontram
no mesmo lugar. O ponto de encontro era junto da ár-
vore em que os namorados penduravam suas cartas de
amor. E se o próprio namorado se pendurava na ár-
vore, em lugar de suas composigóes literárias, éste ato
ainda conservava um indefinível sabor irrevogável.
Foi muitas vézes dito, pelos críticos das origens cris-
tás, que certas festas rituais, procissóes ou dangas, eram
de origem pagá. Poderiam dizer, com o mesmo funda-
mento, que nossas pernas sáo de origem pagá. Ninguém
até hoje contestou que a humanidade tenha sido humana
antes de ser crista; e nenhuma igreja fabricou pernas para
que os homens caminhassem ou dangassem, numa peregri-
nagáo ou num bailado. O que pode ser realmente sus-
tentado com perfeita convicgáo, é que a Igreja, por onde
passou, preservou náo sómente as procissóes, mas as dan-
gas; náo sómente a catedral, mas o carnaval. Uma das
principáis reivindicagóes da civilizagáo crista é o ter
preservado as coisas de origem pagá. Em suma, nos velhoe
países religiosos os homens continuam a dangar, enquanto
que ñas novas cidades científicas éles se contentam em
tremer.
Mas, adquirida essa visáo mais sadia da história,
ainda resta alguma coisa mais mística e mais difícil de
se definir. As próprias coisas pagás sáo cristás, quando
foram preservadas pelo cristianismo. A cavalaria é visl-
velmente diferente da virtus de Virgilio. A caridade é
excessivamente diferente da piedade simples de Ho-
PARA NAO SER BÁRBARO. 199

mero. Mesmo o nosso patriotismo é algo mais sutil do


que o amor indiviso pela cidade; e a tiansformagáo é
sentida ñas coisas mais permanentes, como na admira-
Cáo por uma paisagem e no amor por uma mulher. T6-
das essas diferenciagoes sáo desesperadamente difíceis
de serem definidas. Mas eu sugeriria aqui um elemento
dessas transformares que tem sido desprezado demais e
que nao o devia ser: a natureza de um juramento.
Poderia exprimi-lo dizendo que a antiguidade paga foi a
época do status; que a Idade Média crista foi a época
dos juramentos; e que a modernidade céptica tem sido a
época dos contratos, ou melhor, féz por ser, mas falliou.
O CONTRATO

Diante dessas amostras de idéia de Ches-


terton sóbre o juramento (que talvez pudes-
sem ser mais bem escolhidas do que o fiz e
que o leitor aprenderá em tóda a extensáo
se procurar a própria fonte) eu imagino, por
experiencia, a possibilidade de uma reacáo
especial, contra a qual devemos nos acaute-
lar. Imagino no semblante do leitor o sorriso
semelhante ao das pessoas bem informadas,
quando se referem ao Papai Noel, ou á cego-
nha que traz crianga no bico. O sentimento
que anima tal sorriso é mais complexo do
que se afigura á primeira vista. Em relagáo
á idéia de juramento, éle poderia ser tradu-
zido mais ou menos assim: “Essa idéia é muito
clara, muito simples, muito compreensível,
mas é uma utopia.”
Ora, eu quero mostrar que essa fórmula
está duplamente errada: na verdade, o jura-
mento náo é táo compreensível quanto parece,
nem táo simples, nem táo claro; mas, em com-
pensagáo, é perfeitamente praticável e, mal
ou bem, todo o mundo o pratica. Podendo ser
praticado por um homem rústico, o juramen-
to para ser pensado exige a mobilizagáo dos
mais finos recursos da inteligéncia; e, por
mais atento que seja o observador, ficará uma
enorme regiáo da idéia fora do seu campo
PARA NÁO SER BÁRBARO. 201

visual. Sobrará sempre; nunca será inteira-


mente sabida; nunca será esgotada. Em suma,
o juramento é um mistério: vitalmente acessí-
vel; intelectualmente inesgotável. Exatamen-
te ao contrário do que um leitor de idéias es-
tereotipadas estaría pensando.
Há poucos instantes talamos do desejo de
felicidade, sobre o qual todo o mundo está
de acórdo: agora estamos diante da idéia de
juramento e de sua importáncia na estabili-
dade das instituigóes. Tentando conciliar as
duas coisas, ou colocá-las ao menos em pé
de igualdade, encontraremos obstáculos inte-
lectuais irremovíveis. Náo conseguiremos ra-
ciocinar de modo cabal admitindo duas coisas
com equivalente ponderagáo. Se o homem
deve agir a cada instante como lhe parece
mais lucrativo ou agradável, evidentemente
náo poderá fazer promessas.
E a promessa que incluísse cláusulas de
caducidade por pura conveniéncia náo seria
uma promessa; quando muito seria um pro-
grama. O homem que perjura e jura pela
segunda ou terceira vez, ou que funda um
novo lar baseado na desuniáo do antigo, tem
sempre o propósito de manter o novo jura-
mento, por falso que seja em relagáo ao pas-
sado e se náo tem ésse propósito entáo náo
houve juramento algum, mesmo falso. A idéia
de juramento está indissolüvelmente ligada
á idéia de sacrificio aceito de antemáo, e é
claro (isto sim, é claríssimo) que desaparece
o juramento onde náo houver o propósito de
manté-lo nos maus dias. Náo é possível, pois,
manter em pé de igualdade o desejo da felici-
202 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

dade e o voto. Por mais forte razáo náo é


possível estabelecer o primado da convenién-
cia que destrói instantáneamente a nogáo de
promessa. Logo, se o juramente existe, se é
viável, se é praticável, éle só pode ser com-
preendido, no plano natural, como um ele-
mento vitorioso sóbre o que os homens tém de
mais caro, isto é, o desejo de felicidade. Resta,
pois, escolher entre duas alternativas: ou fica
o homem entregue á pura conveniéncia, tor-
nando-se, segundo Chesterton, um bárbaro;
ou a promessa deve ser colocada mais alto do
que a conveniéncia, e sómente submetida a
uma felicidade de outra ordem.
Entre ésses dois absolutos, ou entre o
absoluto e a absoluta relatividade, a chama-
da civilizacáo moderna, de Rousseau para cá,
tentou inventar um meio térmo, isto é, uma
relatividade relativa; e apelou para a nogáo
de contrato. Náo sómente a vida política,
mas a vida privada e familiar procurou uma
firmeza nessa nova base. O divorcista grita
em nossos ouvidos que o casamento náo passa
de um contrato, náo sendo absurdo, portanto,
desejar que possa ser dissolvido como qual-
quer outro. E’ meu intento agora demonstrar
que ésses que tanto falam em contrato náo
sabem o que seja ésse esquisito objeto. Muitas
vézes uma palavra nova indica simplesmente
um espirito diferente com que se toma uma
coisa antiga. E tal é o caso com o contrato.
Realmente, o que todo o mundo entende hoje
por contrato é um instrumento defensivo,
protetor e acautelador contra a incurável
safadeza humana. Quando o advogado diz
PARA NÁO SER BÁRBARO. 203

ao seu cliente em torn severo: “Vamos botar


o préto no branco”, está resumindo nessas
palavras tóda a pretidáo da nossa natureza
e submetendo-lhe a pouca brancura que
nos reste.
Vou incorrer no risco de passar, mais uma
vez, por utópico e sonhador, dizendo o que é
realmente um contrato: o contrato é a for-
mulagáo de uma confianga. O primeiro e
primordial sentido do contrato é ser o regis-
tro de uma promessa. Essa é sua esséncia,
seu conteúdo positivo, seu aspecto branco.
A primeira e primária coisa que eu devo ver
num contrato é o que prometi. Por mais fan-
tástica e irreal que parega essa concepgáo,
ela realmente consiste em ver primeiro o que
é visível, viável e positivo, e depois entáo o
defeito, a falha e a crise. O homem com saúde
é um homem com saúde e náo um virtual
doente, que ainda se acha no imperfeito estado
de indeterminagáo clínica. Todas as coisas
do mundo tém um aspecto de vida e um as-
pecto de morte: no contrato, o aspecto de
vida é exatamente aquela misteriosa dispo-
sigáo de cumprir o que ficou prometido. Em
todos os tempos os homens formularam con-
tratos escritos, inclusive ñas árvores, como
Chesterton se cansou de mostrar; mas náo
passava pelo espirito de um namorado medie-
val que sua namorada pudesse instaurar um
processo baseado em duas iniciáis entrelaga-
das num tronco de árvore. Hoje, nos Estados
Unidos, um namorado pode ser convidado
pelo juiz a um casamento forgado ou a uma
multa, pelo fato de ter escrito uma carta
204 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

prometendo casamento. Náo quero diminuir


de modo algum a importáncia das institui-
góes que protegem o cidadáo ou a cidadá con-
tra as violagóes de promessas; o que eu quero
criticar é o estado de espirito reinante que
já comega por ver na promessa o instrumento
de reivindicagáo legal, e que já póe ñas car-
tas de amor um indefinível odor de sala de
polícia.
Os juramentos mais solenes sáo geral-
mente escritos. O monge escreve seu voto e
coloca o papel sobre o altar. Difícilmente pas-
sará pelo espirito de alguém que assista á ce-
rimónia a idéia de que aquéle papel é uma
garantia com que o abade se arma para uma
possível infidelidade do neoprofesso. A idéia
de escrever, de formular concretamente, é
muito antiga e tem relagáo com a própria
natureza do homem que tende sempre a se
fixar em coisas concretas. O culto da me-
mória é um culto de registros e náo sómente
de lembrangas psicológicas. O valor da lem-
branga escrita, o primeiro e positivo valor,
diz respeito a quem o escreveu.
O liberal, que ainda náo se desprendeu
inteiramente de uma nogáo moral, e que re-
conhece a validez das instituigóes, costuma
dizer que a cada direito corresponde um de-
ver; ora, o pensamento genuino de um sujeito
que assina um contrato com um espirito, di-
gamos medieval, é um pouco diferente. Éle
pensará que a cada dever corresponde um
direito. O mais insignificante e obscuro con-
trato, para a fundagáo de um botequim ou
para o aluguel de uma bicicleta, tem como
PARA NÁO SER BÁRBARO.
205

elemento positivo e primordial essa disposi-


gáo humana, embora tantas vézes falhada,
de cumprir o que prometeu. Evidentemente,
a organizado social, com seus instrumentos
e instituigoes, deve levar em conta a fraude
e todas as variadas conseqüéncias do pecado
original. Que devam existir leis, juízes, poli-
cía e prisáo, é uma coisa; outra é ter a sub-
versiva filosofía que atribuí o primado ao que
é negativo, porque essa filosofía, com seu con-
junto de principios, explorará mal, num sen-
tido errado, cada tendéncia disponível que
surja no seio da sociedade, e a arrastará in-
falivelmente para uma completa ruina, em
que o primado do mal seja realmente um fato
convincente. A reta filosofía, embora náo pa-
rega ter a menor utilidade para os homens
que se dizem práticos, é na realidade a única
coisa prática que existe, porque é ela que per-
mite as recuperagoes no reto sentido, cada
vez que o homem dispde de uma boa margem
de liberdade.
A concepgáo negativa do contrato, pela
qual éle é antes de mais nada um instrumento
de garantía e um documento para um even-
tual processo, ou mesmo uma espécie de re-
présa contra os instintos bestiais do locatário
ou do noivo, — equivale a transformar o di-
reito numa técnica. O contrato, nessa con-
cepgáo, é um instrumento técnico, semelhante
a uma peina mecánica. Ora, é fácil compre-
ender que essa nogáo significa apenas um pro-
gressive deslocamento da confianga. Negada
completamente ao vizinho, transfere-se com-
pletamente para a sociedade; e nessa transfe-
206 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

réncia perde o sentido moral e ganha em sen-


tido técnico. E quanto mais total fór a trans-
feréncia, mais totalitário será o Estado, que
recolhe ñas rúas todo ésse imenso sufrágio
que os homens deviam partilhar entre si. E
tornado totalitário o Estado, entáo — é claro!
— éle náo precisa mais de outro critério, senáo
o de sua maciza e irresponsável conveniéncia
de leviatá.
DIÁLOGO SEM PRINCIPIO NEM FIM

Os personagens tém os nomes de batismo


de Chesterton e Shaw, mas isso náo quer
absolutamente dizer que ésses autores endos-
sariam as palavras do diálogo. Cenário qual-
quer.

BERNARDO

Náo! Voltemos á questáo. O casamento é


um acórdo a dois, chame-o com o nome que
quiser. Para mim é um contrato. Ora, náo
há um só acórdo no mundo que náo contenha
a previsáo de uma falha e da conseqüente
rescisáo. Concordo que o primeiro pensamen-
to dos noivos seja outro, e náo ignoro que a
antiga lenda do homem insiste nessa idéia
de amor eterno. Mas isso que vocé chama
de antigo instinto eu chamo de antigo equí-
voco, e náo estou longe de seus dogmas que
se referem a um antiqüíssimo equívoco. Na
verdade, táo perene na historia tem sido a
esperanza como o desengano. Parece claro
que o elemento positivo deve ser o mais im-
portante, mas por que, sim, por que diz vocé
que a esperanza é um elemento positivo? Eu
sempre ouvi dizer que a prudencia consistía
em levar em conta, cuidadosamente, essas
coisas que vocé chama de negativas, e creio
mesmo, se náo me trai a memória, que há
208 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

uma palavra a ésse respeito nos seus evan-


gelhos. Náo. Eu náo acho mal basear certos
atos, e, principalmente, os mais graves, sobre
o negrume dos homens, uma vez que éle existe
e que é o elemento operativo.. . Náo sei se
me entende. Eu quero dizer o seguinte:
enquanto tudo vai bem, náo precisamos de
normas. A regra, o cálculo, as providencias,
as leis, tudo isso só entra em jógo quando a
trapaga humana poe a cabega de fora. Logo,
por mais bonitas e poéticas que sejam suas
razóes, a formulagáo de um contrato é pri-
mordialmente uma defesa do homem...

GILBERTO

Perdáo. Mas eu náo disse outra coisa.


A primeira idéia do contrato é a defesa do
homem; apenas, para mim, a primeira das
defesas que considero é a de quem promete...

BERNARDO

Espere. Essa objegáo náo me emociona.


Voltarei a ela. No momento, a conclusáo que
me parece inevitável é essa: o casamento se
parece em todos os pontos com um contrato,
todos os contratos sáo dissolúveis, logo, con-
cluí vocé, o casamento deve ser indissolúvel!

GILBERTO

Ouga. Eu náo vou responder ao que vocé


acabou de dizer. Há pelo menos, em seu dis-
curso, sete ou oito proposigóes discutíveis.
PARA NÁO SER BÁRBARO. 209

Eu proponho uma coisa mais simples. Sente-


mo-nos, ali, junto á mesa, e tentemos redigir
uma boa minuta para um contrato de casa-
mento. Vocé sabe que eu tenho uma certa
prática disso, pois já aluguei duas vézes uma
casa mobilada ao passar o veráo em Petró-
polis. Nesses contratos, o locatário recebe do
proprietário uma lista minuciosa das pegas
que vai usar, e toma o compromisso de repor
tudo em seu perfeito estado. Responderá pelo
que quebrar ou rasgar. Limpará o que sujar.
Consertará o que avariar. Ora, vejamos como
havemos de redigir essa minuta de contrato
de casamento dentro daquele mesmo espiri-
to... Aliás, antes disso convém esclarecer um
ponto: náo seria melhor e mais fácil fazer
o contrato com um determinado prazo? Ou
prefere que o prazo fique indeterminado e
que cuidemos das cláusulas de rescisáo? Bom.
Vocé náo tem opiniáo fixada a ésse respeito,
mas eu creio que no seu ponto-de-vista fica
melhor deixar o prazo de lado e cuidar das
cláusulas de rescisáo. Como seráo elas? Va-
mos fazer uma coisa: cada um vai lembrando
aquela que lhe parecer boa, quer? Eu sugiro,
por exemplo: o casamento deve ser declarado
nulo se um dos cónjuges revelar uma incli-
nagáo para o canto trazida sob disfarce du-
rante o tempo de noivado. Ou entáo esta: se
um déles achar a fé; ou entáo se perder a
fé. Ou se ficar doente. Ou se revelar uma
tardía vocagáo de escritor. Ou se náo nas-
cerem filhos. Ou se houver uma acentuada
tendencia para nascerem filhos de mais. Se
o filho tiver ólho azul; ou náo tiver. Se uma
210 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

tia de mau g€nio ultrapassar em idade o


valor médio atribuido pelas estatísticas...
Ou entáo, se quiser, podemos consultar aquela
historia da baratinha, porque uma das coisas
que difícilmente um noivo informa á noiva
é o seu modo de dormir.

BERNARDO

Tudo isso é inteiramente absurdo.


GILBERTO

Meu caro, eu posso resumir em poucas


palavras: o casamento é a coisa mais impre-
visível do mundo.

BERNARDO

Mas náo é por isso que eu digo que é


absurda a sua argumentado. Há um peque-
nino detalhe que escapou á sua luxuriante
falta de lógica. A dissolugáo do casamento,
que imagino, e aquela que geralmente é pro-
curada, náo se prende a ésses detalhes, por-
que ambos querem se separar. Nesse ponto
as separagóes sáo sempre amigáveis. O liti-
gio, onde há, gira em torno da pensáo, ou de
quem fica com o filho, mas é difícil imaginar
o caso de um só querer se separar. Já se vé
que náo é preciso estipular tantas condigoes
grotescas, uma vez que nenhuma das partes
vai insistir doentiamente em ficar casada com
a outra que a repele. De mais a mais, por
amor ao método, podemos deixá-los de lado,
PARA NÁO SER BÁRBARO. 211

ainda que existam e que sejam freqüentes


ésses casos. Basta-me no momento que o ca-
samento seja indissolúvel no caso em que
ambas as partes este jam de acórdo. E náo lhe
oculto (digo lealmente), que, assim fazendo,
eu quero abrir uma brecha em seu sistema
e entrar por ela a dentro, como um vencedor.
Basta-me uma brecha. Basta-me um caso.
Eu estou agora do lado do sim, vocé do lado
do náo, de modo que basta um miligrama de
substáncia para que o sim tenha razáo. E ai
está: eu náo fago questáo de detalhes, dos
numerosíssimos motivos e de sua história da
baratinha. Os dois estáo de acórdo em se
divorciarem; e se assim é, por quais motivos,
sagrados ou profanos, celestiais ou infernáis,
devem ésses dois continuar morando juntos,
uma vez que náo querem morar juntos?

GILBERTO

Bernardo, vocé pode ter razáo em cada


frase que diz. Mas o indispensável, numa
questáo dessas, é ter razáo sempre do mesmo
modo, ao longo da conversagáo. Vocé come-
gou por equiparar o casamento a um contrato
e eu me dispus a acompanhar seus motivos.
Agora, súbitamente, o casamento toma um
aspecto ligeiramente diverso. Em outras pa-
lavras eu tentarei um resumo de nossas últi-
mas posigóes. Para mim, por tais ou quais
motivos, o casamento é mais do que um con-
trato e por isso eu acho que o casamento
indissolúvel, embora absurdo, é razoável; para
vocé o casamento comegou sendo um mero
212 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

contrato e acabou sendo menos do que um


contrato porque nem precisa de uma formu-
lagáo cuidadosa, o que me parece igualmente
absurdo, mas muito menos razoável. Falando
como homem prático (náo se ria!), eu estou
inclinado a pensar que o cuidado do contrato
deve crescer em proporgáo com os valores em
jógo. Pelo que acabou de dizer, o casamento
tem para vocé a importáncia de um aluguel
de bicicleta, que geralmente dispensa papel
e testemunhas. O casamento náo tem valor.
Estou pronto a compreender essa nova po-
sigáo; mas, nesse caso, a lógica obriga ao
desinterésse. Se o casamento náo tem valor,
o divorcio também náo tem; e, nesse caso,
é melhor falarmos de outra coisa e deixarmos
correr a vida...

BERNARDO

Mas a vida tem valor! Ésse é o meu ponto.


A vida tem valor! Tem um imenso valor. Um
valor que náo pode, sequer, sofrer compa-
ragáo. E vocés, com essa manigáncia de Vida
Eterna... Desculpe-me. Eu quero dizer que
vocés empreenderam a conversáo do mundo
para o pior dos negocios; a troca de um tudo
por um nada. Pode vocé imaginar o que seja,
na hora da morte, a descoberta de um logro
monumental?

GILBERTO

Eu tremo de pensar nisso. Num sentido


ligeiramente diverso...
PARA NÁO SER BÁRBARO. 213

BERNARDO

Minha religiáo é a da Vida. A da vida


plena, multiplicada, desdobrada, dilatada, tor-
nada verdadeiramente uma Vida Eterna pela
fórga da Intensidade, e náo pelo tempo. E
dói-me ver ésse massacre de existencia em
nome de uma mera hipótese; sim, de uma
hipótese. Por maior que vocé faga o Deus
que o féz, éle náo passa de uma onipotente
hipótese. A vida náo é uma hipótese. Eu
respiro. Eu ougo meu coragáo bater. Olha,
poe a máo aqui, escuta como éle bate: tuc,
tuc, tuc... E o fígado? O fígado, meu caro,
é uma maravilha silenciosa! Prefiro o fígado
ao coragáo; o coragáo, só agora o vejo, tem
qualquer coisa de cabotino com seu rufar que
chama a atengáo. A vida é profunda e silen-
ciosa como uma paisagem de montanhas ao
entardecer. E’ um abismo que nós carrega-
mos, um infinito de que estamos encharcados,
como se tivéssemos caído num mundo subma-
rino, e andássemos por ai, salvos, arrancados,
arrastando atrás de nós uma imensidade de
algas, de estrélas-do-mar, e de animais fos-
forescentes ... E qual é a lei da vida? A lei
n.° 1 da vida? A lei das leis da vida? Eu vou
te dizer: a re-cu-pe-ra-gáo. Essa é a lei. A
minha lei.

GILBERTO

A minha também. Aposto tudo nela.


214 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

BERNARDO

Vocé? Vocé recusa a um simples casal que


se desavém a aplicagáo do primeiro artigo
dessa lei!

GILBERTO

Eu náo! Eu aplico a lei. E acredito que


o casal pode recuperar o que perdeu...

BERNARDO

Isso é um sofisma. Um sofisma grosseiro.


Vocé sabe perfeitamente que há mil casos em
que a única recuperagáo que cada um pode
encontrar é o reinício e náo a teimosia.
Quantos casos de xifópagos vocé conhece?
Um ou dois. Pois bem; o que vocés querem,
é a multiplicagáo désses casos; o que vocés
querem é encher o mundo de monstros dupli-
cados que se detestam, condenando a cirurgia
em nome de superstigóes. Eu náo sou ne-
nhum sentimental (vocé me conhece); pois
bem, vou te dizer, aqui entre nós: eu tenho
uma grande piedade por ésses monstros. Gos-
taria de vé-los operados, passeando na praia,
cada um com suas pernas; e náo assim como
um disforme quadrúpede em que as pernas
dianteiras detestam as de trás.

GILBERTO

Espere. O que vocé queria há pouco náo


era isso, era o divorcio, o que é diferente,
PARA NÁO SER BÁRBARO. 215

porque implica a possibilidade imediata de


uma outra experiéncia. O que vocé queria
era uma operagáo (que me parece arriscada),
e que consiste em partir quadrúpedes para
reconstituir indefinidamente novos quadrú-
pedes. Era operar um xifópago para que éle
tenha, imediatamente, a possibilidade de ex-
perimentar uma nova xipofagia... Espere!
Nao insisto nesse ponto, bem sei que se trata
de uma mera imagem, que vocé está pronto
a retirar ou retocar. Mas retenho um deta-
lhe de todo o seu magnífico discurso. De fato,
éles merecem uma grande compaixáo. Mas
devemos ter muito cuidado com esta clave em
que nossa conversa caiu, senáo acabaremos um
nos bragos do outro e em lágrimas. Os me-
lhores sentimentos do mundo toldam a inte-
ligéncia, cuja serenidade é, talvez, a melhor
forma de compaixáo. Náo insisto nesse ponto,
mas com relagáo aos insucessos matrimoniáis
cada dia mais freqüentes e mais alarmantes,
eu diria que éles decorrem, de certo modo,
dessa filosofia que diminui o valor do casa-
mento em favor de uma exaltagáo da vida.
E’ preciso estar disposto a perder a vida para
salvá-la. No caso em questáo, eu diria muito
práticamcnte que as pessoas que se casam,
na sua maioria, náo estimam o casamento,
náo avaliam a coisa tremenda e tremenda-
mente simples que estáo fazendo. Na base
de tudo isso, o que há é um desprézo pelo
casamento; ou um desconhecimento do que
éle significa. E sáo voces, de um modo geral,
que produzem essa atmosfera; e também nós,
os católicos, que raramente sabemos ensinar
216 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

e dar o exemplo, e que nos contentamos muitas


vézes em andar pelos corredores das cámaras,
para evitar que uma lei venha destruir o que
ninguém mais sabe o que é. Já vé que o pro-
blema náo é táo simples. Eu pergunto: por
que náo usam mais prudéncia os que se casam?
Por que náo levam mais a sério, ou náo esco-
lhem com mais cuidado?

BERNARDO

O que adianta tudo isso? Vocé náo vé que


o caso é inteiramente imprevisível? Náo vé
que as considerares nesse assunto seriam
inesgotáveis?

GILBERTO

Mas, meu velho, é isso que estou lhe di-


zendo há meia hora—
CARTA EXPRESSA SOBRE O
VÍNCULO CONJUGAL
Meu caro Bernardo,
Acudiu-me ao espirito ontem, quando vol-
tava para casa depois de nossa conversa, que
o mal-entendido entre nós, a respeito do ca-
samento, deve ser alargado, para se tornar
ainda maior do que realmente parece; e, por
isso, movido por um escrúpulo, apresso-me
em trazer, com meus protestos de amizade
sincera, novos elementos que tornem impos-
sível entre nós uma conciliagáo naquele ter-
reno.
Vocé julga conhecer meu credo, e julga
que éle é absurdo; mas, na verdade, está longe
de imaginar o grau prodigioso em que éle é
absurdo. Acho indispensável estabelecer en-
tre nós uma inconfundível separagáo. Muitas
vézes, em casos semelhantes, náo levamos em
conta o fenómeno óptico pelo qual o afasta-
mento traz um acréscimo de visibilidade.
O casamento indissolúvel, para mim, re-
pousa sóbre um dado que é o centro de toda
a questáo e que, numa falsa retórica conci-
liatoria, freqüentemente contornamos, para
tornar nossa posigáo mais compreensível ao
adversário. Agora eu descobri que devo tor-
ná-la incompreensível para torná-la visível.
Diga-me depois que eu sou absurdo e fantás-
218 * TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

tico, mas, ao menos, com um conhecimento


mais profundo da real fisionomía de minha
loucura.
Vocé sabe que, para nós, o casamento é
um sacramento, mas náo avalia bem o que
quer isso dizer, e por isso todos os seus argu-
mentos giram em torno da idéia de um vin-
culo moral. O juramento é, de fato, um vín-
culo moral. O casamento cristáo é, de fato,
um vínculo moral, isto é, um vínculo que náo
devemos romper; mas antes de tudo é um
vínculo que náo podemos romper: e ai cometa
a historia real de meus delirios. Vocé julga,
apesar de saber por alto que o casamento
católico é um sacramento, que a Igreja quer
impedir a dissolugáo dos costumes, e por isso
proíbe o divorcio. Ora, a Igreja declara o
divorcio impossível, e por isso concluí que
sua procura trará inevitávelmente para os
homens uma dissolugáo de costumes.
Avancemos um pouco mais nos dominios
de nossa loucura. Essas frases meio abstra-
ías, girando em torno do que devemos fazer
ou podemos romper, ainda deixariam em seu
espirito algumas ilusóes de uma linguagem
semelhante entre nós. É indispensável, entre
pessoas que discutem com palavra sincera,
conhecer em tóda a extensáo a paisagem, real
ou irreal, em que se desenrolam os aconteci-
mentos que cada um descreve.
Quando eu digo, por exemplo, que Joáo e
María se casaram na Igreja do Sagrado Cora-
gáo, eu náo estou descreyendo o mesmo acon-
tecimento a que vocé alude quando emprega
as mesmas palavras. Para vocé, o que se pas-
PARA NÁO SER BÁRBARO. 219

sou estritamente, foi o seguinte: duas pessoas


de sexo diferente compareceram diante de
um sacerdote e, em presenta de uma centena
de curiosos, trocaram palavras de compro-
misso mútuo, selado com solenidade pelo sím-
bolo da uniáo das máos e da troca dos anéis.
Náo escaparam á sua sagacidade o benevo-
lente contentamento do sacerdote, o triunfante
olhar da noiva, o complexo sentimento, misto
de alegría, alivio e susto, nos semblantes dos
pais, e o mais complexo ainda, misto de feli-
cidade e de embarazo no semblante do noivo.
De relance, vocé viu ainda ésses pequeños de-
talhes — um bocejo, uma pétala caída e pi-
sada, um olhar espantado de crianga — que
cruzam de leve, em tragos ténues e fortuitos,
os momentos mais trágicos. Tudo isso vocé
viu, e em muito mais pensou, e é a ésse con-
junto de cenas, fatos, esperangas e pressen-
timentos, que alude quando me diz que Joáo
e Maria se casaram na Igreja do Sagrado
Coragáo.
Ora, eu creio com todas as fórgas de mi-
nha alma que aconteceram certas coisas que
vocé náo viu, e que sáo justamente as mais
importantes. Consideramos geralmente um
juramento ou um pacto como uma troca de
compromissos moráis que náo deixa outra
marca, em cada parte, senáo um pequeño
trago, um imperceptível vinco na memoria,
isto é, um risco entre a alma e o corpo, como
ésses que os carpinteiros fazem ñas juntas
das pegas para guardar o modo exato e único
da esquadria bem feita. O juramento é, pois,
um risco, uma dobra, um vinco. Um vínculo.
220 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

Imprime um sinal; marca a alma e o corpo.


Mas o juramento sacramental do matrimonio
tem uma natureza mais total e mais pro-
funda: os dois riscos em cruz que o padre
faz sóbre os esposos, como bom discípulo do
excelente carpinteiro, marcam a justa posigáo
de um entalhe definitivo que deverá retomar
seu encaixe único cada vez que, por contin-
géncia da vida e interposigáo do mundo, se
afastarem as duas pegas. Náo é sómente na
lousa da memoria, enquadrada entre a alma
e o corpo, que a promessa ficou consignada.
Foi de alto a baixo, da esquerda á direita,
em altura, largura e profundidade, que a es-
quadria sacramental marcou os dois corpos
ajoelhados. Os anjos estavam presentes to-
mando nota das palavras de consentimento
com que cada cónjuge ministrava ao outro o
sacramento; e quando um anjo toma nota é
para sempre.
E entáo — ouve, ó amigo, as palavras es-
tranhas de meu credo — a esposa nasceu
naquele instante, nova, nova na alma e no
corpo, no espirito e na carne, tirada de uma
costela do noivo adormecido. Houve um nas-
cimento único no género, saído do flanco de
um homem prostrado em sonoléncia de amor
e confianga; e uma nova mulher, irmá de
Cristo e filha de María, nasceu para ser esposa
e máe. Dois na mesma carne quer dizer en-
talhe, jungáo, encaixe; mas quer dizer tam-
bém desdobramento e separagáo.
O juramento matrimonial marca o ser,
funde as almas e prepara o cadinho em que
os sangues seráo fundidos; mas, independen-
PARA NÁO SIR BÁRBARO. 221

temente dos filhos gerados, os dois corpos já


estáo atravessados, lado a lado, por uma trave.
O juramento matrimonial, pela fórga do espi-
rito, marca os corpos, corpóreamente, con-
cretamente, como se a mulher tivesse sido
arrancada, ali, á vista de todos, da costela do
homem adormecido. “Da costela, sim, porque
próxima do coragáo — para ser ternamente
amada; da costela, em baixo do brago, para
ser corajosamente defendida.”
E ai está em breves tragos, ó amigo, o
fantástico absurdo em que eu creio. Joáo e
Maria sáo agora diferentes até os ossos. Vocé
objetará que a diferenga ocorrida náo é visí-
vel nem apreciável com todos os recursos da
química. Uma análise de sangue, realmente,
feita logo depois da cerimónia, náo revelará
nenhuma alteragáo sensível ñas espécies. Náo
discutirei no momento ésse detalhe; ao con-
trário, fiel ao meu propósito de produzir entre
nós uma salutar distáncia, para que vocé possa
apreciar a verdadeira extensáo de nossa lou-
cura, eu lhe direi que somos ainda sete vézes
mais loucos do que pensa, porque eremos em
sete mistérios sacramentais.
O importante a assinalar na questáo do
casamento é a convicgáo que temos de seu
caráter ontológico, e náo puramente moral.
O importante, se vocé quer apreender nosso
pensamento, é fixar a atengáo sóbre a histo-
ria da costela, e náo apenas sóbre as conse-
qüéncias sociais do enlace. E eu o aconse-
lharia a 1er as páginas mais desvairadas da
Sagrada Escritura, onde um homem mora
trés dias no ventre de uma baleia e um outro
222 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

faz parar o sol; onde o profeta ve estranhos


seres com quatro faces, quatro asas e ruti-
lantes pés de bronze polido; onde o evange-
lista vé surgir do mar um monstro com sete
cabegas e dez cornos, tendo escritos ñas testas
nomes blasfematorios.
E entáo vocé se convencerá que nós somos
setenta vézes mais loucos do que imaginava.
Mas, por outro lado, deverá reconhecer que
milhares de pessoas, táo razoáveis e mais es-
timáveis do que eu, durante milhares de anos,
creram o que era incrível, o que vem a ser,
segundo Santo Agostinho, e em linguagem ma-
temática, incrível ao quadrado. E creram
sem ter visto o mais inofensivo dos monstros,
o que se torna, decididamente, um inexplicá-
vel desvario, ou incrível ao cubo. E resulta
disso tudo, num estranho paradoxo, que os
homens racionalistas como vocé, sáo os úni-
cos a desfrutar o privilégio dos profetas, isto
é, o privilégio de ver a figura externa da
Igreja, e de nos ver e nos ouvir, nós os fan-
tásticos, incríveis e monstruosos inventores de
monstros. E cá estou eu, meu velho, um banal
e vulgaríssimo espécime para servir de espe-
táculo e de escándalo á sua geométrica razáo.
Olhando-me, a mim ou a qualquer beata que
se levanta do confessionário, vocé verá um
monstro.
Mas, voltando á questáo do casamento, eu
quero lhe mostrar uma coisa que escapou ás
suas cogitagóes e que torna seu mundo de
círculos e triángulos ainda mais doido do que
o meu mundo cheio de baleias habitáveis, de
candelabros animados e de serpentes persua-
PARA NÁO SER BÁRBARO. 223

sivas. Leia o que Chesterton disse sóbre o


mistério, e que transcrevi páginas atrás, e
verá que, aplicada ao juramento, e mais par-
ticularmente ao matrimonio, a idéia do mis-
tério revela, por contraste, a terrível retraqáo,
o mesquinho encolhimento désse universo ra-
cional em que vocé tenta em váo se instalar.
Vocé troca o nosso largo e ampio delirio por
um pequeño delirio; o desvario pela incoe-
réncia.
Disse atrás que o casamento imprime um
sinal, um vinco, um vinculo. Suponhamos
agora que assim náo seja e que o casal, ao
sair da igreja, leve os mesmos corpos, apenas
enfeitados de bons propósitos e eufóricos sen-
timentos. Suponhamos que a esposa continue
a ser táo diferente do esposo, táo alheia e táo
autónoma, substancialmente, como ao entrar
pelo brago do pai, arrastando um longo véu,
que deixa para trás urna inútil brancura.
Suponhamos que a uniáo conjugal, em suma,
náo tenha conteúdo ontológico. E agora con-
sideremos uma familia (uma casa de familia
grande, como a nossa, cheia de filhos, tias e
avós) sob o ponto-de-vista do marido. Olhe-
mos essa casa, essa familia, essa gente, com
o ólho especulativo e racional do marido.
Quase todas as pessoas estáo ligadas por um
vínculo concreto. As tias, os filhos, o avó,
estáo ligados por uma conspirado cromossó-
mica que transparece ñas faces e nos gestos;
o mesmo sangue corre em todas as veias: a
única pessoa que náo faz parte da familia é
a esposa. O centro da familia náo pertence
á familia. A dona de casa náo está em sua
224 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

casa: é uma intrusa. É a única pessoa, além


das empregadas, que náo está ligada ao ma-
rido senáo por um contrato moral. O trián-
gulo básico da familia, pai, máe e filho, náo
é igualmente concreto e corpóreo em todos
os seus lados; náo o é justamente na base.
A tia é uma parenta, ainda que seja uma
parenta pobre; mas a esposa náo é. A tia está
ligada á familia por um fio; a esposa náo
está. A tia é indissolüvelmente tia e nunca
passou pelo espirito do mais audacioso filó-
sofo que uma tia pudesse perder seus títulos;
uma avó, um filho, sáo indissolüvelmente avó
e filho. A esposa náo: o centro mesmo da
familia, o pilar, a base, a dona da casa, é uma
pessoa que, de passagem, faz o favor de em-
prestar seu sangue, seu ventre e seu leite.
Tomando a perspectiva da esposa teríamos
outra metade do quadro onde o corpo estra-
nho é o pai de familia, e eu concluo que, em
tóda a familia, os únicos sóbre os quais paira
um duvidoso parentesco sáo os esposos. E
concluo que ésse mundo racional e perfeito
que vocé criou é pequeño demais. Na melhor
das hipóteses, quando vocés falam em hori-
zontes rasgados e em liberdades, eu vejo uma
prancha oscilante, um passadigo exiguo de
mais para um casal de brago dado. Mas na
verdade, o que me parece ésse mundo, em que
só cabe um de cada vez, é um vidro de far-
mácia onde se expóe um feto. E eu prefiro
o meu, fantástico, cheio de monstros e de
anjos, onde cabe á vontade éste abrago de
amigo que aqui lhe deixo.
Sinceramente seu G.
DEMOCRACIA E TRADIQAO

Nos diversos textos que já citamos para


exemplificar o pensamento de Chesterton so-
bre o juramento, o leitor certamente terá no-
tado a presenta constante de outras idéias,
formando como que um sistema planetário de
onde se poderia tirar a concepgáo do autor
em relagáo á história, política, educacáo e
relagóes entre a familia e a sociedade civil.
Uma das principáis idéias, que acompanha in-
variávelmente aquela do juramento, é a que
se refere á tradigáo. Outra é a que diz res-
peito a uma estrutura política oposta á bar-
baria positiva, que hoje pode ser equiparada
á política maquiavélica e totalitária. Nós mes-
mos, páginas atrás, fomos conduzidos inevi-
táveimente a consideragóes sobre a progres-
siva absorgáo de tóda a confianga dos cida-
dáos por parte do Estado, partindo também
do mesmo ponto, isto é, da diferenga entre
a nogáo de juramento e a nogáo de contrato
negativo.
Temos, pois, trés coisas em jógo: o jura-
mento, a tradigáo e a democracia, cujo nexo
já se tornou claro, e cujo centro é a verda-
deira esséncia do homem. Mas a originali-
dade de Chesterton, a meu ver, consiste em
ter acentuado, e até em certos casos tomado
como ponto de partida, a coisa que entre
226 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

todas parece mais frágil ou menos séria. Os


grandes problemas, como diria um jornalista,
estáo subordinados na mensagem chesterto-
niana a essa coisa pequenina; estáo suspen-
sos nesse frágil fio “estendido das colinas
esquecidas do on tem ás invisíveis montanhas
do amanhá.” A lei da promessa, passando da
esfera pessoal e familiar, aparece entáo esti-
cada sóbre os tempos, como o fio condutor
de todas as mensagens; aparece como a lei
da fidelidade e da entrega, a mais dinámica
das leis da historia: a tradigáo. Por outro
lado, comparando o sentido positivo com o
sentido negativo dos contratos, fica salien-
tada a importancia do ato moral sóbre a rea-
lizagáo técnica, fica afirmada a dignidade do
homem comum sóbre o especialista, e fica
desfraldada na Cidade a bandeira da demo-
cracia.
E, se as duas nogóes, democracia e tra-
digáo, estáo ligadas á mesma raiz, que se em-
bebe ñas mais profundas regióes do mistério
da nossa humanidade, estáo também ligadas
entre si. Nesse ponto — sóbre a conexáo en-
tre democracia e tradigáo cristá — Chester-
ton se aproxima singularmente de Jacques
Maritain, tendo chegado a essa aproximagáo
por um caminho completamente diverso; e
diverge de todos os católicos equivocados só-
bre o conceito de autoridade, sóbre a nogáo
de liberdade, e sóbre a idéia de humanismo,
que chegaram a entrever na abominagáo na-
zista, e ñas suas caricaturas latinas, piores
em muitos pontos do que a abominagáo
comunista, um modelo da tradigáo cristá.
PARA NÁO SER BÁRBARO. 227

O seguinte trecho de Orthodoxy (do capítulo


The Ethics of Elf land) estabelece com clareza
a ligagáo, agora direta, entre as nogoes de
democracia e tradigao:
Fui criado como um liberal, e sempre acreditei na
democracia, isto é, na elementar doutrina liberal de
uma sociedade emancipada que se govema a si mesma.
Se alguém achar essa frase vaga ou óca, proporei uma
pequeña interrupqao para explicar que o principio da
democracia, como o entendo, pode ser definido por
duas proposigóes. A primeira é esta: as coisas comuns
a todos os homens sao mais importantes do que as coi-
sas peculiares a alguns homens. Coisas ordinárias tém
mais valor do que as coisas extraordinárias, ou melhor,
sao de fato as mais extraordinárias. O homem é algo
de mais terrível do que os homens, algo de mais estra-
nho. O sentido do milagre que a humanidade representa
deve sempre nos parecer mais vivido do que qualquer ma-
ravilha de fórga, inteligencia, arte ou civilizagáo. O sim-
ples homem, em cima de suas pernas, tal como é, deve
ser considerado como um objeto mais comovente do que
qualquer música, e muito mais chocante do que qualquer
caricatura. A morte em si é mais trágica; mesmo do
que a morte por inanigáo. Ter um nariz é mais cómi-
co; mesmo do que ter um nariz judaico.
Éste é o primeiro principio da democracia: as coisas
essenciais aos homens sáo aquelas que éles possuem e
mantém em comum, e náo aquelas que éles possuem em
separado. O segundo principio é apenas éste: o instin-
to ou desejo político é uma daquelas coisas que os ho-
mens tém em comum. Amar é sem dúvida alguma mais
poético do que fazer poesías sóbre o amor. A discussfio
em torno da democracia reduz-se a considerar o govér-
no (que interessa todo um povo) como algo mais pare-
cido com o amar do que com o fazer poesías sóbre o
amor. A política nao é um exercício especial como tocar
órgáo na igreja, pintar iluminuras, descobrir o pólo Norte
(ésse hábito tornado insidioso) ou ser membro de um
observatório astronómico. Para ésses cargos náo acha-
mos indispensável que existam homens, a náo ser que
éles o desempenhem bem. Ao contrário, as coisas simples
228 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

e comuns, como escrever as próprias cartas de amor ou


assoar o próprio nariz, desejamos que os homens as fa-
gam por si mesmos, ainda que as fagam mal. Nao estou
aqui discutindo a verdade de cada uma dessas concep-
góes, nao ignorando que muitos individuos modernos fa-
zem questáo de ter esposas escolhidas por cientistas, e
brevemente, suponho, exigiráo enfermeiras para Ihes as-
soar o nariz. O que eu digo, simplesmente, é que a es-
pécie humana reconhece a universalidade dessas fungóes
e que a democracia inclui entre elas o ato de governar.
Em resumo, a crenga democrática é esta: as coisas mais
terrivelmente importantes devem ser confiadas aos ho-
mens comuns — o encontro dos sexos, a orientagáo dos
mogos, as leis da cidade. Democracia é isto e esta sem-
pre foi a minha convicgáo.
Mas devo mencionar um ponto que desde a minha
mocidade nunca cheguei a compreender. Nunca, efe-
tivamente, pude compreender onde foram algumas pes-
soas buscar a idéia de que democracia e tradigáo se
opóem. Parece-me claro que tradigáo vem a ser de-
mocracia ao longo do tempo. E’ a confianga tributada
ao consenso das vozes humanas comuns e náo a algum
registro isolado e arbitrário. O individuo que cita um
historiador alemáo contra a tradigáo da Igreja Católica,
por exemplo, está fazendo estritamente um apelo á aris-
tocracia. Está apelando para a superioridade de um
especialista contra a tremenda autoridade da multidáo.
E’ muito fácil mostrar porque se considera, e se deve
considerar, a lenda com mais respeito do que o livro de
um historiador: a lenda é geralmente feita pela maioria
do povo de uma aldeia e portanto pela maioria da gen-
te que é normal; o livro, geralmente; é escrito pelo único
habitante da aldeia que é doido.
Aqueles que pretendem se opor á tradigáo dizendo
que os homens do passado eram ignorantes devem ir ao
Carlton Club prestar essa declaragáo, e entáo devem
também convir que os eleitores dos suburbios sáo igno-
rantes. Objetando á tradigáo, objetamos á democracia.
Se temos em alta conta a opiniáo dos homens comuns,
expressa em grande unanimidade, quando se trata de as-
suntos da vida cotidiana, náo vejo razáo para desprezar
essa opiniáo quando se trata de história ou fábula. A
tradigáo pode também ser definida como a extensáo de
PARA NÁO SER BÁRBARO. 229

privilégios, e vem a ser o reconhecimento do sufrágio da


mais obscura de todas as classes, a dos nossos antepas-
sados. E’ a democracia dos mortos. Pela tradigáo eu
recuso submissáo á pequeña e arrogante oligarquía de
alguns individuos pelo simples fato de estarem ainda de
pé. Todos os demócratas se opóem a que o homem seja
desqualificado definitivamente pelo acaso de um nasci-
mento; a tradigáo se op5e a que o homem seja desquali-
ficado pela morte. A democracia nos aconselha a náo
desprezar a opiniáo de um bom sujeito aínda que éle seja
nosso barbeiro; a tradigáo convida-nos a náo desprezar a
opiniáo de um bom sujeito, ainda que éle seja nosso pai.
Eu náo posso, em vista dessas razóes, separar as duas
idéias, democracia e tradigáo; parece-me evidente que
ambas sáo a mesma idéia. Teremos os mortos em nossas
assembléias. Os gregos antigos votavam com pedras,
aqueles votaráo com pedras tumulares. E isso será per-
feitamcnte regular e oficial porque muitas pedras tumu-
lares, como também muitas cédulas eleitorais, sáo mar-
cadas com uma cruz.
PARTE V

PARA NAO SER ESCRAVO...

"A propriedade é um ponto de honra.”


G. K. CHESTERTON.

"O capital é como o estrume, só é bom


quando espalhado.”
F. Bacon.
O PARAISO TERRESTRE

A terceira idéia de Chesterton, chamá-la-ei


idéia de posse. E se as duas de que já nos
ocupamos tém a virtude de impedir que o
homem fique doido ou bárbaro, esta agora o
impedirá de se tornar escravo, Parece ela,
por ser a mais concreta e mais prática, a
menos religiosa; tenciono mostrar antes de
mais nada que, por isso mesmo, é uma idéia
radicalmente católica. Para encontrar o seu
primeiro fundamento, remontemos á criagáo
do mundo e, mais particularmente, ao dia da
inaugurado da humanidade: “Depois Deus
disse: Fagamos o homem á nossa imagem,
segundo nossa semelhanga; e que éle domine
sóbre os peixes do mar, sóbre os pássaros do
céu, sóbre os animais domésticos, e sóbre toda
a terra...”
Foi pois outorgado ao homem, no dia da
sua criagáo, um direito de posse e dominio
sóbre todas as coisas. E, no Paraiso, o homem
exerceu-o pela fórga da palavra: “E o homem
deu nomes aos animais domésticos, ás aves
do céu e a todos os animais dos campos.”
Depois da culpa, é verdade, Deus disse ao
homem que éle comería o páo com o suor de
seu rosto, mas náo revogou o direito de do-
minio e posse, condicionando-o ao trabalho
penoso. Nesse dia, ás portas do Paraíso, guar-
234 TEES ALQUEIRES E UMA VACA

dadas pela espada flame jante de um Queru-


bim, comegou a economía política, com o pro-
blema do trabalho, a questáo do salário, o
capitalismo e o socialismo.
E é por isso que o trabalho humano tem
qualquer coisa que ressuma a tristeza da culpa
e qualquer coisa que lembra o limiar de um
paraíso perdido. A mesa de um obscuro e
infeliz funcionário é um pequeño campo, onde
um mogo, extenuado de se locomover numa
cidade que vai se tornando selvagem — como
já deixei dito atrás em tom de lamentagáo —
procura reconquistar o caminho do paraíso.
Quando éle volta para casa, e se instala, talvez
em sua única cadeira, e usa os seus poucos
objetos, com plena posse e pleno dominio e
dá um nome ao seu gato, e ouve os passos e
a voz da companheira arrancada de seu flanco,
durante o sono de amor — éle sente vivida,
palpável, inconfundível, a lembranga de um
jardim de delicias.
Preparar, pelo trabalho, a volta-para-casa,
entre todas as coisas do mundo, é a que tem
a maior densidade de ventura. Pode o mundo
moderno aviltar o trabalho, fazendo do ho-
mem uma pura máquina para o servigo de
uma babilonia; pode semear obstáculos sem
fim entre a mesa do funcionário e aquela so-
leira de porta onde éle tira do bolso uma
chave encantada e toma posse de um reino;
podem os pregadores anunciar um regime
ideal, em que a casa é um prolongamiento
da repartigáo, uma máquina-de-morar cujos
objetos pertencem a todos (o que equivale a
PARA NÁO SER ESCRAV0.
235

dizer que náo pertencem a ninguém), e onde


o próprio gato receberá um nome oficial; po-
dem socializar, burocratizar, centralizar; e
minar os alicerces da familia; e arrebatar as
criancas para as chocadeiras técnicas onde se
ensina que foi um dentista ou um bacharel
que fizeram o mundo; debalde faráo tudo isso
com o auxilio de todos os demonios: o homem
náo esquece o paraíso que perdeu. Náo es-
quece que seu primeiro pai foi um rico pro-
prietário rural, que dava éle mesmo os nomes
aos seus bichos e usava fartamente, e sem
pena, os frutos de sua terra.
A idéia de Chesterton gira em torno disso;
e eu queria ser um génio para convencer ao
leitor, depois déle, que a idéia mais poética
e mais maravilhosa do mundo está ligada á
posse de trés alqueires e uma vaca. Ou entáo,
o que é muito mais fácil, eu queria que o lei-
tor fósse um homem extremamente simples,
para descobrir isto sózinho.
O HERDEIRO
É preciso imaginar um concurso de cir-
cunstancias as mais extravagantes, uma anor-
mal soma de má vontade e de obscuríssima
ignorancia, uma desvairada combinagáo de
proposigóes, que mutuamente se destruam,
para chegar a compreender o motivo, o enig-
mático motivo, que leva muita gente a supor
que a Igreja Católica é contrária á idéia de
posse e ao mesmo tempo aliada do capita-
lismo. Pretendo mostrar, ao lado de Chester-
terton, que a Igreja é conti’ária ao capita-
lismo e favorável á posse; ou ainda, mais
exatamente, que é contrária ao capitalismo
porque é favorável á idéia de posse.
Antes de entrar em maiores desen volvi-
mentos quero dizer alguma coisa sóbre o pe-
cado original. No capítulo anterior eu disse
que a economía política e todas as crises ti-
nham eomegado na porta do paraíso, mas
agora estou pensando que o capitalismo (isso
que chamamos hoje capitalismo, e contra o
que Chesterton se bateu a vida inteira) co-
megou dentro do paraíso. O pecado original
tem sido apresentado como um pecado de
gula, de orgulho, e de inveja. Sem analisar,
tomando-o em bloco. eu diria que o pecado
original foi um pecado de capitalista, tendo
consistido no uso desmedido, e numa falsa
PARA NÁO SER ESCRAVO. 237

idéia de dominio que rompia as medidas do


homem. A opressáo e a exploragáo do tra-
balho alheio seráo as manifestagóes soeiais
posteriores, mas o germe do capitalismo já
está no primeiro pecado do homem.
Nesse sentido, nada há que tenha uma
feigáo táo anticapitalista como a ascese crista
que, nos seus mais variados aspectos, consiste
sempre num exercício de restauragáo da inte-
gridade perdida e na reconquista do paraíso.
Por isso, num lamentável equívoco, a vida
ascética tem sido comparada freqüentemente
a uma espécie de socialismo ideal, mesmo por
aquéles que créem no socialismo e náo créem
na ascese. Ora, nessa ordem de idéias, se o
exercício de santificagáo se parece com algu-
ma coisa, é antes com o regime da pequeña
economía, com o distributismo de Chesterton,
por exemplo, cuja principal finalidade é a
recuperagáo de um patrimonio. A vida do
santo náo é um modélo de desprendimento
desinteressado; ao contrário, sua bússola é o
interésse. Nunca pude compreender, aliás, o
motivo invocado para considerar o desinte-
résse em si como uma virtude, a ponto de se
ter dito, contra o cristianismo, que éle náo é
bastante puro porque náo é bastante desin-
teressado. Os que assim falam sáo os impul-
sivos, os voluntaristas, que a si mesmos se
chamam de sinceros, e que tém como pri-
meiro artigo de seu código, como Chesterton
táo bem assinalou, despojar a vontade do seu
próprio objeto.
O problema do santo se parece muito mais
com o problema de um sensato negociante
238 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

do que com o fanático código do altruista.


O santo é profundamente interesseiro, e sua
grande virtude consiste em ter escolhido o
bom objeto de sua vontade, e em ter amado
ésse objeto. A idéia fixa do santo é a posse.
O céptico, evidentemente, pode dizer que éle
entesoura fumaga e espera uma heranga que
nunca receberá; pode dizer que éle é doido;
mas o que náo pode dizer, sem completo des-
conhecimento de causa, é que éle ama o vazio
e deseja o nada. Se estamos procurando com-
preender a idéia que norteia seus atos, temos
que admitir a primeira délas, isto é, a con-
vicgáo, ainda que absurda, de uma vida eterna.
Náo poderemos compreender o santo se ana-
lisarmos os seus atos segundo nossas idéias.
Os menores e mais triviais espetáculos do
mundo, se deixarmos de lado os objetivos que
os homens se propóem, perderiam o último
vislumbre de significado. Imaginemos, por
exemplo, que estamos assistindo aos jogos
olímpicos e que passam por nós os corredores,
usando todas as reservas de fórga e de des-
treza para arrebatar o prémio final. Se um
de nós náo eré em prémios, ou náo eré que
aquela pista termine em algum lugar, é claro
que náo entrará na competigáo; mas se quer
saber o que é uma corrida tem que levar em
conta que os atletas créem na chegada e no
prémio. A maior parte das pessoas que se
referem á vida do santo incorre nesse engano
de aproximar os atos piedosos de suas pró-
prias idéias. E divertem-se muito com o
absurdo que resulta, pensando que o tolo é
o santo.
PARA NÁO SER ESCRAVO. 239

O fundamento do cristianismo sempre foi


uma idéia de posse e de recompensa. O cris-
táo náo corre á toa, pelo gósto de correr;
o que éle quer é a palma da vitória. Ai está,
por exemplo, o que diz Sáo Cipriano, bispo de
Cartago e mártir do Cristo: “Lutemos, pois,
de bom grado e com prontidáo, por essa pal-
ma das obras salvadoras; corramos no estádio
da justiga tendo Deus e o Cristo como espec-
tadores, e — como já nos tornamos superio-
res aos séculos e ao mundo — náo retardemos
nossa carreira por qualquer cobiga do mundo
e do século. Se o dia da prestagáo de contas
ou da perseguigáo nos encontrar desembara-
zados, céleres, cor rendo nesse estádio da es-
mola, o Senhor náo faltará com o prémio
merecido. Aos que vencerem na paz dará
uma coroa branca pelas boas obras; aos que
triunfarem na perseguigáo, acrescentará a
coroa purpúrea do martirio.” Em Sáo Paulo,
encontramos passagem semelhante: “Quanto
a mim, já estou oferecido em sacrificio, e o
momento da partida se aproxima. Combatí
o bom combate; terminei minha corrida;
guardei a fé: está doravante reservada para
mim a coroa da justiga..
Todo o vocabulário cristáo está impreg-
nado da idéia de lucro, de recompensa, de
heranga, de posse. Em qualquer página das
Sagradas Escrituras ou dos Santos Padres, se
encontra um sinal désse sentimento, perfeita-
mente análogo ao de um bom e económico
trabalhador que faz seu pé-de-meia para um
dia ter casa. A dificuldade da exemplificagáo
está só na escolha. Depois da Ceia, diz o Se-
240 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

nhor: “Que vosso coragáo náo se perturbe:


crede em Deus, e crede também em mim. Há
numerosas moradas na casa de meu Pai: de
outro modo eu vos teria dito, porque eu me
vou para vos preparar um lugar...”
Chesterton guardava em sua carteira uma
oragáo tirada desta passagem do Evangelho
de Sáo Joáo e, depois de sua morte, pode o
padre Vicente, seu confessor, observar que
éle alterara a texto sagrado. Onde dizia um
lugar acrescentara, pensando em sua corpu-
léncia, a very large place. Um lugar bem
espagoso. O que prova que seu humorismo
era coisa muito séria e, eventualmente, uma
forma de oragáo.
Retomando os exemplos, ouvimos em Sáo
Mateus a palavra final do Cristo, no dia do
julgamento: “Vinde, benditos de meu Pai,
tomai posse do reino que está preparado para
vós desde a formagáo do mundo.” E final-
mente, em Sáo Paulo, encontramos o título
désse peregrino que serve de espetáculo para
o mundo: éle é o herdeiro de Deus e co-her-
deiro de Cristo.
O ASCETA
Depois de criticar o cristianismo por ser
demais interesseiro, torna-se inevitável criti-
cá-lo por ser desinteressado de mais. O sen-
timento de posse, o apetite por uma heranga
a que me referi no capítulo anterior, signifi-
cant realmente um desprendimento das coisas
déste mundo. Trata-se de um desejo guar-
dado para os últimos tempos; trata-se de uma
propriedade escatológica. Aquéles textos pro-
vam que o cristáo tem um vivo sentimento
de posse, mas náo provam, e antes parecem
provar o contrário, que éle tenha um senti-
mento de posse relativo ás coisas déste mundo
das quais se ocupam os economistas e o pró-
prio Chesterton com seu distributismo. A vida
rigorosa dos ascetas depóe contra essa idéia:
Sáo Francisco de Assis náo quería possuir
um livro de oragóes e náo consentía que seus
irmáos tivessem uma casa própria.
Ora, náo é difícil mostrar que essa impres-
sáo, decorrente da análise localizada de um
detalhe, desaparece inteiramente se conside-
rarmos o pensamento geral da Igreja de todos
os tempos. Quanto a Sáo Francisco, convém
notar que a Igreja procurou logo corrigir
aquilo que era apenas uma vocagáo especial
e pessoal, náo convindo, portanto, para uma
242 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

vocacáo especial mas comunitária. Os bió-


grafos de Sáo Francisco entregam-se insen-
sivelmente á sedugáo de mostrar que o santo
era maior do que a Igreja, e muitos chegam
a dizer que foi Francisco o único verdadeiro
franciscano. Chesterton, porém, náo caiu
nesse érro. Diz éle que Francisco foi um
grande santo, e um homem grande, e que o
papa que lhe féz restrigóes talvez tenha sido
um homem pequeño; mas acrescenta, para
informagáo das pessoas alheias á história da
Igreja, que nela freqüentemente os homens
pequeños tém razáo, e os grandes náo. É de
notar que uma das mais ferozes e turbulentas
heresias que atacaram a ortodoxia católica
foi a dos fraticcelli, que se julgavam os legí-
timos descendentes de Francisco e que deseja-
vam furiosamente nada possuir. Quem disser
portanto que Francisco foi o único francis-
cano está a dois palmos de dizer que éle foi
a único fraticcello.
Pode-se dizer, com mais exatidáo, que o
cristáo náo é desprendido das coisas déste
mundo. Ao contrário, seu sentimento de posse
sobrenatural se apóia num sentimento de
posse natural. O que o asceta procura fazer,
nessa matéria, é reduzi-lo ao mínimo, náo
para destruir ou anular, mas para defender
ésse mínimo. Para Sáo Bento, ésse mínimo
era o limite de seu mosteiro; para Sáo Fran-
cisco ésse mínimo era o paño da veste, e ás
vézes a pele do corpo, que tratava humorísti-
camente de seu burro, isto é, sua propriedade.
Quando porém o mínimo se reduz a ésse ponto,
corre o risco de deixar de ser um mínimo.
PARA NÁO SER ESCRAVO. 243

Realmente, o corpo nao pode, rigorosamente


falando, ser considerado um burro, ou uma
simples propriedade da alma, a uniáo entre
os dois sendo mais íntima do que entre o
cavaleiro e a montaría. É uma uniáo que náo
suporta separagáo senáo durante a espera do
julgamento. Um leitor mal avisado, lendo os
nossos místicos, pensará que éles desprezam
o corpo. Usam freqüentemente uma lingua-
gem e um estilo impregnados de maniqueís-
mos, assim como nós dizemos aqúcar, álgebra
e alfazema, sem que isso nos obrigue a invo-
car Alá ñas mesquitas. Cada heresia deixou,
como cada invasáo, uma marca; mas essa
marca representa, como gloriosa cicatriz, uma
vitória da ortodoxia. O cristáo deseja salvar
o corpo também; deseja possuir um corpo glo-
rioso; e o último de seus apetites é ser alma-
do-outro-mundo. Mas sabe que ésse triunfo
exige uma ginástica, uma redugáo, uma con-
centracáo e um mínimo. Possui pouco, para
possuir realmente. E nisso se encontram, e
náo por mero acaso, dois enormes proveitos
que nenhuma outra doutrina consegue con-
ciliar: o interésse próprio e o da coletividade;
a justa medida da posse, em proporgáo com
o homem, e o amor ao próximo.
Há uma profunda diferenqa entre a idéia
de possuir pouco e a de tentar a nada pos-
suir. Pode-se dizer que a primeira significa
uma perfeigáo da posse; a segunda, evidente-
mente, indica uma negacáo. Possuir pouco
quer dizer possuir bem; possuir muito quer
dizer possuir mal, e, portanto, deixar de pos-
suir bem os elementos mais próximos e mais
244 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

preciosos. A pobreza crista, no plano natural,


é uma defesa, é um recuo, uma formagáo
militar em quadrado cerrado, uma fortifica-
gao do mínimo necessário, uma saúde para a
alma e para o próprio corpo. O capitalista
é o homem que náo se possui e que á fórga
de exercer e se deliciar com o dominio náo
se domina. Um exemplo talvez torne mais
viva essa diferenga entre o mínimo e o nada:
O homem que afia uma navalha deseja que
a lámina tenha um certo mínimo de acó, e
aplica-se laboriosamente em gastar o ago
contra o esmeril. Um observador desatento
concluirá que aquéle homem náo gosta do
ago, que a religiáo daquele homem é contrá-
ria aos metáis, e que a operagáo a que se
entrega tem o sentido de fazer a navalha
tender para zero, sendo atingido o seu ideal
quando tiver na máo apenas um cabo. Ora,
éle está reduzindo o ago justamente porque
precisa do ago, e porque precisa, para seu fim
especial, que ésse ago seja mínimo.
Mas nessa mesma operagáo há um risco
que todo barbeiro conhece: virar o fio. E foi
ésse risco que o papa viu na ordem nascente
dos franciscanos. A redugáo do mínimo ne-
cessário, a restrigáo dos bens, mesmo volun-
tária, é por vézes desaconselhável, sendo mi-
lhares os casos de ascetismo que a solicitude
da Igreja procurou mitigar. A boa vontade
também se engana em seus limites; e ainda
que o engano tenha a boa diregáo, náo deixa
de ser engano e de ser nocivo. Varia muito
de um para outro o mínimo necessário; mas
a fixagáo désse valor num mínimo-mínimo,
PARA NÁO SER ESCRAVO. 245

como é o caso dos ascetas, só pode ser com-


preendida e admitida como um ato voluntário,
livre, e, na ordem sobrenatural, solicitada por
uma especial vocagáo.
O capitalismo é um mal, o mal por exce-
lencia na ordem social, porque impede que os
homens sejam pobres, obrigando-os a serem
miseráveis. Impede que os homens exergam
o livre dominio sóbre si mesmos, impondo-
lhes um dominio sem tréguas que os ator-
menta no corpo e na alma. O ideal do capi-
talismo é que todos, com exclusáo de um
punhado de privilegiados, sejam ascetas á
fórga; e nos momentos de crise (como Ches-
terton o denunciou), seus campeóes langam
máo da demagogia exatamente igual á dos
socialistas, incitando os homens ao trabalho
em nome do interésse coletivo, da prosperi-
dade das instituigóes, da posteridade, de tudo
enfim que náo seja simplesmente a posse, o
dominio sóbre a propriedade privada. A Igre-
ja defende o direito da propriedade privada,
e por isso, lógicamente, se opóe ao capitalismo
e ao socialismo que, de máos dadas e com o
mesmo vocabulário, procuram destruir essa
idéia antiga e venerável.
A Igreja Católica defende o direito á pro-
priedade privada; a idéia de posse é insepa-
rável da vida cristá, mesmo na ordem natural.
A tendéncia do ascetismo, mesmo nos seus
maiores arreba lamentos, é a de possuir, ainda
que seja para se despojar junto ao primeiro
pobre que encontre. A ésse respeito convém
assinalar um elemento que geralmente se
considera como coisa marginal, mas que es-
246 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

clarece de modo especial a vida económica dos


santos: refiro-me á esmola. Se tóda a pre-
gagáo da Igreja e todas as vidas de santo
girassem em torno da distribuido das esmo-
las, poderia ficar no espirito de um mau
ooservador a idéia de que o católico é uma
espécie de fanático quando é bom católico;
e que éle se despoja do dinheiro como de um
mal. Um raciocinio elementar indica logo o
érro dessa suposigáo, porque, se a esmola é o
“sacramento da caridade”, como disse Sáo
Cipriano, é de supor que a natureza do objeto
dado seja bom. Ninguém distribuiría coisas
más por caridade. Ninguém, tomado de um
súbito escrúpulo, e de um fervor religioso,
sairá distribuindo pelos orfanatos seus livros
de sexologia moderna ou pelos bairros prole-
tários sua biblioteca de materialismo histó-
rico. A esmola é boa porque o dinheiro ou a
espécie sáo bons; quem dá náo se despoja do
dinheiro própriamente dito, mas da injusta
medida.
Mas há um outro fato que completa a
apreciagáo do problema. Os santos dáo esmo-
las, mas também pedem esmolas. O próprio
Sáo Francisco de Assis, exemplo de despren-
dimento, passou tóda a sua santa vida a pe-
dir esmolas. Por ai se vé que a esmola é uma
espécie de comércio dos santos, anarquizado
porque voluntario, mas com uma tendéncia
muito clara e muito nítida apesar da vital
anarquía em que se processa. E a tendéncia
é a de espalhar, difundir, distribuir a pobre-
za; é a de evitar no seio da sociedade cristá
a hipertrofia, o gigantismo, a centralizacáo.
PARA NÁO SER ESCRAVO. 247

Nao se pode transformar a prática da esmola,


que é uma prática vital, num sistema eco-
nómico. Mas pode-se tirar déla a idéia geral
a que deve obedecer um salutar regime, ou
melhor, pode-se tirar da esmola alguma coisa
que nos diga o pensamento de Deus em ma-
téria de economia política. Da caridade, que
é a maior das virtudes, tira-se a justica; e,
por isso, no caso dos problemas sociais (que
envolvem o trabalho, o salário justo, e a dig-
nidade do trabalhador), essa justiga tem de
ser tirada, e formulada, e concretizada em
corpo de doutrina, náo sendo absolutamente
justificável, como táo bem salientou Pío XI,
em Quadragesimo Anno, que a ela se fuja,
justamente em nome da caridade. “Como se
a caridade devesse encobrir a viola$áo da
justiga.”
A doutrina social da Igreja já existe; já
está formulada e magistralmente formulada;
e náo é difícil descobrir que está tóda edifi-
cada sobre o Evangelho, e que guarda uma
proporgáo com a tradicional ascese cristá. Os
instrumentos das boas obras, a prática do
jejum e da esmola, interceptam, no plano da
ordem natural, uma doutrina de distribuigáo
e de dignificado dotada de necessária lar-
gueza para náo depender de vocacóes e de con-
digóes naturais especializadas. Essa doutrina
existe, é um instrumento prático adequado a
uma agáo praticável. Mas a curiosa objegáo
que levantam contra ela, pelo que tenho ou-
vido, é a de náo ser uma nítida receita ou
um inflexível plano de agáo. Eu fico pen-
sando que muita gente esperava de Leáo XIII
248 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

e de Pió XI qualquer coisa como, por exemplo,


uma recomendagáo da policultura ou uma
proibigáo do gado zebu. Ou (quem sabe?) a
cor de um uniforme e o gesto de uma sauda-
gáo. Há uma tendencia hoje a se considerar
prático únicamente o que é técnico e mecá-
nicamente delimitado; e diante de uma dou-
trina moral, que entretanto prescreve coisas
extremamente práticas, o homem fica per-
plexo, decepcionado, sem saber o que fazer de
um elemento enorme que sobra: a sua liber-
dade, e a sua responsabilidade moral. E como
o papa náo pode administrar o purgante que
alivie a humanidade, voltam-se muitos para
outros salvadores que lhes sirvam do óleo de
ricino.
O DISTRIBUTISMO

Nao se pode dizer, rigorosamente, que


Chesterton tenha uma doutrina social. Como
já disse atrás éle é mais um homem de idéias
do que um doutrinador, e o mérito de sua
obra consiste na manipulado dessas idéias,
na organizado particular e original dos ar-
gumentos, a servido da doutrina clássica. Seu
distributismo náo é mais do que a doutrina
social da Igreja apresentada de um modo
chestertoniano, caracterizando-se pela acen-
tuagáo de certos pontos e náo pelo conteúdo.
A idéia central é a da defesa da pequeña pro-
priedade e da pequeña empresa contra o gi-
gantismo, que já no seu tempo ameacava a
sociedade, e que no nosso tornou-se uma cala-
midade declarada. Afirmava o direito á pos-
se, náo como uma concessáo, mas ousada-
mente, como outorgado por Deus; admitía o
capital enquanto indispensável reserva, mas
náo admitía, de modo algum, o capitalismo,
porque a principal característica désse regime
a seu ver está na raridade e náo na abundán-
cia do capital. O capitalismo é uma situad0
em que quase ninguém tem o capital e em
que quase ninguém possui. Náo sáo a exis-
téncia e o uso do capital que constituem o
capitalismo, é antes a sua quase inexistencia
250 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

ou seu abuso. Por isso, nos tempos de mogo,


teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de
capitalismo como improprio e contraditório,
propondo em seu lugar o de pauperismo ou
proletarismo já que sua principal conseqüén-
cia é sem dúvida a difusáo da miséria e do
proletarismo escravizado. Mas reconheceu
que sua denominagáo dava lugar a certas con-
fusóes quando se referia, por exemplo, ao
pauperismo de Lorde Northumberland. Voltou
á designagáo corrente; mas de vez em quando,
ao longo de sua obra, manifesta uma visí-
vel antipatia: “eu náo gosto dessa palavra;
é feia.”
O capital em si é inteiramente admissível,
pertenga éle a um só ou a uma corporagáo,
ao Estado ou a uma sociedade anónima; o
capital, em si, existirá sempre por uma razáo
extremamente simples: o ritmo da produgáo
náo é igual ao ritmo do consumo. A econcmia
privada gasta-se numa lixa cotidiana e con-
tinua, pois os homens comem, vestem-se e
moram todos os dias. A produgáo, ao contra-
rio, tem geralmente um ritmo mais largo, que
no campo obedece ás quatro estagóes, e ñas
cidades, á organizagáo industrial. Por isso,
uma vez que o homem gasta continuamente,
e fabrica descontinuamente e em prazo longo,
torna-se inevitável o acúmulo de reservas,
como ñas représas e nos agudes. Negar o ca-
pital como legítimo instrumento equivale a
negar o armazém, o estoque, o saco, a gaveta
e o bolso. Equivale a obturar todos ésses bu-
racos onde o homem, como a formiga, guarda
as reservas de seu trabalho.
PASA NÁO SER ESCRAVO. 251

O que Chesterton combate é o capitalis-


mo, e combate-o por ésse motivo que pode
parecer original: porque o capitalismo é, de
fato, contrario á idéia de posse. Considerando
o capitalismo ñas suas origens e causas, estu-
dando o ambiente do liberalismo e apreciando
o fenómeno de dissociacáo entre o conceito
de posse e o de responsabilidade moral, con-
cluimos que o capitalismo foi gerado por um
desregramento da propriedade e da liberdade;
mas tomando o fenómeno tal como hoje se
apresenta, considerando-o um fato, observa-
mos que seu caráter atual é heterogéneo com
suas origens, o que náo é de espantar, tra-
tando-se de um érro prático, que é necessária-
mente antinómico. O capitalismo, inteira-
mente desabrochado, tornou-se um paradoxo
em relagáo ás suas origens: a hipertrofia da
idéia de posse tornou-se uma atrofia; a livre
competigáo degenerou em privilégio. A pri-
meira vista náo parece existir privilégio, uma
vez que a estrutura politicamente democrática
assegura a qualquer cidadáo as mesmas opor-
tunidades e direitos de despojar os outros ci-
dadáos. Na realidade ésse julgamento é falso
e resulta de uma confusáo entre democracia
política e democracia económica. O privilégio
é diferente daquele que distinguía a nobreza
da plebe, mas continua a ser um privilégio
mais ou menos análogo ao que distingue dos
homens comuns um jogador de xadrez excep-
cionalmente dotado. Estando o dominio da
economía reduzido a uma técnica ou uma
arte, e náo havendo nenhum compromisso
moral, o capitalista é qualquer coisa como
252 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

um campeáo de bilhar ou de xadrez; é um


especialista.
Náo insisto na amoralidade ou na imorali-
dade dos processos que permitem o vertiginoso
enriquecimento, mas insisto na especialidade
técnica que faz do capitalista um privilegiado.
Se o direito de posse é um direito comum
náo pode ser um privilégio. Logo, o capita-
lismo como tal, de fato, é uma negagáo do
direito á propriedade privada. Talvez seja
negativo o dom principal do moderno herói
das fmangas; talvez seja simplesmente uma
falta de escrúpulos; ou talvez seja uma espe-
cial falta de imaginagáo. Um homem normal
(e normalmente dotado de escrúpulos e ima-
ginagáo) ou recua diante de certas situagóes,
ou distrai-se apreciando o desenho de uma
flor: e basta ésse pequeño colapso em sua
defesa para que o obstinado, que náo recua
ou náo se distrai, ponha um pé diante e tome
conta de um pequeño pedago dos trés alqueires
que o outro náo soube guardar. É verdade
que o outro náo soube guardar. Mas se ga-
nhar é uma técnica, o guardar é também uma
arte em que nem todos sáo capazes.
Eu disse acima que o capitalismo atual
está em contradigáo com suas origens e com
a idéia de propriedade. A contradigáo vai
ainda mais longe e chega até o nivel da psico-
logía de seus habilidosos campeoes. O capi-
talista hoje, sendo um dionisíaco, prende-se
menos á propriedade concreta do que á agáo.
O que éle quer acima de tudo é o dominio
sóbre os homens, o poder conferido marginal-
mente por um Estado ainda tolerante nessa
PARA NAO SER ESCRAVO.
253

matéria. Tivesse éle o apetite das coisas con-


cretas, o mal náo seria táo grande, porque
essas coisas encontram seus limites mais de-
pressa que o poder. Um homem rico náo pode
comer muito mais do que um pobre; nem
muito melhor. E o capitalista moderno é ge-
ralmente sobrio. O pobre, nos delirios de sua
miséria, imagina o ricago com um enorme
guardanapo no pescogo, a se fartar das mais
esquisitas iguarias; mas na verdade o milio-
nário é um pobre sujeito que tem uma dieta
rigorosa e que vive de pílulas. Também náo
pode morar em muitas casas nem sustentar
um harém, porque os incómodos que essas
coisas trazem, cedo ou tarde, o impelem a um
esquema mais simples de duas ou trés casas
e de uma só mulher como reserva clandestina,
para náo cair na excessiva simplicidade da
monogamia. O rico, em suma, é um homem
de costumes muito mais moderados do que
alguns oficiáis de gabinete ou subchefes de
segáo ñas repartigoes públicas.
O capitalista moderno é um homem em-
preendedor que muitas vézes acorda cedo, que
quase sempre trabalha pelo amor ao trabalho,
e que tem a mística das realizagoes; e é nisso
que consiste sua insanidade e sua monstruosi-
dade. O capitalista, em poucas palavras, é um
chefe de pequeña república socialista enquis-
tada no corpo de uma nagáo.
O distributismo de Chesterton (que tinha
por divisa, entre outras, a fórmula rural que
escolhi para título déste livro, cuja capa foi
tirada de um desenho do próprio Chesterton)
combatía o capitalismo pelo que ésse regime
TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA
254

tem de semelhante ao socialismo no que se


refere ao direito de propriedade e á dignidade
humana. Chesterton pugnava pela pequeña
propriedade e pela pequeña empresa. Reco-
mendava, com grande escándalo de um jornal,
que recusou um artigo seu a ésse respeito,
o boicote sistemático dos grandes armazéns.
E tomava como sua uma palavra de Francis
Bacon: “A propriedade é como o estrume, só
é boa quando espalhada.”
OBJECÓES

A campanha distributista iniciada por


Chesterton encontrou na Inglaterra de seu
tempo, como encontrará aqui e em todos os
tempos, uma onda de objegóes dos mais va-
riados tipos convergindo uniformemente para
a mesma palavra condenatoria: utopia. As
duas principáis objecóes, propostas por Shaw,
consistiam no seguinte: primeiro, a proprie-
dade distribuida náo ficaria distribuida muito
tempo porque necessáriamente se tornaria
desigual, dada a desigualdade dos homens;
segundo, a idéia era utópica e anacrónica,
porque corresponde a um padráo medieval
definitivamente ultrapassado.
Chesterton responde á primeira objegáo
com grande vivacidade dizendo náo existir
nenhuma tendéncia económica natural que
determine o desaparecimento da pequeña pro-
priedade senáo quando ela se torna de fato
pequeña demais.
Se um homem tem cem acres e um outro só tem
meio acre, é muito pouco provável que éste último con-
siga viver nesse meio acre. Haverá entáo uma tendén-
cia económica que o impelirá a vender sua terra fazendo
do outro homem o orgulhoso proprietário de cem acres
e meio. Mas se um homem tem trinta e outro tem
quarenta, náo há tendéncia alguma que leve o primeiro
a vender seu bem ao segundo. E’ completamente falso
dizer que o primeiro náo se pode manter com trinta e
256 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

que o segundo nao pode se contentar com quarenta. E’


um completo absurdo; é o mesmo que dizer que um
homem que possui um bull-terrier está obrigado a ven-
dé-Io ao vizinho que possui um mastiff. E’ o mesmo que
dizer que eu nao posso ter um cavalo porque um vizinho
excéntrico possui um elefante.
E ao cabo de uma argumentagáo prolon-
gada, éle chega a uma conclusáo, cujo prin-
cipal fundamento é uma inabalável confianza
na natureza humana.
O direito á propriedade é um ponto de honra. A
palavra exatamente contrária de propriedade é prosti-
tuiQ&o. E náo se pode dizer que um ente humano ven-
derá sempre aquilo que é sagrado, nesse sentido de pro-
priedade Intima e privada, seja o corpo, ou as fronteiras
de sua terra. Alguns o fazem: mas fazendo-o ficam
sempre desclassificados em ambos os casos. Mas nao
é verdade que a maioria o faga; e quem o afirmar é um
ignorante — nao de nossos planos e projetos, nao das
visóes e ideáis que alguém acalente, náo do distributis-
mo ou da divisáo do capital por tais ou quais processos
— é um ignorante dos íatos da historia e da substancia
da humanidade.
Quanto á segunda objegáo, que diz respei-
to ao anacronismo de seu ideal económico, éle
diz: “Eu mantenho o velho e místico dogma
pelo qual o que o Homem já féz, o Homem
pode fazer. Meus críticos parecem manter um
dogma ainda mais místico, pelo qual o Homem
náo pode fazer uma coisa porque já a féz
um dia.”
Devo entretanto dizer que a resposta de
Chesterton á primeira objegáo náo me parece
perfeita. Implícitamente está contido o ele-
mento que faltou á argumentagáo explícita.
PARA NÁO SER ESCRAVO. 257

A verdade é que existe aquela tendencia eco-


nómica para o gigantismo, pela qual o dono
do elefante acabaría comprando o cavalo, o
mastiff, o bull-terrier, e mais animais hou-
vesse pela regiáo. Existe, de fato, essa ten-
dencia, enquanto a economia se enquadrar
nos principios do liberalismo, que separam o
direito de propriedade de uma nogáo de res-
ponsabilidade moral, isto é, enquanto o campo
económico fór considerado um dominio pura-
mente técnico, e portanto amoral. Como existe
também, e ainda mais forte, a tendéncia de
absolver todos aquéles animais num grande
instituto zootécnico, quanto mais a economia
se enquadrar nos principios do socialismo.
A tendéncia, em qualquer dos casos, que sáo
os casos reais e atuais, é a de ficar o homem
sem os seus bichos, sem a sua casa e, na
marcha em que váo as coisas, sem a mulher
e os filhos. A única fórga que se pode opor
a essa fórga bruta e cega que aglutina a ma-
téria e que faz o cáncer se dilatar, é a revo-
lugáo moral, a restauragáo da propriedade
como base económica da liberdade e da cida-
dania, mas condicionada ao uso e ligada á
responsabilidade moral. Na verdade, o que
Fulton Sheen diz explícitamente, traduzinde
a doutrina oficial da Igreja, Chesterton diz
apenas de modo implícito, em brioso apélo á
humanidade do homem, deixando assim (por
essa pequeña falta de precisáo) o problema
exposto aos seus adversários. E deixando tam-
bém a suposigáo de que éle está desejando a
volta dos áureos tempos do liberalismo, o que
é inteiramente falso porque, embora liberal
258 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

em política prática, éle é um ardoroso adver-


sario do liberalismo filosófico.
Quanto á segunda objegáo, eu creio que a
resposta é plenamente satisfatória; mas tam-
bém creio que é a mais chocante para o ho-
mem moderno, porque náo há idéia que en-
contré táo fácil acolhida quanto essa, de supor
que as coisas que foram feitas, foram neces-
sáriamente ultrapassadas. A posicáo de nosso
autor, nessa questáo, é especialmente cora-
josa, afrontando a opiniáo corrente no ponto
que é considerado um vértice da moderna sa-
bedoria. No seu livro The Outline of Sanity,
no capítulo The Chance of Recovery éle desen-
volve uma argumentaqáo para mostrar que
certos passos atrás, certos recuos, sáo táo ra-
zoáveis em História como na vida cotidiana
ou ñas operagoes militares.
CAPITALISMO E SOCIALISMO
A posicáo usualmente adotada pelos ob-
servadores que desejam comparar ésses dois
monstros produz um érro de perspectiva
muito explicável. O observador entra no re-
cinto em que os monstros sáo expostos. e me-
tendo-se no meio dos dois, conclui que se
opóem, simplesmente porque éle, observador,
instalou-se num centro que a bem dizer náo
era central. Bastará recuar um pouco ou pro-
curar o verdadeiro centro para descobrir que
as semelhangas sáo muito maiores do que as
oposigóes. Diz por exemplo Fulton Sheen:
“O capitalismo insiste no direito á proprie-
dade, mas esquece seu uso social; o comu-
nismo insiste no uso social, mas esquece os
direitos da pessoa.” A construgáo simétrica
da frase indica claramente que o observador
já escolheu sua posigáo e tira conclusóes de
uma perspectiva.
Pelas razóes que já expus, o capitalismo,
de fato, náo insiste absolutamente no direito
á propriedade: éle explora uma bandeira que
já encontrou e vive á custa de um privilégio
oposto ao direito de propriedade. Qual é o
defensor do capitalismo que insiste no direito
de propriedade? Com que voz fala o monstro?
Chesterton mostrou com muita finura que o
260 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

monstro contraditório é mudo porque náo


tem o que dizer.
Existe uma coisa que poderíamos chamar um dis-
tributismo ideal, se bem que, nesse vale de lágrimas,
náo podemos esperar que o distributismo seja ideal.
No mesmo sentido, há certamente alguma coisa que
poderíamos chamar um comunismo ideal. Mas náo exis-
te nada que se possa chamar capitalismo ideal, e náo
existe um ideal capitalista. Como já observamos (se bem
que nao tenha sido isso repetido como seria de desejar)
todas as vézes que um capitalista se torna um idealista, e
principalmente quando se torna um sentimental, éle
fala sempre como um socialista.
O capitalismo é económicamente contra-
ditório: baseia-se ao mesmo tempo no lucro
ilimitado, que empobrece o povo, e no elevado
poder aquisitivo dos mesmos miseráveis. Es-
trebucha na agonia lanzando máo da propa-
ganda psicológica que é um bluff grosseiro,
porque se gaba publicamente de ser um bluff;
e nos últimos espasmos, náo dispondo de ne-
nhum outro recurso para incentivar os ope-
rários a trabalharem com salários mínimos,
lanca máo da eloqüéncia socialista e invoca
o testemunho da posteridade. Hoje, na fase
que atravessamos, duvido que exista um só
milionário, um só capitalista que náo tenha
feito seu pequeño discurso vermelho. O ca-
pitalista olha para o monstro vizinho como
quem busca recursos, como quem procura imi-
tar um ator de sucesso para ver ser adquire
um pouco de sua falada sedugáo.
Aquela definigáo de Fulton Sheen, segun-
dó~a qual o capitalismo insiste no direito á pro-
priedade, náo convém. ao capitalismo de fato.
PARA NAO SER ESCRAVO.
261

Talvez seja aplicável á situacao económica do


século XIV, ou á triste alvorada do libera-
lismo. Na verdade, e principalmente no que
se refere á pessoa humana, o liberalismo foi
o comégo do desumanismo, anárquico, con-
fuso, eufórico; o capitalismo é o desumanismo
quase perfeito, mas ainda com certos elemen-
tos indecisos; o totalitarismo fascista ou co-
munista é o desumanismo levado á suprema
perfeigáo.
Isto, aliás, pode dar ;ima idéia de como
um socialista vé o capitalismo. O socialista
vé o capitalismo com uma profunda irritagáo,
considerando-o seu adversário mais perigoso.
E o mais perigoso, porque mais fácilmente o
pode absorver; e mais irritante, porque mais
parecido. O que o socialismo mais detesta e
mais combate no capitalismo é a empírica
anarquía com que ésse regime mecaniza o
homem; é, digamos assim, um sentimento de
sacrilégio que agita o marxista, quando éle
vé as imperfeitas centralisagóes da sociedade
capitalista. A relagáo entre o socialismo co-
munista e o capitalismo pode ser comparada
a um acorde de sétima em música. A proxi-
midade gera a dissonáncia; o quase produz
a máxima exasperagáo.
O marxismo é uma concepgáo técnica do
universo; o capitalismo náo é própriamente
concepgáo mas é um estado que produz uma
gradativa e irresistível aproximagáo de um
tecnicismo total, ainda que guarde uma irri-
tante sobra de humanidade, sobra de caráter
negativo e com o odioso aspecto de um privi-
légio. O socialista, rigorosamente técnico e
262 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

ortodoxo, detesta no capitalismo essa sobra


de humanidade, e náo o sinal negativo dessa
sobra. O leitor que se julga socialista e que
discordar de mim, — consciente de que sua
indignagáo náo é uma mera indignacáo de
maquinista, mas uma revolta moral, uma re-
volta de homem — entáo náo é socialista.
É um equivocado; é um sujeito como qual-
quer outro, como Chesterton e como eu.
O GIGANTISMO
Diversos amigos, que partilham comigo o
amor pela Igreja de Cristo e o horror pelo
capitalismo, pelo fato de estar mais ou menos
divulgada e aceita a oposigáo entre socialis-
mo e capitalismo (que provém de uma falsa
perspectiva), vivem a procurar, ou o que seja
cristámente admissível no socialismo, ou o
que exista de mais socialmente avancado no
catolicismo. Num ponto eu dou razáo a ésses
amigos. A designagáo de socialista tornou-se
vaga, e vagamente simpática na suposigáo de
significar um interésse pelo pobre. Nesse
caso eu concordo inteiramente com o inte-
resse real e vital de oferecer nossa simpatía
aos que padecem em nome da justiga. Pode-
ria dizer, parodiando Chesterton, que pouco
me importa o nome que tenha a filosofia dés-
ses equivocados que se dizem socialistas mas
estremecem por uma virtude moral. Há entre-
tanto um imenso perigo em náo se importar
com os nomes das coisas: pode acontecer que
na hora de tomar uma decisáo prática, no
momento do maior calor de justiga, o indi-
viduo entre numa porta cuja tabuleta ostente
o nome que éle se habituou a associar aos
seus sonhos de um mundo melhor.
Há no homem um inveterado costume de
acompanhar sinais simples: bandeiras, están-
264 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

dartes, tabuletas ou cruzes. Um sinal pode


ser um sinal de vitória; uma tabuleta pintada
pode ser vista numa tarde de ardor socialista
como uma bandeira multicor, onde todos os
anseios da humanidade estáo condensados e
misteriosamente simplificados. Além disso,
outro inveterado costume do homem é c de
contrair costumes inveterados, isto é, de con-
tinuar o que comecou, sendo fiel ainda mes-
mo aos maus passos. Por isso, fácilmente, o
equívoco de uma tabuleta pode ter conse-
qüéncias táo funestas como o equívoco de
uma escolha pouco refletida no casamento.
A conclusáo dessas digressoes é que náo se
deve jogar com a palavra socialismo e que
náo se devem desprezar as definigoes das
coisas. O marxista fala em etapas em vez de
dar definigoes, e nega o primado da palavra,
porque sua arregimentagáo especula, exata-
mente, com essa tendéncia que o homem tem
de crer ñas palavras.
Mas o ponto que mais me interessa ago-
ra, e para o qual invoquei meus bons amigos,
é outro; diz respeito a uma preocupacáo que
éles tém de mostrar que o catolicismo náo é
um aliado do capitalismo. Ou melhor, diz
respeito ao método que adotam a partir dessa
preocupagáo. Insistem ñas restrigóes que
nossa doutrina opóe á propriedade privada
e advogam a mais ampia possível socializagáo
dos meios de produgáo, ressalvando embora
os objetos de uso próprio, como o lápis, a
roupa e talvez a casa. Ora, essa posigáo é
antidistributista, e ouso dizer, até onde posso
ir, que náo corresponde perfeitamente á nossa
PARA NÁO SER ESCRAVO.
265

doutrina. Eu prefiro dizer, para mostrar


nossa oposiqáo ao capitalismo, que defende-
mos o direito da propriedade privada, e que,
por isso, somos anticapitalistas. Desejamos
a difusáo da propriedade, e por isso somos
anticapitalistas e anti-socialistas. Batemo-nos
pela propriedade, repetirei mil vézes depois
de Chesterton, mas pela pequeña propriedade,
isto é, por aquela que tenha a medida do
homem.
Na teoria de um de meus amigos devería-
mos aderir corajosamente á socializado dos
meios de producáo, ressalva feita dos objetos
de uso pessoal e com a compensad0 de ordem
espiritual concretizada na liberdade de im-
prensa, na liberdade de culto, no maior in-
centivo das ciéncias e das artes. Ora, se
buscarmos para ésse problema uma analogía
com o ascetismo, concluiremos que é lícito
abandonar as coisas mais remotas para de-
fender as mais próximas. A pobreza é um
atletismo. O abandono de bens distantes, o
abandono individual, pessoal, visa a maior
perfeigáo individual e pessoal. (E se alguém
disser que o desejo de perfeigáo dos elementos
de uma sociedade que desejamos mais per-
feita é uma forma de egoísmo, entáo eu nem
saberei responder, havendo certas objecóes
que sáo realmente irrespondíveis). Voltando
ao assunto da socializado, eu diría, de modo
ligeiramente diferente, que admitimos a so-
cializado dos meios de produgáo, de tal ou
qual maneira, para consolidar a retaguarda
da propriedade privada. Náo se trata de
admitir um mínimo para socializar um má-
266 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

ximo, mas de socializar para assegurar ésse


mínimo. O equilibrio da socializado por meio
de coisas chamadas espirituais tem um certo
sabor marxista; quanto a mim, nunca me
consolaría se perdesse minha casa numa ci-
dade perfeita onde tivessem lugar os mais
famosos concertos do mundo. Ouso dizer que
náo a trocaria mesmo pela liberdade de culto;
porque se a perdesse, náo por minha própria
incapacidade de guardar, mas por decreto, já
me sentiria numa babilonia e dentro de uma
perseguigáo religiosa. Náo há de fato liber-
dade de culto onde náo há liberdade de
morar. Cada casa de cristáo é uma filial de
Matriz.
O verdadeiro equilibrio nesse problema
que está tragado num plano natural tem de
ser encontrado nesse mesmo plano. Náo me
falem em compensacoes espirituais porque eu
estimo as leis da matéria, a boa ordem na-
tural e o verdadeiro primado do espirito, que
deve abranger todo o conjunto e náo ficar
como um braco de alavanca. O verdadeiro
equilibrio da socializaqáo de certas coisas, se
por isso entendermos a co-propriedade das or-
ganizares necessáriamente grandes, só pode
ser obtido pela consolidacáo da pequeña pro-
priedade privada. Se a socializagáo náo visa
ésse ideal, se náo se orienta tóda para que
cada homem tenha sua casa, maior ou me-
nor, se náo tende a manter, guardar e au-
mentar o dominio sobre as coisas e o direito
de dar nome aos seus animais domésticos,
entáo, pelo amor de Deus, para que servirá
essa socializagáo?
PAEA NÁO SER ESCRAVO. 267

A idéia é esta: é um absurdo que um só


homem possua um servieo de bondes ou uma
companhia telefónica; porém, mais absurdo
ainda, terrivelmente mais absurdo, é que um
homem náo possua uma casa. E que náo a
possua (embora viva sonhando com ela, e
passe os domingos a riscar em papel quadri-
culado plantas que nunca seráo plantadas na
boa terra que nos foi dada), porque o homem
que possui a companhia de bondes possui
também todas as casas. Vamos, pois, retirar
ao homem dos bondes seu ilegítimo bem, va-
mos despojá-lo dos apartamentos que aluga,
vamos entregar as coisas que sejam indivisí-
veis a um regime de co-propriedade; mas va-
mos fazer isto, por bem ou por mal, para que
aquéle outro homem que hoje passa os do-
mingos a riscar fantasmas de casas, vá um
dia, num domingo, com a mulher e os filhos
num local, num chao, e possa apontar com a
biqueira do guarda-chuva: “Aquí é o quarto
das criangas!” De outro modo estamos todos
doidos, a desejarmos coisas que náo sáo dese-
jáveis e que náo aproveitam a ninguém.
Um banqueiro (e talvez alguns bancá-
rios), lendo estas páginas, conceberá um su-
perior desdém por todo ésse debate, e mal
verá a enigmática diferenga entre os dois
enunciados da mesma questáo. Há uma su-
perstigáo que atribuí á filosofía uma absoluta
inutilidade prática. Ora, náo há nada mais
prático do que uma filosofía; náo há nada
mais prático do que uma distingáo. É pela
fórga das distingóes e das boas definigóes que
tomamos um ónibus ou escolhemos um prato;
268 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

e é pela fórga e mérito de uma filosofía prá-


tica que podemos conhecer a boa tendéncia a
ser transformada em agáo prática, cada vez
que a contingéncia da vida e do convivio nos
afrouxa um pouco os lagos. Com a fórmula do
meu amigo, a tendéncia seria a da socializa-
gao; com a minha, a tendéncia será a da pro-
priedade privada, e distribuida. A diferenga
será mais clara se dermos um exemplo: a
equipe dos socializadores andará pela cidade
procurando o que há ainda para ser sociali-
zado, tal como acontece com o sujeito que
compra um pincel e uma lata de tinta para
fazer um retoque em casa, e fica súbitamente
possuído pelo demonio da pintura, cuja ten-
déncia é o alastramento indefinido. Ao con-
trário, a outra equipe, á qual desde já prometo
meus servigos, procurará saber o que náo deve
socializar. Já se vé que minha tendéncia é
centrípeta; a do meu amigo, centrífuga. E é
isso o que lhe censuro.
Chesterton manifestou, sempre que pode,
um acentuado horror pelo gigantismo; eu
professo horror igual, e com razóes mais pes-
soais do que éle, tendo experimentado na
carne, nos olhos, na razáo, na memoria, na
vida, a insanidade de um Estado centraliza-
dos Éle conheceu o capitalismo; eu conheci
o exótico socialismo que, uma vez plantado,
deu e vicejou nesta graciosa terra.
Mas devo reconhecer que um regime de
co-propriedade (para evitar a palavra socia-
lizagáo que me parece inseparável da idéia
de ditadura) será aplicável e bom em certas
coisas, a fim de consolidar outras. O criterio
PARA NÁO SER ESCRAVO.
269

é muito simples. Há coisas naturalmente pe-


queñas e coisas naturalmente grandes. Um
ponto de cigarros é um negocio naturalmente
pequeño, pois em dois metros por trés, o ne-
gociante de cigarros atinge a uma perfeigáo
de forma, tendo em número razoável para a
procura todas as marcas existentes. Um
ponto de cigarros monumental, com trezentos
metros de fachada náo é mais perfeito que o
pequeño; náo passa de uma porgáo de peque-
ños pontos que se aglutinaram num só, per-
dendo a independencia de forma; e em con-
seqiiéncia, o grande é menos perfeito que o
pequeño. Já o mesmo náo se pode dizer de
um servigo de bondes: seria inteiramente
extravagante pretender que cada um tivesse
o seu bonde. Uma fábrica de pregos, ou de
rádios ou de locomotivas, exige uma quan-
tidade de máquinas e uma organizagáo só
compreensível em ponto grande. Cada coisa
tem um tamanho adequado á sua natureza,
assim como na zoología e mesmo na botánica,
e a regra, para qualquer negocio humano,
é esta: quanto mais próximo estiver o seu
tamanho do tamanho do homem, mais ade-
quado é ésse tamanho e mais perfeita é a
forma. Mesmo no caso das fábricas de bondes
ou de locomotivas, há um limite justo, como
para as baleias e para os elefantes. A con-
cepgáo industrial de nossos dias se baseia em
duas idéias que náo encontram sustentáculo
em nenhuma analogía natural ou sobrenatu-
ral, e que só podem ser realizadas nos pesa-
delos. A primeira idéia é que uma coisa é
tanto melhor quanto maior; a segunda é que,
270 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

entre as coisas a serem íeitas, deve-se come-


car pela maior. Qualquer psiquiatra dirá logo
onde é que florescem com um estuante e tro-
pical esplendor essas duas idéias. E qualquer
canceroso sabe que náo há vantagem nenhu-
ma no gigantismo.
O distributismo de Chesterton é uma
campanha contra o gigantismo; é uma tera-
péutica contra o cáncer social. Éle insiste no
valor social e moral da pequeña propriedade
e do pequeño negocio, e na supremacía do
rural sóbre o industrial. No trabalho agríco-
la, efetivamente, náo há nenhuma razáo para
aglomerar as pequeñas propriedades numa
fazenda totalitária e monstruosa. Uma ba-
tata náo é como o prego, um objeto que passa
por vinte ou trinta máquinas até chegar á
segáo de embalagem. Um homem sózinho
pode plantar batatas, literalmente ou figura-
damente, mas só com enorme trabalho che-
garia a fazer um prego que sairia custando
o prego de um martelo. É verdade que se
pode usar o mesmo raciocinio, e dizer que a
aplicagáo das máquinas agrícolas tornará
também a batata muito mais barata. Pode-se
dizer isso, se quiserem, mas náo é verdade.
Ou pelo menos está muito longe de ser táo
justo como no caso do prego. Quem insiste
muito na socializacáo das terras e na meca-
nizado do trabalho agrícola, só o faz por
causa de sua filosofía e da tendéncia que ela
imprime a todos os seus julgamentos, e náo
por causa da batata. O que éle quer é socia-
lizar; assim como outros querem colecionar
selos, jogar póquer ou impor uma ditadura.
PARA NÁO SER ESCRAVO.
271
Posso dar ainda um outro critério que me
parece útil nesses problemas. Se uma empresa
qualquer pode ser dividida em partes homo-
géneas, ela deve ser dividida; e está errada
enquanto náo for dividida. O aspecto carac-
terístico de uma fábrica é a falta de homo-
geneidade entre as diferentes segóes: aqui se
fura, ali se forja, acolá se pinta. E assim por
diante. Ao contrário, o campo é uma coisa
fortemente homogénea: aqui, ali e acolá, a
perder de vista, germina a mesma semente.
Logo, no campo pode ser realizado o verda-
deiro padráo de pequeña propriedade. Náo
digo que nos limitemos a trés alqueires e uma
vaca; mas digo que a fazenda ideal é aquela
que representa na terra a extensáo de uma
familia. A fazenda ideal é aquela em que pai
e filhos possam semear e colhér. A proprie-
dade rural é o campo magnético de uma casa,
é a aura que circunda uma mesa posta, é o
dominio que pode ser dominado.
O argumento dos gigantistas consiste em
demonstrar com álgebra e trigonometría que
as mesmas máquinas e a mesma adminis-
trado podem servir em extensóes enormes.
É claro que um trator, andando em linha reta,
pode atravessar uma provincia entre um nas-
cer e um pór de sol, mas na lavoura as má-
quinas andam em ziguezague, procurando
fazer o que os geómetras reputam impossí-
vel, isto é, cobrir ujna área com um sulco.
Por isso, um trator já terá muito o que fazer
dentro de uma área pequeña. Quanto á eco-
nomía da administracáo eu devo dizer que
o argumento é simplesmente estúpido, porque
l
272 TRES ALQUEIRES E UMA VACA
consiste em admitir que a administrado náo
custa nada, e que permanece a mesma quan-
do cresce o número de elementos. Ora, náo só
ela cresce como cresce numa razáo mais forte
do que o número de elementos. Náo fósse
assim, o reino animal nos proporcionaria
exemplos estranhos; todos os animais cres-
ceriam indefinidamente para aproveitar os
olhos, ou os ouvidos.
A conclusáo a que desejo chegar, com
Chesterton, é que a propriedade rural é a
última empresa a ser socializada, se alguma
coisa deve ser socializada. E essa era, certa-
mente, a opiniáo dos kulaks.
PROPRIEDADE E USO
Para melhor compreensáo das idéias de
Chesterton sóbre a distribuicáo da proprie-
dade privada convém saber, com maior pre-
cisáo, como se inscrevem elas na doutrina
católica. Pió XI, celebrando o quadragésimo
aniversário da Rerum Novarum de Leáo XIII,
formulou o programa distributista: “A ri-
queza, constantemente aumentada pelo pro-
gresso económico e social, deve ser distri-
buida por entre os vários individuos e classes
de modo tal, que seja assim alcanzado o bem
comum de todos.”
Mas, sendo conhecido sómente éste as-
pecto da questáo, ou tomadas as idéias de
Chesterton isoladamente e fora da doutrina
social da Igreja, corre-se o risco de interpre-
tar a defesa da propriedade privada no senti-
do individualista. Ora, nem a Igreja nem
Chesterton esperaram a guerra de 39 e o de-
solador aspecto do mundo moderno, para
compreender em toda a extensáo de suas con-
seqüéncias o horror do individualismo. Nossa
doutrina da propriedade contém dois térmos
que náo podem ser separados, sob pena de
caii’mos no liberalismo ou no totalitarismo.
Para maior precisáo filosófica, tomemos em
Jacques Maritain um resumo da doutrina
tomista: “No que concerne á propriedade dos
274 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

bens terrestres, Santo Tomás ensina que, por


um lado (e antes de tudo por causa das exi-
gencias da personalidade humana, considera-
da como elaborando e trabalhando a matéria,
e submetendo-a á forma da razáo), a apro-
priagáo dos bens deve ser privada, sem o que
a atividade fabricante da pessoa se exerceria
mal; mas, por outro lado (por causa da des-
tinado primitiva dos bens materiais á espé-
cie humana, e da necessidade que cada pessoa
tem désses meios para poder se dirigir aos
seus fins últimos), o próprio uso dos bens
individualmente apropriados deve servir ao
bem comum de todos. Quantum ad usum non
debet homo habere res exteriores ut proprias,
sed ut communes. Ésse segundo aspecto se
obnubilou completamente na época do indi-
vidualismo liberal, e pode-se pensar que a
violenta reagáo do socialismo de Estado a que
hoje assistimos lembrará aos homens o que
éles haviam esquecido: a lei do uso comum.”*
Mais adiante, na mesma página, acres-
centa o filósofo do pluralismo (que é uma
fórmula análoga ao distributismo): ore-
médio contra os abusos do individualismo no
uso da propriedade deve ser procurado, náo
na aboligáo da propriedade privada, mas, ao
contrário, na generalizado, na popularizado
das protegóes com que ela guarnece a pessoa
humana”.
Temos assim, do lado da pessoa humana,
o imprescritível direito de possuir: base eco-
nómica da liberdade segundo Fulton Sheen;
ponto de honra segundo Chesterton; mas
* JACQUES MARITAIN , Humanisme Integral.
PARA NAO SER ESCRAVO.
275
quanto á espécie humana o uso deve ser co-
mum. Essa fórmula clássica, extensa e clara-
mente ensinada ñas encíclicas Rerum Nova-
ruvi e Quadragesimo Anno, pode dar a im-
pressáo de incompatibilidade e contradigáo,
por causa de dois erros em que o pensador
moderno incide com irresistível facilidade,
ambos provenientes de uma fadiga intelec-
tual, que procura simplificagóes mutiladoras
a qualquer prego.
O primeiro erro, mais grave e mais sutil,
consiste em tomar a pessoa humana como
puro sinónimo de individuo no sentido que
ésse vocábulo tem para um liberal. Essa dis-
tingáo, pedra de toque do humanismo de
Maritain (que Chesterton náo formulava
como filósofo mas sentia como poeta, como
inglés, como homem e como cristáo), náo
pode ser feita aqui, extensamente, sem pre-
juízo da unidade déste livro, admitindo a
lisonjeira hipótese de que eu a soubesse con-
duzir de um modo maritainiano (ou chester-
toniano). Direi apenas que a pessoa humana
é uma realidade e um todo aberto, e intensa-
mente permeável ás linhas de fórga da comu-
nidade; ao contrário, o individuo, no vocabu-
lário do liberalismo, é um todo fechado, um
microcosmo cujas iónicas interferéncias so-
ciais tém o caráter de disputa e competigáo,
ainda que adornadas com o nome de compa-
nheirismo. Nesse sentido eu ouso dizer que o
comunismo é o coroamento do liberalismo, e
que em nenhum outro regime o homem é
mais desoladamente individual, porque suas
relagóes sociais tém apenas o sentido de
TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA
276
cooperagáo. A relaqáo entre individuo e so-
ciedade, tanto no liberalismo como no comu-
nismo, é de ordem puramente material; a
relagáo entre pessoa e sociedade compreende
também o aspecto material mas subordina-o
a um primado do espirito pelo qual o bem
comum é homogéneo com a perfeicáo da pes-
soa. O homem, tal como é, humano apesar
de tudo, precisa de cooperagáo e de comu-
nháo; e assim, sómente assim, os dois termos
da fórmula deixam de tier contraditórios e
passam a ser complementares
O segundo érro consiste em tomar a no-
gáo de propriedade dos bens terrestres de um
modo sumário, brutalmente simplificado, sen-
do também, como o anterior, um érro por in-
distingáo. A ésse respeito diz Fulton Sheen:
“Torna-se assim a personalidade o centro, em
volta do qual existe um certo número de zonas
de propriedade, urnas muito próximas, outras
muito distantes.”* E mais adiante: “O di-
reito á propriedade privada náo se aplica, por-
tanto, igualmente a todas as coisas; ao con-
trario, varia na razáo direta da proximidade
da pessoa; ( . . . ) e quanto mais unidas estáo
as coisas á pessoa tanto mais profundo é o
direito de possuí-las
A lei do uso comum, por conseguinte, obe-
decerá em sentido contrário a essa mesma
gradagáo. Pois bem, a mensagem de Ches-
terton, escrita numa época em que o mundo
oscilava entre o pesadelo capitalista e o pesa-
delo socialista, visava mais especialmente a
* FULTON SHEEN, O Problema da Liberdade.
PARA NÁO SER ESCRAVO.
277
defesa da pessoa humana e acentuava o pro-
fundo direito de possuir as coisas próximas.
Há ainda uma distingáo útil, nessa ordem
de idéias, entre a propriedade aplicada ás
fontes de produgáo e propriedade de fruigáo
e consumo, e eu creio que as palavras dominio
e posse, que correspondent a direitos outor-
gados ao homem desde sua criagáo, servem
para distinguir essas duas coisas. A primeira
diz respeito ao govérno e á administragáo,
política ou económica; a segunda refere-se ao
uso final, como por exemplo o livro que se
lé, o páo que se come, a casa em que se mora.
Em ambos os casos, dominio ou posse, apli-
ca-se a mesma lei do uso comum e o mesmo
direito á propriedade privada com as neces-
sárias gradagóes. Náo é sómente no uso final
que o objeto se aproxima da pessoa: os meios
de produgáo sáo também suscetíveis dessa
aproximado por meio das pequeñas empré-
sas, que para a mentalidade moderna náo pas-
sam de desprezíveis residuos de um ineficien-
te passado.
Pode-se dizer que os dois problemas extre-
mos, em nossos dias, sáo éstes: a posse das
coisas próximas, e o dominio das coisas dis-
tantes. Chesterton se ocupa mais insistente-
mente do primeiro, Maritain trata mais ex-
tensamente do segundo; mas os dois pro-
blemas se completam e só podem ser resol-
vidos simultáneamente. Tratar o segundo pro-
blema com a técnica socialista, imaginando
que o primeiro será necessária e automática-
mente atendido, equivale práticamente a fazer
a experiéncia do liberalismo, em sentido con-
278 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

trário sendo idéntico o resultado no que se


refere ao conflito entre a pessoa e a socie-
dade. O individualismo, como toda desordem,
é repugnante; mas o totalitarismo, como toda
falsa ordem, é muito mais repugnante. Há
certas coisas que devemos saber a priori, e
uma das vergonhas de nosso tempo está na
incapacidade que muitos demonstraran! para
as mais elementares previsóes. Só perceberam
a natureza e o cheiro da substáncia quando
o nariz se atolou nela. Só descobriram que a
centralizado estatal era monstruosa quando
faltaram carne, leite, ovos, casa, água, e lu-
gar nos ónibus.
Nossos avós tinham um sadio bom-senso
quando pensavam que o Estado é sempre uma
coisa estúpida, embora necessária e, até certo
ponto, respeitável. Erraram por um otimismo
egoísta. Mas os contemporáneos erraram de
um modo muito mais grave, tendo esquecido
que o Estado é uma coisa estúpida, que só
tem alguma possibilidade de se conduzir, na
medida em que cada um lhe empreste um
pouco de seus olhos. Ao contrário, fecharam
os olhos e deixaram o monstro se locomover
ao sabor tía sua miopia e tía sua pesada es-
tupidez.
O problema do uso comum na proprie-
dade dos meios de producáo é o ponto perigo-
so; e tanto mais perigoso se torna, quanto
mais se amplia a emprésa, porque déla emana
um poder material tremendo, fácilmente
usurpado pelo sombrío leviatá. E náo podemos
absolutamente aceitar que a entrega do Es-
tado (ao estúpido Estado) seja a única alter-
PAKA NÁO SER ESCRAVO.
279

nativa para a liquidacáo do capitalismo, que


consideramos um sagrado dever. A ésse res-
peito, vale a pena considerar uma medi-
da que tem sido apontada, por socialistas e
católicos, como um salutar remédio em favor
dos trabalhadores oprimidos. Refiro-me á par-
ticipado dos operarios nos lucros das em-
presas, e julgo-me capaz de demonstrar que
isso constituí o mais ardente ideal dos capi-
talistas de nossos dias. Ou melhor, sua der-
radeira oportunidade.
Essa participado, antes de mais nada, é
apenas uma parte de salário. Variável ou
náo, melhor ou pior, anual ou semestral, essa
cota é apenas um acréscimo de salário, tendo
a mesma natureza, sendo homogéneo com
éle; poique quem a recebe está desligado da
responsabilidade da emprésa, da mesma ma-
neira que o portador de apólices numa socie-
dade anónima. Aclmitindo que a cota atinja
dez ou vinte por cento do salário que o tra-
balhador já recebe, fica dentro da margem
de imprecisáo que tem a determinado de um
salário e funcionará como os descontos anun-
ciados ñas liquidacóes, dando ao capitalismo
o alentó de mais alguns sáculos. É claro que
se deve reivindicar o salário justo, mas tam-
bém é claro que náo se deve dar ao acréscimo
um nome que deixe supor uma natureza dife-
rente. A participado que deve ser reivindi-
cada pelo trabalhador, e conseguida custe o
que custar, é a moral e intelectual, da qual
decorrerá a participaqáo material. Diz Mari-
tain : “precisamente para estender a cada um,
sob um modo adaptado, as vantagens e garan-
280 TRÉS ALQUEIRES R UMA VACA

tias que a propriedade privada traz ao exercí-


cio da personalidade, nác é uma forma esta-
tista ou comunista, mas uma forma societá-
ria, que a propriedade deveria tomar na esfe-
ra económica industrial, de sorte que o regi-
me da co-propriedade ai tome o lugar, tanto
quanto possível, do regime do salário: e que a
servidáo imposta pela máquina seja compen-
sada para a pessoa humana pela participado
da inteligéncia operária na gestáo e na dire-
do da empresa.”
A condigáo atual do trabalhador é defei-
tuosa sob os seguintes pontos-de-vista: éle
frui pouquíssimo dos recursos criados e de-
senvolvidos pelo genio humano, comendo pou-
co, vestindo-se mal e morando ainda pior; náo
participa da responsabilidade geral da em-
présa, sendo portanto um desmoralizado; náo
participa da diregáo inteligente e vive a fazer
pedacos de coisas, sendo portanto um imbeci-
lizado. E como náo se pode separar materia
e espirito, náo se pode tratar sómente do pri-
meiro problema deixando os outros para os
bons dias de fartura. Quando nós falamos em
dignidade humana, é preciso que se saiba cla-
ramente que reivindicamos, como primeiro ar-
tigo dessa dignidade, a condigáo de andar o
homem vestido e nutrido. E quando insisti-
mos numa participado total, sob o primado
do espirito, queremos afirmar que essa é a
única maneira de resolver o problema do páo,
do tomate, do óvo, e de todas as coisas sóbre
as quais foi dado ao homem o direito de posse
e dominio. Se o operário conseguir um bom
salário, sem a participado moral e intelec-
PARA NÁO SER ESCRAVO.
281

tual, continuará sendo escravo; e, infallvel-


mente, voltará a ganhar o salário de miséria,
logo que o capitalismo ou o socialismo do Es-
tado consolidem suas posicoes.
O desenvolvimento da técnica e das espe-
cializagóes trouxe para o trabalhador mo-
derno uma eonseqüéncia que nao tem sido
suficientemente encarecida: a mutilagác da
inteligéncia. O operário antigo trabalhava
num objeto inteiro, em cuja inteireza e uni-
dade éle encontrava um elo intelectual e
afetivo com a sua humanidade. O pequeño
artesáo de hoje, que o socialismo persegue
implacávelmente como os racistas perseguem
pretos e judeus, ainda goza, ñas suas modes-
tas catacumbas, a alegria de fazer uma coisa
inteira. Mas o operário das grandes indús-
trias faz uma pega de metal que deve funcio-
nar meses depois engatada noutra pega de
metal, que por sua vez se articula numa ter-
ceira, e que só finalmente, após uma cadeia
de mil intermediários, forma um objeto ade-
quado ao homem. Passa assim os dias a fazer
e refazer um caco, uma forma pobre, uma
forma miserável, vivendo assim, antes de
qualquer outra, a miséria da inteligéncia que
náo se nutre na unidade. Tudo isso, diráo, pa-
rece literario demais, filosófico demais, mas
o resultado prático é terrivelmente prático e
pode ser resumido numa palavra: imbeciliza-
gáo. Náo há homem que agüente ésse regime:
ou enlouquece furioso ou enlouquece manso;
e sua única defesa consiste em fazer mal fei-
to, porque entáo ficam as máos ou os pés na
tarefa enquanto a inteligéncia escapa pela
282 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

imaginagáo e descansa num pequeño sonho


de subúrbio. Defende-se, desinteressando-se.
E’ claro que náo desejo condenar a técni-
ca, nem recomendar a destruigáo das máqui-
nas como ñzeram os antigos tecelóes de Man-
chester, seguindo um instinto muito fino. De-
sejo porém duas coisas razoáveis.
Com Maritain, desejo compensar a defei-
tuosa posicáo do trabalhador moderno com
uma participaQáo moral e inteligente; desejo
que a contabilidade, os programas, as enco-
mendas, os pregos, sejam conhecidos pelos
trabalhadores. Antes de participar dos lucros
quero conhecer ésses lucros, e duvido que a
exploraqáo e a opressáo mantenham o atual
desembaraco sob as vistas de mil olhos sem
escamas. Desejo que se acendam luzes nos
subterráneos dos negocios, e que o arcano
dos banqueiros seja arrombado por um povo
justiceiro.
E, com Chesterton, desejo que a medida
humana seja considerada como sagrada em
todas as coisas, inclusive numa fábrica de ta-
mancos, numa granja, num restaurante,
num hospital; e que o pequeño agricultor, o
pequeño artesáo, o pequeño negociante, sejam
estimados e respeitados. E desejo também,
veementemente, que os imbecis sejam cha-
mados de imbecis, e que os loucos sejam re-
conduzidos aos hospicios. E que o medonho
gigante de dez cabeqas seja deitado por terra,
transformado em estrume, e espalhado, divi-
dido, distribuido, para que o solo de trés
alqueires possa manter uma familia, nutrida,
vestida, dignificada.
A CASA
Já trés vézes vixn a público para defender
essa simples e antiga instituigáo que é a casa
do homem. Na primeira vez respondi a um
crítico literário recém-chegado da Europa,
que atacara a pessoa e a obra de Frangois
Mauriac, alegando, entre outras coisas, que
aquéle romancista era um burgués bem pen-
sante porque tinha uma casa de pedra; na
segunda vez, defendi-me de uns mogos alvo-
rogados pela perspectiva de uma anistia geral
(terminada numa senatoria), que também
me acusavam de ter uma casa; na terceira
vez, defendí o género humano inteiro, sou
forgado a dizé-lo, contra um arquiteto de re-
nome, que desejou, pelas colunas de um su-
plemento, que mais ninguém tivesse casa.
Além disso, tenho um outro livro em meio
caminho, onde também tratei désse mesmo
assunto, acidentalmente, estimulado pela
mesma onda de insanidade que faz do ho-
mem um animal mais ridículo e menos racio-
nal que o castor. Vou repetir, provávelmente,
muita coisa, mesmo porque a defesa da casa
é necessáriamente uma repetigáo; ou é a de-
fesa da própria repetigáo. Vou fazer, aliás,
pela quarta vez, o que me proponho fazer, no
dominio prático, pelo resto de minha vida.
284 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

Para comegar, desta vez, direi o que náo


é casa, mostrando as duas alternativas que
foram propostas nesse assunto e que me pa-
recem inaceitáveis. A primeira é de Nietzs-
che: éle me propóe um ninho na árvore do
porvir, e sugere que eu receba alimento do
bico das águias. Ora, a proposta imobiliária
do grande poeta náo me parece conveniente.
Eu quero uma casa sólida e náo uma dangante
mansáo; quero-a agora; e prefiro comer, pelas
minhas próprias máos, um trivial feito pelas
máos de uma boa cozinheira. E quem julgar
que estou respondendo á poesia com argu-
mentos prosaicos está errado, pois estou, na
verdade, me- esforgando por responder com
poesia á loucura. O que é realmente poético
é a casa, o trivial, a cozinheira. Em matéria
de águia, já me bastam as do Catete; e quanto
á árvore, lembro-me agora que recebi, faz
tempo, cartas e prospetos de um doido, que
inventara a perfeita solugáo da casa barata
gragas ao aproveitamento das árvores. Dizia
éle que ter uma árvore é ter meia casa; e a
sua engenharia — plantas, cortes, fachadas
— tratava dessa outra metade. Examinei os
projetos com a atengáo que tóda loucura me-
rece, e concluí que em todos os projetos, in-
variávelmente, a árvore atrapalhava mais do
que ajudava.
Creio pois que náo é preciso insistir nessa
primeira alternativa; vejamos a segunda.
Essa é a proposta daquele arquiteto a que já
me referí, na qual o discípulo de Le Corbusier
exaltava as vantagens da máquina de morar
e anunciava para as geragóes vindouras um
PARA NAO SEE ESCRAVO. 285

paradisíaco cortigo. Eu lamento e respeito


profundamente os homens que a contragósto
moram nos cortigos; mas nao respeito, e só
posso lamentar, os sujeitos que desejam en-
tusiásticamente morar num cortigo. E para
que minhas razoes fiquem claras, e despoja-
das de qualquer ressaibo individualista, que
eu considero entretanto razoável porque ainda
náo se descobriu a dissociagáo do individuo,
vou tentar uma explicagáo da significagáo
social da casa, da casa de familia, da casa casa.
Tomemos como ponto de partida (prosse-
guindo ainda nesse método que aqui julgo
necessário, de caminhar do negativo para o
positivo) o seguinte fenómeno, que me pa-
rece incontestável: uma sociedade náo fun-
cionará bem, seja qual fór o regime, se os
inevitáveis componentes individuáis tiverem
má vontade. Meu segundo postulado é o se-
guinte: a sociedade, por si mesma, como tal,
tomada no seu dinamismo político e produ-
tor, náo dispóe de nenhum órgáo capaz de
segregar, dirigir, compensar, regular, aquéle
precioso hormónio sem o qual tudo anda para
trás. Técnicamente, mecánicamente, náo é
possível vencer a rebeldía humana; pode-se,
quando muito, e temporáriamente, anestesiar
a vontade com certos processos que envolvem,
numa feliz combinagáo, um quantum de pro-
paganda e outro de polícia; mas a vontade
anestesiada é a pior forma da má vontade.
É em torno désse ponto que se estabelece a
oposigáo entre nossa filosofía e a dos comu-
nistas, e náo oculto que ésses postulados, que
286 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

estou expondo sem discussáo, sáo instantá-


neamente repelidos pelos socialistas da dita-
dura do proletariado. Para éles a vontade
anestesiada é a boa vontade; ou mais rigoro-
samente, a vontade náo existe como a enten-
demos. O que eu chamo má vontade, sim-
plesmente, para éles é um defeito semelhante
a um mau contato. Como, porém, náo estou
aqui numa sabatina de bairro, para respon-
der ponto por ponto, continuo meu pensa-
mento, fiel ao meu postulado. E o leitor po-
derá avaliar se o conjunto corresponde ao
que éle pensa como homem, ás idéias que lhe
ocorrem quando conversa em casa com a mu-
lher e os filhos, e náo aos preconceitos que éle
tem quando discute política ou financas em
rodas intelectuais.
Num enunciado mais positivo e mais sim-
ples, que náo quis apresentar logo para evitar
interpretares sentimentais, diremos que a
virtude social por exceléncia, pela qual a so-
ciedade poderá funcionar em harmonía com
as pessoas que a compóem, é a amizade civil,
a amicitia de Santo Tomás. A atmosfera res-
pirável de uma cidade é essa espécie de ami-
zade, digamos assim, mais rarefeita, mas cuja
natureza é semelhante á profunda amizade
dos amigos de infáncia e ao mais profundo
amor que une as pessoas da familia. Ora, se
a sociedade precisa dessa substáncia, precisa,
conseqüentemente, do lugar onde ela seja
preparada; assim como, se precisa de páo,
precisa de padarias. E ésse lugar é a casa.
A casa de familia é pois um viveiro de
amizade; é o lugar onde se elabora o fermento
PARA NÁO SER ESCRAVO.
287

que o homem leva e espalha pela cidade, tor-


nando-a habitável. Trata-se pois de uma ins-
tituigáo muito útil, prosaicamente útil, como
um gasómetro ou coma uma caixa d’água,
e poéticamente útil, como um ninho ou uma
concha. Mas por que motivo fago eu questáo
de uma casa casa? Por que motivo náo pode,
aquela preciosa substáncia, ser preparada em
qualquer lugar mais funcional e mais técni-
co? Justamente porque é preciosa. Neste pon-
to eu fago um veemente apélo aos cientistas:
se jamos científicos; mantenhamo-nos como
observadores científicos, isto é, como homens
que véem as coisas e registram cuidadosa-
mente o que viram e o que as coisas sáo.
E pergunto: já teráo notado os sábios que ás
vézes, em certas circunstancias especiáis, um
homem e uma mulher se amam? Já terá
observado o antropologista que sua copeira
namora o chauffeur do seu vizinho? Já terá
notado o sociólogo que os namorados se es-
condem e que mesmo os mais honestos pre-
ferem as sombras e os recantos?
O érro grotesco da sociología contempo-
ránea está nesse descaso pelos fenómenos
mais científicos porque mais comuns ao ho-
mem, em favor dos fenómenos exóticos. O
sociólogo preocupa-se com a dieta do austra-
liano ou com as armas de um patagáo, mas
náo vé um casal que passa de brago dado.
Ésse elo daquela “guirlanda de elos que atra-
vessa tóda a velha alegoría do amor” escapa
ao sociólogo. Ésse é o verdadeiro elo perdido,
o missing link da sociología moderna. Ora, o
amor existe. Os namorados se beijam e se
288 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

abrigam, e quando éles fazem isso honesta-


mente, cumprindo um juramento e dispostos
a cumpri-lo tóda a vida, estáo tracando numa
quadrícula invisível, que só éles e Deus co-
nhecem, a planta de uma casa. Essa é minha
idéia em sociologia. O amor em sua prepara-
gáo obedece á lei de todas as germina goes:
tem de ser elaborado escondido, enclausurado,
intimamente, entre quatro paredes, abrigado,
protegido, fechado. Essa é minha idéia em
arquitetura. E déla eu tiro todas as conse-
qüéncias.
Agora, que já paguei o devido tributo á
Cidade, apresentando o valor da casa em fun-
gáo do interésse coletivo, permita-me o leitor
que cuide do aspecto complementar da ques-
táo. Vimos que o homem sai de manhá como
um semeador de amizade; vejamos agora que
sentido tem a casa para ésse homem, á noite,
quando éle volta do trabalho. Ésse assunto
daria para um grande capítulo intitulado A
volta para casa.
Pensando bem, daria para oitenta volu-
mes.
O primeiro volume dessa suma trataria
da defesa da simples idéia da volta em si, e
conteria um científico e minucioso estudo da
bárbara superstigáo que atribuí vantagem e
nobreza á inflexível trajetória retilínea. O
leitor decerto já observou que quase todo dis-
curso contendo o elogio de um morto inofen-
sivo ou de um político perigoso faz alusáo á
“conduta retilínea” do elogiado. Ora, eu pre-
firo, para mim e para os meus, uma conduta
curvilínea, porque já observei que a maneira
PARA NÁO SER ESCRAVO. 289

de andar sempre para a frente é característi-


ca dos caes hidrófobos, dos capitalistas ines-
crupulosos e dos políticos desvairados. Ir até
o fim, até ás últimas conseqüéncias, até o fim
da linha, sáo expressóes que anunciam dispo-
sigóes inquietantes. O esquartejador que re-
centemente agitou a opiniáo pública foi um
individuo de conduta retilínea: depois de as-
sassinar precisou esconder o cadáver, e como
morava no centro da cidade, náo podendo
enterrá-lo, esquartejou-o. Prosseguiu no seu
inflexível caminho.
Nessa ordem de idéias estou com Nietzs-
che sóbre o valor da danca, pois o dangarino
é um homem que está sempre voltando. E eu
prefiro ser o mais desgracioso dos dangarinos
a ser um esquartejador, um cáo hidrófobo ou
um político vitorioso, que se gaba de sua obs-
tinada trajetória. A vida, afinal, náo passa
de uma danga, e tudo se reduz a escolher a
música e o compasso.
É verdade que em nosso vocabulário clás-
sico existem as expressóes de reta conduta e
reta razáo; mas essas expressóes foram inven-
tadas muito antes do cartesianismo e do evo-
lucionismo e náo tém nenhuma conexáo com
figuras geométricas. Ao contrário, o recuo e
a volta sáo muito praticados pelo homem de
reta conduta. Sómente um insensato pode
pensar que a volta seja degradante, a obser-
vagáo cotidiana demonstrando que a maior
parte dos acidentes de automóveis provém da
cega lei da inércia, pela qual o veículo náo
possui nenhuma tendéncia natural para sair
da linha reta. Nietzsche, neste ponto como
290 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

em muitos outros, era incoerente, querendo


estimar igualmente a danga e o evolucionis-
mo que é a menos dangante e a mais rígida
das filosofías. O evolucionismo é uma doutri-
na pela qual o universo irá até as últimas
conseqüéncias, obstinadamente, como o es-
quartejador. Os genios das espécies vivem a
esquartejar porcos e cavalos, e os praticantes
dessa esquisita religiáo sáo individuos que
estáo impacientes por serem também esquar-
tejados.
O segundo volume da minha série ima-
ginária seria o desenvolvimento daquela idéia
de Chesterton: “o que o homem já féz, pode
tornar a fazer”, aplicando á História essa pos-
sibilidade de voltar, categóricamente negada
pelo evolucionismo, segundo o qual o progres-
so do género humano consiste essencialmen-
te em queimar navios. A História é de fato
irreversível, pois o que aconteceu náo pode
ser considerado como náo tendo acontecido.
O que foi, náo pode náo ter sido. Essa irre-
versibilidade, entretanto, é a fórga do passa-
do e náo a sua fraqueza. Essa impossibilidade
de destruir o que foi é que torna o passado
indestrutível, e portanto presente. O desejo
de voltar, expresso por Chesterton, náo visa a
reversáo do tempo, mas a utilizagáo de um
depósito. Náo se trata de voltar ás anquinhas
e ao lampiáo de querosene, mas de náo per-
der os séculos como se náo tivessem passado,
e sobretudo o de náo perder o que já se tinha
conquistado. Náo se trata também de afirmar
que todas as voltas se jam boas, incondicional-
PARA NÁO SER ESCRAVO.
291

mente, porque entáo teríamos uma trajetória


retilínea em sentido contrário.
O progresso humano, se alguma coisa me-
rece ésse nome, é uma crescente e irreversível
tomada de consciéncia, e é nesse plano que
o homem náo pode voltar, porque, voltando,
vira estátua de sal.
O terceiro volume escreve-o Homero por
mim: é a Odisséia, que conta a acidentada
historia de uma longa volta para casa.
O quarto volume seria dedicado á lenda
dos grandes aventureiros, e néle tornaríamos
a encontrar o bom inglés que, depois de uma
longa viagem e de terríveis aventuras, veio
plantar o pavilháo británico na própria In-
glaterra. Todas as grandes aventuras foram
realmente caminhos de volta. Cook voltou
para casa passando pelos mares do Pacífico;
Peary preferiu o trajeto mais fresco pelo Pólo
Norte. E isso é muito mais verdadeiro do que
parece á primeira vista, porque aquilo que
incita á descoberta é qualquer coisa que fica
para trás: é por exemplo o clube, como na
Volta do Mundo em Oitenta Dias, de Júlio
Verne; ou é uma conversa, entre dois goles
de chá, numa sala de um Instituto Geográfi-
co. Todo viajante audacioso se parece com o
paladino medieval que partía, animado pelo
sorriso de sua dama, em busca do talismá
guardado pelo dragáo. O Parsifal de Wagner
voltou ao terceiro ato, e estou certo de que
Nietzsche se irritou com essa volta, tanto
como com o pseudocristianismo da ópera.
Os aventureiros de todos os tempos dei-
xaram para trás uma dama e guardaram no
292 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

coragáo uma promessa de volta. Uma das


dificuldades técnicas da viagem á lúa está
exatamente na volta, a menos que o aventu-
rero abra máo dessa condicáo e se torne um
lunático. Mas os viajantes sensatos querem
sempre voltar, e essa fórga telúrica que de-
termina a curvatura de todas as expedigóes
tem qualquer coisa de feminino, como a dama
dos cavaleiros andantes. A casa é feminina;
é uma dama. A volta é sempre a procura
désse outro hemisfério da humanidade, o eter-
no feminino, seja éle Kundry ou casa; seja
éle casa ou Igreja; seja éle a máe dos homens
ou a máe de Deus. Os viajantes ingleses
tinham nogáo disso, instintivamente, e náo
será por mero acaso que deram ás suas naves
um tratamento pessoal e feminino, em vez de
neutro. Navio, para o inglés, é ela; ela-mu-
lher, she. Com ésse pequeño artificio de na-
morado, éle se lembrava constantemente que
devia voltar, e que o Océano Pacífico só muito
acidentalmente podia ser considerado um
túmulo decente para um almirante inglés. O
inglés é o homem, entre todos os tipos e ragas,
que mais apreciou essa coisa inaudita que é
a volta para casa, e que, até em casa, sentía
saudades da casa: homesick at home. E foi
por isso que construíram um império. Seu
próprio país é uma casa, e essa foi sua prin-
cipal vantagem sóbre os nazistas. Sua ilha é
um Home, e a enorme frota, erigada de ca-
nhóes, de mastros e de antenas, que cercava
e guardava a ilha, recebeu de seus proprie-
tários um nome doméstico: Home Fleet. Éles
exerciam um dominio sóbre seus dominios e
PARA NÁO SER ESCRAVO.
293

deram um nome ao maior dos seus animais


domésticos. Os fascistas escarneciam dos in-
gléses, de sua resisténcia baseada num acaso
geográfico e histórico, de sua resisténcia sem
méritos, da mesma maneira que outros ex-
probraram a Mauriac a casa hereditária e a
mim mesmo a casa que ganhei. E eu fico
pensando que o Diabo, muitas vézes, esbavra
ñas soleiras de nossas casas e ali fica rangen-
do os dentes e murmurando um interminável
argumento fascista: “Ora a grande vanta-
gem! Éle tem uma casa. . .”
Aliás, o desenvolvimento dessa irritacao
de todos os demonios diante de uma porta
marcada com o sélo de Cristo ficaria reser-
vado para os trés últimos volumes de minha
série, formando um apocalipse. Ai temos o
dragáo e a mulher; e essa Mulher é também
uma casa como se pode verificar ñas ladai-
nhas: “Domus aurea, Turris ebúrnea...” Na
verdade, nossa Igreja é uma Mulher, uma
Casa, uma Ilha, um Navio, Ela, She.
Agora, deixando de lado a fantástica enu-
meracáo de volumes, que já se tornava fas-
tidiosa, consideremos a volta para casa no
seu aspecto mais trivial e mais diretamente
ligado á vida cotidiana. Servindo-nos do mes-
mo método negativo adotado para descobrir
a utilidade social da casa, perguntemos o que
é que o homem gasta na rúa e que precisa
ser restaurado em casa. Na rúa, no emprégo,
no convivio com os companheiros de traba-
lho, o homem se fragmenta em fungóes. Aqui
é o passageiro, logo adiante o pedestre, mais
tarde o dentista ou o carpinteiro. Acidental-
294 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

mente, num encontro de esquina, é um ex-co-


lega; ñas bancadas é um companheiro; no
barbeiro, um fregués; no médico, uma ficha.
Visto do alto de uma sacada ditatorial, éle
torna-se um infinitésimo átomo social, uma
célula, entre milhóes, désse monstro informe
e fluido, que hoje tem o nome de povo. Desde
que sai de casa, seu trajeto o expóe a todas
as transmutagoes: vai mudando de título, vai
mudando de nome, e em algumas repartigoes
mais eficientes, muda também de casaco.
Nada existe no mundo que tanto mude e
transmude como um pobre cidadáo. E o pro-
blema que se arma é o seguinte: ou o homem
é alguma coisa antes de servir para alguma
coisa; ou nao é. Minha filosofía afirma a
primeira proposicáo quando fala em pessoa
humana e na sua dignidade; a filosofía socia-
lista afirma a segunda. E, na minha filosofía,
é a casa que restituí ao homem o que éle é.
Na rúa, na fungáo, o homem espalha a
sua própria substancia, gasta-se no que é,
aflige-se em sua unidade, sofre em sua liber-
dade; em casa, todas as fungóes sociais, as
maiores e as menores, ficam no capacho da
entrada, e o homem que chega, que toma pos-
se de seus dominios, é um homem inteiro e
livre. Em casa éle recupera, com o chínelo,
a personalidade e o nome de batismo. E éle
precisa de todas essas coisas para elaborar o
fermento da amizade capaz de levedar uma
cidade verdaderamente humana.
E ai está, completo, o ciclo dos días e das
noites, o ritmo em dois tempos, que é a danga
da vida e do amor, e que é também o ritmo
PARA NAO SER ESCRAVO. 295
dos peregrinos. A casa é portanto o lugar
onde o homem se torna o que é. A casa é por-
tanto uma clausura para aumento de liber-
dade e reconquista da unidade. E daí eu tiro
conseqüéncias sóbre a natureza do material e
sóbre a divisáo das salas e dos quartos.
*
Cada um de nós, de um modo geral, está
sujeito a se tornar um espetáculo para o
mundo. Essa situaqáo, disputada ávidamente
por uns, evitada angustiosamente por outros,
é inseparável da vida. Caído do bonde ou
erguido nos pedestais da fama, na comédia
ou na vanglória, o homem é espetáculo dos
homens. Mas em certos casos especiáis essa
situaqáo se agrava, devendo o sujeito ficar táo
exposto e táo visível que se torna necessário
construir em volta déle um anfiteatro, ficando
no centro do circo o palhaqo ou o mártir. A
Aurea Legenda está cheia de casos em que
os mártires serviram de palhaqo, mas conta
também o caso de Sáo Genésio, onde é o pa-
lhaqo que serve de mártir. Nossa Igreja, gra-
qas a Deus, é a Igreja dos Santos, e possui
uma coleqáo de personagens mais interessan-
tes do que os católicos que todos conhecem
e que, em matéria de cruz, se agarram á dos
joalheiros. Nossos santos sáo ladróes, nego-
ciantes, reis, prostitutas, papas e palhaqos.
Ora, a casa é o lugar em que o homem
deixa de ser espetáculo do mundo, descansan-
do a pele crestada pelas pupilas de fogo. É
um anfiteatro virado pelo avésso, onde o su-
jeito deixa de ser palhaqo municipal. Nela se
esconde, para ver sem ser visto, um ente fabu-
loso: o Homem Invisível.
296 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

Deve, por isso, ter peredes; e paredes opa-


cas. Poderá dispensar o teto, como na estra-
nha cidade do Peru onde nunca chove; mas
as paredes, náo. Sejam de pedra, como na
casa de Mauriac; de madeira, como no Pa-
raná; de gélo, como nos polos; de papel ou
bambú, como no Japáo; sejam mesmo os
panos ílutuantes das tendas nómades do de-
serto, abrigando os amores ferozes dos ca-
lifas; mas sejam paredes. Couraga, véu ou
ganga, a casa veste pesadamente, como abrago
de máe, a nudez do samurai e do esquimo.
Despido de suas paredes, o Homem Invisível
perde súbitamente a fórga de seu encanto, e
vira o pobre rei de anedota, que estava nu,
orgulhosamente nu, e que tomava a surriada
do mundo como estrepitosos sinais de sua glo-
rificagáo.
*
Alguns naturalistas afirmam, com uma
seriedade cómica, que o homem, um belo dia,
tendo descoberto as máos, desceu da árvore e
resolveu correr mundo. Creio entáo que desde
ésse dia éle tomou singular aversáo pela ár-
vore, porque só tornou a aparecer na mansáo
de seus antepassados muito raramente. Féz
casas em cima dos lagos, no meio dos deser-
tes, ñas pedras dos montes. Morou em blocos
de gélo e disputou cavernas aos leóes, mas a
idéia de morar numa árvore só reapareceu,
recentemente, em Nietzsche, no Tarzá, e no
projeto do doido.
Essa aversáo pela árvore está ligada a um
estranho sentimento que acomjpanha o ho-
mem através da história: a vontade de se
PARA NÁO SER ESCRAVO.
297

esconder. Para a compreensáo do nexo entre


ésse sentimento e a insuficiencia da árvore
devemos considerar dois momentos sem par
na historia humana. No primeiro, retornan-
do ainda uma vez ao Paraíso terrestre, no úl-
timo dia (no dia da culpa), vemos os nossos
primeiros pais escondidos de Deus, atrás de
uma árvore. “Mas Deus chamou o homem e
disse-lhe: — Onde estás? — E éle respondeu:
— Ouvi a tua voz no jardim, e tive médo, por-
que estou nu; e escondi-me.” No outro mo-
mento, vamos encontrar a resposta de Deus
a Adáo, quando éle mesmo, na pessoa de seu
filho, escolheu uma árvore para ficar exposto
ao escámio dos soldados romanos.
Nesse espantoso jógo entre o homem e
Deus, em que um se esconde, ou procura se
esconder, e o outro se expóe, pregado ao
tronco sob um cartaz de derrisáo, há um re-
sumo, uma terrível síntese, de todas as situa-
res vividas. Mostrar-se ou esconder-se; o que
mostrar e o que esconder; como mostrar e
como esconder; tais sáo os polos que orien-
tam nossos passos e em que freqüentemente
nos enganamos. Quis o homem ostentar sua
gloria e acabou esquivando-se atrás da árvore
para esconder sua vergonha; quis Deus osten-
tar nosso opróbrio em seu opróbrio, para que
nossa gloria ficasse escondida em sua Gloria.
A vida cristá inculca-nos o reto critério
para o que se deve mostrar e para o que se
deve esconder, sendo relacionada com ésse
brinquedo de chicote-queimado a maior des-
coberta que um de nós pode fazer. Torna-se
santo quando descobre, realmente, vitalmente,
298 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

que náo pode se esconder de Deus, e que deve


se esconder em Deus: “Onde ir longe de Teu
espirito ou fugir longe de Tua face?”, diz o
Salmo CXXXVIII. “Uma só coisa pedi ao Se-
nhor, e esta desejo-o ardentemente: habitar
na casa do Senhor todos os dias da minha
vida. Para gozar as delicias do Senhor e me-
ditá-las no seu templo. Porque éle me escon-
deu em sua morada...”, diz o Salmo XXVI.
Tais, a cortesá, também andou grande-
mente errada a respeito de esconderijos, até
o dia em que um santo eremita disfargado
bateu em sua porta oferecendo-lhe uma moeda
de prata. Tendo entrado no rico aposento
da sedutora, perguntou-lhe se náo tinha um
quarto mais retirado. Ela conduziu-o, mos-
trando-lhe muitos outros, mas éle repetia sem-
pre que temia ser visto. Entáo disse-lhe Tais:
“Eu tenho em minha casa uma alcova onde
ninguém pode entrar, mas se é a Deus que
temes, entáo náo há lugar em que possas fugir
ao seu olhar.” E tendo feito essa descoberta,
a cortesá distribuiu suas riquezas pelos pobres
e, obedecendo ao eremita, fechou-se num mos-
teiro, numa cela murada, escondida do mundo,
escondida em Deus. Escondida na luz, se-
gundo Dante.
As criangas também gostam de brincar
de esconder, mas quando sáo encontradas no
perigoso esconderijo, correm a se abrigar no
pique que muitas vézes é o regago da máe.
Ora, a casa, mais uma vez, se relaciona com
todos ésses fenómenos que passam desperce-
bidos á maioria dos arquitetos e filósofos.
É o lugar certo de se esconder. É um pique.
PARA NÁO SER ESCRAVO. . . 299

É também um regago. É ainda a cela murada


para a santificagáo. O abrigo do nu, como
extensáo de uma veste; ou entáo, se quiserem,
a veste é uma casa que o homem carrega,
como um caracol.
*
Ai estáo algumas boas razóes para con-
vencer que a casa deve ser defendida. Tomei-
as num monte de cinqüenta ou sessenta, ao
acaso, sem planificar uma conexáo, confiante
em que o próprio objeto ligaria os argumen-
tos. Vejo agora que foi bom terem saído essas
razóes diversas e disparatadas, porque o de-
poimento se reforga quando as testemunhas
sáo muito diferentes. Concluo pois, enfática-
mente, que a casa é um ponto de honra e que,
mais do que qualquer outra coisa, serve para
aquilatar uma civilizagáo.
A cidade que náo tenha casas para todos
es seus habitantes ou náo tenha meios de
transportes para facilitar a volta; ou cu jos
habitantes se espalham pelas rúas porque
náo amam suas casas, ou náo voltam porque
náo querem voltar; ou náo se revoltam só-
mente porque náo sabem, ou náo querem
saber, que estáo diminuidos, frustrados, ofen-
didos; ou ainda por cima se alegram por náo
poderem voltar para casa, e logo que voltam
e engolem um sanduíche reviravoltam para
a rúa, porque náo tém como ficar em casa,
náo sabem ficar em casa, náo sabem o que
é casa, náo sabem mais o que sáo éles mes-
mos — essa cidade náo é uma cidade de ho-
mens livres; é um ajuntamento de escravos.
SAO MARTINHO, DISTRIBUTISTA
Vejo agora, um pouco tarde, que comecei
escrevendo um livro sóbre Chesterton e aca-
bei escrevendo um livro com Chesterton. Usei
da palavra exageradamente, com impertinen-
cia, misturando minhas idéias ás suas e pondo
assim em risco a unidade do conjunto. Seja
qual fór o resultado eu náo oculto que senti
um grande prazer em escrever éste livro,
apesar das afligóes naturais da paternidade:
senti o prazer das boas companhias. Durante
quarenta dias conversamos. Muitas vézes,
noite a dentro, parecia-me que éle quería sal-
tar da janela que seu retrato recorta na minha
parede, e pór-se em pé, agressivo, divertido,
enorme, andando de um lado para outro, como
nos dias em que ditava seus últimos livros
a Miss Dorothy; ou entáo, parando pensativo,
depois de acender o charuto e de tragar com
o fósforo no ar um misterioso sinal — o sinal
de sua vitória.
Conta Maisie Ward * que nos últimos dias
de vida, já desengañado, éle ainda queria
escrever um poema sóbre Sáo Martinho de
Tours que no seu tempo fóra um bom distri-

• MAISIE W ARD , Gilbert Keith Chesterton, Sheed


and Ward.
PARA NÁO SER ESCRAVO. 301

butista, dando a um pobre a metade de seu


manto de soldado. Náo chegou a escrever o
poema. A pena que o padre Vicente beijou,
depois de terem rezado juntos a Salve Rainha,
náo chegou a louvar os méritos distributistas
do grande santo. Chesterton morreu do cora-
gáo. Seus médicos descobriram que éle tinha
o coragáo pequeño.
Éste capítulo tem certa conexáo com o
poema que Chesterton náo escreveu. Até
aqui, na defesa do direito de posse, viemos
recuando: passamos gradativamente da em-
presa industrial para a emprésa agrícola, da
fazenda para a granja, da granja para a casa,
e agora estamos próximos do derradeiro bas-
tiáo, onde devemos travar um encarnizado
combate. Entre o corpo do homem e a pres-
sáo exercida pela tiranía capitalista ou socia-
lista resta-nos sómente o paño de uma veste.
Trata-se de defender o direito de cada um
possuir sua roupa ou rasgar sua roupa, e é
nessa frágil coisa exterior que podemos
recuperar as torgas para salvar a dignidade
arriscada e reconquistar as posigóes perdidas.
A história do camponés venturoso, que
causou in veja a um reí e que, conforme se
viu depois, náo possuía uma camisa, é uma
história mentirosa e de mau gósto. É uma
história inventada nos laboratorios capitalis-
tas e tirada da fácil moralidade: “a fortuna
náo traz felicidade”, gragas á qual o opressor
fica á vontade, na situagáo quase heroica de
quem aceita para si os encargos malditos da
abundáncia, deixando ao pobre todas as van-
tagens espirituais da nudez e da fome.
302 TEES ALQUEIRES E UMA VACA

A roupa é o último abrigo que lembra ao


homem o Paraíso perdido que era, todo éle,
uma veste magnífica, que circundava o corpo
do homem e obedecía á sua alma. Perdido
ésse estado, o homem viu que estava nu, isto
é, que seu corpo estava desligado das coisas
exteriores e em conflito com elas. Dizer que
a roupa é uma simples protegáo natural con-
tra a incleméncia dos climas, é desconhecer
completamente os dados mais triviais da his-
tória humana. O naturalista verdaderamente
científico tem obrigagáo de se espantar diante
do fenómeno da indumentária, que atravessa
idades e climas como uma colorida lenda de
disparates. Se eu desejasse fundar uma nova
escola evolucionista, náo diria que o homem
é o macaco que um dia desceu da árvore,
mas o macaco que se vestiu. E daria um
novo alentó á chamada lei biogenética, pela
qual a ontogénese é uma repetigáo abreviada
da filogénese; porque, em minha doutrina,
a origem da humanidade teria semelhangas
com a origem de cada dia, visto que, todas
as manhás, a nossa história cotidiana comega
por uma vestigáo. Ésse ato é executado com
uma naturalidade que escapa ao ólho do na-
turalista esquadrinhador de coisas exóticas.
A roupa do homem é um fenómeno como a
queda dos corpos: é preciso ter um olhar
levado e ingénuo, de verdadeiro cientista,
para descobrir o que há de extraordinário
na queda de uma magá ou na lembranga que
os homens tém de uma queda, por causa de
uma magá. O filósofo de nossos tempos é
um individuo fatigado e desprovido de um
PARA NÁO SER ESCRAVO.
303
senso de admiragáo. Lanco-lhe daqui um
repto: feche-se no seu quarto de dormir, es-
tenda na cama suas caigas e olhe para elas
com atencáo e com a ingenuidade indispen-
sável ás grandes descobertas. Se ao cabo de
quinze minutos de contemplagáo désse fabu-
loso objeto o filósofo náo sentir a presenta
do mistério, é porque náo é um verdadeiro
filósofo e está na iminéncia de náo ser um
verdadeiro homem.
A necessidade da roupa para cada um de
nós é evidentemente complexa, estendendo-se
da protegáo material até o desejo de glorifi-
cado própria; mas na raiz da questáo, a meu
ver, está o anseio de afirmar o dominio imp,
diato e próximo sóbre uma coisa exterior.
O selvagem que faz um colar de ossos, dei-
xando o sexo descoberto, é um caso limite que
serve para mostrar que náo sáo o pudor e a
protegáo as causas principáis da veste, mas a
necessidade de afirmar o dominio completo
e profundo de uma coisa ligada á pele e aos
músculos, que acompanha os movimentos e
que participa da vida do possuidor. O objeto,
posto em cima do corpo, está diretamente li-
gado á alma, formando, por assim dizer, um
elo de alianga entre o homem e a criagáo.
Ésse é o motivo mais profundo que encon-
tramos no uso de uma camisa; e também na
prática da equitagáo. O cavalo que monta-
mos amplifica o campo de agáo de nossas po-
téncias e nos dá um gósto do paraíso perdido.
O pobre funcionário público que ñas ferias
aluga um magro cavalo, obedecendo a um
padráo convencional de felicidade, de repente
304 TEES ALQUEIRES E UMA VACA

— num ángulo de estrada, sem que ninguém


possa explicar como e por que — sente-se
em contato com o autentico padráo de felici-
dade, como se uma nova e antiga seiva to-
masse o lugar do seu humilhado e ofendido
sangue de pobre.
A roupa veste o corpo e a alma. O alfaiate,
manejando o metro e o giz, é um psicólogo
prático, que faz agrimensura na alma de seu
cliente. Éle sabe que o cliente tem alma; éle
sabe que o individuo tem um mistério de per-
sonalidade que se espalha ñas mangas e se
demora nos renitentes franzidos do casaco.
O alfaiate sabe que o paño deve obedecer ao
coracáo num pacto muito íntimo, e tóda a
sua humilde e grande arte está empenhada
em registrar com agulha e linha as cláusulas
dessa alianga. A roupa mal feita é incómoda
e feia porque foge, por pequeñas e irritantes
insubmissóes, ao dominio do espirito.
Para o comunista o problema da roupa
deve ser resolvido pelas estatísticas, como nos
quartéis. Tiram-se pernas e mangas de uma
curva de probabilidades, e o individuo, me-
tido dentro dessa roupa, é dominado por ela,
submetido, e obligado a ter uma alma de
acórdo com as equagóes. Toma-se, em suma,
um prisioneiro da roupa. Um escravo.
Muito poderia dizer ainda sobre a roupa,
mostrando que a idéia de dignificagáo estéve
sempre ligada a ésse acréscimo do corpo onde
os mais variados elementos — fibras, peles,
penas, pedrarias e metáis — sáo chamados a
glorificar o rei da criagáo; ou mostrando o
PARA NÁO SER ESCRAVO.
305
sentido de peniténcia e salvagáo que a tra-
digáo católica empresta ao paño dos monges.
Ñas prescrigóes de Manu, ñas roupagens ter-
ríveis dos peles-vermelhas, no paramento, no
burel e no cilicio, encontramos invariável-
mente ésse apégo do homem a uma coisa
exterior que o vista, como vestido estava Adáo
de integridade e gloria. E táo acentuado é
ésse sentimento que, ñas imagens e visóes do
Céu, as túnicas resplandescentes, medidas e
cortadas por angélicos alfaiates, aparecem
vestindo os corpos ressuscitados.
A roupa é portanto, fora de qualquer dú-
vida, um objeto exemplar, em que se aplica
fortemente a idéia de posse. Mas entáo (sur-
ge-nos essa dificuldade) onde se deteve a lei
do uso comum que mencionamos atrás como
indispensável complemento do direito á pro-
priedade privada? Fulton Sheen já nos pre-
venira que havia uma gradagáo e que a pro-
fundidade e legitimidade da posse crescia na
razáo da proximidade da pessoa. Mas onde,
a que distáncia, sofreu essa lei em sua con-
tinuidade e suspendeu suas sangóes? A roupa
é individual, se alguma coisa é individual. A
roupa é pessoal. É verdade que, já na casa de
familia, advogáramos o fechamento das por-
tas, para que em cada casa, como no cenáculo
em que se reuniram os apóstolos, a paz esteja
conosco. Mas a casa de familia, mesmo fe-
chada, já abriga uma pequeña comunidade,
onde a lei do uso comum encontra sua me-
lhor expressáo. Além disso, a casa náo é total-
mente fechada, constando, em todas as tradi-
306 TRES ALQUEIRES E UMA VACA
goes e principalmente na católica, o dever em
relagáo ao hospede.
Mas no caso da roupa náo parece existir
nenhuma indicagáo razoável, de qualquer na-
tureza, para o uso comum. Dentro da casa
tudo é usado por todos, mas a roupa excetua-
se. Por mais generoso que seja um homem,
a última coisa que empresta é o seu terno,
e todos conhecem a lírica relutáncia com que
o filósofo da ópera se despede de seu velho
casaco. Ora, é nesse ponto que nos vale a
ligáo de Sáo Martinho de Tours, que Ches-
terton quería celebrar em versos como o per-
feito exemplo de distributismo. Éle cortou seu
manto com a espada e deu a metade a um
pobre, demonstrando, piráticamente e cabal-
mente, que a lei do uso comum, mesmo na
roupa, mantém uma soberana predomináncia
sóbre o direito de propriedade privada. Há
entretanto um pequeño reparo quanto á natu-
reza dessa lei. Entre a co-propriedade de uma
fábrica e a co-propriedade de um manto, há
uma importante transigáo que vem completar
a fórmula de Fulton Sheen, enriquecendo-a
de um conteúdo que a torna essencialmente
diversa de uma fórmula mecánica. Realmente,
há duas gradagóes a observar á medida que
o objeto se aproxima da pessoa humana:
a primeira diz respeito áquela intensificagáo
da posse já mencionada; a segunda diz res-
peito á natureza da virtude que determine o
direito de guardar ou o dever de dividir.
A medida que se aproxima do homem, o objeto
mergulha na atmosfera da caridade, onde a
lei do uso comum ganha uma énfase impre-
PARA NÁO SER ESCRAVO.
307

vista, espantosa, e deixa de ser lei, para ser


aquilo que nos liberta da lei. Mas assim
mesmo, anárquico, transbordante, desafiando
qualquer formulacáo, o distributismo de Sáo
Martinho guarda uma semelhanga com o dis-
tributismo de Chesterton.
Ninguém, evidentemente, poderá exigir
em nome da justiga essa partilha de mantos;
mas Deus, quando manda seus pobres pelos
caminhos, exige todas as partilhas e todas as
portas abertas, em nome de sua subversiva
caridade. Caifás rasgou suas vestes para ma-
nifestar que a Lei fóra ofendida; Sáo Mar-
tinho rasgou seu manto para manifestar que
a Lei tinha sido ultrapassada, e que a von-
tade de Deus é, em definitivo, a única lei que
pode tocar na roupa do homem e entrar pelas
casas a dentro ainda que as portas estejam
fechadas. Pois Deus nos mostrou claramente
a sua Justiga:
“Ora, quando o Filho do homem vier na
sua majestade, e todos os anjos com éle, sen-
tar-se-á no trono de sua gloria. E todas as
nagoes estando reunidas diante déle, separará
urnas das outras, como o pastor separa as
ovelhas dos bodes. E colocará as ovelhas á sua
direita, e os bodes á sua esquerda. E entáo
o Rei dirá áqueles que estáo á sua direita:
“Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do
reino que vos foi preparado desde a origem
do mundo. Porque eu tive fome, e me destes
de comer; eu tive séde, e me destes de beber;
fui estrangeiro, e me recebestes; nu. e me
vestistes; doente, e me visitastes; na prisáo,
e viestes ter comigo.” E entáo os justos lhe
308 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

responderáo: “Senhor, quando vos vimos com


fome, e vos demos de comer; com sede, e vos
demos de beber? Quando vos vimos como
estrangeiro, e vos recebemos; nu, e vos ves-
timos? Quando vos vimos doente ou prisio-
neiro, e vos visitamos?” E o Rei lhes res-
ponderá: “Em verdade, eu vos digo, cada vez
que o fizestes ao mínimo de meus irmáos,
a mim o fizestes.”
E foi por isso que Martinho, o jovem
soldado de espada pronta para os golpes da
caridade, viu em sonhos, na noite daquele
mesmo dia, o Cristo vestido com a metade do
seu manto; e foi por isso que se féz monge.
O DIREITO DE POSSUIR OS
PRÓPRIOS CABELOS
Agora está em jógo o direito de possuir
o próprio corpo. Em nome da filantropia, da
higiene, de meia dúzia de virtudes e dúzia e
meia de ciéncias, alguém, nos dias de Ches-
terton, propós o corte a máquina dos cábelos
das crianzas pobres. O Estado vai tocar o
corpo do homem; vai tecer o primeiro festáo
da grinalda de opróbrios que terminará mais
tarde, nos campos nazistas, com a esteriliza-
do dos judeus e a fecundado científica das
mogas arianas. César aproxima-se e reclama
o que é de Deus. Chega-se, cheio de bons
motivos, cheirando a farmácia e a sociología,
e agitando no ar, com gesto alvissareiro, as
tesouras da lei. E toca no cábelo.
E Chesterton sabe que o cábelo náo pode
ser tocado; sabe que suas pontas estáo inten-
samente 0 eletrizadas; e que todo o edificio da
civilizad ruirá, se a lei tocar no cábelo do
homem. Éle mesmo nos dirá o que pensa
disto. Sáo suas * as últimas páginas déste
livro. eE se tomei algumas liberdades na tra-
dud° uáo me contive de interpolar um
trecho, ponha o leitor ésses últimos abusos na
conta das boas intengóes.
* What is wrong with the World — Conclusion.
310 TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA

Nao posso adivinhar qual será a impressáo


do leitor sóbre a passagem que vou transcre-
ver. A minha, digo-a sem médo do ridículo,
foi um frémito juvenil que féz remontaren!
lembrangas de trinta e tantos anos atrás,
quando eu buscava nos romances de capa a
espada a flama de generosidade de que o
mundo me parecía privado. Essas páginas de
Chesterton deram-me o que tinham de bom
os quinze anos de idade. Lendo-as, eu via na
minha frente um cavaleiro, com a corpulén-
cia de Porthos, com a sagacidade de Aramis
e com a nobreza de Athos; e sua espada fla-
mejante cobria o pequeño vulto encolhido de
uma menina de oito anos, de uma menina
pobre, ruiva e sardenta, que os beleguins téc-
nicos de um duque queriam tosquiar; e ouvia
o fragor da batalha, o retiñir dos golpes, e
o praguejar franco e jovial dos tempos da
merry England.

*
“Há dias atrás certos médicos e técnicos, licenciados
pelas leis modernas para ditar alvitres aos seus conci-
dadáos mais andrajosos, emitiram uma ordem para que
todas as meninas tivessem cábelos cortados a máquina.
Quero dizer, todas as meninas pobres. E’ claro. Entre
as meninas ricas há diversos hábitos anti-higiénicos, mas
os sáculos passaráo antes que um désses doutóres se
lembre de usar autoridade para os reprimir. No caso
presente alegam que os pobres, estando comprimidos e
imprensados em táo fétido e sufocante submundo de
sordidez, nao tém direito ao cábelo; pois nesse caso es-
pecífico, o do pobre, cábelo quer dizer piolho. Aparente-
mente nunca lhes ocorreu a idéia de suprimir o piolho.
o que é possível. Como sempre acontece na maioria
das discussóes modernas, o ponto silenciado é o eixo
PARA NÁO SER ESCRAVO.
311

de tóda a questáo. E’ claro para qualquer cristáo (isto


é, para um homem de alma livre) que tóda coagáo apli-
cada á filha do carroceiro deve ser aplicada também á
filha do ministro. Náo perderei tempo em perguntar
por que náo aplicam éles seus decretos ás filhas dos mi-
nistros. Náo pergunto porque já sei. Éles náo ousam.
Mas qual é a desculpa que apresentam, qual é o plausí-
vel argumento que invocam para tosquiar as criangas po-
bres e náo as ricas? Talvez aleguem que a praga seja
mais provável nos cábelos de gente pobre. Mas por
qué? Porque as criangas pobres estáo obrigadas (contra
todos os instintos domésticos das classes trabalhadoras)
a se apinharcm em salas apertadas sob um sistema de
instrugáo pública desvairadamente inocuo, e porque uma
em quarenta tem piolhos. Mas por qué? Porque o ho-
mem pobre vive táo oprimido, e comprimido, e deprimi-
do, pelo proprietário e pelo patráo, que sua mulher é
também obrigada a se alugar. Por conseguinte, ela náo
tem tempo de olhar pelos filhos; e por conseguinte, um
em quarenta é sujo. Por causa de um proprietário que
está sentado em cima de seu estómago, e de um mestre-
escola que está sentado em cima de sua cabega, o tra-
balhador náo tem o direito de ter uma filha de cábelos
compridos, que seráo necessáriamente descuidados por po-
breza, infectados por promiscuidade e finalmente aboli-
dos por higiene. Éle tem garbo dos cábelos de sua filha.
Mas isso náo importa: o médico sociológico segue sua
retilinea trajetória.
Quando uma crapulosa tiranía empurra os homens
para dentro da imundície, a ponto de ficarem imundos
os próprios cábelos, as providéncias científicas sáo extre-
mamente simples. Seria longo e laborioso cortar as ca-
begas dos tiranos; é mais fácil cortar os cábelos dos es-
cravos. E nesse andar, se acontecer amanhá que as
criangas pobres chorem com dor de dente, perturbando
um mestre-escola ou exasperando algum delicado cava-
lheiro, será mais fácil extrair os dentes do pobre; se sáo
as unhas que estáo sujas a ponto de causar nojo, sáo as
unhas que devem ser arrancadas; se é o nariz que se
mostra indecentemente encatarrado, corte-se o nariz. As-
sim, a fisionomía de nossos humildes concidadáos fica-
rá dia a dia mais simplificada,
312 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

Tudo isso é absurdo e demente, diráo. Mas náo é


mais absurdo e mais demente um só milímetro, do que
essa cena real e legal: um médico entra hoje na casa de
um homem livre, cuja filha tem uma cabega mais limpa
do que as flores dos campos, pelo santo mérito de sua
máe, e ordena que lhe cortem os cábelos. Nunca lem-
brou a essa gente que a ligáo dos piolhos apanhados nos
cortigos é um defeito dos cortigos e nao dos cábelos. O
cábelo, o mínimo que se pode dizer déle é que é um bem
de raíz; e, na verdade, é sómente por essas instituigóes
eternas como o cábelo, que podemos tirar uma prova
dessas instituigóes efémeras, como um império. A casa
em que náo se pode entrar sem que a trave do portal to-
que na cabega, ou no cábelo, é uma casa mal construida.
Um homem pode entregar voluntáriamen-
te os seus cábelos, e entre a cabega raspada
de um escravo e a tonsura de um mcnge há
um abismo. O máximo e o mínimo dependem
muitas vézes de um fio de cábelo, ou do fio
de barba com que nossos avós selavam um
pacto de honra. Sáo Martinho, o bom distri-
butista, certamente curvou sua cabega para
receber a tonsura; e Santa Clara fugiu de
casa, para abandonar ñas máos do pobrezinho
de Assis o tesouro dourado de sua beleza.
O menor dos pobres pode entregar seus cá-
belos e sua vida, mas o maior homem do maior
dos impérios náo tem máos que cheguem para
receber essa dádiva. O cábelo é um bem de
raiz. Faz do homem um ser misterioso que
carrega na cabega, isto é, na parte do corpo
que é mais nítida e mais marcada, uma coisa
rebelde como um mar e confusa como uma
floresta. Está quase fora do corpo; é uma
espécie de propriedade privada, de jardim
privado, onde o dono exerce á vontade sua
PARA NÁO SER ESCRAVO. 313

fantasia e sua desordem. É qualquer coisa


que cresce e que transborda como se estivesse
livre do dominio da alma, para lhe ficar su-
jeito, novamente, como objeto de arte, pelo
dominio das máos.
Por isso, o monge corre a entregar ésse
último supérfluo para defender seu último
posto; e por isso, ninguém tem o direito de
tocar nesse último supérfluo que defende o
último posto de um homem livre. Náo se fa-
zem frades e monges á fórca. O escravo de
Deus é o mais livre dos homens, e a pior coisa
do mundo, contra a qual os povos devem se
levantar em unánime revolta, é a sinistra imi-
tagáo do monaquisino.
Mas a multidüo hoje difícilmente se revolta; na ver-
dade, a multidáo só se pode revoltar quando é conserva-
dora, isto é, quando tem alguma razáo para querer vol-
tar. E’ terrível pensá-lo, mas a maior parte dos antigos
golpes desferidos em nome da liberdade, nao podem ser
desferidos hoje, porque um eclipse cobriu os claros e
populares costumes de onde éles vieram. O insulto que
pós em impetuoso movimento o martelo de Wat Tvler,
seria hoje chamado de exame médico; o vexame que
Virginius detestou e vingou, como Insensata escravidao,
seria hoje louvado como amor livre; e o cruel escárnio
de Foulon para os pobres: “Deixa-os, que comam capim”,
seria interpretado como a última palavra de un idea-
lista vegetariano. As enormes tesouras da ciencia que
hoje podam cachos de cábelos ñas meninas pobres, estáo
incessantemente, irresistivelmente, fechando a dupla gui-
lhotina sóbre todas as pontas, franjas e excrescéncias
que ainda representam para o pobre um mínimo de arte
e de honra. Brevemente éles teráo pescogos torcidos,
para se adaptarem a coleiras higiénicas; e pés talhados
para caberem em sapatos feitos segundo as estatísticas.
Náo lhes ocorre, num fugaz relámpago de saúde mental,
que o corpo é mais do que a roupa, que o sábado foi
314 TRES ALQUEIRES E UMA VACA

feito para o homem, e que todas as instituigóes seráo


julgadas, condenadas e relegadas para os infernos, pelo
que deixem de se ajustar com normalidade á carne e ao
espirito. A prova que uma política normal deve supor-
tar, a mínima prova, é esta: o direito do homem pos-
suir sua própria cabega e seus próprios cábelos.
Tudo o que disse nessas últimas páginas, e talvez em
todas as páginas déste livro, resume-se em afirmar que
podemos recomegar, que devemos recomegar, e que deve-
nios recomegar tudo pela outra ponta.
Eu comego pelos cábelos da menina pobre. Isto, eu
sei que é bom. Que é bom, seja como fór. Qualquer
outra coisa poderá ser discutida e considerada má; a sa-
tisfagáo de uma boa máe pela beleza de sua filha é boa.
E’ uma dessas adamantinas ternuras que sáo a pedra de
toque ñas épocas e ñas ragas. Se há por ai outras
coisas que a isto se oponham, essas outras coisas devem
desaparecer; se os senhorios, as leis e a ciéncia se opóem,
os senhorios, as leis e as ciéncias devem desaparecer. Eu
comego pelo cábelos daquela menina ruiva que justamente
vejo passar...
Com os cábelos cor de fogo daquela menina eu fa-
ria um incéndio de tóda a orgulhosa civilizagáo moderna.
A menina deve ficar com seus cábelos. Deve guardá-los.
E, porque deve ficar com seus cábelos, deveráo ser cá-
belos limpos; e, porque devem ser limpos os cábelos da
menina, sua máe deverá ser folgada e livre; e, porque
deve a menina de longos e limpos cábelos dourados ter
máe folgada e livre, deveráo desaparecer patróes e pro-
prietários gananciosos; e, porque devem desaparecer os
patróes e proprietários gananciosos, deverá ser feita a
redistribuigáo da propriedade; e, porque deve ser feita
a redistribuigáo da propriedade, deverá ser desencadeada
a Revolugáo!
A menina de cábelos cor de ouro e fogo náo pode ser
podada, mutilada, simplificada; sua cabega náo pode
ser raspada como a de um convicto. Náo. Que todos os
reinos da terra, antes disso, sejam talhados e mutilados
para que nela se ajustem; que todas as coroas que náo
servirem em sua cabega sejam quebradas; que todas as
roupagens, monumentos e palácios que náo puderem se
harmonizar com sua glória, sejam varridos do mundo
Sua máe pode mandar que lhe cortem o cábelo, pois
PARA NÁO SER ESCRAVO... 315
isso vem da autoridade natural. Seu pai pode; é claro.
Mas o Imperador do Planeta náo pode! Ela é uma ima-
gem humana e sagrada. Tudo que a sociedade construiu
em volta déla deverá estremecer, rachar-se, ruir — sejam
sacudidos os pilares do mundo; desabe em cima de nós
com fragor a abobada das idades — mas náo toquem
num só fio de seu cábelo.
t>.a fdifáo
PodMe dar urns Idéia déste livro d<*
L7STAVO CORgAO. citando trecho® de
u capitulo sAhre "urn bom parcelro”:
ma das grande* alegrías que nos sáo
«las, nc*Hte mundo tantaa vézes inóa-
to e doido, é o encontro d.? um bnj»i
crceiro de idéias.” O autor dmcnvol*
vi o concetto inirinl e. depois de falar
biacn. xadrez, moateiros e canas de
(fócio, confeaaa ter encontrado em
vesterton um bom pnrceiro. E* at que
« dá a chave de s*»u livro e até mesmo
aeu estilo.
“Veja bem o leitor que náo me estou
liando de aproximares literárlas, mas
aproximabas humanas. A afinidad:?
idéias é uma aemelhanca e nao umn
Lialdade, equipara os Angulos, mas res-
I va as proporcóe*. Kncontrei-me «
¡xta nirtmo em Cheaterton,* porque un
ais simples e triviais idéias que para
im pareciam reliquia» de familia, dis-
ezíveis ñas altas esferas da cultura,
am Hua* ¡délas mestras, e eram real-
ente reliquias de familia. E sobretudo.
am idéias regeneradoras e fecundas,
i<¡H o leitor a mesma experiéncia. I*e¡a
.♦■éter ton; jogue com éle ésse melhor
•a jogos, em que as idéias sfto atiradas
« campo para campo, e em que o lucro
ide perfeltamente ser a recuperado do
tnpo perdido que Proust, ern quatorze
•lumen, náo enoontrou.”
Ora, o convite de GUSTAVO CORCAO
i leitor, a propósito de Chesterton, IH ' M
i repetimos a propósito de GUSTAVO
OR^AO. Fa^a o leitor a experiencia:
la GUSTAVO CORCAO, lela éate livro
t GUSTAVO CORCAO. A fular da
\ia e da obra de um dos grandes «scri-
tres de nosso tempo — Chesterton -
cleitor encontrará aquí um ensafsta dos
r*ia lúcidos, um crítico dos mais inte-
I¡entes, um autor dos que melhor escre-
kni atualmente no Brasil.
Se o leitor conbece alguma coisa de
Cíe» ter ton, compreenderá muito melhor
lobra do extraordinário humorista ingles,
ipoia do contato com éste stu pe reel ro
fl, mais que um discipulo, pois sua
'proximafáo humana*’ rom o Mestre
nitas vézes conduz a uma equipara?* 0
ral e legitima entre amboH, eenáo mts-
r) a uma superado, quando é o caso
i. transportar o espirito e as idéias do
(¿ador do distributismo ao exame dos
i£>ntecimentos e de cria^óes posterioras

(continua na 2. a orelha)
H

rS
(continuaba» da 1. a orelha)
a 1936, data de seu desnparecimento
vida e de seu aparecimiento para o 1
grafo : "náo dei pelo seu desaparecímei
mas senti, com a impetuosa evidencia
uma janela «berta, o seu apareeimen!
E ae o leitor apenas fular
ouviu
Chesterton aqui o encontrará vivo e
ruante e só fechará a última página
TRÉS ALQUEIRES E UMA VACA, y
correr imediatarnente á experiéncia a
foi convidado por GUSTAVO CORC-
Esta é sobretodo uma biografía
Chesterton, escrita á maneira de O
terton.
A partir das idéias centrals do pen
mentó désse exuberante e humanín«i
escritor — a do mistério, a da fidelid
e a da propriedade — ("O humanis
de Chesterton”, “O homem e suas idé¡»
“Para náo ser doido", “Para nao
bárbaro”, “Para náo ser escravo”,
as cinco partes do livro), GUSTA
CORQAO faz, a propósito de seu bi»fl
lado, o mesmo que féz Chesterton a p
pósito de Sáo Francisco de Ashíb ou
Sto. Tomás, de Dickens, de William IIli
ou de Robert Browning, i*to é, preocu
se menos com os incidentes de sua v
do que com a explorado e aplica-
exuustiva de suas idéias. donde ene
tramos neste TRÉS ALQUEIRES E U1
VACA um riquissimo e fecundíssirno r
terial de penaamento. Enxaineiam
enaaios de estética, de psicología, de 1
tória. de rellgiáo, de polities remix
:
concias pessoais e páginas de critica (
bre Poe, BÓbre Nietzsche, sóbre Gide, et
aáo misturadas a conceitos sóbre lib
dade, democracia. Estado, Nacáo, soí
lismo, capitalismo...
GUSTAVO CORCAO atinge em seu
vro — o próprio autor o verificará
o ideal que se fmpós, embora com ce
ar desconfiado: **eu queria ser um gt>
para convencer ao leitor que a idéia m
poética e mais maravilhosa do muí
está ligada ii posse de trés alqueires
uma vaca. Ou entfio, o que é mu
mais fácil, eu quería que o leitor ÍO
um homem extremamente simples, pi
descubrir lato aózinho. ”
/ ,

OUTRAS OBRAS DE

GUSTAVO CORCAO
A DESCOBERTA DO OUTRO (8. a edl^ao)
Um peasamento e um estilo que bruscamente atore
uma nova janela em nossa,s letras * — Alceu Amoroso
: Lima.

LIQÓES DE ABISMO (13.» odicáo)


■O maior livro de ficcjáo que Já se escreveu no Brasil»,
ñas palavras entusiastas de Menotti del Plcchla.

AS FRONTEIRAS DA TÉCNICA (5. a edi<;áo)


« . . . ao vermos um escritor sérlo, fácil de ler-re, táo útil,
..... 9
morallzador e exemplar como éste, só o podemos
saudar aos gritos, tal a raridade da coisa. — Arthur
Versiani Velloso.

CLARO-ESCURO (2.* edtcao)


Ensalos sóbre casamento, divórclo, amor, sexo, e ou-
tros assuntos.

•-
DEZ ANOS (2.® edlc&o)
«Trés dúzias de crónicas respigadas em 10 anos de
jornallsmo, e arrumadas em desordem cronológica . 8?;
Pedidos k livrarla de sua preferencia ou á.
.Z7 vror/o
Rila Braulio Oomn, 126
AGIR cTc///órü
Rúa México. 98-B Av. Afooao Pena. »\V
(«o lado da HIM. Mun. i Tel.: «4J« Tel.: J-30S8
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