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COLÉGIO ESTADUAL PROFESSOR MANOEL MACÊDO CIRILO

COMPONENTE CURRICULAR: LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA


TEMA TRANSVERSAL: MEIO AMBIENTE
PROFA. JANARA SOARES

Nas próximas aulas trabalharemos com uma sequência de textos e atividades voltadas para o MEIO
AMBIENTE. A partir dessa temática, trabalharemos:

- Gêneros textuais
- Leitura e interpretação de textos
- Linguagem verbal e não verbal
- Literatura: Modernismo no Brasil
- Coesão e coerência: retomada de ideias no texto

E VAMOS DE LITERATURA...

Como vimos nos textos anteriores, as questões ambientais estão


associadas também às questões sociais. A forma como o ser humano trata o
meio ambiente e os modos de exploração também definem diretamente a vida
de várias pessoas, como no caso do agronegócio.
Um exemplo é a vida de Severino, personagem do poema Morte e Vida
Severina, de João Cabral de Melo Neto. Morador do sertão pernambucano,
Severino decide migrar para a cidade grande em busca de melhorias de vida. O
problema da seca, que, inicialmente, aparece como um problema natural, vai
sendo desenvolvido de modo a mostrar também as questões sociais, políticas e
econômicas que influenciam na pobreza de parcela da sociedade sertaneja.

João Cabral de Melo Neto fez parte da chamada Terceira Geração


Modernista Brasileira, ou Geração de 45, que estudaremos nas próximas aulas.

Prelúdio
O texto abaixo é um dois mais famosos poemas de João Cabral de Melo Neto. Ele narra a saída de um retirante
do sertão pernambucano, seguindo a margem do rio Capibaribe, para chegar até o mar onde ele deságua, em
Recife. No caminho, Severino, o retirante, encontra outras personagens que também sofrem com as injustiças
sociais que assolam o sertão. Para ele, no litoral poderia haver possibilidades de melhoria de vida, o que não
acontece.
O subtítulo do poema é (auto de Natal pernambucano). Podemos observar que há uma
INTERTEXTUALIDADE, ou seja, a referência a outros textos e discursos, como, neste caso, a história do
nascimento de Jesus. Além disso, há a INTERTEXTUALIDADE com o gênero AUTO, que remonta à era
medieval.
Surgido em Portugal na era medieval, a palavra auto vem do termo actum, significando qualquer obra
representada, ou seja, referia-se a todas as peças teatrais. É uma das formas mais populares do antigo teatro
português.
Inicialmente, os autos eram encenados em templos religiosos, depois nas portas de entrada das igrejas e pátios.
Posteriormente, as apresentações passaram a acontecer em feiras, mercados e praças públicas, quando se torna
um gênero dramático de feição popular. Foi nessa época também que, ao sair das igrejas, os autos passaram
também a tratar de assuntos profanos. Não que havia autos religiosos e autos profanos, separadamente. O que
ocorria era a coexistência dos dois elementos dentro da mesma peça.
De qualquer forma, com o passar do tempo, o auto passou a ser definido como uma peça de curta duração de
conteúdo religioso ou profano, burlesco e alegórico, escrito geralmente em verso. Sua característica principal
é o conteúdo simbólico, cujos personagens são entidades abstratas, geralmente de caráter religioso ou moral
(o pecado, a luxúria, a bondade, a virtude, entre outros).
O maior representante luso dessa modalidade dramática é Gil Vicente, com autos que romperam os tempos e
são dramatizados até hoje, como é o caso do Auto da Barca do Inferno.
Na modernidade, muitos autores utilizam esse gênero como referência para suas obras. No Brasil, Ariano
Suassuna é um dos grandes exemplos de escritores de autos, com peças importantíssimas e muito conhecidas,
como em O Auto da Compadecida. Além disso, João Cabral de Melo Neto, com Morte e Vida Severina,
recuperou esse gênero e o trouxe para o imaginário brasileiro.

MORTE E VIDA SEVERINA


(auto de Natal pernambucano)
(1954-1955)

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E que usamos tem pouca tinta.


A QUE VAI E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
— O meu nome é Severino, morremos de morte igual,
não tenho outro de pia. mesma morte severina:
Como há muitos Severinos, que é a morte de que se morre
que é santo de romaria, de velhice antes dos trinta,
deram então de me chamar de emboscada antes dos vinte,
Severino de Maria; de fome um pouco por dia
como há muitos Severinos (de fraqueza e de doença
com mães chamadas Maria, é que a morte severina
fiquei sendo o da Maria ataca em qualquer idade,
do finado Zacarias. e até gente não nascida).
Mas isso ainda diz pouco: Somos muitos Severinos
há muitos na freguesia, iguais em tudo e na sina:
por causa de um coronel a de abrandar estas pedras
que se chamou Zacarias suando-se muito em cima,
e que foi o mais antigo a de tentar despertar
senhor desta sesmaria. terra sempre mais extinta,
Como então dizer quem fala a de querer arrancar
ora a Vossas Senhorias? algum roçado da cinza.
Vejamos: é o Severino Mas, para que me conheçam
da Maria do Zacarias, melhor Vossas Senhorias
lá da serra da Costela, e melhor possam seguir
limites da Paraíba. a história de minha vida,
Mas isso ainda diz pouco: passo a ser o Severino
se ao menos mais cinco havia que em vossa presença emigra.
com nome de Severino
filhos de tantas Marias ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM
mulheres de outros tantos, DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE: “Ó
já finados, Zacarias, IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS!
vivendo na mesma serra NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!”
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos — A quem estais carregando,
iguais em tudo na vida: irmãos das almas,
na mesma cabeça grande embrulhado nessa rede?
que a custo é que se equilibra, dizei que eu saiba.
no mesmo ventre crescido — A um defunto de nada,
sobre as mesmas pernas finas, irmão das almas,
e iguais também porque o sangue que há muitas horas viaja
à sua morada. tão cobiçada?
— E sabeis quem era ele, — Tinha somente dez quadras,
irmãos das almas, irmão das almas,
sabeis como ele se chama todas nos ombros da serra,
ou se chamava? nenhuma várzea.
— Severino Lavrador, — Mas então por que o mataram,
irmão das almas, irmãos das almas,
Severino Lavrador, mas então por que o mataram
mas já não lavra. com espingarda?
— E de onde que o estais trazendo, — Queria mais espalhar-se,
irmãos das almas, irmão das almas,
onde foi que começou queria voar mais livre
vossa jornada? essa ave-bala.
— Onde a Caatinga é mais seca, — E agora o que passará,
irmão das almas, irmãos das almas,
onde uma terra que não dá o que é que acontecerá
nem planta brava. contra a espingarda?
— E foi morrida essa morte, — Mais campo tem para soltar,
irmãos das almas, irmão das almas,
essa foi morte morrida tem mais onde fazer voar
ou foi matada? as filhas-bala.
— Até que não foi morrida, — E onde o levais a enterrar,
irmão das almas, irmãos das almas,
esta foi morte matada, com a semente do chumbo
numa emboscada. que tem guardada?
— E o que guardava a emboscada, — Ao cemitério de Torres,
irmãos das almas, irmão das almas,
e com que foi que o mataram, que hoje se diz Toritama,
com faca ou bala? de madrugada.
— Este foi morto de bala, — E poderei ajudar,
irmão das almas, irmãos das almas?
mais garantido é de bala, Vou passar por Toritama,
mais longe vara. é minha estrada.
— E quem foi que o emboscou, — Bem que poderá ajudar,
irmãos das almas, irmão das almas,
quem contra ele soltou é irmão das almas quem ouve
essa ave-bala? nossa chamada.
— Ali é difícil dizer, — E um de nós pode voltar,
irmão das almas, irmão das almas,
sempre há uma bala voando pode voltar daqui mesmo
desocupada. para sua casa.
— E o que havia ele feito, — Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas, irmãos das almas,
e o que havia ele feito é muito longa a viagem
contra a tal pássara? e a serra é alta.
— Ter uns hectares de terra, — Mais sorte tem o defunto,
irmão das almas, irmãos das almas,
de pedra e areia lavada pois já não fará na volta
que cultivava. a caminhada.
— Mas que roças que ele tinha, — Toritama não cai longe,
irmãos das almas, irmão das almas,
que podia ele plantar seremos no campo santo
na pedra avara? de madrugada.
— Nos magros lábios de areia, — Partamos enquanto é noite,
irmão das almas, irmão das almas,
dos intervalos das pedras, que é o melhor lençol dos mortos
plantava palha. noite fechada.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO
PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM
CORTOU COM O VERÃO DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO
DE FORA, VAI PARODIANDO AS PALAVRAS
— Antes de sair de casa DOS CANTADORES
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar — Finado Severino,
na minha longa descida. quando passares em Jordão
Sei que há muitas vilas grandes, e os demônios te atalharem
cidades que elas são ditas; perguntando o que é que levas...
sei que há simples arruados, — Dize que levas cera,
sei que há vilas pequeninas, capuz e cordão
todas formando um rosário mais a Virgem da Conceição.
cujas contas fossem vilas, — Finado Severino,
todas formando um rosário etc...
de que a estrada fosse a linha. — Dize que levas somente
Devo rezar tal rosário coisas de não:
até o mar onde termina, fome, sede, privação.
saltando de conta em conta, — Finado Severino,
passando de vila em vila. etc...
Vejo agora: não é fácil — Dize que coisas de não,
seguir essa ladainha; ocas, leves:
entre uma conta e outra conta, como o caixão, que ainda deves.
entre uma e outra ave-maria, — Uma excelência
há certas paragens brancas, dizendo que a hora é hora.
de planta e bicho vazias, — Ajunta os carregadores,
vazias até de donos, que o corpo quer ir embora.
e onde o pé se descaminha. — Duas excelências...
Não desejo emaranhar — ... dizendo é a hora da plantação.
o fio de minha linha — Ajunta os carregadores...
nem que se enrede no pêlo — ... que a terra vai colher a mão.
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA
eu jamais me perderia: INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E
ele é o caminho mais certo, PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE
de todos o melhor guia. ENCONTRA
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida? — Desde que estou retirando
Vejo que o Capibaribe, só a morte vejo ativa,
como os rios lá de cima, só a morte deparei
é tão pobre que nem sempre e às vezes até festiva;
pode cumprir sua sina só morte tem encontrado
e no verão também corta, quem pensava encontrar vida,
com pernas que não caminham. e o pouco que não foi morte
Tenho de saber agora foi de vida severina
qual a verdadeira via (aquela vida que é menos
entre essas que escancaradas vivida que defendida,
frente a mim se multiplicam. e é ainda mais severina
Mas não vejo almas aqui, para o homem que retira).
nem almas mortas nem vivas; Penso agora: mas por que
ouço somente à distância parar aqui eu não podia
o que parece cantoria. e como o Capibaribe
Será novena de santo, interromper minha linha?
será algum mês-de-Maria; Ao menos até que as águas
quem sabe até se uma festa de uma próxima invernia
ou uma dança não seria? me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga. — Melhor do que eu ninguém
Ou será que aqui cortando sabe combater, quiçá,
agora a minha descida tanta planta de rapina
já não poderei seguir que tenho visto por cá.
nunca mais em minha vida? — Essas plantas de rapina
(será que a água destes poços são tudo o que a terra dá;
é toda aqui consumida diga-me ainda, compadre,
pelas roças, pelos bichos, que mais fazia por lá?
pelo sol com suas línguas? — Tirei mandioca de chãs
será que quando chegar que o vento vive a esfolar
o rio da nova invernia e de outras escalavradas
um resto da água do antigo pela seca faca solar.
sobrará nos poços ainda?) — Isto aqui não é Vitória,
Mas isso depois verei: nem é Glória do Goitá;
tempo há para que decida; e além da terra, me diga,
primeiro é preciso achar que mais sabe trabalhar?
um trabalho de que viva. — Sei também tratar de gado,
Vejo uma mulher na janela, entre urtigas pastorear:
ali, que, se não é rica, gado de comer do chão
parece remediada ou de comer ramas no ar.
ou dona de sua vida: — Aqui não é Surubim,
vou saber se de trabalho nem Limoeiro, oxalá!
poderá me dar notícia. Mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA, QUE — Em qualquer das cinco tachas
DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE de um bangüê sei cozinhar;
SABERÁ sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
— Muito bom dia, senhora, — Com a vinda das usinas
que nessa janela está; há poucos engenhos já;
sabe dizer se é possível nada mais o retirante
algum trabalho encontrar? aprendeu a fazer lá?
— Trabalho aqui nunca falta — Ali ninguém aprendeu
a quem sabe trabalhar; outro ofício, ou aprenderá:
o que fazia o compadre mas o sol, de sol a sol,
na sua terra de lá? bem se aprende a suportar.
— Pois fui sempre lavrador, — Mas isso então será tudo
lavrador de terra má; em que sabe trabalhar?
não há espécie de terra vamos, diga, retirante,
que eu não possa cultivar. outras coisas saberá.
— Isso aqui de nada adianta, — Deseja mesmo saber
pouco existe o que lavrar; o que eu fazia por lá?
mas diga-me, retirante, comer quando havia o quê
que mais fazia por lá? e, havendo ou não, trabalhar.
— Também lá na minha terra — Essa vida por aqui
de terra mesmo pouco há; é coisa familiar;
mas até a calva da pedra mas diga-me, retirante,
sinto-me capaz de arar. sabe benditos rezar?
— Também de pouco adianta, sabe cantar excelências,
nem pedra há aqui que amassar; defuntos encomendar?
diga-me ainda, compadre, sabe tirar ladainhas,
que mais fazia por lá? sabe mortos enterrar?
— Conheço todas as roças — Já velei muitos defuntos,
que nesta chã podem dar: na serra é coisa vulgar;
o algodão, a mamona, mas nunca aprendi as rezas,
a pita, o milho, o caroá. sei somente acompanhar.
— Esses roçados o banco — Pois se o compadre soubesse
já não quer financiar; rezar ou mesmo cantar,
mas diga-me, retirante, trabalhávamos a meias,
o que mais fazia lá? que a freguesia bem dá.
— Agora se me permite a viagem se aproxima.
minha vez de perguntar: Agora afinal cheguei
como a senhora, comadre, nessa terra que diziam.
pode manter o seu lar? Como ela é uma terra doce
— Vou explicar rapidamente, para os pés e para a vista.
logo compreenderá: Os rios que correm aqui
como aqui a morte é tanta, têm a água vitalícia.
vivo de a morte ajudar. Cacimbas por todo lado;
— E ainda se me permite cavando o chão, água mina.
que lhe volte a perguntar: Vejo agora que é verdade
é aqui uma profissão o que pensei ser mentira.
trabalho tão singular? Quem sabe se nesta terra
— É, sim, uma profissão, não plantarei minha sina?
e a melhor de quantas há: Não tenho medo de terra
sou de toda a região (cavei pedra toda a vida),
rezadora titular. e para quem lutou a braço
— E ainda se me permite contra a piçarra da Caatinga
mais outra vez indagar: será fácil amansar
é boa essa profissão esta aqui, tão feminina.
em que a comadre ora está? Mas não avisto ninguém,
— De um raio de muitas léguas só folhas de cana fina;
vem gente aqui me chamar; somente ali à distância
a verdade é que não pude aquele bueiro de usina;
queixar-me ainda de azar. somente naquela várzea
— E se pela última vez um bangüê velho em ruína.
me permite perguntar: Por onde andará a gente
não existe outro trabalho que tantas canas cultiva?
para mim neste lugar? Feriando: que nesta terra
— Como aqui a morte é tanta, tão fácil, tão doce e rica,
só é possível trabalhar não é preciso trabalhar
nessas profissões que fazem todas as horas do dia,
da morte ofício ou bazar. os dias todos do mês,
Imagine que outra gente os meses todos da vida.
de profissão similar, Decerto a gente daqui
farmacêuticos, coveiros, jamais envelhece aos trinta
doutor de anel no anular, nem sabe da morte em vida,
remando contra a corrente vida em morte, severina;
da gente que baixa ao mar, e aquele cemitério ali,
retirantes às avessas, branco na verde colina,
sobem do mar para cá. decerto pouco funciona
Só os roçados da morte e poucas covas aninha.
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil: ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR
simples questão de plantar; DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS
não se precisa de limpa, AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas — Essa cova em que estás,
fazem-nos mais prosperar; com palmos medida,
e dão lucro imediato; é a conta menor
nem é preciso esperar que tiraste em vida.
pela colheita: recebe-se — É de bom tamanho,
na hora mesma de semear. nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE deste latifúndio.
O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM — Não é cova grande,
INTERROMPER A VIAGEM é cova medida,
é a terra que querias
— Bem me diziam que a terra ver dividida.
se faz mais branda e macia — É uma cova grande
quanto mais do litoral para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho — Já não levas semente viva:
que estavas no mundo. teu corpo é a própria maniva.
— É uma cova grande — Não levas rebolo de cana:
para teu defunto parco, és o rebolo, e não de caiana.
porém mais que no mundo — Não levas semente na mão:
te sentirás largo. és agora o próprio grão.
— É uma cova grande — Já não tens força na perna:
para tua carne pouca, deixas-te semear na coveta.
mas a terra dada — Já não tens força na mão:
não se abre a boca. deixas-te semear no leirão.
— Viverás, e para sempre — Dentro da rede não vinha nada,
na terra que aqui aforas: só tua espiga debulhada.
e terás enfim tua roça. — Dentro da rede vinha tudo,
— Aí ficarás para sempre, só tua espiga no sabugo.
livre do sol e da chuva, — Dentro da rede coisa vasqueira,
criando tuas saúvas. só a maçaroca banguela.
— Agora trabalharás — Dentro da rede coisa pouca,
só para ti, não a meias, tua vida que deu sem soca.
como antes em terra alheia. — Na mão direita um rosário,
— Trabalharás uma terra milho negro e ressecado.
da qual, além de senhor, — Na mão direita somente
serás homem de eito e trator. o rosário, seca semente.
— Trabalhando nessa terra, — Na mão direita, de cinza,
tu sozinho tudo empreitas: o rosário, semente maninha.
serás semente, adubo, colheita. — Na mão direita o rosário,
— Trabalharás numa terra semente inerte e sem salto.
que também te abriga e te veste: — Despido vieste no caixão,
embora com o brim do Nordeste. despido também se enterra o grão.
— Será de terra — De tanto te despiu a privação
tua derradeira camisa: que escapou de teu peito a viração.
te veste, como nunca em vida. — Tanta coisa despiste em vida
— Será de terra que fugiu de teu peito a brisa.
e tua melhor camisa: — E agora, se abre o chão e te abriga,
te veste e ninguém cobiça. lençol que não tiveste em vida.
— Terás de terra — Se abre o chão e te fecha,
completo agora o teu fato: dando-te agora cama e coberta.
e pela primeira vez, sapato. — Se abre o chão e te envolve,
— Como és homem, como mulher com quem se dorme.
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu. O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS
— Tua roupa melhor PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda. — Nunca esperei muita coisa,
— Tua roupa melhor digo a Vossas Senhorias.
e te ficará bem cingida: O que me fez retirar
como roupa feita à medida. não foi a grande cobiça;
— Esse chão te é bem conhecido o que apenas busquei
(bebeu teu suor vendido). foi defender minha vida
— Esse chão te é bem conhecido da tal velhice que chega
(bebeu o moço antigo). antes de se inteirar trinta;
— Esse chão te é bem conhecido se na serra vivi vinte,
(bebeu tua força de marido). se alcancei lá tal medida,
— Desse chão és bem conhecido o que pensei, retirando,
(através de parentes e amigos). foi estendê-la um pouco ainda.
— Desse chão és bem conhecido Mas não senti diferença
(vive com tua mulher, teus filhos). entre o Agreste e a Caatinga,
— Desse chão és bem conhecido e entre a Caatinga e aqui a Mata
(te espera de recém-nascido). a diferença é a mais mínima.
— Não tens mais força contigo: Está apenas em que a terra
deixas-te semear ao comprido. é por aqui mais macia;
está apenas no pavio, são como o porto do mar;
ou melhor, na lamparina: não é muito ali o serviço:
pois é igual o querosene no máximo um transatlântico
que em toda parte ilumina, chega ali cada dia,
e quer nesta terra gorda, com muita pompa, protocolo,
quer na serra, de caliça, e ainda mais cenografia.
a vida arde sempre com Mas este setor de cá
a mesma chama mortiça. é como a estação dos trens:
Agora é que compreendo diversas vezes por dia
por que em paragens tão ricas chega o comboio de alguém.
o rio não corta em poços — Mas se teu setor é comparado
como ele faz na Caatinga: à estação central dos trens,
vive a fugir dos remansos o que dizer de Casa Amarela
a que a paisagem o convida, onde não pára o vaivém?
com medo de se deter, Pode ser uma estação,
grande que seja a fadiga. mas não estação de trem:
Sim, o melhor é apressar será parada de ônibus,
o fim desta ladainha, com filas de mais de cem.
fim do rosário de nomes — Então por que não pedes,
que a linha do rio enfia; já que és de carreira, e antigo,
é chegar logo ao Recife, que te mandem para Santo Amaro
derradeira ave-maria se achas mais leve o serviço?
do rosário, derradeira Não creio que te mandassem
invocação da ladainha, para as belas avenidas
Recife, onde o rio some onde estão os endereços
e esta minha viagem se fina. e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE dos políticos, dos banqueiros,
SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM e, no tempo antigo, dos bangüezeiros
MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER (hoje estes se enterram em carneiros);
NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
— O dia de hoje está difícil; e dos que foram mais horizontais
não sei onde vamos parar. nas profissões liberais.
Deviam dar um aumento, Difícil é que consigas
ao menos aos deste setor de cá. aquele bairro, logo de saída.
As avenidas do centro são melhores, — Só pedi que me mandassem
mas são para os protegidos: para as urbanizações discretas,
há sempre menos trabalho com seus quarteirões apertados,
e gorjetas pelo serviço; com suas cômodas de pedra.
e é mais numeroso o pessoal — Esse é o bairro dos funcionários,
(toma mais tempo enterrar os ricos). Inclusive extranumerários,
— Pois eu me daria por contente contratados e mensalistas
se me mandassem para cá. (menos os tarefeiros e diaristas).
Se trabalhasses no de Casa Amarela Para lá vão os jornalistas,
não estarias a reclamar. os escritores, os artistas;
De trabalhar no de Santo Amaro ali vão também os bancários,
deve alegrar-se o colega as altas patentes dos comerciários,
porque parece que a gente os lojistas, os boticários,
que se enterra no de Casa Amarela os localizados aeroviários
está decidida a mudar-se e os de profissões liberais
toda para debaixo da terra. que não se liberaram jamais.
— É que o colega ainda não viu — Também um bairro dessa gente
o movimento: não é o que vê. temos no de Casa Amarela:
Fique-se por aí um momento cada um em seu escaninho,
e não tardarão a aparecer cada um em sua gaveta,
os defuntos que ainda hoje com o nome aberto na lousa
vão chegar (ou partir, não sei). quase sempre em letras pretas.
As avenidas do centro, Raras as letras douradas,
onde se enterram os ricos, raras também as gorjetas.
— Gorjetas aqui, também, fica vivendo no meio da lama,
só dá mesmo a gente rica, comendo os siris que apanha;
em cujo bairro não se pode pois bem: quando sua morte chega,
trabalhar em mangas de camisa; temos de enterrá-los em terra seca.
onde se exige quepe — Na verdade, seria mais rápido
e farda engomada e limpa. e também muito mais barato
— Mas não foi pelas gorjetas, não, que os sacudissem de qualquer ponte
que vim pedir remoção: dentro do rio e da morte.
é porque tem menos trabalho — O rio daria a mortalha
que quero vir para Santo Amaro; e até um macio caixão de água;
aqui ao menos há mais gente e também o acompanhamento
para atender a freguesia, que levaria com passo lento
para botar a caixa cheia o defunto ao enterro final
dentro da caixa vazia. a ser feito no mar de sal.
— E que disse o Administrador, — E não precisava dinheiro,
se é que te deu ouvido? e não precisava coveiro,
— Que quando apareça a ocasião e não precisava oração,
atenderá meu pedido. e não precisava inscrição.
— E do senhor Administrador — Mas o que se vê não é isso:
isso foi tudo que arrancaste? é sempre nosso serviço
— No de Casa Amarela me deixou, crescendo mais cada dia;
mas me mudou de arrabalde. morre gente que nem vivia.
— E onde vais trabalhar agora, — E esse povo lá de riba
qual o subúrbio que te cabe? de Pernambuco, da Paraíba,
— Passo para o dos industriários, que vem buscar no Recife
que é também o dos ferroviários, poder morrer de velhice,
de todos os rodoviários encontra só, aqui chegando,
e praças-de-pré dos comerciários. cemitérios esperando.
— Passas para o dos operários, — Não é viagem o que fazem,
deixas o dos pobres vários; vindo por essas caatingas, vargens;
melhor: não são tão contagiosos aí está o seu erro:
e são muito menos numerosos. vêm é seguindo seu próprio enterro.
— É, deixo o subúrbio dos indigentes,
onde se enterra toda essa gente O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS
que o rio afoga na preamar DO CAPIBARIBE
e sufoca na baixa-mar.
— É a gente sem instituto, — Nunca esperei muita coisa,
gente de braços devolutos; é preciso que eu repita.
são os que jamais usam luto Sabia que no rosário
e se enterram sem salvo-conduto. de cidades e de vilas,
— É a gente dos enterros gratuitos e mesmo aqui no Recife
e dos defuntos ininterruptos. ao acabar minha descida,
— É a gente retirante não seria diferente
que vem do Sertão de longe. a vida de cada dia:
— Desenrolam todo o barbante que sempre pás e enxadas
e chegam aqui na jante. foices de corte e capina,
— E que então, ao chegar, ferros de cova, estrovengas
não têm mais o que esperar. o meu braço esperariam.
— Não podem continuar Mas que se este não mudasse
pois têm pela frente o mar. seu uso de toda vida,
— Não têm onde trabalhar esperei, devo dizer,
e muito menos onde morar. que ao menos aumentaria
— E da maneira em que está na quartinha, a água pouca,
não vão ter onde se enterrar. dentro da cuia, a farinha,
— Eu também, antigamente, o algodãozinho da camisa,
fui do subúrbio dos indigentes, ou meu aluguel com a vida.
e uma coisa notei E chegando, aprendo que,
que jamais entenderei: nessa viagem que eu fazia,
essa gente do Sertão sem saber desde o Sertão,
que desce para o litoral, sem razão, meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado e quando é fundo o perau?
adiantado de uns dias; quando a força que morreu
o enterro espera na porta: nem tem onde se enterrar,
o morto ainda está com vida. por que ao puxão das águas
A solução é apressar não é melhor se entregar?
a morte a que se decida — Severino, retirante,
e pedir a este rio, o mar de nossa conversa
que vem também lá de cima, precisa ser combatido,
que me faça aquele enterro sempre, de qualquer maneira,
que o coveiro descrevia: porque senão ele alaga
caixão macio de lama, e devasta a terra inteira.
mortalha macia e líquida, — Seu José, mestre carpina,
coroas de baronesa e em que nos faz diferença
junto com flores de aninga, que como frieira se alastre,
e aquele acompanhamento ou como rio na cheia,
de água que sempre desfila se acabamos naufragados
(que o rio, aqui no Recife, num braço do mar miséria?
não seca, vai toda a vida). — Severino, retirante,
muita diferença faz
APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR entre lutar com as mãos
DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE e abandoná-las para trás,
O CAIS E A ÁGUA DO RIO porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
— Seu José, mestre carpina, — Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal, e que diferença faz
sabe me dizer se o rio que esse oceano vazio
a esta altura dá vau? cresça ou não seus cabedais,
sabe me dizer se é funda se nenhuma ponte mesmo
esta água grossa e carnal? é de vencê-lo capaz?
— Severino, retirante, Seu José, mestre carpina,
jamais o cruzei a nado; que lhe pergunte permita:
quando a maré está cheia há muito no lamaçal
vejo passar muitos barcos, apodrece a sua vida?
barcaças, alvarengas, e a vida que tem vivido
muitas de grande calado. foi sempre comprada à vista?
— Seu José, mestre carpina, — Severino, retirante,
para cobrir corpo de homem sou de Nazaré da Mata,
não é preciso muita água: mas tanto lá como aqui
basta que chegue ao abdome, jamais me fiaram nada:
basta que tenha fundura a vida de cada dia
igual à de sua fome. cada dia hei de comprá-la.
— Severino, retirante, — Seu José, mestre carpina,
pois não sei o que lhe conte; e que interesse, me diga,
sempre que cruzo este rio há nessa vida a retalho
costumo tomar a ponte; que é cada dia adquirida?
quanto ao vazio do estômago, espera poder um dia
se cruza quando se come. comprá-la em grandes partidas?
— Seu José, mestre carpina, — Severino, retirante,
e quando ponte não há? não sei bem o que lhe diga:
quando os vazios da fome não é que espere comprar
não se tem com que cruzar? em grosso de tais partidas,
quando esses rios sem água mas o que compro a retalho
são grandes braços de mar? é, de qualquer forma, vida.
— Severino, retirante, — Seu José, mestre carpina,
o meu amigo é bem moço; que diferença faria
sei que a miséria é mar largo, se em vez de continuar
não é como qualquer poço: tomasse a melhor saída:
mas sei que para cruzá-la a de saltar, numa noite,
vale bem qualquer esforço. fora da ponte e da vida?
— Seu José, mestre carpina,
UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O mamando leite de lama
HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ conservará nosso sangue.
— Minha pobreza tal é
— Compadre José, compadre, que coisa não posso ofertar:
que na relva estais deitado: somente o leite que tenho
conversais e não sabeis para meu filho amamentar;
que vosso filho é chegado? aqui são todos irmãos,
Estais aí conversando de leite, de lama, de ar.
em vossa prosa entretida: — Minha pobreza tal é
não sabeis que vosso filho que não tenho presente melhor:
saltou para dentro da vida? trago papel de jornal
Saltou para dentro da vida para lhe servir de cobertor;
ao dar seu primeiro grito; cobrindo-se assim de letras
e estais aí conversando; vai um dia ser doutor.
pois sabei que ele é nascido. — Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO como não posso trazer
HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS um olho d’água de Lagoa do Carro,
ETC. trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.
— Todo o céu e a terra — Minha pobreza tal é
lhe cantam louvor. que grande coisa não trago:
Foi por ele que a maré trago este canário da terra
esta noite não baixou. que canta corrido e de estalo.
— Foi por ele que a maré — Minha pobreza tal é
fez parar o seu motor: que minha oferta não é rica:
a lama ficou coberta trago daquela bolacha d’água
e o mau-cheiro não voou. que só em Paudalho se fabrica.
— E a alfazema do sargaço, — Minha pobreza tal é
ácida, desinfetante, que melhor presente não tem:
veio varrer nossas ruas dou este boneco de barro
enviada do mar distante. de Severino de Tracunhaém.
— E a língua seca de esponja — Minha pobreza tal é
que tem o vento terral que pouco tenho o que dar:
veio enxugar a umidade dou da pitu que o pintor Monteiro
do encharcado lamaçal. fabricava em Gravatá.
— Todo o céu e a terra — Trago abacaxi de Goiana
lhe cantam louvor e de todo o estado rolete de cana.
e cada casa se torna — Eis ostras chegadas agora,
num mocambo sedutor. apanhadas no cais da Aurora.
— Cada casebre se torna — Eis tamarindos da Jaqueira
no mocambo modelar e jaca da Tamarineira.
que tanto celebram os — Mangabas do Cajueiro
sociólogos do lugar. e cajus da Mangabeira.
— E a banda de maruins — Peixe pescado no Passarinho,
que toda noite se ouvia carne de boi dos Peixinhos.
por causa dele, esta noite, — Siris apanhados no lamaçal
creio que não irradia. que há no avesso da rua Imperial.
— E este rio de água cega, — Mangas compradas nos quintais ricos
ou baça, de comer terra, do Espinheiro e dos Aflitos.
que jamais espelha o céu, — Goiamuns dados pela gente pobre
hoje enfeitou-se de estrelas. da Avenida Sul e da Avenida Norte.

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM


PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO APARECIDO COM OS VIZINHOS

— Minha pobreza tal é — Atenção peço, senhores,


que não trago presente grande: para esta breve leitura:
trago para a mãe caranguejos somos ciganas do Egito,
pescados por esses mangues; lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE
na vida desse menino VIERAM COM PRESENTES ETC.
acabado de nascer: — De sua formosura
aprenderá a engatinhar já venho dizer:
por aí, com aratus, é um menino magro,
aprenderá a caminhar de muito peso não é,
na lama, com goiamuns, mas tem o peso de homem,
e a correr o ensinarão de obra de ventre de mulher.
os anfíbios caranguejos, — De sua formosura
pelo que será anfíbio deixai-me que diga:
como a gente daqui mesmo. é uma criança pálida,
Cedo aprenderá a caçar: é uma criança franzina,
primeiro, com as galinhas, mas tem a marca de homem,
que é catando pelo chão marca de humana oficina.
tudo o que cheira a comida; — Sua formosura
depois, aprenderá com deixai-me que cante:
outras espécies de bichos: é um menino guenzo
com os porcos nos monturos, como todos os desses mangues,
com os cachorros no lixo. mas a máquina de homem
Vejo-o, uns anos mais tarde, já bate nele, incessante.
na ilha do Maruim, — Sua formosura
vestido negro de lama, eis aqui descrita:
voltar de pescar siris; é uma criança pequena,
e vejo-o, ainda maior, enclenque e setemesinha,
pelo imenso lamarão mas as mãos que criam coisas
fazendo dos dedos iscas nas suas já se adivinha.
para pescar camarão. — De sua formosura
— Atenção peço, senhores, deixai-me que diga:
também para minha leitura: é belo como o coqueiro
também venho dos Egitos, que vence a areia marinha.
vou completar a figura. — De sua formosura
Outras coisas que estou vendo deixai-me que diga:
é necessário que eu diga: belo como o avelós
não ficará a pescar contra o Agreste de cinza.
de jereré toda a vida. — De sua formosura
Minha amiga se esqueceu deixai-me que diga:
de dizer todas as linhas; belo como a palmatória
não pensem que a vida dele na caatinga sem saliva.
há de ser sempre daninha. — De sua formosura
Enxergo daqui a planura deixai-me que diga:
que é a vida do homem de ofício, é tão belo como um sim
bem mais sadia que os mangues, numa sala negativa.
tenha embora precipícios. — É tão belo como a soca
Não o vejo dentro dos mangues, que o canavial multiplica.
vejo-o dentro de uma fábrica: — Belo porque é uma porta
se está negro não é lama, abrindo-se em mais saídas.
é graxa de sua máquina, — Belo como a última onda
coisa mais limpa que a lama que o fim do mar sempre adia.
do pescador de maré — E tão belo como as ondas
que vemos aqui, vestido em sua adição infinita.
de lama da cara ao pé. — Belo porque tem do novo
E mais: para que não pensem a surpresa e a alegria.
que em sua vida tudo é triste, — Belo como a coisa nova
vejo coisa que o trabalho na prateleira até então vazia.
talvez até lhe conquiste: — Como qualquer coisa nova
que é mudar-se destes mangues inaugurando o seu dia.
daqui do Capibaribe — Ou como o caderno novo
para um mocambo melhor quando a gente o principia.
nos mangues do Beberibe. — E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE


ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM
NADA

— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

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