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QUATERNOS

DE MUSICOTERAPIA E CODA

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SAN 298-6299
Ao Afonso
Companheiro de vida em todos os momentos

Agradecimentos

À minha família
Aos meus professores
A Kenneth Bruscia
Às instituições de educação onde trabalho como docente
Às instituições que me receberam para o exercício da prática
clínica
Aos meus amigos
Aos meus colegas
Aos meus alunos
Aos meus pacientes
PREFÁCIO1
Esta coleção dos “Cadernos’ oferece uma rica amostra das muitas contribuições
em musicoterapia de Lia Rejane Mendes Barcellos, uma liderança nos círculos
da musicoterapia no Brasil, América do Sul, e no mundo. Torna-se difícil captar
integralmente todas as suas contribuições nesse campo, e a importância pessoal e
profissional que tem demonstrado no que se refere ao desenvolvimento da
musicoterapia. Ela já ocupou muitas funções em diferentes espaços e tem
compartilhado seus insights acerca da musicoterapia pelo mundo.
Meu objetivo, nesse prefácio, é assinalar que esses Cadernos são
importantes em vários sentidos. Inicialmente, eles enfatizam a relevância dos
fatores culturais na prática clínica, na teoria e na educação em musicoterapia.
Lembro-me, claramente, ouvir de Rejane o tema da cultura, em nossas
discussões no Simpósio A Música na Vida do Homem, realizado na New York
University em 1982. Hoje em dia eu percebo, nitidamente, que Rejane já
mencionava questões do multiculturalismo muito antes do início do movimento
centrado na cultura, que surgia no alvorecer do século XXI. Ela estava muitos
anos à nossa frente.
Outro tópico a se destacar nesses Cadernos é a centralidade da música na
musicoterapia. Uma vez mais ela mostrou o caminho sendo uma das primeiras
proponentes do que alguns denominam na atualidade “musicoterapia centrada na
música”. Grande parte do seu trabalho trata da importância da música: sua
prática clínica, sua utilização de conceitos que elucidam a musicoterapia e seus
estudos de doutorado e a tese em musicologia. Rejane tem nos demonstrado
continuamente que a terapia se baseia na música.
Digno também de ser lembrado é que todos esses Cadernos estão imersos
em seu trabalho clínico. Suas ideias não são hipóteses ou carecem de
embasamento, ao contrário, foram construídas ao longo dos anos durante os
quais vem clinicando e estudando a prática clínica com uma clientela
diversificada. Acima de tudo, Rejane é uma profissional com profundo
conhecimento e maestria e que escreve a partir dessa perspectiva.
Finalizando, registro que é estimulante para mim que, mesmo nessa
pequena amostra compilada de seus escritos, Rejane destaca que a prática
clínica, a teoria e a pesquisa não podem ser discutidas sem considerarmos a
formação e a supervisão dos musico terapeutas. Toda nova prática gera
implicações na formação e na supervisão, assim como novas teorias e estudos de
pesquisa. Para que o campo cresça, todos esses aspectos da disciplina devem ser
considerados no seu todo, e Rejane tem reconhecido esse fato desde o início de
sua carreira.
Rejane ocupa um lugar central no coração da musicoterapia. Espero que os
Cadernos levem o leitor a compreender o porquê do meu respeito profissional,
profundo e duradouro, pela minha querida amiga de toda uma vida: Rejane!
Kenneth Bruscia
APRESENTAÇÃO
Há algum tempo deveria ter revisado e ampliado os quatro Cadernos de
Musicoterapia, publicados de 1992 a 1999. No entanto, vários foram os motivos
que me levaram a adiar essa tarefa: desde as exigências pessoais até os
compromissos que ocupam nosso tempo quase integralmente, fazendo com que
se adie aquilo que dá prazer, como é o caso de escrever. Por outro lado, é preciso
lembrar que uma revisão leva ao passado, a situações onde se revive o encontro
com pessoas/pacientes com quem foi estabelecida uma relação de afetividade, e
isto, sem dúvida, é reviver algo que não volta mais.
Contudo, seria necessário refazer essas pequenas publicações, com um
olhar atual, e com a inserção de novos textos, alguns escritos para apresentação
em congressos, palestras, ou ainda, para serem empregados como material
didático de disciplinas como “Musicoterapia”, da qual sou professora titular
desde 1976, no Bacharelado em Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de
Música do Rio de Janeiro – Centro Universitário (CBM-CeU); “Teorias e
Técnicas Musicoterápicas”, por mim inserida nesse mesmo curso em 1982, e
“Música em Musicoterapia”, que passou a integrar a grade curricular a partir da
década de 1990. Estas disciplinas são ainda hoje por mim ministradas tanto no
Bacharelado como no Curso de Pós-graduação em Musicoterapia dessa mesma
instituição, criado em 1993 e ainda hoje sendo oferecido, e em cursos do mesmo
nível existentes em muitas outras instituições brasileiras.
Ainda cabe uma observação sobre o fato de os textos inseridos nestas
publicações terem sido apresentados em eventos, como referido acima e, por
isso, ser importante que sejam lidas as notas de rodapé para que se saiba o ano
em que foram escritos.
O objetivo de relançar e ampliar os Cadernos é o de poder atualizar e
divulgar o meu trabalho tanto teórico – refletindo sobre a Musicoterapia —,
quanto prático/clínico, instigando e provocando críticas e discussões que possam
vir a contribuir para o des envolvimento da área.
Mas, uma reedição implica em se pensar que fontes primárias vão conviver
com obras contemporâneas. Essa coexistência se justifica, em primeiro lugar,
porque os Cadernos foram editados na década de 1990, quando a literatura da
área era ainda bastante limitada. Contudo, deve-se ressaltar que as fontes
primárias se constituem como um material precioso. Por outro lado, necessário
se faz assinalar que nestes 20 anos não tivemos grandes avanços no que diz
respeito a publicações brasileiras em livro, na área de musicoterapia.
Atualmente, no entanto, a literatura da musicoterapia em nível mundial se
expande com grande rapidez em outros espaços geográficos, como, por exemplo,
nos países nórdicos, onde existem e se desenvolvem centros de excelência no
ensino da musicoterapia, e onde estão grandes pensadores da área.
Mas, ainda se faz relevante repetir uma questão que vem sendo levantada
por muitos daqueles que falam sobre música, que se refere à dificuldade de
explicar os processos musicais em palavras e que cabe perfeitamente nas
discussões sobre musicoterapia. O musicoterapeuta argentino Diego Shapira
(2002) a ela se refere, embora sem nomeá-la. Referindo-se à busca de
explicações dos processos musicoterápicos, Shapira considera que algumas
vezes chegamos a caminhos que podem ser considerados como inexplicáveis, de
uma grande dificuldade, quando não impossível, para verbalizar o que ocorre
“além das fronteiras do verbo, na experiência que só pode se registrar no
momento em que submergimos nesse sentido último ao qual as palavras não
chegam” (SHAPIRA, 2002, p. 32).
Trata-se da questão que foi denominada pelo musicólogo Charles Seeger
como “o dilema de Seeger”, utilizado para o campo da etnomusicologia, citado
pelo musicólogo e musicoterapeuta britânico Gary Ansdell, no livro do também
musicoterapeuta norteamericano Kenneth Aigen e que se refere ao fato de se
usar “estratégias verbais para falar sobre processos musicais” (2014, p. 94).
Partindo das ideias de Seeger, Ansdell2 — que entende a musicoterapia
como sendo, fundamentalmente, um processo musical — afirma que o problema
é encontrado quando se emprega a linguagem verbal para apresentar os
processos da musicoterapia. O foco principal do autor é sobre “o uso de palavras
em contextos profissionais (publicações e palestras) como oposição aos
contextos clínicos (sessões de musicoterapia)” (apud Aigen, 2014, p. 94). Ou
seja, para Ansdell também existe grande dificuldade em se transpor para
palavras os acontecimentos musicais da prática clínica e esta é, em última
instância, uma manifestação recente do “Dilema de Seeger”, que ele denomina
“o dilema do musicoterapeuta” (idem). Este dilema sustenta o pensamento que
“usar estratégias verbais para falar sobre os processos musicais — e, mais
especificamente, definir a relação entre os processos musicais e os ‘processos
terapêuticos’” — vai resultar, inevitavelmente, em uma incompatibilidade entre
a descrição e o que está sendo descrito. Ansdell ainda afirma que este dilema não
estaria presente se os musicoterapeutas funcionassem somente na prática clínica
sem a necessidade de discutir ou apresentar seus trabalhos seja em fóruns com
seus pares ou em publicações (ibid).
No entanto, sabe-se que não é possível a prática clínica prescindir da
teoria, tanto quanto deixarmos de apresentar os processos terapêuticos que
vivemos. Eles levantam discussões importantes, questionamentos e até respostas,
daqueles que se dedicam à musicoterapia clínica, supervisão, docência, aos que
fazem teoria, e trazem exemplos importantes para alunos em formação ou, até,
aos novos profissionais.
A reapresentação dos quatro Cadernos — reunidos em uma edição única e,
por isto, denominada Quaternos e Coda — tem como objetivo levantar questões
que possam alavancar outros pensamentos, levando-nos, cada vez mais, a refletir
sobre nossas práticas clínicas, pois, sem elas a musicoterapia não existe, sem a
teoria, não se sustenta, e sem a pesquisa, não constrói conhecimento.
Lia Rejane Mendes Barcellos
Rio de Janeiro, 2016.
2. Gary Ansdell trata dessa questão em “Music Therapy as discourse and
discipline: A study of “music therapist’s dilemma”. (Doctoral Dissertation,
City University, London, 1999).
SUMÁRIO

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Agradecimentos

Prefácio

Apresentação

CADERNO 1: Música, Musicoterapia e Cultura

Música e Terapia

Musicoterapia e Cultura
Cultura e identidade cultural
Música, musicoterapia e cultura
Considerações finais

Dançando nas Poltronas: a cultura na “Musicoterapia Interativa”


Brasileira
A composição como expressão do desejo

Caderno 2: Teoria e prática clínica

Nota Introdutória

A movimentação musical em musicoterapia: interações e intervenções


em musicoterapia
Pode a música contribuir para a interação musicoterapeuta paciente
e quais são os momentos de interação?

A musicoterapia no tratamento da amusia de uma paciente com


formação musical anterior
Introdução
Desenvolvimento do tratamento musicoterapêutico
Breve Discussão
Considerações finais

Caderno 3: Teoria e prática clínica

Nota Introdutória

Aspectos do desenvolvimento de um quadro de epilepsia com


expressão deficitária
Introdução
Descrição do Tratamento Musicoterapêutico
Breve discussão
Considerações finais

Musicoterapia: abordagem fundamental no tratamento do deficiente


auditivo
Introdução
História de vida e clínica do paciente
História Sonora
O processo musicoterapêutico
Fundamentação teórica e técnica mais utilizada
Considerações Finais

Caderno 4: Metodologia

Apresentação
Sobre a História do Caderno 4

Etapas do Processo Musicoterapêutico ou para uma Metodologia de


Musicoterapia
Introdução
O encaminhamento de pacientes à musicoterapia
A entrevista inicial em musicoterapia
A Ficha Musicoterapêutica
O Estudo Biográfico
A Testificação Musicoterapêutica
O Contrato Terapêutico
Objetivos Terapêuticos
Sessões Musicoterapêuticas
2 – A sala de Musicoterapia
3 – O material a ser utilizado
4 – Etapas da sessão musicoterápica
Organizando a sessão
Observações das Sessões (Registro das sessões)
O Relatório Progressivo
Aspectos da Alta em Musicoterapia
1 – Motivos da concessão da alta
2 – O momento certo da alta
3 – Por quem vai ser dada a alta
4 – Como dar a alta
Considerações finais

Coda: Formação e novas práticas


Diálogo entre as novas práticas da musicoterapia contemporânea e os
cursos de formação de musicoterapeutas
Introdução
O Brasil hoje
Metodologia
Onde se pratica a musicoterapia no Brasil
A formação do musicoterapeuta e a adequação dos cursos para
acompanhar as mudanças sociais.
Discussão e Resultados de levantamento feito sobre as novas
práticas realizadas no Brasil.
Aspectos gerais
Considerações finais

Articulações entre musicoterapia e musicologia

A utilização dos conceitos de condição convergente e divergente em


musicoterapia
Introdução
Considerações finais

A questão do sentido e significado em música e musicoterapia: “Pra


não dizer que não falei das flores”
Introdução
Sobre os termos sentido e significado
Sobre o(s) sentido(s) na música e na musicoterapia
Sobre a semiotização: de sentido para significado
Sobre a semiotização coletiva
De significado para sentido?
Sobre o significado na música
Modelo multidimensional da representação emocional com
exemplos de emoções em cada quadrante.
O significado em musicoterapia
A ressignificação
A ressignificação em musicoterapia
Breve Discussão
Considerações finais

Técnica: Sobre A Técnica Provocativa Musical em Musicoterapia

Sobre a Técnica Provocativa Musical em Musicoterapia


Introdução
Sobre técnica
Sobre a fundamentação da técnica Provocativa Musical.
O filme Uma Cilada para Roger Rabbit e a completude.
Por que técnica provocativa musical?
Cenas clínicas que ilustram o emprego da técnica
Considerações finais

Referências

Notas
CADERNO 1
Música, Musicoterapia e Cultura
MÚSICA E TERAPIA

A música é utilizada como elemento terapêutico há mais de trinta mil anos, mas
a musicoterapia, como profissão, existe há pouco mais de cinquenta anos. O seu
valor em terapia tem sido reconhecido através dos tempos e a musicoterapia tem
hoje um vasto campo de atuação.
Embora não seja descrita como “musicoterapia”, a música é ainda hoje
utilizada como cura em inúmeras tribos e outras sociedades não tecnológicas na
Ásia, África, Austrália, América, Oceania e Europa, como nos mostra a literatura
de Etnomusicologia.
Segundo a American Music Therapy Association1, a ideia da música como
“influência de cura”, podendo afetar a saúde e o comportamento do homem, é
tão antiga quanto os escritos de Platão e Aristóteles. No entanto, a profissão
nasce, formalmente, depois das duas grandes guerras que ocorreram na primeira
metade do século XX, informação dada por todos aqueles que se debruçam sobre
o estudo das origens da musicoterapia. Para esses autores, a semente da profissão
foi plantada após a I Guerra Mundial, tendo como principais protagonistas os
músicos, profissionais e amadores, que tocavam nos hospitais para os milhares
de feridos que sofriam de traumas tanto físicos quanto emocionais. No entanto,
após a II Guerra Mundial, as respostas obtidas com o emprego da música nos
hospitais foram as responsáveis pelo interesse de médicos e enfermeiros para
empregar músicos nessas instituições. Mas, logo ficou evidente a necessidade de
formação de profissionais capacitados para desenvolver tal trabalho.
Assim, para suprir essa necessidade, na década de 1940 começaram a ser
criados cursos em universidades americanas, sendo o primeiro na Universidade
do Estado de Michigan, em 1944, seguida por outras universidades.
Três inovadores emergiram como pessoas-chave para a organização tanto
da formação de profissionais como da musicoterapia clínica: o psiquiatra e
musicoterapeuta norte-americano Ira Altshuler, que promoveu a musicoterapia
por três décadas e que é bastante conhecido dos profissionais da área por ter
cunhado o Princípio de ISO, apresentado em 19542; Willem van de Wall3, que
foi o pioneiro no emprego da musicoterapia em instituições financiadas pelo
Estado e que escreveu Music in Institutions (1936), e o não menos importante
Everett Thayer Gaston que é considerado o “pai da musicoterapia”, e que a
impulsionou do ponto de vista organizacional e educacional, além de ter escrito
com colegas um dos primeiros livros sobre o assunto: o Tratado de
Musicoterapia, publicado em 1968, e traduzido para o Espanhol em 1971, obra
que até hoje se constitui como importante fonte primária de consulta e estudo
para os que transitam na área.
No Brasil, o primeiro curso de graduação foi criado em 1975, no
Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, orquestrado pelas
pioneiras: professoras Cecília Fernandez Conde, Dorys Hoyer de Carvalho e
Gabriele Souza e Silva.
Mas, algumas questões devem ser consideradas com relação às origens da
musicoterapia: a primeira delas é que se voltando às vertentes da musicoterapia
percebe-se que além das práticas que utilizavam a música no xamanismo, nas
sociedades não tecnológicas, e nas realizadas com os veteranos de guerra
internados em hospitais, também se deve pensar em uma terceira vertente, que
certamente vem da educação musical – originada em países de forte tradição no
campo – e que vai desaguar na musicoterapia na educação especial. Isto fica
claro na cuidadosa pesquisa sobre o desenvolvimento da musicoterapia no Rio
de Janeiro, realizada pelas musicoterapeutas Clarice Moura Costa e Clarice
Cardeman, e publicada em 2008. Evidências que a musicoterapia tem a educação
musical como uma das vertentes, podem ser constatadas na afirmação das
autoras, que entendem que

A música, pela possibilidade de oferecer prazeres de ordem


sensorial, social e intelectual, tão necessários à vida, é de suma
importância na educação do ser humano. A experiência da
educação musical com vistas ao desenvolvimento integral da
criança foi ampliada, no Rio de Janeiro, para o setor de
educação especial. Em 1946, a música já fora incluída no
programa educativo da Sociedade Pestalozzi do Brasil, fundada
por Helena Antipoff, para educação e assistência aos
excepcionais (Costa e Cardeman, 2008, p. 15).

Esta citação é encontrada no depoimento de Doris Hoyer de Carvalho, uma


das pioneiras da musicoterapia no Rio de Janeiro, que foi aluna do Curso de
Especialização em Educação Musical do Conservatório Brasileiro de Música e
trabalhou na Sociedade Pestalozzi do Brasil de 1957 a 19754.
Também merece atenção o fato de a musicoterapia começar pela prática,
mesmo que ainda não considerada como profissão. Se examinarmos o
desenvolvimento da área nos diferentes países, pode-se constatar que a prática
clínica sempre precede a formação, o desenvolvimento teórico e a pesquisa. E no
Brasil, não foi diferente.
Ainda se deve dar atenção aos primeiros escritos sobre o valor da música
como elemento terapêutico. O primeiro texto sobre o tema aparece na
Columbian Magazine, uma revista publicada na Filadélfia (USA) tratando de
assuntos diversos, num artigo de autoria de Cecilius, em 1786, com o título On
the power of sound5. Logo a seguir aparece, em 1789, nessa mesma revista, um
artigo sem autoria, intitulado Music physically considered6.
A partir de 1800, o valor terapêutico da música começa a aparecer em
dissertações médicas como é o caso da primeira publicação em 1804, cujo autor
é Edwin Atlee e a segunda, escrita por Samuel Mathews, em 1806.
No Brasil, a primeira obra que se tem notícia aparece em 1845 e é também
uma tese, que tem na capa as seguintes referências:

CONSIDERAÇÕES / Acerca da Música, e suas influências


sobre o organismo / THESE / apresentada, e sustentada /
perante/A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA / em 21
de novembro de 1845. / por /SABINO OLEGÁRIO LUDGERO
PINHO, / natural de Villa Nova do Rio S. Francisco (província
de Sergipe D’ EL REI). / Socio effectivo da Sociedade
instructiva, da Auxiliadora da Instrucção, e do / Instituto
Litterario da Bahia, / para / OBTER O GRAO DE DOUTOR
EM MEDICINA7.

A obra em questão analisa a influência da música sobre o organismo


humano, “físico e moral”, apresentando a cena musical da primeira metade do
século XIX, principalmente na Bahia.

Sobre o som e o ritmo


Para se pensar a utilização da música em terapia é necessário que se reflita
sobre o som e ritmo, ainda que resumidamente, que são dois elementos
constitutivos primordiais da música, juntamente com a melodia e harmonia.
O som nos acompanha desde a vida intra-útero até a nossa morte8 e,
embora muitas vezes não percebamos, fazemos parte de uma “paisagem
sonora”9 que ao mesmo tempo nos envolve e contamina. O som é um fenômeno
físico ou uma forma de energia mecânica, resultante da vibração rápida de um
corpo, que se propaga num meio elástico e que se caracteriza, principalmente,
por uma sensação especial: a sensação sonora. Este fenômeno é capaz de
impressionar o ser humano sendo por este percebido de duas formas distintas:
através dos seus sistemas tátil e auditivo.
As vibrações podem ser sentidas pelo corpo como um resultado de mera
exposição à música, mas o que prova os seus efeitos terapêuticos são os
trabalhos que vêm sendo desenvolvidos principalmente na Inglaterra, Noruega,
Estados Unidos e China e, mais recentemente, no Brasil. Estes não utilizam as
vibrações simplesmente expondo os pacientes às mesmas mas, também, de
forma direta, em pontos do corpo que se considere necessário10.
É interessante observar que embora as vibrações possam ser sentidas
universalmente, muitas vezes a sua utilização é vinculada a aspectos culturais.
Assim, veremos que os trabalhos desenvolvidos na Inglaterra e na Noruega
utilizam as frequências que não podem ser ouvidas, isto é, que estão fora do
nosso campo auditivo, os infra-sons, às vezes combinados com a audição de
música, evidentemente, da cultura onde estiver sendo utilizada.
Já o emprego das vibrações como elemento terapêutico na China, tanto nas
doenças orgânicas quanto nas doenças mentais vem, em geral, combinado com
música e acupuntura. É importante assinalar que para que nós ocidentais
possamos entender a que tipo de música eles se referem, é necessário que as
principais características destas sejam descritas. Também os instrumentos
musicais típicos por eles usados são explicados fazendo-se uma correspondência
com os que são por nós conhecidos. Percebe-se, aqui, que mesmo a utilização
das vibrações leva em consideração aspectos da cultura, quando vêm
combinadas com a música.
Embora os trabalhos que utilizam as vibrações, combinadas ou não com
música ou acupuntura, sejam extremamente interessantes, não vamos aqui entrar
em detalhes sobre os mesmos. Mas, vale discutir, ainda que de forma resumida, a
importância da cultura na formação da identidade do indivíduo.
O processo de diferenciação da identidade se faz sempre numa relação
dialética com o Outro e com o mundo, o que nos torna Sujeito e Objeto do
processo. O mundo — natureza e cultura — da qual o indivíduo faz parte é,
portanto, elemento relevante na formação de sua identidade. A Arte, como
elemento constituinte da cultura, não pode, evidentemente, ficar à margem na
formação da identidade; e a música, como uma das artes, é fator de grande
importância nesta formação.
Retomemos então o que foi dito anteriormente sobre o fato de o som nos
acompanhar desde a nossa vida intra-útero até a nossa morte.
Estudos comprovam que o feto percebe, inicialmente através do corpo
todo, isto é, através do seu sistema tátil, e posteriormente já através do ouvido,
sons e ritmos que fazem parte do universo corporal da mãe. Assim, além de
todos os sons corporais como batimento cardíaco, articulações, sons resultantes
de movimentos peristálticos e voz da mãe, por exemplo, o feto recebe um ritmo
constante e em geral regular, que é o ritmo do batimento cardíaco.
Pouco a pouco estes fenômenos passam a ser percebidos como vitais e
essenciais para a prossecução da vida. E, à medida que o feto se desenvolve, vai
adquirindo a sensação da importância dessa batida, que sente em todo o seu
corpo e que é essencial para sua vida, já que uma alteração da mesma acarreta
uma sensação de falta de oxigênio, de nutrição, de mudança de temperatura,
enfim, uma ameaça à vida. Toda alteração no abastecimento de sangue pelo
cordão umbilical, associada com sons como os de inspiração/expiração da mãe,
que podem antecipar ou acompanhar os do incremento da batida, provoca
estados de alarma fetal ou “stress”. Assim, o instinto de vida e morte estaria em
estreita relação com os batimentos cardíacos e, consequentemente, com a
percepção destes através do som e do ritmo.
Poder-se-ia então dizer que o som e o ritmo são elementos estruturantes na
medida em que são constantes na nossa vida intra-uterina – constituindo-se
como de extrema importância para o psiquismo fetal, e na medida em que a sua
alteração pode trazer uma ameaça de morte? Ou ainda, que esta relação com o
universo sonoro não-verbal, na vida intra-uterina, pode ser de extrema
importância para contextos terapêuticos posteriores, como nos mostram nossas
experiências clínicas em musicoterapia com autistas, por exemplo?
A partir daqui serão inseridos exemplos da minha prática clínica em
musicoterapia para ilustrar aspectos que me parecem importantes, ressaltando
que todas as sessões que foram realizadas por mim estão registradas por escrito
e, também, algumas situações clínicas gravadas em áudio e vídeo11.

Cena clínica 1
Como primeiro exemplo, para ilustrar o que acabei de afirmar sobre a
importância do universo sonoro durante a vida intra-uterina, eu gostaria de
apresentar o caso de uma paciente chamada Ana, nome verdadeiro da paciente
que será mantido porque a sua utilização foi importante para o desenvolvimento
do processo musicoterapêutico12.
Ana era uma menina de cinco anos, portadora de Paralisia Cerebral. Não
tinha adquirido a marcha nem a fala e apresentava uma ambliopia grave13.
Como decorrência deste quadro, Ana adquirira um comportamento autista, ou
seja, não se comunicava de forma alguma. Por causa desta falta de
comunicação só era possível um procedimento em fisioterapia passiva, já que
Ana era simplesmente indiferente ou refratária a tudo que se passava à sua
volta.
Comecei a trabalhar com Ana e nada chamava a sua atenção. Ela
continuava em seu mundo. Decidi então utilizar elementos da chamada
“identidade sonora universal”, conceito desenvolvido pelo psiquiatra e
musicoterapeuta argentino Rolando Benenzon (1985). Para o autor, “a
‘identidade sonora universal’ é uma identidade que caracteriza ou identifica a
todos os seres humanos, independente de seus contextos sociais, culturais,
históricos e psicofisiológicos particulares” (ibid., p. 46).
Desta identidade sonora fazem parte os sons e o ritmo do batimento
cardíaco, sons de inspiração e expiração, enfim, todos aqueles sons e ritmos
com os quais todos, universalmente14, independente da cultura onde estão
inseridos, têm contato na vida intra-uterina, por exemplo.
Utilizando um atabaque, instrumento primitivo e que possibilita que se
refaça de forma mais aproximada esses sons, comecei inicialmente a fazer o
ritmo do batimento cardíaco. Eu segurava o instrumento com a abertura virada
para Ana. Esse ritmo era intercalado com o raspar de unhas de forma circular
na pele do instrumento, numa tentativa de refazer os sons resultantes de
movimentos peristálticos.
Durante algumas sessões utilizei estes sons e Ana começou, pouco a
pouco, a se aproximar da abertura do instrumento até acabar colocando a
cabeça dentro do mesmo. Continuei com o batimento cardíaco e comecei com
voz, fazendo “an”, através da pele do instrumento. Empreguei este som por se
tratar do início do seu nome, ser de fácil emissão e permitir uma vibração muito
forte na produção do N, sempre com a boca colocada muito próxima da pele do
instrumento (mas não encostada). Gradativamente fui utilizando o nome de Ana,
enfatizando o “an” e procurando a frequência que vibrasse mais a pele do
instrumento, por ressonância15.
Pouco a pouco, Ana começou a responder fazendo o som “an”. Mantendo
o batimento cardíaco intercalado com o roçar de unhas, fui introduzindo o
“Ana”, inteiro. Passei depois a retirar o instrumento no momento em que dizia
“an” ou Ana, e voltava a colocá-lo. Aumentei os momentos em que o atabaque
era retirado e, pouco a pouco, Ana respondia à minha voz, sem o instrumento.
Estabeleceu-se, então, uma comunicação já sem o “objeto intermediário”16 e, a
partir daí, outros elementos foram sendo introduzidos levando Ana a abrir-se
para uma comunicação interpessoal que possibilitou a sua abertura para o
mundo e, mais tarde, a colocação de outros procedimentos terapêuticos, como
por exemplo, a fisioterapia, o que permitiu que, alguns meses depois, Ana
adquirisse a marcha.
Cabe ressaltar que este foi um processo desencadeado exclusivamente pela
utilização de elementos rítmico-sonoros que fazem parte da nossa vivência
intra-uterina e que se estendeu por algum tempo.
Seguindo na nossa caminhada, para pensar a importância do sonoro na vida
do homem, chegaremos à primeira manifestação sonora do neonato – o choro.
No entanto, só a partir da terceira semana é que aparece a primeira emissão
sonora intencional, ou seja, a primeira comunicação, que é o grito para chamar
atenção. Surgem então, nessa época, segundo o psicanalista francês Didier
Anzieu, citado pela psicanalista Miriam Chnaiderman (1989), quatro tipos de
grito que têm estruturas e funções distintas. São estes: “o grito de fome, de
cólera, de dor, de origem externa ou visceral, e o grito de resposta à frustração”
(p. 97-98).
Depois de cinco semanas, o bebê já distingue a voz materna das outras
vozes, embora ainda não diferencie o rosto materno de outros. Há, portanto, uma
anterioridade do sonoro sobre o visual. Na verdade, afirma Chnaiderman, ainda
fazendo coro com Anzieu: “O fato é que o espaço sonoro é o primeiro espaço
psíquico” (1989, p. 99). A autora ainda afirma que o inconsciente do novo ser
humano, o inconsciente que ainda está por nascer, “banha-se no sonoro que
funde e nutre esse inconsciente, em sua aparição primeira” (ibid., p. 94).
Assim, pode-se imaginar a importância que têm os acalantos,
principalmente quando cantados pelas mães enquanto ninam seus filhos, pois
“Não há dúvida que o ninar é uma forma da mãe dar continência ao bebê”, no
pensamento do psicanalista Jeremias Ferraz Lima (1986, p. 38). Mais tarde, as
cantigas de roda exercem um importante papel na elaboração de aspectos do
desenvolvimento, uma vez que as crianças podem assumir diferentes papéis
dentro do jogo, através de elementos como agressividade, ansiedades não
resolvidas, enfim, aspectos que encontram nessas canções o conforto vindo do
social.
Como dissemos anteriormente, fazemos parte de uma “paisagem sonora”.
Inicialmente é interessante observar que o educador musical e músico canadense
Murray Schafer (1997) se utiliza de uma palavra ligada a uma história cultural e
social do olhar, para significar algo a ser percebido por outro sentido – a audição.
Esta paisagem sonora, que não é formada só pela música nem só pelos ruídos,
impõe-se pouco a pouco na nossa cultura, o que faz com que aconteça uma
modificação na nossa sensibilidade cultural. Não mais só aos nossos olhos, mas,
também, aos nossos ouvidos, novos objetos perceptíveis começam a ser
construídos.
A partir destas novas maneiras de se perceber o meio ambiente, ou de ouvir
o meio ambiente sonoro, poder-se-ia esperar a promessa de uma nova maneira de
compreendê-lo?
Será possível ultrapassar-se a radical contradição que na nossa civilização
desde longa data opõe o discurso sobre o ruído e o discurso sobre a música? É
possível falar-se de uma experiência sonora em geral? Ou ainda, para se
aproximar de interrogações musicoterápicas: a escuta no espaço cotidiano e a
escuta no espaço clínico, bem como a produção de sons em ambos, não fazem
parte da mesma experiência sonora humana?
Na medida em que se admite o significado de paisagem sonora há uma
introdução progressiva da descoberta do cotidiano sonoro na pedagogia infantil.
Pouco a pouco se modifica a representação sonora que era totalmente dominada
por uma concepção negativa e se altera, gradativamente, a ideia de
‘maniqueísmo sonoro’. Além disso, os observadores científicos começam a
reconhecer que as campanhas sobre os ruídos produzem uma sensibilização aos
mesmos.
Ainda outra questão: a escassez de códigos para se falar do som. A nossa
sociedade, bem diferente das sociedades silvestres tradicionais17, não sabe falar
de sons a não ser utilizando uma linguagem da acústica, da fonologia ou da
música. Toda ou qualquer outra forma para se referir à experiência sonora que
não utilize um destes três códigos autorizados, socialmente reconhecidos na
“república do saber”, é reputada como insignificante.
A atitude de ouvir torna-se estritamente passiva. A consciência dos ruídos
que nós fazemos ficou confinada a certas atividades muito específicas como
atividades profissionais ou lúdicas, não sendo estes ruídos reempregados em
outros setores da vida cotidiana. Sem dúvida, já existe na pedagogia musical e na
fonética uma verdadeira reflexão sobre o ato sonoro, mas ainda são raras as
pontes que se fazem entre estas disciplinas. É absolutamente importante se
pensar sobre a experiência sonora em geral sem esquecer a dimensão coletiva, as
sensibilidades culturais ou a percepção sonora.
A partir do fim do século XIX, paulatinamente foi imposta uma ideia de
que seria necessário repensar a matéria musical. Um pouco mais tarde,
compositores tentam introduzir nas suas obras musicais a imitação dos sons de
batalha, dos cantos de pássaros, gritos urbanos e outros sons correntes, que
atravessam a História da Música, ainda de forma discreta. Entretanto, só nos
anos 50 aparecem dois conceitos básicos para pensar o “sonoro” em geral. São
eles, o de “objeto sonoro”18 e o de “paisagem sonora”, anteriomente
apresentado. São dois conceitos relevantes, principalmente para a musicoterapia,
que não pode tratar do homem sem respeitar a sua experiência cotidiana e a sua
inserção na cultura, utilizando inicialmente como ferramenta o mundo
sonoro/musical na qual esta pessoa esteve e/ou está inserida e contribuindo,
gradativamente, para a ampliação deste mundo.
É importante ser ressaltado que os sons musicais facilitam as relações
interpessoais. Eles aproximam ou reaproximam os homens, levam-nos a se
agruparem, a cimentar uma empatia que, no dizer de Jean-François Augoyard
“na História, não foram utilizados para as melhores causas” (1989, p. 4).
Atribui-se, ao contrário, ao ruído, o poder de separar, de dividir, de isolar o
indivíduo. Todavia, sons e ruídos permitem que se estabeleçam relações
interpessoais, que elas tomem forma e sejam exprimíveis.

Cena clínica 219


Para exemplificar o que foi dito sobre ruídos e sons como facilitadores de
relações interpessoais, e para mostrar que em musicoterapia qualquer
manifestação sonora do indivíduo é relevante, seria importante ilustrar com
uma situação do início do tratamento de uma criança de quatro anos, com um
atraso psicomotor, que me foi encaminhada pela equipe da ABBR, com a queixa
de que não era possível trabalhar porque a criança não parava de chorar. Esta
criança não aceitava o tratamento fisioterápico, e o objetivo do
encaminhamento foi que se tentasse uma comunicação e estabelecimento do
vínculo para que, posteriormente, ela viesse a aceitar aquele tipo de tratamento.
A criança, que chamarei de João, chega com a mãe e se coloca entre esta,
sentada à esquerda, e uma cadeira vazia à direita, sempre chorando. De longe,
com o cuidado de não ter uma atitude invasiva, utilizo vários instrumentos, mas
nenhum destes chama a atenção de João a ponto de fazê-lo parar de chorar.
Termina a primeira sessão sem que a voz e os instrumentos que utilizo lhe
atraiam ou surtam efeito.
Na segunda sessão recomeço utilizando voz e outros instrumentos, mas
João continua chorando. Um tempo depois, João esbarra casualmente na
cadeira vazia do seu lado direito. Surpreende-se com o ruído e volta à postura
inicial. Imediatamente, decido “esbarrar” na cadeira que estava próxima a
mim. João se surpreende novamente e “esbarra”, desta vez de forma
intencional, na sua cadeira, parando de chorar. Assim acontece um primeiro
momento de comunicação. Passamos a “esbarrar” alternadamente em nossas
cadeiras e, pouco a pouco, arrastando a minha cadeira vou em direção a João
que continua a interagir comigo. Chego até ele, coloco sua cadeira frente à
minha e começamos, os dois, a empurrar as duas cadeiras. Na sessão seguinte
começo imediatamente empurrando a minha cadeira, que chega logo até ele, e
saímos, já com as duas. Vamos colocando mais e mais cadeiras, umas na frente
das outras, formando um “trem”, aumentando o ruído do arrastar das mesmas e
colocando voz junto, o que se transforma em uma atividade lúdica. Começo a
cantar, imitando o som de trem, o apito, canto “O trenzinho”20 e, a partir daí
vai se construindo o vínculo que possibilita o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico. Assim, neste caso, claramente a nossa comunicação foi
intermediada por um ruído – do arrastar da cadeira no chão – que, ainda que
trazido por acaso, foi aproveitado por mim e propiciou o desenvolvimento do
processo. Das cadeiras partimos para outros sons e outros instrumentos que
João passou a escolher e tocar. No final do seu processo ele dividia a bateria
comigo e com os estagiários do Curso de Musicoterapia do CBM21. Todos nós
utilizávamos os diferentes instrumentos que compõem a bateria e ele interagia
musicalmente conosco fazendo nuances de intensidade e utilizando os diferentes
timbres. O estabelececimento do vínculo possibilitou o desenvolvimento do
processo musicoterápico. Mais do que isto, João passou a aceitar o tratamento
fisioterápico para o qual havia sido encaminhado, antes de ter alta em
musicoterapia.
Mas, com relação à comunicação humana, sabe-se que vários autores
estudam os ruídos que acompanham essa comunicação, formando um conjunto
coerente que participa permanentemente da tecelagem das trocas interpessoais.
Pesquisas são realizadas para verificar a utilização de sons como “hum” e
“ham”, por exemplo, entre palavras e/ou frases, mais para aferir vocabulário ou
facilidade no falar do que, propriamente, para estudar se isto facilita ou dificulta
a comunicação.
Cabe observar, voltando à paisagem sonora que, para Augoyard (1989),
existe uma correspondência, uma interação, uma dialética entre a paisagem
sonora física, “objetiva”, a paisagem sonora de uma comunidade cultural e a
“paisagem sonora interna”, de cada indivíduo.
Na musicoterapia, devem-se levar em conta estes aspectos e mais, tentar
interagir com o “outro” através deles. Muitas vezes é necessário partir-se da
paisagem sonora objetiva, cultural, para, pouco a pouco, fazer parte ou interagir
com os elementos da “paisagem sonora subjetiva”. A partir da utilização da
“paisagem sonora objetiva” mais facilmente seremos admitidos na “paisagem
sonora subjetiva” e, a partir de então, passaremos a fazer parte do “mundo
sonoro” do outro. Para isto, devem ser levados em consideração todos os
aspectos que formam o “mosaico sonoro”, no dizer de Benenzon (1985, p. 43).
Poder-se-ia pensar que este mosaico seria formado pelas vivências sonoras intra-
uterinas, importantes em alguns casos, as do inconsciente coletivo22, as
vivências sonoras do nascimento e infantis, e aquelas que fazem parte da
trajetória de vida de cada um de nós.
Conta-se, para isto, com o aspecto temporal do som que é, em
musicoterapia, de extrema importância. O som/música acontece no tempo. Isto
vai permitir uma simultaneidade de ação musicoterapeuta-paciente. Uma inter-
ação que levará, sem dúvida, a uma interação (Barcellos, 1984a).
Esta qualidade do som/música proporcionará que musicoterapeuta-paciente
compartilhem de um mesmo momento sonoro/musical sem grandes riscos de que
o musicoterapeuta venha a invadir o espaço do paciente, embora ambos estejam
ativos no processo de fazer música. Assim, defino a

Musicoterapia interativa como a forma de musicoterapia na qual


a experiência musical é partilhada entre musicoterapeuta(s) e
paciente(s) (no caso de grupos), ambos ativos no processo de
fazer música. É a inter-ação simultânea, possibilitada pelo fato
de a música acontecer no tempo, que leva mais facilmente à
interação de ambos e dificulta o isolamento ( Barcellos, 1984a,
p. 37)23.

A possibilidade de interação, por exemplo, é uma das justificativas da


utilização da música como terapia. Muitas pessoas não acreditam que a música
possa ser um elemento terapêutico porque ela nos transporta para um mundo de
fantasias onde nós ficamos com nós mesmos. Assim, poderia se pensar que a
música seria iatrogênica para pacientes psicóticos, pois estes já estão ‘no mundo
da fantasia’. No entanto, quando compartilhamos a experiência musical com o
“outro”, simultaneamente, somos “puxados” mais facilmente para fora de nós
mesmos, ou para a realidade. Por isto, a “interação” musicoterapeuta-paciente é
de extrema relevância na experiência musical em musicoterapia.

Como canta Raul Seixas na canção Prelúdio (s/d),

“Sonho que se sonha só,


É só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade”!

Para o musicólogo americano John Gilbert, na medida em que eu


compartilho o meu momento de “fazer música” com o “outro”, que eu tenho
condições de “interagir”, eu sou trazido “para fora de mim mesmo”, para a
realidade (Gilbert, 1982, p. 5).
Mas, ainda deve-se fazer aqui uma diferença entre música em
musicoterapia e música como terapia. A música em terapia é a utilização da
música como uma técnica de mobilização da emoção e de sentimentos. Em geral
é utilizada aqui a chamada “música morta” ou, melhor dizendo, música
mecânica, isto é, rádio, CDs, Ipods ou, a “música viva”, executada por outra
pessoa, sem que o paciente interaja nesse fazer musical. A música também é
utilizada em terapia como recurso em outros tratamentos como fisioterapia,
terapia ocupacional, fonoaudiologia e psicoterapia, ou ainda, como mobilização
para quaisquer outras técnicas expressivas como o desenho, a pintura ou a
modelagem. Muitas pesquisas que se debruçam sobre a importância da música
como elemento terapêutico são realizadas em outras áreas como engenharia
biomédica, música, enfermagem e, atualmente, principalmente por aqueles que
se dedicam ao estudo da relação da música com as neurociências. Vale ressaltar
que todas as pesquisas realizadas sobre a música podem dar subsídios para o
trabalho dos musicoterapeutas e consubstanciar o trabalho destes.
Outra questão que merece ser esclarecida é a musicoterapia exercida pelos
musicoterapeutas em áreas de medicina, e a música que músicos ou outros
profissionais da área médica executam em hospitais. Considero que uma
explicação muito esclarecedora sobre as distinas formas de emprego da música e
da musicoterapia, principalmente na área médica, é dada no livro Music Therapy
& Medicine: theoretical and clinical applications (1999), da musico terapeuta
norte-americana Cheryl Dileo, a partir da qual foi elaborado o quadro abaixo.
É relevante ressaltar que essas duas práticas são importantes, pois a
utilização da música, mesmo por músicos, pode ter efeitos terapêuticos, e quase
sempre tem. No entanto, a música empregada pelos musicoterapeutas tem por
objetivo ser terapêutica e são utilizadas técnicas da musicoterapia para atingir
esse propósito. O que parece inadequado é a Música em Medicina ser
considerada Musicoterapia.
A utilização da música como terapia vale-se, principalmente, da “música
viva”, tendo, em geral, o próprio paciente comprometido no processo de “fazer
música” junto com o musicoterapeuta. Assim, a música não será só uma técnica
de mobilização, mas, irá além disso. O paciente se expressará através da própria
música.
O psicoterapeuta junguiano Carlos Byington (1990) refere-se a uma
capacidade de mobilização da música e sugere que, ao lado desta, deve-se,
também, enfatizar a sua capacidade de elaboração simbólica que, por sua função
consteladora e organizadora da energia psíquica lhe confere o status de
linguagem simbólica.
No entanto, cabe esclarecer que existem pacientes que não têm condições
de interagir e que, neste caso, o musicoterapeuta pode tocar para o paciente ou
também utilizar música mecânica, fazendo a denominada musicoterapia
receptiva.
Aqui o musicoterapeuta pode emitir sons, fazer linhas melódicas, ritmos e
harmonia, através da voz, do canto, do corpo, ou de instrumentos musicais que
se constituem como importantes “objetos intermediários” à medida que

têm existência real e concreta


não desencadeiam “de per si” reações de alarme
podem ser utilizados à vontade em qualquer jogo de papeis complementares
permitem a comunicação por seu intermédio, apoiando o vínculo
terapêutico
e mantendo a distância
adaptam-se às necessidades do sujeito
permitem uma relação tão íntima que a pessoa possa identificá-lo consigo
mesma
podem ser utilizados como prolongamento de quem o executa e, finalmente,
podem ser reconhecidos imediatamente, segundo Benenzon (1985, p. 48),
partindo de Rojas Bermúdez, que assim caracteriza o objeto intermediário,
referindo-se aos bonecos utilizados em psicodrama, como anteriormente
mencionado.

Por outro lado, a função musical pode ser exercida em estados emocionais
mobilizadores de situações psíquicas específicas. Estas situações podem
expressar vivências incontáveis através das cantigas de ninar e até dos sons
cósmicos de meditação, passando pelos temas românticos da juventude, pelas
melodias marciais e pelas grandes composições musicais da História da Música,
ainda no dizer de Carlos Byington (1990).
Caberia aqui ilustrar o que foi dito, com uma situação clínica de um
paciente que expressou através de uma música, uma ameaça que decorreu de
uma situação traumática vivida, e que foi por mim atendido na década de 80.

Cena clínica 3
Pedro, como será chamado, era um menino normal de oito anos de idade
que me foi trazido pela mãe que assim se expressou sobre a dificuldade que se
constituía como queixa principal:
- “Pedro não vive a afetividade. Não chora, não tem raiva, não expressa o
que sente. É uma criança que poderia viver com toda a sua potencialidade, mas
não vive porque não consegue. Não tem fantasias. Tudo é muito objetivo. Eu
queria que ele fosse levado a se expressar mais” [sic].
Começamos a trabalhar no meu consultório particular e, decorridos um
ano e onze meses do início do tratamento musicoterápico, Pedro sofreu um
atropelamento ao atravessar a rua. Nesse momento ele estava acompanhado por
dois amigos que permaneceram na calçada e gritaram que não dava tempo,
enquanto ele correu para atravessar. Pedro foi levado ao hospital e submetido a
uma intervenção cirúrgica. Fui chamada ao hospital no dia seguinte à cirurgia e
o encontrei ainda na cama, com muitas dores. As pessoas que estavam no quarto
se retiraram, à exceção de uma delas. Dirigi-me a Pedro e ele me pediu que lhe
alcançasse um pequeno teclado, que lhe fora trazido pelo primo.
É importante assinalar que o teclado era um dos instrumentos preferidos
de Pedro na musicoterapia e também cabe fazer uma observação sobre o fato de
Pedro não ter nenhum contato formal anterior com música, isto é, ele não sabia
tocar instrumentos de forma convencional nem tinha tido contato com os
aspectos teóricos da música, o que significa que ele não sabia nem mesmo o
nome das notas. No entanto, isto não o impedia de se expressar através da
música e seus elementos/instrumentos, de forma criativa.
Alcancei-lhe o teclado, como ele havia pedido, e ele o colocou sobre a
barriga. Começou a dedilhar o instrumento aleatoriamente. Num determinado
momento ele tocou uma nota repetida, com o seguinte ritmo

e, certamente, pelo fato de não saber tocar a continuação do que queria


expressar, completou com a voz

Este é o 3º movimento da Sonata em Si bemol menor de Chopin (Marcha


Fúnebre) que ele tocou em Ré menor aleatoriamente, isto é, porque seu dedo
“caiu”, por acaso, na nota ré.
Parou de cantar e continuou a dedilhar o teclado aleatoriamente. Passou
depois a me mostrar revistas, as escoriações decorrentes do acidente e, depois
de algum tempo, fui embora.
Pedro saiu do hospital e passei a atendê-lo em sua casa, pois permaneceu
por algum tempo em cadeira de rodas. Embora eu tivesse solicitado que nós não
fôssemos interrompidos, isto ocorria com certa frequência. Optei, então, por não
voltar à situação da Marcha Fúnebre já que não teríamos privacidade neste
novo “espaço terapêutico”.
Assim que Pedro saiu da cadeira de rodas e começou a utilizar muletas,
comecei a atendê-lo novamente em meu consultório. Na primeira sessão nesse
espaço, ele voltou a utilizar o teclado. Depois de algum tempo toquei o trecho
da Marcha Fúnebre que ele havia dedilhado e cantarolado no hospital e lhe
perguntei se conhecia. Ele disse que sim. Perguntei-lhe então onde a havia
ouvido, e ele respondeu: “De desenho animado. É uma música que sempre toca
quando morre alguém”. Continuamos a conversar e ele passou a falar do
acidente, do hospital, até que falei da minha visita quando ele lá estava. Disse-
lhe que nesse dia ele havia tocado essa música. Pedro reagiu fortemente me
chamando de “mentirosa”. Baseou a sua “defesa” no fato de não saber tocar.
Eu lhe mostrei como tocou, fazendo uma intervenção musical e, pouco a pouco,
ele foi evocando a situação e acabou falando sobre o medo que sentiu de morrer.
Através da música, Pedro expressou o que dificilmente seria verbalizado –
o medo mobilizado por uma situação traumática, de ameaça de vida -, e isto
possibilitou que este conteúdo viesse a ser expressado de forma verbal,
posteriormente, a partir de uma intervenção da musicoterapeuta.

Cena clínica 4
Outro exemplo que ilustra o pensamento de Byington, anteriormente
referido, é o de um paciente que expressou seu sentimento em relação a uma
pessoa/situação, através de uma música.
Marcos, como será chamado, era um menino autista (à época Autismo
Infantil Precoce), sem comorbidades, que tinha cinco anos e praticamente não
falava.
Maria, nome fictício, era a estagiária que acompanhava o trabalho com
Marcos e, embora não tivesse cumprido inteiramente o tempo de estágio,
necessitou finalizar a prática, pois era filha única e a mãe se encontrava
enferma. Assim, como sempre, antes de qualquer estagiário sair, deveria se
trabalhar o término do estágio. Combinamos então, Maria e eu, que deveríamos
preparar o paciente para esse momento.
Maria falou então a Marcos que deveria sair, quando isto aconteceria e em
quantas sessões estaria ainda presente. Enfim, deu-lhe todas as informações que
constam deste tipo de procedimento e explicou: “Eu não posso ficar mais com
você”. Percebendo a semelhança desta frase com o início da música “Trem das
onze”, solicitei à Maria que cantasse essa música cuja letra é:

Trem das Onze24


Adoniran Barbosa
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã.
Além disso, mulher
Tem outra coisa,
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar,
Sou filho único
Tenho minha casa para olhar
E eu não posso ficar.

Sentado no chão, à frente de Maria, Marcos brincava com os ‘caninhos’ de


um celestin que estavam soltos do suporte e com os quais ele fazia som,
jogando-os ao solo. Imerso nesta atividade, Marcos nem parecia ouvir o que era
dito por Maria.
No entanto, quando ela acabou, Marcos, olhando fixamente para ela,
cantou, como nunca havia feito antes:

Águas de Março
Tom Jobin

É pau, é “peda”, (pedra)


É o fim do caminho,
É um resto de toco,
É um pouco sozinho...25

Marcos expressou aqui, ainda sem a aquisição do R brando como se pode


constatar na emissão da palavra “peda”, através de uma música que não faz
parte do repertório infantil, trazendo letra e música de forma absolutamente
claras, talvez, que alguns aspectos o impedem de crescer ou de seguir a sua
caminhada e que fica, mais uma vez, “um pouco sozinho”, a condição mais
característica e difícil do autismo.
Responde, cantando, olhando fixamente nos olhos de Maria – o que
acontecia muito raramente – expressando a perda, o luto, o vazio que vai deixar
o afastamento de uma pessoa com a qual já tinha estabelecido uma relação,
embora em nenhum momento houvesse anteriormente expressado isto. A
utilização da música foi o que certamente possibilitou que seus sentimentos
fossem exteriorizados, o que, sem dúvida, contribuiu para que ele se sentisse
melhor e para que o processo terapêutico avançasse.
Dois aspectos aqui merecem atenção: o primeiro deles, a forma como
Marcos olha para Maria, que não é característica do autista que, em geral,
quando olha, parece atravessar a pessoa com o olhar. E o segundo, o fato de
Marcos cantar uma música que não pertence ao repertório infantil, o que ele
também antes não fizera. Na verdade, ele não trazia músicas já compostas como
canções, por exemplo. Uma única exceção foi a canção junina tradicional, cuja
letra se refere ao casamento de Antonio com a filha de João26, que Marcos
trouxera na época da festa junina, provavelmente porque a canção era cantada
na escola que frequentava. Todavia, Marcos interagia musicalmente e na
criação de letras simples em improvisações propostas por mim ou pela
estagiária, dependendo da forma como se apresentava ou do material que trazia
em cada sessão e, em geral, completando o que as musicoterapeutas faziam
quando utilizavam a “técnica provocativa” (Barcellos, 2008).
No artigo do musicoterapeuta norte-americano Kenneth Bruscia (1999),
que trata do desenvolvimento musical do ser humano desde a etapa intra-útero –
que ele denomina “período amniótico” –, até a terceira idade, considerado o
estágio transpessoal, o autor constata que “Como terapeutas, nós reconhecemos a
necessidade de compreender um cliente dentro do contexto de sua história
pessoal; e como musicoterapeutas, nós estamos conscientes de quanto é
importante conhecer as experiências musicais do cliente” (p. 1), com o objetivo
de determinar em que estágio do desenvolvimento o paciente está, ou seja, se há
algum atraso, distúrbios ou fixações, e para decidir o que se deve utilizar para
facilitar o desenvolvimento do mesmo.
Quando se refere ao estágio entre dois e sete anos, Bruscia afirma que “A
criança constrói suas próprias canções utilizando intervalos característicos, os
quais são repetidos (ex.: a terça menor descendente) com sílabas ou palavras sem
sentido” (ibid, p. 5).
O autor considera que, quando o paciente traz canções já existentes, pode
estar utilizando-as como meio de expressão. Para ele, em cada canção a criança
desenvolve não só habilidades musicais, mas também aprende diferentes formas
de interação com os outros, e descobre como se identificar com sentimentos e
impulsos por outros expressados. As palavras das canções são importantes para
explorar emoções.
Bruscia ainda recomenda o emprego de técnicas que ajudam a revelar, ou
seja, as que objetivam trazer o material inconsciente para a consciência e
considera que uma abordagem “projetiva” é relevante, como, por exemplo,
psicanálise, Gestalt e, certamente, musicopsicoterapia.
Na cena clínica acima apresentada, Marcos “escolhe” uma canção que
poderia ser considerada como “não compatível” com a sua idade, tanto no que se
refere à letra como à música. A análise da letra já apontou os motivos que podem
justificar essa escolha e demonstrar a sua adequação.
Quanto à música, é importante se fazer uma breve análise do compasso, da
melodia e do ritmo. Na verdade, se forem retiradas as notas de passagem da
melodia, aqui inseridas para abrigar a letra, esta seria

Assim, pode-se perceber que a estrutura musical é formada apenas por


terças, ascendentes e descendentes, o que estaria adequado à idade de Marcos –
estágio entre dois e sete anos – dentro do apontado por Bruscia (1999).
O compasso é binário, de fácil interpretação por corresponder a funções
básicas que são, algumas, percebidas ainda intra-útero, como é o caso do
batimento cardíaco da mãe, ritmo quase sempre estável, que se faz indicação de
vida e que está presente durante os nove meses de gestação. Também a
respiração da mãe se faz em dois tempos – inspirar e expirar – fenômenos que
são, pouco a pouco, percebidos como vitais para a prossecução da vida. Logo
após o nascimento se estabelece uma relação importante com a mãe na
amamentação, onde a sucção se faz por um ritmo regular que coordena os
movimentos reflexos orais, tendo como consequência o recebimento do leite.
Além dessas funções básicas, a marcha tem um ritmo binário. Isto tudo poderia
justificar a possibilidade de “escolha” de Marcos para, metaforicamente, se
expressar (Barcellos, 2009a).
O ritmo é extremamente simples, com apenas três semínimas e colcheias
recorrentes até o fim, e só é quebrado pela existência de três pontos de tensão,
causados pela síncopa. No entanto, acredito que a letra sustente e dilua essa
“quebra” do ritmo.
Mas o mais importante é se levar em consideração que, com este trecho da
canção, Marcos pôde expressar o que estava sentindo.
Podemos expressar conteúdos, sentimentos e desejos através de músicas
conhecidas, como nos exemplos anteriormente apresentados, com ou sem letra.
Muitas vezes, quando é difícil dizer algo com as próprias palavras lançamos mão
daquilo que já foi dito por outras pessoas e fazemos nossas as palavras do
compositor, como fez Marcos, com apenas cinco anos de idade, recriando uma
canção popular.
Empregamos o cancioneiro popular, rico de temas; somos impulsionados
pelo ritmo forte que vem das nossas raízes africanas e que aparece
constantemente na nossa música, levando-nos à expressão através do corpo – a
dança; utilizamos músicas do nosso folclore desde os acalantos, passando pelas
cantigas de roda, que têm, segundo a psicanalista Angela Bouth “importante
papel na elaboração de aspectos do desenvolvimento psicossexual da criança”
(1989, p. 71).
Muitas vezes os pacientes trazem música erudita para se expressar, como
fez Pedro inconscientemente com uma música escrita para piano ou, árias de
óperas, para buscar o prazer, como se entendia o que fazia uma paciente de 12
anos de idade, cega, autista, visivelmente expressando o prazer que este tipo de
música lhe trazia, quando a cantava27. Além disto, interpretava a primeira parte
de

Quem sabe
Carlos Gomes (1859)

Tão longe de mim distante


Onde irá, onde irá teu pensamento
Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento

Contudo, é fundamental assinalar que quando o musicoterapeuta utiliza


música gravada, em geral escolhe estas músicas com critérios certamente
diferentes daqueles de um psicoterapeuta, ou de qualquer outro profissional que
utilize a música em terapia, a menos que estes tenham formação musical. Ou
seja, o musicoterapeuta escolhe uma música de acordo com os aspectos que a
constituem, em relação ao que ele quer mobilizar ou trabalhar no paciente. Isto
é: modo, andamento, ritmo, melodia, harmonia e os aspectos expressivos – notas
melódicas, fraseado, agógica e dinâmica. Aqui reside a grande diferença do
profissional que utiliza a música como terapia, daquele que a utiliza em terapia.
Assim, por exemplo, se utilizarmos música gravada erudita, do período
barroco ou clássico, com uma criança autista com estereotipias, certamente
estaremos utilizando a música não de forma terapêutica e sim iatrogênica porque
este tipo de música tem um ritmo em geral bastante regular e o andamento não
tem mudanças significativas28. A criança seguramente vai ter na música o
suporte rítmico e a constância de andamento a reforçar os movimentos
estereotipados, também regularmente rítmicos. Em contrapartida, se utilizarmos
uma música do período romântico, que tem uma liberdade de mudanças de
andamento, possivelmente a criança não terá como se apoiar em algo que não é
regular. Sendo assim, é pouco provável ter ali um reforço. Ainda mais, a
estereotipia terá o seu ritmo regular “quebrado” pela liberdade de andamento da
música. O exemplo dado refere-se à música erudita, mas o procedimento seria o
mesmo para utilização de qualquer outro tipo de música seja ela popular,
folclórica ou ainda improvisada.
Os musicoterapeutas ainda podem encontrar na criatividade, inerente à
improvisação musical ou à composição, a possibilidade de criar o que precisam,
quando não encontram nas músicas existentes os elementos musicais que
considerem necessários para trabalhar um determinado aspecto. Mas, para isto é
necessário que o musicoterapeuta tenha uma formação musical razoável.
Sempre que possível, utilizei a ‘improvisação musical livre’ como técnica
musicoterapêutica principal ou, em alguns momentos ou com alguns pacientes, a
‘improvisação musical orientada’, dando algum ponto de partida para facilitar o
engajamento do paciente na atividade ou, ainda, consequentemente, na interação
com o musicoterapeuta.
Uma situação musical improvisada dá lugar para que qualquer coisa
aconteça. Num sentido muito amplo, improvisar é sinônimo de “brincar”’
musicalmente.

A improvisação se aplica a todo processo de desenvolvimento e


pode promover a expressão e ‘descarga pessoal’. Assim, a
desinternalização de materiais e estruturas utilizadas permite que
se conheça melhor e mais rapidamente a pessoa que improvisa,
ao mesmo tempo em que lhe traz um efeito benéfico, resultado
da ação expressiva e comunicativa (Gainza, 1983, citada por
Barcellos, 1994a, p. 13 e 14).

Por outro lado, a improvisação proporciona processos de internalização de


novas formas, materiais e estruturas.
A utilização desta técnica, segundo Even Ruud (1990), representa um
desafio ao musicoterapeuta que deve ter, além de formação musical
‘consistente’, uma musicalidade que lhe permita perceber “musicalmente”, ou
“através da música”, seu paciente, isto é, discriminar sons, intervalos, ritmos,
compassos e, eventualmente, harmonias (raramente os pacientes trazem
harmonias sendo que, quando isto acontece, executam harmonias aleatórias).
Ainda mais, o musicoterapeuta deve poder lidar com os elementos da música de
forma segura, para poder fazer intervenções musicais, quando necessário, e para
que o paciente sinta nele um “continente” onde possa se apoiar e depositar seus
conflitos, sentimentos e necessidades, através desta linguagem.
Assim, além de manipular e dominar a linguagem musical, o
musicoterapeuta que utiliza esta técnica deve ter condições de perceber e fazer
uma leitura do material expressado pelo paciente para ter dele uma compreensão.
É fundamental que se esclareça que em nenhum momento existe a
preocupação de resultado estético no material expressado pelo paciente. No
entanto, há o que denominei um estado de atenção à estética, isto é, o
musicoterapeuta deve estar atento ao que acontece com relação a este aspecto
porque uma mudança estética na produção musical do paciente pode significar
uma mudança interna (Barcellos, 2007b, p. 4).
Isto corrobora o pensamento do musicoterapeuta holandês Henk Smeijsters
que declara:

A hipótese fundamental da musicoterapia, em minha opinião, é


que tocar, cantar e escutar música ‘ressoa’29 o interior da pessoa
que toca, canta ou ouve. Na música o cliente se expressa como
uma pessoa. O musicoterapeuta pode encontrar a pessoa do
cliente na música (1999, p. 283).

Também é importante frisar que são realizadas improvisações com voz,


corpo e instrumentos e que estas podem ser rítmicas, sonoro/melódicas, com ou
sem harmonia, e que também é feita a criação de letras, o que se constitui de
extrema importância, pois estas expressam conteúdos internos que mais
dificilmente seriam exteriorizados através da palavra, exclusivamente. A música
impulsiona e leva à criação de letras.
Torna-se necessário observar que, além da ‘improvisação musical livre’, da
audição e composição musical, podem ser recriadas canções e músicas
populares, folclóricas, eruditas, ou ainda pode-se utilizar qualquer outro material
sonoro escolhido pelo musicoterapeuta ou trazido pelos pacientes para ir ao
encontro das necessidades ou interesses destes.
Muito ainda poderia ser dito sobre “o quanto é possível pensar a música
como o recuperar de algo que existe muito primitivamente no homem”, segundo
Chnaiderman (1989, p. 102). Ou, sobre a sua utilização como meio de
crescimento para o indivíduo, na sua procura de equilíbrio, bem-estar, ou na sua
busca de prazer.
Para finalizar, vale citar Freud (Projeto de uma Psicologia para
Neurólogos), através das palavras de Chnaiderman (1989, p. 95), que afirma que
“O sonoro, que morre no mesmo ritmo que o tempo, sobrevive num espaço
fisiológico”.
MUSICOTERAPIA E CULTURA

Tratar de musicoterapia e cultura na atualidade — num artigo tão introdutório,


quando muitas são as obras que se detêm exclusivamente sobre o tema na
literatura estrangeira —, é apenas tangenciar um aspecto de extrema importância
para a musico terapia contemporânea.
O texto escrito no Caderno no 1, publicado em 1992, já apontava para o
fato de se ter por objetivo abordar, sucintamente, um tema que à época já
despertava a atenção dos musicoterapeutas — a cultura — e sua importância
para a musicoterapia.
Na orelha do livro Musicoterapia: alguns escritos, (Barcellos, 2004c), é
apresentado o pensamento do musico terapeuta norteamericano Kenneth
Bruscia, expressado no Prefácio do livro30 do noruegês Brynjulf Stige (2002a),
musico terapeuta que se constitui, hoje, como uma das grandes autoridades sobre
as relações entre musicoterapia e cultura.
Nesse prefácio, Bruscia afirma que o trabalho da musicoterapia tem
envolvido várias “forças” de pensamento, de diferentes ordens. Para o autor, a
primeira delas contribuiu com descobertas sobre “como a música influencia o
comportamento humano e o mundo físico”. “As dimensões inconscientes da
experiência musical e suas implicações para a terapia” constituíram a segunda
força. As que se seguiram, terceira e quarta, “debruçaram-se sobre a música para
explicar o seu papel na auto-atualização e no desenvolvimento espiritual,
respectivamente” e, a quinta força, que anuncia a chegada da “musicoterapia
centrada na cultura” (Bruscia, In: Stige, 2002a, p. xv), que é hoje objeto de
estudos e pode ser encontrada como fundamentação principal de novas práticas.
Esta quinta força, que tem a cultura como aspecto central, é um assunto
vasto e complexo, não se pretendendo aqui abordá-lo senão de forma
introdutória, com o propósito de provocar reflexões que poderão levar o leitor a
buscar estudos mais profundos.
Cultura e identidade cultural
O psiquiatra e psicanalista brasileiro Carlos Byington, (1982), profundo
estudioso da Psicologia Analítica de Carl Jung, considera que a decadência da
cultura ocidental é algo incontestável, mas que deve ser vista, também, como
transformação. Para ele, a essência dessa mutação cultural está centrada na
substituição de um padrão repressivo, patriarcal, por um padrão dialético de
relacionamento criativo com o Outro. Pelo fato de o reconhecimento e de a
interação com o Outro ser a essência de toda esta nova visão de mundo cultural,
o autor denomina esta nova era de “Ciclo de Alteridade”.
É evidente que Byington se refere aqui à Cultura Ocidental, mas, mais
precisamente, aos países do Terceiro Mundo, descobertos e colonizados, ou seja,
aqueles que são considerados filhos reprimidos do patriarcado europeu. Estes
países eram, inicialmente e no mínimo, bi-culturais, mas hoje o são, certamente,
pluri ou multiculturais.
Há, então, coincidindo com a transição da Cultura Ocidental, uma busca de
identidade ou um resgate de identidade das demais culturas presentes, até então
reprimidas em nossos países, pelo etnocentrismo patriarcal colonialista. Busca-
se, assim, alcançar ou resgatar esta identidade através de uma relação dialética
criativa e, não mais, através de um padrão repressivo patriarcal. Esta
conceituação inter-relaciona significativamente não só culturas entre si, mas
também o desenvolvimento individual e cultural.
A ‘alteridade’ necessita preservar os dinamismos matriarcais, mas os
transcende no nível individual e se torna incompatível com qualquer prática
cultural, seja ela física ou social, que estigmatize, impeça ou desvirtue a livre
opção pelo desenvolvimento dialético dentro do Processo de Individuação.
Erich Neumann (1973), renomado psicólogo e escritor alemão afirma que
“o ‘verdadeiro’ nascimento da criança é moldado pela cultura humana, já que a
mãe vive em um contexto cultural coletivo cuja linguagem e valores, de forma
inconsciente mas efetiva, vão influenciar o desenvolvimento da criança” (p. 8).
Vê-se, então, a importância da Cultura no Processo de Individuação.
A natureza é fator básico na estruturação da personalidade, mas também a
cultura exerce um papel preponderante. O corpo ocupa um espaço na natureza e
as ideias e emoções é que fazem, junto com o corpo, o contato do “ser-no-
mundo” (Martin Heidegger, citado por Nobre de Melo, 1986). No Processo de
Individuação, este contato se acentua na fase de ‘alteridade’, levando o indivíduo
ao crescimento.
Aqui ele começa a se relacionar com o Outro, com o mundo.
Evidentemente, ele já vem se relacionando com a mãe, a família e o seu “micro
grupo”, perpassando as diversas fases do Processo de Individuação, mas é na
fase de ‘alteridade’ que ele exerce mais essa relação “ser-mundo”, que a sua
criatividade social, política e profissional se desenvolve e que ele passa a ter um
papel na sociedade e a desempenhar de forma mais efetiva o seu “ser-no-mundo”
(ibid.).

Música, musicoterapia e cultura


A música é uma das artes e, como tal, um dos elementos da cultura. É uma
arte “temporal”, isto é, que acontece no tempo, e vem acompanhando o homem
através dos tempos. Evolui tendo o homem como agente e como resultado da
relação dialética deste com o mundo.
Em um trabalho não publicado (1979), propus uma discutida hipótese que
“musicalmente a ontogênese repete a filogênese”. No entanto, não há discussões
e sim evidências que a música acompanha cada homem desde antes de seu
nascimento até o momento em que morre, ou, nas palavras de Kenneth Bruscia
“se estendendo até (e provavelmente) além da morte” (1999, p. 2).
Bruscia (ibid) considera que este é um processo universal, ou seja, pelo
qual todos nós passamos, de forma semelhante no que se refere ao
desenvolvimento físico, mental e social. No entanto, este processo é também
considerado único, na medida em que cada indivíduo trilha o seu próprio
caminho de desenvolvimento, no qual vai ter experiências em diferentes eventos,
com pessoas distintas, enfrentando desafios de diferentes ordens.
Assim, a música está presente na vida intra-uterina de cada um de nós,
como muitos estudos comprovam; faz parte de nossas primeiras vivências
através da percepção sonora do mundo que nos rodeia; é utilizada como
elemento de expressão individual e coletiva, e se insere em quase todas as nossas
atividades.
Aqui, então, levantamos alguns pressupostos básicos:

se o homem está inserido na cultura e esta é fator preponderante no seu


Processo de Individuação;
se a música é um dos elementos da cultura e acompanha o homem não só
através dos tempos (sentido filogenético), mas também na sua vida
biológica (sentido ontogenético) e,
se há uma relação dialética “homem-mundo”,

pode-se pensar que a música é uma espécie de linguagem31 a ser utilizada


não só para auxiliar no processo de individuação mas, também e, principalmente,
quando este processo se interrompe, está alterado ou, ainda, modificado por
aspectos ou problemas internos e externos do ser humano. Assim, é de extrema
importância, a nosso ver, a utilização da música – elemento e agente da cultura –
como elemento terapêutico.
Existem estudos muito significativos, em musicoterapia, mostrando a
importância tanto acerca da utilização da música que faça parte da cultura do
indivíduo (Identidade Sonora Cultural) como, também, sobre a relevância de se
empregar a música compatível com o ‘estado mental’ do indivíduo (Princípio de
ISO).
Muitos são os teóricos da musicoterapia que vêm abordando este último
aspecto. Em 1916, V. von Bekhterev32 (citado por Schipkowensky, In: Critchley,
1977, p. 436), começa a falar do “Princípio de ISO” que passa a ser estudado
pelo psiquiatra norteamericano Ira Altshuler em 1948, e que foi inspiração para
o psicanalista e musicoterapeuta argentino Rolando Benenzon desenvolver o seu
conceito de Identidades Sonoras33 (1971), seguido pela antropóloga chilena
Maria Ester Grebe de Vicuña (1977) e pelo musicoterapeuta brasileiro Luiz
Antonio Millecco (1977), estes dois últimos tendo como centro a Identidade
Cultural.
Mas, vale trazer as observações feitas pelo psiquiatra brasileiro Amando
Caiuby Novaes, em uma importante conferência34 proferida em 1946, em São
Paulo.
Segundo Novaes (1946), a introdução e a aplicação intensiva da
psicoterapia em grupo em hospitais mantidos pelo Estado, nos Estados Unidos,
devem-se a Ira Altschuler35, que desempenhava as funções de psicoterapeuta do
Eloise Hospital (Michigan), uma das grandes organizações hospitalares públicas
do país. Em 1938, Altschuler, considerou impraticável realizar uma terapia
individual em grandes hospitais públicos dos Estados Unidos onde, à época,
cada médico tinha sob seus cuidados de 150 a 200 doentes. Assim, Altschuler
começou a prática da psicoterapia em grupos de 35 a 40 pacientes, que se
reuniam diariamente. Para constituir esses grupos o psiquiatra observava alguns
fatores como idade, tempo de hospitalização, nível cultural, assim como as
várias psicoses e nacionalidades representadas. Na aplicação de seu método,
Altschuler empregava um arcabouço teórico da psicanálise, afirmando tratar-se
de “psicanálise em grupo”, onde a catarse mental, a transferência e a substituição
desempenhavam um papel preponderante.
Novaes relata ter assistido a algumas sessões que eram realizadas nas
enfermarias e que o próprio Altschuler era o terapeuta, tendo como
colaboradores: enfermeiros, ‘educadores’ sociais, psicólogos e instrutores de
música.
Aqui vale apresentar a fala de Novaes integralmente, referindose à sessão:

Inicialmente, cada participante recebe um par de pequenos


pedaços de madeira. Uma marcha é executada ao piano,
enquanto o instrutor, batendo um no outro os dois pedaços de
madeira, segue o compasso da música, convidando todos os
pacientes a imitá-lo. Os mais indiferentes são assistidos por
enfermeiros e, assim, algum tempo depois, reunem-se à maioria.
Este primeiro passo tem por finalidade, como explicou
Altschuler, despertar e manter desperta a atenção [sic]. Em
seguida, é o Hino Nacional36 executado e entoado por vários
participantes do grupo. Um deles, logo depois, é convidado a
cantar uma canção popular. Outro, encorajado pelo exemplo, a
êle se junta. Após 30 minutos de música, em que a esfera
emocional é estimulada, seguem-se outros tantos dispendidos
em atividades intelectuais. Tendo em mira conservá-los em
contacto com a realidade, um dos instrutores lê um sumário das
notícias diárias sobre acontecimentos mundiais e outros fatos de
interesse geral. Problemas com relação à vida dos presentes são
abordados, assim como as altas e transferências para enfermarias
de convalescentes. Em seguida, tem lugar o que Altschuler
chama de ‘treinamento moral e ético’. Sob a orientação do
psicoterapeuta, é lido um trecho de história cuidadosamente
selecionado e que contenha uma idéia que possa ser objeto de
discussão (1946, p. 13-14).

Novaes se refere ao propósito de começar a sessão trazendo música:


estabelecer o bom humor e tornar o ambiente mais alegre e menos retraído.
Ainda relata que pelo que pôde observar, concluiu “serem bastante apreciáveis
os resultados obtidos por Altschuler” [sic] (1946, p. 1). Também menciona o fato
de o método de Altshuler parecer “criar” um ambiente de cordialidade entre os
componentes do grupo, encorajando os retraídos a participarem de suas
atividades, combatendo-se, portanto, a tendência que muitos têm para se
manterem no isolamento. Além disto, observa Novaes, é acentuada a
modificação na atitude, com um desenvolvimento da confiança própria e do
hábito do trabalho.
Foi nesse cenário que Altshuler (1954) declarou que

Experiências clínicas indicam que o estado de humor e o tempo


mental de pacientes psicóticos podem ser influenciados mais
prontamente pela música se uma abordagem especial for
empregada. Assim, quando um paciente está deprimido, a
música triste (em tons menores) irá capturar o seu estado de
humor mais prontamente do que a música alegre (p. 30).

O autor ainda acredita que, nestes casos, a utilização de música alegre no


início pode irritar esses pacientes. Por outro lado, Altshuler entende que
pacientes hipomaníacos37, que têm um tônus emocional aumentado e que
pensam, falam e andam de forma acelerada, podem ser mais facilmente
“capturados” através do emprego de músicas em andamento rápido. E conclui
que só depois de se trabalhar “musicalmente”, dentro do estado de espírito ou do
tempo que o paciente apresenta no momento, é que se poderia fazer uma
mudança para outro estado, através do emprego de músicas especiais ou, talvez
melhor, pela mudança de andamento38, por exemplo. Este ‘procedimento’ é
conhecido como Princípio de “ISO”, ou, o princípio do “igual”, isto é, “o tempo
da música no início deve ser igual ao humor ou ao tempo mental do paciente”
(Altshuler, 1954, p. 31). O autor também afirma que o Princípio de ISO deve ser
estendido ainda ao volume e ao ritmo. Na verdade, toda possível propriedade
terapêutica inerente à música deveria ser utilizada. Por exemplo, os instrumentos
musicais e o timbre possuem uma dada propriedade terapêutica e sua natureza e
efeitos deveriam ser mais bem estudados.
Aqui cabem algumas observações. A primeira delas é que, apesar de
Althsuler ter cunhado este conceito a partir da sua experiência com pacientes
com problemas psiquiátricos, percebe-se que pode, e eu diria, deve ser
amplamente utilizado.
Mas, deve-se também assinalar que se percebe claramente que muitos
musicoterapeutas mesmo não sabendo justificar, mostramse contrários à
observação deste Princípio. No entanto, quando apresentam seus trabalhos,
claramente se percebe que utilizam o tempo da música de forma adequada ao
tempo do paciente.
Também se deve notar que Altshuler recomenda que este procedimento
deve ser utilizado no início (do processo ou de uma sessão), sinalizando-se que
esta é uma recomendação que está inserida no enunciado do Princípio, sendo
assim, de extrema importância.
Mas, a partir daqui se deve abrir um espaço para trazer o trabalho de
Rolando Benenzon, já anteriormente citado, que se inspira no Princípio de ISO
para cunhar o seu conceito de Identidade Sonora (ISO).
Entende-se como Identidade sonoro-musical de um indivíduo, o que
Benenzon chama de “ISO Gestáltico”, que ele resume como sendo nossos
arquétipos sonoros, nossas vivências sonoras gestacionais intra-uterinas e nossas
vivências sonoras do nascimento e infantis, até nossos dias, incluindo as nossas
preferências, dentre elas as musicais.
Benenzon apresenta, inicialmente, cinco tipos de Identidades Sonoras:

a gestáltica, individual ou Mosaico Sonoro, acima referidos;


a grupal, que é uma dinâmica que flui no grupo como a síntese de cada
identidade sonora, de cada paciente;
a cultural,
a universal e
a complementar, que são as pequenas mudanças que se operam a cada dia,
ou, mesmo, em cada sessão de musicoterapia39;

O autor observa que a Identidade Sonora Gestáltica (individual) se


desenvolve junto com a história do indivíduo.
Mas, cabe aqui convocar Grebe de Vicuña (1977), que desenvolveu
estudos sobre as relações entre musicoterapia e cultura e que declara que

O ISO Cultural (Identidade Sonora Cultural) é um produto da


configuração cultural global da qual o indivíduo e seu grupo
fazem parte. É a identidade Sonora própria de uma comunidade
de homogeneidade cultural relativa, que responde a uma cultura
ou sub-cultura musical manifesta e compartilhada (p. 95).
A autora afirma que “não é possível fazer musicoterapia sem se considerar
a matriz cultural do paciente como base” (1977, p. 101), e considera que, como
consequência desta questão, “devem levar-se em conta e respeitar-se as
preferências musicais do paciente, sobretudo na fase inicial do tratamento”
(ibid.), corroborando a recomendação de Altshuler.
Assim, considero que se pode chegar a um paciente não só observando o
Princípio de ISO (Altshuler), ou seja, adequando a música ao tempo mental do
paciente, mas, também utilizando sons ou músicas da sua Identidade Sonora
(Benenzon, 2000), que sejam preferidas do paciente. Resumindo: penso que o
musicoterapeuta terá uma possibilidade muito maior de poder chegar ao paciente
se executar, cantar, não só uma música no tempo mental do paciente, mas,
também, que faça parte da sua Identidade Sonora – como preferência.
Como decorrência da discussão anterior, vale trazer Heidegger para uma
maior articulação: falamos, anteriormente, sobre “ser-no-mundo” (Heidegger,
apud Nobre De Melo, 1986, p. 165), e gostaríamos de observar agora que, para
Heidegger, “mundo e ser” formam uma unidade a priori e indissociável, a tal
ponto que se torna possível, em tese, “penetrar o ser a partir do seu mundo”
(ibid, p. 165).
Entrelaçando-se o pensamento dos autores aqui convocados e fazendo-se
um paralelo entre o Princípio de ISO (Altshuler, 1954), os conceitos de
Identidade Sonora (Benenzon, 1972, 1985), as articulações sobre musicoterapia
e cultura (Vicuña, 1977) e o pensamento de Heidegger (citado por Nobre De
Melo, 1986), pode-se concluir que tanto o Princípio de ISO quanto as
Identidades Sonoras correspondem, em musicoterapia, ao que Heidegger chama
de “penetrar o ser a partir do seu mundo” e, acrescentaríamos, ‘penetrar o ser a
partir do seu mundo sonoro-cultural’.
Com base no conhecimento da história sonoro-musical do paciente, da
cultura musical na qual ele e seus antecedentes estão inseridos e do seu “modo-
de-ser-no-mundo”, durante a sessão de musicoterapia, teremos, ainda fazendo
um paralelo Heidegger-Benenzon, o que o primeiro chama de “a principal via de
acesso do ser em si” e ao que o segundo denomina de “abertura de um canal de
comunicação”, valendo-se para isto, da música.
Concluindo, podemos verificar e ratificar a importância destes estudos e o
fato de ser imprescindível o conhecimento da música da nossa cultura, o estudo
dos elementos principais que formam essa música e o conhecimento das
histórias do paciente (de vida, clínica e sonoro-musical). É claro que em um
contexto terapêutico onde o terapeuta atua ou interage com o paciente, no que
denomino “Musicoterapia Inter-Ativa” (Barcellos, 1984a), também o
musicoterapeuta atuará com elementos da cultura na qual está inserido. Assim,
musicoterapeuta e paciente, quando parte de uma mesma cultura, nela pisam
como um terreno comum, e o musicoterapeuta tem a música dessa cultura para
entrar em contato com o paciente.
Cabe ressaltar, entretanto, que não só a música já composta está carregada
de elementos da cultura. Também a improvisação musical vem impregada de
elementos musicais que fazem parte da cultura na qual o improvisador está
inserido. Assim, quando ambos — musicoterapeuta e paciente fazem parte de
uma mesma cultura — e uma improvisação é proposta pelo musicoterapeuta, vai
encontrar “eco” ou “ressonância” no paciente, podendo conseguir-se levá-lo a se
abrir para a comunicação e interação, o que pode possibilitar o desenvolvimento
de um processo terapêutico permeado e impulsionado pela música.
Mas, ainda deve-se voltar à questão do emprego de músicas preferidas dos
pacientes pelo fato de, muitas vezes, serem só estas as músicas utilizadas pelos
musicoterapeutas, principalmente por solicitação daqueles pacientes que recriam
à exaustão suas canções preferidas.
Considero que os pacientes podem ter preferências pela música ou, muitas
vezes, por aspectos específicos, tais como:

determinados compositores
cantores
por um tipo de melodia específica
por gêneros específicos (marchinhas de carnaval, sertaneja, pagode, funk,
etc.)
por músicas que pertencem à cultura regional (música nordestina, gaúcha,
ou de uma região específica),
por determinados tipos de letras (música de “dor de cotovelo”, por
exemplo)
por músicas de determinadas épocas
por preferência coletiva: o grupo decide cantar músicas que todos
conheçam e, principalmente,

por músicas que tenham um significado especial, ou seja, que estejam


ligadas a pessoas, fatos ou situações que, em geral fazem com que eles evoquem
a emoção sentida no momento em que o fato aconteceu. Em geral as cantadas
são as que têm significados positivos, isto é, as que estão ligadas a emoções
positivas. As que têm significados negativos comumente são rejeitadas, ou os
pacientes não querem cantá-las e justificam por quê.

Ainda é possível que o musicoterapeuta, às vezes, depois de ouvir o


paciente cantar a música que ele, paciente, escolheu, cante uma música que
venha do inconsciente (muitas vezes em apresentações de trabalhos ou em
supervisão se percebe que a música cantada pelo musicoterapeuta tem tudo a ver
com o que foi cantado pelo paciente, mas o musicoterapeuta diz não saber por
que escolheu a referida música.
Ainda cabe sinalizar que existem musicoterapeutas que têm como centro
de sua metodologia de trabalho a utilização da técnica de recriação de canções,
como a musicoterapeuta australiana Katrina McFerran, que desenvolve um
trabalho com adolescentes. Para a musicoterapeuta,

Estas canções serão usadas para motivar o cliente e encorajá-lo a


atingir os objetivos terapêuticos. Quando o musicoterapeuta está
oferecendo aceitação, esta questão visa o foco dos interesses do
adolescente e coloca uma ênfase desenvolvida de forma
apropriada sobre a sua música e identidade (2010, p. 87).

Embora a questão esteja posta aqui com pacientes adolescentes pode, sem
dúvida, ser estendida a qualquer outro tipo de pacientes e, com muitos deles essa
é a técnica principal empregada pelo musicoterapeuta, como é o caso da
musicoterapeuta Marly Chagas, que utiliza a canção inclusive para fazer
intervenções, como se constata no trabalho no qual faz uma intervenção
cantando “O Mundo é um Moinho” (Cartola, 1976). Considero que a
musicoterapeuta trabalha utilizando a canção como técnica. Chagas descreve a
situação da paciente e a intervenção que ela faz, como musicoterapeuta, o que
desencadeia um processo de extrema importância para que a paciente tenha uma
compreensão do que está ocorrendo (2012).
Com relação às preferências musicais dos pacientes, que englobam
principalmente as canções, a musicoterapeuta norte-americana Concetta M.
Tomaino, por exemplo, declara que “para verdadeiramente alcançar alguém com
demência, no nível pessoal, suas preferências musicais precisam ser levadas em
conta” (2014, p. 83). Para Tomaino, músicas favoritas, ou até trechos de
músicas, podem ficar “enraizados na nossa memória”, ou podem se constituir
como um estímulo para a memória, ou para melhorar as habilidades de
reminiscências naquelas pessoas com funções cognitivas fracas, como todos nós
que já trabalhamos com idosos podemos constatar (ibid.).
Quando se verifica que, com pacientes que têm condições de se trabalhar
diversificando as músicas a serem utilizadas mas, que, quase somente as suas
preferências musicais são levadas em conta, pode-se pensar no mito de Narciso e
fazer uma aproximação, bastante livre, considerando o musicoterapeuta como
aquele que segura o espelho no qual o paciente vai ficar contemplando a sua
própria imagem, como se estivesse o tempo todo olhando para si mesmo e sem
ter a possibilidade de poder sair desse lugar, e ampliar o seu mundo! O emprego
de outras músicas conhecidas, ou até músicas novas, ou ainda, a improvisação
ou composição, certamente poderia ajudar esses pacientes a se desenvolverem.
Para corroborar esse pensamento, tem-se uma afirmação preciosa do
musicoterapeuta canadense Collin Lee, que deve ser observada. O autor
recomenda que “Mesmo que a preferência musical [do paciente] seja importante,
nós [musicoterapeutas] temos que ter, também, o potencial para dar outras
avenidas musicais que irão equilibrar e fazer o processo terapêutico mais direto,
potente, e esteticamente poderoso” (2003, p. xvi).
Seguramente os musicoterapeutas têm condições de avaliar as
possibilidades dos pacientes e, quando e como poderão introduzir essas ‘novas
avenidas’, às quais Lee se refere.
Como supervisora de estágios tenho observado que, com muita frequência,
quando os estagiários se referem às sessões, trazem situações nas quais os
musicoterapeutas começam as sessões perguntando: “o que vamos cantar hoje”?
É evidente que uma pessoa que vem para um tratamento não sabe quais são as
muitas atividades que podem ser feitas dentro de uma sala de musicoterapia,
além de cantar, como, por exemplo: tocar, fazer movimentos corporais e dançar,
ou, ainda, quais as experiências musicais, além da recriação, que podem ser
realizadas, tais como: improvisar, compor ou fazer paródias, que jamais
denomino desta forma para os pacientes. No espaço terapêutico sempre me refiro
a elas como: “inventar música”, já que a maioria dos pacientes não sabe o que é
improvisar e quando ouvem ‘compor’, imediatamente dizem “eu não sei fazer
isto”.
Além disto, devemos nos lembrar que o paciente ainda pode ouvir música
(audição musical) que no Brasil vem geralmente combinada com outras
atividades como cantar, dançar, e/ou fazer movimentos corporais.
Assim, cabe ao musicoterapeuta utilizar estratégias para levar o paciente a
experimentar outras atividades e experiências musicais ou, ainda, utilizar as
“preferências musicais flutuantes” desses pacientes (McFerran, 2010, p. 87), que
devem fazer parte das músicas de sucesso na mídia naquele momento, estar
ligadas ao processo de massificação, e se tornarem parte constituinte da
Identidade Sonora Cultural (Millecco, 1997)40.

Considerações finais
Chegamos à conclusão que muitos aspectos que aqui foram abordados nos
levariam, depois de uma séria reflexão, à elaboração de novos trabalhos, por se
tratar de assuntos profundos e complexos.
No entanto, devemos observar a importância da cultura na musicoterapia
pois, a partir, e por meio dela, poderemos não só entrar mais facilmente em
comunicação com os pacientes como, também, dar-lhes um ponto de referência,
ou um parâmetro de realidade.
A música, como arte temporal, possibilita mais facilmente chegar-se ao
paciente sem “invadir” o seu mundo e “compartilhar” com ele desse mundo
podendo ser, para ele, um referencial.
Nas palavras de Grebe de Vicuña

Tanto a Identidade Sonora profunda do paciente (ISO) como os


processos de aprendizagem cultural (endoculturação ou
enculturação) e a valoração da própria cultura (etnocentrismo)
ocupam um lugar de destaque na determinação das variáveis
culturais decisivas para a prática musicoterapêutica. Para isto,
deve levar-se em conta a qualidade complexa da Identidade
Sonora do paciente, que possui atributos individuais e coletivos,
psicofisiológicos culturais e musicais, posto que a música é parte
da cultura e esta última é produto do trabalho criativo do ser
humano [...] (1977, p.104).

Mesmo que os estudos sobre as relações entre musicoterapia e cultura


venham acompanhando a musicoterapia na sua caminhada, como se pôde
constatar, a musicoterapia contemporânea dá outra dimensão acerca desse
aspecto e trata a questão dando-lhe um lugar de maior destaque, considerando-a
como podendo ser o centro e a fundamentação teórica para trabalhos de grande
importância na musicoterapia contemporânea.
DANÇANDO NAS POLTRONAS: A CULTURA NA
“MUSICOTERAPIA INTERATIVA” BRASILEIRA

Depois da discussão do emprego tanto do princípio de ISO como do respeito que


se deve ter com relação às Identidades Sonoras, incluindo a cultural, torna-se
relevante discutir mais amplamente a questão da cultura em musicoterapia, vista
através do olhar de musicoterapeutas teóricos e clínicos da atualidade.
Como relatado anteriormente, Bruscia, prefaciando o livro de Brynjulf
Stige (2002a), afirma que apesar de a musicoterapia ter uma história breve, esta
é surpreendentemente rica e que o livro em questão anuncia o surgimento da
musicoterapia centrada na cultura.
A importância da cultura para a musicoterapia tem sido enfatizada por
vários autores desde que a musicoterapia passa a existir como profissão. No
entanto, são os estudos de autores da musicoterapia contemporânea como Even
Ruud (1998) e Brynjulf Stige (2002a), que ratificam a declaração de Bruscia.
Stige (2002a), que vem se debruçando sobre a questão da cultura, como
esta é entendida, e qual a sua relevância para uma compreensão da
musicoterapia, considera que os aspectos culturais têm sido frequentemente
negligenciados pelos musicoterapeutas. Por outro lado, assume que, se é verdade
que isto acontece, “pouco seria ganho por se reduzir tudo à cultura” (ibid., p.
41).
Aparentemente, Stige não concorda com a afirmação de que a cultura é
levada em conta desde que a musicoterapia se firma como profissão. Mas, é pela
forma como o autor explica as duas formas que os musicoterapeutas podem
escolher para se relacionar com a cultura, em musicoterapia, que se pode
entender a sua posição. Para ele, essas duas formas são: a cultura específica da
musicoterapia41 e a musicoterapia centrada na cultura (idem).
Estas duas formas merecem ser um pouco mais detalhadas.

Sobre a cultura específica da musicoterapia


Segundo o autor: “A cultura específica da musicoterapia reconhece o fato
de que um cliente vem à musicoterapia com uma identidade cultural, assim
como o terapeuta, e que a musicoterapia, portanto, não pode ser considerada uma
empresa “livre da cultura” (idem).
Este tipo de musicoterapia ao qual Stige se refere é aquele que a maioria
dos musicoterapeutas pratica no Brasil, ou seja, que leva em consideração a
cultura do paciente e que o autor considera que vem se tornando cada vaz mais
importante, pelo fato de as sociedades modernas estarem se tornando
progressivamente multiculturais, especialmente nos contextos urbanos (2002a).
Ainda para Stige, nesse tipo de musicoterapia, aonde paciente e
musicoterapeuta trazem suas identidades culturais, cabe ao musicoterapeuta ter
respeito pelo paciente e pela cultura deste. Para isto, o musicoterapeuta ajusta-se
à cultura de cada paciente escolhendo, por exemplo, o estilo da música da
cultura deste.
No entanto, o autor entende que nem sempre é possível que o
musicoterapeuta se ajuste completamente à cultura do paciente, pois
enculturação42 e aculturação43 são processos longos e complexos. Nestes casos,
declara Stige, “o interesse e respeito comunicados podem ser mais importantes
do que o grau de sucesso de ajustamento aos códigos culturais específicos”
(2002a, p. 41).
Assim, parece interessante iluminar um aspecto importante da “Cultura
específica da musicoterapia” que é ‘como’ o musicoterapeuta se “movimenta”
quando trabalha com pacientes estrangeiros, ou seja, quando a cultura de
musicoterapeuta e paciente não são as mesmas. Para ilustrar esta questão, parece
relevante a inserção de quatro situações clínicas nas quais estive inserida,
vivendo experiências bastante distintas com pacientes estrangeiros: um alemão
idoso, um adulto filho de noruegueses, um menino britânico e uma senhora
idosa, de origem judaica.

Cena clínica 7
Neste primeiro exemplo, ainda como estagiária da musicoterapeuta
Gabriele Souza e Silva, a fundadora do Setor de Musicoterapia da Associação
Brasileira Beneficente de Musicoterapia (ABBR), tive a oportunidade de
acompanhar a condução de um processo musicoterapêutico de um paciente
alemão, com um AVC (Acidente Vascular Cerebral), e um quadro grave de
afasia (perda da capacidade e das habilidades de linguagem falada e escrita, em
geral como sequela de AVC).
O paciente era alemão, mas morava no Brasil há muito tempo, sendo um
indivíduo bilíngue, já que antes do AVC se comunicava com os familiares na
língua materna e com as outras pessoas em português. Cabe esclarecer que,
segundo a literatura neurolinguística que se dedica a estudar o tema, em geral,
é a língua materna do sujeito que fica mais preservada frente à patologia
cerebral. Diz-se que o que foi adquirido há muito tempo tem maiores condições
de ser preservado (Cruz, Morato e Perotino, s/d).
O paciente praticamente não se comunicava verbalmente, mas utilizava
um som, repetidamente, visivelmente do alemão, para responder à
musicoterapeuta, que vinha de uma família alemã e com esta se comunicava só
nessa língua. Além disto, a musicoterapeuta conhecia muito bem a música da
cultura alemã.
Assim, a musicoterapeuta tocava as músicas que, na entrevista, a família
declarara que eram da história sonoro-musical e das preferências do paciente e
ambos interagiam, o paciente dentro de suas condições (respondendo sempre
com o mesmo som), certamente por conta de a musicoterapeuta falar o idioma
dele e tocar e cantar as músicas da sua cultura e preferência.
Entretanto, neste caso, mesmo estando inserida no contexto, a minha
participação se restringia à execução de um pequeno instrumento de percussão,
só para que a minha presença não se tornasse persecutória. Inútil, e mesmo
impossível, seria tentar ter o mínimo de conhecimento tanto da língua quanto da
cultura desse paciente.
E aqui fica a pergunta: seria possível para um musicoterapeuta que não
falasse o mesmo idioma de um paciente nestas condições atendê-lo? Talvez sim,
mas, certamente, a musicoterapeuta falando o idioma do paciente teria muito
mais chances de chegar até ele com maior sucesso.

Cena clínica 8
O segundo paciente que pode ser apresentado como exemplo das
dificuldades apontadas por Stige, no atendimento de pacientes de outras
culturas, é o de Charles, nascido em uma família norueguesa, que passou a
infância na Grã-Bretanha, fez seus estudos superiores nos Estados Unidos e,
finalmente, veio morar e trabalhar no Brasil, tendo sido, aqui, vítima de um
acidente de mergulho. Tratava-se de um paciente poliglota, mas que já falava
português correntemente, quando foi atendido por mim. As músicas de sua
preferência eram principalmente eruditas ou canções populares americanas.
Assim, não surgiram aspectos que me impedissem de trabalhar com ele e a
situação era bastante confortável, ao contrário da que vivi com o paciente
anterior, embora naquele processo eu não tivesse o papel de terapeuta. No
entanto, mesmo falando português, muitas vezes, em alguns momentos, Charles
se dirigia a mim em inglês.

Cena clínica 9
A terceira situação já não foi tão confortável. Recebi um paciente com dois
anos e nove meses, com uma hipoacusia bilateral grave44, advinda de uma
meningite bacteriana. O paciente nasceu no Brasil, de pais ingleses que só se
comunicavam em inglês com a família — constituída pelo casal e três filhos. No
momento em que comecei a atender Simon, recebi a recomendação que deveria
trabalhar em inglês, pois não seria adequado inserir mais um idioma, já que o
paciente tinha grande dificuldade para ouvir e ainda não falava.
Recebi o paciente para a primeira sessão, acompanhado da mãe que
trouxera também um livro com canções infantis em inglês. Não seria difícil
aprender as músicas, mas provavelmente, eu não tocaria e cantaria aquelas
músicas com a mesma desenvoltura que poderia executar a música brasileira.
No entanto, tão logo o paciente entrou na sala ‘se encantou’ pelas cortinas
japonesas penduradas nas janelas da sala, e passou a levantar e abaixar uma
delas. Imediatamente aproveitei esse movimento que ele fazia com a cortina,
para começar o trabalho, improvisando com a voz — que deslizava do grave ao
agudo junto com a subida da cortina, acompanhada da palavra ‘up’
(aproveitando para trabalhar também a aquisição da linguagem) —, e que vinha
lá do agudo ao grave, quando ele abaixava a cortina, acompanhada de
‘down’45.
Certamente a imprevisibilidade da ação ajudou, e a improvisação passou a
ser a grande aliada nesse atendimento, sendo a experiência musical mais
utilizada por nós dois. Não se pode saber se a terapia teria o mesmo sucesso se
eu tivesse trabalhado com a recriação das canções da cultura dele. Na verdade
o paciente ficou durante cinco anos na musicoterapia e não cantamos uma única
canção britânica o que, possivelmente, ele fazia com os irmãos e a mãe, que
tocava piano, e na escola que frequentava: a Escola Britânica. Percebe-se que,
neste atendimento, a cultura não foi o fator mais importante do atendimento que
teve, por cinco anos, a improvisação musical e corporal como o centro da
terapia.
Cena clínica 10
Esta última situação adveio de uma solicitação para que eu substituísse
uma colega musicoterapeuta por três sessões. A paciente era uma senhora de
origem judaica, idosa, que será aqui chamada de Maria, e o atendimento foi
realizado em sua casa. Eu estava consciente que poderia enfrentar dificuldades
por conta do desconhecimento da cultura judaica. Porém, só quando entrei na
casa da paciente percebi o quão difícil poderia ser trabalhar com ela, pois
grande parte dos objetos que faziam parte da decoração da casa eram dessa
cultura. Vi que não seria fácil. Mas, deixei que as situações acontecessem para
tentar entender como seria trabalhar naquele ambiente e com aquela senhora
que estava imersa em uma tradição/cultura/História judaicas, totalmente
desconhecidas, para mim.
As músicas que ela trazia eram da cultura brasileira, inserida que estava
nessa cultura. Contudo, as suas raízes eram judaicas. Em alguns momentos ela
me perguntava sobre o significado de algum objeto da decoração da casa, mas,
evidentemente, eu não sabia responder. Assim, deve ter ficado claro que eu não
era judia. Ela então me explicava detalhadamente, e eu sentia que isto lhe dava
grande satisfação e orgulho.
Em uma das sessões, fiz uma proposta que ela fizesse um ‘tour’ pela sala
— através do olhar (porque percebi que nesse dia ela estava bastante debilitada
e não podia caminhar como eu tinha pensado) —, e que escolhesse um objeto da
sala para ‘inventar’ uma música sobre ele. Ela escolheu um quadro que não
tinha a ver com a sua cultura e, talvez, por eu ter utilizado uma palavra em
francês quando fiz a proposta, ela começou a criar e toda a letra da música foi
nesse idioma, (bem mais fácil do que se fosse em iídiche!), o que me possibilitou
interagir com ela, em um tipo de composição que denomino composição
assistida, que defino como sendo

A composição que o paciente faz na sala de musicoterapia junto


com o musicoterapeuta, ou provocado por este, em contraste
com a composição já feita em casa — ou em outros espaços de
uma instituição — e que o paciente traz pronta e apresenta ao
musicoterapeuta durante a sessão. Na composição assistida, o
processo é facilitado pelo musicoterapeuta por meio de
intervenções verbais e/ou musicais, ajudando o paciente quando
ele/ela precisar (Barcellos, 2010c).
Abaixo, a composição da paciente, ‘descrevendo’ a pintura que estava à
sua frente. Nesse quadro aparecem cinco pessoas, sendo que uma única é
mulher. Maria foi cantando a letra, que saiu sem ela pensar muito. Ela não
explicou porque pensou em francês, não disse quem era Monique, enfim, nada
foi combinado, mas talvez esta situação, além de ser importante para ilustrar a
questão da cultura, também seja relevante para se pensar a questão de
praticamente só se utilizar a recriação de músicas preferidas dos pacientes
idosos, por exemplo, por se considerar que eles não sejam capazes de improvisar
ou compor.
Considero que é de extrema importância se utilizar suas músicas
preferidas, mas defendo que os pacientes idosos também têm condições de serem
levados a outras experiências musicais, como aqui, à composição. Ainda
sustento que não é só com o passado que se deve trabalhar com pacientes idosos,
mas, também, com o futuro próximo: a recriação de canções é trabalhar com o
passado e improvisação e composição até podem ter letras que tragam o passado
mas estão sendo construídas no momento atual, bem como a música, e podem
trazer a expectativa do futuro, por ser o não-conhecido.
Abaixo, a composição da paciente.

Monique
Maria
Aqui, a tradução da letra da canção:
“Monique”
(Maria)

Monique é uma mulher


A única mulher do grupo
É um grupo de cinco figuras
Que parece uma trupe46

Percebe-se que a música é uma mesma frase musical, muito simples e


cantada três vezes e que, para encerrar, foi feita uma finalização melódica,
compatível com uma cadência perfeita. Sem dúvida esta música traria
desdobramentos sobre aspectos da letra, do idioma utilizado, enfim muitas
seriam as questões a serem vistas nas sessões posteriores que não aconteceram,
infelizmente, pois a paciente já estava bastante enferma e veio a óbito.
Estas situações foram aqui inseridas para corroborar a afirmação de Stige
que aponta para uma impossibilidade de o musicoterapeuta se “ajustar
completamente à cultura do paciente” (2002a, p. 41). No entanto, para o autor,
“o interesse e respeito comunicados podem ser mais importantes do que o grau
de sucesso de se ajustar aos códigos culturais específicos” (idem), como referido
anteriormente.

Sobre a musicoterapia centrada na cultura


Já a segunda forma de relação entre cultura e musicoterapia é a
musicoterapia centrada na cultura. O autor declara que “Enquanto a cultura
específica da musicoterapia pode ser descrita como a consciência sobre
musicoterapia na cultura, a musicoterapia centrada na cultura pode ser
entendida como a consciência sobre a musicoterapia como cultura” (ibid, p. 42).
Aqui serão descritos três trabalhos realizados no Rio de Janeiro que podem
ilustrar a musicoterapia centrada na cultura.

Cena clínica 11
“Bumba-meu-boi”47: uma Manifestação Cultural em Musicoterapia48
Muitas são as festas populares vividas em escolas para crianças normais e,
também, em instituições de educação especial e saúde. A festa de São João é
uma das expressões católicas mais populares, muito comum no inverno do
Brasil, em junho. Nessa época do ano crianças podem ser vistas indo e vindo
pelas ruas vestindo roupas de ‘caipira’, mesmo nas grandes cidades brasileiras.
Todas as escolas, incluindo as que atendem a crianças especiais, e mesmo
hospitais psiquiátricos, preparam seus estudantes e pacientes para cantar e
dançar a “quadrilha” e para dramatizar o casamento com noiva, noivo, padre e
tudo mais.
Outras expressões culturais religiosas ou profanas também são vivenciadas
não só em escolas especiais, mas, também, hospitais psiquiátricos, CAPS e
instituições que abrigam idosos, como é o caso do trabalho a seguir que ilustra,
de forma exemplar, aquilo que Stige considera a musicoterapia centrada na
cultura.
A musicoterapeuta Martha Negreiros de Sampaio Vianna trabalhou por
muitos anos, na década de 80, em uma instituição especializada em atendimento
de idosos: a Casa São Luiz para a Velhice (RJ). A equipe interdisciplinar era
formada por musicoterapeuta, terapeuta ocupacional, assistente social e,
também, por uma pessoa especializada em teatro. Os pacientes além de terem
diferentes experiências de vida, tinham também diferentes raízes culturais,
apesar de serem todos brasileiros. Na musicoterapia eles cantavam e se
acompanhavam tocando nos instrumentos de percussão, músicas como antigas
marchas de carnaval, pois a maioria tinha vivido a “Era do Rádio”49 e,
também, músicas folclóricas das diversas regiões brasileiras de onde eram
oriundos.
Um dia, um deles tocou um ritmo que fez os outros pacientes se lembrarem
de uma manifestação cultural existente em várias regiões do país: o “Bumba-
meu-boi”. A partir dessa sessão, Negreiros50 decidiu trabalhar com diferentes
manifestações culturais das raízes destes pacientes e o “Bumbameu-boi” foi a
primeira delas, a partir do ritmo trazido pelo paciente.
Para que pudessem desenvolver um trabalho em conjunto foram
convidadas pessoas da equipe. Daí em diante, os pacientes, com a ajuda dos
terapeutas, passaram a decidir tudo o que iriam ensaiar e, posteriormente,
mostrar em diferentes espaços.
Para preparar a apresentação do “Bumba-meu-boi” eles tinham que
participar ativamente do processo, fazendo inicialmente uma pesquisa sobre
essa manifestação, decidindo que história escolher, já que existem várias, de
diferentes regiões do país; quem seria o paciente a interpretar cada papel – já
que são vários os personagens –, e que roupas e máscaras usar. Além disto, eles
tinham que confeccionar as roupas e as máscaras, sendo estas últimas em um
papel especial; organizar a coreografia; aprender as letras ou compor as letras
e as músicas e decidir como tocá-las. Os terapeutas apoiavam e ajudavam a
decidir, a construir, a organizar e, ao mesmo tempo, interagiam com eles ou
faziam as intervenções necessárias para facilitar o desenvolvimento tanto do
processo de organização da apresentação como do processo terapêutico.
Depois de terminarem a organização e ensaiarem, quando consideravam
que estavam suficientemente prontos, eles faziam o ‘show’ para outras pessoas
da própria Casa São Luiz e visitavam outras instituições levando o resultado do
trabalho, locomovendo-se em um ônibus especial. Eles se apresentaram muitas
vezes, incluindo uma cerimônia de abertura de um Congresso Brasileiro de
Gerontologia. Esta foi uma experiência muito forte para eles e, segundo
Negreiros, também para os terapeutas que puderam ter a dimensão e a
evidência da importância do trabalho!
Negreiros identifica e aponta muitos objetivos num trabalho deste tipo:
primeiro, a possibilidade que a música dá a estes pacientes, no sentido de eles
poderem se integrar com o grupo, com a equipe, com a realidade e com o
“fantasma do futuro” – uma expressão adequada que a musicoterapeuta escolheu
para representar o medo do futuro ou a insegurança da vida ou, ainda, uma forma
de enfrentarem o medo da morte. A musicoterapeuta também assinala a
relevância da possibilidade de se ‘religar’ com a cultura – já que muitos deles
estão internados por muitos anos e não têm contato direto com a realidade e com
o movimento cultural. Negreiros ainda enfatiza que isto pode promover o
desenvolvimento da iniciativa e de tomada de decisões e, também, que este
trabalho pode contribuir para a recuperação e re-atualização da memória, dando
aos pacientes a oportunidade para ressignificar conteúdos, o que contribui para
uma melhor qualidade de vida.
Este tipo de trabalho nos faz acreditar, uma vez mais, que a utilização dos
elementos da cultura, aqui vista diretamente como o centro da terapia, é de
extrema força e relevância em musicoterapia e que isto faz o tratamento mais
efetivo e potente.
Certamente, os resultados do trabalho desenvolvido por Negreiros são
importantes e se constituem como uma das razões para que hoje, muitos
musicoterapeutas brasileiros possam “dançar conforme a música”, isto é, possam
aceitar a realização de outras atividades em musicoterapia como coros, a
participação de pacientes em festas populares, oficinas musicais, bandas, grupos
musicais e qualquer manifestação cultural, quando necessário ou desejável, no
sentido de ajudar, promover saúde, possibilitar a alegria de viver para pessoas
que estão doentes ou internadas em instituições e, por isto, não inseridas em
contextos sociais.

Cena clínica 12
Apesar de não ser um trabalho clínico, mas, sim, terapêutico51, incluo o
trabalho desenvolvido pela educadora musical e musicoterapeuta Thelma
Sydenstricker Álvares, docente da Escola de Música da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), como Cena clínica.
A formação da referida musicoterapeuta lhe permite ter por objetivo um
diálogo entre a Educação Musical e a Saúde. Através da ‘Educação Musical na
Diversidade’, Álvares busca desconstruir os estigmas e procura construir novas
percepções e oportunidades que facilitem a inserção social de grupos
desfavorecidos.
A autora faz parte de um grupo formado por profissionais de várias áreas,
como saúde, educação e cultura, que desenvolvem ações como a Semana
Cultural da Diversidade que reúne várias atividades culturais. Álvares declara
que o trabalho que é realizado no Espaço UFRJ — que se constitui de
apresentações e exposições de arte realizadas por pessoas com deficiência visual,
dependência química, ativistas gays, meninos em situação de rua e pessoas que
fazem parte da população em geral — contribui para promover espaços de
convivência para pessoas com ou sem necessidades especiais (Álvares, 2012).
Álvares constata que a diversidade humana acolhe, além das diferenças
físicas, sensoriais e intelectuais, diferenças religiosas, sexuais, culturais, de
gênero, étnicas e biológicas e que o trabalho artístico pode promover a
expressão, a interação, e contribuir para uma sociedade mais igualitária (ibid.).
Além dessa atividade, as ações da UFRJ também incluem cursos de
educação musical na diversidade, e prática em hospitais, centros de reabilitação,
hospitais-dia e escolas especiais, bem como oferecem projetos artísticos e
culturais para estudantes de educação musical. Estes projetos permitem que os
estudantes tenham a oportunidade de ensinar música para pessoas que são
excluídas socialmente e, assim, podem ter uma percepção melhor dessa
realidade. A autora ainda acredita que ações como estas podem diminuir as
lacunas entre a educação, saúde e cultura, e que a consciência da existência da
diversidade e o desenvolvimento de habilidades para com elas lidar pode resultar
em novas possibilidades para a inclusão social. Trata-se de projetos onde a
cultura permeia todas as ações e tem aí, portanto, um papel primordial.
Cena clínica 13
Também o trabalho da musicoterapeuta Pollyanna Ferrari e da psicóloga
Marcela Weck de La Cerda (2012), é um exemplo que ilustra bem a
musicoterapia centrada na cultura. Trata-se de um projeto denominado “Coletivo
Carnavalesco “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”: Criação Musical e Artística na
Interface entre Cultura e Saúde Mental” que, segundo as autoras

se situa na interface saúde mental/cultura através do


desenvolvimento de atividades de artes, tendo o carnaval como
principal via de expressão, de inclusão social e de cidadania. Tal
dispositivo tem o propósito de integrar as artes carnavalescas e a
saúde mental a partir do campo da Reforma Psiquiátrica,
buscando criar estratégias potentes para a construção de um
novo lugar na sociedade para as pessoas em sofrimento psíquico
(ibid, p. 311-312).

Este projeto existe desde 2004 nas instalações do Instituto de Psiquiatria da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, (UFRJ), idealizado e colocado em
prática pela musicoterapeuta Pollyanna Ferrari. Recebe usuários de todos os
serviços de saúde mental da cidade do Rio de Janeiro e se prepara durante todo o
ano para o desfile de carnaval, nas ruas da cidade, onde se apresenta com todos
os elementos de uma escola de samba: mestre sala e porta bandeira; carro ‘abre
alas’; carro de som; carros alegóricos; fantasias, bateria de instrumentos de
percussão e com um samba composto por um dos usuários e selecionado por um
júri, dentre as muitas composições apresentadas (ibid.).
Este projeto tem como centro as sessões de musicoterapia, mas, também,
reuniões para a organização do bloco de carnaval e as oficinas: de música, de
percussão, e de artes, espaços onde toda a preparação para o desfile é realizada e
que são aqui assim representadas graficamente:
A importância deste trabalho ainda reside no fato de se tratar de um projeto
intergeracional52, pois atende a crianças, adolescentes, adultos e idosos que, no
desfile de carnaval saem todos às ruas e aos quais todo e qualquer folião pode se
juntar, mesmo que não tenha feito parte do grupo durante o ano. Esta é, sem
dúvida, outra ilustração exemplar de um trabalho ‘centrado na cultura’, como
preconiza Stige (2002a).

Sobre espaços físicos da aplicação da musicoterapia, as experiências


musicais (pacientes) e as técnicas musicoterápicas (musicoterapeutas).

Os espaços físicos da aplicação da musicoterapia


Na década de 1970, ainda como estagiária e logo após terminar a formação
em musicoterapia (durante oito anos), trabalhei como musicoterapeuta em um
hospital de reabilitação – ABBR, em uma sala especialmente construída para os
atendimentos de musicoterapia com pacientes com problemas neurológicos
(crianças, adultos e idosos). De 1980 até 1982, exerci a musicoterapia
inicialmente sublocando salas em duas clínicas diferentes, onde todos os tipos de
profissionais trabalhavam e onde havia regras para se transitar em espaços
comuns como cozinha e banheiro. De 1982 a 2002, passei para um consultório
próprio, montado exclusivamente para atendimentos em musicoterapia,
atendendo a crianças com todos os tipos de problemas, especialmente com
Trantornos do Espectro Autista (TEA), deficiências visual e auditiva, e
síndromes neurológicas. Ao mesmo tempo, atendi pacientes em seus domicílios
por não terem condições de irem ao consultório: um adulto que tinha uma
sequela de acidente de mergulho, e um adolescente que tinha caído da laje de sua
casa, onde estava empinando uma pipa. Este paciente ficou em coma durante
oito meses e saiu do coma traqueostomizado, cego e com problemas motores que
o impediam de caminhar. Por isto, comecei a trabalhar com ele em sua casa,
onde uma sala foi transformada em quarto de hospital, com todos os recursos
necessários para um atendimento de emergência.
Em 1993, a musicoterapeuta Lenita Vieira Moraes e eu exercemos a
musicoterapia no projeto anteriormente referido, em uma grande sala de lazer
para os moradores de uma casa antiga: todos meninos em situação de rua. A casa
tinha instrumentos de percussão de grande e pequeno porte que eram por eles
levados para a sala e utilizados.
Em 2008, fui convidada pela Fundação do Rim para trabalhar com crianças
e adolescentes no momento da diálise, na Clínica de Doença Renais, juntamente
com a psicóloga e musicoterapeuta Mariana Florenzano Barcellos. Aí fomos
surpreendidas pela possibilidade de trabalhar em uma sala onde teríamos muitos
desafios sendo o primeiro deles ter que lidar com os pacientes, familiares, a
equipe e profissionais de várias áreas. Voltei a um atendimento domiciliar e mais
recentemente a outro trabalho clínico, convidada pela Mt. Martha Negreiros de
Sampaio Vianna, em uma enfermaria de mulheres grávidas, hipertensas53, no
qual o tipo de pacientes exige a assistência de uma equipe de profissionais.
Percebemos aqui, nestas diferentes salas, que o musicoterapeuta tem que
estar preparado para enfrentar distintas situações e que uma delas é a questão do
espaço que, sem dúvida, está ligada à ética, pois desde a sala construída
especificamente para a musicoterapia, na ABBR; passando por um consultório
próprio: onde só o musicoterapeuta trabalha e tem a liberdade de atuar como
considera a melhor forma; domicílios: onde lida com familiares e/ou
acompanhantes; uma casa: onde menores em situação de rua são abrigados por
uma Associação que tem um Projeto para a reintegração desses menores; até
chegar a uma clínica: onde todas as possibilidades acontecem — familiares,
equipe, visitantes; e uma enfermaria: onde outro tipo de pacientes estão
internadas mas onde também existe uma equipe de profissionais e visitantes.
Nesses espaços, grandes e distintos desafios são enfrentados.
Contudo, a questão da cultura também aqui deve ser observada, já que em
quase todos esses atendimentos, à exceção do consultório, muitas são as pessoas
que estão inseridas, existindo a possibilidade de que algumas venham de outros
estados do país, o que, evidentemente, não pode deixar de ser observado.

Breves considerações acerca da utilização da música em


musicoterapia
Tenho ouvido com certa frequência, principalmente por parte de músicos,
uma crítica com a qual tenho que concordar. Dizem eles que nós,
musicoterapeutas, quando nos referimos à música em musicoterapia a tratamos
como se fosse uma coisa, uma entidade, como se estivesse separada do paciente
e até do musicoterapeuta quando, na verdade, ela é uma experiência a ser vivida
internamente, por quem com ela entra em contato.
Se formos em busca de como a questão é tratada na literatura de
musicoterapia basta consultar Bruscia e ler a primeira frase do capítulo 11 da sua
obra Definindo Musicoterapia (2000), que vamos entender que os músicos têm
razão. O autor afirma que “A frase ‘utilizando as experiências musicais’ é curta
mas, carregada de questões e implicações” (2000, p. 97) e ainda explica que na
musicoterapia não se ‘utiliza’ simplesmente a música, mas sim, ela é vivenciada
através de experiências musicais. E, aqui ele traz a questão mais importante a ser
assinalada: as implicações de acrescentar a palavra ‘experiências’ à música
parecem ser sutis mas são muito importantes, pois significa que o agente da
terapia não é especificamente a música (como se fosse um objeto externo ao
paciente) mas, sobretudo, a experiência que este tem com a música, e esclarece:
“a interação entre pessoa, processo, produto e contexto” (ibid., p. 113).
Esta questão levantada pelos músicos e por Bruscia, apontando que os
musicoterapeutas ‘coisificam’ a música, coincide com o pensamento do
musicólogo Christopher Small, que resulta no denominado musicking, conceito
cunhado em 1998, e que circula há algum tempo entre os musicoterapeutas
brasileiros.
Referindo-se a este conceito, assim se posiciona Ruud: “Small enfatiza
como a ‘música’ deve ser entendida: como uma prática e um processo, como
algo que nós fazemos, mais do que um objeto” (2010, p. 59). Small se refere à
música como um verbo, certamente lhe conferindo o status de uma atividade
como, por exemplo, “musicando”. Ou seja: entendida como algo que fazemos,
que vivenciamos, e não como algo que está fora de nós.
Também Brynjulf Stige, ex-aluno de Ruud, e um dos maiores pensadores
da musicoterapia contemporânea, refere-se ao musicking na sua tese de
doutoramento, mas, na minha compreensão, amplia o conceito pois o entende
como uma atividade social, estudioso que é da musicoterapia em comunidades.
Para ele, Small tem uma perspectiva “que entende a música como ação e
interação em contextos sociais e culturais” (2003, p. 165).
Small coloca o seu foco na direção do desempenho musical quando
introduz o conceito musicking, afirma Stige. Com a utilização do gerúndio do
verbo ele sugere que musicar é tomar parte em uma execução musical, seja
escutando, ensaiando ou praticando ou, ainda, compondo ou dançando, isto é,
denota que se trata de uma ação.
Mas, para finalizar essa discussão, vale voltar à Ruud que declara que

Os musicoterapeutas devem estar cientes da poderosa


ferramenta que o musicking compreende na sua habilidade em
gerar bem-estar e otimismo, para fomentar a resiliência e ação,
para trabalhar através de emoções positivas e a experiência de
“fluxo”, a fim de equipar os clientes com estratégias para viver
uma boa vida (2010, p. 87).

Com isto, Ruud enfatiza que entender a música em uma abordagem


musicoterapêutica significa, sobretudo, entendê-la como uma experiência ou
como atitude de participação.

Sobre as experiências musicais e as técnicas em musicoterapia


As experiências musicais
As experiências musicais, a serem vividas pelos pacientes em
musicoterapia, são: a exploração, a audição, a recriação, a improvisação, e a
composição musicais. Mas, essas mesmas experiências são utilizadas pelo
musicoterapeuta. Como? Da forma que ele considere ser a mais adequada,
pretendendo alcançar algum objetivo com relação ao paciente. Assim, a pergunta
seria como o musicoterapeuta utiliza cada uma delas, em quê situação e com quê
fim. Aqui, utilizadas pelo musicoterapeuta, elas tomam o nome de técnicas, pois
são as ferramentas das quais o musicoterapeuta se vale para provocar as
mudanças que considere necessárias.
Assim, em uma sessão, experiências e técnicas coexistem na medida em
que paciente(s) e musicoterapeuta interagem. O paciente vai cantar, por
exemplo, uma música como quiser. O musicoterapeuta poderá tocar e cantar essa
música de diversas maneiras, escolhendo, evidentemente, uma forma que seja a
mais adequada para interagir com o paciente ou para alcançar os objetivos que
considere necessários: que é o que constitui a técnica – como o terapeuta vai
tocar ou cantar. Ou, ainda pode fazer intervenções, caso considere necessário.
Mas, cabe ressaltar que aqui maior ênfase será dada à exploração musical e à
audição como experiência, pois muitos têm sido os estudos sobre a recriação,
improvisação e composição musicais. No entanto, cenas clínicas destas
experiências irão ilustrar alguns aspectos específicos.

Sobre a Exploração Musical


A única referência sobre a experiência de exploração musical em
musicoterapia encontrada na literatura da área com a qual tenho contato, tanto
brasileira como estrangeira, vem do Modelo de Improvisação em Musicoterapia
de Gertude Orff (Bruscia, 1987, p. 231) onde o trabalho do musicoterapeuta é
dividido em três partes: antes da sessão, durante e depois da sessão.
Nesse modelo, durante a sessão, a fase de explorar é diferente das outras
porque as fases iniciais são planejadas pelo líder, ou terapeuta, e a de exploração
envolve o grupo tocando de uma forma espontânea. Enquanto nas fases
anteriores o grupo tem que ‘completar’, na fase de exploração o grupo se
movimenta de uma forma espontânea.
Em primeiro lugar cabe ressaltar que Gertude Orff se refere a grupo; em
segundo lugar se observa que se trata de uma fase que faz parte do modelo, ou
seja, que é pensada para levar o grupo a “responder criativamente a uma ideia
germinal”, inicial (ibid., p. 245).
A minha necessidade de estudar e nomear a exploração musical, antes
mesmo de conhecer a exploração descrita por Gerturde Orff, adveio de pesquisa
realizada sobre “As Experiências Musicoterápicas no Curso de Musicoterapia”
do Conservatório Brasileiro de Música e da minha prática clínica.
De 2000 a 2002 fiz uma pesquisa sobre “As Experiências Musicoterápicas
no Curso de Musicoterapia” do Conservatório Brasileiro de Música54. Para a
realização dessa pesquisa os dados a serem objeto de análise seriam os vídeos de
dez sessões semanais, cada uma delas liderada por um dos alunos do grupo
atuando como musicoterapeuta de seus colegas de turma, e com a ordem de
atuação escolhida previamente por sorteio.
No estudo dos dados que constavam dos dez vídeos, feito por uma equipe
de pesquisa formada por mim junto com sete alunos/pesquisadores55, percebi
que, em alguns momentos, os alunos/pacientes paravam para observar, manusear
e tocar de diversas formas o instrumento que tinham nas mãos. Era uma outra
relação com o instrumento. Eles não estavam se expressando, mas, sim, tinham
uma atitude de introjeção, de observação e de exploração das possibilidades
sonoro/rítmicas/tímbricas do mesmo. A partir daqui constatei ser a exploração
uma experiência musical e considerei importante, depois de muito observar
como isto acontecia, a partir do estudo dos vídeos da pesquisa, de vídeos da
prática clínica e da minha observação nas sessões clínicas, definir a exploração
musical como a seguir:

Entendo a ‘exploração’ de instrumentos, de voz, ou do corpo


como instrumento, como uma das formas de utilização
sonoro/rítmico/melódica/harmônica que, em muitos momentos,
como no início do processo ou de uma sessão, o
musicoterapeuta propõe ou o paciente escolhe porque pode
proporcionar: uma melhor aproximação com os instrumentos
musicais, um ‘aquecimento’ para o início de uma sessão, um
momento consigo mesmo para uma abertura posterior sonoro
musical em direção ao musicoterapeuta ou a outros participantes
de um grupo, o desenvolvimento da percepção auditiva/visual e
tátil ou, ainda, outros aspectos específicos que possam ser
desenvolvidos, como o prazer, por exemplo (Barcellos, 2001a).

Posteriormente, na prática clínica com crianças e adolescentes com


Doenças Renais Crônicas, realizada no momento da sessão de diálise, verifiquei
que, realmente, nas primeiras sessões, ou em alguns momentos do início das
sessões, os pacientes se concentravam em observar/manusear/explorar os
instrumentos que tinham nas mãos, como se estivessem conhecendo os mesmos,
através da exploração de suas possibilidades sonoras, tímbricas, rítmicas e das
sensações visuais, auditivas e táteis que eles possibilitavam. Acontece que
muitos desses instrumentos, no início do processo lhes eram desconhecidos pois
tinham sido construídos por outro paciente56. Aí percebi que eles precisavam de
tempo para ter um contato mais próximo, com aquele objeto sonoro que teriam
para tocar.
No entanto, o musicoterapeuta deve estar atento para como é feita esta
exploração, pois ela pode também representar defesa ou resistência, cabendo ao
musicoterapeuta identificar a serviço de quê está esse momento.

Sobre a audição musical


Cabe discorrer-se, ainda que resumidamente, sobre a audição musical
empregada na musicoterapia receptiva — cujo melhor exemplo é o Método
Bonny de Imagens Guiadas e Música (Bonny Method of Guided Imagery and
Music – GIM). Contudo, este método não será, aqui objeto de estudo, pela sua
extensão e profundidade, embora empregue essa técnica57, mas de forma muito
específica, diferentemente do seu emprego na musicoterapia brasileira, onde é
utilizada em determinadas situações, solicitada pelo paciente ou trazida pelo
musicoterapeuta.
À primeira vista, trata-se da técnica mais fácil de ser utilizada. Considero
isto um grande engano. Percebe-se que, frequentemente, os musicoterapeutas a
utlizam sem qualquer critério ou, tendo como tal, a preferência do paciente.
Considero que não se pode falar sobre musicoterapia receptiva sem
mencionar a psicanalista e musicoterapeuta francesa Édith Lecourt que declara
existirem “duas facetas mais imediatamente acessíveis da experiência musical: a
audição de músicas e a produção musical, sendo estas que são encontradas na
base das duas grandes categorias de métodos: musicoterapia receptiva e
musicoterapia ativa” (2014, p. 100).
Contudo, o que nos interessa no trabalho de Lecourt, é que ela tem critérios
claros para a utilização de músicas a serem trazidas para os pacientes. Afirma a
autora que a musicoterapia receptiva não utiliza uma farmacopeia musical e que
as obras são antecipadamente escolhidas. Pode-se perceber que esta afirmação
sublinha a necessidade de que a escolha de obras a serem ouvidas pelo paciente
deve ter critérios claros.
Lecourt apresenta quais são os critérios que devem nortear essa escolha,
afirmando que os mesmos vão depender de alguns aspectos como: “[...] da
cultura musical do terapeuta (influenciada pelo seu próprio gosto musical); da
cultura da pessoa, de sua idade, de sua eventual formação musical, de suas
dificuldades, do seu estado atual no momento da sessão, e dos objetivos
terapêuticos” (ibid, p. 101-102). E termina com uma frase que ilustra o que
sempre tenho dito em relação à musicoterapia receptiva: “Isso mostra a
complexidade dessa escolha”! (ibid., p. 102).
E, para completar, escreve: “E ainda resta um aspecto desconhecido – o
que se passa na cabeça do sujeito durante a audição da música...” (idem,).
Impossível saber!
Mas, voltemos aos critérios apresentados por Lecourt:

da indução musical
uma escolha com critérios relacionais
uma escolha com critérios musicais

Para explicar o primeiro critério, que faz uma indução musical, a autora se
refere à ‘lavagem cerebral’ ou, ‘manipulação musical’, que o exército, a Igreja,
algumas seitas e certos regimes políticos fizeram através dos tempos, e fazem
ainda hoje. Na abordagem clínica, essa indução, ou sugestão, pode ser
facilmente associada à música para induzir um comportamento58. A segunda
escolha, a partir de critérios relacionais, apoia-se nos aspectos da relação
terapeuta-paciente e aqui Lecourt aponta principalmente musicoterapeutas que se
fundamentam em uma teoria psicanalítica, como é o seu caso.
A segunda escolha, a partir de critérios relacionais, apoia-se nos aspectos
da relação terapeuta-paciente e aqui Lecourt aponta principalmente
musicoterapeutas que se fundamentam em uma teoria psicanalítica como é o seu
caso.
Também existem critérios musicais de escolha, como aquele que é feito
“para evitar uma subjetividade grande demais da parte do terapeuta, sendo uma
das possibilidades retornar à própria música, a seus componentes, e de ficar mais
próximo desta forma de objetividade” (ibid, p. 103), exemplificando com a
utilização de um parâmetro que seria o de uma música executada por um
conjunto, justificando que a centralidade da terapia é a relação. Assim, uma obra
para quarteto ou uma sinfonia ilustram bem a questão: na primeira, com um
pequeno grupo, trazendo a intimidade da relação entre os componentes que
formam esse grupo, e na sinfonia, o anonimato da orquestra, constituída por
muitos componentes. Ainda se refere ao concerto, que sempre tem um solista
que é confrontado à orquestra, o que traz uma dificuldade para o indivíduo de se
afirmar nesse quadro.
Mais sutilmente, afirma Lecourt, o musicoterapeuta pode se apoiar na
análise clínica da estrutura musical: o ritmo mais ou menos próximo dos ritmos
biológicos, a qualidade dos timbres, a distância instrumental ou próxima da voz,
as frequências e outros parâmetros. A autora ainda se refere à duração da peça
escolhida para audição.
Esse foi um dos parâmetros musicais utilizados para fazer a escolha de
músicas a serem empregadas na pesquisa realizada com gestantes com pré-
eclâmpsia internadas na enfermaria de Gestantes da Maternidade Escola da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ME-UFRJ), com o objetivo de avaliar o
impacto da musicoterapia nos níveis de tensão arterial dessas gestantes59. Como
nenhuma pesquisa foi encontrada sobre o tema no levantamento bibliogáfico
realizado, optou-se pela pré-testagem do desenho clínico no período de três
meses. Como metodologia desse Projeto Piloto decidiu-se pelo modelo de
“sessão estruturada” (Bruscia, 1987, p. 527), constituindo-se de duas fases:
musicoterapia receptiva: audição de músicas eruditas (relaxamento e
consciência da respiração); e musicoterapia interativa (Barcellos, 1984a),
constando principalmente de recriação musical para possibilitar a expressão das
participantes (preferências musicais e motivações internas).
Na aplicação da musicoterapia receptiva (com a utilização de escuta de
músicas eruditas escolhidas pelos musicoterapeutas, portanto, presume-se,
desconhecidas das pacientes) o objetivo principal era o relaxamento, através da
conscientização do ritmo respiratório. A escolha desse desenho apontou para a
necessidade do estudo de repertório, já que se decidiu utilizar músicas eruditas
na parte receptiva da sessão. Para isto, foi feita uma ampla análise musical do
repertório escolhido pela equipe durante três meses, pensando-se
especificamente no tipo de pacientes e nos objetivos dessa utilização, e 20
músicas foram escolhidas para serem empregadas. Criamos uma grade para fazer
um estudo comparativo entre as músicas escolhidas levando em consideração
parâmetros como: tom, modo, andamento, compasso, compositor, época,
intérprete, acompanhamento, duração e, se com letra, em idioma estrangeiro.
Um aspecto que foi por nós considerado como sendo muito importante foi o
andamento, por dois motivos: o primeiro deles porque o cruzamento deste com o
Modo pode evocar alegria ou tristeza (Gagnon, L.; e Peretz, I., 2003) e, por outro
lado, porque ainda o andamento deveria estar próximo da frequência cardíaca
que normalmente se tem quando em repouso: entre 60 e 80 bpm, para deixar o
paciente numa zona de conforto. Assim, algumas músicas que tinham várias
versões eram escolhidas pelo tempo de duração, o que apontava para um
andamento mais, ou menos, rápido. Ainda cabe explicar por que músicas
eruditas: principalmente por serem, como afirmado acima, presumivelmente,
desconhecidas das pacientes. Sendo nosso objetivo o relaxamento, o que
queríamos evitar era que as músicas trouxessem situações anteriores, já vividas
pelas pacientes, o que as músicas preferidas certamente fariam.
Cabe, ainda, observar-se que, apesar deste trabalho ter sido realizado em
uma maternidade pública, as pacientes aceitaram a introdução de músicas
eruditas. Mais do que isto, mesmo que nada tenha sido comentado pelos
musicoterapeutas acerca do emprego dos dois diferentes tipos de músicas
(populares e eruditas) e da expressão e escuta, uma paciente fez, ouvida por nós
como portavoz do grupo, um comentário que surpreendeu os musicoterapeutas
dizendo que “tinha música para dizer o que queriam” (a recriação de músicas
populares) e “música para relaxar” (a audição das eruditas).
Tem-se, aqui, um exemplo claro da aceitação da introdução de novas
“avenidas musicais” em um espaço terapêutico, proporcionando novas
experiências.
A ordem da aplicação da musicoterapia receptiva e interativa na sessão
seria de acordo com a percepção do musicoterapeuta, isto é, do que ele
considerasse mais importante para as pacientes naquele dia, dependendo do
estado de ânimo das mesmas.

A recriação de músicas da cultura/preferência dos pacientes


O musicólogo britânico Thurston Dart, na sua obra Interpretação da
Música (1990, p. 3), refere-se a dois tipos de artes: as que são “criadas em
definitivo” (arquitetura, escultura e cinema), que são as que permanecem no
espaço, e “as que precisam ser recriadas para serem vividas”, que são as que
acontecem no tempo como é o caso da música, da dança e do teatro.
Muitos são os musicoterapeutas que têm técnicas as quais se tornam o
centro de seus trabalhos clínicos, até por conta da área ou dos pacientes que
atendem, como é o caso da psicóloga e musicoterapeuta Marly Chagas que
trabalha, principalmente, com pacientes adultos neuróticos e que privilegia a
recriação de canções na sua prática clínica. No texto denominado “Cantar é
mover o som”, elaborado para o III Fórum Paranaense de Musicoterapia e
publicado nos anais desse evento, Chagas (2001) apresenta exemplos clínicos
absolutamente relevantes para que se tenha uma maior compreensão tanto dos
pacientes que trazem as canções, como da utilização destas em terapia.
Ainda no Brasil, encontramos o artigo “Interjogo de Imaginação e
Emoção”, da musicoterapeuta Rosemyriam Cunha et al.60, que apresenta “um
estudo de caso que busca analisar a relação entre a narrativa musical de uma
senhora idosa e sua história de vida” (2006, p. 89). Neste estudo, as autoras
percorrem o processo musicoterapêutico de “Chiquita”, trazendo as letras das
canções por ela cantadas e analisando as letras das mesmas em relação à história
de vida da paciente e à sequência em que foram cantadas, mas sem se referir aos
aspectos musicais que “acompanham” estas letras.
Nos trabalhos que utilizam a canção acredito que seria de extrema
importância que uma análise musical e/ou, ainda, musicoterapêutica,
acompanhasse a análise das letras dessas canções. Muitas questões poderiam ser
levantadas: haveria, musicalmente, um fio condutor das canções numa sessão?
Num processo terapêutico? Existem recorrências musicais na recriação de
canções por um paciente? Existem recorrências musicais nas canções cantadas
numa sessão? Estas são recorrentes no processo musicoterápico? Seria possível
se articular estas recorrências com as histórias do paciente? Aqui se teria uma
valiosa fonte de pesquisa para trabalhos que priorizam a recriação da canção em
musicoterapia.
A análise de canções, incluindo as linguagens verbal e sonoro/musical,
numa dinâmica interna de integração, poderia, inclusive, revelar aspectos a
serem trabalhados e ressignificados nas sessões, levando a uma melhor
compreensão do mundo dos pacientes e facilitando o desenvolvimento de
processos musicoterapêuticos.
Aqui as musicoterapeutas se referem exclusivamente à recriação de
canções mas, deve-se sinalizar que também existem pacientes que recriam
músicas sem letra. No entanto, em geral são pacientes que já tiveram uma
experiência formal com música, previamente. Ou tocam um instrumento de
ouvido, ou tiveram, no mínimo, uma iniciação musical. Aqueles que trazem uma
formação, de qualquer nível, fazem recriações inclusive de músicas eruditas,
como tive a ocasião de constatar, com dois pacientes anteriormente por mim
atendidos.

Exemplos clínicos de experiências de recriação musical


A partir daqui se pretende mostrar brevemente, exemplos clínicos nos
quais foram utilizadas músicas da cultura e da preferência dos pacientes,
escolhidas por eles ou trazidas pelo(s) musicoterapeuta(s), entendendo-se que a
“Empatia Cultural” — conceito cunhado pelos autores Lingle & Ridley (1996)61
— pode ajudar o terapeuta a entender a experiência cultural implícita na música
do paciente e, assim facilitar a comunicação, o estabelecimento do vínculo
terapêutico, a expressão de conteúdos internos e as mudanças terapêuticas na
principal forma de musicoterapia aplicada no Brasil: a Musicoterapia Interativa,
tudo isto acontecendo em diferentes espaços, diversas áreas de aplicação e por
meio de distintas experiências musicais/culturais.
A recriação de canções infantis, as intervenções musicais do
musicoterapeuta e a improvisação musical “possibilitando o contato”
e favorecendo o estabelecimento do vínculo terapêutico
Uma das canções infantís mais utilizadas pelas crianças em todos os
espaços, pelo menos no Rio de Janeiro, é O sapo não lava o pé62. No entanto,
muitas vezes as crianças têm (e pacientes em geral) o que denomino “um contato
exaustivo” com determinadas canções (Barcellos, 2011a) porque as repetem por
muitas sessões e, até, muitas vezes numa mesma sessão, não aceitando que se
cante outra63. Mas, mesmo sabendo que a repetição é importante, depois de
algum tempo, quando se percebe que um paciente reitera em determinada
música, é necessário que se tente entender a serviço de quê está essa repetição. O
paciente pode estar querendo expressar algum conteúdo interno, pode repetir
pelo prazer de ouvir uma música preferida ou, ainda, pode estar resistindo à
terapia. Quando isto acontece, deve-se ter estratégias para tentar introduzir,
paulatinamente, aspectos que mudem qualquer parâmetro, seja na música ou na
letra para que, mesmo repetindo, se possa levar o paciente a ‘novas avenidas
musicais’, no dizer de Lee (2003).

Cena clínica 14
No atendimento de uma menina de três anos, quando percebi que ela se
mantinha sempre cantando a mesma música, O sapo não lava o pé, comecei a
fazer intervenções musicais no violão (Barcellos, 1992c, p. 20), fazendo
mudanças no andamento, na intensidade, na harmonia e na forma de tocar: do
acompanhamento “batido” à forma dedilhada e vice-versa, e também na letra da
música, tudo isto no sentido de ‘convocar’ a paciente para entrar em contato e,
paulatinamente, construir a relação terapêutica, o que se percebe foi acontecendo
através do olhar e do sorriso64.
Para isto, improvisei a letra, mantendo a linha principal da melodia com o
objetivo de manter um aspecto conhecido para dar previsibilidade, para que ela
pudesse se manter numa zona de conforto. Outro objetivo era trabalhar o
esquema corporal já que se tratava de uma menina que acabara de completar três
anos. Devese lembrar que o atendimento era feito durante a diálise e se tratava
de um início de trabalho onde se pretendia o estabelecimento do vínculo (3a
sessão). A letra original da música:
O sapo não lava o pé

O Sapo não lava o pé


Não lava porque não quer
Ele mora lá na lagoa
Não lava o pé porque não quer,
Mas que chulé!

Aqui a letra que foi sendo improvisada aos poucos, ou seja, em diferentes
sessões:

O sapo não lava a testa


Só lava quando tem festa
O sapo não lava a testa
Só lava quando tem festa

O sapo não lava o nariz


Não lava porque não quer
O sapo só lava o nariz
Com a água do chafariz

O sapo não lava a orelha


Não lava porque não quer
O sapo só lava a orelha
Com um caco de telha

O sapo não lava a mão


Não lava porque não quer
O sapo não lava a mão Não
lava, não lava não!

O sapo não lava a barriga


Não lava porque não quer
O sapo só lava a barriga
Quando tem lombriga!
A letra ia abordando partes do corpo e engajando a paciente na atividade
porque muitas vezes era ela quem escolhia a parte que se cantava ‘a não ser
lavada’. Mas, sem dúvida, o objetivo mais importante era o contato através da
música e o estabelecimento paulatino do vínculo terapêutico. Além disto, aqui
deve ser destacado o aspecto lúdico da atividade que atraía não só a atenção da
paciente, mas, também, de outros pacientes que se concentravam no que
acontecia e, eventualmente participavam, como, também os profissionais. No
momento em que não encontrávamos a rima para determinada parte do corpo as
enfermeiras ajudavam, como no caso de orelha (caco de telha) e barriga
(lombriga).
Com relação ao estabelecimento do vínculo terapêutico cabe assinalar que,
se um trabalho de microanálise65 fosse feito sobre o vídeo gravado nessa 3a
sessão, apareceriam as evidências da importância das intervenções musicais do
musicoterapeuta sobre os resultados no aumento da frequência do contato
através do olhar e do sorriso da paciente dirigidos à musicoterapeuta, das
interações musicais com a mesma, e no tempo de manutenção dessas interações.
Isto poderia atestar o paulatino estabelecimento da relação ou do vínculo
terapêutico, pois haveria um parâmetro em relação ao ponto de partida, antes das
intervenções do musicoterapeuta. Cabe ressaltar que o olhar é apresentado por
Rheingold como sendo o fator que “constitui a raiz da sociabilidade humana e
que a exploração infantil do entorno é uma atividade primária básica” (citado por
Ajuriaguerra, 1976, p. 71).
Vários estudos sobre microanálise são apresentados no livro sobre o tema,
editado pelos musicoterapeutas Thomas Wosch, alemão, e Tony Wigram, inglês,
(2007).

A Recriação do “pagode romântico” para expressar o luto pela morte.


O “pagode” é um estilo de samba muito utilizado pelos pacientes para
expressar seus sentimentos. O “pagode romântico”, que se tornou muito popular
nos anos 90, difere do pagode original porque tem letra romântica e a introdução
de instrumentos eletrônicos.

Cena Clínica 15
Gabriela, uma menina de 12 anos, com uma doença renal crônica e um
problema neurológico que resultava em crises convulsivas, algumas vezes nos
dizia diretamente, no momento em que entrávamos na sala: “Hoje eu não quero
música”. Pode-se entender esta fala de Gabriela, a partir do princípio de
“distância simbólica” trazido por Jaakko Erkkilä (2011, p. 201), citando a
musicoterapeuta também finlandesa Heidi Ahonen-Eerikainen66. Neste, a autora
prega que o musicoterapeuta que trabalha com pacientes jovens tem que
entender que estes podem não estar prontos para fazer conexões entre a sua
própria realidade e a simbólica, (relacionada à música), que carrega uma
expressão emocional. As conexões podem estar muito claras para o terapeuta,
mas o paciente pode necessitar de alguma distância que pode servir como um
‘abrigo simbólico’ contra experiências demasiadamente dolorosas ou
insuportáveis (idem).
Considero que muitas vezes o paciente pode se utilizar da “distância
simbólica” como proteção, quando ouve uma música (no caso trazida pelo
musicoterapeuta ou, até por outro paciente – quando em grupo), que tem um
significado para ele, ou seja, que por estar ligada a pessoas específicas, fatos ou
situações vividas anteriormente, vem carregada de emoções para as quais nem
sempre ele está preparado para reviver/sentir67.
É frequente acontecer conosco, em contextos não terapêuticos, de não
conseguirmos ouvir uma determinada música que nos traz um significado, seja
positivo ou negativo. Nem sempre estamos preparados para reviver uma situação
anterior, e estar submetidos à emoção, ou reviver a emoção que essa música
carrega. Frequentemente isto acontece e nos faz desligar o rádio, TV ou qualquer
outro meio (iPods, por exemplo), ou mudar de estação, faixa, enfim, utilizando
um mecanismo de proteção, um ‘abrigo simbólico’, nas palavras de Ahonen-
Eerikainen (ibid).
Mas, voltando-se à situação de Gabriela, deve-se assinalar que mesmo ela
dizendo que não queria música, tão logo nós começávamos a cantar no outro
lado da sala, ela participava da improvisação ou re-criação, caracterizando
uma “participação periférica legítima”, conceito cunhado pela educadora e
antropóloga americana Jean Lave, e pelo cientista da computação suíço-
americano Étienne Wenger (1991, p. 29), que se refere aos modos de
pertencimento nos grupos de trabalho. Esse processo de atuação nos grupos
passa pela fase inicial, a denominada “participação periférica legítima” que,
paulatinamente, transformase em uma participação plena. É também importante
mencionar o pensamento do educador britânico Harry Daniels, com relação a
esse conceito, que afirma que as barreiras à participação podem ser tanto sociais
como biológicas. Ele afirma que “Tipos específicos de inadequações podem
gerar problemas de participação numa sociedade onde a maioria dos
participantes não experimenta distúrbios similares” (2003, p. 65). Poderia ser o
caso de Gabriela, cujas crises deixavam as crianças/adolescentes da enfermaria
bastante assustadas.
Mas, ainda com relação à participação de Gabriela, cabe relatar uma
situação na qual a menina, em um determinado dia dirigiu-se a nós da sua
poltrona, do outro canto da sala, sugerindo que cantássemos uma canção para
Susana. Não tínhamos ideia sobre o que tinha acontecido, mas suspeitávamos
que esta última tinha ido a óbito, pois sua poltrona estava vazia. Imediatamente
Gabriela começou a cantar um “pagode romântico”, cuja letra se refere à
separação de um casal amoroso, mas, que, naquele contexto, era adequada para
expressar o luto pela morte da amiga. Era um dia chuvoso, cinzento, e as luzes
da enfermaria estavam apagadas, deixando a sala na penumbra, também em um
sentido metafórico. Os outros pacientes a acompanharam cantando em
pianíssimo, como a banda brasileira canta a introdução do referido pagode.
Abaixo a letra.

Não Tem Perdão


Valtinho Jota / Sérgio Jr. (2007)

Choro toda vez que entro em nosso quarto,


Toda a vez que olho no espelho,
Toda a vez que vejo o seu retrato.

Eu não tô legal,
Não vai ser fácil de recuperar, vontade de viver tô
Sem astral,
Por falta de você.

Pior que nada que eu faça vai mudar sua decisão de separação,
Eu reconheço os seus motivos, tá coberta de razão,
Pra você caso de traição não tem perdão.

Sei que é tarde pra me arrepender,


Inconsequente, fraco, eu traí você,
Sabemos bem quem vai sofrer,
Hoje só Deus sabe a minha dor,
Eu tive que perder pra dar valor,
Não serei o mesmo sem o teu amor.

A re-criação musical de canções, como na situação anterior, é muito


utilizada em todas as áreas de atuação da musicoterapia brasileira. Através das
canções populares da preferência dos pacientes estes podem se expressar, ‘sem
usar as próprias vozes’, mas cantando/contando o que querem ou precisam,
através das vozes dos compositores, para falar numa linguagem figurativa.

A canção é um fenômeno tão difundido por todos os tempos e


culturas que pode sem dúvida ser considerada como um dos
verdadeiros universais da vida humana. Mesmo sendo por vezes
restrita a especialistas, ou vindo acompanhada de sons musicais
elaborados com apoio de tecnologias complicadas, a canção
termina por existir na experiência de todos (Finnegan, 2008. p.
15).

Esta declaração de uma das maiores especialistas em poesia oral, com


relevante contribuição na área de etnomusicologia, ratifica a utilização da canção
em todos os contextos, incluindo a musicoterapia. Contudo, algumas vezes os
pacientes repetem suas canções preferidas de uma forma ‘mecânica’68.
Assim, para evitar essa forma ‘mecânica’ de cantar, no trabalho realizado
com os pacientes em diálise utilizamos uma estratégia com o objetivo de
provocar a criatividade: levar os pacientes à improvisação e à composição,
aproveitando situações, fatos, ou quaisquer acontecimentos que ocorressem na
sala, sem nenhuma exigência estética e considerando o processo mais importante
que o produto, ou os resultados.
Mas, cabe enfatizar que considero que a canção cumpre diferentes funções
e se presta a distintas aplicações em musicoterapia: por se tratar de uma
experiência musical muito potente para os pacientes, por constituir-se como um
terreno cultural comum onde pisam musicoterapeuta e paciente, e por
possibilitar um “transbordamento natural e irrestrito da expressão humana”,
ainda parafraseando Finnegan (2008, p. 16).
Os musicoterapeutas Luís Antonio Milleco Filho, Maria Regina Esmeraldo
Brandão e Ronaldo Pomponet Millecco no livro É preciso cantar:
musicoterapia, cantos e canções, (2001) dedicam um capítulo sobre “As funções
do canto”, no qual listam, explicam e exemplificam sete tipos de funções, estudo
que muito contribui para o trabalho do musicoterapeuta.

A recriação musical das mães de bebês prematuros: sobre a


previsibilidade e imprevisibilidade de vida versus a imprevisibilidade
e previsibilidade da música.
Em 2003 participei como supervisora da prática clínica que se iniciava,
como objeto de uma pesquisa da musicoterapeuta Martha Negreiros de Sampaio
Vianna (et cols.) (2011), com mães de bebês prematuros na Maternidade Escola
da UFRJ. Nesse setting, percebi que essas mães se encontravam no que
denominei “situação de risco emocional” (Barcellos, 2004a), quase sempre
provisório, por ser decorrente da imprevisibilidade do momento, representada
pela expectativa sobre o que aconteceria com seus bebês. A experiência musical
mais utilizada por elas era a recriação de canções populares, sendo que a maioria
delas fazia parte de suas preferências.
Entendi, no trabalho com essas mães, que elas não improvisavam
musicalmente por necessitarem de um setting seguro, para dar-lhes conforto,
acolhimento e colo, para que pudessem se fortalecer e dar o colo e o continente
necessário aos filhos. Esse “holding” necessário para que pudessem acolher seus
bebês — e aqui se poderia falar em um “‘holding’ musical”69 — era dado pelos
musicoterapeutas e pela utilização das canções preferidas. Mas, não só as
canções preferidas eram utilizadas mas, também as familiares, que são
conhecidas, mas nem sempre preferidas. No quadro abaixo assim se refere
Bruscia (1987, p. 236), aos materiais familiares e musicais, fazendo menção ao
Método de Gertrud Orff:
Se nos detivermos na análise desse quadro, elaborado a partir de afirmação
de Bruscia, podemos ter a dimensão da complexidade e potência da música.
Estudos mais aprofundados de todas essas questões e a utilização delas na
prática clínica têm nos levado a ampliar os cânones da musicoterapia e a alargar
as possibilidades do seu emprego como elemento terapêutico. As evidências
dessa utilização têm servido para, cada vez mais, termos a compreensão de que
são os estudos da música, em relação ao que ela pode provocar no ser humano, e
como, que vão levar a musicoterapia a um patamar diferente. E, sem dúvida,
estes estudos estão postos, principalmente, nas mãos dos neurocientistas, dos
estudiosos da psicologia da música, dos musicoterapeutas musicólogos ou seja,
daqueles que têm maiores possibilidades de compreensão não só da música, ou
da teoria da música mas, também, da sua relação com o ser humano.
É não só na música que o musicoterapeuta traz para os pacientes mas,
também, na interação musical musicoterapeuta-paciente, que esses materiais são
trazidos, trabalhados, e trocados. E é esta trama, complexa e potente, que se faz
terapêutica.
Mas, voltando-se às mães de bebês prematuros, pode-se dizer que é esta
potência da música e a sua possibilidade de dar holding, que transforma a
recriação de canções na experiência musical que essas mães mais utilizam e na
técnica que se constitui como a mais eficaz para ser empregada pelos
musicoterapeutas nesse tipo de trabalho e em outros contextos clínicos desta
natureza. É a familiaridade da música — na re-criação dessas canções populares,
com características como previsibilidade melódica, harmônica e nas rimas, como
a elas se refere Richard Middleton (1990), como as de Roberto Carlos, por
exemplo —, que se contrapõe à imprevisibilidade do momento e lhes traz o
conforto imprescindível.
Middleton (ibid) analisa uma canção popular e mostra os aspectos musicais
que Adorno aponta como familiares e previsíveis, como:

constituição de 32 compassos (com quatro frases de oito compassos) num


padrão AABA;
extensão melódica;
progressões harmônicas;
harmonias previsíveis;
letras com rimas esperadas;
acompanhamentos confortáveis – que trazem principal mente uma
harmonia da tônica, dominante e subdominante, cons tituindo-se como a
chamada “linguagem musical ‘natural’”; e
elementos repetitivos em todas essas instâncias, que caracterizam uma
típica canção Tin Pan Alley70, estilo balada.

Cabe ressaltar que a este tipo de canção pertencem muitas das músicas que
as pacientes da Maternidade Escola da UFRJ cantam, bem como muitos outros
tipos de pacientes em sofrimento psíquico e físico, e em situações de fragilidade
e risco emocional, necessitando de acolhimento. Assim, a crítica de Adorno, que
tem como argumento central que a música, da maneira que é composta, afeta a
consciência e é um meio de controle social pela sua familiaridade e
previsibilidade, neste contexto, e exatamente pelos mesmos aspectos, configura-
se como um importante holding. Negreiros (2011) se refere à importância de os
musicoterapeutas darem o holding às mães dos bebês prematuros, para que elas
tenham condições de dar o holding a seus filhos.
Discuto, contudo, que mesmo que estas mães tenham absorvido um padrão
musical midiático empobrecido, do contexto social do qual participam, elas
podem ressignificá-lo e ressubmetêlo a reapropriações e releituras
idiossincráticas, na interação com o próprio grupo com quem partilham os
mesmos problemas e a mesma dor, e com os terapeutas, na escuta dessa dor.
Assim, penso que, por incoerente que possa parecer, e deixando de lado a causa
da crítica de Adorno e de muitos outros autores à indústria cultural, a
familiaridade e a previsibilidade por eles criticadas na música popular acabam
por ser úteis em um contexto terapêutico como este, onde há musicoterapeutas
atentos para proporcionar a introdução de elementos de variação.
É, portanto, na especificidade da relação musicoterapeuta/ paciente que se
faz possível tanto o acolhimento quanto a ressignificação no campo da
transferência. São ainda os musico terapeutas que proporcionam uma renovação
do clima acústico [sonoro/musical] e da sensibilidade musical, trazendo a
possibilidade de uma transformação significativa, com a introdução de
determinados elementos musicais que conservam o mais intacto possível o seu
modo específico e único de impactar a mente e os sentidos dessas mães, como é
o caso dos acalantos, por exemplo, que fazem parte do mundo sonoro do
momento que está sendo por elas vivido.
Assim, os musicoterapeutas, através da execução de instrumentos de
percussão, mantêm a base rítmica e, por meio das letras, acentuam, ao mesmo
tempo, a familiaridade, a previsibilidade e a confortabilidade dessas canções,
possibilitando o acolhimento e se constituindo como o “continente
sonoro/musical”. Mas também, pela diversidade tímbrica das vozes, trazem a
diferença; pela utilização de instrumentos harmônicos como o violão e o teclado,
aí execu tados com grande habilidade musical71, enriquecem e rein ventam
harmonias, renovando o acompanhamento e improvisando variações. Com isso,
impedem a “demolição da musicalidade”, na concepção de José Jorge de
Carvalho (1999, p. 68), num espaço onde o espontâneo e o “erro” têm lugar, e
onde tanto o acolhimento como o instigante pode acontecer, elevando a recriação
da canção musical ao patamar de técnica mais adequada para ser utilizada com
as mães de crianças prematuras e com tantos outros tipos de pacientes que
necessitam desse mesmo acolhimento (Barcellos, 2004a).
Esta atuação dos musicoterapeutas está em ressonância com o pensamento
de Collin Lee (2003), já apresentado em outro espaço deste trabalho, sobre o fato
da introdução de novas avenidas musicais em processos terapêuticos onde existe
a repetição ou a utilização unicamente de músicas que podem ser consideradas
como pertencentes à indústria cultural72.
Assim, poder-se-ia dizer que em musicoterapia não existem músicas ou
sons bons ou ruins. Cabe ao musicoterapeuta partir do que trazem os pacientes
(quando trazem) e juntar a esta escolha aquilo que ele, (musicoterapeuta), pensa
que seja importante para que o processo possa ser direto, potente e poderoso,
para utilizar as palavras de Lee (2003), com o objetivo de facilitar o
desenvolvimento da terapia.
O trabalho do musicólogo e musicoterapeuta dinamarquês Lars Ole Bonde,
professor do PhD em Musicoterapia na Aalborg University, deve ainda ser
mencionado, por ser uma das maiores contribuições no campo da pesquisa da
música que se faz em musicoterapia. Em um artigo, publicado no importante
livro sobre pesquisa em musicoterapia editado pela musicoterapeuta
norteamericana Barbara Wheeler, Bonde (2005) parte da pergunta sobre ‘quando
e por que é relevante para musicoterapeutas e pesquisadores em musicoterapia
focalizarem seus estudos na análise do material musical’, para desenvolver o
capítulo em questão. Como transita tanto pelo domínio da musicologia como da
musicoterapia, Bonde afirma, com propriedade, que a pesquisa sobre música é
diferente para um musicólogo e para um musicoterapeuta. Para este último existe
mais sentido em estudar a experiência musical baseada nos diferentes aspectos
ou propriedades que podem influenciar o corpo, a mente e o espírito humanos,
levando-se em consideração o contexto cultural e social.
Seguindo o caminho iniciado no item sobre a recriação musical, com
relação à previsibilidade musical, considero que com os pacientes com doenças
renais crônicas deve acontecer o oposto, por estranho que possa parecer. Entendo
que a vida destes pacientes é, por um lado, altamente previsível pelo fato de eles
passarem durante 12 horas semanais “ligados” à máquina de diálise, da qual
dependem para sobreviver e que, mesmo existindo aspectos imprevisíveis e de
risco, como as múltiplas intercorrências clínicas e até a morte, estas são de certa
forma esperadas, por fazerem parte dos desdobramentos da patologia e, por isso,
parcialmente previsíveis.
Não só pela previsibilidade proveniente da ligação com a máquina, mas,
também, pelo contato diário com a canção popular ouvidas dos iPods e
computadores, muito utilizados pelo menos pelos adolescentes durante a sessão
de diálise, considero que, além do empoderamento73 destes pacientes, um dos
objetivos – que se configura como “o coração da clínica” para levar os pacientes
à criação de um novo discurso, organizador de “novas tramas de sentido”, no
dizer de Fiorini (1995, p. 20) –, é provocar e ativar uma capacidade humana que
está preservada: a capacidade de criar, tendo como objeto de criação, aqui, a
música, através da improvisação, referencial ou não referencial, e da
composição. Neste contexto há que se fazer um esforço para acreditar nessa
capacidade de criação, já que a doença é visível, inexorável e pode nos induzir a
não levar em conta aspectos da ordem da saúde, que devem ser considerados
como necessários para uma vida minimamente normal. Deve-se confiar na
afirmação de Sartre que “Em todo padecimento humano se encontra oculta
alguma empresa” (apud Fiorini, ibid, p. 24).
Erkkila (2011) também aborda a questão da criatividade, perguntando por
que esta é tão importante e, ao mesmo tempo respondendo que

É porque a criatividade está conectada ao processo simbólico e,


quando este está ativo, há sempre uma ligação direta com o
mundo emocional da pessoa. Praticamente, todos os problemas
de saúde mental são mais ou menos emocionalmente
relacionados e, assim, para se lidar com as emoções, é
importante se entrar no “mundo” de emoções, metáforas,
símbolos e associações – o preconsciente (Erkkilä, In:
Meadows, 2011, p. 200).

Assim, é necessário que se entenda quem é o paciente que se tem à frente


para decidir quais as experiências musicais mais importantes a serem propostas
para que ele/ela utilize, e que técnicas se apresentam como mais adequadas e
potentes para serem empregadas pelo musicoterapeuta que ainda tem que lidar
com os aspectos da música na execução destas e na compreensão daquilo que
elas ‘movimentam’ nos pacientes.

Da re-criação do RAP à “composição assistida”: musicoterapia na


favela
O RAP (Rhythm and Poetry) chegou ao Brasil no final da década de 80 e
muitos são os estilos dele derivados. As letras discutem temas relacionados à
periferia, ao estilo de vida, ao sistema e à policia.
Em 1993, oito meninos em situação de rua foram assassinados pela polícia
em frente à Igreja da Candelária no centro da cidade do Rio de Janeiro. Este fato
chocante me levou a propor a inserção da musicoterapia em uma Organização
Não-Governamental (ONG), em uma casa localizada na favela “Pavão,
Pavãozinho”, entre dois bairros nobres da cidade: Copacabana e Ipanema, o que
foi feito em coterapia com a musicoterapeuta Lenita Vieira Moraes.
Depois de lermos nos prontuários os dados da história de vida desses
meninos, que informavam, por exemplo, onde e por quanto tempo cada um tinha
‘morado’, na cidade do Rio de Janeiro74, decidimos fazer uma ‘entrevista’ para
saber das preferências musicais deles. No entanto, percebemos que aqui não
poderia ser feita a entrevista ‘formal’ mas, sim, que deveríamos nos adaptar às
condições deles. Decidimos, então, adequar a entrevista ao espaço, ao grupo,
enfim, de forma que pudéssemos ter as informações necessárias e de maneira
que eles pudessem responder75. Fomos fazendo as perguntas e cada um ia dando
as suas respostas. Cada um relatou as suas preferências musicais: RAP, Pagode,
Funk e “música lenta”, algumas destas já absorvidas pela cultura brasileira.
Eles tocavam instrumentos de percussão livremente e com muita
habilidade e re-criavam as extensas letras dos RAPs, seguindo o que ouviam do
grande rádio que sempre levavam para a sala da musicoterapia e mantinham
ligado em todos os encontros. Nós interagíamos com eles tocando instrumentos
de percussão e dançando, sem cantar, porque era impossível decorar as
intermináveis letras.
Eles usavam somente as vozes de outros compositores para expressar o que
queriam, sempre através da recriação dos RAPs. Decidimos, então, fazer
intervenções, com o objetivo de provocálos, para que eles utilizassem “as
próprias vozes” como seres sociais e políticos.
Um dia, um deles entrou na sala e nos disse: “Hoje eu tive um sonho”...
Imediatamente nós o incitamos a ‘inventar’ uma música para esta frase por duas
razões: nossa primeira intenção era levá-los a se expressarem com as próprias
vozes, num processo de “composição assistida”, já referida anteriormente, e a
segunda razão foi provocar a criatividade dos meninos “porque esta é conectada
ao processo simbólico” nas palavras do musicoterapeuta finlandês Jaakko
Erkkilä, citando Levin (In: Meadows, 2011, p. 200)76.
A seguir, letra e música dessa composição:

Cabe ressaltar que o samba não apareceu dentre as suas preferências, mas,
sim, na composição, confirmando a importância da cultura. Por outro lado,
‘ouve-se’ uma crítica ao fato de como o país trata a questão dos meninos ‘em
situação de rua’, o que talvez eles não conseguissem dizer verbalmente. Ou seja,
a música possibilitou que eles expressassem e criticassem o poder público pela
forma como viam e lidavam com a situação, através das suas próprias vozes, e
não mais através das vozes de outros compositores. A música aqui teve uma
função metafórica, isto é, possibilitou que eles dissessem através dela aquilo que
talvez não quisessem ou não pudessem dizer verbalmente.
Deve-se assinalar que desse projeto faziam parte várias atividades e que,
alguns dos menores foram encaminhados para trabalhar em diferentes lugares,
como experiência, dentre eles a companhia brasileira de petróleo. O projeto foi
interrompido com a invasão da casa por traficantes armados porque estas
crianças e adolescentes eram utilizados como “aviões” ou “burros”, levando as
drogas dos traficantes para os usuários. Nesse momento a casa foi fechada e o
projeto interrompido.

A composição como expressão do desejo

Cena clínica 15
No momento em que era sorteado o ‘amigo oculto’ para as festas de fim de
ano, uma paciente adolescente, portadora de doença renal crônica, perguntou-
me que presente eu queria ganhar. Imediatamente lhe devolvi a pergunta, mas
acrescentando que a resposta teria que ser cantada. Logo após a minha
intervenção, a paciente começou a cantar e foi criando a letra abaixo
apresentada. Cabe observar que a melodia é absolutamente simples e que, sem
dúvida, apenas existe para ‘carregar’ a letra daquilo que dificilmente seria dito
verbalmente.

O presente de Natal

Paula e Nina

10/12/2009 – 36a sessão

Nós queremos dois rins


Um pra Nina e um pra mim
Quem vai ser o doador
Não pode ser o vovô
Quem ‘tá disposto a doar
Pode vir me ajudar
..................... É só ligar
Mas não ligue a cobrar
Porque a conta vai estourar
E o meu pai não vai gostar
E vai muito reclamar
Mas vai gostar se eu transplantar

Paula era muito ativa em reclamar seus direitos e estava engajada em


conseguir um novo transplante porque, como dizem eles, ela “perdera” o
primeiro que havia sido feito e precisava se submeter novamente a esse
procedimento. Tinha, por isto, ido à TV para fazer pressão porque, no momento,
o principal hospital de transplantes no Rio estava com este serviço suspenso.
Assim, aproveitou para expressar o seu desejo de ter novamente a possibilidade
do transplante, não só para ela, mas, também, para a amiga que ainda não pudera
ter essa possibilidade.
A improvisação musical como elemento de estabelecimento e
fortalecimento do vínculo terapêutico entre terapeuta, membros da equipe e
pacientes.
Além da recriação musical, experiência que proporciona um engajamento
e interação de todas as pessoas que frequentam um mesmo espaço terapêutico,
como o caso da enfermaria de diálise da clínica que trabalhamos anteriormente:
médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, psicopedagogos, nutricionistas
e musicoterapeutas, pais e outros familiares, pacientes e empregados que
abastecem a enfermaria de material necessário ao trabalho, também a
improvisação musical possibilita esse engajamento e interação. E é sobre esta
última experiência musical, e técnica, que os musicoterapeutas mais têm se
debruçado com o objetivo de estudar e descrever seus processos. Obras inteiras
são a ela dedicadas. Por isto, pouco aqui será trazido neste sentido. Contudo,
talvez o inusitado da situação justifique a sua inclusão aqui.

Cena clínica 16
Ramon, como será chamado o paciente em questão, era portador de uma
Doença Renal Crônica e tinha 18 anos. Era atendido durante a sessão de diálise
e muitas vezes quando chegávamos na sala, Ramon era encontrado escutando
seu iPod. Muitas vezes, para que nos “visse”, perguntávamos o que estava
ouvindo e ele colocava um dos fones no ouvido de uma de nós77. Em uma
determinada sessão entramos e o encontramos com o iPod. Não me parece uma
boa estratégia se solicitar ao paciente que desligue o iPod. Além disto, é muito
difícil se competir com um iPod que tem qualquer música que o paciente queira
ouvir, com orquestras de todas as formações possíveis e com cantores que
trazem músicas de qualquer lugar do mundo. Enfim, considero quase
impraticável se competir mesmo com iPods pequenos (que podem ter até 800
músicas), carregando embaixo do braço apenas um violão! No entanto, temos
que ter ferramentas e estratégias para fazer com que a ‘nossa música’ seja mais
atraente que a dos iPods, embora isto possa parecer impossível!
Mas, voltando a Ramon, deve-se dizer que num determinado dia o
encontramos com o iPod ligado, ou, ligado ao iPod! Imediatamente
perguntamos como ele estava e ele, retirando o fone de um dos ouvidos
respondeu: “mais ou menos”. Perguntamos por que e ele disse: “porque hoje à
noite tenho prova de Química”. Perguntei: e você está preparado? E ele
imediatamente, sorrindo, respondeu que não. Continuei a falar sem dar tempo
de ele voltar com o fone para o ouvido: você sabe a Tabela Periódica? E ele
imediatamente respondeu: esse é um problema!
Pedi, então, à outra musicoterapeuta que fizesse uma harmonia em
“looping”, para facilitar a improvisação melódica com a voz, e comecei a
cantar, perguntando: “qual é o símbolo do Ferro”? E ele respondia.
Imediatamente a Mariana, a outra musicoterapeuta perguntava: e o símbolo do
Níquel? E ele respondia. Logo ele perguntava e uma de nós respondia. Acontece
que a nossa cultura de Química é bastante reduzida. A minha pelo menos! Mas,
aí surgiu uma situação nova: quando um de nós três não sabia, a enfermeira
respondia, de onde estivesse na sala. Como percebi que ela sabia tudo, quando
era a minha vez e eu não sabia (ou às vezes sabia, mas aproveitava para incluí-
la na atividade), eu cantava “e o símbolo do Titânio, Luna”? E ela, sempre
rindo, respondia, cantando.
Entendemos, a partir dessa situação, que além de Ramon estar sendo
preparado para a prova, a relação entre os quatro tomava uma nova forma e a
enfermeira me parecia bastante satisfeita por estar sendo incluída na atividade e,
principalmente, podia mostrar que sabia química mais do que nós, sem dúvida.
Mas, o importante é que esta pequena situação trouxe muitos ganhos para a
terapia: fortaleceu a relação entre o paciente e nós três; incluiu uma enfermeira
que nunca tinha participado conosco, sendo valorizada pelo fato de ela saber o
que não sabíamos, enfim, uma improvisação que musicalmente era simples mas
possibilitava muitos ganhos e nos mostrou, na prática, que o processo é mais
importante que o produto!
Temos como exemplo, aqui, que qualquer tema pode ser objeto de uma
improvisação: comidas, bebidas, cores, e qualquer que seja o assunto, podendo
contribuir grandemente para o estabelecimento e fortalecimento do vínculo
terapêutico, não só entre musico terapeuta e pacientes mas, também, em grupo.

A dança da cultura: a equipe de enfermagem e os pacientes


A dança não era uma atividade esperada nem pretendida, ainda falando
sobre os pacientes atendidos em musicoterapia no momento da diálise, devido
aos seus impedimentos físicos e à quase imobilidade que esta situação lhes
impunha. Contudo, registros feitos em vídeo mostram as enfermeiras dançando
livremente para os pacientes e, posteriormente, os próprios pacientes dançando
nas poltronas.
Certo dia, uma enfermeira começou a dançar e imediatamente propus que
fizéssemos um concurso de dança no que fui contestada por um paciente que me
perguntou: “como, se nós não podemos dançar”? Prontamente respondi que nós
não iríamos dançar, mas, sim, as enfermeiras, e que nós seríamos os juízes. Elas
dançaram — lindamente, diga-se de passagem — e nós acabamos escolhendo
uma como tendo sido a que melhor dançou. Isto parece ter sido a abertura
necessária para que a dança fosse mais uma das atividades a serem realizadas
por nós. A partir de então, não só as enfermeiras passaram a dançar quando as
músicas eram muito rítmicas, mas, também os pacientes moviam-se no ritmo,
dançando à sua maneira, e com as possibilidades que tinham, apesar de estarem
ligados à máquina de diálise.
A utilização da dança tanto pela equipe de enfermagem como pelos
pacientes, mostrou quão essencial e pervasiva é esta atividade na cultura do Rio
de Janeiro. Difícil seria, provavelmente, a aceitação de uma situação similar
dentro de um contexto hospitalar, em outras regiões do Brasil. Considero que
esta reação à música resulta do estilo de vida que os habitantes do Rio de Janeiro
têm (Barcellos, In: Dileo, 2015).
É importante se observar que apesar das condições de saúde e dos
impedimentos físicos, impostos pela doença e pela máquina de diálise, também
registros em vídeo mostram os pacientes dançando nas suas poltronas,
‘impulsionados’ pelo ritmo do samba.
Ainda é relevante sinalizar que este trabalho mostrou, brevemente, como a
música da cultura pode facilitar a comunicação, a relação terapêutica, a
autoexpressão e “mover o espaço” levando pacientes, familiares destes, médicos,
enfermeiros e outros profissionais a se movimentarem, não somente no sentido
físico, mas, também, de uma forma emocional e psíquica, com ressonâncias
sociais.
CADERNO 2
Teoria e prática clínica
NOTA INTRODUTÓRIA

Na Anacruse do Caderno no 1, de 1992, escrevi sobre os textos ali publicados


não obedecerem a critérios específicos. Contudo, no Caderno no2 aparece um
artigo teórico/didático, referindo-se às interações e intervenções a serem
utilizadas na prática clínica, e outro sobre uma paciente com amusia adquirida,
sequela de AVE.
O texto didático se refere a um dos temas mais importantes, em minha
opinião, para que um processo terapêutico se desenvolva: as interações
terapeuta-paciente e as intervenções do musicoterapeuta. Trata-se de um assunto
que, apesar de sua relevância, não vem tendo a atenção dos musicoterapeutas, já
que quase nada tem sido escrito sobre isto, ainda hoje, na literatura específica de
musicoterapia.
Já o caso clínico tem por tema central o trabalho de musicoterapia com
uma paciente que sofreu um Acidente Vascular Encefálico (AVE), e estava em
tratamento de reabilitação na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação
(ABBR). Além das várias sequelas deixadas em geral por um AVE, como
motoras e de fala, a paciente em questão ainda apresentava um quadro de amusia
adquirida, também como sequela do AVE. O tema central desse atendimento foi
o trabalho de musicoterapia com pacientes com formação musical anterior, o que
se constitui como um dos grandes desafios para os musicoterapeutas.
A MOVIMENTAÇÃO MUSICAL EM
MUSICOTERAPIA: INTERAÇÕES E
INTERVENÇÕES

Introdução
Este trabalho é fruto de indagações, inquietações e reflexões que advieram
do exercício da minha prática clínica; da observação do trabalho desenvolvido
por outros musicoterapeutas; do contato com a literatura especializada em
musicoterapia onde, surpreendentemente, quase nada é encontrado sobre o tema
e, finalmente, da minha experiência como integrante de um grupo de
Musicoterapia Didática onde se realizou uma prática seguida de discussões
teóricas78.
A escolha deste tema evidencia, mais uma vez, a preocupação que me
acompanha no sentido de o musicoterapeuta saber ‘lidar’ também com a música,
seu principal elemento de trabalho em musicoterapia.
O objetivo deste texto é refletir sobre como se faz a movimentação musical
em musicoterapia e, também, como nós, musicoterapeutas, estamos procurando
estudar ou levantar esta questão além da prática clínica, na tentativa de uma
maior compreensão teórica.
Trata-se, a meu ver, de uma discussão de extrema importância pois o
desenvolvimento e a fundamentação da musicoterapia certamente dependem,
também, da forma como a música é utilizada e da leitura que o musicoterapeuta
faz do processo musicoterápico.

A movimentação musical em musicoterapia


Parece estranho falar-se de movimentação musical. No entanto, movimento
é aqui utilizado como se referindo ao “estado em que um corpo muda de posição
em relação a um referencial” (Ferreira, 1976, p. 828), para significar a
movimentação musical que o musicoterapeuta faz em relação ao paciente; que
este faz tendo o musicoterapeuta como referencial e que ambos fazem em uma
mesma direção.
Esta movimentação seria: mover-se e deslocar-se em direção ao paciente;
fazer com que o paciente se movimente; mexer com o paciente; exercer
influência sobre o paciente, estimular, provocar, induzir e levar o paciente a
alguma movimentação; comover-se com o paciente; deixar-se convencer pelo
paciente; dar de si para o paciente; caminhar junto com o paciente; dirigir-se ao
paciente; e eu acrescentaria, tudo isso, musicalmente.
Como podemos observar, existem várias direções nessas palavras que
significam movimentação, ou seja:

no sentido do musicoterapeuta para o paciente;


na direção do paciente para o musicoterapeuta e, finalmente,
ambos numa mesma direção, interagindo de forma sucessiva ou simultânea.

Essa movimentação, tendo “o outro” como referencial implica,


inicialmente, em perceber-se “o mundo do outro”, o momento adequado para se
dirigir ‘ao outro’ e também como deve ser essa movimentação.
Isto tudo supõe um grande respeito pelo mundo do ‘outro’, ainda acrescido
do fato de que essa movimentação é também musical, no sentido mais amplo da
palavra. Assim, além de se ter todo o cuidado para não “invadir” aquele que
nesse momento precisa de ajuda, é necessário que se tenha segurança na forma
de lidar com a música para saber como vamos utilizá-la.
Pode-se dizer, para efeitos didáticos, que numa sessão de musicoterapia
podem existir quatro momentos diferentes com relação à “movimentação
musical”.
Estes são:

estimular e/ou induzir o paciente, quando necessário;


ouvir o paciente quando este se expressa;
interagir com o paciente e,
fazer intervenções.

Podemos, então, fazer um paralelo entre as direções da movimentação e


estes quatro momentos descritos acima:

É importante ressaltar que esta divisão é feita para efeitos didáticos e que
esses momentos vão aparecer sem seguir qualquer ordem ou, ainda, podem não
estar todos presentes em uma mesma sessão. Enfim, esta movimentação será
feita da maneira mais livre possível, dependendo da situação, do momento, das
necessidades do paciente, da compreensão que o musicoterapeuta tiver deste e
do desenvolvimento do processo terapêutico, como um todo.
O objetivo, aqui, é apresentar as formas de interação possíveis e as
implicações destas decorrentes, e as intervenções e os prováveis desdobramentos
e resultados que podem desta resultar para o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico.

Interações em musicoterapia
No trabalho Qu’est-ce que la Musique en Musicothérapie (Barcellos,
1984a) refiro-me à importância da Musicoterapia ativa interpessoal ou
Musicoterapia inter-ativa, que posteriormente denominei Musicoterapia
Interativa, onde há uma inter-ação simultânea musicoterapeuta-paciente e a
possibilidade de uma consequente “interação”. Quando estamos ativos no
processo de fazer música e partilhamos essa experiência com o outro, ao mesmo
tempo, somos puxados para fora de nós mesmos.
Watzlawick, Beavin e Jackson, (1977), no trabalho sobre comunicação
humana, definem a interação como sendo uma série de mensagens trocadas
entre pessoas sendo a mensagem, ou comunicação, entendida pelos autores como
uma unidade comunicacional isolada. Os autores afirmam que muitas obras se
restringem ao estudo da comunicação humana como sendo um fenômeno
unilateral, ficando aquém do estudo da comunicação como um processo de
interação.
Para eles, a comunicação, que é uma condição sine qua non da vida
humana e da ordem social, configura-se como um veículo de manifestações
observáveis da relação e não é apenas verbal mas, sim, um complexo de
numerosos modos de comportamento tais como tonais, posturais e contextuais,
que podem aparecer em conjunto, condicionando o significado de todos os
outros, ou de alguns deles, isoladamente (ibid).
Existem dois tipos de comunicação: a digital e a analógica. A
comunicação digital é a comunicação puramente verbal como a linguagem
falada por um computador (sem inflexões rítmicosonoras). É apenas uma
convenção semântica da nossa linguagem e fora dessa convenção não existe
nenhuma correlação entre a palavra e a coisa que ela representa, à exceção
insignificante das palavras onomatopaicas.
A comunicação analógica é, virtualmente, toda a comunicação não verbal
como: postura, gestos, expressão facial, inflexão de voz, sequência, ritmo e
cadência das próprias palavras e, ainda, qualquer manifestação não verbal de
que o organismo seja capaz, assim como as pistas comunicacionais
infalivelmente presentes em qualquer contexto em que uma interação ocorra
(ibid).
A comunicação estabelecida através da música é uma comunicação
analógica. As relações entre a comunicação digital e analógica foram estudadas
pelo musicoterapeuta e psiquiatra alemão Dr. Wolfgang Strobel (1985) que
escreveu um artigo intitulado “Music therapy with schizofrenic patients”79.
Strobel se refere ao fato de muitos pacientes negarem ou evitarem a
comunicação digital (verbal) por desconfiarem das palavras. Ao contrário da
comunicação verbal, a comunicação musical não contém, por si só,
possibilidades de contradição.
Segundo Watzlawick, Beavin e Jackson, (1977), existem dois tipos
principais de interações: simétrica e complementar, que são descritas como
relações baseadas na igualdade ou na diferença.
Na interação simétrica tende-se a refletir o comportamento do outro e na
complementar, como o nome sugere, complementa-se o comportamento do
outro.
Menos importante, mas também existentes são:
a interação meta-complementar – onde se deixa ou força o outro a
complementar o comportamento, e
a interação pseudo-simétrica – onde se deixa ou força o outro a ser
simétrico.

A partir do que foi apresentado anteriormente deve-se refletir sobre alguns


aspectos importantes para a musicoterapia, como listados abaixo.

Pode a música contribuir para a interação musicoterapeuta paciente e


quais são os momentos de interação?
A música, a meu ver, nos induz a partilhar com o outro, momentos nos
quais, em outras condições, ficaríamos sozinhos, isolados.
Somos às vezes, desafiados por um som, impulsionados por um ritmo ou
atraídos por uma melodia. Somos puxados pela música para fora de nós mesmos
e levados a interagir com o outro, pelo prazer que nos causa fazer música ou
partilhar essa experiência.
Os momentos de interação em musicoterapia são aqueles em que
musicoterapeuta e paciente se “encontram” ou “dialogam” musicalmente, isto é,
se complementam. A isto eu chamaria de interações complementares musicais,
partindo do pensamento de Watzlawick, Beavin e Jackson, (1977).
Uma enorme e complexa gama de elementos musicais podem se
complementar. Desde os sons e ritmos que estão à nossa volta, que formam o
nosso mundo sonoro, até melodias e harmonias. Quando essas interações
musicais acontecem em improvisações clínicas, trazem a importante
possibilidade de que o paciente possa não só expressar os seus conteúdos como
também internalizar aquilo que é expresso pelo musicoterapeuta, possibilitando a
expansão do seu “modelo de mundo”.
Também a interação simétrica musical é de extrema importância,
principalmente como manifestação de aceitação daquilo que o paciente traz.
No entanto, é importante observar que o musicoterapeuta deve estar atento
para perceber qual o modo de interação mais adequado para induzir ou promover
essa expressão. Primeiro, porque o ato de refletir aquilo que o paciente traz pode,
em alguns casos, reforçar um ato ou situação não desejados, como estereotipias,
por exemplo. Por outro lado, e ainda partindo de minha experiência clínica,
porque o fato de se refletir o que o paciente traz pode se constituir em algo
extremamente ameaçador para ele, que poderá reagir de forma agressiva, como,
por exemplo, no caso de pessoas com Esquizofrenia Paranóide.

São as interações importantes num processo musicoterapêutico?


As interações são de extrema importância num processo terapêutico. Elas
fazem parte, juntamente com as intervenções e com a estimulação, do arsenal
que o terapeuta dispõe para ajudar ou facilitar o crescimento do paciente.
A interação terapeuta-paciente pode proporcionar a modificação de
situações conflitivas, através da introdução de novos dados na percepção que o
paciente tem da sua realidade, assertiva que pode ser, em minha opinião,
transposta integralmente para a musicoterapia. Assim, utilizando-se a riqueza da
música, pode-se interagir com um paciente desde as maneiras mais simples até
as mais complexas, de acordo com suas necessidades, através de sons vocais,
corporais, da utilização de instrumentos — ritmos, melodias e harmonias,
dependendo do paciente, evidentemente —, de letras de canções, e então
contribuir para a modificação de situações, bem como para possibilitar o seu
desenvolvimento.
São bem conhecidos Os perfis de integração desenvolvidos por Kenneth
Bruscia, apresentados em seu livro Improvisational Models of Music Therapy
(1987), onde o musicoterapeuta estuda em profundi dade as possibilidades de
interação na improvisação musical. Os perfis podem ser utlizados, segundo o
autor, para analisar “solo, dueto, ou improvisação em grupo, e pode focalizar as
relações intramusicais, intrapessoais, intermusicais, e interpessoais” (1987, p.
423).
Nesse texto pode-se perceber a importância e complexidade do tema, além
da necessidade de que o musicoterapeuta tenha uma formação razoável em
música e uma íntima relação com a mesma.

Intervenções em psicoterapia e musicoterapia


Seria interessante trazer como “fator desencadeante” deste tema uma frase
do psiquiatra e psicoterapeuta suiço Carl Jung que afirma que “Na Psicoterapia
de hoje exige-se, às vezes, que o médico ou psicoterapeuta ‘siga’, por assim
dizer, o doente e suas emoções. Não creio que esse seja o melhor caminho. Às
vezes é necessário que o médico intervenha ativamente” (1961, p. 129). Pode-se
perceber, nesta afirmação, que a posição de Jung é a de que o terapeuta deve
também intervir e não somente seguir o paciente.
Sabe-se que o papel do terapeuta é ajudar no crescimento do paciente; é
facilitar, muitas vezes, o emergir e a expressão de conteúdos e potencialidades.
A partir da afirmação de Jung, acima transcrita, e da prática que se tem em
terapia, pode-se dizer que esta ajuda deve ser dada também através de
intervenções que são instrumentos essenciais do processo terapêutico, segundo o
psiquiatra e psicanalista argentino Hector Fiorini (1976). São comportamentos e
operações do terapeuta, isto é, são formas de o terapeuta interagir com o
paciente, ou ainda, o repertório de comportamentos do terapeuta (p. 177). Fiorini
ainda declara que “Se é possível classificar e quantificar os comportamentos do
terapeuta, o mito das terapias como ‘arte’ intuitiva, inteiramente pessoal e
dificilmente transmissível, pode começar a se desvanecer” (ibid., p. 176).
O conjunto destas ideias que se referem às terapias em geral, aplica-se
perfeitamente à musicoterapia e, embora musico terapeutas afirmem ser
impossível a generalização de aspectos da terapia, dada a singularidade de cada
processo terapêutico, é necessário que se conheça o repertório de possibilidades,
para que se possa particularizar.
Cabe sinalizar que também o musicoterapeuta argentino Carlos Fregtman
corrobora as ideias de Fiorini, o que pode ser constatado na sua afirmação
enfática de que “o musicoterapeuta não desenvolve um programa, mas ele reage,
propõe, intervém, intui e acompanha” (1982, p. 42).
Faz-se necessário, então, estudar e classificar o sentido do emprego de
cada uma dessas intervenções e o seu valor como agente de modificação. Assim,
partir-se-á do estudo que Fiorini faz das mesmas em psicoterapia para adequar-se
o seu emprego à musicoterapia.

Tipos de intervenções em psicoterapia e musicoterapia


Inicialmente serão tratadas neste trabalho as intervenções verbais, a partir
de um inventário apresentado por Fiorini (1976). Posteriormente, estas serão
adequadas à musicoterapia. Ainda serão estudadas as intervenções para-
verbais/musicais (mímica verbal, variações na forma de emissão e no tom de
voz, na intensidade e no ritmo da fala, bem como variações das inflexões
rítmico/sonoras da mesma) e serão apresentadas as intervenções musicais
propriamente ditas (sonoras, rítmicas, melódicas, harmônicas) e corporais
(gestos, posturas e olhares), por mim cunhadas em 198880. Nesta revisão aqui
proposta introduzo as intervenções musicais por oposição ou contraste, e a que
denominei por desagrado.
As intervenções verbais em musicoterapia serão divididas em faladas e
cantadas, isto é, as mesmas intervenções verbais apresentadas por Fiorini (1976),
podem ser feitas através do canto, com letras de músicas existentes ou com
improvisação de letras.
As principais formas de intervenções verbais, faladas ou cantadas são:

Interrogar – quando se pergunta algo a respeito de situação surgida ou de


situação anterior;
Informar – quando se dá informações pedidas pelo paciente ou não
pedidas, mas que o terapeuta julgue necessário fornecer;
Confirmar ou retificar – conceitos do paciente sobre situações que ele
solicite ou que o terapeuta julgue necessário;
Clarificar – esclarecer determinada situação trazida pelo paciente;
Recapitular – resumir pontos essenciais surgidos no processo exploratório
de cada sessão ou no conjunto do processo;
Assinalar – sinalizar relações entre dados, sequências, momentos
significativos e capacidades do paciente;
Interpretar – o significado dos comportamentos, motivações e situações
apresentadas (refiro-me, aqui, à compreensão por parte do terapeuta, das
situações que acontecem com o paciente no processo terapêutico);
Indicar – certos comportamentos com caráter de prescrição (intervenções
diretivas);
Sugerir – atitudes determinadas e mudanças, a título de experiência;
Dirigir – situações nas quais o paciente ou grupo não tenham recursos
egóicos necessários para lidar com situações difíceis ou traumáticas, o que
pode provocar grande ansiedade;
Meta-intervenções – comentar ou aclarar o significado de haver recorrido
a qualquer das intervenções anteriores;
Outras intervenções – modificações no contrato, e deveriam ser aqui
adicionadas as colocações de limites.

Faz-se necessário se discutir alguns comentários feitos por Fiorini acerca


das intervenções verbais faladas ou, especificamente em musicoterapia, cantadas
e/ou tocadas, na minha concepção:
Interrogar – é um dos recursos essenciais do processo terapêutico e que
tem por principais objetivos: colocar-se frente aos fenômenos humanos com
uma atitude investigadora; transmitir o respeito do terapeuta pelo caráter
estritamente singular da experiência do paciente e da sua visão de mundo e
criar condições ao paciente para que ele expresse seus conteúdos e
potencialidades. Além disso, o terapeuta põe em ação vários estímulos para
a mudança do paciente como a ampliação do seu campo perceptivo e o
papel reforçador do ego que está contido na experiência de ouvir-se falar, o
que, no caso da musicoterapia, foi desenvolvido por mim em trabalho
anterior (Barcellos, 1984a), onde apresento as situações em musicoterapia
que trazem gratificações, como impulsoras de novas manifestações sonoras,
propiciando o que denomino reação sonora em espiral que, na verdade, é
uma espiral sonora de desenvolvimento;
Informar – o terapeuta é também um veículo de informações, o que não
deve ser confundido com a atitude pedagógico/ didática de um professor.
Trata-se de cumprir uma função cultural, levando informações dentro de
uma perspectiva mais profunda e abrangente de fatos humanos. Aqueles
que trabalham com crianças terão essa função ampliada, à medida que seus
pacientes estão sempre em fase de aquisições.

Cabe aqui ressaltar que a utilização da técnica de improvisação musical


livre em musicoterapia facilita sobremaneira que o musicoterapeuta assuma,
quando necessário, a função daquele que vai informar, no sentido mais amplo e
abrangente da palavra.

Confirmar ou retificar – trata-se de um tipo de intervenção que é essencial


no exercício de uma prática na qual o terapeuta tem um “papel ativo”;
Clarificar – este tipo de intervenção tem por objetivo “desembaraçar” uma
manifestação do paciente, ou seja, esta é uma das intervenções mais
utilizadas em musicoterapia.

Ela prepara o campo para entrar em aspectos mais ricos e para outras
intervenções como assinalar e interpretar e proporciona o exercício do paciente
para perceber a própria experiência.
Mas, ainda temos como intervenções:
Recapitular – estimula a capacidade de síntese, que é fundamental no
processo terapêutico para produzir recortes e “fechamentos provisórios” nas
palavras de Fiorini que conclui que “Sem se firmar em contínuas sínteses
provisórias, o processo de pensamento não avança” (1976, p. 162 e 163);
Assinalar – é uma forma de intervenção que incita o paciente a desenvolver
uma nova maneira de perceber a própria experiência. Assinalar um
determinado aspecto leva o paciente a desenvolver a capacidade de
autocompreensão. Nas respostas que os pacientes dão quando o terapeuta
“assinala”, revelam-se muitas vezes as suas capacidades de insight e seus
recursos intelectuais.

Outra forma de intervenção muito utilizada em musicoterapia,


principalmente quando se utiliza como técnica a “Improvisação Musical Livre” é

Interpretar – o tipo de intervenção mais discutido em musicoterapia. Isto


advém, principalmente, do fato de dizerse que o musicoterapeuta não tem
condições de interpretar. Nesse momento reduz-se a utilização da
“interpretação” à psicanálise, o que não deveria ser feito. A utilização da
hermenêutica é objeto de discussão logo a seguir.

É importante ressaltar que toda interpretação, do ponto de vista


metodológico, é uma hipótese. Em princípio, nenhuma hipótese é suscetível de
verificação definitiva que resulte na condição de saber acabado.
Existem, como se sabe, vários tipos de interpretação utilizados pela
psicanálise e pelas psicoterapias. A psicanálise prioriza um determinado tipo de
interpretação como agente de modificação – a interpretação transferencial. Nas
psicoterapias não se hierarquizam os tipos de interpretação: todos são
instrumentos essenciais dentro do processo. Para cada paciente e cada momento
de seu processo haverá certo tipo de interpretação.
Vamos encontrar, então, diversos tipos de interpretação que:

proporcionam hipóteses sobre situações, fatos ou conteúdos do paciente;


reconstroem constelações históricas significativas como, por exemplo,
momentos de evolução familiar;
recuperam ou estimulam potencialidades do paciente não expressas por
serem negadas ou não cultivadas;
tornam compreensível a conduta de outros frente a novos comportamentos
do paciente;
destacam consequências que decorrerão de o paciente encontrar alternativas
possíveis para substituir estereótipos pessoais ou grupais.

Em musicoterapia pode-se, a meu ver, fazer a interpretação unicamente


com a voz, verbalmente, com a música executada em um instrumento ou através
do canto e, com este, utilizando-se músicas/canções conhecidas recriadas ou
improvisação.
E aqui se abre uma questão que é bastante discutida: como a questão do
sentido é tratada pelos diferentes teóricos da musicoterapia?
Para Bruscia (2001), as produções dos clientes têm que ser escutadas e
compreendidas pelo musicoterapeuta. A escuta é uma habilidade fundamental
para compreender e responder à expressão do cliente.
A análise feita a partir da escuta envolve:

a descrição
a compreensão e
a interpretação da música trazida/criada pelo cliente.

Afirmações acima demonstram que Bruscia trabalha com a necessidade de


se levar em consideração a questão do sentido que o paciente pode atribuir à
música (ou àquilo que traz para o setting terapêutico), posição com a qual estou
plenamente de acordo. Para isto, o musicoterapeuta se vale de muitas
perspectivas sendo a hermenêutica uma das principais ferramentas para levá-lo a
discernir sobre quais são os sentidos que o fenômeno musical pode ter.
A hermenêutica, ramo da filosofia, foi inicialmente empregada no domínio
teológico como a “arte de compreender” ou como a “doutrina da boa
interpretação” (Zilles, 2005, p. 105). No entanto, tão logo se constatou que não
só os textos bíblicos apresentavam problemas de interpretação, a hermenêutica
foi estendida à compreensão de textos profanos como textos jurídicos, obras
literárias e testemunhos históricos. Assim, por hermenêutica se entende, hoje, a
arte e a doutrina de esclarecer, interpretar e compreender textos e situações81.
Etimologicamente, a palavra hermenêutica vem da imagem do deus
Hermes, que era mensageiro dos deuses e mediava essa atividade. A tarefa que
lhe cabia era o anúncio da mensagem divina, seguida “da sua interpretação e
tradução para a língua dos homens” (ibid., 106), de um texto ou discurso.
Wilheim Dilthey82 foi o responsável pela ampliação da hermenêutica a todas as
formas de expressão humana.
Segundo a filosofia, a hermenêutica aborda duas vertentes: a
epistemológica, com a interpretação de textos e a ontológica, que remete à
interpretação de uma realidade. Sabe-se que, ainda hoje, muitas são as igrejas
que têm os exegetas83, isto é, aqueles que interpretam os textos bíblicos e os
explicam aos fiéis.
A hermenêutica foi trazida para a musicoterapia pela voz de Even Ruud
(2005) que considera que os musicoterapeutas frequentemente encontram
problemas de compreensão e interpretação em processos musicoterapêuticos e
que a hermenêutica é uma das possibilidades de interpretação em musicoterapia.
Para o autor, ela deve ser vista como criativa e não como reflexão
mecânica sendo, por isto, relativamente objetiva e jamais absoluta, e podendo ser
utilizada quando o musicoterapeuta se confronta com questões relativas ao
sentido que pode estar sendo comunicado pelo paciente.
Ainda segundo Ruud, em musicoterapia, as interpretações podem ser feitas
através de distintas perspectivas, tais como: de uma posição filosófica, de uma
teoria psicológica, de teorias relativas a metáforas e narrativas, de teorias de
análises musicológicas84 ou, ainda, de concepções inerentes à natureza do
processo musicoterapêutico (Ruud, In: Wheeler, 2005).
Retornando mais uma vez à questão das intervenções, cabe aqui ilustrar a
utilização de uma intervenção da qual participei como personagem/paciente, que
considero ser uma interpretação feita através de uma canção.

Cena vivida em workshop


Em um Simpósio de Musicoterapia onde eu trabalhava como
Coordenadora da Comissão Científica, e estava como ‘paciente’, e outra
participante exercia o papel de musicoterapeuta em um workshop que aí se
realizava, cantei a seguinte música, que certamente expressava meu cansaço:

Casa no Campo

Zé \Rodrix e Tavito (1971)


Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza dos amigos do peito e nada mais

Eu quero uma casa no campo


Onde eu possa ficar do tamanho da paz
E tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais

Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim


Eu quero silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos e um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal

Eu quero uma casa no campo


Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros
E nada mais.

Logo após eu ter terminar de cantar, a integrante do grupo que


desempenhava o papel de minha musicoterapeuta cantou:

Peixe Vivo

Folclore de Minas Gerais

Como pode o peixe vivo viver fora d’agua fria


Como pode o peixe vivo viver fora d’agua fria
Como poderei viver, como poderei viver
Sem a sua, sem a tua, sem a tua companhia.

Como paciente, entendi o que a musicoterapeuta quis me dizer e, embora


eu não estivesse em um espaço terapêutico, essa intervenção foi bastante
importante para mim.
Mas, voltemos às intervenções:
Sugerir – esta intervenção tem por objetivos principais propor ao paciente
condutas alternativas isto é, orientá-lo para experiências novas e,
especialmente, proporcionar o insight. Em musicoterapia tais sugestões
abrangem a realização, por exemplo, de novas atividades, tomando-se
sempre o cuidado de não sugerir “atividades” que estejam acima das
possibilidades do paciente, o que o levaria à frustração;
Intervenções diretivas – são necessárias em momentos em que o paciente
se encontre sem recursos para manejar situações difíceis ou traumáticas,
portadoras de uma ansiedade excessiva. Ainda se pode reconhecer a
necessidade de intervenções diretivas em momentos especiais como o início
do processo ou mesmo no começo de sessões.

Discute-se muito a utilização das intervenções diretivas, mas, segundo


Fiorini, “o questionável é a sua não utilização” (1976, p. 170). A experiência
clínica mostra que diretividade e insights não são incompatíveis e sim
complementares. No entanto, é importante que o terapeuta as utilize no momento
certo e em situações que claramente as requeiram, tanto como o emprego de
qualquer outra intervenção.

Meta-intervenções – são as intervenções do terapeuta cujo objeto são as


suas próprias intervenções. Visam aclarar o significado de uma intervenção
anterior. Podemos encontrálas em Musicoterapia, através do contexto das
letras de músicas existentes ou ainda a partir de improvisação de letras.

Intervenções Musicais
A partir daqui discute-se a questão das intervenções estritamente musicais,
isto é, aquelas que acontecem exclusivamente por meio de aspectos da estrutura
musical e, em geral, têm o mesmo objetivo das intervenções verbais: ser um
agente de modificação. No entanto, diferem das intervenções verbais porque são
feitas a partir da introdução de novos elementos musicais por parte do
musicoterapeuta, ou da modificação que o musicoterapeuta faz, naquilo que foi
trazido pelo paciente. Deve-se assinalar que à época em que foi escrito o
primeiro trabalho sobre intervenções em musicoterapia, não foi encontrado
nenhum artigo sobre o tema tanto na literatura brasileira como estrangeira.
Percorreremos agora o caminho inverso isto é, a partir das possibilidades
de intervenções musicais podendo, ou não, fazer um paralelo com as verbais.
A partir daqui serão apresentados os tipos de intervenções que cunhei em
1990, agregando aqui mais duas possibilidades de intervenções sonoro/musicais:
por oposição e por desagrado. Assim teremos:

Intervenções rítmicas e de andamento – observamos com frequência que,


em geral, essas intervenções trazem ou possibilitam modificações corporais
e eu as tenho utilizado principalmente com pacientes hiperativos ou muito
agressivos, no momento em que é necessário diminuir a hiperatividade ou
descarregar e canalizar essa energia agressiva. Partindo da mesma
modalidade através da qual essa agressividade é apresentada pelo paciente,
isto é, movimentação corporal, voz, ou instrumento, vamos utilizar um
ritmo marcado e marcante, em geral num andamento rápido (compatível
com o que é expressado pelo paciente), e numa intensidade sonora forte
que, pouco a pouco, vão sendo diminuídos (andamento e intensidade).
Também podem ser mudados (vagarosamente) o próprio ritmo e até o
compasso, levando o paciente a descarregar, através do próprio corpo, da
voz ou do instrumento, toda essa energia e, posteriormente, numa atividade
que ao mesmo tempo lhe dê prazer, o que é facilmente verificável através
de expressões faciais, canalizar essa energia da forma que o
musicoterapeuta considere mais adequada: criando um pequeno trecho
musical, cantando algo, enfim, levando o paciente a produzir algo, por
simples que seja. Deve-se, ainda, chamar a atenção para o fato de que, em
geral, as manifestaões agressivas são altamente destrutivas e a criação, ou o
fato de o paciente acompanhar o terapeuta nessa criação, contrapõe-se à
destruição, podendo resultar em algo que traga satisfação/gratificação.

Cena clínica 17
Como exemplo poderia ser citado o caso de Branca, uma menina de 10
anos, extremamente agressiva e hiperativa. Em determinadas sessões Branca
chegava jogando objetos/instrumentos, batendo em mim e na estagiária,
correndo e pulando pela sala. Eu pedia que a estagiária fizesse um ritmo
compatível com a movimentação corporal de Branca, em um instrumento de
grande porte, em intensidade forte, geralmente num andamento rápido e,
juntamente com Branca, quase sempre de mãos dadas, eu fazia a mesma
movimentação. Paulatinamente, íamos acompanhando o ritmo corporalmente, e
o andamento ia sendo diminuido juntamente e de forma gradativa com a
intensidade sonora e até a mudança de compasso (geralmente de 2/4 para 6/8).
Depois de um tempo, quando eu percebia que Branca já tinha descarregado
aquela energia, sentávamos e continuávamos a movimentação que agora era
feita só com os braços e era canalizada para jogos rítmicos: palmas numa
interação entre musicoterapeuta e paciente, ou a utilização de um instrumento
pelas duas. Este mesmo procedimento foi utilizado posteriormente, com outros
pacientes, comprovando-se que esta intervenção possibilita a descarga e
canalização da agressividade e diminuição da hiperatividade.
A musicoterapeuta dinamarquesa Grethe Lund (1990), citando Ricchard
Blander e John Gringer (1976), afirma que três sistemas de representação são
por nós utilizados para construir ‘o modelo de mundo’: o visual, o corporal e o
auditivo. Cada um desses canais sensoriais nos dá informações que usamos para
organizar nossas experiências.
Uma informação recebida por um desses três canais pode ser armazenada e
representada por outro canal. Nós somos capazes, por exemplo, de formar uma
representação visual a partir de uma fonte auditiva e etc. (associações
sinestésicas). Todos nós temos um sistema de representação de mundo preferido
e cada um de nós tem um “modelo de mundo” diferente.
É importante que o musicoterapeuta esteja consciente de qual é o sistema
de representação de mundo preferido pelo paciente ou por qual canal ele se
expressa. Deveria, ainda, perceber se a resposta mais adequada seria nesse
sistema preferido ou em um dos outros possíveis. Dependendo do paciente, isto
poderá facilitar ou dificultar uma resposta ou, ainda, poderá estimular o paciente
a se abrir para caminhos novos. Cabe ao musicoterapeuta perceber quem é este
paciente e quais são as suas necessidades.
Suzana Mordkowsky e Ricardo Osvaldo Testa (1977), musicoterapeutas
argentinos, apresentam algumas intervenções rítmicas divididas em:

ritmo acompanhante – que é, em geral, um acento ou parte da frase que o


paciente faz;
ritmo complementar – que utiliza alguns elementos do ritmo do paciente;
ritmo latente – o musicoterapeuta intervém com um ritmo “latente” ao que
é manifesto pelo paciente. A partir de então, o paciente pode perceber
melhor o que estava expressando.

Aqui se trata, a meu ver, pelo exemplo prático dado pela musicoterapeuta,
de uma intervenção clarificadora e os dois primeiros exemplos apresentados
pelos autores como intervenções são, na verdade, formas de interagir com o
paciente (Interações complementares).

Intervenções melódicas – são as feitas principalmente para esclarecer ou


clarificar algum trecho musical que esteja emergindo, não completamente
como deveria ser, possibilitando assim que o paciente possa expressar o que
estava tentando.

Muitas vezes o paciente traz uma música com aspectos da estrutura


musical ou a própria letra, de forma não muito clara ou modificada. Em geral a
mesma é o veículo para que determinado conteúdo aflore e o fato de o
musicoterapeuta intervir, clarificando os aspectos que estão embaraçados, pode
ajudar muito na evolução do processo terapêutico e, consequentemente, na
evolução do paciente.
Vejamos a cena ‘clínica’ a seguir:

Cena de Musicoterapia Didática


Novamente como integrante de um grupo, desta vez de Musicoterapia
Didática, coloco-me como exemplo. Utilizando um xilofone eu tocava um
fragmento de uma melodia, de forma mandalar, repetindo de maneira insistente
e ininterrupta, numa tentativa desesperada de conseguir refazer ou relembrar a
música que me “habitava”. A sensação era a de que algo me perseguia, ou
ainda, de que eu perseguia algo que não conseguia alcançar.
Como tínhamos uma proposta expressa de que não poderíamos falar, eu
me dirigia com o olhar à musicoterapeuta e aos integrantes do grupo, como se
estivesse “pedindo socorro”, sempre repetindo obsessivamente o fragmento. A
minha ansiedade aumentava e as pessoas pareciam não perceber o que se
passava. Não suportando mais a tensão, dirigi-me verbalmente a uma das
integrantes do grupo que estava com o violão (desobedecendo a ‘ordem’ do líder
da atividade) e perguntei: “o que é isto”?
Assim que a melodia85 foi “clarificada”, aqui por outra integrante do
grupo, consegui lembrar a letra e todo o conteúdo relacionado com a mesma, o
que poderia ser considerado — numa linguagem de Pichon-Rivière — como a
porta-voz do grupo — ou seja: “o membro que em um momento denuncia o
acontecer grupal, as fantasias que o movem, as ansiedades e necessidades da
totalidade do grupo” (Pichon-Rivère, 1988, p. 128), fazendo com que todos os
outros integrantes se identificassem com o tema e que esse fosse trabalhado.
No entanto, entendo que aqui teria sido muito importante, para mim, que
esta situação tivesse sido objeto de uma intervenção clarificadora por parte do
musicoterapeuta, na medida em que me causou grande ansiedade porque eu não
conseguia, de forma alguma, identificar o que estava cantando e repetia
obstinadamente para tentar entender o que estava se passando. Era como se algo
estivesse forçando passagem para vir à consciência.
Devo ainda assinalar que foi esta situação que desencadeou a minha
curiosidade e me levou ao estudo e, mais tarde, à elaboração deste texto sobre as
intervenções e sua importância em um processo musicoterapêutico. Ainda é
importante revelar que só depois de muito tempo lembrei que tocara essa
música, quando estudante de piano, e isto foi material para ser discutido na
minha terapia pessoal. Isto, a meu ver, ratifica a importância do emprego das
intervenções.

Intervenções harmônicas (feitas através da harmonia).

São mais difíceis de serem feitas por alguns motivos: porque se


configuram como bastante complexas e porque os pacientes
raramente trazem a harmonia tradicional, com exceção dos que
têm formação musical anterior, que são uma minoria. Em geral,
o que é trazido é uma harmonia aleatória, isto é, uma
superposição de sons.

No entanto, como as intervenções são feitas pelo musicoterapeuta, não é


necessário que o paciente saiba harmonia, ou aquilo que está sendo feito, como
nos mostra o exemplo clínico a seguir. Assim, é possível se fazer intervenções
através da harmonia com qualquer paciente, principalmente quando se utiliza a
“improvisação musical livre” como técnica.

Cena clínica
Rita era uma menina deficiente visual (cega) de sete anos, e a
improvisação era uma das técnicas mais utilizadas por mim e uma experiência
musical que dava a ela muito prazer. Em geral improvisávamos muito criando
melodias e letras sobre situações/conteúdos de suas vivências, no momento em
que eram por ela trazidos. Estas improvisações eram acompanhadas por mim no
violão, a pedido dela, tocado de uma forma específica: dedilhado.
Geralmente essas improvisações tinham melodias e harmonias simples,
como por exemplo: I, V, I, IV, V, e I graus, o que caracterizava uma finalização
na cadência perfeita. Em uma determinada sessão, resolvi colocar na harmonia
uma cadência interrompida86, com o objetivo de verificar a reação de Rita à
introdução de um novo elemento, verificar se ela estaria pronta a aceitar algo
novo e, principalmente, para ampliar a sua linguagem musical e através disto
favorecer o seu desenvolvimento.
Mas, para minha surpresa, Rita reagiu de acordo com o elemento
harmônico utilizado para fazer a intervenção, isto é, ‘interrompeu’ a sua
atividade no momento em que o V grau foi para o VI, caracterizando a cadência
interrompida. Parou de cantar, mostrando-se surpresa. Voltei a cantar, e depois
de ela ter ouvido a mesma harmonia algumas vezes e de ter continuado a reagir
da mesma forma, passou a lidar com esta nova situação musical de forma para
mim inesperada: começava a rir quando eu não terminava com a cadência
perfeita, mas, sim, com a interrompida. E, finalmente, passou, depois de algum
tempo, não só a continuar improvisando como ‘reclamando’ quando eu
terminava com a cadência perfeita dizendo: “não é assim”! No entanto, Rita
não podia dizer como era já que não tinha nenhum conhecimento musical.
Quando eu tocava com o VI grau, sorria satisfeita. Incorporou assim um aspecto
musical novo, o que significa, em minha opinião, que ela já poderia aceitar
novas situações, não musicais, o que antes era muito difícil.

Cena clínica 19
Este exemplo demonstra que também podem ser feitas intervenções
harmônicas quando se utiliza a recriação musical e não só quando se emprega a
improvisação musical como técnica. Mas, cabe ressaltar que aqui se trata de uma
paciente muito especial porque tinha tido formação musical anterior, o que
acontece raramente.
Com a paciente Dora, 39 anos, que havia sofrido um A. V. E., utilizei uma
variante desta mesma cadência, que consiste em colocar o VI grau do
homônimo menor, após o V, e ao invés do I. Como relatado acima, essa paciente
tinha formação musical anterior ao AVE e, pelo que pude perceber, uma ampla
experiência musical na medida em que era compositora tendo ganho muitos
concursos de composição de música popular em sua cidade, no interior de
Minas Gerais.
Assim, tocávamos ambas ao piano, ela a melodia com a mão esquerda
(por conta de uma hemiplegia direita), na região aguda, porque no início ela era
capaz de tocar exclusivamente as melodias das músicas. Eu a acompanhava
fazendo a harmonia, em geral com as duas mãos, pela dificuldade em fazer isto
só com a mão direita, como seria preferivelmente desejável!
Na medida em que o processo musicoterapêutico foi se desenvolvendo,
Dora foi trazendo várias músicas que lhe vinham à memória e, dentre elas, “É
meu destino amar”87. Inicialmente eu sempre terminava ‘comporta damente’,
com uma cadência perfeita (V – I), como pode se verificar no exemplo grafado
abaixo, a partir da gravação em fita, feita na sessão.
No entanto, depois de Dora ter trazido essa música muitas vezes, onde eu
sempre terminava com a cadência perfeita, decidi fazer a mesma intervenção
harmônica, com os mesmos objetivos e baseada na experiência vivida com a
paciente anteriormente relatada, entendendo a introdução do si b e ré b pela
paciente, na melodia, como uma ‘sugestão’ de entrar no modo menor. Levando
em conta a formação musical anterior de Dora, resolvi introduzir no acorde
final do VI grau um lá b, (caracterizando o homônimo menor) como pode ser
visto no exemplo a seguir. A paciente para, e na audição desse trecho, percebe-
se que eu tento finalizar trazendo a tônica. No entanto Dora volta a tocar,
trazendo o início do tema principal de “I could have danced all night”88e segue,
fazendo uma finalização inesperada: o acorde do VI grau do homônimo menor,
seguido do V grau tanto do homônimo menor como do maior (acorde comum),
resolvendo no tom original – Dó M, com uma cadência perfeita (V – I)! Ou seja,
a paciente vai para o homônimo menor e volta para Dó M, fazendo uma
modulação por acorde comum, evidentemente sem saber o que fez, mas trazendo
da memória o que fazia antes ou, readquirindo funções musicais que tinha antes,
o que poderia estimular a reaquisição de funções não-musicais, como pode ser
visto no exemplo grafado musicalmente por mim, retirado da gravação em fita
K7, da sessão no 49, realizada em 29/09/1976.
Aqui se poderia entender que a paciente, que consegue resolver esta
situação se valendo de ferramentas musicais anteriormente utilizadas, estaria
preparada para lidar com outras situações.
Mas, ainda cabe uma observação com relação à musicoterapeuta: percebe-
se que depois de esta ter feito um fechamento no primeiro grau (no compasso
25), para de tocar até o final como se estivesse ‘paralisada’, surpreendida pela
atuação musical da paciente! A sensação que se tem é que a musicoterapeuta faz
uma intervenção, mas se surpreende com o “rumo” que esta toma, ou seja, com a
resposta da paciente que começa a ser capaz de acionar antigas ferramentas, pela
restauração da memória ou o recrutamento de estruturas cerebrais.
Apesar de serem muitos os neurocientistas que têm estudado as relações
entre música e memória, ainda não se sabe por que a música facilita a
reaquisição desta. Não é raro se encontrar pacientes com demência que se
esquecem dos fatos das próprias vidas, mas que são capazes de recordar e cantar
canções que fizeram parte de suas infâncias, o que pode indicar que se a
memória para a música se não é especial, pelo menos é diferente da memória
para imagens e fatos do cotidiano (Rocha & Boggio, 2013).
Mas, deve-se mencionar que além dos muitos estudos realizados com
relação a distúrbios neurológicos, também são numerosas as pesquisas
conduzidas com o objetivo de melhor conhecer as relações entre o cérebro dos
músicos e a plasticidade, sabendo-se, já, que existem diferenças estruturais entre
os cérebros de músicos e não-músicos. Ainda se tem evidências, com relação à
neuroplasticidade, que indicam que existe uma correlação entre tempo de estudo
musical e as diferenças estruturais.
Em um artigo de revisão realizado por Tervaniemi (2009)89, (citado por
Rocha e Boggio, 2013) tem-se indicativos de que as diferenças encontradas entre
cérebros de músicos e não músicos poderiam ser resultado da prática musical.
No entanto, apesar das evidências da importância da utilização da música
no tratamento de distúrbios neurológicos, são necessários maiores estudos para
que se possa chegar a propostas concretas de tratamentos. Assim, mesmo com
um grande número de estudos que relacionam música e neuroplasticidade, ainda
não é possível se afirmar que a música “desempenha papel ativo em mudanças
estruturais no cérebro” (Rocha e Boggio, 2013, p. 138).
Mas, voltemos às intervenções:

Intervenções por oposição ou contraste – são as que trazem uma


manifestação do musicoterapeuta oposta à do paciente, estando este
cantando ou tocando um instrumento musical. Este tipo de intervenção
pode ser de forma súbita ou gradativa. São feitas:
- na altura do som (grave ≠ agudo)
- na intensidade (forte ≠ fraco – f e pp)
- no timbre (através dos diferentes materiais que emitem o som: pele;
madeira, metal, cordas ou, ainda, através dos instrumentos que se
necessita de ar para a emissão)
- no andamento (rápido ≠ lento)
- no ritmo (regular ≠ irregular)
- na melodia (contrapondo, por exemplo, uma melodia com graus
conjuntos a outra com graus disjuntos, ou vice-versa; uma melodia
conhecida a uma desconhecida)
- na harmonia (simples ≠ complexa; uma harmonia onde acordes
consonantes sejam preponderantes ≠ harmonia com grandes
dissonâncias, por exemplo).

Para ilustrar a questão pode-se trazer a atuação do musicoterapeuta quando


este quer sinalizar, por exemplo, que está na hora de terminar a sessão e o(s)
paciente(s) toca(m) em fff. O musicoterapeuta pode passar a tocar subitamente
em ppp, uma intensidade constrastante. Pode, também, gradativamente ir
diminuindo a intensidade, o que não se caracteriza como uma intervenção por
contraste mas que pode mostrar que o som está terminando. Este tipo de
intervenção também pode ser feito simultaneamente em dois parâmetros,
podendo-se também diminuir o andamento.

Intervenções por desagrado

Embora este tipo de intervenção não seja musical no sentido de


ser feita através da estrutura musical, a referência aqui é em
relação ao emprego de instrumentos musicais que desagradam
ao paciente. Embora possa parecer um despropósito,
dependendo do paciente ou da situação, esta será uma
intervenção bastante potente e que pode trazer resultados, desde
que não traga prejuízos ou reações que possam causar um
grande desconforto ao paciente.

Cena clínica 19
Alex, como será chamado o paciente aqui apresentado, era portador da
Síndrome do Miado do Gato90 que tinha um ano e seis meses quando foi
encaminhado à musicoterapia pela médica da instituição. Apresentava como
características da síndrome: hipotonia moderada, micrognastia (mandíbula
pequena), deficiência intelectual e uma leve microcefalia. Com essa idade ainda
não se mantinha sentado sem apoio e não emitia nem um som. Mas, o motivo de
seu encaminhamento à musicoterapia foi a aquisição de um comportamento
autista que não está entre os aspectos que em geral fazem parte da síndrome.
Alex não mantinha contato com o olhar, nem sequer olhava para os objetos
colocados à sua frente. Quando se entrava em seu campo de visão para mostrar
algo, ele olhava para cima. Se esse objeto fosse colocado no ponto para onde
ele dirigia seu olhar ele inclinava a cabeça para trás, ou seja, ele fugia não só
do contato através do olhar, mas, também, recusava-se a ter que olhar alguma
coisa. Além disto, Alex não aceitava o contato corporal. Eu não conseguia ficar
com ele no colo: ele escapava do meu colo, como um peixinho molhado que se
debate e escorrega das mãos, mesmo que eu tentasse mantê-lo comigo.
Eu tocava vários instrumentos e cantava músicas infantis conhecidas e
improvisava criando letras que “legendavam” as ações que fazíamos, enfim,
tentava de todas as maneiras o contato com Alex. Na busca de um instrumento
que o interessasse percebi que ele tinha uma reação facial que parecia de
desagrado quando eu tocava o reco-reco de madeira.
Depois de tentar de várias maneiras entrar em contato com Alex decidi
utilizar o reco-reco! Imaginei que ele poderia me “ouvir” e perceber a minha
presença através do reco-reco. Assim, decidi tocar o instrumento e ver qual
seria a sua reação. Como eu esperava, ele fez imediatamente uma expressão
facial de que aquilo o desagradava, mas me olhou. Rapidamente substituí o
instrumento pelo violão acompanhando a voz e assim conseguia trazê-lo para o
contato, ou seja, eu utilizava algo que o desagradava e no momento em que ele
respondia, eu trazia um instrumento do seu agrado.
Aqui foi utilizado um instrumento, mas poderia ser uma melodia, uma
canção, enfim, algo do desagrado do paciente, ou seja, que chamasse a sua
atenção por desagradá-lo.

Intervenções corporais – são feitas através de gestos, posturas e olhares.


Em musicoterapia acontecem com frequência, já que o musicoterapeuta
utiliza muito o corpo, primeiro instrumento musical do homem.

Cena clínica 20
Norma, 21 anos, com um quadro de “epilepsia com expressão deficitária”,
com um comportamento perseverativo, não aceitava que os instrumentos
musicais, pessoas e objetos da sala fossem trocados de lugar e que se tocasse os
instrumentos musicais de uma maneira não convencional. Trabalhar esse seu
comportamento perseverativo era um dos objetivos na musicoterapia.
Em uma determinada sessão, ao entrar na sala, Norma me encontra
sentada na almofada em que ela costumava sentar-se. Imediatamente assume
uma postura corporal de autoridade e desafio: mãos na cintura, perna direita
para frente e pé direito batendo no chão! Ao mesmo tempo dizia num tom
autoritário; “nós não vamos começar”? Ainda sentada na almofada, coloco as
mãos na cintura, espelhando ou refletindo a sua atitude. Assim que Norma se vê
‘refletida’ por mim, ‘quebra o pulso’, desaparecendo o caráter de desafio que
havia assumido. Senta-se numa outra almofada e me diz com tom de quem
‘manda no espaço’: – “pode sentar aí, Rejane, eu deixo”! Continuo sentada na
almofada onde ela costumava sentar-se, e a sessão começa.
No momento em que Norma vê a minha intervenção corporal espelhando
a sua postura de desafio, percebe o que estava acontecendo e muda
completamente de atitude, inclusive o tom de voz e a forma como se dirige a
mim.
Ainda se torna necessário apresentar intervenções musicais que embora
não sejam feitas através da estrutura musical, são importantes ferramentas a
serem empregadas, como tenho testemunhado frequentemente na prática clínica:

Intervenções paraverbais – que se referem aos aspectos ‘musicais’ da fala,


ou seja, que não são feitas através do verbal mas, através daquilo que
acompanha o verbal, como modificações na voz:
- na emissão
- nas modificações que se faz no tom da voz
- na intensidade empregada nessas emissões ou, ainda,
- nas inflexões rítmico-sonoras da fala e na mímica verbal.

Estas intervenções são passíveis de aparecerem também através do canto.

Discussão
Caberia aqui uma última discussão: deveríamos nos ater à utilização de
intervenções musicais, já que estamos trabalhando com um elemento não verbal,
que é a música? Partindo da postura que adoto com relação à utilização da
palavra num processo musicoterapêutico eu diria que quaisquer intervenções
devem ser utilizadas, sejam elas musicais ou verbais, desde que possam
contribuir para o desenvolvimento do processo terapêutico.
Em minha opinião, deve-se utilizar a palavra em musicoterapia quando for
necessário ou quando o paciente dela se valer, desde que não seja para
‘controlar’ a situação. Caso contrário, estaremos numa situação “autista”, na qual
o paciente fala e o musicoterapeuta responde tocando ou cantando. No entanto, o
musicoterapeuta deve perceber em que momentos é adequado, ou não, fazer uso
da palavra.
Mas, voltando-se à questão das intervenções, ainda se deve sinalizar que
mesmo que a musicoterapia não utilize todas as intervenções empregadas em
psicoterapia, abre-se uma enorme gama de possibilidades a partir do momento
em que as intervenções musicais também podem, e devem, ser feitas.
Outro aspecto importante é que não há em musicoterapia uma hierarquia
no emprego das intervenções. Mas há, ou deve haver, uma flexibilidade por parte
do musicoterapeuta que as utiliza. O emprego das mesmas vai depender de
alguns fatores, como, por exemplo, do paciente, do momento e, evidentemente,
da abordagem teórica à qual se filia o musicoterapeuta.
A possibilidade de se distinguir os diferentes tipos de intervenções
passíveis de serem utilizadas em musicoterapia abre caminho para se investigar
mais acerca do emprego das mesmas. Assim, pouco a pouco, poderemos
avançar, refletir e discutir sobre os usos da música como elemento fundamental
em um processo musicoterapêutico.

Considerações finais
À medida que se reflete e discute sobre aspectos que fazem parte de um
processo musicoterapêutico, cresce em mim a certeza de que não só o ato de
“fazer música” a torna uma ferramenta extremamente importante para ser
utilizada como elemento terapêutico. Cada vez mais acredito que a música, além
de dar um grande prazer àqueles que dela se acercam, tem qualidades que se
constituem como experiências que podem ser terapêuticas para os pacientes
quando utilizadas por profissionais que dela se valem de forma apropriada e
específica, num contexto onde se tem por objetivo o desenvolvimento de pessoas
que precisam de ajuda. Ela pode provocar reações e associações, ou seja,
mobilizar aspectos físicos, psíquicos e emocionais que muito vão contribuir para
o desenvolvimento bio-psico-social do indivíduo.
Guardo ainda a convicção de que a compreensão musical e a leitura
musicoterapêutica que fizermos de um processo, serão de extrema importância
para o desenvolvimento da musicoterapia, que terá na própria música, grande
parte da sua fundamentação teórica.
A MUSICOTERAPIA NO TRATAMENTO DA
AMUSIA DE UMA PACIENTE COM FORMAÇÃO
MUSICAL ANTERIOR

Introdução
A utilização da música como elemento terapêutico com pacientes com
formação musical tem provocado muitas discussões entre os musicoterapeutas.
Este trabalho objetiva apresentar o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico de uma paciente de 39 anos, que havia tido experiência como
pianista e compositora e que foi acometida de um Acidente Vascular Encefálico
(A.V.E.), deixando como sequela uma Hemiplegia Direita91 e uma Afasia
Sensorial com Amusia92. O tratamento foi desenvolvido na Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), Rio de Janeiro, no período de
março a outubro de 1976 – num total de 53 sessões – sob supervisão médica. A
musicoterapeuta fazia parte de uma equipe interdisciplinar composta de
fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga e, posteriormente,
psicoterapeuta.

Desenvolvimento do tratamento musicoterapêutico

História clínica
A paciente sofreu uma hemorragia cerebral em 8/9/1975, deixando como
sequela uma hemiplegia direita e uma afasia sensorial com amusia. Uma
angiografia constatou um “aneurisma da artéria comunicante posterior
esquerda”. Imediatamente após, sofreu um “espasmo arterial difuso” que
aumentou a gravidade de seu estado sendo então submetida a uma “clipagem do
aneurisma”. O quadro de hemiplegia e afasia se manteve e a paciente oscilava
entre o estado de vigília e sonolência quando foi internada.
Dora foi admitida na instituição um mês depois do A.V.E. (10/10/75),
chegando em maca, sem nenhuma comunicabilidade. Por estar em estado total
de dependência era necessário ser alimentada, vestida e higienizada. Abria os
olhos, mas não acompanhava com o olhar os movimentos que eram feitos ao seu
redor. Sua mastigação e deglutição eram normais. Tinha sonda permanente na
bexiga e seu intestino não funcionava.
Foi solicitada uma avaliação na fisioterapia, para troca de decúbito e
mobilização passiva no leito. Logo após, a paciente começou, também ainda no
leito, um tratamento de terapia ocupacional. Este tinha por objetivo o
desenvolvimento da percepção e movimento do membro superior direito.
Posteriormente a paciente foi encaminhada à fonoaudiologia, para o tratamento
da afasia. Depois de uma evolução parcial nestes tratamentos, foi encaminhada à
musicoterapia.

Encaminhamento à musicoterapia
A terapeuta ocupacional foi quem sugeriu à equipe médica o
encaminhamento da paciente à musicoterapia, objetivando o apoio ao
desenvolvimento da percepção, aspecto que estava sendo trabalhado naquele tipo
de tratamento. Quando Dora começou a ser atendida na musicoterapia estava em
cadeira de rodas, sem comunicação verbal. Cabe sinalizar que a paciente era
destra, informação importante pelo fato de ter ficado como sequela uma
hemiplegia direita, ou seja, com o dimídio direito comprometido motoramente.

Etapas do processo musicoterapêutico

Dados pessoais

Como a paciente não falava, a entrevista inicial e ficha musicoterápica


deveriam ser feitas com seu filho de 18 anos, que só pôde vir à instituição depois
de Dora ter iniciado o tratamento na musicoterapia. Assim, pelo fato de a equipe
solicitar que Dora fosse atendida imediatamente, optou-se por não esperar a
vinda do filho e dado pessoais foram colhidos no prontuário:

Identificação
Nome – D.I.L.
Sexo – Feminino
Nascimento – 1936
Naturalidade – nasceu em uma cidade do interior de Minas Gerais e depois se
transferiu para o Rio de Janeiro.
Número de irmãos – seis, sendo Dora a irmã mais velha
Estado civil – desquitada
Filhos – três (18, 16 e 9 anos)
Religião – católica
Residência – Rio de Janeiro.

Testificação musicoterapêutica93
Na impossibilidade de se ter informações sobre a sua história sonoro-
musical decidiu-se começar o processo pela etapa possível: a testificação
musicoterapêutica, feita com a própria paciente.
No primeiro contato que tive com Dora tentei descobrir aspectos de sua
Identidade Sonora94 e de seus interesses e preferências – músicas e
instrumentos. Dora rejeitava tudo. Sentada na cadeira de rodas colocada à
direita, no final do teclado do piano — de forma que eu me virando à direita
ficasse à sua frente —, negava-se, com movimentos de cabeça, a segurar os
instrumentos que eu lhe oferecia: pandeiro, maraca e guizos (presos a uma
armação de madeira), e não aceitava cantar95 as músicas que eu tocava. Enfim,
negava-se a fazer qualquer atividade proposta.
Na segunda sessão voltei a lhe oferecer instrumentos e ela escolheu o
pandeiro, apontando para o instrumento, para acompanhar uma música em
compasso 2/4 que eu tocava ao piano. Segurou o instrumento mas nem sequer
moveu a mão. Eu toquei também músicas infantis e músicas de sua região de
origem.
Perguntei-lhe se queria trocar o instrumento e ela moveu a cabeça
afirmativamente. Assinalou a maraca com o dedo e novamente só segurou o
instrumento sem tocar. Frente à não participação de Dora, tomei a decisão de
tocar outra música, desta vez em 3/4 – a Valsinha96, cujo componente
predominante é a melodia (carregada de elementos expressivos muito fortes –
apogiaturas, modulações e possibilidades de fraseado e variações de agógica e
dinâmica). Nesse momento a minha intenção era a de ‘impactar’ Dora. Eu não
pretendia mais que ela tocasse junto comigo mas, sim, tinha por objetivo
mobilizá-la através da música, para com ela me comunicar e começar a
estabelecer o vínculo terapêutico. Ela permaneceu muito atenta e quando
terminei, ela disse, vagarosamente: – “gostei muito”! Toquei então outra valsa: A
Volta ao Mundo97 e, quando acabei, ela falou, ainda lentamente, como
procurando as palavras: – “muito bem”!
Pude observar, enquanto tocava, o seu interesse pelo que eu fazia através
da forma como ela olhava para o teclado do piano. Percebi que nesse momento
estava se abrindo um canal de comunicação. Isto me levou a lhe perguntar se
gostaria de tocar piano. Ela respondeu que sim e sua cadeira de rodas foi
colocada frente ao instrumento. Começou a tocar com a mão esquerda (a direita
estava sem movimentação), sem produzir sons, apesar de pressionar as teclas.
Estava acabando a segunda sessão.

Avaliação
A partir das duas primeiras sessões, tomadas como testificação, pude
observar que a identidade sonora de Dora estava ligada ao piano; que o
compasso 3/4 parecia atraí-la mais, assim como os elementos musicais mais
expressivos. Também pude constatar que Dora não estava localizada no espaço e
que não tinha noção de tempo98. Seu tipo de linguagem era “não-verbal” –
negava-se a tudo com movimentos de cabeça e sinalizava apontando com o
dedo. Sua percepção estava prejudicada. Tinha transtornos no reconhecimento e
evocação de melodias. Com estas informações, estabeleci os seguintes objetivos:

estabelecer o vínculo terapêutico com Dora a partir de seu canal expressivo;


propiciar aquisições paralelas a partir do aumento de sua comunicação com
o mundo externo;
desenvolver o sentido de realidade (localização no espaço e no tempo);
reaquisição da linguagem musical;
reaquisição da linguagem verbal;

Frequência e Duração das Sessões de Musicoterapia


Dora foi encaminhada à musicoterapia para ser atendida três vezes por
semana, com sessões de meia hora, mas com a evolução do quadro a equipe
solicitou cinco sessões semanais. No entanto, Dora continuou a ser atendida três
vezes por semana, por impossibilidade desta musicoterapeuta.
O Processo Musicoterapêutico
Descoberto o canal de comunicação nas duas primeiras sessões, que foram
tomadas como testificação musicoterapêutica, (como foi descrito
anteriormente), foram traçados os objetivos e se iniciou o trabalho para o
estabelecimento do vínculo musicoterapeuta-paciente.
Na sessão seguinte, a terceira, perguntei-lhe se gostaria de tocar piano,
partindo das reações observadas nas duas primeiras sessões, e Dora respondeu
afirmativamente com a cabeça. Colocada frente ao instrumento tocou, sempre
com a mão esquerda, devido à impossibilidade de tocar com a direita:

Quando acabou, perguntei-lhe o que havia feito e ela respondeu lentamente


que “era de quando eu estudava piano”. No entanto, não soube dizer o que havia
tocado99.
Cabe ressaltar que a partir deste pequeno trecho tocado por Dora pude
perceber dois aspectos muito importantes: o primeiro deles é que seria
impossível para uma pessoa que não soubesse música, tocar este trecho. Deve-se
lembrar que aqui ainda não se tinha informações sobre a sua formação musical.
Em segundo lugar é que o que Dora tocou termina em tensão, pois o acorde de
7a não resolve. Isto me levou a pensar que esta tensão musical poderia estar
refletindo uma tensão interna.
Parece-me importante também assinalar que Dora começou a se expressar
verbalmente, pouco a pouco, e com muita dificuldade, mas repetindo tudo o que
se falava, de forma ecolálica.
Fiz logo depois o reconhecimento de melodias e Dora dizia não reconhecer
nenhuma delas (músicas, infantis, folclóricas de sua região de origem e
populares). Nesse momento o tratamento foi interrompido porque a paciente foi
levada a outro hospital para submeter-se a uma cirurgia para a colocação de uma
válvula.

Ficha Musicoterapêutica100
Só foi possível obter as informações que constam da ficha
musicoterapêutica, após a vinda do filho de Dora à instituição, depois da terceira
sessão. Nessa entrevista eu soube que Dora havia estudado piano, bem como
todos os seus irmãos. Tocava música erudita e popular. Compunha e cantava.
Havia competido em sua cidade natal em alguns festivais de música popular com
composições de sua autoria. Não tinha piano em sua casa no Rio de Janeiro.
Deve-se, sinalizar, aqui, a partir da situação desta paciente, que apesar de
existir uma ordem de realização das etapas de um processo terapêutico, é preciso
que o musicoterapeuta seja flexível, pois nem sempre pode se seguir a ordem
desejável, ou, até, realizar todas essas etapas.

Continuação do processo terapêutico


Duas semanas depois da intervenção, Dora voltou a ser atendida e
recomecei tocando a “Valsinha”. Ela não reconheceu a música e outras melodias
que toquei, nem as letras das mesmas mas, no momento em que eu falava uma
palavra da letra ela cantava partes da música, como se essa palavra funcionasse
como um disparador de algo armazenado na memória.
Aqui é útil se trazer uma definição de memória: “Memória é a aquisição,
conservação e evocação de informações” (Izquierdo, 2004, p. 15). Dois aspectos
merecem destaque: que três itens compõem a função da memória e que, nestas
‘informações’ estariam entendidas também as informações musicais. Mas, é na
evocação de informações que temos que nos concentrar aqui, já que a perda da
memória da paciente se apresentava também através da música.
Mas, aqui caberia uma pergunta: depois deste episódio seria possível
pensar-se que a perda de memória apresentada através da música poderia ser
readquirida também a partir da música?
Para responder essa pergunta, cabe lembrar que a música, aqui, é
propiciada pelo musicoterapeuta, sabendo-se da importância do ‘outro’ na
reconstrução da memória individual e entendendo-se que a partir da reconstrução
da memória musical, ‘outras memórias’ poderiam ser reconstruídas. Ou seja, a
reconstrução musical pode ser o ‘gatilho’ para a reconstrução da memória em
outras áreas, tendo-se na prática da musicoterapia uma cadeia que poderia ser
assim ilustrada: o musicoterapeuta seria um agente da evocação de aspectos
musicais, que funcionariam como disparador da evocação da música e,
consequentemente, como um disparador da memória em outras áreas. Isto
poderia ser assim representado:
Na Musicoterapia Interativa essa reconstrução pode ser feita como um
jogo, no qual ora o musicoterapeuta, ora o paciente vão evocando partes de um
todo que pode ser vivenciado também em conjunto. Como a estrutura musical é
altamente complexa — por ser constituída de uma rede de elementos (sons,
ritmos, melodias e harmonias), permeados, cada um, por vários parâmetros
(altura, intensidade, timbre e andamento) — o musicoterapeuta terá à disposição
muitas formas de acionar a memória musical do paciente e, consequentemente,
outros tipos de memórias. Especialmente no caso de Dora, que havia sido
pianista e compositora, a música (e seus aspectos formais da música) era(m) um
terreno comum onde tanto a musicoterapeuta quanto a paciente pisavam.
Mas, retoma-se a situação da volta de Dora que, depois de duas semanas de
ausência para a colocação de válvula, voltou à sala e não reconheceu a Valsinha
e outras músicas populares que ela já havia reconhecido anteriormente.
Logo após eu tentar partir de onde tínhamos parado, que era o
reconhecimento dessas músicas, a paciente se segurou na parte inferior do
teclado do piano para colocar a cadeira de rodas frente ao instrumento e assim
poder tocá-lo. Manifestou então o desejo de tocar uma melodia que disse “estar
confusa” em sua cabeça. Colocou a mão esquerda no piano e fez o seguinte:

Identifiquei a música e toquei o mesmo trecho que ela havia tocado,


fazendo uma intervenção musical rítmico-melódica clarificadora:

Na sua execução Dora modificara o compasso: tocou em quaternário; e o


ritmo: semínimas ao invés de colcheias e semibreves, em lugar das mínimas
pontuadas. Além disto, mudara a melodia: um intervalo de terça, ao invés da
quarta. Toquei o mesmo trecho trazendo a música como fora composta,
clarificando o compasso: ternário; a duração de todas as figuras, e os intervalos
da melodia original. Tirei a mão do piano sem falar palavra, e Dora voltou com a
mão ao piano, continuando a tocar a música até o final. Quando terminou de
tocar disse: “eu tocava muito esta música”. (Saudades de Matão-Jorge Galati,
música muito executada em Minas Gerais)101.
Aqui temos um exemplo onde a memória de Dora começa a dar sinais de
recuperação e onde a interação entre a paciente e a musicoterapeuta
exemplificam o exposto anteriormente. Percebe-se que a intervenção
clarificadora da musicoterapeuta funciona como um “gatilho” ou como um
elemento disparador para recrutar a memória.
A esta altura do processo musicoterápico decidi adaptar e fazer com Dora
um teste que foi feito com Ravel por seu médico, com a ajuda de um aluno de
música daquele, quando Ravel se tornou afásico102, acometido por uma doença
cerebral orgânica – a doença de Pick ou PiD, agravada por um acidente de táxi.
O objetivo era ver o que Dora havia conservado, ou não, do conhecimento
musical anterior e compreender melhor sua dinâmica musical, dado que ela era
musicista antes de sofrer o AVE. Este teste foi feito na 7a sessão e no final do
processo, na 52ª sessão, para que se pudesse avaliar o desenvolvimento de Dora
com relação aos aspectos musicais, o que certamente traduziria uma evolução
também em outras áreas, e na sua totalidade. Somente depois de observar a
capacidade musical e a musicalidade de Dora eu poderia aplicar o teste, cujo
resultado está abaixo transcrito.
A partir do momento em que Dora tocou “Saudades de Matão”,
começamos uma nova fase. Dora ia então evocando músicas populares que
tocávamos juntas. Ela fazia a melodia com a mão esquerda (no agudo) e eu a
harmonia (no grave).
A paciente trouxe, também, música erudita como Grieg – “Concerto Op. 16
em Lá menor” e Bach – “Jesus Alegria dos homens”, que tocava em Dó M, Fá
M, Sol M ou, enfim, em qualquer tonalidade, sempre fazendo a melodia e eu a
harmonia103.
Nesse momento, na fonoaudiologia, Dora começou a trabalhar sobre a vida
de Bach e também a analisar as letras das músicas populares que tocava e
começava a cantar na musicoterapia.
Começamos também a improvisar. No princípio Dora fazia a melodia e eu
a harmonia e depois que Dora começou a tocar a harmonia de músicas populares
também passamos a improvisar: ela a harmonia, ao mesmo tempo que eu
improvisava uma melodia.
Sua linguagem verbal foi se organizando pouco a pouco, acompanhando a
organização da sua linguagem musical: ou em decorrência desta. Seu espaço e
seu tempo passaram a corresponder aos do “Processo Secundário”, que é “o
pensamento comum, consciente, [...] primariamente verbal, e obedecendo às leis
habituais de sintaxe e lógica” (Brenner, 1973, p. 44).
Passou a expressar conteúdos mobilizados pelas músicas que ia evocando.
Neste momento achei importante encaminhá-la para a psicoterapia. A equipe,
formada por fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga,
musicoterapeuta e psicoterapeuta, tinha reuniões frequentes para avaliar o
desenvolvimento de Dora. Musicoterapeuta e psicoterapeuta passaram a ter
contatos periódicos para discutir os conteúdos que estavam sendo mobilizados,
expressados e elaborados através da música e verbalmente.
Penso que o tratamento de Dora seguiu um processo de aprofundamento
que poderíamos representar desta forma:

Todos estes profissionais que trabalhavam com Dora estavam sempre em


contato para discutir e tomar decisões acerca do desenvolvimento do processo.

Alta
Em 6/10/76, (um ano depois de ser admitida na instituição – 10/10/75 – e
cinco meses depois de ter começado a musicoterapia – 22/3/76), Dora teve alta
do regime de internação. Voltou para casa e passou a vir regularmente para os
tratamentos, só duas vezes por semana.
Dora não teve grandes avanços na reaquisição da marcha, embora pudesse
caminhar com auxílio de bengala; falava com inflexões rítmico-sonoras e
utilizava bem a linguagem que estava agora adequada à sua idade e à sua
situação sócio-cultural. Apresentava-se bem localizada no espaço e no tempo e a
sua percepção do mundo estava adequada à realidade (tinha preservada a
consciência do “eu” e percebia bem o “outro”).
Pouco depois, passou a faltar a todos os tratamentos e os terapeutas
ficaram sabendo, através da secretaria da instituição, que a família solicitara alta.
Por falta de orientação, a família não teve condições de acompanhar e
compreender melhor o desenvolvimento da paciente, o que culminou com a
solicitação de alta. Dora continuou em casa, apenas com o tratamento
fisioterápico, ou seja, a alta não foi dada por nem um dos muitos terapeutas que
a acompanhavam na instituição.

Breve Discussão
Hoje são muitas as contribuições das neurociências sobre a relação da
música e distúrbios neurológicos. Além disto, muitos são os estudos conduzidos
atualmente, que buscam estabelecer a relação entre a plasticidade e o cérebro de
músicos; a correlação entre tempo de estudo musical e diferenças estruturais no
cérebro e, ainda, a possibilidade de uma possível correlação entre a idade em que
a pessoa começou a estudar música e mudanças estruturais no cérebro, além de
haver hipóteses ainda necessitando de comprovação que definam se já havia uma
predisposição para o desenvolvimento destas mudanças, anterior ao estudo de
música (Zatorre; Chen; Penhume, 2007; Schlaug et al., 1995, citados por Rocha
e Boggio, 2013).
Destes estudos, pode-se depreender a complexidade do tema. Atualmente
já existem também achados que comprovam a diferença entre o funcionamento
do cérebro de músicos e não- músicos mas, à época em que a paciente objeto
deste estudo foi atendida só se podia observar a diferença da sua atuação em
relação aos outros pacientes com sequela de AVC e AVE e, também, a diferença
nos resultados obtidos entre ela, com formação musical e os outros sem nenhum
conhecimento de música, embora o seu estado fosse muito mais grave do que a
maioria dos outros pacientes. Especialmente no caso de Dora, que havia sido
pianista e compositora, a música era um terreno comum onde tanto a
musicoterapeuta quanto a paciente pisavam, contribuindo para que a interação
numa área de expertise da paciente mobilizasse e pusesse em movimento
aspectos muito específicos de sua identidade.

Considerações finais
Através do processo musicoterapêutico se pôde observar e compreender
que a música, um elemento tão próximo de Dora possibilitou:

a abertura de um canal de comunicação;


o estabelecimento do vínculo com a musicoterapeuta, que se deu pela
comunicação através da música, pela interação interpessoal e pelo fato de
esta haver utilizado o instrumento que fazia parte da identidade sonora da
paciente – o piano;
a organização do ritmo e melodia, através da vivência destes na prática
instrumental o que a levou certamente a uma organização global e,
a expressão de seus conteúdos de forma “não verbal” – quando não podia se
expressar verbalmente – através de uma linguagem por meio da qual muito
se expressara anteriormente, como compositora e intérprete, e que, por isto,
devia ser muito especial para ela.

Concluímos que em casos como este é essencial que o musicoterapeuta


tenha formação musical pois os elementos que o paciente evoca e vai
readquirindo de forma paulatina, em sua comunicação com o musicoterapeuta e
a partir da própria música, vêm impregnados de elementos de uma aprendizagem
musical formal, anteriormente existente. Portanto, cabe ao musicoterapeuta não
só ter o conhecimento e a compreensão do processo desde o início, mas tornar-se
um “continente musical104” para o paciente. Lembra-se que a primeira execução
de Dora trouxe elementos musicais formais.
No entanto, além deste primeiro enfoque é necessário ter-se uma
compreensão psicodinâmica pois esta permitirá, dentro do contexto musical,
entender seu significado dentro do processo de desenvolvimento do tratamento.
A utilização da música como forma de comunicação não se realizou para
que se desenvolvesse em si mesma, mas, para que, através dela, Dora pudesse
incorrer no mundo progressivo da linguagem, partindo da linguagem musical —
comunicação “nãoverbal” —, até poder utilizar adequadamente a linguagem
codificada e mais empregada por nós: a linguagem verbal. Ainda é importante
ressaltar que o crescimento de Dora não foi dirigido por mim, mas, foi seguindo
as suas manifestações que pude instituir um desenvolvimento. Também se deve
frisar que não assumi uma atitude pedagógica para que ela readquirisse ‘a sua
música’. Este crescimento foi instigado ou induzido pela minha participação na
recuperação de sua comunicação e daí, na reabilitação de sua saúde, juntamente
com os outros profissionais que com ela trabalharam.
Desta forma, a partir do início da relação musicoterapêutica e através da
vivência com a música, Dora, que vinha de um momento traumático em sua
história, pôde começar a experienciar novamente, ainda que por alguns instantes,
que era ela o elemento principal na comunicação e que todo o contato se
organizaria partindo do que ela oferecia como elemento eficiente. Ainda que
sabendo o que Dora trazia como aprendizagem musical e musicalidade, deve-se
assinalar que o desenvolvimento do processo musicoterápico foi baseado na sua
possibilidade de crescimento.
Dora investiu em seu desenvolvimento e a partir daí diminuiu a defasagem
que passou a existir no momento em que o AVE a deixou bastante distante de
seu nível real de capacidade. Pôde, assim, readquirir uma série de funções que
permitiram sua readaptação e reintegração no mundo — ainda que com
limitações físicas —, a partir da objetivação de suas potencialidades.
CADERNO 3
Teoria e Prática Clínica
NOTA INTRODUTÓRIA

Desde a primeira publicação dos Cadernos, assumi a posição de não ter um


critério específico para a publicação de textos já escritos anteriormente. Assim,
apareceram no primeiro Caderno dois textos teóricos seguidos de um teórico-
didático e outro clínico, no segundo Caderno.
Nesta terceira publicação aparecem dois artigos que apresentam a prática
clínica com pacientes inteiramente opostos no que se refere à patologia, à idade,
às raízes culturais e à realidade sócio-econômica. Estes atendimentos também
diferem por terem acontecido em momentos bastante diferentes. O primeiro foi
desenvolvido de 1980 a 1985 e o segundo de 1989 a 1993.
Com isto pretende-se, levantar a partir da prática clínica, aspectos que
sejam passíveis de discussões teóricas que possam ser importantes para o
desenvolvimento da Musicoterapia.
ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DE UM
QUADRO DE EPILEPSIA COM EXPRESSÃO
DEFICITÁRIA

Introdução
Alguns musicoterapeutas têm a preocupação em utilizar a música não só
como elemento terapêutico, mas também dela se valem para explicar o processo
musicoterapêutico. Esta explicação feita através da própria linguagem musical
eu denomino de “leitura ou análise musicoterapêutica” (Barcellos, 1982).
A preocupação em fazer uma “análise musicoterapêutica” pode nos levar a
refletir sobre o processo terapêutico e, consequentemente, contribuir para que a
musicoterapia tenha uma especificidade, o que vai nos conduzir para a obtenção
de uma maior identidade profissional.
Minha indagação é: será possível explicar e avaliar o processo
musicoterapêutico, isto é, explicar o quê e como acontece, partindose da “análise
musicoterapêutica” da sessão?
Cabe aqui diferenciar-se “análise musical” de “análise musicoterapêutica”.
A “análise musical é a análise que tem como referência a própria música, e
não parâmetros externos” (Dicionário Grove de Música, 1994, p. 28). Assim, é
possível se fazer uma análise musical da música/produção musical do paciente.
No entanto, difícil seria ter-se uma compreensão do paciente através da análise
musical. Já a “análise musicoterapêutica” é compreender-se o paciente através
do musical que ele expressa e de como ele expressa. Isto em relação aos
parâmetros musicais, à escolha dos instrumentos e à forma de tocar os mesmos,
enfim, em relação ao setting musicoterápico, e às histórias do paciente: de vida,
clínica e sonoro-musical.
Para fazer uma diferença entre estes dois tipos de análise pode se trazer
exemplo que é: um paciente fez um trecho
no tambor,
em fff,
em 2/4,
rápido.

Uma análise musical se refereria ao timbre, à intensidade, ao compasso e


ao andamento, ou seja, exclusivamente a aspectos musicais.
Mas, a pergunta seria: como está esse paciente? E é através das respostas
que se pode observar a diferença entre os dois tipos de análise. Dentre estas
estão: com raiva, ‘nervoso’, ansioso, hiperativo e muitas outras desse mesmo
tipo. Em sala de aula, sempre pergunto aos alunos: não se poderia dizer que está
alegre? E a minha hipótese é considerada. O que se quer mostrar, aqui, é que só a
análise musical não dá conta de dizer como está um paciente. É necessário mais
do isto, ou seja, a “análise musicoterapêutica” que seria a análise musical,
incluindo as histórias do paciente (de vida, clínica e sonoro/musical) e a escuta
do musicoterapeuta105.
Assim, deve-se assinalar que este trabalho tem por objetivo provocar uma
discussão sobre a possibilidade, validade e contribuições da “análise
musicoterapêutica” para a compreensão do desenvolvimento de pacientes e de
processos musico terapêuticos, levando-se em consideração a inexistência de
discussões e de trabalhos teóricos escritos obre o tema.
Para ilustrar estas ideias apresento um caso clínico, cujo atendimento se
desenvolveu em consultório particular, de abril de 1980 a fevereiro de 1985, num
total de 262 sessões.
É importante ressaltar que todo o processo foi acompanhado, sempre, por
um estagiário de musicoterapia do atual Bacharelado em Musicoterapia do
Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro – Centro Universitário
(CBM-CeU), cada um com a obrigatoriedade de permanecer por um ano letivo.
Assim, sucessivamente, cinco estagiários acompanharam o tratamento que se
desenvolveu durante cinco anos.

Dados Principais
História da Paciente
Inicialmente marquei uma entrevista com a mãe de Norma para conhecer
dados das histórias: pessoal, clínica e sonora da paciente. No momento da
entrevista me foi entregue, pela mãe de Norma, um “relatório” batido à máquina,
com toda a evolução da paciente, penso que numa tentativa de não se realizar o
contato pessoa-pessoa ou pelo fato de a mãe estar cansada de repetir a mesma
história para todos os profissionais que atendiam a filha, ou, talvez, por ser
penoso para a mãe relatar essa história. Contudo, o relatório foi guardado para
leitura posterior e a entrevista foi realizada.
Norma foi concebida logo após o casamento e nasceu de parto normal em
1959, com 2,510 kg. Foi alimentada no seio durante um mês e dias e teve sempre
alimentação normal. Tomou as vacinas de praxe. Com dez meses apresentou uns
“tiques”: “jogava a cabeça para frente e revirava ligeiramente os olhos” [sic]. Por
causa disto, foi feito um Eletroencefalograma106 (EEG), cujo resultado foi
normal. Com três anos teve a primeira convulsão e começou um tratamento
neurológico com Diamox, Misoline, Mirontin e Gardernal. Aos quatro anos fez
novo EEG que apresentou resultado “Anormal com Acentuada Disrritmia”.
Entre os três e cinco anos teve catapora, caxumba, coqueluche e sarampo.
Continuou com a medicação – Mirontin, Gardernal, Zarontin, Diamox e
Misoline. Apesar de estar medicada continuou com as crises convulsivas. A
medicação passou a ser Trinuride, Ácido Glutâmico e Organo Neurocerebral.
Nessa época o diagnóstico foi: “crises de pequeno mal”. As crises foram
mudando de forma e o comportamento de Norma também, pois ela ficou
completamente “aérea” [sic]. Fez “tratamento espiritual” com o médium Arigó
que também deu o mesmo tipo de medicação. Em 1968, com nove anos, passou
a fazer um tratamento de recuperação em clínica especializada, através de
exercício de etapas neuroevolutivas iniciais como rolar, arrastar-se, engatinhar
etc. A menarca foi aos dez anos.
Segundo o relato da mãe, Norma ainda fazia em casa, em 1980, com 21
anos, esta “ginástica”, quando não estava bem, o que pude constatar em vários
momentos do tratamento musicoterapêutico, quando ela propunha que
fizéssemos ‘ginástica’ e trazia exercícios que podiam ser identificados como
sendo de fisioterapia e, também, pela calosidade que apresentava nos joelhos
(consequência do engatinhar, certamente).
É interessante se observar que além de Norma ser levada a etapas
primitivas de desenvolvimento, ela era vestida e penteada como uma menina,
pois, apesar de ter 21 anos, quando iniciou a Musicoterapia, usava “cachos” e
“tranças”. É importante ressaltar que à medida que Norma foi apresentando
mudanças de comportamento a sua aparência foi se modificando – roupas,
penteados e até os adereços que usava como pulseiras, colares e brincos
passaram a ser de uma adolescente/adulta. Foi colocada na escola com cinco
anos e novamente com sete, mas foi imediatamente retirada por não acompanhar
as turmas. A mãe passou a conduzir seu processo de alfabetização. Continuou
com a medicação e as crises passaram a acontecer principalmente nos períodos
de transição entre vigília e sono e vice-versa. Durante toda a infância e
adolescência Norma foi cuidada pela avó materna ou por empregadas pelo fato
de sua mãe trabalhar no serviço público. Seu pai era comerciante.
Foram realizados alguns testes de QI (Quociente Intelectual) que revelaram
a expressão deficitária mas à época em que foi admitida na musicoterapia Norma
lia e escrevia bem fazendo inclusive palavras cruzadas. A mãe a ensinava em
casa e foi também contratada uma professora particular.
Segundo diagnóstico médico Norma apresentava um quadro de Epilepsia
com início precoce, nos primeiros anos de vida, com crises iniciais de tipo
pequeno mal, evoluindo para um quadro de grande mal com crises
generalizadas. Foi relatado que Norma apresentava uma Expressão Deficitária
Mental, resultante do quadro epiléptico.

Encaminhamento à Musicoterapia
Norma foi encaminhada na mesma época, por um psicanalista, à
musicoterapia e à psicoterapia, tendo iniciado os dois tratamentos em abril de
1980. O psicanalista a encaminhou a estes dois tratamentos por achar que ela se
beneficiaria mais destes do que da psicanálise.

Desenvolvimento Do Tratamento Musicoterapêutico Testificação


musicoterapêutica
Os dados que foram fornecidos sobre a história sonora de Norma, foram
complementados no contato posterior com a própria paciente. Nesse contato
realizei uma testificação musicoterapêutica, com o objetivo de observar os
aspectos musicais que despertavam o seu interesse, e quais eram as suas
preferências e desagrados.
Junto com o “relatório” que foi elaborado pela mãe e me foi entregue no
momento da entrevista estava o relatório do profissional da clínica que Norma
frequentara anteriormente. Deste relatório constava uma informação à qual eu
deveria dar atenção especial: “eliminar música por algum tempo”. Perguntei à
mãe de Norma qual era a justificativa que havia sido dada para que se eliminasse
a música da vida de Norma, ainda que por algum tempo, e a mãe respondeu que
o médico dissera que “ela se isola muito quando ouve música”.
Este dado era de suma importância, já que a música, que é o nosso
principal instrumento de trabalho, poderia vir a ser um elemento iatrogênico107,
ao invés de terapêutico. Isto levantara uma dúvida quanto à sua elegibilidade
para a musicoterapia. Cabe esclarecer que Norma adotava essa postura de
isolamento quando ouvia música sozinha, o que não seria o caso na
musicoterapia pois há uma interação entre musicoterapeuta e paciente.
Há muito tempo este aspecto era objeto de reflexão e estudo para mim o
que culminou com a elaboração de um trabalho, cujo título é “O que é música
em musicoterapia”108, onde afirmo que

Muitas pessoas não acreditam na música como elemento


terapêutico porque ela pode nos transportar para um mundo de
fantasia, onde ficamos isolados. No entanto, quando partilhamos
com o outro a experiência de “fazer música” somos puxados
para fora de nós mesmos (Barcellos, 1984a, p. 38).

Musicoterapia “inter-ativa” é como denomino a forma de musicoterapia na


qual a experiência musical é partilhada entre musicoterapeuta e paciente, ambos
ativos no processo de fazer música. É a “inter-ação” simultânea, possibilitada
pelo fato de a música acontecer no tempo, o que leva mais facilmente à
“interação” de ambos e dificulta o isolamento.
Assim aceitei trabalhar com Norma, certa de que não seria uma abordagem
iatrogênica, por se tratar de algo que pretendia e poderia promover a interação.

Condições da paciente no início do atendimento, vistas através da


experiência musical
As condições de Norma no momento em que iniciou o atendimento foram
vistas através de sua atuação no setting musicoterapêutico e eram as seguintes:

Contato
não fazia contato visual com a musicoterapeuta;
não aceitava contato tátil tentado através de atividades como roda e dança.
Comportamento Perseverativo
preocupação em ocupar sempre o mesmo lugar na sala;
preocupação em encontrar e arrumar os instrumentos musicais sempre no
mesmo lugar e da mesma forma;
perseveração na escolha dos instrumentos musicais;
utilização dos instrumentos musicais só de forma convencional e não
aceitação de outro tipo de utilização;
utilização do mesmo material sonoro: fitas, discos e músicas;
não aceitação em ouvir o lado dois ou B de fita ou disco sem ouvir o lado
um ou A antes porque “o A vem antes do B e o 1 vem antes do 2”!

Memória
impossibilidade de lembrar o material rítmico-sonoro ou os instrumentos
utilizados em sessões anteriores.

Ocupação do Espaço
não utilização do espaço. Só utilizava o espaço que ocupava, tendo
dificuldade de se afastar dele, mesmo quando a musicoterapeuta solicitava.

Orientação Temporal
sem orientação no que dizia respeito a dias e horas.

Iniciativa
impossibilidade de escolha de instrumentos a serem utilizados, músicas a
serem cantadas ou tocadas e atividades a serem realizadas, solicitando
sempre que a musicoterapeuta ou estagiária o fizessem.

Movimentação Corporal
movimentos rígidos e irregulares que ela chamava de “ginástica” ou
“exercícios” para serem realizados junto com música.

Objetivos na Musicoterapia
A partir da entrevista com a mãe, da observação da atuação de Norma no
setting musicoterapêutico e de uma reunião com o neurologista e o
psicoterapeuta, foram estabelecidos os seguintes objetivos:

estabelecimento da relação ou do vínculo terapêutico;


contato através do som;
contato através do olhar e contato tátil;
modificação de comportamentos perseverativos;
modificação de movimentos rígidos;
melhoria da orientação espacial e utilização do espaço de forma mais livre;
desenvolvimento da orientação temporal;
desenvolvimento das possibilidades criadoras;
estímulo à iniciativa e melhoria dos aspectos emocionais.

Na verdade poderíamos agrupar estes objetivos numa única finalidade, isto


é, seu crescimento como pessoa.

Frequência e Duração das Sessões


As sessões foram realizadas duas vezes por semana de abril de 1980 até
outubro de 1984 quando Norma passou a ser atendida uma vez por semana,
começando a preparação para a alta que foi efetivada em 1985.

A Equipe Interdisciplinar
A equipe que atendia Norma não fazia parte de uma mesma instituição, ou
seja, cada profissional a atendia em seu consultório particular. Denomino este
tipo de equipe, de equipe informal109, em contraposição à equipe formal,
constituída por vários profissionais que fazem parte de uma mesma instituição e
podem aí se reunir para discutir as questões relativas a um mesmo paciente.
Em 1980 e 1981, a equipe que trabalhou com Norma era formada por
neurologista, psicoterapeuta e musicoterapeuta que realizavam reuniões
frequentes, sempre no consultório de um dos profissionais que a atendiam, para
debater sobre os procedimentos a serem adotados no tratamento. Em 1981,
Norma foi por nós encaminhada à Escolinha de Arte do Brasil. A partir daí a
equipe passou a contar com uma professora especializada em Educação através
da Arte.

Descrição do Tratamento Musicoterapêutico

Abordagem Teórica
A abordagem teórica utilizada para fundamentar o processo
musicoterapêutico de Norma foi a Humanista Existencial que acredita que a
experiência de cada pessoa é única e que todas as pessoas têm dentro de si
mesmas uma força que as conduz ao crescimento. O terapeuta tem o papel de
facilitador; daquele que se “introduz” no mundo perceptivo do cliente e partilha
com ele seus sentimentos e percepções.
Anteriormente me referi à “Musicoterapia Interativa” onde
musicoterapeuta e paciente partilham a experiência musical, ativos no processo
de fazer música. Aqui o musicoterapeuta trabalha a partir do paciente que é o
centro da terapia. Qualquer manifestação rítmico-sonora, musical ou não, trazida
por este, é aceita pelo musicoterapeuta que tem o papel de facilitar e ajudar a
expressão da experiência interna através da música, interagindo ou fazendo
intervenções, quando necessário, em geral, musicalmente. Assim, dentro de uma
relação estabelecida através de um elemento não verbal – a música – o paciente,
por ter a expressão de sua experiência interna aceita integralmente e por
compartilhar esta experiência com o musicoterapeuta, pode se sentir livre para
crescer, passando a expressar seus conflitos e conteúdos internos através da
música.
A música é, então, ao mesmo tempo, o elemento de expressão e
clarificação/conscientização, através do qual se faz o crescimento do paciente,
num movimento que denomino “reação sonora em espiral” (Barcellos, 1984a, p.
39).
1. manifestação sonora do paciente;
2. aceitação e utilização da manifestação sonora do paciente por parte do
musicoterapeuta e retorno desta para o paciente, para um ponto diferente
por trazer uma gratificação decorrente da aceitação + utilização +
valorização;
3. nova manifestação do paciente, impulsionada pela gratificação advinda da
manifestação anterior.

Nos casos em que o paciente não tem condições ou não quer trazer
nenhuma manifestação, cabe ao musicoterapeuta incentivar/estimular/induzir o
mesmo a fazê-lo.
Algumas vezes é possível que o paciente repita uma mesma manifestação
até que consiga trazer uma nova ou a modificação da que foi trazida pelo
musicoterapeuta. Cabe ao musicoterapeuta entender quais são as possibilidades
do paciente e incentivá-lo, o que fará com que aconteça essa espiral sonora de
desenvolvimento.

Técnica Utilizada
A escolha da abordagem teórica Humanista Existencial para nortear o
desenvolvimento do processo musicoterápico de Norma se deveu a dois fatores.
Em primeiro lugar, evidentemente, porque se trata da abordagem teórica com a
qual mais me identifico e, em segundo lugar, porque como esta não tem técnicas
específicas, tornase possível a utilização de técnicas musicoterapêuticas.
Em geral utilizo como técnica principal, quando o paciente tem condições,
a “Improvisação Musical Livre” ou, em alguns momentos ou com alguns
pacientes, a “Improvisação Musical Orientada”, entendendo que uma situação
musical improvisada dá lugar para que qualquer coisa aconteça. Num sentido
muito amplo, improvisar é sinônimo de “brincar” musicalmente.
A improvisação se aplica a todo processo de desenvolvimento e pode
promover a expressão e “descarga pessoal”. Assim, a desinternalização de
materiais e estruturas utilizadas permite que se conheça melhor e mais
rapidamente a pessoa que improvisa, ao mesmo tempo que lhe traz um efeito
benéfico, resultado da ação expressiva e comunicativa (Gainza, 1983).
Por outro lado, a improvisação proporciona processos de internalização de
novas formas, materiais e estruturas. A utilização desta técnica, segundo Ruud
(1980), representa um desafio ao musico terapeuta que deve ter, além de uma
formação musical bastante sólida, uma musicalidade que lhe permita perceber
“musicalmente”, ou “através da música”, seu paciente, isto é, discriminar sons,
intervalos, ritmos, compassos e, eventualmente harmonias. Ainda mais: o
musicoterapeuta deve poder lidar com estes elementos de forma clara e segura
para que o paciente sinta nele(s) um “continente sonoro/musical”110, onde possa
se apoiar e depositar seus conflitos, sentimentos e necessidades. Assim, além de
manipular e dominar a linguagem musical, o musicoterapeuta que utiliza esta
técnica deve ter condições de perceber e fazer uma leitura do material
expressado pelo paciente para ter dele uma compreensão, ou seja, uma análise
musicoterapêutica.
Vale lembrar que embora não se exija resultado estético na produção
musical do paciente é importante estar atento para as mudanças nesse sentido.
Em uma palestra que proferi em 2007, sobre as diferenças e semelhanças entre a
educação musical e a musicoterapia, levantei uma discussão sobre esse ponto,
afirmando que na educação musical existe uma preocupação com a estética e na
musicoterapia eu penso existir um estado de atenção à estética, isto é, o
musicoterapeuta deve estar atento ao que acontece com relação a este aspecto
porque uma mudança estética na produção musical do paciente pode significar
uma mudança interna (Barcellos, 2007b).
É importante frisar que são realizadas improvisações com voz, corpo e
instrumentos e que estas podem ser rítmicas, melódicas, com ou sem harmonia, e
que também é feita a criação de letras, o que é de extrema importância, pois
podem expressar conteúdos internos que mais dificilmente seriam exteriorizados
‘só’ através da palavra. A música impulsiona e leva à criação da letra.
Torna-se necessário observar ainda que a utilização desta técnica –
Improvisação Musical Livre – não impede que se utilize a recriação de música
popular, folclórica, erudita ou qualquer outro material sonoro a ser trazido pelo
paciente ou, ainda a composição de músicas, caso seja o seu desejo, pois se parte
das necessidades ou interesses dele. Por outro lado, deve-se assinalar que
raramente se começa um processo musicoterapêutico pela improvisação musical,
por vários motivos:

porque os pacientes estão acostumados a ouvir e/ou cantar as músicas que


escutam ou veem na TV;
porque é absolutamente raro um paciente que saiba o que é improvisar
(mesmo que o musicoterapeuta não empregue essa palavras, mas, sim,
inventar música) e, ainda
por que dificilmente um paciente começa improvisando, mesmo que saiba o
que quer dizer.

Assim, no início de um processo terapêutico, o paciente começa escutando


ou recriando música, por serem estas as experiências musicais com as quais se
tem mais contato no dia-a-dia: audição e recriação musicais.
No processo musicoterápico aqui relatado, não foi diferente. A
‘improvisação musical livre’ foi utilizada, embora isto fosse mais difícil de
acontecer no início do tratamento. Inicialmente foram utilizados os elementos
conhecidos trazidos por Norma, para chegar-se posteriormente à improvisação,
ou seja, respeitando a Identidade Sonora Individual da paciente (Benenzon,
1985)111.

O desenvolvimento do processo musicoterápico visto através da


experiência musical.
A evolução do processo musicoterápico e do comportamento de Norma
passou por várias fases e subfases que serão vistas aqui através da “análise
musicoterapêutica”.
É evidente que estas fases foram sendo vistas no momento em que iam
acontecendo, isto é, por necessidade/desejo de Norma e no seu tempo. Não era
possível se saber qual o material que seria trazido por Norma nem se na sessão
seguinte este seria o mesmo. O importante é que se percebia e respeitava as suas
necessidades e os seus interesses mas se estava sempre atenta para induzir a
paciente a trilhar caminhos que pareciam ser importantes para o seu crescimento
e, principalmente, para trabalhar os conteúdos que ela expressava. Depois de o
processo ter sido encerrado foi possível se fazer uma análise e perceber o
desenvolvimento do mesmo, dividindo em etapas, abaixo apresentadas.

As fases do desenvolvimento total do processo podem


ser assim representadas:

Primeira Fase: músicas conhecidas gravadas


No início do atendimento Norma pedia-nos para que tocássemos o que
quiséssemos e para que escolhêssemos um instrumento para que ela tocasse,
evidenciando uma falta de iniciativa ou dificuldade de escolha. Passamos a
trabalhar este aspecto junto, evidentemente, com o estabelecimento da relação
terapêutica, ou do vínculo terapeuta paciente. Quando percebemos essa falta de
iniciativa, que se refletia na escolha de um instrumento musical, por exemplo,
começamos a apresentar só dois instrumentos a ela, para facilitar o processo de
escolha. Percebemos que isto a levou, pouco a pouco, não só à escolha de
instrumentos mas, também de músicas. Passou a escolher músicas que já
conhecia (de acordo com a entrevista com a mãe e do que observamos nos
primeiros contatos com a própria paciente), mas no início ela não era capaz de
cantá-las sem colocar a gravação das mesmas. Utilizava fitas com músicas de:
Roberto Carlos, Ney Matogrosso e Sidney Magal.
Junto com a gravação, além da recriação das canções que ouvia, realizava
algumas atividades como:
Execução de instrumentos
Poderíamos aqui nos deter nos trabalhos de Arminda Aberastury (1955e
1956) sobre instrumentos musicais para fazer uma análise destes primeiros
instrumentos utilizados por Norma. Os instrumentos de pele (atabaque e
pandeiro – membranofones) e os chocalhos (idiofones). No entanto trata-se de
assunto vasto e complexo que deveria ser objeto de outro trabalho.

Segunda Fase: canções conhecidas recriadas


Em um segundo momento do processo Norma recriava canções populares
conhecidas, cantando, mas já sem se apoiar na gravação. Havia também uma
pequena modificação no material utilizado que incluía agora: Rita Pavone e Julio
Iglesias.
As atividades realizadas eram as mesmas com a inclusão de uma nova – a
dramatização.
Nesta fase os instrumentos mais utilizados foram:

gaita de boca,
flauta,
teclado e
pau de chuva

É interessante se observar a inclusão de instrumentos melódicos


aerofones112, bem como o teclado, instrumento eletrônico (harmônico), o que a
meu ver representa um desenvolvimento.
Foi a morte do pai de Norma que a iniciou numa atividade que ainda não
tinha aparecido no seu atendimento: a dramatização. Norma se utilizou dessa
atividade inicialmente para representar essa morte que se deu em condições
especiais.
Norma viajou para Goiânia com sua mãe e seu pai, em férias, quando este
teve uma síncope cardíaca no hotel e foi removido às pressas para o hospital,
aonde veio a falecer. Norma ficou trancada e sozinha no quarto do hotel pois eles
não conheciam ninguém na cidade, e depois embarcou com a mãe para o Rio,
sem saber que o pai morrera e que seu corpo estava sendo transportado no
mesmo avião em que elas viajavam.
Norma não foi levada ao enterro nem à Missa de Sétimo Dia. A mãe lhe
disse que o pai ficara doente em Goiânia. Os terapeutas foram “notificados” que
não deveriam falar sobre o fato com a paciente. A vontade da mãe de Norma foi
respeitada porque sabíamos que certamente a paciente traria de alguma forma
essa situação, o que ocorreu pouco tempo depois.
No início de uma sessão imediatamente antes do Dia dos Pais, Norma
começou me perguntando se eu tinha “medo de avião”. Surpreendida pela
pergunta, sem entender por que isto ocorria e tentando observar o
desdobramento do momento para melhor me situar, devolvi a pergunta à
paciente. Ela também não respondeu mas começou a colocar os instrumentos,
enfileirados no chão, colocando uma cruz com as baquetas e enterrou o pai com
todos os detalhes, como se tivesse assistido ao enterro. Em silêncio, estagiária e
eu assistíamos ao que ocorria. Pudemos, então, estagiária e eu, entender o que se
passava pois vimos que ela expressava a sua saudade, certamente sob a emoção
da proximidade do Dia dos Pais e pela falta que dele sentia. Em frente aos
instrumentos e à cruz, que só então entendemos que simbolizavam o cemitério e
o túmulo do pai, além de termos presenciado o enterro, ouvimos e cantamos com
ela pp, a música que ela começou a cantar, sem anunciar:

“Quando”

Roberto Carlos (1967)

Quando, você se separou de mim,


Quase, a minha vida teve fim.
Sofri, chorei, tanto que nem sei
Tudo que chorei por você...
por você Oh! Oh!

Quando, você se separou de mim


Eu pensei que ia até morrer
Depois ... lutei tanto prá esquecer
Tudo que passei com você... com você...
com você.

E mesmo assim ainda


Eu não vou dizer que já te esqueci
Se alguém vier me perguntar
Nem mesmo sei o que vou falar
Eu posso até dizer ninguém te amou
Tanto quanto eu te amei
Mas você não mereceu
O amor que eu te dei Oh! Oh! Oh!

Quando, você se separou de mim


Quase, que a minha vida teve fim
Agora eu nem quero lembrar
Que um dia eu te amei ... e sofri e chorei
Eu te amei e chorei Oh! Oh!”

Quando vi Norma dramatizar o enterro do pai e, logo após a ouvi cantando


a canção de Roberto Carlos — que tem uma letra absolutamente adequada para
expressar o seu sentimento em relação à morte/separação do pai — eu me
surpreendi pois a compreensão que ela demonstrava com relação ao fato não
parecia ser compatível com o seu grau de compreensão da vida real. Talvez eu
não tivesse acompanhado o seu desenvolvimento.

Terceira Fase: Transformação


Norma começou a utilizar a improvisação musical cantando e apoiando-se
na dramatização de histórias infantís conhecidas, onde dois aspectos eram
constantes:

ela sempre era um personagem que se transformava;


a musicoterapeuta era sempre o agente da sua transformação.

Essas histórias eram cantadas por ela que improvisava a música e que
dialogava com os outros personagens (musico terapeuta e estagiária). Assim a
história era vivida por ela.
É importante ressaltar que ela trazia o tema que queria desenvolver,
escolhia o personagem que iria “viver” e escolhia, sempre a pedido meu, os
personagens que eu e a estagiária seríamos. É também fundamental se observar
que, ao final da sessão, quando eu sinalizava que o tempo estava acabando ela
dizia: “agora eu sou Norma outra vez”, voltando sempre à realidade. Eu e a
estagiária também voltávamos a ser nós mesmas.

As principais histórias trazidas foram:


Cinderela113 , na qual

Norma era a bruxa que se transformava em fada


A musicoterapeuta era o príncipe que, com a varinha mágica (baqueta), a
transformava
A estagiária era a Bela Adormecida, que seria por ela acordada.

Emília114

Nesta história Norma foi a boneca Emília que se transforma em gente que
passa, segundo ela cantou, “a andar com os próprios pés e a falar como se fosse
gente”. A musicoterapeuta foi o Dr. Sabugosa (a musicoterapeuta) que, com as
“pílulas” (sementes dentro da cabaça da maraca – portanto o som), a
transformou em gente.

O ballet “Gisele”115

Na história que Norma trouxe deste ballet ela foi a bailarina que reviveu
quando o príncipe (a musicoterapeuta) “colocou o diadema” na sua cabeça.
Quando Norma trouxe o ballet, que foi dançado por nós durante algumas
sessões — com a música original da gravação trazida por mim em disco, tão
logo ela se referiu ao mesmo —, não me parecia um tema de transformação. No
entanto, um ano depois, refere-se às histórias que trouxera e canta,
improvisando: “a Gisele cai, fica como que morta e o bailarino vem, toca nela e
ela revive. Ele coloca o diadema na cabeça dela e eles dançam. Está acabando o
ballet”!
Não é necessária uma análise muito profunda para se entender o que
aconteceu com Norma na dramatização dessas histórias, que ela certamente
conhecia, e a importância que a expressão delas, todas representando a sua
transformação, tiveram em seu processo terapêutico. A paciente se valeu daquilo
que conhecia para expressar a consciência que tinha de seu estado e do
desenvolvimento, e mostrou saber qual era o papel de cada uma de nós na
musicoterapia.

Quarta Fase: Improvisação com Temas do Cotidiano

vegetais com os quais fazia comida — cada uma de nós era um vegetal
como, por exemplo, ela era a cebola, a musicoterapeuta o tomate, e a
estagiária o alho, com os quais, improvisando cantando, através da letra,
fazia um molho;
animais — relacionam-se entre si, interagindo;
jogos de baralho — éramos sempre cartas de baralho que eram apresentadas
em sequência, ou apresentando uma relação entre elas e
política — aqui ela improvisa cantando/contando o seu amor por um dos
candidatos e a sua decepção pela derrota do mesmo, mostrando a sua
participação no momento político do país.

Como se pode perceber, esta fase poderia ser intitulada “relações”, pois,
através de vários temas, a paciente faz a relação entre os elementos trazidos em
cada um dos temas. Aqui Norma parece fazer um exercício preparatório para a
fase subsequente.

Quinta fase
Foi certamente a vivência das histórias de transformação, através da
improvisação musical, que possibilitaram que Norma passasse a um novo
momento, criando uma história em que ela era uma ‘lagarta’ que se transformava
em ‘borboleta’, a musicoterapeuta era uma ‘rosa azul’ e a estagiária um ‘grilo
falante’. Nesse tema ela se deteve por alguns meses. Sempre cantando e
contracenando com o Grilo e a Rosa Azul ela saía do seu casulo e voltava a ele a
cada sessão. A cada saída ela ia visitar a ‘rosa azul’ e ‘exercitava’, nessas visitas,
a percepção através de todos os sentidos. Cantava que queria sentir o perfume e
as pétalas da ‘rosa azul’. Imobilizava a musicoterapeuta, “plantada” em um
canteiro, e se locomovia até ela para esse exercício através dos sentidos. A
evolução de Norma, no que se refere ao espaço que ocupava, poderia ser
representada graficamente da seguinte maneira:

Ou seja: no início do atendimento, Norma ficava sentada o tempo inteiro


da sessão em uma grande almofada no chão, em um mesmo lugar, e qualquer
coisa que quisesse pedia para que nós lhe alcançássemos (pequeno espaço
representado pelo círculo branco). Assim, nós, musicoterapeuta e estagiária,
utilizávamos quase todo o espaço da sala. Um trabalho foi feito no sentido de
que ela se movimentasse ou, pelo menos, não mantivesse sempre esse mesmo
comportamento. Já, na segunda figura, no momento em que ela planta ou
imobiliza a musicoterapeuta (no pequeno círculo branco), é ela que passa a se
movimentar e a musicoterapeuta fica imobilizada “no canteiro”!
Essa história, criada e improvisada musicalmente por Norma, e partilhada
conosco, tem vários aspectos extremamente relevantes nos quais deveríamos nos
deter com mais atenção:

A personagem que ela escolheu para viver — uma lagarta — que tem um
tempo de vida finito e que se transforma depois deste tempo;
O papel por ela escolhido para ser vivido pela musico-terapeuta é único – a
‘rosa azul’, o que pode representar a importância e a forma especial como
ela vê a musicoterapeuta, resultante do estabelecimento do rapport116 .

A imobilização da musicoterapeuta pela paciente e a sua consequente


movimentação para entrar em contato com aquela têm um grande significado, se
nos detivermos no dado inicial que fala da dificuldade de Norma em utilizar o
espaço. No início era necessário que a musicoterapeuta se deslocasse para chegar
até ela, quase imobilizada sempre num mesmo lugar. Nessa história, ela
imobilizava a musicoterapeuta e se deslocava para visitá-la, como vivendo uma
inversão de papéis.
Certamente estas histórias de transformação vividas por Norma a
prepararam para a última fase: onde vive, simbolicamente, a sua sexualidade.

Sexta fase
No último ano do processo musicoterapêutico Norma trouxe basicamente a
sua sexualidade. Inicialmente ‘se transformou de ave em mulher’, improvisando,
cantando. Depois escolheu um disco de Roberto de Regina117, tocando música
espanhola, e dançou, com toda a sensualidade e feminilidade características
desse tipo de dança, tocando castanholas junto com a música, enquanto dançava.
Depois de falar sobre a sua forma de dançar música espanhola é importante
relembrar o que relatamos no início deste trabalho, sobre a dificuldade e a
rigidez que Norma apresentava na criação de movimentos os quais ela chamava
de “ginástica” ou “exercícios”.
Na sessão posterior, Norma fez uma festa de l5 anos. Vestiuse
imaginariamente com um vestido comprido, fazendo os gestos e cantando,
sempre improvisando; fez uma maquiagem olhandose num espelho também
imaginário, colocou um disco inexistente e dançou uma valsa com o namorado –
sem música e sem namorado. Aqui aconteceu nitidamente um “rito de
passagem”. Após a valsa, convidou o namorado com quem dançara – cantando,
para dormir com ela.
Era impossível se prever o que esperar na sessão seguinte: fomos
surpreendidas, musicoterapeuta e estagiária, por um desdobramento inesperado
do rito de passagem da sessão anterior. Possivelmente por culpa de ter ‘dormido’
com o namorado, Norma trouxe uma santa, construiu um altar — com uma
almofada sobre a qual colocou a santa — e transformou a sala numa igreja.
Transformou o violão no padre João e nós três em freiras. Executou, no teclado
eletrônico com som de órgão, num andamento lento e muito legato, uma música
com uma harmonia aleatória (porque não saberia fazer de outra forma), cantando
que éramos três freiras que estávamos ali para rezar. O resultado sonoro trazia
uma atmosfera sagrada. Na sessão seguinte Norma voltou a transformar a sala
em igreja, o violão em padre e nós em três freiras com o seu discurso cantado.
Dizia que estávamos na igreja e que viéramos ali para rezar. No entanto, ao
invés do órgão, Norma escolheu uma maraca, com a qual fez um ritmo bem
brasileiro num compasso 2/4, com andamento rápido, em intensidade forte e
com bastante agressividade na forma de tocar. Percebi que algo denunciava que
o seu discurso verbal, cantado, não era compatível com o discurso musical
executado no instrumento. Um dos dois discursos não estava expressando os
seus conteúdos internos. Na sua forma de cantar havia a sacralidade da sessão
anterior, mas, na música instrumental, o resultado era o de uma batucada.
Guardando as devidas proporções era como se nós estivéssemos assistindo a
uma Escola de Samba desfilando dentro de uma igreja!
Partindo da afirmação de alguns teóricos que dizem ser mais difícil
controlar o discurso musical do que o verbal, fiz uma intervenção cantando,
dizendo-lhe que assim como havia nos transformado em três freiras, poderia nos
transformar em qualquer outra coisa, se quisesse. Mantive a sacralidade do seu
canto – com o andamento lento e a voz suave. Imediatamente ela nos
transformou em três leoas e o padre João (o violão) em um leão. A igreja foi
transformada em uma floresta, e ela passou a rugir e a expressar a sua raiva em
relação à avó, que a havia contrariado porque não queria levá-la à Escolinha de
Arte do Brasil, para a aula. É importante frisar que o discurso musical continuou
o mesmo, enquanto ela expressava a sua raiva. É relevante ressaltar ainda que a
percepção e a intervenção da musicoterapeuta possibilitaram que Norma
exteriorizasse sentimentos que, de outra forma não seriam expressados nem
elaborados.
O último tema abordado por Norma foi a vivência da “Princesa Menuda”.
A musicoterapeuta foi escolhida para viver o Príncipe Menudo a quem, depois
de algum tempo ela pediu um filho “que tenha olhos azuis como o mar e onde
navegue um barquinho branco”. Este foi o momento da vinda do conjunto
Menudo ao Brasil e ela utilizou o tema por muito tempo, cantando como eles.
Ainda no momento em que trazia a sua sexualidade utilizou determinados
instrumentos, falando sobre os mesmos, sobre ser instrumento ‘de homem’ e ‘de
mulher’ e, numa determinada sessão, enfiou a cabeça da baqueta no orifício de
outro instrumento, de forma muito simbólica.
Ainda se deve ressaltar que Norma não vinha penteada mais com cachos
ou tranças, mas, sim, com penteados e roupas compatíveis com a sua idade, o
que deve ter sido, também, resultado da compreensão de sua mãe, do
desenvolvimento e tranformação pelos quais ela passou.

Desempenho e evolução de Norma frente aos


elementos musicais durante o desenvolvimento do
processo musicoterapêutico.
Ritmo

Inicialmente acompanhava o ritmo da letra que cantava, sílaba por sílaba;


Passou a percutir o pulso;
posteriormente evoluiu para ritmos diversos, simples e irregulares,
tornando-se gradativamente regulares e mais complexos.

Compassos

O compasso 2/4 (mais próximo de funções como respiração, marcha etc.)


era o mais utilizado, aparecendo, já no final do processo, o compasso 3/4.

Melodia

Cantava inicialmente desafinando e criava melodias e letras simples sem


coincidência entre os acentos métrico e musical. Pouco a pouco passou a utilizar
anacruses, apogiaturas e repetições de fragmentos para coincidência de acentos
e, gradativamente, foram aparecendo melodias mais complexas, evidentemente,
sem saber o que fazia.
Improvisava quase sempre no modo Maior, aparecendo raramente o modo
Menor.

Harmonia

O aparecimento da harmonia, no violão e no teclado, era sempre de forma


aleatória, já que Norma não tinha formação musical.

Movimentos Corporais

A “ginástica e exercícios” se transformaram em movimentos muito


expressivos como os que apareceram no momento em que dançava “Gisele” e a
dança espanhola.
Instrumentos

Vimos que havia uma progressão clara no uso dos instrumentos. Dos mais
primitivos, de pele ou chocalhos, Norma passou à utilização de instrumentos
melódicos e harmônicos e, finalmente, todos eles, de qualquer forma.

A Finalização do Processo Terapêutico

Em reunião realizada com o psicoterapeuta, em setembro de 1984,


decidimos que Norma deveria ser preparada para finalizar os atendimentos,
devendo, no entanto, continuar na Escolinha de Arte do Brasil.
A nossa decisão foi tomada a partir de sua evolução e da constatação de
que, nesse momento, talvez fosse necessário encaminhá-la a uma instituição
onde pudesse desenvolver outras atividades, principalmente em grupo.
Passei a atendê-la uma vez por semana, mas a doença de sua avó e a
impossibilidade da mãe em trazê-la, fizeram com que o tratamento fosse
interrompido durante o processo de preparação para a alta.

Breve discussão
O ponto central desse atendimento parece ser o que reúne e resume os
momentos de transformação, principalmente a história da ‘lagarta que se
transforma em borboleta’. Nessa história, criada por Norma, percebe-se a
evolução da sua movimentação, pois, pouco a pouco ela ‘canta’ voar a outros
lugares “para conhecer o mundo”. Finalmente, numa determinada sessão, algum
tempo depois, ela conta — ainda trabalhando o tema, no qual se manteve por
meses — cantando, improvisando, que voou para o alto de um monte, onde
pousou para observar tudo que estava acontecendo, sem voltar mais ao casulo.
À luz do pensamento do médico austríaco e psicanalista Junguiano que se
estabeleceu nos Estados Unidos, Edward C. Whitmont, “uma mulher que
compra tudo que encontra com a forma de borboleta, é dominada por um
impulso que requer compreensão simbólica” (1969, p. 15).
Partindo dessa afirmação, buscamos entender a situação na qual a própria
paciente se transforma em borboleta, em episódos que se estenderam por alguns
meses, levando-a a exercitar os sentidos e a manifestar a sua “vontade de
conhecer o mundo”, até o seu “voo para o alto do monte, onde pousou para
observar tudo que estava acontecendo, sem voltar mais ao casulo”!
Whitmont, referindo-se ainda “à mulher que compra tudo com a forma de
borboleta”, declara que “a borboleta pode ser a expressão de uma forte
necessidade interior de se livrar de um casulo que confina, talvez um casulo de
velhas atitudes protetoras” (idem). O interessante no caso de Norma é que ela
chega a se livrar do casulo, dizendo através da música, cantando, aquilo que
certamente não consegue falar verbalmente, sem acompanhamento musical.
Aqui, pode-se entender que ela utiliza uma metáfora musical, cantada, para
expressar o que acontece e vivencia.
Em todas as histórias que trouxe, sempre passava por um rito de
transformação. Aqui se despe ‘do casulo’ para se livrar, na medida do possível,
das amarras que a mantêm como criança, submissa e confinada! E, mais do que
isto, provavelmente tentando se libertar da condição de “especial”,
transformando-se e viajando para conhecer novas terras...

Considerações finais
Nos cinco anos de trabalho com Norma pude perceber, através da leitura da
sua produção musical e daquilo que ela escolheu musicalmente para trazer —
análise musicoterapêutica — e também através da sua atitude no setting
musicoterapêutico, seu crescimento e sua evolução, o que foi ratificado pela
mãe.
Através do relato aqui feito, pode-se constatar que seu crescimento musical
traduz o seu crescimento interno, o que era o nosso principal objetivo, isto é, que
Norma crescesse como pessoa. Assim, a música, principalidade da
musicoterapia, como elemento básico de expressão e sensibilização, levou-a a
vivenciar e experienciar situações que a impulsionaram para um processo de
desenvolvimento.
MUSICOTERAPIA: ABORDAGEM
FUNDAMENTAL NO TRATAMENTO DO
DEFICIENTE AUDITIVO

Introdução
O psicanalista francês Didier Anzieu afirma textualmente em seu livro “O
Eu-Pele”, que “o espaço sonoro é o primeiro espaço psíquico” do ser humano
(1989, p. 197). Para investigar sobre a importância do som no desenvolvimento
do psiquismo humano e chegar a esta afirmação Anzieu se apoia em teóricos
como o compositor francês Xenakis118 e o médico, também francês, Alfred
Tomatis119 .
A partir de suas ideias, decidi repensar e refletir sobre a questão que resulta
numa grande incoerência para muitos: a utilização da musicoterapia com
deficientes auditivos tendo, também, como objetivo, discutir sobre a diferença
entre a música na educação especial e a musicoterapia, e sobre a importância da
utilização desta última em instituições de educação de pessoas com deficiência
auditiva – DA.
Mais do que uma contribuição ao desenvolvimento da audição, da fala e da
melhoria do equilíbrio emocional, a musicoterapia se constitui como uma
abordagem fundamental, também, para a evolução psíquica daqueles a quem
falta a audição, ou têm o desenvolvimento desta interrompido, em qualquer que
seja o momento.
Assim, levanta-se a hipótese de que a música (e seus elementos
constitutivos) é essencial para o tratamento de uma criança DA, tratamento este
que deve, antes de mais nada, objetivar a “reconstituição” da evolução da
audição, contribuindo para o desenvolvimento psíquico daquele que perdeu a
capacidade de ouvir.
Sabe-se da recomendação de professores de educação de deficientes
auditivos para a não utilização da vibração do som, pelo fato de as crianças
correrem o perigo de não se interessarem por “ouvir” (por via aérea) – o que é
muito mais difícil para elas —, e sim, de continuarem só “sentindo” as
vibrações.
Apesar de eu ter sido advertida para não utilizar o som desta forma, no
tratamento de uma criança DA apresentado a seguir, optei por fazê-lo, por dois
motivos:

porque não é possível trabalhar com o som e “retirar” ou “apagar” as


vibrações pois o som é o resultado destas vibrações e,
porque discuto esta recomendação. A meu ver deve-se trabalhar com a
vibração desde que se esteja absolutamente atento para não reforçar ou
estimular a permanência da criança nesse estágio da audição, ou seja, deve-
se levar a criança a se interessar pelo mundo dos sons para que ela sinta
prazer em entrar e permanecer nesse mundo.

Seria interessante assinalar que quando se fala em trabalhar com a vibração


significa priorizar este aspecto, isto é, utilizar um som que esteja fora do campo
auditivo da criança. Neste caso ela só perceberá a vibração.
Como em geral se trabalha com crianças com hipoacusia que sempre têm
um resíduo auditivo e como sempre devemos ter informações sobre qual é esse
resíduo, não é difícil passar a utilizar, pouco a pouco, as frequências que podem
ser também ouvidas (por via aérea) e não só percebidas (por via óssea). Assim, a
partir dessas frequências que podem ser ouvidas se possibilitará que a criança
perceba o som pelas duas vias, aérea e óssea, e se poderá estimular para que ela
se interesse por esse mundo fascinante, até então, muitas vezes, praticamente
desconhecido: o de “ouvir” o som.
Cabe a nós guiar e, de certa forma, direcionar a criança neste novo mundo.
Nós somos e seremos os agentes e continentes desta e nesta nova forma de “ser
no mundo”, daquele que pouco a pouco vai evoluindo na maneira de “lidar” com
esse mundo no qual está sendo inserido. Uma nova maneira de ‘estar’ nessa
‘paisagem sonora’ (SCHAFER, 1977) da qual a criança passa a fazer parte, à
medida que emite, e ao mesmo tempo percebe os sons – numa relação dialética
com o mundo.
Tomatis descreve, de forma até poética, a evolução da audição e afirma que
a ontogênese120 repete a filogênese. Refere-se à primeira função da audição, no
sentido filogenético, como ‘antena’ ou ‘radar’, com longos tentáculos, cuja
preocupação essencial era a de se orientar na direção de perigos longínquos —
só perceptíveis ainda pelas vibrações —, ou já próximos, de onde poderia surgir
um acontecimento que poderia ser fatal.
Não cabe aqui refazer todo o paralelo da repetição da evolução do sistema
auditivo no sentido filogenético pelo ontogenético, mas seria interessante
mencionar a ameaça de vida que as mudanças de ritmo do batimento cardíaco,
por exemplo, percebidas pelo feto (e mais tarde, ainda intraútero, ouvidas)
provocam. Trata-se de nossa primeira arma de sondagem, e mais tarde controle.
De todos os nossos “radares” é a audição que funciona de dia, de noite e
em todos os momentos. Quando algum obstáculo se antepõe ao nosso campo
visual ela continua a perceber ou, ainda, quando falta luminosidade, é a ela que
recorremos.
O nosso sistema auditivo exerce a sua função como um complexo capaz
não só de perceber pressões acústicas mas, também, de analisá-las. E é neste
momento que a nossa intervenção, como musicoterapeutas, se torna
imprescindível. Se não é possível desenvolver-se o campo auditivo de uma
criança, é na função de “analisar as pressões acústicas” que vamos nos deter. É o
desenvolvimento da percepção que vamos trabalhar para permitir que, apesar de
o campo auditivo muitas vezes permanecer sem alterações, a criança possa
utilizar da forma mais ampla e adequada possível as suas condições e o seu
potencial.
A função maior do ouvido é absorver a linguagem e estudos realizados em
laboratório evidenciam a existência de uma escuta intrauterina pelo feto. Diz-se
que os diferentes sons da cadeia da fala chegam a atingir o aparelho auditivo em
formação. Assim, o feto participa, desde então, da vida sônica do mundo do qual
ele irá fazer parte, e nossa audição, que está adaptada a um meio líquido, deve,
no nascimento, acomodar-se subitamente aos sons que lhe chegam por via aérea.
Assim Tomatis se refere ao que ele denomina o “parto sônico” (1978, p.
72). Mostra-nos que começamos a ser embalados e acariciados por uma voz, a
mesma que nos falava já “no mais profundo da nossa noite uterina” (idem). Ao
mesmo tempo em que sugamos gulosamente tudo que toca em nossa boca,
bebemos avidamente esta voz que se derrama sobre nós. O alimento vocal é tão
necessário à estruturação humana quanto o mamar, na sua concepção. As nossas
células e o nosso corpo inteiro têm necessidades de nutrição imperativas, mas o
nosso psiquismo nascente tem também seus imperativos nutricionais.
E, pouco a pouco, tomamos consciência da possibilidade de fazer sons.
Agudos, graves, curtos, longos, fortes ou fracos. Este é o jogo que se inscreve na
aprendizagem do homem bem antes da prontidão para a marcha. Há um
fenômeno humano constante, precioso e frágil, e que por isto tem que ser bem
protegido, que é o de tomada de consciência da nossa possibilidade de emissão
sonora e da nossa própria escuta. A princípio, o conhecimento do mundo é um
conhecimento sonoro; mais ainda, parece que penetramos neste mundo pelo
conhecimento da nossa voz.
O jogo incessante, o vai e vem sônico, incoerente para o adulto, mas
altamente significativo para o bebê, esse banho sonoro pelo qual somos
envolvidos, esse mergulho no mundo barulhento, eis o nosso primeiro despertar
para a vida, a nossa primeira marca de autonomia, de tomada de consciência. E
todo e qualquer entrave a esse jogo poderá acarretar um prejuízo considerável à
estruturação ulterior.
Esta introdução objetiva descrever e ratificar a importância do sonoro no
nosso desenvolvimento e o papel que a musicoterapia deve assumir quando a
captação deste sonoro é interrompida.
Para ilustrar essas ideias, apresenta-se, aqui, o tratamento musicoterápico
desenvolvido com uma criança deficiente auditiva.

História de vida e clínica do paciente


Nascido no Brasil em 14/06/86, de parto normal, de pais ingleses, Simon
iniciou a musicoterapia quando tinha dois anos e nove meses e teve alta com sete
anos e um mês. Foi atendido por mim de março de 1989 a julho de 1993 e teve
um total de 187 sessões de 45 minutos121. Simon teve duas sessões semanais de
musicoterapia até 1991, quando passou a frequentar a Escola Britânica e, por
problemas de horário, passou a ter só uma sessão por semana.
O paciente teve meningite bacteriana122 em abril de 1988 (com um ano e
dez meses) que deixou como sequela uma surdez neurosensorial123. Os
audiogramas124 feitos em campo livre indicam uma perda profunda da
capacidade auditiva de Simon.
Até então, Simon tinha tido um desenvolvimento satisfatório embora a mãe
relate que o desenvolvimento da fala tenha sido um pouco mais lento do que o
dos dois irmãos mais velhos. À época que foi atacado por meningite já havia
adquirido algumas palavras e embora a família só falasse inglês entre si, o
menino estava se tornando bilíngue, o que se justifica pelo fato de a empregada
ser brasileira.
A família tinha um nível sócio-cultural alto. O pai falava cinco línguas e a
mãe quatro. Os filhos estavam sendo educados na Escola Britânica onde Simon
também passou a estudar. A mãe tocava piano, com formação em música erudita.

História Sonora
Com relação à história sonora de Simon a mãe relatou que o acalentou
embora isto fosse muito difícil para ela, porque depois da doença o menino
passou a encostar a cabeça em seu peito para sentir a sua voz. Ele gostava de
aparelhos eletrodomésticos como liquidificador, enceradeira e máquina de
costura elétrica, na qual colocava as mãos enquanto a mãe costurava, certamente
para sentir a vibração.
Fiz um levantamento das músicas infantis mais comuns na Inglaterra e a
mãe me trouxe algumas partituras. Optei por não utilizar esse material por
alguns motivos. Em primeiro lugar porque Simon talvez tivesse tido pouco
contato com as músicas da sua cultura já que a mãe relata que ele colocava a
cabeça no seu peito para sentir a vibração. Segundo porque eu talvez ficasse
pouco à vontade para utilizar esse material por não conhecer bem o mesmo e, em
terceiro lugar porque no caso de Simon, não me parecia ser esse o trabalho
fundamental. É claro que não posso invalidar as raízes musicais do paciente pelo
fato de ele ter uma DA. No entanto, não me parecia imprescindível lançar mão
deste tipo de recurso sonoro já que eu considerei que deveria partir de etapas
sonoras anteriores.
Ele respondia com um movimento de cabeça a um tambor em intensidade
forte (aproximadamente 120 dB)125 e com uma piscadela a um xilofone (entre
500 e 1000 Hz)126 com aproximadamente 100 dB. O resultado da timpanometria
foi normal, mas Simon não apresentou reflexo estapediano127. Trata-se de uma
informação importante para nós musicoterapeutas, pois é este reflexo que atenua
os sons com uma intensidade que passaria do nosso limiar de dor. (Deve-se levar
em consideração que Simon fazia uso de um aparelho que amplificava o som). A
ausência do reflexo estapediano acendeu um alerta para o cuidado que se deveria
em não emitir sons em intensidade fortíssima pois isto poderia se constituir em
um desprazer. Estaríamos correndo o risco de não interessá-lo, ou, mais do que
isto, de afastá-lo do mundo dos sons já que para ele não seria um prazer, pela
possibilidade de a intensidade poder ultrapassar o limiar de dor e desconforto.
Suas primeiras audiometrias128 foram realizadas em Manchester, na
Inglaterra e, posteriormente, na John Trace Clinic, nos Estados Unidos, para
onde a família foi em julho de 1990.
O diagnóstico de DA foi feito quatro meses após a meningite e
imediatamente Simon passou a usar um aparelho bilateral – Phonak – que lhe
dava um ganho de aproximadamente 45 dB, como apontam os resultados dos
exames, e a ser atendido por uma professora especializada em DA. (Novembro
de 1988). Quatro meses depois foi encaminhado à musicoterapia por um
musicoterapeuta amigo da família, com a recomendação de que deveria ser
trabalhado em inglês, como a professora especializada o fazia.

O processo musicoterapêutico
Após entrevista com os pais, onde fiquei a par das histórias de vida, clínica
e sonora de Simon e também da sua capacidade auditiva através dos
audiogramas, comecei o trabalho.
Mas, devo assumir que o próprio Simon foi quem me mostrou o caminho.
Eu apenas o segui, cuidadosamente. Atraído imediatamente pelas cortinas
japonesas das janelas da sala, Simon, no momento em que entrou, começou a
brincar levantando e abaixando repetidas vezes uma delas. Imediatamente
aproveitei o movimento e cantei uma linha ascendente, quando a cortina subia,
acompanhada da palavra up, e uma melodia descendente, com a palavra
down129, quando a cortina descia. Isto ajudaria na aquisição das inflexões
sonoras da fala e, ao mesmo tempo, já o introduzia em uma atividade onde o
som estava presente.
Para efeito didático, o processo musicoterapêutico foi dividido em quatro
fases:

vibração;
som e ritmo;
música e expressão;
música e expressão verbal.

É importante assinalar que estas fases pretendiam refazer o caminho que


uma criança normal percorre sonoramente, de forma lúdica, a linguagem natural
e preferida por crianças desta idade. Assim, no seu processo, tudo foi feito
através de brincadeiras por ele sugeridas e aceitas por mim ou vice-versa, como
se eu fosse quase uma criança a brincar com ele. Na verdade, era assim que eu
me sentia quando estávamos juntos. Eu percebia que mesmo que muitas vezes
fossem colocados limites, em muitos momentos eu era vista por ele também
como se eu fosse uma criança à qual ele dava ordens, sugeria, brincava e até com
quem brigava.
É evidente que ainda que me sentisse como uma criança não perdia de
vista o meu papel. Assim, brincava e sugeria o que me parecia estar dentro de
suas necessidades e aproveitava seus interesses, mas estava atenta para
“direcionar” o processo, ser o “continente” de que necessitava muitas vezes, o
facilitador quando surgiam dificuldades e a pessoa, principalmente, em quem ele
podia confiar para protegê-lo, se necessário.

Fundamentação teórica e técnica mais utilizada


A fundamentação teórica utilizada foi a abordagem Humanista Existencial
que vê o paciente como o centro da relação e que tudo acontece a partir dele e
para ele. A criatividade foi a “mola mestra” desde o princípio do processo, pois
era necessário atrair a sua atenção para o que era proposto, e para isto era
necessário suscitar o seu interesse.
A principal técnica musicoterápica utilizada foi a improvisação musical
com voz, corpo, instrumentos musicais e objetos que eram empregados de forma
a produzirem sons. A entrada de Simon na sala e sua imediata utilização da
cortina me mostraram que essa seria a técnica a ser utilizada, para proporcionar a
Simon uma ‘experiência livre’ com o som e seus parâmetros, elemento
primordial nesse tipo de atendimento, embora o ritmo também esteivesse
presente.
Ocasionalmente Simon trazia objetos de casa e da escola, os quais eram
jamais desprezados. Pelo contrário, sempre eram incluídos em atividades que
davam prazer e que nos levavam a utilizar sons e ritmos, bem como o corpo.
Lápis, papel, bonecos, ferramentas de plástico, espadas, aviões, chapinhas de
garrafas, barcos, canetas, cola, tesoura, livros, tintas e animais, estes eram os
objetos que eventualmente povoavam o nosso mundo, que se animavam
juntamente com instrumentos musicais, sons e ritmos, num fazer lúdico, onde o
prazer se inseria não só pela brincadeira mas, também, pela riqueza do mundo
sonoro que lhe era apresentado e no qual foi se inserindo pouco a pouco.
Primeira Fase – nesta fase foi priorizada a vibração. Simon escolheu
instrumentos de percussão como pandeiros, tamborins e latas de Nescau130, com
guizos colocados dentro, utilizadas como chocalhos ou ainda como tambores
(tocadas com baquetas), e outros instrumentos através dos quais ele sentia a
vibração. Também escolheu o violão e o teclado com amplificação, para o
mesmo fim.
Ele colocava as mãos, os pés, o corpo e a cabeça em contato com os
instrumentos enquanto eu ou ele mesmo os percutia. No início retirou o colchão
que ficava sobre um estrado de madeira formando um sofá, para sentar-se sobre
a madeira, para que assim, com todos os instrumentos à sua volta, também
colocados sobre a madeira, ele pudesse sentir a vibração. Utilizava as latas de
Nescau, colocando maior ou menor quantidade de guizos para sentir mais, ou
menos vibração. Sempre que entrava na sala eu lhe pedia para retirar os sapatos
e ele muitas vezes retirou também a camisa não sei se para mostrar que se sentia
à vontade ou para melhor sentir a vibração. É interessante ressaltar que quando
ele passou a utilizar o teclado, com caixas amplificadoras adicionais, muitas
vezes apontava para os ouvidos mostrando que estava ouvindo. Nesses
momentos mudava completamente de expressão facial: era como se sua
expressão fisionômica se “iluminasse”.
Segunda Fase – nesta fase que denominei som e ritmo, passei a fazer uso
da voz com o objetivo de aumentar a extensão vocal de Simon, que a princípio a
utilizava apenas com pequenos intervalos – 2as e 3as. Encontrei sempre uma
forma de levá-lo a trabalhar o ritmo e os diferentes parâmetros do som, o que era
de extrema importância não só pelo aspecto psíquico, já enfatizado
anteriormente, refazendo um jogo inicial da criança, mas também porque a fala é
constituída de inflexões rítmico-sonoras. Crianças DA que não forem trabalhadas
nesse sentido não terão estas inflexões, apresentando uma fala em retotono131 e
com um ritmo regular e monótono, que não acompanha o ritmo das palavras,
como se fossem robôs.
É importante frisar que quando me refiro a determinadas atividades
realizadas ou a aspectos a serem trabalhados isto não significa que Simon
deveria repetir o que eu fazia ou o que eu propunha. Estas atividades surgiam a
partir de intervenções feitas por mim, com o ojetivo de induzir àquilo que eu
considerava que deveria ser realizado.
Aqui se concentram algumas diferenças entre a Educação Especial e a
Musicoterapia. Como musicoterapeuta não se tem um programa a cumprir,
embora se tenha metas e objetivos a alcançar; não se ensina nem se lança mão de
técnicas de educação musical para levar o paciente a aprender/apreender
elementos musicais. Mas, sim, parte-se das necessidades e das habilidades dos
pacientes (na verdade se trabalha a partir das eficiências e não das deficiências),
ou seja, da maneira como o paciente se interessa e tem condições de lidar com os
aspectos/parâmetros que fazem parte das duas linguagens – musical e verbal.
Através do contato com a música e na relação com o musicoterapeuta o paciente
pode se desenvolver sem ter, no entanto, nenhum aprendizado formal de música
ou a consciência daquilo que realiza musicalmente.
A partir da 38ª sessão passou a fazer parte do tratamento uma estagiária do
curso de Formação de Musicoterapeutas do Conservatório Brasileiro de Música
do Rio de Janeiro (Bacharelado em Música).
Na 66ª sessão (8 e maio de 1990) Simon trouxe papel e caneta. Nessa
sessão ele fez alguns desenhos. Desenhou a si próprio e a musicoterapeuta. Ele
sem orelhas, mas a musicoterapeuta com orelhas bem visíveis.
Aqui faz-se necessário uma observação. Como não trabalho com
arteterapia porque não tenho a formação específica, não tenho disponível
material de desenho, a menos que o paciente traga. Assim, o material que é
utilizado para desenhar, quando o paciente solicita, é papel e caneta comuns.
Portanto, na análise do desenho não seriam levados em consideração aspectos
como material escolhido, cores empregadas ou, ainda, a qualidade do traço.
A partir do momento em que Simon se desenhou sem orelhas passei a
aproveitar todas as suas sugestões para fazer um trabalho de esquema corporal.
Depois introduzi, junto com o som, a noção de silêncio que o fascinou: quando
ele emitia sons eu fazia sinal para ele se calar, colocando o indicador na minha
boca fechada. Nesse momento ele passou a transgredir todas as sugestões de
silêncio que lhe eram dadas dentro das brincadeiras e emitia sons a plenos
pulmões, pelo prazer da transgressão. Muitos “jogos” foram feitos, onde o
movimento acompanhava o som, e o repouso traduzia o silêncio, já se contando
agora com a participação da estagiária. Simon comandava som e silêncio no
teclado. Cabe assinalar que ele mesmo ligava o instrumento e as caixas
amplificadoras e que nas primeiras vezes que o instrumento foi utilizado ele
sinalizou que estava ouvindo, apontando para os ouvidos. Os sons do teclado
eram acompanhados de movimentação do musicoterapeuta ou do estagiário ou
ainda dos dois, o que permitia que Simon ‘visualizasse’ esses sons; movimentos
contínuos acompanhavam um som prolongado; movimentos entrecortados eram
feitos quando o som era staccato; a movimentação era feita no chão quando os
sons eram graves e com os braços para cima quando eram sons agudos. Enfim,
procurávamos passar o máximo de informação sobre o som que Simon fazia
(através da nossa movimentação). Simon ‘mandava’ na nossa movimentação
forçando paradas em posições absurdas, como se fôssemos estátuas, por algum
tempo. Depois os papéis se invertiam e Simon tinha que vivenciar os sons que
um de nós fazia no teclado. Era impressionante ver como a sua percepção se
desenvolvia dia a dia. Aos poucos ele se movimentava, criando novos
movimentos, exprimindo-se e expressando corporalmente os sons que ouvia.
Percebíamos que esta era uma atividade que lhe proporcionava muito prazer.
Além disto, partes do corpo eram trabalhadas; jogos de tensão e
relaxamento eram realizados; ações como dormir/acordar; andar/parar;
rir/chorar; e assim por diante, eram feitas por todos nós com um comando
também sonoro que passava a cada momento para um de nós, dando a
oportunidade que todos comandassem e obedecessem. Aproveitava-se para
aumentar o seu vocabulário, estimular a sua iniciativa e a sua liderança e
desenvolver a sua criatividade.
Algumas sessões depois ele voltou a se desenhar. Desta vez apareceram,
além das orelhas, os aparelhos auditivos, desenhados separadamente para que
pudéssemos perceber bem.
Trabalhamos também, a partir dos instrumentos, diferentes materiais como
metal, madeira e plástico: diferentes tamanhos e orientação espacial. Tudo
inserido em jogos e brincadeiras, sonorizados, com ritmos e sempre como
resultado da curiosidade que dirigia aos objetos/instrumentos que utilizávamos.
Surgiram convenções, por parte dele, de diferentes ritmos programados no
teclado eletrônico, associados a diferentes meios de transporte: cavalo,
helicóptero e carro, que apareceram por ter Simon trazido estes objetos ou por
ver figuras destes. Pouco a pouco fomos organizando e vivenciando jogos mais
complexos de discriminação de diferentes ritmos e de utilização de instrumentos
musicais ou objetos convencionados para determinada ação.
Terceira Fase – nesta fase utilizamos a música como elemento de
expressão. Começamos a improvisar melodias muito simples. Cada um de nós
tocava um violão, com as cordas soltas, o que nos permitia tocar juntos,
interagindo. Além disto, eu tinha sempre presente a sua capacidade auditiva em
relação ao instrumento que estava sendo utilizado, como no caso do violão, cujas
cordas soltas vão de 82 a 329 Hz.. Estas frequências, em intensidade forte, eram
as mais ouvidas por Simon. Improvisávamos com voz num modo grego porque a
afinação das cordas soltas do violão nos leva a isto (Eólio natural e Mi Eólio).
Simon também improvisava com voz desta forma, intuitivamente, é claro,
o que pode ser observado em um vídeo que foi feito por sua mãe, durante uma
sessão. Esta observou a importância desta atividade já que na escola, enquanto
os colegas cantavam, Simon só imitava os gestos porque não sabia as letras e
nem as músicas cantadas.
O trabalho nesse momento apontava para a expressão não só através da
música mas, novamente através do corpo, num trabalho de espelho que utilizava
também sons.
De 10 de janeiro até 12 de março de 1992 o paciente não foi atendido por
motivo de férias. Na primeira sessão depois das férias, Simon voltou a se
desenhar sem orelhas mas com um enorme pênis. Parecia querer mostrar que
estava desenhando a si mesmo e não a musicoterapeuta ou a estagiária.
Passamos então a trabalhar novamente o esquema corporal, embora outros
aspectos pudessem estar aqui implicados (emocionais). Mas estes eram objeto de
trabalho através da relação terapêutica e da música.
Quarta Fase – durante o ano de 1992 trabalhamos a improvisação vocal
com palavras. Criamos melodias com palavras soltas e começamos a formar
frases pois a linguagem de Simon era ainda telegráfica, isto é, ele só utilizava o
verbo no infinitivo e não colocava as palavras de ligação da frase como
preposições, por exemplo.
Nessa época Simon começou a formar frases ainda muito simples e a
demonstrar um enorme prazer em falar e se comunicar. Fizemos jogos lúdicos
com frases curtas como I like Coke ou I don’t like Milk (“Eu gosto de Coca cola”
ou “Eu não gosto de leite”). Nesses jogos trazíamos nossas preferências e
desagrados em termos de comidas, bebidas, ações, enfim, estimulávamos a
formação de frases, sempre cantando e criando. Simon passou a criar histórias
curtas que eram vivenciadas por nós e a partir das quais criávamos sons e/ou
música.
É interessante ainda se observar que, segundo o médico, não seria possível
se ampliar o campo auditivo do menino. Pelo contrário, a sua capacidade
auditiva tenderia a diminuir. No entanto, com o desenrolar do trabalho da
musicoterapia, da professora especializada e com a participação da família –
principalmente da mãe – parece que Simon passou a ouvir mais. Na verdade, à
medida que se desenvolveu a sua percepção, ele passou a localizar e discriminar
melhor os sons que tinha condições de ouvir mas para os quais não estava
sensibilizado.
A mãe relatou, em maio de 93, que foi possível abaixar o volume do
aparelho auditivo de 3.5 para 3.0, o que evidencia o quanto foi desenvolvida a
percepção de Simon, já que isto não mostrava que ele estava ouvindo mais pois
já tínhamos sido avisadas que seria impossível o aumento do seu campo
auditivo.
A partir de 1991, Simon ficou sendo atendido só em musicoterapia e
passou a frequentar a Escola Britânica, para crianças normais. Nessa época ele já
estava alfabetizado, lia e escrevia razoavelmente bem para sua idade e,
principalmente, levando-se em conta a sua deficiência.
Em maio de 1993 comecei a preparação para a alta que ocorreu em junho
do mesmo ano.

Considerações Finais
Para concluir, seria importante se convocar novamente Tomatis que afirma
que “é do poder de se ouvir que nasce a faculdade de se escutar. E do poder de se
escutar que nasce a faculdade de falar” (1978, p. 83).
Já Anzieu, referindo-se à relação mãe-bebê, considera que
Antes que o olhar e o sorriso da mãe que alimenta e cuida,
produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente
perceptível e que seja interiorizada para reforçar seu Self e
esboçar seu Eu, o banho melódico (a voz da mãe, suas cantigas,
a música que ela proporciona) põe à disposição um primeiro
espelho sonoro do qual a criança se vale a princípio por seus
choros (que a voz materna acalma em resposta), depois por seus
balbucios e, enfim, por seus jogos de articulação fonemática
(1989, p. 195).

O espelho sonoro, e depois visual, só é estruturante para o Self e depois


para o Eu se a mãe exprimir ao bebê alguma coisa dela e dele, e alguma coisa
que diga respeito às primeiras qualidades psíquicas vividas pelo então nascente
Self do bebê.
A musicoterapia deverá trabalhar no sentido de reconstituir essas etapas
sonoras, tão importantes para a estruturação daquele que teve o seu
desenvolvimento auditivo interrompido. Simon foi levado a vivenciar sons,
ritmos, e até melodias simples, interagindo com a musicoterapeuta e estagiária,
em atividades prazerosas que levaram a um desenvolvimento da fala, emocional,
enfim, de uma forma global.
CADERNO 4
Metodologia
Agradecimento especial à Profa. e Mt. Rita Dultra, que me presenteou
com uma cópia digitalizada do Caderno 4, o que possibilitou a sua
publicação imediata.
APRESENTAÇÃO

Sobre a História do Caderno 4


Em 1975, quando ainda alunas do quarto ano de musicoterapia,
escrevemos um trabalho sobre as Etapas do Processo Musicoterapêutico, por
solicitação da professora da disciplina de musicoterapia, Doris Hoyer de
Carvalho. Mobilizada pelo estágio que começara três anos antes e que se
estendia até então, sentia muito intensamente todas as situações e etapas que
aconteciam na prática clínica sendo que algumas destas eu ainda não encontrara
descritas na pequena literatura de musicoterapia existente à época. Assim, aquele
trabalho resultou, principalmente, da minha experiência como estagiária —
daquilo que vivenciei na convivência direta com os pacientes —, de uma
reflexão sobre a prática e de questionamentos posteriores tanto em aula quanto
em espaços onde se discutia a musicoterapia.
A Professora Doris Hoyer de Carvalho, no Boletim n° 2 da Associação
Brasileira de Musicoterapia, editado em dezembro de 1975 (p. 8) assim se
expressa: “A partir de um trabalho a priori desenvolvido pelos alunos, tentando
responder à pergunta: ‘como estabelecer os passos do procedimento terapêutico
em musicoterapia’, foram estabelecidas as etapas, com suas bases e
finalidades’”. Assim, a própria professora declara que o trabalho que publicou
nesse Boletim foi desenvolvido e esquematizado ‘a partir’ do trabalho dos alunos
do quarto ano de musicoterapia, da turma de 1975, da qual eu fazia parte,
embora ela não faça referência aos trabalhos que utilizou para tal. Percebe-se,
então, que os alunos escreveram seus trabalhos e a professora esquematizou o
seu, tendo por base esses trabalhos e, evidentemente, organizando aquilo que
considerava que deveria ter um olhar seu mais aprofundado, já que tinha uma
grande experiência clínica, desenvolvida na Sociedade Pestalozzi do Brasil.
Em 1979, já como professora da disciplina de Musicoterapia132, nos quatro
anos do então Curso de Formação de Musicoterapeutas do Conservatório
Brasileiro de Música do Rio de Janeiro (CBM), sentindo a necessidade de
material didático sobre uma metodologia de Musicoterapia, decidi partir do meu
trabalho elaborado em 1975 para que, refletindo sobre ele, agora já com mais
experiência, pudesse trazer um ponto de partida para reflexão e discussão com os
alunos. Todas as etapas incluídas no trabalho de 1975 foram ampliadas e
revisadas nessa época, à exceção da alta que foi escrita também em 1975, antes
de todas as outras, mas seu texto não sofreu nenhuma mudança.
Evidentemente, nessa revisão utilizei o texto da professora Carvalho, além
de outros autores, que é citada textualmente em algumas passagens, bem como
incluí o seu nome nas referências, como reza a ética profissional. Esse texto
ainda foi por mim ampliado e revisado em 1999, para a publicação do Caderno
4, embora já fosse utilizado desde a turma de 1980 no CBM e, a partir da década
de 1990, em aulas também nos cursos em nível de Pósgraduação dessa mesma
instituição133; na Universidade Federal de Goiás – nos cursos de Pós-graduação
em Musicoterapia -, e na graduação de Musicoterapia da Universidade Católica
do Salvador, na Bahia, onde trabalhei como professora convidada.
No entanto, esse texto deveria ter sido publicado tão logo percebi que ele
poderia contribuir para uma melhor sistematização da musicoterapia, quando
passei a utilizá-lo nas referidas instituições. Todavia, as minhas exigências
pessoais e a minha prática clínica me levavam a pensar numa necessidade
constante de revisão o que retardou a publicação do mesmo. Hoje, consciente de
que qualquer área do conhecimento está constantemente em crescimento, e de
que cada musicoterapeuta saberá adequar o texto às suas necessidades, volto a
revisá-lo.
Como se trata de um texto que foi escrito com objetivos didáticos e como
as escolas de musicoterapia vêm se multiplicando no país, o objetivo maior da
sua publicação é levar ao estudante de musicoterapia uma metodologia da qual
ele possa partir para nortear o seu trabalho, inicialmente como estagiário e, mais
tarde, como profissional.
ETAPAS DO PROCESSO MUSICOTERAPÊUTICO
OU PARA UMA METODOLOGIA DE
MUSICOTERAPIA

Introdução
Grandes foram as discussões que antecederam o pedido de Doris Hoyer de
Carvalho (1975) para que os alunos do quarto ano de musicoterapia de 1975
elaborassem um trabalho sobre as etapas que poderiam ser, segundo ela, um
alicerce teórico imprescindível para a prática clínica. Essas discussões giravam,
principalmente, em torno de atitudes acirradas que ponderavam que o
musicoterapeuta perderia a naturalidade no atendimento a partir do momento em
que se tomassem posições teóricas.
No entanto, Carvalho defendia que não se podia prescindir destas posições
para organizar, sistematizar e edificar metodologias para alicerçar os processos
terapêuticos. Para a autora,

Todo processo terapêutico exige um mínimo de orientação


teórica e, embora, numa perspectiva rogeriana os processos e as
técnicas sejam menos importantes que as atitudes e sentimentos
do terapeuta, não se pode prescindir de uma fundamentação
teórica capaz de garantir a organização, a sistematização e,
mesmo, a metodologia de qualquer procedimento visando a
especulação científica (Carvalho, 1975, p. 8).

Sabe-se que qualquer processo terapêutico tem, para efeitos didáticos,


etapas, algumas bem definidas, que vão proporcionar ao terapeuta o
conhecimento do paciente, possibilitar o desen volvimento do processo de forma
mais organizada e consciente e permitir que a finalização do processo seja feita
de forma mais adequada para preparar terapeuta e paciente para a ‘separação’.
Os procedimentos em musicoterapia são os mesmos dos outros processos
terapêuticos à exceção da elaboração da Ficha e da Testificação
Musicoterapêuticas, encontradas exclusivamente num processo
musicoterapêutico.
Mesmo a maioria das etapas sendo comuns a outros processos terapêuticos,
procurar-se-á desenvolvê-las aqui, dando, entretanto, um enfoque específico do
ponto de vista da musicoterapia.

O encaminhamento de pacientes à musicoterapia


O encaminhamento de pacientes à musicoterapia não se trata de uma etapa
do processo a ser seguida. Mas, sim, é interessante se observar como é feito, para
que o musicoterapeuta tenha parâmetros a seguir. No entanto, como se trata de
um aspecto sobre o qual em geral os alunos têm muitas perguntas a fazer, está
sendo aqui incluído.
Não existe uma regra para se dizer quem encaminha um paciente para a
musicoterapia. Dentro de hospitais ou clínicas, em geral, os pacientes são
encaminhados pelos médicos porque são estes que fazem o primeiro
atendimento. No entanto, é comum que, em um determinado momento do
tratamento, um dos profissionais da equipe considere importante para o
desenvolvimento do paciente que este tenha outro tipo de atendimento. Assim,
mesmo em hospitais ou clínicas, qualquer profissional poderia sugerir o
encaminhamento de um paciente para a musicoterapia, no decorrer do
tratamento.
Hoje é comum se observar médicos que trabalham em consultório
encaminharem seus pacientes para serem atendidos em musicoterapia seja em
outras instituições, consultórios ou, ainda, para atendimentos domiciliares.
Também outros profissionais da saúde e, ainda, muitas vezes a escola,
encaminham crianças para tratamentos em musicoterapia. Deve-se considerar
que qualquer pessoa que perceba que outra tem necessidade de tratamento pode
sugerir ou informar sobre as possibilidades de melhora através da musicoterapia.
É frequente, por exemplo, mães de pacientes em tratamento musicoterapêutico
informarem outras mães e até indicarem nomes de musico terapeutas.
Também familiares podem perceber que uma pessoa poderia se beneficiar
de um tratamento, qualquer que seja, incluindo o de musicoterapia. Além disto, a
própria pessoa pode se dirigir e solicitar um tratamento, o que é muito comum
entre pessoas adultas que querem ter autoconhecimento.
No entanto, não se deve esquecer a internet, onde muitos familiares ou os
próprios pacientes potenciais vão em busca de informações e acabam por
descobrir nomes de profissionais. Hoje em dia também através de E-mails para
associações de classe, por exemplo, solicita-se a indicação de musicoterapeutas.
Talvez seja uma das formas mais frequentes de encamninhamento na atualidade.

Quem pode ser encaminhado


Todo e qualquer tipo de pessoa pode ser encaminhada à musicoterapia. No
entanto, cabe ao musicoterapeuta decidir quais seriam os pacientes elegíveis e
inelegíveis para um tratamento de musicoterapia.
Teoricamente poderiam ser considerados inelegíveis para serem tratados
em musicoterapia dois tipos de pacientes:
- os que não gostam de música e
- os pacientes portadores de crises epiléticas desencadeadas pela música.
Entretanto, dificilmente encontramos pessoas que não gostam de música.
E, em caso afirmativo, ainda deveríamos nos perguntar se não seria interessante
este ser um dos objetivos do tratamento.
Por outro lado, estudos atuais evidenciam que as crises convulsivas
desencadeadas por música são raras — um indivíduo em cada 10 milhões —
segundo o neurologista paulista Mauro Muskat (s/d). Assim, poderíamos deduzir
que não existiriam causas de inelegibilidade.

Quando se encaminha
É mandatório que uma pessoa seja encaminhada aos tratamentos
adequados tão logo se perceba que existe algum problema a ser trabalhado.
Muitas vezes, ficar decidindo por algum tempo qual seria o tratamento mais
apropriado e se este é o momento certo para encaminhar pode retardar as
possibilidades de desenvolvimento — como no caso de uma criança, por
exemplo —, ou, ainda, retardar o tempo de melhora de pacientes portadores das
mais diversas doenças.
Em qualquer situação de doença é necessário que a pessoa seja atendida
imediatamente. No entanto, no caso de bebês, o desenvolvimento pode ser
acelerado a partir da identificação precoce de um problema de desenvolvimento
nas etapas neuroevolutivas.
Em musicoterapia não é diferente. Como exemplo, temos crianças ou
bebês de risco que devem ser encaminhados tão logo sejam reconhecidos como
“de risco” pois se ganha tempo e se tem maiores possibilidades de êxito no
tratamento.
A psicóloga Olga Maria Rodrigues (2003) considera que são vários os
fatores de risco e que a presença destes é uma constante durante o
desenvolvimento do homem, desde a sua concepção. Por outro lado, muitas são
as condições que contribuem para tal. Citando o Plano Nacional de Ação
Conjunta para a Integração da Pessoa Deficiente, da Corde134, a autora declara
que

A identificação precoce destas condições e o encaminhamento


das crianças para serviços especializados possibilitam um
trabalho preventivo, através de programas de promoção de saúde
e de estimulação essencial. Como prevenção entendemos um ato
ou efeito de evitação da ocorrência de acontecimentos
prejudiciais à vida e à saúde ou minimização dos efeitos, quando
o dano já ocorreu (Corde, 1992, citada por Rodrigues, 2003, p.
108).

Assim, para que se tenha maiores resultados é fundamental que o


encaminhamento seja feito tão logo se perceba que existem poblemas.

Por que se encaminha


O motivo do encaminhamento tem a ver diretamente com o tipo de
pessoa135 ou de doença que a pessoa apresenta. Assim, este encaminhamento
está diretamente ligado às necessidades que a pessoa que vai ser encaminhada
tem.
As razões de um encaminhamento podem ser problemas físicos,
emocionais, psíquicos, motores, enfim, qualquer pode ser o motivo de um
encaminhamento. Caberá ao profissional decidir se é um caso elegível para ser
tratado em musicoterapia ou se esta pessoa teria melhores resultados em outro
tipo de atendimento ou atividade. Assim, deveria encaminhar a pessoa
explicando os motivos pelos quais a está encaminhando.

Como se encaminha
Pode-se encaminhar dando dados do musicoterapeuta/ instituição que
levem os responsáveis por um paciente a ter acesso ao terapeuta, como, por
exemplo: telefone, endereço de consultório/instituição, enfim, qualquer forma
que leve o responsável ou o próprio paciente a encontrar o musicoterapeuta.
Hoje são muito usadas informações e indicações de musicoterapeutas também
por whatsapp.

A entrevista inicial em musicoterapia

Objetivos
A entrevista inicial, primeira etapa do processo musico terapêutico, é
comum a qualquer terapia, ou seja, é a primeira etapa de qualquer processo
terapêutico.
O objetivo principal desta é obter dados do paciente que não são
encontrados no prontuário, quando em instituição, porque não são necessários a
outros profissionais, ou, ainda, porque muitas vezes são omitidos para alguns
terapeutas da equipe. Entre os dados que interessam só aos musicoterapeutas
estão os da “história sonoro-musical” do indivíduo. Estes deverão ser colhidos
pelo próprio musicoterapeuta. Cabe ressaltar que embora o objetivo principal da
entrevista inicial seja a coleta de dados, é fundamental se levar em consideração
que nela é que se dá o primeiro “encontro” terapeuta – paciente, quando esta é
feita com o próprio, e que este é de suma importância para o desenvolvimento do
processo terapêutico pois, na maioria das vezes, é dele que vai depender o
estabelecimento da relação terapêutica, que aí pode começar.
Quando se fala em colher dados do prontuário, evidentemente, fala-se do
trabalho de musicoterapeutas que trabalham em instituições onde a entrevista
será a complementação da “história de vida e clínica do paciente”, já colhida no
prontuário e complementada através de reuniões com outros profissionais que
integram a equipe multi ou interdisciplinar136.
Com pacientes de consultório, a entrevista assume ainda maior
importância, pois só através dela vamos ter, de início, as histórias destes (de
vida, clínica e sonoro-musical). No entanto, na maioria das vezes, os pacientes
são encaminhados por outros profissionais que já os conhecem, cabendo ao
musicoterapeuta estabelecer contato com os mesmos a fim de obter o máximo de
dados possíveis, sem, no entanto, prescindir da entrevista.
É também nesta etapa que vão ser elucidadas possíveis dúvidas do paciente
com relação ao tratamento.
Com quem deve ser feita
Quando se pergunta com quem a entrevista inicial deve ser feita,
imediatamente se pensa que a pessoa mais indicada é o próprio paciente. É ele
que poderá nos dizer dos seus problemas, das suas ansiedades, das suas
preferências e desagrados em termos sonoro/musicais e da sua expectativa frente
ao processo que vai ser iniciado. No entanto, é preciso que se esteja consciente
que nem sempre o paciente está em condições de ser entrevistado como, por
exemplo, um autista ou afásico, ou, ainda, muitos outros tipos de pacientes.
Nestes casos dever-se-á entrevistar uma pessoa da família ou o responsável. Por
outro lado, mesmo nos casos em que o paciente pode ser entrevistado existem
dados que o mesmo não tem condições de fornecer e que muitas vezes podem
ser importantes. (Como condições de nascimento, por exemplo). Quando isto
acontecer, o paciente será informado que o terapeuta entrará em contato com
outra pessoa da família.
Segundo Carvalho (1975), a entrevista vai ser feita também com outros
membros da equipe. A meu ver não se trata de entrevistas propriamente ditas,
mas de contatos/reuniões que vão ser marcados com o fim de se complementar
os dados já coletados e obter novos sobre a história do paciente.

Como deve ser feita


Se o musicoterapeuta trabalhar em instituição é aconselhável que tenha um
horário fixo para entrevistas, de maneira que quem encaminha os pacientes deve
saber em que horário estes poderão ser atendidos. Isto serve não só para facilitar
o trabalho tanto da instituição quanto do musicoterapeuta, como também, para
fazer com que a instituição reconheça a musicoterapia como uma forma de
tratamento. Além disto, é preciso que os pacientes que estejam sendo atendidos
sejam respeitados e que suas sessões não sejam interrompidas para que se façam
novas entrevistas. Se o trabalho estiver sendo desenvolvido em consultório, o
musicoterapeuta poderá fazer as entrevistas em horários que bem lhe aprouver,
evidentemente.
Dificilmente se poderia dar regras de como deve ser feita uma entrevista
porque com cada pessoa um mesmo musicoterapeuta terá que ter diferentes
atitudes para obter as informações necessárias e, muitas vezes, seu
comportamento vai diferir por conta do comportamento de cada entrevistado.
O musicoterapeuta deve proporcionar um ambiente que deixe o
entrevistado à vontade, levando-o a ter segurança para que tenha condições de
trazer seus problemas e dificuldades, sem receio. Sabese que qualquer entrevista
traz muita ansiedade para quem dela faz parte, tanto pelos aspectos
desconhecidos da situação que o entrevistado vai enfrentar como pelo fato de ter
que se expor frente a um estranho. Para que o entrevistado se sinta um pouco
mais à vontade é preciso que seja tratado com a máxima atenção e respeito.
Os primeiros momentos da entrevista são decisivos. Cabe ao
musicoterapeuta conduzir o início, para que depois se passe à entrevista
propriamente dita. Ao contrário disto, muitas vezes é completamente
desnecessário se fazer qualquer pergunta. O entrevistado imediatamente, por
ansiedade ou ainda por necessidade de “ser ouvido por alguém”, conta a história
do paciente ou a sua própria com grande facilidade (quando for o paciente que
estiver sendo entrevistado), chegando, frequentemente, a ser necessário o
musicoterapeuta intervir para que o entrevistado não se desvie do assunto
principal. Entretanto, isto deve ser feito com grande cautela.
Outras vezes, há grande dificuldade por parte do entrevistado, cabendo ao
musicoterapeuta, então, conduzir a entrevista de forma clara e objetiva, dando
espaço e tempo para o entrevistado se sentir à vontade. Há ainda situações nas
quais aparecem divergências entre as pessoas que são entrevistadas, no caso de
ser mais de uma. Neste caso, o musicoterapeuta deve ter o cuidado de não tomar
partido, ou, se achar que pode fazer isto, terá que ter cuidado com a atitude a
tomar e dos motivos que vão levá-lo a se posicionar. Cabe a ele, ainda, não
reprimir sentimentos que surjam, mas ter o cuidado de não se deixar envolver
pela expressão dos mesmos (no caso de choro, por exemplo).
Às vezes pode haver necessidade de mais de uma entrevista. O
musicoterapeuta fará quantas forem necessárias, até sentir que pode iniciar o
atendimento.
Muito se tem discutido sobre escrever ou não durante a entrevista, frente
ao entrevistado. Considera-se que um musicoterapeuta inexperiente poderá
escrever, pois é possível que a ansiedade, muito natural no início, o leve a
esquecer dados que seriam muito importantes para desenvolvimento do
processo. À medida que ele se sinta mais seguro deverá escrever apenas dados
como nomes, datas e endereço, reconstituindo e escrevendo a entrevista
posteriormente, para fins de estudo e para poder melhor avaliar o processo
musicoterápico que vai se iniciar.
Antes de o musicoterapeuta começar a escrever deve avisar o entrevistado
e justificar, dizendo da importância do registro das informações para um melhor
desenvolvimento do trabalho.
Quando entrevistando o próprio paciente, o musicoterapeuta deve ser
suficientemente perceptivo para saber que tipo de entrevista deverá fazer ou para
saber como adequá-la ao paciente que tem à sua frente. Assim, muitas formas de
entrevista poderão ser adotadas e/ou criadas, dependendo do paciente que se
tenha.

O musicoterapeuta e o entrevistado
A atitude que o musicoterapeuta deve adotar já foi abordada em itens
anteriores. No entanto, alguns parâmetros dessa atitude ainda devem ser
discutidos.
O musicoterapeuta deve estar suficientemente atento e “aberto” para
receber e ser capaz de observar e perceber atitudes, posturas, aparência e
disponibilidade do entrevistado, fatores muito importantes para o
desenvolvimento do processo, principalmente quando este for o próprio
paciente.
O terapeuta deve ser: discreto, mas firme; objetivo, mas capaz de perceber
as sutilezas de uma resposta subjetiva; permissivo, mas saber interferir a tempo
e, claro, quanto às possibilidades do processo musicoterapêutico. Deve ainda
conhecer os limites do seu trabalho frente aos problemas que deverá enfrentar e
ter a capacidade de fazer com que o entrevistado não hipervalorize o tratamento.
Isto deve ser feito com muito cuidado para que não se interfira na vontade de
melhora do paciente, o que dificultaria qualquer processo terapêutico. Enfim, o
musicoterapeuta deve, antes de tudo, ter em mente que tem diante de si uma
pessoa em busca de ajuda e não apenas um diagnóstico, e que, exatamente
porque precisa de ajuda, para si ou para alguém próximo, esta pessoa está, na
maioria das vezes, angustiada ou muito ansiosa, e na expectativa e esperança de
ter encontrado um caminho. Cabe ao musicoterapeuta ajudá-la, tentando
minimizar as suas dificuldades e possibilitando um crescimento, estando
consciente que a relação entre duas pessoas implica em um crescimento mútuo,
por menor que seja, e se dispondo a crescer junto com o outro. Contudo, não
deve perder de vista que o centro da terapia é o paciente. Assim, mesmo que o
terapeuta saiba que pode crescer junto com um paciente, este não é um espaço
específico de crescimento do terapeuta, mas, sim, do paciente.
Uma última observação deve ser feita: quando o musicoterapeuta estiver
entrevistando um casal ou duas pessoas que sejam próximas do paciente, deve
ter o cuidado de não tomar partido de um dos dois, quando surgir alguma
discussão entre os mesmos, ainda que um deles se dirija diretamente ao terapeuta
pedindo a sua opinião ou, em última instância, cumplicidade.

Onde deve ser feita


Desde o primeiro contato, musicoterapeuta e paciente devem ter um espaço
que, pouco a pouco, vá se constituindo e se configurando como o ‘espaço
sagrado’ da terapia. É importante, por isto, que a entrevista inicial já seja feita na
sala onde o paciente será atendido. Evidentemente, a realização da entrevista na
própria sala não é obrigatória mas, sim, há uma recomendação para que, desde o
primeiro encontro, esse espaço vá sendo reconhecido como aquele onde o
paciente terá a liberdade de expressar os seus conteúdos internos.
Segundo Mircea Eliade (s/d), professor, historiador das religiões, mitólogo
e filósofo romeno, para o homem religioso o espaço não é homogêneo. Existem
espaços que são, qualitativamente, diferentes de outros, isto é, mais fortes e
significativos, constituindo-se como ‘espaços sagrados’. Embora inicialmente
Eliade se refira ao ‘espaço sagrado’ como sendo uma concepção do homem
religioso, ele diz que o homem que optou por uma vida profana não consegue
abolir completamente o comportamento religioso. Existem para o autor, espaços
que, pelo seu significado, são ‘especiais’: por guardarem uma qualidade
excepcional ou única. São os lugares especiais do universo privado de uma
pessoa.
Para se assumir um espaço é necessário que se organize e se habite esse
mesmo espaço sendo estas ações que pressupõem uma escolha existencial: “a
escolha do universo que se está pronto a assumir ‘criando-o’” (ibid., p. 48). Há a
necessidade de uma decisão vital para se assumir a criação do mundo que se
deliberou habitar, para instalar-se num território ou, ainda, construir uma
morada. A nossa casa é santificada de forma parcial ou total. E todos nós
sabemos e vivenciamos isto, a partir do momento em que temos — na nossa casa
como um todo, ou em espaços ou ‘cantinhos’ dentro dela — nossos objetos de
estimação, cheios de significados, ou uma relação especial com este cantinho. A
sacralidade destes espaços advém do fato de que a própria existência do homem
fica comprometida em criar o seu próprio ‘mundo’ e “de assumir a
responsabilidade de o manter e de o renovar [sic]. Toda a inauguração de uma
nova morada equivale, de certo modo, a ‘um novo começo’, a uma nova vida”
(ibid., p. 9).
Entende-se a partir das ideias de Eliade sobre o ‘espaço sagrado’ que o
homem se compromete com os espaços que habita, que lhe confere uma
qualidade diferente daquela que os outros espaços têm, enfim, que se relaciona
com esse espaço de forma diferente.
Da mesma maneira, sem dúvida, isto vai acontecer com um paciente que, a
partir do primeiro encontro com um terapeuta, vai se expor para alguém que
ainda é um desconhecido, abrir-se para algo novo, enfim, para um ‘novo
começo’ ou, até, uma ‘nova vida’.
Assim como o espaço da terapia é ‘consagrado’, a partir do primeiro
encontro, também o tempo em que este se dá, e todas as outras sessões se darão,
será consagrado, será vivido como sagrado. Diz-nos ainda Eliade que também o
homem não religioso da sociedade moderna conhece certa descontinuidade e
heterogeneidade do tempo – “existe o tempo monótono do trabalho e aquele dos
regozijos e dos espetáculos: o tempo festivo” (ibid., p. 83). Assim, o tempo em
que o paciente compartilha com o terapeuta as suas angústias, alegrias, ou
qualquer outro aspecto de sua existência se transforma em um ‘tempo sagrado’.
Estas noções de espaço e tempo sagrados podem embasar muitas
discussões que abarcariam aspectos como: não ter uma sala específica para o
desenvolvimento do tratamento, utilizando, a cada dia, uma sala diferente; não
ter um horário fixo para o atendimento; atrasos e faltas do terapeuta; e, até, a
substituição do terapeuta por estagiários sem aviso prévio, além de tantas outras
questões que fazem parte de um processo terapêutico.
No entanto, é preciso que se leve em consideração alguns aspectos da
realidade brasileira. Muitas vezes é necessário que vários profissionais utilizem
uma mesma sala em horários diferentes. Não raro o musicoterapeuta a cada dia
deve atender em um espaço distinto. Quando isto acontecer, o musicoterapeuta
deverá saber como se adequar à realidade e fazer o seu trabalho da melhor
maneira possível.
E, por último, mas não menos importante, ainda se falando sobre a
entrevista, é a observação de que o musicoterapeuta terá o discernimento
suficiente para decidir ‘como’ esta deve ser realizada e ter criatividade para fazê-
la da forma menos invasiva possível, com adequações que se façam necessárias,
como aconteceu com os meninos em situação de rua que atendemos no morro do
Pavão, Pavãozinho (Rio de Janeiro), situação relatada em artigo anterior, nesta
mesma publicação.
Quando chegamos aos meninos, consideramos que não seria adequado
fazer uma entrevista individual. Assim, no primeiro encontro, quando todos
reunidos na sala onde eles seriam atendidos137, todos sentados no sofá e nós no
chão, pois não havia mais cadeiras na sala, começamos uma conversa informal,
dentro da qual fomos inserindo perguntas. Imediatamente todos queriam
responder às nossas perguntas, pois o fato de uns terem começado a responder
instigava os outros a fazerem o mesmo.
Assim, cabe ao musicoterapeuta sentir qual é a melhor forma de fazer
entrevistas, dependendo de quem estiver à sua frente, em que espaço, em que
momento, enfim, o musicoterapeuta saberá como deverá se movimentar nessa
etapa.

A Ficha Musicoterapêutica
Se quisermos justificar o emprego da música como elemento terapêutico,
podemos fazê-lo reportando-nos à sua importância na evolução cultural e
biológica do homem; à permanência da sua existência na vida de cada um de
nós; ao fato de tratar-se de um elemento não verbal; às reações e associações que
seus elementos constitutivos podem provocar; ao fato de constituir-se como um
objeto intermediário de relação; à sua natureza polissêmica, enfim, ao que
representa em todas as culturas, épocas, ou, ainda, nos mais diversos momentos
de nossas vidas.
Quando falamos em música em musicoterapia estamos evidentemente nos
referindo não só à música estruturada, mas a qualquer manifestação que se
apresente através de um dos elementos que a constituem, utilizados de forma
isolada ou não (ritmo, som). Por isso, quando nos referimos à história de cada
indivíduo com a música, ainda em musicoterapia, utilizamos o termo história
sonoro-musical para denotar que esta relação vai além do emprego único da
música estruturada, mas, sim, leva em conta o mundo rítmico-sonoro que nos
rodeia.

Objetivos
A ferramenta de trabalho da musicoterapia é a música, assim como a
palavra o é da psicoterapia verbal. Seria possível o trabalho do psicoterapeuta
que trabalha com este tipo de psicoterapia se ele não conhecesse bem o
significado das palavras? Evidentemente não, pois este é um dos seus
instrumentos de trabalho. Da mesma forma acontece com o musicoterapeuta. Em
primeiro lugar é preciso que ele ‘domine’138 o seu objeto de trabalho, a música e,
por outro lado, é preciso que ele possa reconhecer quê sentidos os sons têm para
o paciente, quais as implicações do som e do ritmo, enfim da música, na vida do
paciente.
O objeto/ferramenta de trabalho da musicoterapia é muito amplo e
complexo, pois a música é formada por elementos como som, ritmo, melodia e
harmonia – que têm, alguns, diferentes parâmetros como o som, por exemplo –
altura, intensidade, duração, e timbre. Estes elementos e seus diferentes
parâmetros se combinam formando uma malha ou um tecido musical (Barcellos,
1999a) que pode permitir que a ela se atribuam muitos sentidos, o que se entende
como uma natureza polissêmica139.
Para que exista música é necessário que haja uma fonte emissora que tanto
pode ser o corpo humano, como instrumentos musicais, ou aparelhos elétrico-
eletrônicos, e que esta fonte emissora realize determinadas atividades como:
movimentos corporais, dança, canto, execução dos instrumentos ou que acione
os aparelhos elétrico-eletrônicos. É preciso que exista, além da “fonte emissora”,
que pode em musicoterapia ser o próprio paciente, o musicoterapeuta ou ainda
os dois – uma “fonte receptora”, no caso, o homem novamente. É interessante se
assinalar que quando o paciente é tanto a “fonte emissora quanto receptora”,
realiza-se um mecanismo de “feedback”140, de grande importância no processo
terapêutico – daí a relevância daquilo que alguns chamam de Musicoterapia
ativa e que eu denomino “Musicoterapia Interativa”.
Fala-se de ‘fonte receptora’ porque para o silêncio não precisaríamos de
‘fonte emissora’ mas seria necessário alguém que ‘escutasse’ o silêncio. (Não
vamos entrar aqui na discussão entre físicos e filósofos a respeito da existência
ou não de som a partir da existência ou não do sujeito para perceber o som: para
os físicos o som é um fenômeno físico que independe de ser ou não captado pelo
ouvido humano; para os filósofos, ou mais precisamente os fenomenólogos, o
som só existe a partir do momento em que é captado pelo ouvido humano).
Ter-se-ia, exemplificando, aproximadamente o seguinte processo:
O que se tenta mostrar, aqui, é que a música, principal ferramenta da
musicoterapia, é formada por muitos elementos – som, ritmo, melodia e
harmonia – e os diferentes parâmetros destes e, que para que ela exista, é
necessário, na maioria das vezes, a utilização de instrumentos musicais que têm
que ser “animados” pelo homem. Tem-se, então, uma enorme possibilidade de
combinações.
Assim sendo, é necessário que se conheça, além da música, o máximo
possível da história sonora do paciente tornando-se, para isto, imprescindível a
realização da ficha musicoterápica.

As diferentes fichas musicoterapêuticas.


A realização da ficha musicoterápica vai variar de acordo, com:

a patologia do paciente e
o regime de internação ou a possibilidade de um atendimento prolongado
ou não.

A patologia do paciente
Diversos musicoterapeutas, trabalhando em diferentes áreas já elaboraram
fichas específicas para que tenham informações que os ajudem a melhor atender
às necessidades dos pacientes. Assim sendo, temos já diferentes fichas de acordo
com as áreas a serem atendidas:

deficiência intelectual
saúde mental
deficiência física
geriatria e muitas outras áreas de atuação da musicoterapia.
Algumas destas áreas já têm fichas de acordo com a patologia do paciente
como, por exemplo:

deficiência física

– pacientes portadores de paralisia cerebral


– pacientes hemiplégios adultos (com sequela de AVE ou AVC – Acidente
Vascular Encefálico ou Acidente Vascular Cerebral).

O regime de internação ou a possibilidade de atendimento

breve ou
prolongado(a)

Seria desnecessária uma ficha completa com pacientes atendidos


brevemente em instituições de saúde mental, por exemplo. Na verdade, mais do
que isto: pode-se considerar inadequada a elaboração de uma ficha com
pacientes que ficarão por pouco tempo em tratamento, ou seja, nos tratamentos
breves os pacientes em geral frequentam poucas sessões. Aqui se trata de
qualquer paciente que tenha, por qualquer razão, um tratamento breve. Já com
pacientes em atendimento prolongado, será possível, e mesmo necessária, a
elaboração da ficha musicoterapêutica completa.
Com os pacientes de consultório, dos quais não possuímos informações de
prontuário, devemos elaborar a ficha de forma o mais completa possível, pois
caberá ao musicoterapeuta não só investigar a vida sonoro/musical do paciente
mas toda a sua história de vida e clínica o que, em instituição, é feito em geral
pelo médico e/ou pela assistente social.
Cabe sinalizar que, com a Reforma Psiquiátrica, em geral não existem
internações prolongadas. Mas, também cabe lembrar que ainda muitos são os
pacientes remanescentes de internações anteriores à Reforma, que se encontram
em hospitais psiquiátricos.

O Estudo Biográfico
O Estudo Biográfico que, segundo Carvalho (1975), é a segunda etapa,
trata-se, a meu ver, de uma complementação da Entrevista Inicial ou de uma sub-
etapa desta. Este estudo serve para complementar, com o estudo do prontuário,
aquilo que já foi obtido através da realização da entrevista inicial.

Objetivos
Com a história pessoal e clínica completas, coletadas na entrevista e no
prontuário e com a elaboração da ficha musicoterapêutica, que nos dará a
história sonora do indivíduo, teremos conhecimento das etapas de
desenvolvimento (em caso de crianças), das condições de adaptação bio-psico-
social e da história clínica do indivíduo. Dentre alguns dos objetivos da
realização do Estudo Biográfico apontados por Carvalho estão: “documentar o
estado do paciente no início do tratamento e levantar hipóteses e planejar
tecnicamente que áreas devem ser especificamente atendidas em cada paciente,
além do atendimento global implicitamente incluído no atendimento a todos”
(1975, p. 9).
É necessário assinalar que a coleta da história pessoal, clínica e sonoro-
musical vai assumir diferentes aspectos dependendo do tipo de paciente a ser
atendido. Seria desnecessário, por exemplo, investigar as etapas de evolução de
um paciente que sofreu um Acidente Vascular Encefálico aos sessenta anos de
idade ou mais; no entanto, estas informações serão certamente muito úteis no
caso de uma criança com 11 anos com problemas emocionais graves. Por outro
lado, a história sonoro-musical completa do indivíduo, tão necessária no caso de
um autista, será menos importante no caso de psicóticos internados em
instituições que tenham regime de internação breve. Para estes, mais importante
será elaborar fichas com dados que se refiram às preferências e desagrados
atuais, por exemplo. Isto se dá devido ao pouco tempo que o musicoterapeuta
dispõe para entrevistas que, quando possível, são feitas quase que semanalmente,
para atender à alta rotatividade de pacientes, bem como porque seriam
desnecessárias informações muito detalhadas sobre pacientes que muitas vezes
frequentam três sessões de musicoterapia e lhes é concedida alta, por motivos
que fogem ao objetivo de estudo desta etapa.

A Testificação Musicoterapêutica
A testificação musicoterapêutica é, tanto quanto a ficha musicoterapêutica,
uma etapa específica do processo musico terapêutico, ou seja, não é encontrada
em outras terapias.

Objetivos
A testificação musical é uma complementação da ficha musicoterapêutica,
isto é, na ficha colhemos as informações com o próprio paciente, ou com o
responsável quando aquele não tiver condições, e na testificação vamos observar
as reações que os sons, o ritmo, os diferentes instrumentos, enfim, os distintos
tipos de estímulos sonoro-musicais provocam no paciente.
Esta tem por objetivos observar as possibilidades de comunicação do
paciente; as suas dificuldades, inibições, preferências, desagrados, impulsos,
bloqueios, reações e desejos frente aos diferentes parâmetros e instrumentos
musicais.

Procedimentos
Também na testificação musicoterapêutica vamos adotar diferentes
procedimentos, de acordo com o paciente que temos para ser atendido.
É interessante se conhecer os diferentes procedimentos já existentes para a
realização da testificação musicoterapêutica e, a partir destes, cada
musicoterapeuta poderá utilizar o que considerar mais adequado ou criar novos,
dependendo das necessidades e partindo de suas próprias experiências.

Local e material
O local onde vai ser realizada a testificação deve ser a própria sala de
musicoterapia onde o paciente vai ser atendido. Isto porque o paciente já
começa, nesse momento, a se identificar com o espaço e o ambiente onde será
estabelecida a relação e onde será desenvolvido o processo terapêutico.
Na testificação preconizada por Benenzon e Yepes (1972), o instrumental a
ser utilizado vai ser o piano aberto, o violão, os instrumentos de percussão e um
gravador com uma fita contendo quatro estímulos musicais gravados o que hoje
pode ser apresentado em CD ou, mesmo em gravadores de celulares ou
computadores. Os instrumentos utilizados serão de acordo com as possibilidades
da instituição ou do musicoterapeuta, quando se tratar de trabalho em consultório
particular, e seriam os mais característicos do folclore do país ou da região de
origem do paciente. Deverão ser colocados, de preferência, na mesma disposição
em todas as testificações para que o musicoterapeuta possa ter um padrão de
observação.
Quanto aos estímulos gravados deverão ser sempre os mesmos, pelo
mesmo motivo pelo qual os instrumentos deverão ser colocados na mesma
disposição. Eles serão escolhidos pelo musicoterapeuta e serão uma
representação de sua personalidade ou como afirma Benenzon, um ‘cartão de
apresentação’ do musicoterapeuta.
O autor preconiza que quatro seriam os estímulos escolhidos para fazerem
parte dessa testificação e que os mesmos devem ter aproximadamente uma
mesma duração. O primeiro será um ritmo primitivo; o segundo, uma melodia
primitiva e o mais arrítmica possível, o terceiro um fragmento sinfônico e o
quarto, um fragmento de música eletrônica (Benenzon, 1985).
Antes de tudo, o paciente deve ficar livre para fazer o que quiser, enquanto
o musicoterapeuta anota as manifestações que forem sendo apresentadas com
relação aos instrumentos, ou seja, o que o paciente toca: ritmos, melodias, gestos
e/ou canções que canta, e como se ‘movimenta’ na sala.
Após vinte minutos observando-se o paciente, cada estímulo gravado é
colocado, dando um espaço de cinco minutos entre um e outro, e continuando a
observar as reações frente ao que está se ouvindo e vendo.
O autor esclarece que se houver uma grande inibição do paciente ou ainda
ansiedade deste ou do musicoterapeuta, no início da sessão, e por nada acontecer
durante algum tempo, pode se passar, imediatamente, para os estímulos sonoros.

A atitude do musicoterapeuta
Ainda na testificação preconizada por Benenzon (1985) existe a
recomendação que o musicoterapeuta inicialmente explique ao paciente o que
vai ocorrer. No entanto, a atitude do musicoterapeuta deverá ser passiva o tempo
todo, podendo interferir apenas nos momentos em que houver necessidade (o
autor insiste em que a atitude deve ser passiva pois uma atitude ativa poderia
modificar a atitude do paciente).
É preciso lembrar que esta testificação é preconizada por Benenzon para
pacientes psiquiátricos sendo que ele não se refere, em nenhum momento, à
utilização da mesma com qualquer outro tipo de pacientes.
A nossa experiência tem nos mostrado que, com alguns pacientes, como
por exemplo, paralisados cerebrais, que em geral têm impedimento motor, a
primeira parte da testificação não seria factível e a atitude do musicoterapeuta
não poderia ser passiva. Nestes casos, a meu ver, o musicoterapeuta será ativo,
tocando instrumentos, e observará as reações do paciente. Parece ainda
interessante que sejam escolhidos instrumentos mais primitivos como bumbo e
chocalho, por exemplo, com crianças em uma faixa etária mais baixa e que, com
crianças em idade mais avançada sejam introduzidos além daqueles,
instrumentos mais elaborados. Pensamos também que deve ser levado em
consideração o nível cultural do paciente, se bem que, pelo contato com a TV,
mesmo os instrumentos mais elaborados já são, muitas vezes, conhecidos,
mesmo pelos pacientes de nível cultural mais baixo. Isto, no entanto, não é regra
fixa e é a percepção do musicoterapeuta que vai lhe dar, possivelmente, a melhor
maneira de proceder.
É interessante se observar que assim como se recomenda a utilização dos
instrumentos de certa forma seguindo uma evolução, pode-se perceber que
também nos estímulos musicais preconizados por Benenzon há nitidamente uma
evolução: um estímulo rítmico, um melódico, um sinfônico e um eletrônico. Será
que isto poderia inclusive nos mostrar o estado de regressão de um paciente?
Acredito que sim, tanto quanto isto pode ser visto, a meu ver, no emprego de
instrumentos mais, ou menos primitivos. Penso, no entanto, que unicamente a
sistematização de ditos comportamentos frente aos mesmos estímulos poderia
nos dar a certeza de tal afirmação. Isto porque existem muitas variáveis que vão
interferir e estas só poderiam ser comprovadas através de estudos e pesquisas.
Doris Hoyer de Carvalho (1975) nos dá também alguns procedimentos
para a realização da testificação, procedimentos estes que diferem daquilo que é
preconizado por Benenzon.
A autora criou uma forma de testificação musicoterapêutica que estabelece,
para a sua realização, um número de sessões que pode variar de três a cinco, para
que possamos avaliar as reações do paciente frente à música e aos instrumentos
musicais. Segundo ela, a atitude do musicoterapeuta será ativa junto com o
paciente e ela não nos fornece exemplo de estímulos musicais a serem colocados
para os pacientes.
Acredito que só a partir do estudo e pesquisa vamos poder chegar a novos
procedimentos ou à utilização dos já existentes, dependendo do tipo de paciente
a ser atendido. No momento que encontramos o paciente, somos levados pelo
bom senso a utilizar um ou outro procedimento, ou ainda aspectos de um ou de
outro, de acordo com aquilo que julgamos mais adequado para cada paciente.
Alguns teóricos da musicoterapia recomendam a utilização de ambas as
testificações, já que as veem como complementares.
Vê-se que nestas duas testificações alguns pontos são absolutamente
antagônicos como, por exemplo, a atitude do musicoterapeuta, que na de
Benenzon é de observação e na de Carvalho é de participação e, com relação ao
que é apresentado: na do autor são estímulos musicais gravados e na de
Carvalho, apenas instrumentos musicais.
Com a realização da testificação musicoterapêutica se completa a ficha
musicoterapêutica e se tem elementos suficientes para dar início ao trabalho,
tendo já alguns aspectos delineados com relação ao paciente. Assim, sabendo-se
da elegibilidade do paciente para a musicoterapia, poderá ser feito o “contrato
terapêutico”.
O Contrato Terapêutico
Quando se fala em Contrato Terapêutico, muitas vezes se pensa no
contrato que é feito entre um musicoterapeuta e uma instituição. No entanto, o
contrato terapêutico, ao qual nos referimos, é uma das etapas do processo
musicoterápico ou, melhor dizendo, é um dos aspectos a serem abordados na
Entrevista Inicial. Trata-se de um procedimento comum a outras terapias, e não
exclusivo da musicoterapia.

Objetivos
Obtidos os dados que compõem a história do paciente através da Entrevista
Inicial e observadas as suas reações frente aos estímulos musicais na
Testificação Musicoterapêutica, somos capazes de verificar se este é um paciente
elegível para a musicoterapia e já teremos dados suficientes para começar o
atendimento e estabelecer os objetivos a serem trabalhados. No entanto, antes
ainda devemos combinar com o próprio paciente, se ele tiver condições para tal,
ou com o responsável por ele, determinados aspectos do tratamento.
O objetivo do Contrato Terapêutico é estabelecer os papéis de cada um,
terapeuta e paciente, e especificar os compromissos de ambas as partes: deveres
e direitos. Neste contrato estarão sendo estabelecidas as normas básicas do
tratamento tais como: o horário, a frequência e a duração das sessões;
honorários, forma e o momento do pagamento, caso se trate de paciente de
consultório, isto é, se o pagamento deve ser feito em cheque ou dinheiro e se
deve ser efetuado no início ou no final do mês. É ainda no contrato que vai ser
negociado o preço, caso o paciente não possa pagar a quantia cobrada pelo
musicoterapeuta.
Ainda outros aspectos devem ser levantados no contrato com pacientes de
consultório. Estes dizem respeito às faltas e férias do paciente e do
musicoterapeuta, isto é, como o pagamento vai se dar nestes casos e, por último,
mas não menos importante, a questão do recibo para imposto de renda, um outro
assunto muito delicado. É ainda no contrato que se deve falar se esse recibo será
disponibilizado, ou se haverá interesse dos responsáveis pelo paciente em
utilizá-lo, para que, no momento em que este se faça necessário, não aconteçam
situações que possam vir a criar malentendidos entre paciente/familiares e
musicoterapeuta, o que poderia, sem dúvida, ‘minar’ a relação terapêutica.
A experiência tem mostrado que, em geral, há necessidade de uma
explicação sobre o que é musicoterapia, bem como, de que não é preciso que o
paciente saiba música. Muitos pacientes ao chegarem à sala e ao verem os
instrumentos à sua frente dizem: “eu não sei tocar nada”. Esclarecemos, então,
no momento do contrato ou da entrevista, que não é necessário saber música.
Cabe ainda lembrar que alguns aspectos esclarecidos no contrato
terapêutico são de suma importância para o desen volvimento do processo
musicoterapêutico. Como poderíamos, por exemplo, estabelecer um ‘limite de
tempo’ com uma criança, ou qualquer outro paciente, que não quer sair da sala
de musicoterapia, se não foi ‘combinado’ antes, com ela/ele, qual seria o seu
tempo de atendimento? Deve-se frisar que isto deve ser feito mesmo que a
criança pareça não entender ou não ter condições de compreensão do tempo. Por
isso, é muito importante que tudo seja ‘combinado’ e discutido no contrato
terapêutico.

Procedimentos
O contrato terapêutico é feito, em geral, com o próprio paciente. Quando
este não tem condições, ou parece não ter, é ao responsável que serão
apresentados os aspectos do atendimento. No entanto, é preciso que tomemos
muito cuidado para não subestimar o paciente. Muitas vezes achamos que ele
não tem condições de entender e por isso não explicamos ao próprio, aspectos
que seriam facilmente compreendidos. A nossa experiência e a orientação do
supervisor nos levaram a quase sempre expor ao paciente determinados aspectos,
mesmo que, muitas vezes, nos parecesse impossível que ele estivesse
entendendo e que, por isto, o contrato tivesse sido feito com o responsável.
Dizia-nos o supervisor “é muito importante a atenção que é dispensada ao
paciente e, mesmo que seja uma criança que não entenda o significado das
palavras, ela pode perceber a intenção”.
Vale, talvez, o exemplo de uma paciente de três anos que estava pronta
para que se finalizasse o tratamento. Quando comecei o trabalho de preparação
para a alta, mesmo achando que ela não tivesse condições de entender, baseada
no que acabei de expor, decidi fazer o trabalho com ela mesma. Na primeira
sessão que lhe falei que já estava fazendo uma ‘porção de coisas bonitas’,
imediatamente ela abriu um armário da sala e começou a mexer aleatoriamente
no que tinha dentro como fazendo não ouvir o que eu falara. Na sessão seguinte
voltei a falar sobre o assunto e ela voltou a abrir e mexer no armário. No entanto,
na sessão da semana seguinte, ela não mais abriu o armário e me olhou,
mostrando que estava escutando. Assim, falei novamente e combinamos que
chamaríamos seus pais, para informar que ela não precisaria ‘vir mais aqui’. Vi
que ela aceitara a alta e, ainda mais, também aceitara comunicar ela mesma, aos
pais, junto comigo, dizendo em uma linguagem própria de sua idade: “nós
combinamos de eu não ir mais aqui”.
O contrato terapêutico é feito na própria sala de musicoterapia, antes de ser
iniciado o processo musicoterapêutico propriamente dito, ou, as sessões.

Objetivos Terapêuticos
Para que melhor seja entendida a importância do estabelecimento de
objetivos devemos esclarecer que, além da formação do musicoterapeuta – que
vai dar ao profissional um perfil específico -, este procedimento é de extrema
importância para delinear a prática clínica de forma a diferenciá-la das outras
atividades que utilizam música.
Todos os profissionais que trabalham em atividades que utilizam música
devem ter, evidentemente, conhecimento musical. O musicoterapeuta, além do
conhecimento musical, tem que ter uma formação científico-médica que vai
capacitá-lo para trabalhar em uma equipe terapêutica inter ou multidisciplinar,
bem como vai lhe dar condições de atender a quase todo tipo de paciente, isto é,
ele tem uma formação de Anatomofisiologia, Neurologia, Medicina de
Reabilitação, Psicopatologia, Psiquiatria, Psiquiatria Infantil e Neurociências,
bem como estudos de Psicologia que vão lhe possibilitar reconhecer e abordar
atitudes e comportamentos num sentido bastante amplo.
Por outro lado, as disciplinas da área de Sensibilização do Curso de
Musicoterapia têm por objetivo o desenvolvimento do campo perceptivo do
aluno, dando-lhe a possibilidade de perceber o outro, bem como a si mesmo em
relação ao outro ou a um grupo, possibili tando que ele perceba o paciente e/ou
grupo, posteriormente.
É evidente que o trabalho numa nova área levará o musicoterapeuta a
estudar para que possa melhor lidar com aspectos específicos desta. Mas, cabe
uma observação sobre o atendimento de pessoas normais ou os ditos neuróticos.
Na opinião de vários musicoterapeutas, o currículo dos cursos de graduação em
musicoterapia existentes no país ou o nível desses estudos não dá condições para
que um musicoterapeuta trabalhe nesta área. Estudos adicionais devem ser
realizados para que um musicoterapeuta graduado se torne apto para a prática da
musicoterapia com pacientes neuróticos.
Além deste aspecto é importante ressaltar que grande parte dos alunos de
curso de graduação são muito jovens faltando-lhes, muitas vezes, uma
experiência de vida tão necessária para tal atendimento. Exceções devem ser
feitas e coordenadores e professores de tais cursos saberão como lidar com essa
questão. Um encaminhamento para uma terapia pessoal seria uma das estratégias
possíveis a serem adotadas para contribuir para o desenvolvimento não só destes
jovens alunos como, também, é de extrema importância para todos que desejam
ser terapeutas.
Mas, voltando-se à razão da importância da formação do musicoterapeuta e
da relevância de se traçar objetivos cabe dizer que todas as atividades que
utilizam música podem vir a ter efeitos terapêuticos mas a única que tem esses
objetivos e se constitui como terapia é a musicoterapia. Isto poderia ser assim
representado:

Este é um ponto de extrema relevância pois, sem dúvida, o emprego da


música que tem objetivos terapêuticos é de uma forma distinta daquele que visa
a aprendizagem, por exemplo. Há uma grande diferença em se ter objetivos
terapêuticos ou em uma utilização que tenha efeitos terapêuticos sem que o
trabalho tenha o objetivo de ser terapêutico.

Estabelecimento de objetivos
O estabelecimento dos objetivos se faz necessário por que:

estabelece, com certa segurança, os propósitos do processo


musicoterapêutico;
possibilita escolher/dar um caminho ou a direção que o atendimento vai
tomar e
permite ao musicoterapeuta ter um procedimento técnicocientífico.

Isto seria facilmente exemplificado com uma frase que várias vezes nos foi
dita pelo supervisor clínico141: “o paciente pode estar perdido, o musicoterapeuta
não”. Se tivermos objetivos claros será mais fácil não nos afastarmos das
necessidades do paciente. Também o estabelecimento destes vai nos levar a um
aproveitamento maior dos recursos rítmico-sonoros na especificidade dos casos
atendidos e na generalização dos resultados.
No entanto, é preciso que o musicoterapeuta seja capaz de reconhecer a
necessidade de modificação dos objetivos estabelecidos no início do
atendimento ou, ainda, da introdução de novos, caso surja uma situação
prioritária. Isto vai ser levado à equipe, se o trabalho estiver sendo desenvolvido
em instituição, e também discutido com o supervisor.

Procedimentos
Para o estabelecimento dos objetivos vamos partir:

do estudo da história do paciente;


da discussão nas reuniões de equipe e dos dados que constam do prontuário;
do contato com os familiares e
do contato com o próprio paciente na entrevista, testificação e ou nas
sessões.

Estes quatro itens vão nos ajudar a estabelecer objetivos calcados nas reais
necessidades do paciente. Entretanto, se o trabalho for desenvolvido em
consultório particular, onde não existe equipe formal, só os contatos com os
familiares, com o próprio paciente e com outros profissionais que estejam
atendendo o paciente (equipe informal) poderão nos dar subsídios para o
estabelecimento dos objetivos. Estes nos permitirão, então, estabelecer os
propósitos do processo musicoterapêutico permitindo, assim, com mais
segurança e/ou clareza, a evolução do tratamento.
Ainda caberia, aqui, uma observação sobre o estabelecimento dos objetivos
a priori isto é, aqueles objetivos que são conhecidos antes de se estar com o
paciente. Como exemplo podem ser citadas instituições de internação breve, (em
geral de Saúde Mental) nas quais os pacientes são atendidos por um tempo que
não pode ser previsto. Não é raro, neste tipo de instituições, pacientes que
frequentam duas ou três sessões e recebem alta.

Sessões Musicoterapêuticas

1 – O musicoterapeuta
É muito difícil se dar normas de como deve ser uma sessão de
musicoterapia. A meu ver é, principalmente, no momento da prática da
musicoterapia que vai ser muito importante a capacidade perceptiva do
musicoterapeuta para que ele possa perceber o paciente e utilizar a música da
forma mais adequada, tanto para satisfazer os interesses e necessidades dele
(paciente), quanto a alcançar os objetivos estabelecidos. Teríamos, então:

Assim, num primeiro momento da sessão, o musicoterapeuta deve estar


atento para perceber quais são os interesses e as necessidades do paciente e qual
é o tempo interno deste. Após ter percebido o que Benenzon (1985, p. 64) chama
de “ISo complementar” (Identidade Sonora Complementar), cabe ao
musicoterapeuta utilizar os elementos e atividades musicais que atendam não só
aos interesses do paciente mas que possibilitem que se trabalhe as dificuldades
deste. O musicoterapeuta deve utilizar a música que considera a mais adequada
para chegar mais facilmente ao paciente ou, ainda, responder/interagir, ou
intervir, de forma adequada142.
Vários fatores vão possibilitar ao musicoterapeuta um bom desempenho:

a – o conhecimento musical
b – o autoconhecimento e a sensibilidade
c – o conhecimento da história do paciente e
d – o conhecimento da patologia do paciente.

Mas, ainda vale trazer aspectos mencionados pela musicoterapeuta norte-


americana Cheryl Dileo (2000), tais como: cuidado, empatia, coragem e
prudência e, principalmente, as questões éticas que têm implicações importantes
nos atendimentos e processos terapêuticos, aos quais a autora dedica uma obra
inteira que vale ser conferida.

a – O conhecimento musical
Muitas vezes, o musicoterapeuta sabe o que utilizar sonoramente, mas não
tem condições de fazê-lo porque não domina bem um determinado instrumento
musical ou, ainda, um determinado aspecto da música. O musicoterapeuta tem
que dominar o instrumento musical e não, ser dominado por ele. À medida que
não conhecemos bem um instrumento não nos sentimos livres para utilizá-lo;
sentimo-nos presos.
Isto não quer dizer que temos que saber tudo sobre música ou que devemos
saber tocar todo e qualquer instrumento. Isto é impossível. No entanto, devemos
ter um grau de competência e habilidades em música que nos permitam uma
movimentação minimamente suficiente para trabalhar com os pacientes, pois
esta é o objeto de trabalho do musicoterapeuta.
Esse conhecimento e o domínio vão possibilitar também ao
musicoterapeuta fazer intervenções musicais que, às vezes, podem ser o ‘gatilho’
que vai permitir o desenvolvimento ou a reabilitação de algumas capacidades
que foram comprometidas. Essas intervenções podem estimular, muitas vezes,
áreas cerebrais que passam, aos poucos, a funcionar cada vez mais, ou a
substituição das que foram comprometidas: a neuroplasticidade. Ou, em outros
casos, vão permitir que aspectos inconscientes venham à consciência. Se o
musicoterapeuta não tem condições de fazer intervenções como, por exemplo,
uma intervenção musical clarificadora de aspectos musicais na produção musical
de um paciente, pode perder oportunidades que seriam muito importantes para a
evolução deste.

Cena clínica 21
O carnaval é a mais conhecida festa profana da cultura brasileira, e o
‘samba’ e as ‘marchas’ os principais gêneros cantados nessa festa. As letras
destas músicas contam/cantam o cotidiano e o que acontece durante o ano na
política, sociedade e economia, e se constituem como as preferidas a serem
cantadas por pacientes idosos. Nesta cena clínica, apresenta-se um grupo destes
pacientes, atendidos na década de 1970, em um hospital de reabilitação física.
Em uma determinada sessão, que se propôs que fosse gravada, eles decidiram
cantar “uma música que todos soubessem”. Assim, ouve-se, na gravação, a
discussão de qual seria essa música e a conclusão a que chegaram: vamos
cantar “Bandeira Branca”! No entanto, quando começam a cantar ouve-se isto:

“As Pastorinhas”

Imediatamente percebi que eles estavam cantando a letra da Bandeira


Branca com a música de ‘As Pastorinhas’ (Noel Rosa e João de Barros, 1934) e
que a letra de Bandeira Branca se encaixava perfeitamente nessa música. Mas,
considerei que tinha que fazer uma intervenção para que eles cantassem a
música que tinham escolhido. Assim, ouve-se na gravação feita na sessão a
minha ‘intervenção musical clarificadora do tipo melódicorítmica’, o que pode
ter feito com que o paciente que ‘puxou’ os outros, cantando a música d’ As
Pastorinhas tenha tido algum ganho com isso.

“Bandeira Branca”

Isto permitiu que eles pudessem continuar e cantar a música inteira, cuja
letra está a seguir:
Embora se trate de uma marcha rancho que musicalmente esteja entre as
músicas que podem ser consideradas ‘previsíveis’ que, em geral têm: 32
compassos, melodias, ritmos, riffs143 e harmonias simples (I, IV, V) ou ‘uma
linguagem musical natural’ como afirma o musicólogo britânico Richard
Middleton (1990, p. 46), referindo-se à harmonia, eles não conseguiram cantá-la,
de início.
É comum os pacientes idosos cantarem marchas antigas e através delas
podem ser os “narradores musicais144” de sua[s] história[s] (Barcellos, 2006).
Em geral, as letras dessas músicas ‘significam’ cenas, pessoas ou épocas
importantes das vidas desses idosos que, através delas, trazem o passado, pela
memória musical. E, foi, sem dúvida, a intervenção clarificadora que possibilitou
que eles pudessem cantar.
Mas, deve-se observar que não só as intervenções musicais são
importantes, mas, também as interações musicais são fundamentais pois podem
dar acolhimento e aproximar musicalmente e, por conseguinte, emocionalmente,
musicoterapeuta e paciente.
Kenneth Bruscia (1987, p. 531) afirma que para que aconteçam as
mudanças necessárias em uma terapia, o paciente, mais cedo ou mais tarde, tem
que se confrontar com os seus problemas de uma forma mais ativa. Para facilitar
que isto aconteça, o musicoterapeuta tem que engajar o paciente em um
‘encontro’ com vários aspectos e, dentre estes, com o próprio terapeuta.
Considero que uma das formas de entrar em contato e levar o paciente a esse
engajamento com o musicoterapeuta é ‘na música’, onde os dois estarão juntos.
Para isto, o musicoterapeuta pode imitar, completar, colocar uma base para dar
acolhimento, nas várias possibilidades que a música oferece, ou seja, através do
ritmo, da melodia, da intensidade, da altura, do timbre, de intrumentos
semelhantes ou distintos. Complementando, o autor apresenta uma taxonomia de
técnicas clínicas que podem ser utilizadas pelos musicoterapeutas para facilitar o
desenvolvimento de um processo terapêutico (ibid, p. 533).
Todos nós, músicos, que já tocamos em conjunto, sabemos das sensações e
emoções que as interações proporcionam.

b – O autoconhecimento e a sensibilidade
Apesar de muitos musicoterapeutas não serem terapeutizados, desde a
entrevista pessoal que se realiza no vestibular de ingresso para admissão de
candidatos ao Bacharelado em Musicoterapia, tenta-se conscientizar o candidato
da necessidade de que aqueles que desejam seguir a carreira de terapeutas devem
se submeter a uma terapia, seja ela qual for, ou tenha ela a linha de
fundamentação teórica que tiver.
É impossível se exigir que o aluno procure uma terapia, por vários
motivos. Primeiro, porque se trata de tratamentos bastante caros e, segundo,
porque achamos que é muito mais válido o aluno procurar a terapia por uma
necessidade interna do que por uma imposição externa. Pensamos, então, que o
melhor caminho é mobilizá-lo e conscientizá-lo dessa necessidade, para que ele
não venha a projetar as suas dificuldades nos pacientes.
Melhor seria, ainda, se cada futuro musicoterapeuta pudesse ser
musicoterapeutizado, isto é, pudesse passar pelo processo musicoterápico,
vivenciar todos os aspectos do mesmo, para, mais tarde, poder aplicar aquilo que
aprendeu na teoria e vivenciou na prática como paciente, sendo que aqui
teríamos mais uma vantagem: a de o musicoterapeuta ter conhecimento da sua
Identidade Sonora, das suas preferências e desagrados para não misturar os
aspectos que lhe são característicos, com aqueles dos pacientes.
Até agora falamos de aspectos que se referem ao musico terapeuta.
Contudo, outros aspectos devem ser vistos.

c – O conhecimento da história do paciente


Como já dissemos, anteriormente, o conhecimento da história do paciente,
junto com outros procedimentos, vai possibilitar uma abordagem mais completa,
mais dentro da realidade do paciente. Se desconhecermos a sua história pessoal,
clínica e sonoro-musical, será mais difícil de se chegar até ele, perdendo-se um
tempo que é muito importante para a terapia.
Para Bruscia (1987) é necessário que o musicoterapeuta faça uma
avaliação inicial. Dessa avaliação consta a coleta de informações sobre o
paciente e a análise dessas informações é considerada necessária “para planejar e
implementar um efetivo programa de tratamento” (p. 13). Todas estas
informações podem levar à natureza e causas da condição diagnóstica do
paciente, ou a um insight sobre a personalidade, os problemas, as necessidades,
os recursos ou o potencial do paciente. Assim, todas as informações podem
ajudar o terapeuta a mapear uma direção para a terapia, ao mesmo tempo em que
podem levar o terapeuta a determinar quais serão as estratégias mais efetivas
para o tratamento. Através destas declarações pode-se perceber que Bruscia
considera que uma avaliação inicial é absolutamente importante e necessária.
Deve-se sinalizar que alguns musicoterapeutas são contra a realização da
entrevista. A justificativa que apresentam é que têm à sua frente uma pessoa e
que não precisam ter informações sobre a história da mesma. Considero que todo
conhecimento que o musicoterapeuta tenha sobre um paciente poderá contribuir
para melhor conduzir o processo terapêutico. Sem esquecer que tem uma pessoa
à sua frente, evidentemente.
Cabe aqui convocar um autor de uma cultura completamente distinta da
nossa e trazer o seu pensamento sobre a questão. Tratase do musicoterapeuta
finlandês Esa Ala-Ruona145, citado por Jaako Erkkilä (In: MEADOWS, 2011, p.
204) sobre o assunto. Cabe frisar que embora estes musicoterapeutas estejam
inseridos em uma cultura absolutamente diferente da nossa, há uma grande
semelhança entre os procedimentos que eles preconizam e que precedem o
atendimento em musicoterapia, por eles e por nós recomendados, apesar da
grande distância ‘no espaço e no tempo’146. Erkkilä (ibid.), apresenta um
“modelo” desenvolvido por Ala-Ruona (2007) com relação à avaliação inicial de
pacientes encaminhados à musicoterapia que se constitui de quatro fases
interrelacionadas:

o primeiro contato: que começa logo após o encaminhamento e o momento


em que é tomada a história do paciente, da doença, os tratamentos prévios,
enfim, todas as informações que se fazem necessárias para o
desenvolvimento do processo terapêutico. Para o autor, “Quanto menos
infor mações disponíveis para o terapeuta, mais ele/ela tem que confiar na
sua intuição e experiência” (2011, p. 205);
os encontros para avaliação: Ala-Ruona revela que além dessas
informações anteriores ele está interessado na interação musical entre o
paciente e ele, e na relação do paciente com a música. Explica que
denomina essa parte de criando contato, e que esta é uma importante fase
do processo de avaliação pois tem duas importantes funções no processo de
avaliação (mas cita três): estabelecer a relação terapêutica, planejar as
atividades musicais apropriadas e detalhar os objetivos da musicoterapia.
Ala-Ruona ainda afirma que não existe um número certo de encontros, mas
que estes podem variar de dois a seis;
Tirar conclusões sobre o paciente e os dados coletados nas duas primeiras
fases, que são utilizados para a elegebilidade do paciente para a terapia e
estabelecer os objetivos. Aqui o autor sublinha a importância da
participação das reuniões com a equipe multidisciplinar e da supervisão e,
por último, Ala-Ruona se refere ao
Relatório que deve ser feito de forma oral ou escrita, para relatar as
conclusões. E aqui o autor inclui um dado novo recomendando que, quando
possível, também a opinião do paciente deve ser incluída nesse relatório.

Cabem aqui alguns comentários: o primero é que estes procedimentos são


extremamente semelhantes aos que Doris Hoyer de Carvalho preconizou para a
“testificação” de pacientes em 1975. Nessa testificação, o musicoterapeuta está
ativo, percebendo exatamente como o paciente se movimenta em relação à
música e a autora preconiza que sejam realizados de três a cinco encontros para
que se possa observar a relação do paciente com a música.
Por outro lado, quando discorro, também em 1975, sobre a importância da
entrevista inicial147, ressalto que esta é fundamental porque aí acontece o
primeiro encontro terapeuta-paciente, que vai ser essencial para o
estabelecimento da relação ou do vínculo terapeuta-paciente.
Como se pode perceber, muitos pontos desses procedimentos apontados
por Ala-Ruona são comuns aos apresentados por Carvalho e Barcellos em 1975
e, sobretudo, enfatizam a importância em se ter informações e conhecimento das
histórias de vida, clínica e sonoro/musical dos pacientes, além de enfatizar a
importância de se conhecer a relação do paciente com a música. Isto corrobora a
relevância da existência de procedimentos que vão ser utilizados da forma como
o musicoterapeuta considerar mais adequado para cada um de seus pacientes,
dentro de uma certa uniformidade nos procedimentos para uma possível
generalização.

d – O conhecimento da patologia do paciente


Muito se tem discutido a respeito da necessidade de o musicoterapeuta
saber ou não o diagnóstico de um paciente e sobre as implicações negativas que
adviriam desta informação, segundo alguns, para o desenvolvimento do processo
terapêutico.
Sabe-se que algumas correntes defendem a tese de que o terapeuta não
deve estar a par do diagnóstico, pois isto viria a interferir no trabalho. O paciente
passaria a ser visto como uma patologia e não como pessoa. Ter-se-ia, então,
uma dicotomia “pessoa – patologia” o que é muito discutido e combatido pela
escola existencial, para a qual o homem é uma totalidade existencial e “as
neuroses e psicoses vêm sendo hoje concebidas e interpretadas como novas
formas de existência, ou seja, como modos diversos e especiais de ser no
mundo” (Nobre De Melo, 1986, p. 168). Se cada pessoa fosse vista como uma
totalidade existencial os métodos não seriam rígidos, pois, cada um tem o seu
“modo-de-ser-no-mundo”. Para o autor, existe entre o homem e seu mundo, o
privilégio de uma relação irredutível.
A técnica não é excluída mas é preciso que seja “flexível” no sentido de se
adaptar à realidade existencial de cada um. Para Heidegger “mundo e ser”
formam uma unidade a priori indissociável, e isto implica em se “penetrar no ser
a partir do seu mundo”. Esta é então a principal via de acesso à intimidade do
“ser-em-si” (ibid., p. 165).
Tentando fazer um paralelo com a posição dos musicoterapeutas, poder-se-
ia dizer que o “Principio de ISO”, desenvolvido por Altshuler em 1954 (p. 30)
— e que possibilitou a Benenzon, posteriormente, cunhar o conceito de
“Identidades Sonoras” – ISo —, corresponderia ao que Heidegger chama de
“penetrar no ser a partir do seu mundo” (NOBRE DE MELO, 1986, p. 165) e,
poder-se-ia acrescentar: “penetrar no ser a partir do seu mundo sonoro”.
A partir do conhecimento da história sonora do paciente – que nos dará sua
Identidade Sonora – ISo, e do seu “modo-de-ser-nomundo” no momento da
sessão – que nos dará seu ‘ISo ou Identidade Complementar’ teremos, ainda
fazendo um paralelo Heidegger – Benenzon – Altshuler, o que o primeiro chama
de “a principal via de acesso ao ser-em-si”, e o que Benenzon denomina de
“abertura de um canal de comunicação” que é aquilo que, no dizer de Altshuler,
“irá capturar o estado de ânimo do paciente mais rapidamente” (1954, p. 30).
Outro aspecto que não pode deixar de ser discutido é o de ‘normalidade e
anormalidade’. O doente mental, dentre os muitos tipos de pacientes atendidos
em musicoterapia, é o que, aparentemente, apresenta menores sinais de diferença
da normalidade. A existência de uma Deficiência Intelectual, em geral, é
imediatamente percebida e é muito fácil de estabelecer diferenças entre
deficientes intelectuais e normais. Um deficiente físico tem, evidentemente, toda
uma aparência que, por si só, já estabelece essa diferença. Mas, e o doente
mental? Muitas vezes não existe nada aparente que mostre a condição de
‘diferente’, neste tipo de paciente. Por isto é que eles se constituem como
‘ameaça’ para os ditos ‘normais’ que muitas vezes se valem do diagnóstico para
ratificarem a sua condição.
É por isto que o doente mental assusta tanto. Porque provoca
identificações. Porque se vê nele a loucura que está em nós, ‘normais’, que
muitas vezes não temos a coragem de assumi-la, ou, a covardia de vivê-la.
Mas, voltando-se à questão do diagnóstico, parece-nos, no entanto, que o
bom senso é um fator de grande importância. Acredito que não devemos
prescindir do diagnóstico pois este nos dará uma compreensão maior do
paciente. Por outro lado, é preciso que o fato de sabermos o diagnóstico não nos
“contamine” ou não nos leve a utilizá-lo como uma barreira, impedindo-nos de
ver o paciente como uma pessoa. Devemos lembrar-nos que antes de tudo, ali
está uma pessoa e não um rótulo e é preciso que o diagnóstico nos ajude a chegar
ao “ser-em-si” e não que seja um fator que vai nos afastar desse ‘ser’.
Vale a observação do musicoterapeuta alemão Niels Hamel (2015)148 que
considero de extrema importância: “quando o paciente entra pela primeira vez na
sala tenho que perceber como me sinto. Quais as diferenças que percebo em meu
corpo: mãos frias, transpiração do corpo, alterações na respiração, enfim, como
me sinto frente a esse paciente. O que ele causa em mim”. Percebe-se que o
musicoterapeuta tenta perceber como reage diante dessa pessoa que tem à sua
frente mas, sabe-se, que ele não prescinde do diagnóstico.
2 – A sala de Musicoterapia
Segundo Benenzon (1985/2000), a sala de Musicoterapia deve ter
dimensões regulares pois uma sala muito grande proporcionaria uma dispersão
maior de pacientes hiperativos por exemplo, assim como uma sala muito
pequena dificultaria a movimentação dos pacientes durante a sessão.
A sala deve ter poucos estímulos para que apenas os sonoro/musicais
mereçam atenção por parte do paciente. Se tivermos uma sala cheia de estímulos
visuais, a nossa linguagem sonoro/musical ficará, possivelmente, em segundo
plano, dificultando a abordagem do paciente e facilitando a sua dispersão. O piso
deve ser, de preferência, de madeira para transmitir mais facilmente as vibrações.
Quanto aos estímulos sonoros, o ideal seria que somente os que fossem
feitos dentro da sala pudessem ser percebidos. No entanto, como na maioria das
vezes é difícil se ter uma sala com proteção acústica é preciso que estejamos
preparados para utilizar os ruídos que vêm de fora e que interferem no
tratamento.
Estes são os aspectos apontados por Benenzon (1985/2000) como ideais.
No entanto, sabemos qual é a realidade brasileira. Dificilmente teremos
condições de ter uma sala tal como a descrita como ideal. Assim, será necessário
que possamos nos adequar às condições que seriam mínimas para o
desenvolvimento de um trabalho.
Cabe trazer o exemplo de uma instituição muito pobre, localizada em uma
cidade do nordeste onde foi criado um curso de musicoterapia. Ali, o muito
pobre se estendia à instituição não ter dinheiro para alimentar os pacientes. Até
para a alimentação, a instituição dependia de doações. E se deve dizer que em
alguns momentos, um dos estagiários atendia o paciente dentro de uma banheira,
sem água, evidentemente, por não ter um espaço disponível para tal.
Em minha opinião, não cabe, na situação aqui exemplificada, recomendar-
se que o musicoterapeuta deva lutar para que possa ter condições minimamente
ideais como um espaço próprio para a musicoterapia ou instrumentos adequados
para o atendimento. Desnecessário se torna discutir a questão. É evidente que a
alimentação e algumas outras questões estão em primeiro lugar.
Assim, caberá a cada musicoterapeuta exigir aquilo que não esteja acima
das possibilidades da instituição. No entanto, deve ter o cuidado para não se
acomodar e ter que lidar com situações que estariam abaixo do considerado
como mínimo possível, em instituições que tenham condições. Além disto,
poderá, muitas vezes, ter saídas alternativas como, por exemplo, para suprir a
falta ou inexistência de instrumentos, sugerir a confecção dos mesmos num
trabalho desenvolvido em conjunto com a Terapia Ocupacional ou, se isto não
for possível, criar uma oficina para este fim.
Por fim, recomenda-se que deve haver um esforço no sentido de que,
sempre que possível, o local da realização das sessões seja o mesmo, pois passa
a ser o’espaço sagrado’ da terapia, como já foi visto anteriormente.

3 – O material a ser utilizado


O material a ser utilizado constará de instrumentos do folclore de cada
país, dos instrumentos ORFF de musicalização, já bastante difundidos, de
instrumentos estruturados como piano, teclado, violão e, ainda de instrumentos
que poderão ser criados e fabricados pelos próprios pacientes na Terapia
Ocupacional como sugerido anteriormente ou, mesmo, com o musicoterapeuta.
Além destes, a prática clínica nos mostra que todo instrumento musical é
importante numa sala de terapia, à exceção daqueles que têm um manejo difícil,
o que poderia causar frustração aos pacientes.
Deveremos ter, ainda, uma aparelhagem que possibilite a reprodução de
CDs, gravador, e outros aparelhos tecnológicos que permitam não só a
reprodução musical, como a gravação de som e imagens para o registro de
algumas atividades ou mesmo de sessões inteiras. Se pensarmos no ideal, toda a
sala de musicoterapia deveria ter uma câmera filmadora para que se pudesse
registrar todos os momentos de uma sessão, e ter, aí, a possibilidade de
acompanhar os desdobramentos não só do processo musicoterapêutico no que
diz respeito ao paciente mas, também, com relação à movimentação do
musicoterapeuta.
Ainda objetos auxiliares como bolas, aros, bastões, balões, enfim, todo e
qualquer objeto que possa contribuir na realização de atividades específicas que
podem ajudar no desenvolvimento do processo terapêutico ou na reabilitação de
um paciente, por exemplo, deve fazer parte do material a ser utilizado um
computador por se tratar de um aparelho que contribuições pode trazer à
musicoterapia.
O registro de sessões com imagens e sons deverá ser feito — seja por meio
de fotografias, vídeos, filmagens com celulares ou quaisquer outras formas.
Ainda seria fundamental se ter um computador por se tratar de uma máquina que
tem grandes recursos para gerar/ produzir/reproduzir sons, veicular músicas de
todos os gêneros e origens, bandas e orquestras, compositores e cantores, o que
pode muito contribuir para o desenvolvimento dos pacientes. Igualmente, seria
de extrema importância se ter uma câmera com censor de movimento, afixada
em lugar que pudesse filmar toda a sala.
Esses registros contribuirão não só para uma melhor compreensão do
desenvolvimento do paciente mas, também, para estudo e consequente evolução
da musicoterapia na medida em que aspectos daí advindos poderão fazer parte
do corpo teórico da disciplina.
Qualquer forma de registro de som e imagem só poderá ser feito com
permissão do paciente ou, se este não tiver condições, da familia. Contudo, se o
paciente ou alguém por ele responsável tiver assinado o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, como preconiza o Conselho Nacional de Saúde (Resolução
466/2012), torna-se desnecessário pedir permissão a cada registro.

4 – Etapas da sessão musicoterápica


Já nos referimos, anteriormente, à dificuldade que se teria em dar regras
sobre como deve ser uma sessão de musicoterapia. Acreditamos, no entanto,
que, para efeitos didáticos, possa se dividir a sessão em etapas. A primeira etapa
seria perceber o paciente ou grupo. Nesta etapa a atitude do musicoterapeuta
seria mais passiva. Ele ficaria, principalmente, como observador ou, em “inação”
(Barcellos, 2004d). Observaria os interesses do paciente, a Identidade Sonora
Complementar (Benenzon, 1985) e suas reações para, a partir daí, poder começar
a estimular o paciente ou com ele interagir. Nesta etapa também aconteceria o
que Benenzon chama de ‘aquecimento’ e ‘catarsis’ ou descarga de energia
agressiva (2000, p. 128).
Na segunda etapa o musicoterapeuta organizaria ou canalizaria os
elementos que tivessem aparecido na catarsis e, caso esta não acontecesse, (nem
sempre acontece), atuaria junto com o paciente, propondo atividades mais
adequadas para o bom andamento do processo ou interagindo naquilo que
considerasse ser importante aos interesses e necessidades do paciente e, ao
mesmo tempo, permitisse ao musicoterapeuta atingir os objetivos anteriormente
planejados. Aqui ele trabalharia as dificuldades do paciente, com ele interagindo
em forma de imitação sucessiva, simultânea, ou ainda, estabelecendo diálogos
rítmicos e/ou sonoros.
A terceira etapa levaria o musicoterapeuta a preparar o paciente para o
final da sessão, através de intervenções verbais ou musicais. Dentre as musicais
podem-se utilizar aquelas que diminuam a intensidade do que está sendo feito,
até se chegar a uma intensidade ppp sinalizando o final da sessão, tanto com a
voz, se a recriação através do canto estiver sendo a técnica empregada, como por
meio de instrumento se for o que o musicoterapeuta estiver utilizando. Ou,
ainda, se musicoterapeuta e paciente estiverem improvisando, o musicoterapeuta
pode incluir palavras para sinalizar através da letra da improvisação a
proximidade do final da sessão.
No livro Improvisational Models of Music Therapy (1987), Bruscia faz
uma introdução aos fundamentos da “musicoterapia improvisacional”,
apresentando e analisando 25 modelos de musicoterapia que se desenvolveram
desde a década de 1960 até a publicação do livro em 1987, terminando com uma
síntese desses modelos com relação aos princípios básicos da prática clínica.
Um dos temas aí apresentados é o que se refere às sessões. Para o autor, as
sessões se desdobram em uma sequência de eventos de acordo com os objetivos
metodológicos e ele considera que existem duas formas básicas de sessões: as
“estruturadas” e as por ele denominadas de “fluxo livre” (ibid., p. 527).
As sessões “estruturadas” são divididas em fases e se entende existir uma
sequência de acordo com os objetivos metodológicos. Estas têm um início, uma
parte central e um fim e são organizadas em torno de um evento. Já

Na sessão de fluxo-livre, o terapeuta segue o cliente momento-a-


momento, e permite que o cliente determine o curso dos eventos.
A sessão de fluxolivre é usualmente organizada de acordo com
os ciclos processuais que são repetidos ou aparecem em
camadas ao longo da mesma, ou de acordo com temas musicais
ou emocionais recorrentes (idem).

Entendo que nas sessões de “fluxo-livre” o musicoterapeuta


‘aproveita/utiliza’ aquilo que o paciente traz e o segue, interagindo com ele, ou
intervindo no que está sendo feito, a fim de poder trabalhar os aspectos que
aparecerem ou que o terapeuta considerar que devem ser abordados. Por outro
lado, nas que são divididas em etapas, percebe-se que esta divisão é feita para
efeitos didáticos porque nem sempre todas estas etapas vão acontecer
necessariamente na prática.
O principal e mais importante é que as dificuldades do paciente sejam
trabalhadas a partir dos seus interesses e com atividades e/ou elementos que
possibilitem a minimização de seus problemas e satisfação de suas necessidades
para um crescimento paulatino.
Organizando a sessão149.
O quadro abaixo foi elaborado a partir do tópico que se debruça sobre a
organização das sessões, onde o autor apresenta alguns aspectos, observando que
existem variações de um modelo para outro e de uma sessão para outra. Dois
tipos de sessões foram por ele identificados:
Obviamente, todas as questões acima em relação à organização da sessão
dependem de um fator central: o cliente. Alguns necessitam de sessões
estruturadas enquanto outros necessitam de sessões de fluxo-contínuo.
Frequentemente isto está ligado ao tipo de problema de cada um.

Observações das Sessões (Registro das sessões)


Quando Doris Hoyer de Carvalho (1975) menciona as “Observações das
Sessões”, quer se referir ao que alguns chamam de “Relatórios das Sessões”.
Preferimos utilizar o termo apresentado por Carvalho embora a nosso ver não
seja o mais adequado, para não confundir com o “Relatório Progressivo”, que é
outro procedimento em musicoterapia.

Objetivos do registro das sessões


Muito se tem discutido acerca da necessidade ou não do registro de cada
sessão e das vantagens e desvantagens que advêm de tal procedimento. Sabe-se
que a musicoterapia é bastante nova e, como tal, ainda pouco conhecida.
Começamos, há não muito tempo, a estabelecer procedimentos e a sistematizar,
dentro do possível, a coleta de informações. Será possível se confiar em dados
que não se apoiem em registros claros e objetivos? Qual a veracidade de
resultados de um estudo que se baseie em informações que sejam resultantes da
memória do musicoterapeuta? Que validade científica teria tal estudo? Será este
o verdadeiro caminho para levarmos a musicoterapia a se desenvolver?
Evidentemente, não. Para que possamos fazer um trabalho sobre atendimentos
que já foram finalizados é necessário que os acontecimentos de cada sessão
estejam documentados e que sejam utilizados, na medida do possível, recursos
tecnológicos, além do registro por escrito (gravações em áudio e vídeo).
Estes procedimentos, segundo Carvalho (1975), objetivam:

sistematizar a coleta de informações, imprescindíveis a qualquer trabalho


científico
documentar os dados significativos do processo musicoterapêutico
estabelecer bases concretas para um trabalho técnicocientífico e eventuais
pesquisas e,
permitir subsídios para a supervisão e elaboração de Relatórios
Progressivos.

Mas, quais seriam as desvantagens destes registros? Para alguns, o registro


das sessões leva o musicoterapeuta a perder a naturalidade no momento de lidar
com o paciente na prática, diminuindo a sua intuição. Perde aquilo que há de
humano na relação terapêutica. Mas, será que um terapeuta, que faz um curso de
formação onde é a todo momento bombardeado com um sem número de
situações que levam-no a perceber, a sentir e a vivenciar que a relação pessoa-
pessoa é o mais importante, não terá a capacidade de discernir e de se entregar à
relação e dispor da técnica como um recurso para ajudar no crescimento do
paciente? Será que esse mesmo terapeuta, que muitas vezes é terapeutizado,
passando, assim, ele próprio, por um processo terapêutico e vivenciando a
importância da relação, não é capaz de se utilizar de informações dos registros
de sessões anteriores sem que estas interfiram na sua possibilidade de ‘ser
terapeuta’? Se respondêssemos afirmativamente estaríamos nos colocando
também contra a supervisão, pois esta vai aclarar situações; vai inferir, avaliar e
reavaliar dados significativos do processo musicoterapêutico. Vai nos levar a
sentir e a refletir sobre o processo e, em nenhum momento, considera-se que esta
seria negativa ou que viria a interferir no processo terapêutico ou que
‘contaminaria’ o musicoterapeuta.
Se um musicoterapeuta, depois de passar por um curso de formação, não
tiver condições de se abstrair da técnica, quando necessário, ou de utilizá-la de
maneira adequada, é melhor que não abrace esta profissão. A nossa experiência
tem nos mostrado ainda que percebemos pontos obscuros no momento em que
refletimos sobre uma sessão e a registramos por escrito e que é, frequentemente,
nesse momento, que clarificamos e elaboramos dúvidas e situações que se
mostraram confusas. E, enfim, conscientizamos o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico.
Entendemos as dificuldades de se trabalhar com reações e relações
humanas. Concordamos com o risco que corremos ao tentar esquematizar tais
reações. Guardadas as devidas proporções, seria quase como se dizer que
determinada obra de tal ou qual compositor pode levar à ‘cura’ de determinado
mal, ou, ainda, à modificação de determinado comportamento, sem levar em
consideração, minimamente, as diferenças pessoais. Ou seja, da mesma forma
como não se pode dizer com precisão quais seriam as músicas mais adequadas
para os pacientes, generalizando, também não se pode esquematizar e
generalizar situações, pois, cada um de nós tem a sua realidade e a sua totalidade
existencial.
Acreditamos, entretanto, que dentro das possibilidades, possamos ter
determinados parâmetros de atuação; que conheçamos as possíveis respostas
provocadas pelos elementos musicais e, enfim, que tenhamos condições de
utilizar o nosso objeto intermediário de relação com o paciente, da forma mais
completa e adequada possível, lembrando sempre que tudo isto deve ser levado
em consideração de acordo com a história de vida de cada paciente. Concluindo,
considera-se de extrema importância o registro das sessões.

Como devem ser feitos esses registros


Para que se possa extrair dados significativos do registro das sessões e para
que outros que venham a ler os referidos relatos possam entendê-los é preciso
que:

a linguagem utilizada seja clara e objetiva


que os fatos observados sejam descritos, e que a interpretação destes, feita
pelo musicoterapeuta não seja colocada no corpo do relatório. Aquilo que o
musicoterapeuta colocar de seu, deverá ser escrito no fim, como
‘observações’. Assim procedendo, estaremos possibilitando a factibilidade
de pesquisas; a clarificação de situações na supervisão; a elaboração de
relatórios progressivos baseados no desenvolvimento do processo e, ao
mesmo tempo, proporcionando a nós mesmos, musicoterapeutas, o nosso
crescimento e a possibilidade de melhor utilização do nosso objeto de
trabalho – a música.

É ainda interessante que se coloque, a cada início de registro, o número da


sessão, a data da mesma, e quem estava presente além do musicoterapeuta. Estes
dados facilitarão ao musicoterapeuta a elaboração de relatórios posteriores, bem
como, de trabalhos científicos. Se em uma observação de sessão não constar a
data, será necessário, muitas vezes, que o musicoterapeuta conte todas elas,
desde o início, para saber em que momento está do processo, quando da
elaboração de um trabalho científico que pretenda fazer uso de determinado caso
clínico para ilustrar um aspecto específico.
Por outro lado, cabe aqui ressaltar que muitos musicoterapeutas têm criado
fichas para serem preenchidas após as sessões, ao invés de fazerem observações
escritas.
Estas trazem aspectos tais como: instrumentos que o paciente tocou; como
se apresentava neste dia; ritmos executados e iniciativa do paciente, para citar
apenas alguns. Em minha opinião, este tipo de observação – preenchimento de
ficha – não seria o mais adequado porque ‘congela’ a ação, isto é, não se sabe em
que momento o paciente tocou tal instrumento, o que havia feito antes ou o que
desencadeou, possivelmente, determinada atitude. Perde-se a dinâmica da
sessão, aspecto este que é fundamental para a compreensão de um paciente e,
consequentemente, do desenvolvimento de seu processo terapêutico. Por isso,
considera-se tão importante a elaboração de ‘observações das sessões’, que são
relatórios que descrevem a sessão em toda a sua dinâmica, ação após ação, cada
uma tendo a anterior que, muitas vezes dá origem a outras manifestações durante
a mesma sessão ou até em sessões posteriores.
O mesmo aqui se aplica a grupos que deverão ter a observação da sessão
feita descritivamente e não o resultado da observação de cada paciente o que
perderia a dinâmica entre os pacientes e o todo da sessão.
Também fotos ‘congelam’ a ação além de não darem conta do sonoro.
Outra forma de registro é a gravação do material sonoro da sessão. No entanto,
muitas vezes é difícil se discriminar em uma gravação sem imagem, os
instrumentos que estão sendo tocados ou, ainda, lembrar-se de quem está
tocando qual instrumento. Deduz-se assim que o registro de imagem e som seria
a forma de registro mais adequada, além de preservar a dinâmica da sessão. Mas,
aqui ainda fica uma questão a ser discutida: não ficam registradas as emoções e
sentimentos do musicoterapeuta. Assim, o mais certo seria que duas formas de
registros coexistissem: a de imagem e som, e aquela que é feita por escrito, onde
seria possível o musicoterapeuta descrever suas emoções, sentimentos e
sensações.
Sabe-se, no entanto, que a realidade brasileira nem sempre permite que o
registro de imagem e som seja feita, a menos que o musicoterapeuta tenha a sua
própria aparelhagem e conte com alguém que possa fazer as gravações. No
entanto, os avanços da tecnologia permitem, hoje, que facilmente esse registro
seja feito. Mas, ainda cabe ao musicoterapeuta decidir as circunstâncias nas
quais poderá utilizar esse tipo de registro sem interferir no trabalho e sem
transgredir as normas da Bioética.
Para isto é necessário que sejam seguidas as condutas recomendadas ou,
ainda, observadas as resoluções150 dos órgãos competentes, no que se refere aos
profissionais de saúde com relação à Bioética, isto é, em relação aos direitos e
desejos dos pacientes.

O Relatório Progressivo

Introdução
No sentido etimológico da palavra, relatório significa a descrição
minuciosa de fatos, tendo como raiz o verbo relatar, do latim relatum, ou seja,
expor, descrever. Do ponto de vista musicoterapêutico, dir-se-ia do relatório
como sendo um conjunto de informações sistematicamente ordenadas,
permitindo avaliar a atividade, ou seja, funcionando como documentação oficial
do trabalho desenvolvido; permitindo medir as vantagens e desvantagens
relativas ao uso de determinados recursos e procedimentos; apresentando os
objetivos programados e a melhora ou não, ou o alcance ou não, dos objetivos.
O ‘relatório progressivo’ constitui-se no relato, por escrito, de um conjunto
de fatos que ocorreram num determinado espaço de tempo, circunstanciados
pelos recursos humanos e materiais. É um relato feito para avaliar a situação do
paciente, naquele dado momento, em relação ao tratamento. Quando em
instituição, o relatório progressivo será feito com a frequência exigida por esta
ou, a qualquer momento que aconteça um fato considerado significativo para ser
registrado em prontuário, com o objetivo de informar os outros profissionais da
equipe que trabalha com um mesmo paciente sobre o ocorrido.
O ‘relatório progressivo’ que é feito pelo musicoterapeuta que trabalha em
consultório, tem por objetivo tanto levá-lo a se situar frente ao desenvolvimento
do processo musicoterapêutico151, bem como, muitas vezes, responder à
solicitação de outros profissionais que trabalham com um mesmo paciente ou,
também, da família.

Objetivos
O ‘relatório progressivo’ tem por objetivos:

fazer um registro cumulativo de dados selecionando as relações


significativas do processo musicoterapêutico
contribuir junto à equipe, quando em instituição, com informações quanto
ao comportamento, aptidões, potencialidade e/ou limitações em outras áreas
documentar resultados (favoráveis ou desfavoráveis) para pesquisas
dar subsídios para o próprio musicoterapeuta, quando for atendimento de
consultório, e para este e a equipe, quando se tratar de instituição, para
melhor estabelecer o ‘conceito de melhora’, isto é, constatar, em um
determinado período de tempo, diferenças conseguidas, ou não, em relação
aos objetivos estabelecidos.

Como deve ser


O ‘relatório progressivo’ deve conter dados considerados significativos, do
início e do momento atual do processo musicoterapêutico (se for o primeiro
relatório que estiver sendo elaborado). Estes dados serão conseguidos através do
estudo das observações das sessões, (relatórios das sessões), acrescidos de
informações levantadas com a família ou fornecidas pelo próprio paciente,
quando possível, e deve ser anexado ao prontuário para que o médico e os outros
terapeutas da equipe – quando se tratar de instituição -, a ele tenham acesso.

Linguagem e extensão
A linguagem a ser utilizada na elaboração do relatório progressivo, tanto
quanto a das observações ou relatórios das sessões, deve ser clara, objetiva e
técnica. Este deve ser resumido, desde que isto não venha a prejudicar a sua
compreensão. É necessário lembrar que, em geral, este vai ser lido pelo médico
no momento da consulta e/ou por outros profissionais que atendam ao paciente e
que estes dispõem de pouco tempo. Assim sendo, devemos ser objetivos, mas ter
o cuidado de não prejudicar a clareza do referido relatório pois ele dará os
resultados do processo musicoterapêutico, sejam eles favoráveis ou
desfavoráveis.
Ainda se deve notar que as observações feitas sobre aspectos musicais não
devem ser em uma linguagem técnica na medida em que os outros profissionais,
em geral, não têm conhecimento musical. Por outro lado, devem-se ressaltar
aspectos da música através dos quais foram obtidos alguns resultados, desde que
façam parte do ‘senso comum’. Como exemplo teríamos: ‘a agressividade foi
sendo descarregada e canalizada em instrumentos musicais de grande porte, o
que foi observado através da diferença de intensidade utilizada no início do
trabalho e em sessões posteriores (forte e fraca)’.

Os itens que devem constar


O relatório progressivo deve, antes de tudo, dizer quais eram as condições
do paciente no início do atendimento, ou desde a elaboração do último relatório,
e quais são as suas condições atuais em relação a:

condições sócio-afetivas, motoras, emocionais, psicomotoras (hiper ou hipo


atividade, estereotipias e humores, dentre outras, dependendo da área onde
se estiver trabalhando)
condições emocionais, interesses especiais e criatividade. Também é
interessante que se informe sobre a(s) técnica(s) aplicada(s) e,
principlamente, sobre os efeitos da atividade, para citar alguns dentre os
muitos itens importantes.

Estes itens vão variar de acordo com alguns aspectos, isto é, cada
musicoterapeuta vai encontrar a melhor maneira de elaborar o relatório,
dependendo a qual tipo de profissional/instituição se destina e, também,
dependendo do tipo de paciente ao qual o relatório se refere.

A frequência da sua elaboração


Quando o trabalho musicoterapêutico estiver sendo desenvolvido em
instituição, a frequência da elaboração do relatório progressivo vai variar de
acordo com a exigência da mesma. Muitas vezes, entretanto, esta não faz
exigências quanto a isto. É aconselhável, então, que o musicoterapeuta anexe ao
prontuário um relatório:
quando houver uma mudança significativa;
quando o paciente for para consulta ou, ainda,
dentro de um período que o musicoterapeuta ache necessário, e que traduza
o desenvolvimento do processo musicoterápico.

O relatório progressivo e os pacientes de consultório


Até agora nos referimos somente ao relatório progressivo em relação aos
pacientes de instituição, pois o principal objetivo deste, é dar à equipe o
desenvolvimento do processo musicoterapêutico num determinado momento.
Contudo, apesar de o musicoterapeuta que trabalha em consultório não estar
integrado a uma equipe multidisciplinar formal é aconselhável que elabore
relatórios progressivos, para que se situe dentro da evolução do processo (que
pode ser evolução ou involução do paciente) e para que dê subsídios à equipe
informal, sobre as condições do paciente.
Além disto, muitas vezes, o musicoterapeuta necessitará dos ditos
relatórios para encaminhar o paciente para outros terapeutas ou instituições, ou,
mesmo, para, por solicitação destes, apresentar o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico.
Vimos que a evolução/involução do paciente pode ser discutida nas
reuniões de equipe ou, na inexistência destas, ser vista pelos outros técnicos da
equipe e pelo próprio musicoterapeuta através do ‘relatório progressivo’.

A especificidade do relatório progressivo em musicoterapia


A especificidade do relatório em musicoterapia está centrada,
principalmente, na utilização de uma linguagem musicoterápica que é resultado
de uma ‘leitura ou análise musicoterapêutica’ do processo. O emprego da
linguagem específica é de grande importância. Nossa identidade profissional,
ainda tão frágil, mais se fragiliza quando passamos para outros profissionais
relatórios que, apesar de muito bem elaborados, nada têm de específico da
musicoterapia.
Parece-nos também válido dar ao relatório o papel de “esclarecedor” da
especificidade da música quando utilizada como elemento terapêutico, isto é,
também estaremos esclarecendo, para outros profissionais, como é utilizada a
música, na relação direta com o paciente.
Embora sendo importante elaborar relatórios que apresentem uma
linguagem específica, não queremos com isto dizer que o musicoterapeuta vá,
por exemplo, grafar trechos musicais para mostrar uma improvisação feita por
determinado paciente. O que deve ser ressaltado é, por exemplo, que
determinado comportamento foi observado na relação do paciente com
determinado instrumento musical, ou na forma de tocá-lo, ou, ainda, como
reação a determinado aspecto da música, como o exemplo acima. Não seria
adequado um relatório que, para mostrar a especificidade da musicoterapia,
impedisse outros técnicos da equipe de terem uma compreensão dos aspectos
apresentados no mesmo, já que eles não têm a nomenclatura e a compreensão da
linguagem da área.

Tipos de relatórios existentes

Relatório a ser anexado ao prontuário, em instituição, para dar informações


sobre o desenvolvimento do paciente (evolução e involução);
Relatório para outro musicoterapeuta quando o paciente muda de instituição
e é encaminhado à musicoterapia nessa nova instituição;
Relatório a ser enviado a uma instituição mantenedora (convênio);
Relatório para outros técnicos que trabalham com o mesmo paciente
(consultório);
Relatório para simples verificação de evolução do processo musicoterápico
(para que o próprio musicoterapeuta se situe frente ao desenvolvimento do
processo);
Relatório para dar informações à escola frequentada pelo paciente (quando
criança ou adolescente);
Relatório para situar o trabalho de musicoterapia para a instituição
mantenedora de um projeto de pesquisa.

Na medida em que existem tipos de relatórios com distintos objetivos, é


evidente a existência de diferenças na elaboração dos mesmos. Um relatório a
ser enviado para uma instituição mantenedora não poderá ser elaborado da
mesma forma de um que será encaminhado ao médico que atende ao paciente e
que necessita de detalhes sobre o desenvolvimento deste.
Assim, alguns aspectos deverão ser observados, dependendo de para quem
ou para onde o relatório vai ser encaminhado. Dentre esses aspectos podemos
assinalar: a extensão do relatório e a utilização de uma linguagem mais, ou
menos específica. Enfim, o musicoterapeuta deverá ter suficiente clareza destes
aspectos para elaborar um tipo de relatório que seja o mais adequado para quem
vai ser enviado.

Aspectos da Alta em Musicoterapia

Introdução
Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, ‘alta’
significa “considerar um doente como capaz de sair da enfermaria, curado, apto
a viver fora do hospital” (1976, p. 59).
Muitas instituições estabelecem um limite de idade para o atendimento de
pacientes. Isto se faz necessário como consequência do grande número de
pacientes que esperam para serem atendidos e pelo número reduzido de locais
especializados existentes. Também, como consequência da realização de
pesquisas que asseguram o progresso da medicina, que possibilita a
sobrevivência de crianças ou pacientes que não resistiriam a determinadas
enfermidades se não fossem tratados por técnicas altamente sofisticadas durante
longos períodos de tempo. Assim, a sobrevida desses pacientes aumenta
expressivamente, o que significa longos tratamentos, que vão impossibilitar o
atendimento de novos pacientes. Por isto, muitas instituições têm um limite
máximo de idade para a permanência de pacientes, — 18 anos em geral —, para
possibilitar que outros pacientes que têm, muitas vezes, maiores condições de
melhora, sejam admitidos para tratamento na instituição. Essa é a justificativa de
tais instiuições para manter esse limite de idade.
No entanto, muitos são os limites impostos pela realidade social brasileira
que estabelece limites àqueles que necessitam de cuidados institucionais. São
limites impostos não só pelo órgão responsável pela assistência de saúde do país,
como, também, pelas próprias instituições.
Como supervisora dos estágios de musicoterapia em Saúde Mental,
acompanho, desde a implantação e implementação da Reforma Psiquiátrica, a
transformação da musicoterapia dos hospitais psiquiátricos — que poderia ser
chamada de tradicional —, em uma prática dinâmica e mais socializadora,
exercida nos dispositivos denominados Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS)152. O atendimento realizado hoje se diferencia do antigo, que era
caracterizado pelo confinamento, no denominado tratamento no modelo
‘hospitalocêntrico’.
E aqui cabe entender um pouco dessa nova concepção de tratamento,
convocando La Haye (2007), que explica que

(...) o hospital psiquiátrico desaparece por razões econômicas,


quando de fato, essa evolução era necessária por motivos
humanitários e conceitos teóricos. O hospital psiquiátrico devia
ser abolido, pois era um enclave totalitário evocando os campos
de concentração. Mas ainda, a atomização do hospital
psiquiátrico em estruturas leves corre o risco de nada mudar em
relação ao tratamento dos doentes mentais se seus princípios de
funcionamento permanecerem os mesmos (p. 199).

Paulo Amarante (1995), que também teve uma participação fundamental


na questão da Reforma Psiquiátrica, considera que a desinstitucionalização não
pode se resumir a meras medidas de desospitalização, mas, sim, que a reforma
psiquiátrica precisa ter uma finalidade mais abrangente. E Amarante se
posiciona firmemente, declarando:

Estamos falando em desinstitucionalização, que não significa


apenas desospitalização, mas desconstrução. Isto é, superação de
um modelo arcaico centrado no conceito de doença como falta e
erro, centrado no tratamento da doença como entidade abstrata.
Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua
existência e em relação com suas condições concretas de vida.
Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou
psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa
de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para
tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a
subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e
da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do
saber psiquiátrico (p. 493-494).

Assim, a ideia da criação dos CAPS surge de uma aposta pautada por uma
posição ética, que deve ser o sustentáculo para tudo o que será criado e para que
se possa através dessa postura exercer uma aposta de que a loucura e o louco têm
sentido, voz, vez e obra, nas palavras da psicanalista Alessandra Monachesi
Ribeiro (2005). E, valendo-se das ideias de Figueiredo e Coelho Junior que se
detêm no debate da ética psicanalítica — que pode ser entendida como abertura,
respeito, resposta e propiciação ao outro —, a autora aproxima a ética
psicanalítica da ética da Reforma Psiquiátrica, que não pode ser convertida em
código de prescrições e proibições. Trata-se, mais, de uma disposição ao
convívio acolhedor onde coexistem o inesperado e o irredutível que caracteriza a
alteridade, do que da formação de regras prescritivas que possam modelar o
fazer analítico (Ribeiro, 2005).
Ribeiro ainda alerta para o fato de que as pessoas ingressam no CAPS para,
um dia, poderem ir embora, e que há um risco de que se repita, aqui, o que está
na origem da condição psicótica. Sabe-se da importância dos CAPS na vida de
muitos dos seus usuários, transformando-se em referência como um lugar de
possibilidades, sendo a alta o que anuncia a eficácia do tratamento.
A autora admite que não se pode desconsiderar a importância que os CAPS
passam a ter na vida de grande parte de seus usuários, tornando-se referência de
lugar possível e possibilitador. Ou seja, na sua visão, acaba-se por ter que
sustentar o campo dos paradoxos e das contradições para apoiar um lugar que
crie condição de inclusão e acompanhamento e, ao mesmo tempo, tanto quanto
de ausência e diferenciação. Um papel que não pode ser recusado, em nenhum
momento, levando-se em conta que é a alta que anuncia a eficácia do tratamento.
Referindo-se à alta, Ribeiro faz uma análise da situação, questiona e, ao mesmo
tempo, tenta responder,

Como um serviço tão abrangente, que se apresenta como


acompanhante e produtor de projetos de vida, poderá escapar do
perigo de se tornar a vida de seus usuários? Como o projeto de
vida de cada sujeito que ali se trata não ficará restrito àquilo que
o CAPS lhe proporciona? Se um CAPS existe para favorecer a
articulação, a circulação e a inserção de seus usuários em seus
territórios de relações, lugares e possibil idades, tornar-se o
único lugar para um psicótico parece-me uma contradição. No
entanto, uma das críticas mais comumente feitas aos CAPS é
acerca do quanto sua amplitude pode tornar-se encarcerante e
institucion alizadora. Por que não dar alta? Por que os usuários
não saem do CAPS? Como, então, pensar a questão da alta em
um serviço tão complexo? (ibid, p. 40).
Repetindo: deve-se levar em conta que é a alta que anuncia a eficácia do
tratamento!
É nesta nova concepção de tratamento psiquiátrico, muito mais aberta e
real, onde não só os fármacos e as diversas formas de terapias são vistos como
importantes, mas, que preconiza apontar para novas possibilidades, que a
musicoterapia se insere e se transforma. Mas, voltando-se à alta, questão
principal deste tópico, cabe pensar como esta acontece nessas instituições. Para
isto, convoco a musicoterapeuta Andréa Farnettane153 com o objetivo de que,
através de um depoimento, explique como esta questão acontece na prática.
Andréa Farnettane (2015) esclarece as razões que podem levar as equipes
dos CAPS a concederem a alta a um usuário:

por óbito
por mudança de residência: quando o usuário muda para outra região ou
outro estado, tem que ser transferido para um CAPS da região da futura
residência
por abandono de tratamento, mesmo que a equipe envide todos os esforços
para que o usuário retorne ao CAPS
por melhora: o usuário em crise fica no CAPS em avaliação, sendo aí
acompanhado/ atendido. A melhora indica que ele poderá ser acompanhado
em um ambulatório ou pelo Apoio Matricial, ligado às Equipes de Saúde da
Família e ter alta do CAPS (Farnettane, 2015)154.

Entende-se que mesmo o usuário que tem alta, ainda é acompanhado por
uma equipe, seja em ambulatório ou por uma equipe matricial. No entanto, deve-
se lembrar que a alta está sendo tratada, aqui, de forma geral, ou seja, não só em
instituições de saúde mental mas em todas as outras, onde pacientes são
atendidos em musicoterapia, bem como em consultórios particulares.

1 – Motivos da concessão da alta


Vários são os motivos pelos quais um terapeuta pode dar alta a um
paciente:

por objetivos alcançados;


por objetivos não alcançados e o musicoterapeuta perceber que o paciente
poderia se beneficiar mais de outro tipo de trata mento, atividade ou, ainda,
ser tratado por outro musico terapeuta;
por decisão da equipe;
por solicitação da família;
por abandono do tratamento;
por mudança de domicílio para outra localidade;
por óbito;

2 – O momento certo da alta


O que interessa ao presente trabalho é o estudo da alta que vai ser dada por
considerar um doente como capaz de sair da instituição, por estar
‘suficientemente curado’, como diz Carl Rogers (1970), ou, ainda, por ter
condições de se movimentar/integrar na sociedade.
Segundo Benenzon e Yepes,

Este é um dos momentos mais delicados de um tratamento


musicoterapêutico, devido a que no desenvolvimento das
sessões os pacientes podem intensificar notavelmente a relação
com o musicoterapeuta, até produzir-se uma espécie de simbiose
mãe-filho (1972, p. 59).

Ou, como no caso dos CAPS, visto como um serviço tão abrangente e que
se configura como acompanhante e produtor de projetos de vida, mas que pode
vir a ser um “perigo de se tornar a vida de seus usuários” (Ribeiro, 2005, p. 39).

a – Como se estabelecer o momento certo da alta


No início de um atendimento são estabelecidos objetivos que deverão, se
alcançados, tornar o paciente apto a viver no meio social, diminuir a defasagem
ou a diferença entre este e os demais membros da sociedade ou, ainda, melhorar
a sua qualidade de vida. Os objetivos a serem atingidos vão depender de vários
fatores, mas, principalmente, das condições e possibilidades do paciente. Para se
saber o momento certo da alta, deve-se voltar aos objetivos fazendo uma
avaliação. Se eles tiverem sido atingidos este será o momento certo de se
conceder a alta. Caso contrário, deve-se verificar se seria possível atingi-los.
Ainda mais, deve-se avaliar se o paciente tem condições de evoluir até onde se
pretende.
Para o médico espanhol Jorge Perelló, referindo-se a problemas de
linguagem, quando as valorações do paciente se mantêm estacionárias deve-se
suspender a reeducação. Nem sempre se consegue que o paciente seja auto-
suficiente para as condições de trabalho, sociais e da família. “Este grau de auto-
suficiência é que nos faz decidir dar-lhe alta, quando vemos que não progride
mais na sua reeducação” (1971, p. 145).
Esta declaração nos leva a pensar que, muitas vezes, não só os objetivos
devem ser revistos mas, também, que conceder uma alta implica em uma série
de questões como entender quem é o paciente e quanto ele pode ainda se
desenvolver e/ou se reinserir na sociedade. Embora Perelló se refira a problemas
de linguagem, é possível se pensar que qualquer paciente, quando se mantém
estacionário, a alta deveria ser objeto de estudo e discussões pela equipe que o
atende ou, na inexistência desta, pelo terapeuta que tem a responsabilidade sobre
o paciente.

3 – Por quem vai ser dada a alta


A alta poderá ser dada pelo médico, ou ser a este sugerida pelo terapeuta
ou terapeutas que atendam ao paciente ou, ainda, ser solicitada pelo paciente ou
pela família. Em caso de pacientes de consultório a alta é dada pelo
musicoterapeuta, após ter discutido com o supervisor, com o próprio paciente –
se este tiver condições – e/ou com a família, se este é o momento mais
adequado.

a – O papel da equipe
Phillippe Monello e Vitor Jacobson (1971), que fizeram um estudo
detalhado sobre equipes, consideram que cada membro da equipe deve observar,
refletir, emitir hipóteses e registrar por escrito as conclusões às quais chegou.
Mas, o importante é o conjunto da equipe. Esta é uma necessidade técnica, pois
só ela permite uma ação coerente, resultado de uma reflexão daqueles que
trabalham ao redor do paciente.
Assim, no caso de o paciente ser atendido em vários tipos de terapia em
uma mesma instituição, a alta será discutida pela equipe. No entanto, pode
ocorrer que o paciente seja atendido por um só membro da equipe. Aqui, a
indicação para alta pode partir do médico ou do próprio terapeuta, cabendo aos
dois a responsabilidade, a discussão e a conclusão sobre a conveniência da
mesma.
No caso de paciente de consultório que seja atendido por vários terapeutas,
cabe à equipe, embora cada um em seu espaço de atendimento, mas que tenham
contato entre si — equipe informal —, a decisão da alta. Mesmo que seja de um
dos atendimentos, esta deve ser discutida pela equipe toda, incluindo-se nela o
médico, desde que ele participe das reuniões que a equipe realiza.

b – A família
Pode acontecer que a família peça a interrupção do tratamento. Nessa
situação a responsabilidade será exclusivamente da mesma, sendo que, em caso
de paciente cuja saída da instituição seja contraindicada, por qualquer
circunstância, a família deverá assinar uma declaração dizendo que tem a
responsabilidade, e que apesar da opinião contrária dos médicos, ou do(s)
terapeuta(s) que atende(m) o paciente, este está sendo retirado. Se o médico
considera o paciente como “perigoso”, (no caso de pacientes psiquiátricos, por
exemplo) pode opor-se à sua saída.

4 – Como dar a alta

a – A preparação do paciente
Um paciente que permanece por algum tempo num atendimento estabelece
uma relação afetiva com o terapeuta. (É importante que se faça a diferença
necessária entre ‘relação afetiva’, como fala Rogers, e ‘envolvimento’.) Assim,
essa relação não poderá ser interrompida abruptamente e o paciente deverá ser
preparado para receber alta. A sua preparação será feita pelo terapeuta ou
terapeutas, no caso de ele ter vários atendimentos. O paciente deve ser avisado
que vai deixar a terapia e, ao mesmo tempo, pode haver uma diminuição na
frequência das sessões. Virgínia Mae Axline, a psicóloga norte-americana que
concebeu a Ludoterapia entende que “parece imprudente terminar estes
encontros sem uma preparação adequada” (1972, p. 247). Assim, o terapeuta
deve estar consciente de que é de extrema relevância que o paciente seja
preparado para ter alta.

– O encaminhamento do paciente a outra instituição


No caso de o paciente estar tendo alta para ser encaminhado a outro
atendimento que lhe seja mais necessário, a outra instituição ou, ainda, por
mudança de musicoterapeuta, a alta não deverá ser dada antes do início do outro
atendimento, como abaixo graficamente representado:

Nesta situação, o paciente enfrentaria dois problemas ao mesmo tempo:

corte da relação já existente e,


início de uma nova relação.

No entanto, se for possível se manter por um tempo o paciente no


atendimento musicoterapêutico já existente, mesmo já tendo começado um
outro, as situações que aparecerem decorrentes do novo contato poderão ser
ainda trabalhadas onde já existia uma ‘relação terapêutica’. Exemplificando
graficamente ter-se-ia:

À medida que vai sendo estabelecida uma nova relação terapêutica, a já


existente vai sendo lentamente finalizada, não em “qualidade”, é óbvio, mas em
quantidade, com o espaçamento das sessões. A relação continuará a mesma, mas
haverá uma diminuição da intensidade.
b – A preparação de paciente de grupo
No caso da existência de um grupo, a preparação visará não só o paciente,
mas, também, a preparação do próprio grupo que vai ‘perder’ um de seus
integrantes.

c – A preparação da família
Não só o paciente, o terapeuta, ou o grupo ao qual o paciente pertence
devem ser preparados. Também a família, que receberá o paciente ou que não
terá mais onde ou em quem se apoiar, deverá ser orientada pelo médico, pelo
psicólogo, pelo assistente social ou, ainda pelo musicoterapeuta, no sentido de
saber lidar com o paciente a fim de não proporcionar o aparecimento de novos
problemas ou o reaparecimento dos que já haviam sido superados.

d -A preparação do terapeuta
O terapeuta, segundo Carl Rogers, (1970, p. 83) “sente em relação ao
paciente uma reação afetiva, calorosa e positiva”. Isto vai justificar a necessidade
de este também se preparar para a ‘separação’. Presume-se a existência de um
supervisor, e o seu papel, em relação ao terapeuta, vai ser de extrema
importância, não só durante a terapia como, também, no momento da alta do
paciente.

Considerações finais
Em musicoterapia a alta deverá ser dada no momento em que a avaliação
nos mostrar que os objetivos foram atingidos, estando o paciente apto a viver em
sociedade, ou quando acharmos que seu estado é estacionário, como pode
acontecer com pacientes portadores de diferentes deficiências, de qualquer outra
enfermidade ou, ainda, pelos motivos já apontados anteriormente.
A alta será indicada pelo médico ou sugerida pelo terapeuta ou terapeutas,
ou mesmo, em alguns casos, solicitada pelo próprio paciente ou pela familia,
devendo sempre ser discutida e debatida pelos mesmos e/ou por toda a equipe.
O paciente, o grupo, a família e também o terapeuta deverão ser preparados
para o fim da terapia. O encaminhamento do paciente a outra instituição, a outra
forma de terapia ou outra atividade, deverá ser cuidadosamente estudado, sempre
com o fim de proporcionar uma maior abertura do mesmo, ou um maior
crescimento, objetivo de qualquer terapia.
CODA
Formação e novas práticas
DIÁLOGO ENTRE AS NOVAS PRÁTICAS DA
MUSICOTERAPIA CONTEMPORÂNEA E OS
CURSOS DE FORMAÇÃO DE
MUSICOTERAPEUTAS

Introdução
Situações recentes me levaram a pensar sobre as práticas da musicoterapia
contemporânea. Uma delas foi a realização do XVIII Fórum Estadual de
Musicoterapia, realizado pela Associação de Musicoterapia do Rio de Janeiro –
AMT-RJ e pelo Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário
(CBM-CEU), em setembro de 2012, que teve por tema “As diferentes
abordagens da música em musicoterapia”, onde jovens musicoterapeutas
apresentaram seus trabalhos: musicoterapia nos Consultórios de Rua, nos
CAPSad, na rua ou no DETRAN.
Também em outubro do mesmo ano, um convite feito por uma
musicoterapeuta norte-americana para que eu escrevesse o capítulo de um
livro155 a ser por ela organizado, tendo por objetivo apresentar como os cursos
de musicoterapia estão preparando os futuros profissionais para as novas
práticas, o que indicava que também fora do Brasil estas estão surgindo.
Ainda no início de 2013, um novo convite chamou minha atenção, desta
vez vindo da Universidad Nacional de Colombia, em parceria com a Prefeitura
da cidade de Bogotá que, preocupadas com a situação da infância e adolescência
da América Latina organizaram a Jornada Latinoamericana de
Musicoterapia156, que teve como convidados especiais países como a Espanha e
Noruega, este último para fazer um ‘contraponto’ com as nossas realidades. E,
por fim, o XIII Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia e o V Fórum
de Musicoterapia da AMT-RS, realizados em São Leopoldo (RS) em setembro de
2013, cujo tema foi “A clínica na Musicoterapia: avanços e perspectivas”.
Instigada e inspirada pelo tema destes eventos, realizados de 2012 a 2103,
e levada ultimamente, por circunstâncias, ao encontro das novas práticas, decidi
refletir sobre qual seria a real situação da musicoterapia clínica no Brasil e sobre
como os cursos que preparam os futuros profissionais brasileiros estavam se
adequando para enfrentar essa nova realidade.
Diante das evidências que apontavam para a existência de movimentos de
renovação e necessitando me preparar para as participações acima, foi necessário
criar estratégias, já que o material escrito sobre o tema é ainda escasso. Assim,
foi necessário encontrar instrumentos para ter a real dimensão de onde se
realizam e quais são essas práticas em todo o país, identificar as sementes que
plantaram essas inovações, bem como verificar como os cursos de formação vêm
se adequando para instrumentalizar e sensibilizar os novos profissionais para o
enfrentamento e necessidade de adaptação à situação social vigente, além de
estimular o ativismo para alcançar melhores condições de trabalho.

O Brasil hoje
Dados publicados no Diário Oficial de 29 de agosto de 2013 pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informam que a população do
Brasil157 aumenta a cada 19 segundos.
No último Censo Demográfico realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), num total de 190 milhões de habitantes o país
tinha 21.083.635 de adolescentes, com idades entre 12 e 17 anos, distribuídos
pelas diversas regiões, tendo-se uma maior concentração nas regiões da Costa
Leste do país: Nordeste, Sudeste e Sul. Com relação às crianças, a mesma fonte
aponta para uma população de aproximadamente 32 milhões, sendo que um
grande número destas pode ser considerado em diversas situações de risco,
como, por exemplo, as exploradas sexualmente (comercialmente ou não), as
exploradas no que diz respeito ao trabalho, as deficientes, as que estão em
situação de rua, as discriminadas pela identidade étnica, religiosa ou gênero, as
“em conflito com a lei”158 e as institucionalizadas (ABREU, 2002). Mais de
100.000 crianças e adolescentes vivem nas ruas do país; aproximadamente um
milhão de crianças e adolescentes estão institucionalizados, portanto, fora do
convívio familiar por motivos distintos e, por isto, frequentemente submetidos a
diversas formas de violência e privação. Crianças e adolescentes
institucionalizados têm um risco seis vezes maior para transtornos psiquiátricos
em comparação aos que vivem com suas famílias. Assim, pode-se falar em
grupos de crianças com necessidade de medidas especiais, embora seja comum
uma mesma criança viver mais de uma dessas situações acima apresentadas.
Por outro lado, os avanços da medicina e melhores condições de vida têm
proporcionado uma maior expectativa de vida no país. Os idosos, com mais de
60 anos, somavam 23,5 milhões de brasileiros159. No entanto, os dados positivos
divulgados pelo (IBGE) apontam para problemas que deverão se agravar nas
próximas décadas, como assinalam os especialistas que destacam a falta de
políticas públicas específicas para o novo perfil da população.
O conhecimento da situação relativa a crianças, adolescentes, adultos e
idosos justifica a urgência de mudanças que têm passado por estudos detalhados
para a realização de ações que possam enfrentar um problema de tal dimensão.
Pode-se considerar que a magnitude dos números potencializa os problemas.
Os problemas relativos à violência contra a pessoa idosa, por exemplo, têm
se tornado uma questão importante para a Saúde Pública. A compreensão da
complexidade deste tema como um todo exige uma abordagem interdisciplinar
na formulação de políticas públicas integradas. No entanto, aqui não cabe uma
análise mais ampla da situação, mas sabe-se que a musicoterapia vem se unindo
a ações que têm por objetivo o atendimento de todas essas populações e
integrando-se a espaços terapêuticos de saúde pública que têm esse objetivo.

Metodologia
Num país continental como o Brasil não se tem condições de discorrer
sobre a prática da musicoterapia em âmbito nacional, sem um levantamento que
forneça informações mais fidedignas. Assim, pela inexistência de literatura na
área, utilizei as respostas dadas ao questionário elaborado para o trabalho
apresentado na Colômbia, além de entrar em contato com musicoterapeutas que
trabalham em novas áreas, e analisei as grades dos cursos de musicoterapia
existentes no país. Há que se considerar que aqui se apresenta uma amostra das
novas práticas em musicoterapia.

Onde se pratica a musicoterapia no Brasil


Com relação às diversas regiões brasileiras pode-se constatar que a maior
concentração de cursos (seis de graduação160 e oito de pós-graduação161) está,
principalmente, nos estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país e no
Centro Oeste. Por conseguinte, aí também se encontra o maior número de
musicoterapeutas e práticas do país, embora se tenha musicoterapeutas
qualificados em quase todos os estados da federação162.
Têm-se notícias de diversas tentativas de realização de levantamentos
sobre o número de musicoterapeutas do país e das dificuldades encontradas para
tal. Por isso, ainda não se tem um levantamento oficial completo.

A musicoterapia na Área Social no Rio de Janeiro: breve histórico


No início da década de 80, a profa. Cecília Conde e Lia Rejane Mendes
Barcellos163 foram convidadas a visitar o Centro de Recepção e Triagem de
Menores164, localizado na cidade do Rio de Janeiro, na Ladeira do Ascurra, com
o objetivo de inserção de estagiários de musico terapia na referida instituição, o
que logo após se concretizou sendo os mesmos supervisionados pela Profa.
Conde. Certamente aí nascia a musicoterapia na Área Social, como passou a ser
denominada.
Logo depois, a Fundação Estadual de Educação do Menor (FEEM)
solicitou estagiários para outras instituições a ela ligadas. Novo grupo foi
formado, trabalhando ainda sob a mesma supervisão. Como à época a Profa.
Conde realizava uma pesquisa sobre música no Morro da Mangueira, logo
depois, novo estágio ali foi aberto, expandindo o trabalho na Área Social.
No início do ano de 1999, ainda a profa. Conde, Barcellos, e a então
coordenadora do curso de graduação em Musicoterapia do CBM, a Mt. Paula
Carvalho, foram a uma reunião com o então Secretário Municipal de Saúde do
Rio de Janeiro, o médico Dr. Ronaldo Gazolla165, e com a equipe municipal de
saúde, que à época era encarregada da implantação da Reforma Psiquiátrica e da
organização e direção dos CAPS. Estava nascendo a Reforma Psiquiátrica
Brasileira.
Nessa reunião decidiu-se que a musicoterapia seria imediatamente inserida
nos CAPS e, em agosto de 1999, Carvalho e Barcellos visitaram quatro CAPS
onde foram colocados musicoterapeutas, mais dois em setembro, e outro em
janeiro de 2000166. Nessa ocasião se resolveu que a musicoterapia seria inserida
no primeiro concurso que fosse realizado para contratação de pessoal, o que
aconteceria logo após, em 10 de junho de 2001, selando a parceria do
Conservatório Brasileiro de Música (CBM) com a Prefeitura do Rio de Janeiro.
Também se determinou que todos os musicoterapeutas que fossem trabalhar
nesses novos espaços frequentassem uma supervisão, em caráter obrigatório,
com um musicoterapeuta167. A partir de então, concursos públicos em todas as
instâncias: municipal, estadual e federal vêm incluindo a musicoterapia e hoje
muitos são os musicoterapeutas que trabalham nos CAPS, inclusive alguns como
coordenadores.
Assim, desde a década de 1990 os musicoterapeutas estão participando de
concursos no Rio de Janeiro, juntamente com outros profissionais da saúde. No
entanto, só recentemente, em 2011, essa situação foi oficializada em todo o
Brasil com a inserção da musicoterapia no Sistema Único de Assistência Social
– SUAS (Vitor, 2012).
Mas, ainda cabem duas observações sobre a terminologia “Área Social”,
por nós adotada desde então: a primeira é que Brynjulf Stige (2002b), que se
dedica à musicoterapia comunitária, escreveu um artigo sobre as raízes da
musicoterapia comunitária, a partir de um levantamento da literatura mundial
sobre o tema. Um dos aspectos aí discutidos é a ampla terminologia usada para
definir a área. No entanto, para o autor, na América Latina parece existir um
consenso no emprego da denominação Área Social, anteriormente abandonada,
mas voltando a ser utilizada.
Por outro lado, ainda é necessário relatar uma situação ocorrida no X
Congresso Mundial de Musicoterapia, realizado em Oxford, Inglaterra, em
2002, na palestra de abertura proferida por esse mesmo musicoterapeuta. Stige
começa a sua fala descrevendo o cenário de sua atuação em musicoterapia:
“Venho de um país pequeno, rico, com 4,538 milhões de habitantes, e meu
trabalho é realizado em uma cidade muito pequena, com uma comunidade rica”.
No momento em que ouvi comunidade rica senti uma ‘estranheza’ que não
consegui identificar de onde vinha. Mas, aos poucos, ainda durante a palestra de
Stige percebi que no Brasil e, provavelmente, também em outros países da
América Latina, sempre que são mencionadas as práticas em comunidade se
pensa em comunidades pobres. A partir de então, passei a pensar no que
acontecia com os nossos trabalhos em comunidades e se eu idenficava trabalhos
de musicoterapia sendo realizados com pessoas que não fossem de comunidades
pobres.
Reportando-me à década de 1980, cheguei à conclusão que não
trabalhamos exclusivamente com comunidades pobres. À época, a musicista e
musicoterapeuta Sylvia Becker começa um trabalho na Associação Religiosa
Israelita (ARI), no Rio de Janeiro, onde permanece como musicoterapeuta por
10 anos. Becker reúne interessados, senhoras e senhores idosos, em um grupo
aberto, misto, denominado Guilah, que em Iídiche significa ‘Alegria’, para uma
‘atividade musical’. Em depoimento oral168 Becker se refere ao grupo como
sendo de atividades musicais e, claramente explica que não se tratava de um
grupo de musicoterapia, mas, que, sem dúvida, era terapêutico. Entendo que o
trabalho era perpassado por seu olhar terapêutico que, sem dúvida, identificava
os resultados terapêuticos que advinham da referida atividade.
Ainda deve ser mencionado o Coral que foi organizado pela
musicoterapeuta Erci Inokuchi169, em São Paulo, de 2000 a 2008, com mulheres
da colônia japonesa, com um nível econômico de classe média alta, com idade
entre 50 a 65 anos, sem conhecimento musical acadêmico. O grupo era aberto,
admitindo a entrada e saída de membros a qualquer momento. O trabalho tinha
um foco terapêutico, pois a proposta do “belo canto” deveria ser resultado do
“belo do humano” e era realizado para que as mulheres “estivessem ‘belas’ em
todos os sentidos”. Aqui havia uma exigência ou um objetivo que era “para que,
através do canto, elas melhorassem como pessoas”. Para isso se valeu dos
fundamentos musicoterapêuticos considerando todos os aspectos do
desenvolvimento humano. Sempre recorrendo ao lúdico, havia também um
trabalho corporal, permitindo que a espontaneidade e os sentimentos mais
profundos viessem à tona, o que se refletiria num canto mais vívido.
Atualmente a musicoterapeuta formou um Coral misto, com homens e
mulheres adultos, entre 40 a 60 anos, da colônia japonesa e brasileira. No
entanto, trata-se de um trabalho diferente do realizado anteriormente. Aqui, a
musicoterapeuta observa que o terapêutico está na conscientização dos
participantes sobre o fato de como “uma postura errada, uma boca torta, uma
cabeça mal posicionada podem afetar a voz, a afinação e também a energia vital”
pois, ainda segundo Inokuchi, há “uma falta da energia vital necessária para o
canto proposto”. A partir dessa observação, pode-se pensar que uma falta de
energia vital para o canto pode denotar um desequilíbrio ou falta de energia em
qualquer momento e circunstância da vida. “A concepção da energia vital
também está relacionada com os princípios de integralidade da musicoterapia e a
falta dessa é observada em muitos corais amadores e até profissionais”.
Mas, voltando ao debate da musicoterapia em comunidades, entende-se
que é fundamental se recorrer à definição da palavra “comunidade” porque se
trata de um termo que tem significados múltiplos. Considerando as várias
definições consultadas chega-se à conclusão que a que mais se adapta aos nossos
fins, em musicoterapia, é uma, proposta pela sociologia, “comunidade é um
grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que servem de meios
comuns para lograr fins comuns” (Fichter, In: Fernandes, 1973).
No entanto, atualmente o conceito amplia-se e se refere a um grupo de
pessoas que compartilham algo em comum, como: uma história comum, um
objetivo comum, uma determinada área geográfica ou práticas comuns, como as
comunidades quilombolas, as comunidades virtuais, as comunidades escolares e
as de grupos formados por pessoas de uma mesma origem.
Discussão e resultados: as novas práticas em musicoterapia
Depois de levantar questões e debater sobre como as novas práticas
acontecem no Brasil, cabe defini-las:

Novas práticas são aquelas que diferem da musicoterapia


tradicional (reabilitação, deficiência mental, psiquiatria em
hospitais psiquiátricos, deficiências sensoriais – auditiva e
visual) por serem realizadas em novas áreas de atuação, em
novos espaços, por adequarem os procedimentos tradicionais
ou criarem novos (entrevista, testificação musicoterapêutica...),
por admitirem novas teorias de fundamentação, empregarem
novas atividades e técnicas, pelo fato de os musicoterapeutas
assumirem papeis anteriormente não desempenhados (terapeuta
de referência, por exemplo), ou, ainda, pela utilização de novas
ferramentas tecnológicas não só na prática mas, também, para
análise e avaliação dos processos terapêuticos (Barcellos, 2014,
In: Dreher e Mayer, 2014, p. 66).

Ainda voltando-se ao trabalho dos CAPS, na década de 90, seria


interessante tecer comentários sobre os registros das supervisões dos
musicoterapeutas que atuavam nesses novos espaços. Como se tratava de uma
prática ainda nova para todos nós, registrei por escrito tudo que acontecia de
importante com cada um dos musicoterapeutas que passaram a trabalhar nesses
espaços e nesses registros elaborei um esquema que me parece interessante para
ilustrar onde começam as denominadas novas práticas, como ampliação das
‘práticas tradicionais’.
Atividades realizadas pelos musicoterapeutas nos CAPs
Barcellos, 1999/2000170.

É importante se perceber como esse desenho foi feito, ou seja, as setas


apontam para fora, como se algo estivesse saindo de um centro e se desdobrasse.
Na verdade, as portas dos hospitais psiquiátricos se abriram e os pacientes foram
recebidos nos CAPs. Mas, também metaforicamente, pode-se pensar na
expansão da sala de musicoterapia, e no musicoterapeuta que vai para novos
espaços e atividades, com os pacientes, isto é, até a horta plantada pelos mesmos
ou à estação de rádio. Aqui o musicoterapeuta compartilha da criação da rádio e
da veiculação das notícias, trabalha na construção e restauração de instrumentos,
contribuindo para a restauração da saúde, enfim, faz todo tipo de atividade,
como os outros profissionais, inclusive atua como terapeuta de referência.
Nessas novas práticas, o musicoterapeuta sai da sua sala, onde está
protegido pela sua identidade, para se expor, ocupando os mesmos espaços que
os outros terapeutas e com eles dividir as mesmas responsabilidades, como, por
exemplo, a de coordenador dos referidos CAPs, como existem, hoje, vários
musicoterapeutas no Rio de Janeiro.
Aqui se enfatiza a importância dos registros: revendo esses registros se tem
uma visão/informação do que se fazia e do que se faz hoje nos CAPS. Mas, cabe
sinalizar que não só nos CAPs estão as novas práticas. Eles ‘abriram as portas’
para que o musicoterapeuta saísse para outras salas, novas instituições, novas
áreas de atuação e, a partir de então houve um maior alargamento do campo de
atuação do musicoterapeuta, até chegar às salas de espera de postos de saúde, às
ruas, à cooperativa de planos de saúde, à praça e tantos outros espaços.
Se recorrermos à definição de “Clínica Ampliada”, de 2004, pode-se
perceber que esta foi cunhada a partir de uma prática já existente:

A Clínica Ampliada propõe que o profissional de saúde


desenvolva a capacidade de ajudar as pessoas, não só a combater
as doenças, mas a transformar-se [sic], de forma que a doença,
mesmo sendo um limite, não a [sic] impeça de viver outras
coisas na sua vida [sic]” (Cartilha Do Ministério Da Saúde.
Clínica Ampliada, 2004).

Entretanto, outras práticas podem ser consideradas novas, mesmo tendo


sido desenvolvidas há algum tempo, como é o caso do atendimento a ‘meninos
de rua’171, realizado em 1993, mas só publicado em 1998; projetos com
experiências de composição, gravação e comercialização de CDs172; a inserção
dos integrantes dos CAPs na Comunidade, no carnaval, no setting
musicoterápico e na rua: “Coletivo Carnavalesco ‘Tá pirando, pirado, pirou!’
criação musical e artística na interface entre cultura e saúde mental” (Ferrari e La
Cerda, 2012); nos movimentos desinstitucionalizantes com usuários em longa
permanência: a clínica dentro dos lares protegidos (Aquino, 2009); nos
‘consultórios de rua’; nas salas de espera de postos de saúde; nos ambulatórios
de hospitais (Zanini, 2013); na clínica domiciliar (Wrobel, 2012), (existente
desde a década de 1980 mas hoje mais aplicada no atendimento a idosos); no
sistema de saúde privado (UNIMED) (Delabary, 2012); no atendimento em
diálise ( Delabary, 2002); no atendimento a crianças e adolescentes no momento
da diálise Barcellos, L. R. M. em coterapia com Mariana Barcellos (2011a); com
parentes de vítimas de acidentes de trânsito no NAVI do Rio de Janeiro ou,
ainda, nos ônibus das ruas da mesma cidade173, na praça e muitas outras práticas
das quais não se tem informações.
Com relação ao atendimento na praça, deve-se apresentar, ainda que
resumidamente, o trabalho que o musicoterapeuta Paulo de Tarso de Castro
Peixoto174 realiza em Macaé. Este trabalho existe de duas formas diferentes: o
primeiro deles é por ele denominado “encontros espontâneos”. Neste, Peixoto,
aos sábados pela manhã vai para uma praça da cidade e faz um círculo com
cadeiras. Pega seu violão e começa a tocar. Aos poucos as pessoas vão
chegando, certamente atraídas pela música.
A outra forma é realizada com mais de 200 participantes, num encontro
intergeracional, onde crianças, adolescentes que vêm de escolas, se juntam a
pessoas da saúde mental e também àqueles que passam pela praça e são atraídos
pela música, o que caracteriza uma típica situação que pode ilustrar o
denominado Efeito Ripple, trazido para a musicoterapia pela musicoterapeuta
sul-africana Mercedes Pavilicevic e por Gary Ansdell (2004, p. 15). Os autores
se referem a um conceito que apareceu em 1966, na área de economia e se
expandiu para várias áreas do conhecimento, podendo ser traduzido por ‘efeito
de propagação’. Este se refere ao poder da música para se propagar e,
naturalmente, atrair e impactar as pessoas e movê-las em contextos sociais cada
vez mais amplos.
Mas, voltando-se aos “encontros” realizados por Peixoto, o
musicoterapeuta explica que o que acontece na praça é a prática de uma
metodologia que ele denominou “Heterogênese Urbana” que foi por ele criada
há 18 anos, dentro de um ambulatório de saúde mental. Esta metodologia tem
como característica a superação das grades e classificações da psicopatologia
“fugindo das unidades abstratas conceituais que fixam as pessoas em códigos
psicopatológicos para compreendê-las como singularidades” (2015). Trata-se de
uma discussão que tem um aprofundamento filosóficomusical importante.
Peixoto ainda explica que “a ‘Heterogênese Urbana’ acolhe diversas
práticas sem reduzir-se a nenhuma delas: as artes estão presentes, a clínica está
presente, a filosofia está presente” (2015). E como musicoterapeuta, o autor
evidentemente tem um olhar clínico sobre o que se passa nas e pelas
composições que nascem nestes encontros, onde a música sempre acontece. No
entanto, outros clínicos participam como: psicólogos e terapeutas ocupacionais.
Peixoto ainda declara:

Não compreendo esta metodologia como uma ‘intervenção’,


mas, sim, como uma composição éticaestético-clínico-política
entre as pessoas que se reúnem ali para sentir e pensar os afetos
pelos quais passam em suas vidas. Pode-se dizer que a
Musicoterapia é uma das correntes que fazem parte da funda
mentação/arcabouço desta metodologia (2015).

Peixoto apresenta a perspectiva da subjetividade como musical,


perspectiva esta que nasceu dos entrelaçamentos entre as pesquisas na filosofia e
na própria alma da música. “Existe, aqui, uma articulação da filosofia das
paixões e da física dos corpos de Spinoza com a teoria das modalidades do ser
de Gilbert Simondon e com a teoria dos modos na música, declara” (2015).
Em musicoterapia o “Efeito Ripple”, anteriormente referido, tem
ressonâncias do micro (pessoa-a-pessoa fazendo música), ao meio (fazendo
música além do ‘tempo da sessão’) e ao macro níveis (dentro de uma instituição
e, além desta), implicando que todos que fazem parte da ecologia da instituição
necessitam de oportunidades de crescimento e participação compartilhada para
expandir as suas identidades além da equipe e residentes. Assim, deve-se
considerar também uma expansão do papel do musicoterapeuta incluindo gerar e
manter o bem-estar musical nas instituições e, ainda, ultrapassando os limites
das mesmas.
Não se pode deixar de ilustrar esse assunto com o que aconteceu com um
paciente atendido por mim na ABBR.

Cena clínica 21
João era tetraplégico, como resultado de um assalto à mão armada.
Assim, comecei o trabalho perguntando: o que você gosta de cantar? A pergunta
foi feita dessa forma porque o paciente não poderia fazer mais nada já que só
fazia movimentos com a cabeça. O corpo todo estava paralisado. Mas, qual foi a
minha surpresa quando o paciente respondeu que não gostava de cantar!
Imediatamente me senti perdida. Passei, então, a pensar como poderia trabalhar
com este paciente, além da musicoterapia receptiva, evidentemente. E encontrei
uma solução que seria levá-lo a utilizar uma gaita de boca com suporte em
metal, muito utilizado pelos músicos que tocam gaita de boca e se acompanham
em outro instrumento como no violão, por exemplo. Fiz uma ‘romaria’ por todas
as lojas de instrumentos musicais que conhecia na cidade, atrás desse suporte,
muito utilizado por instrumentistas que tocam violão e gaita de boca ao mesmo
tempo, e não consegui encontrar. Decidi, então, projetar um suporte deste tipo,
embora nunca tivesse tido um em mãos. Mas, fui ajudada pela Oficina
Ortopédica da instituição que, com as minhas explicações e um desenho
rudimentar, construiu o suporte. Com isto, o paciente começou a tocar,
principalmente improvisando, acompanhado por mim no piano. O seu prazer em
tocar era visível pois, certamente, era uma das poucas coisas que podia fazer, já
que só tinha condições de movimentar a cabeça175. Depois de algumas sessões
ele pediu para levar a gaita de boca e ficava tocando no pátio. E, num
determinado momento, alguns pacientes hemiplégicos e paraplégicos passaram
a ir para o pátio e tocar com ele. Estes pacientes tocavam violão em um
conjunto musical que havia sido formado no Setor de Musicoterapia da ABBR,
com a aquiescência e incentivo da chefe do Setor, a musicoterapeuta Gabriele
Souza e Silva, e que inclusive se apresentou em congressos médicos. Depois
disto, ele pediu para levar a gaita quando ia para casa nos fins de semana. Ou
seja, isto ilustra bem o Efeito Ripple. A música levou o paciente para fora da
sessão, atraiu outros pacientes, e ainda foi com ele para casa!

A formação do musicoterapeuta e a adequação dos cursos para


acompanhar as mudanças sociais.

Análise das grades de disciplinas dos cursos de graduação

Atualmente existem seis cursos de Bacharelado em Musicoterapia no


Brasil: RS, PR, SP, RJ, MG176 e GO. Destes, só dois disponibilizam as grades
curriculares nos sites e as duas possuem disciplinas que estariam de acordo com
novas práticas: Políticas públicas, Musicoterapia na diversidade e inclusão, e
Musicoterapia na contemporaneidade. Não foram encontradas nos sites as grades
dos outros quatro cursos, certamente por estarem sendo revisadas. Deve-se,
ainda, pensar que conteúdos desta natureza podem fazer parte de outras
disciplinas.
Outras atividades desenvolvidas pelos estudantes podem ainda prepará-los
para uma atuação na musicoterapia ‘contemporânea’ como: a supervisão de
estágios, onde são discutidas as práticas; as pesquisas desenvolvidas como
Iniciação Científica e as atividades que os colocam em relação com a
comunidade: Projetos de Extensão Universitária e Atividades Complementares.

Discussão e Resultados de levantamento feito sobre as novas práticas


realizadas no Brasil.
Para uma compreensão da existência de novas práticas psicossociais no
Brasil, e para um exame das mesmas, foi elaborado um questionário que
considerou quatro eixos principais: a instituição (localização e tipo); o
musicoterapeuta (identificação e tipo de vínculo); os pacientes
(encaminhamento; gênero; idade; religião; gosto musical; problema central;
substâncias psicoativas usadas; adesão ao tratamento); e a musicoterapia
(orientação teórica; técnicas utilizadas; experiências musicais, atividades e
recursos utilizados, e as dificuldades encontradas).
Considero que a análise desse questionário possibilita algumas
considerações que podem ser ampliadas para todas as novas práticas, por
apresentar uma amostra dos trabalhos de musicoterapia desenvolvidos nas
diferentes regiões do Brasil com crianças e adolescentes com problemas
psicossociais.

Aspectos gerais

Sobre o espaço: os musicoterapeutas estão em instituições como CAPS,


CAPSis, CAPSad, ONGs, Escolas, domicílios, asilos, clínicas especiais,
maternidades, hospitais universitários brasileiros, hospitais gerais, salas de
espera dos postos de saúde e, nas ruas das regiões mais populosas do país,
onde tem uma concentração maior de usuários de substâncias psicoativas,
por exemplo, atendidos nos “Consultórios na Rua”177.
Quem são os musicoterapeutas: formados nos cursos existentes no país,
em nível de graduação ou pósgraduação178, e alguns com outras formações,
além da musicoterapia, como psiquiatria, psicologia, pedagogia, terapia
ocupacional e fisioterapia, o que pode justificar diferentes abordagens
teóricas utilizadas.
Contratação do musicoterapeuta: as próprias instituições, via projetos
sociais, Prefeituras, hospitais gerais, cooperativa de médicos, e responsáveis
pelos pacientes quando em atendimento domiciliar.
Os pacientes: crianças em vulnerabilidade e risco social nos três níveis de
proteção preconizados pelo SUAS: Proteção Social Básica (PSB); Proteção
Social Especial de Média Complexidade (PSE) e Proteção Social de Alta
Complexidade (PSE), ou seja: crianças vítimas de abuso e exploração
sexual, de abandono, maus tratos, violência doméstica ou em processo de
adoção. Dependentes químicos (álcool e outras drogas), crianças em
desajuste social, de famílias também desajustadas, com grandes problemas
sociais. Crianças em situação de rua. Adolescentes em conflito com a lei
(no Brasil não se coloca crianças, pois de acordo com o Estatuto da Criança
e do Adolescente, criança não comete crime), e crianças em sofrimento
psíquico: com diagnóstico de Transtornos do Espectro Autista (TEA),
deficiência intelectual, esquizofrenia, ansiedade, queixas escolares,
inibição, hiperatividade, vivendo com as famílias ou em abrigos sociais, e
de pais destituídos do poder familiar. Vítimas de bullyng, adolescentes
grávidas, idosos, cuidadores e pacientes, cuidados paliativos, adultos
associados a planos de saúde, violência doméstica contra mulheres, aqueles
que estão em processo de luto de qualquer tipo, incluindo o ‘luto
inesperado’179 (Rando, 1993), e reações pós-traumáticas.
Tipos de atendimentos em musicoterapia: grupo e individuais.
- Orientação teórica: poucos musicoterapeutas se referem à orientação
teórica. As apontadas foram: Psicodinâmica, Psicanálise, Abordagem
Sistêmica e Esquizoanálise. Um único trabalho se refere à utilização
da Psicologia da Música: a única referência feita à música como
possibilidade de explicação ou de teoria que pode dar um caminho
para a compreensão do desenvolvimento da criança musicalmente
(desenvolvimento dos processos de percepção e produção
sonoro/musicais) e das relações do homem-música.
- Quanto às experiências musicais pôde-se constatar que são as mesmas
da musicoterapia tradicional: re-criar canções, improvisar ou criar
paródias, e compor principalmente canções. A audição musical,
quando utilizada, vem, em geral, combinada com a execução de
instrumentos, canto, dança, ou as duas ao mesmo tempo.
- Técnicas empregadas: as descritas na literatura da área.
- Métodos e abordagens empregados: a Abordagem Plurimodal, do
musicoterapeuta argentino Diego Schapira (2007) é a única
mencionada mas chega-se à conclusão que os métodos ou abordagens
mais conhecidos dificilmente seriam adequados para serem utilizados
nessa áreas.
- Dificuldades encontradas: a única dificuldade declarada foi “a escassez
de literatura em saúde mental e musicoterapia que contemplem os
problemas apresentados” [sic].
- Outras atividades realizadas: ensino musical.
- Objetivos apontados: o psicólogo e musicoterapeuta Rafael Marrero
Brignol (2013, p. 3) enfatiza que, segundo o Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS), o Projovem Adolescente tem por
objetivo o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e a
reinserção dos jovens no sistema de ensino. Além disto, são
coincidentes nas respostas ao questionário: empoderamento,
protagonismo social e fortalecimento de vínculos dos adolescentes na
comunidade; o emprego da música é apontado, ainda, como tendo o
objetivo de explorar e expressar sentimentos, trabalhar problemas,
desenvolver habilidades que podem ser musicais e não-musicais, e
para encontrar caminhos para se relacionar e se comunicar com os
outros.

As novas práticas podem estar assim representadas

Considerações finais
A partir do aqui descrito, pode-se entender que a musicoterapia se
desenvolve através de cinco caminhos principais: do estudo da literatura da área
(e de áreas afins), de pesquisas e de mudanças na prática clínica — primeiro,
impulsionadas pelo movimento de outros campos de atuação como é o caso da
Saúde Mental, por exemplo; segundo, pela Legislação que regula a profissão de
musicoterapeuta e, também, pelo ensino-aprendizagem da musicoterapia. Devo
esclarecer que quando me refiro que há uma evolução da musicoterapia pelo
ensino da mesma, refiro-me à retroalimentação que o professor tem quando está
no papel daquele que democratiza e/ou transmite conhecimento, em tempos de
grandes avanços das técnicas e tecnologias em uma sociedade globalizada. Mas
não se pode deixar de apontar os perigos que podem advir da ausência de senso
crítico em um meio onde tudo e qualquer material é veiculado.
No entanto, cabe ressaltar que, na interação professor/aluno, muitas vezes,
a pergunta de um aluno leva o professor a ter insights que vão desaguar na
elaboração de um novo conceito, possibilitam a compreensão de aspectos que há
muito eram pensados pelo professor/musicoterapeuta ou, ainda, que fomentam
novas ideias.
Mas, voltando-se às questões políticas referentes à área, cabe sinalizar que,
além da inserção na CBO180, a Musicoterapia ainda passou a integrar as carreiras
que fazem parte do Sistema Único de Assistência Social Brasileiro (SUAS), em
2011, o que coloca o musicoterapeuta engajado com outros profissionais, na
oferta de assistência social, com abrangência nacional.
A análise feita anteriormente com relação os diferentes aspectos da
musicoterapia mostra que não existem grandes diferenças no que tange à
utilização da música como elemento terapêutico nos diferentes espaços mas, sim,
percebe-se que a grande diferença está na ampliação dos papéis que o
musicoterapeuta desempenha, nos procedimentos empregados que, apesar de
serem os mesmos das práticas tradicionais, assumem uma nova roupagem nesses
novos espaços, na utilização de novos conceitos teóricos como resultado do
desenvolvimento da área e, principalmente, na inserção da Musicoterapia nas
Políticas Públicas de Saúde.
Depois desta análise cabe uma questão: se todos estes aspectos são
utilizados de forma muito semelhante qual seria a especificidade da
musicoterapia nessas áreas? Tenho defendido que a musicoterapia é uma só, ao
contrário de alguns teóricos que sustentam que temos musicoterapias. Assim, em
minha opinião, o que traz diferenças na sua aplicação é como a musicoterapia é
aplicada, dependendo: da área onde se aplica, do tipo e possibilidades da
instituição, da faixa etária dos pacientes, das qualidades pessoais e
competência/ habilidades do musicoterapeuta (musicais/musicoterápicas),
enfim, de um conjunto de questões que exigem do musicoterapeuta competência,
flexibilidade e criatividade para estarem inseridos e compreenderem os
tipos/idiossincrasias de cada instituição/área e a inserção destas nas políticas
públicas mais amplas às quais estão ligadas ou das quais dependem. E, sem
dúvida, isto vai estar diretamente ligado à: formação do musicoterapeuta,
potencializando a nossa responsa bilidade como coordenadores de cursos,
professores e supervisores de estágios ou práticas clínicas/terapêuticas; à
participação/atualização do musico terapeuta nas atividades e eventos das
suas associações; e, de forma mais abrangente, no ativismo do musicoterapeuta
nas discussões que dizem respeito à inclusão da musicoterapia mais
amplamente: nas políticas públicas de saúde.
Por fim, percebe-se que as respostas ao questionário apontam alguns
objetivos que são comuns tanto às práticas tradicionais quanto às novas práticas
como: a música é utilizada para explorar e expressar sentimentos, para trabalhar
problemas, para desenvolver/resgatar habilidades, que podem ser musicais e
nãomusicais, e para encontrar caminhos para se relacionar e se comunicar com
os outros, que coincidem com as ideias de Bruscia (2000).
Todavia, aparecem objetivos que podem ser considerados distintos dos das
práticas tradicionais, embora o empoderamento, por exemplo, seja um objetivo
comum tanto em algumas das tradicionais quanto das novas práticas. Outros, no
entanto, podem ser vistos como específicos das novas práticas: dentre estes estão
o protagonismo social e o fortalecimento de vínculos sociais.
Para finalizar, cabe frisar que as práticas tradicionais continuam sendo tão
importantes quanto foram até hoje e, mesmo que surjam novas metodologias,
técnicas, abordagens, estratégias, e novas linguagens sejam utilizadas para que o
usuário possa se expressar, a musicoterapia contemporânea não é substitutiva
das práticas tradicionais. É, sim, um desenvolvimento e uma ampliação
destas, e com elas deve conviver em harmonia.
Articulações entre musicoterapia e musicologia.
ARTICULAÇÕES ENTRE MUSICOTERAPIA E
MUSICOLOGIA: OS CONCEITOS DE
‘CONDIÇÃO CONVERGENTE’ E ‘DIVERGENTE’
EM MUSICOTERAPIA.

Introdução
Teóricos da musicoterapia contemporânea como o norueguês Even Ruud
(1998), o britânico Gary Ansdell (2001), o canadense Colin Lee (2003), dentre
os quais me incluo (Barcellos, 1982; 1994a; 1999; 2004c, 2009a), todos
musicoterapeutas e musicólogos, têm assinalado a necessidade de articulações
mais consistentes entre musicoterapia e áreas da música como musicologia181,
psicologia da música e etnomusicologia, por exemplo.
Na visão destes autores, estas articulações resultariam em ganhos que
poderiam facilitar tanto o desenvolvimento de processos terapêuticos quanto a
ampliação dos cânones e do corpus da área, na medida em que dariam uma
contribuição para uma melhor utilização da música como elemento terapêutico.
Na introdução de artigo escrito em 1982 para o II International Symposium
on Music Therapy182, afirmo que

Para se entender por que a música é utilizada como elemento


terapêutico, deve-se ter uma ‘compreensão musical’ do processo
terapêutico. Se não tivermos essa compreensão, a musicoterapia
permanecerá no seu estágio empírico e místico (...)” (1982, p. 1).

Esta questão vem sendo discutida ao longo de minha produção teórica,


posta como um conceito denominado leitura ou análise musicoterapêutica
(Barcellos, 1982; 1994; 2004c; 2009a).
Também Ruud (1998), preocupado com a articulação entre a musicoterapia
e a musicologia, insere a disciplina de Musicologia no início da década de 80, no
Curso de Musicoterapia da Norwegian Academy of Music, em Oslo. Ainda
estabelece como tema central do V Congresso Europeu de Musicoterapia,
realizado em Nápoles em 2001, as articulações entre as duas disciplinas,
declarando que deveria haver uma preocupação constante em se enfatizar o valor
da música em musicoterapia. Para ele, como a musicoterapia é um campo
interdisciplinar, frequentemente os trabalhos da área apresentam bons estudos
clínicos e referem-se de forma relevante às teorias de fundamentação e aos
aspectos metodológicos e práticos do “fazer musicoterapêutico”. No entanto, o
papel dado à música em musicoterapia é somente especulativo183, e apresentado
em comentários gerais, não refletindo um conhecimento sistemático no campo
da musicologia.
Já Ansdell (2001), musicoterapeuta britânico especializado na abordagem
Nordoff-Robbins, considera que o isolamento da musicoterapia em relação às
novas áreas musicológicas184 se deve à dominância de teorias clínicas não-
musicais na fundamentação da musicoterapia. O autor acredita que isto tem
limitado o discurso da musicoterapia e a potencial cooperação interdisciplinar,
bem como a contribuição que estes outros campos da música podem dar à
musicoterapia. Em sua opinião, na última década, a musicoterapia tem ficado
alheia às mudanças da musicologia, da psicologia da música e da sociologia da
música. Concordo com a posição de Ansdell, embora deva sinalizar que o
desenvolvimento das neurociências em relação à música, vem contribuindo de
forma substancial e mais efetiva para o emprego desta em musicoterapia.
Ansdell tem dado grandes contribuições na direção da convergência de
disciplinas. Sua posição corrobora as ideias de Ruud e Lee, nos três principais
pontos de discussão: a musicoterapia faz parte dos dois domínios – terapia e
música; o musicoterapeuta tem que levar em conta os aspectos da música, tanto
quanto se debruça sobre os aspectos da terapia; e a musicoterapia deve ser
articulada com a musicologia, como fica claro nesta sua declaração:

(...) a musicologia na sua forma contemporânea é um discurso


chave com o qual a musicoterapia não pode deixar de se engajar,
no futuro. Os musicoterapeutas necessitam estar conscientes dos
fundamentos dos seus pensamentos e hipóteses nas dimensões
terapêutica e musical (Ansdell, citado por LEE, 2003, p. 16).

Lee ainda se refere à questão da ‘análise musical’ como sendo uma das
formas de apoiar e “desafiar a musicoterapia a um crescimento intelectual”
(2003, p. 16). Na verdade, eu diria que este é um objetivo da análise
musicoterapêutica.
O musicoterapeuta Colin Lee (2003) considera que para se avaliar o papel
da música em musicoterapia é necessário estar preparado para utilizar teorias de
análise musical, mesmo que estas sejam vistas como parte da musicologia
“tradicional”. Lee explica que a musicoterapia tem que levar em conta as
“engrenagens” do conteúdo musical em relação aos efeitos terapêuticos, o que
significa examinar em detalhe a notação musical, de forma acurada. Percebese
que Lee já inclui outros aspectos, ou seja, além da análise musical, e já inclui
mais um ator: o musicoterapeuta e a sua escuta.
Considero que seria mais do que isto: o musicoterapeuta, além de observar
as questões musicais, (a análise musical), deve fazer uma articulação destas com
as condições de vida, clínicas e sonoro-musicais do paciente, e levar em conta o
contexto no qual a música acontece.
Ainda se referindo à compreensão da engrenagem da música, Lee afirma
que “só através de uma análise detalhada nós começaremos a entender como a
música funciona” (2003, p. 16), embora tenha a consciência e o bom senso de
declarar que não se pode pretender que a análise musical vá trazer hipóteses
universais sobre os efeitos da música e da terapia. No entanto, admite que a
tentativa de analisar as interações entre musicoterapeuta e paciente, na crença de
entender a sua construção, pode iluminar e possibilitar a compreensão de outros
aspectos. Para ele, “A união da música e da terapia é complexa e estudar uma ou
outra isoladamente é uma noção insensata” (p. 16), ou superficial, acrescentaria
eu.
Talvez a afirmação e a contribuição mais relevante de Lee, que não se
encontra em outros autores que discutem o mesmo tema, seja a de que a análise
musical, mesmo que concentre a ênfase na música, também equilibra os seus
achados dentro da dinâmica do todo, ou, como afirma Ruud (1998), que a análise
musical não seja separada dos contextos clínicos dos quais os pacientes se
originam.
O pensamento de Ruud e Lee com relação à análise musical, que leva em
consideração os contextos clínicos, corresponde ao que denomino análise
musicoterapêutica, conceito que criei e venho estudando e desenvolvendo desde
1982, conforme descrito anteriormente. Entendo que a análise da produção
musical do paciente deve ser articulada às suas histórias: de vida, clínica e
sonoro/musical, ao contexto, e à situação em que se dá o fazer musical (1982,
2004c, 2009a). Este conceito de análise musicoterapêutica foi ampliado, e
fundamentado, posteriormente, no Modelo Tripartido de Molino, revisto por
Nattiez e adaptado para a musicoterapia por Barcellos, desde 1999, incluindo e
recomendando, mais recentemente (2209a), a adequação da análise
paradigmática do musicólogo belga Nicolas Ruwet185, para a compreensão
exclusivamente da produção musical do paciente (Barcellos, 2009a).
O conceito, de análise musicoterapêutica foi tomando forma a partir do
momento em que percebi que a análise musical, exclusivamente, não é suficiente
para explicar a música do paciente. É, sim, mandatório, que

a escuta do musicoterapeuta tente entender


através da música do paciente
e das suas histórias: de vida, clínica e sonoro-musical,

o que esse paciente está expressando através da sua música/manifestação


musical, sendo que estas três instâncias acima caracterizam o Modelo Tripartido
Molino-Nattiez.
Jean Molino (1975) vê um signo, ou forma simbólica (no caso, a música),
como algo que para ser compreendido tem que se relacionar com os sistemas nos
quais está consubstanciado. Partindo do pensamento de Marcel Mauss, ele
declara que a linguagem, a música e a religião obrigam que se faça uma análise
tripartida das suas existências, inserindo a análise dos processos de produção e
recepção, além daquela que deve ser feita da obra em si186.
Mas, voltando-se às ideias de Lee (2003), deve-se observar que o autor
encerra o debate sobre a questão, de forma contundente. Para ele, a literatura de
musicoterapia que tem relação com a musicologia, e não contém a música
grafada ou gravada, pode trazer o perigo de continuar a tradição de evitar o
centro do nosso trabalho – a música. Nenhum trabalho intelectual, verbal, ou
nenhum discurso escrito compensa a necessidade de se analisar, escutar e
compreender a composição musical em musicoterapia, afirma o autor, ou, em
minha opinião, a produção musical dos pacientes.
Cabe ressaltar que, apesar de se entender a necessidade de maior
articulação da musicoterapia com áreas da música, sabe-se da relevância da
interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade187 para a construção e
desenvolvimento de uma disciplina. “No entanto, considero que não se pode
perder de vista a especificidade do centro de um campo do saber e que não se
deve deixar de gravitar nas questões da própria área” (Barcellos, 2009a, p. 13 –
14).
Propõe-se aqui o estudo e a articulação da música com a musicologia e
como isto pode ser empregado em musicoterapia, começando pelo estudo de
música e emoções.

Estudos sobre música e emoções


Antes de se abordar o tema sobre música e emoção se faz necessário
definir emoção. Várias são as definições de emoção, propostas por diferentes
teóricos. No entanto, pesquisadores das ‘Ciências Afetivas’ concordam com
relação às caracterísitcas e componentes da resposta emocional.
Para Scherer (2000), emoções são mudanças de reações relativamente
breves e intensas a eventos potencialmente importantes (desafios subjetivos ou
oportunidades), no ambiente externo ou interno, frequentemente de natureza
social, que envolvem um número de subcomponentes que são mais ou menos
‘sincronizados’ durante um episódio emocional:

avaliação cognitiva (p. ex., julgar uma situação como “perigosa”)


sentimento subjetivo (p. ex., sentir medo)
resposta fisiológica (p. ex., o coração começa a bater mais rápido)
expressão (p. ex., você grita)
tendência a uma ação (p. ex., você quer fugir), e
regulação (p. ex., você tenta se acalmar) (Scherer, 2000).

Além disto, existem evidências de uma ‘sincronização’ entre diferentes


componentes de respostas (Mauss et al., 2005).
Sabe-se que as emoções pertencem ao campo do afeto. Nas “ciências
afetivas” (Davidson, Scherer, & Goldsmith, 2003) o afeto é visto como um
termo ‘guarda-chuva’ pelo fato de abrigar vários fenômenos afetivos como
preferência, emoção e humor. Estes fenômenos são ‘valenciados’, isto é, têm
valências positivas ou negativas, dadas pelo indivíduo.
Considera-se importante incluir aqui uma tabela de definições de
fenômenos afetivos. A abaixo apresentada é proposta pelo sueco Simon
Liljestrom (2011), doutor em filosofia e integrante do Insituto de Psicologia da
Universidade de Uppsala, na Suécia.
O tema aqui proposto — os conceitos de Condição Convergente e
Divergente — está intimamente ligado à música e emoções. Várias pesquisas
sobre essa questão sugerem que a música pode influenciar a emoção de várias
maneiras, ou seja, as pessoas utilizam a música para mudar as emoções que
estejam sendo sentidas naquele momento, para descarregá-las, para tentar saber
qual emoção foi provocada, para dar prazer ou conforto, e para aliviar o stress
(Behne, 1997; Zillman & Gan, 1997; Sloboda & O’neill, 2001; Juslin & Laukka,
2003).
Alguns dos temas apresentados pelas pesquisas sobre o poder da música
em evocar emoções se referem a aspectos considerados bastante controversos e
aventam a possibilidade de que a música, às vezes, provoque somente um
componente da emoção. No entanto, há um critério considerado “conservador”
que afirma que existem evidências que a emoção envolve uma “resposta
sincronizada de todos ou muitos subsistemas organísmicos”188 (Juslin, P.; In:
Hallam, S; Cross, I; Thaut, M., 2016, p. 199). Por exemplo, uma resposta onde a
alegria fosse a emoção evocada, envolveria uma combinação de sorriso,
atividade muscular e maior condução da pele, sugerindo que os efeitos da
música são muito amplos e que esta é um potente elemento para evocar emoções
(Lundqvist, L. O.; Carlsson, F.; Hilmersson, P.; & Juslin, P., 2009). Contudo,
existem casos nos quais a sincronização não é observada. Nesses casos os
pesquisadores interpretam que a sincronização não pode ser generalizada ou,
ainda explicam que estes estudos falharam na possibilidade de evocar emoções
profundas nos ouvintes.
Os resultados de experimentos também apontam que as emoções advindas
da música são mais intensas e envolvem “respostas fisiológicas mais
pronunciadas” (ibid., p. 199). Ainda estudos sugerem que a audição musical
pode também provocar respostas fisiológicas, muito similares às emocionais,
como: mudanças na pressão arterial, na temperatura da pele, condução da pele,
respiração e secreção de hormônios (Hodges, 2010, citado por Juslin, P. 2016;
Zanini, 2009; 2013). Igualmente se sabe que diferentes peças de música podem
produzir padrões diferentes de respostas fisiológicas (Krumhansl, 1997, ibid.).
Outra discussão frequente é se a música poderia despertar emoções em um
laboratorio artificial, com música não familiar e/ou música selecionada pelo
experimentador. Alguns pesquisadores consideram que a prevalência das
emoções musicais, ou provocadas pela música, só podem ser estimadas por
estudos de campo em ambiente natural. Sobre o quê a música pode afetar, as
evidências empíricas disponíveis sugerem fortemente que os ouvintes
experenciam emoções mais do que somente estados de ânimo ou diferentes
humores.
Ainda se debate sobre quais as emoções que a música pode provocar.
Sobre isto, os resultados de dados acumulados são relativamente precisos e
permitem cinco conclusões:

a música pode despertar uma ampla gama de emoções (Gabrielson, 2001);


a música desperta principalmente emoções positivas (Juslin & Västfall,
2008);
a música pode despertar tanto emoções básicas (ex. tristeza e alegria) como
emoções complexas (orgulho e nostalgia) (JUSLIN, 2011);
os estados emocionais que aparecem com mais frequência nos estudos
incluem as seguintes categorias:
- calma – relaxamento
- alegria – satisfação
- nostalgia – saudade
- interesse – expectativa
- prazer – divertimento
- tristeza – melancolia
- excitação – energia
- amor – ternura - orgulho – confiança (Juslin & Lauka, 2003; 2004; Juslin
et al., 2008, 2011; Wells & Hakanen, 1991); e,
- emoções “mistas” (como, por exemplo, alegria e tristeza) podem ser
evocadas.

Como resultado destas discussões pode-se constatar que muitos achados de


pesquisa na área de música podem trazer uma contribuição substancial à
musicoterapia. Este é o caso dos conceitos de “condição convergente e
divergente” que foram cunhados por Lise Gagnon e Isabelle Peretz (2003), a
partir de pesquisas realizadas com o objetivo de investigar exclusivamente a
relação entre as emoções e a música.
O grupo constituído pelas neuropsicólogas Gagnon189 e Peretz190 (2003)
realizou pesquisas para estudar quais elementos estruturais da música
determinam a expressão das emoções ou, mais precisamente, como se reage ao
modo e andamento.
As autoras partem de estudos realizados anteriormente, e afirmam que a
norte-americana Kate Hevner foi a primeira a demonstrar as características dos
modos, em 1936. Em estudos posteriores, que resultaram na conhecida “roda de
adjetivos” (1937), Hevner considera também o andamento. Rigg, M. (1940,
1941), replicou estes estudos, levando em consideração os mesmos aspectos. No
entanto, nesses estudos o pesquisador incluiu outros parâmetros como mudanças
na articulação (legato e staccato), na altura (grave e agudo), na intensidade
(piano e forte) e no ritmo (iâmbico e trocaico191).
Aqui cabe abrir um espaço para discutir questões que fizeram parte de
minha atuação na clínica, na década de 1970, quando comecei como estagiária
na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR)192, uma
instituição que atende pessoas em tratamento com vistas à reabilitação motora.
À época, o trabalho de musicoterapia era feito juntamente com uma
fisioterapeuta e no início da sessão de crianças portadoras de Encefalopatia
Crônica da Infância (ECI)193, tentava-se a ‘normalização’ do tônus (que tanto
poderia ser acima – hipertonia ou espasticidade, como abaixo do normal –
hipotonia), isto através da inibição das posturas e reflexos patológicos, mas,
também considerando-se que a música podia contribuir para esta normalização.
Para isto, era tocado um trecho musical em um instrumento de grande porte,
harmônico, como o piano, fazendo-se um mesmo trecho em diferentes
intensidades (pp – f – fff), nas diversas alturas (grave, média e aguda), em
andamentos distintos (rápido/lento), nos dois principais modos (em M e m) e
mudanças na articulação (legato/staccato). Nesse momento, cabia à fisio
terapeuta perceber se havia uma mudança de tônus, colocando suas mãos sobre
os membros superiores ou inferiores da criança, por exemplo, e sinalizando para
a musicoterapeuta quando acontecia.
Estes ‘experimentos’ eram feitos principalmente com crianças espásticas,
embora as hipotônicas também fossem trabalhadas dessa forma, fazendo-se com
estas, em geral, o contrário daquilo que possibilitava os resultados na
normalização do tônus de espásticos.
Deve-se esclarecer que naquela época não se tinha informações sobre
estudos sobre música e emoções, e nem na contribuição que esta poderia trazer
para a mudança de aspectos fisiológicos, como mudança de tônus, por exemplo.
Certamente, o conhecimento destas pesquisas poderia ter influenciado a prática
da musicoterapia com este tipo de crianças, desde então.
Mas, voltando-se a Gagnon e Peretz (2003), cabe observar que o estudo
por elas realizado aponta alegria e tristeza como as emoções que tendem a ser
mais facilmente provocadas e comunicadas através da música, e que são
consideradas como as mais comumente reconhecíveis. Por outro lado, as
pesquisadoras constatam que as duas características musicais que
frequentemente “conduzem” essas emoções são: o modo e o andamento, com
suas variações. Contudo, é importante assinalar que as autoras destacam que não
consideram que somente as variáveis estruturais modo e andamento tenham um
papel importante na comunicação emocional através da música (ibid, p. 38)
(como, aliás, Rigg demonstrou na década de 1940).

O estudo de Gagnon e Peretz


Com o objetivo de estudar exclusivamente tristeza e alegria, Peretz e
Gagnon (2003) realizaram uma pesquisa em uma situação de escuta com
dezesseis indivíduos não-músicos194, de ambos os sexos, utilizando, em
situações isoladas, sequências musicais criadas e manipuladas especialmente
para o estudo, diferentemente de pesquisas anteriores que utilizaram trechos
selecionados na literatura musical, ou seja, pré-existentes. Foram então criadas
sequências no modo maior (M), no modo menor (m), e uma em tons inteiros195
que, segundo elas, “podem criar neutralidade” (ibid, p. 29). Também foram
compostas, depois de vários estudos pilotos, e utilizadas isoladamente,
sequências em andamentos rápidos e lentos.
Os sujeitos da pesquisa consideraram as sequências musicais escritas no
modo M, mais alegres do que as sequências no modo m. Da mesma forma,
fragmentos musicais em andamento rápido ou lento foram também considerados
alegres ou tristes, respectivamente. Os resultados apontaram para respostas que
evidenciam que, separadamente, o andamento lento evoca tristeza e o rápido,
alegria. Quanto aos modos, as autoras encontraram respostas de tristeza para o
modo m e alegria para o modo M, o que é ainda hoje utilizado pelo senso
comum.
Posteriormente, estes aspectos foram combinados em condições
experimentais distintas, em melodias controladas, para compreender qual dos
parâmetros era o predominante para a resposta. Assim, como abaixo:
Condição 1 – inicialmente cruzaram os dois aspectos que resultavam em
tristeza, denominando de “condição convergente”, o que ratificou o resultado
anterior:

Condição 2 – logo modificaram um dos parâmetros cruzando o modo M


(que causara alegria), com o andamento lento (tristeza), e vice-versa,
denominando “condição divergente”, para definir qual aspecto seria o
determinante da emoção, como abaixo representado:

A partir daí as autoras concluiram que na condição divergente há uma


prevalência do andamento: em um fragmento em menor, com um andamento
rápido, a alegria é a emoção mobilizada e, em um trecho em maior, com
andamento lento, a tristeza é a emoção que aparece de forma preponderante.
Assim: “Quando sistematicamente acessado, num conjunto altamente
controlado, o andamento emerge como o determinante mais proeminente da
distinção alegre-triste” (p. 37).

Os conceitos de condição convergente e divergente em musicoterapia.


A partir daqui começam a tomar forma algumas questões relevantes:

Qual seria a importância destes estudos para a musicoterapia?


Uma situação de escuta pode ser adequada a uma situação de produção:
criação ou recriação?
Em que circunstâncias isto pode ser adequado à produção (criação) de
pacientes não músicos na medida em que os mesmos não têm condições de
lidar, por exemplo, com as duas possibilidades de utilização dos modos?

Para responder a essas questões parto, novamente, da minha prática,


iluminando duas situações clínicas muito diferentes em vários aspectos. A
primeira, ilustrada com a produção (improvisação/composição) de um paciente
com formação musical anterior ao atendimento em musicoterapia; e, a segunda,
apresentando a produção (composição) de um paciente sem nenhum contato
formal com música antes do tratamento musicoterápico. Os dois estão aqui
caracterizados para melhor compreensão.

Cena clínica 22
A improvisação/composição de Carlos.
Carlos tinha 44 anos quando fui procurada por sua mulher, para atendê-lo
em musicoterapia. Isto ocorreu 18 anos depois de ele ter tido um acidente de
mergulho que lhe causou uma lesão difusa, deixando sequelas psicomotoras que
resultaram em uma marcha levemente atípica, dificuldades leves na fala, perda
parcial da memória e problemas na área emocional.
Não me parecia possível conseguir-se qualquer modificação no quadro,
depois de tanto tempo. Não seria mais possível a neuroplasticidade cerebral198,
ou a substituição de funções das áreas lesadas.
Filho de estrangeiros de bom nível sociocultural, com formação em
Economia na Stanford University (USA), além de poliglota, Carlos tocava
violino, viola e clarinete. O acidente o impossibilitou de continuar a trabalhar.
Empregado de um importante banco multinacional quando sofreu o acidente,
sua vida profissional foi interrompida e ele passou a se manter exclusivamente
com uma parca pensão do INSS. Como considerei que dificilmente se poderia
conseguir minimizar as dificuldades de Carlos não aceitei trabalhar com ele. No
entanto, pressionada por sua mulher, já consciente das dificuldades dessa
reabilitação, voltei atrás e comecei o trabalho.
O acidente ocorreu quando o paciente tinha 26 anos e como nunca deixara
de tocar, a sua memória musical estava parcialmente preservada. Ele tocava as
mesmas músicas em todos os instrumentos que estudara pois, além da formação,
tinha muita musicalidade.
Na primeira sessão (28/4/89)199, Carlos solicitou que eu o acompanhasse
ao piano e começou tocando “Smile”200ora no violino, ora na viola, em
diferentes tonalidades, transportando com facilidade e resolvendo naturalmente
os aspectos musicais. Também passava do violino para a viola e vice-versa,
tocando essa mesma música, sem mudar as posições dos dedos, o que a
transportava uma 5a abaixo ou uma 4a acima, dependendo do instrumento que
tocava primeiro e, consequentemente, me levava a também transportar, porque
eu sempre o acompanhava no piano. Ainda deve ser destacada a dificuldade a
ser enfrentada por um músico (não paciente) que não tivesse uma musicalidade
tão desenvolvida como Carlos, e que tocasse uma mesma música mantendo a
tonalidade quando tocava no violino e mudasse para a viola ou vice-versa. Ou
seja, aqui se teria outro tipo de desafio: mudar completamente as posições.
Pode-se imaginar o quanto isto poderia contribuir para a
neuroplasticidade, caso acontecesse imediatamente após um acidente que
danificasse algumas conexões. Ou será que isto ainda seria possível 18 anos
depois? Não sei se isto mudou com as novas evidências das neurociências.
As músicas que tocava eram repetidas várias vezes. Assim, tudo era
familiar e, consequentemente, previsível para ele. Percebi, então, que deveria
levá-lo a novas experiências musicais, improvisar ou compor, para que
conseguisse lidar com situações novas e tivesse maiores desafios já que resolvia
facilmente as questões de mudanças de instrumentos. Mas Carlos era resistente
ao novo, talvez por querer se manter na sua zona de conforto, ou, talvez pela
impossibilidade de absorver/executar novas músicas.
Em um determinado momento, enquanto tocava viola, sugeri que ele
criasse uma melodia. Ele improvisou a melodia a seguir.

Solicitei que ele colocasse um título, mas ele disse que “não tinha título”.
Certamente se tivesse um título eu teria como entender melhor o que ele estava
querendo expressar. De qualquer forma, eu já tinha dados suficientes para poder
entender o que estava acontecendo, já que conhecia a sua história, tanto de
vida, quanto clínica e sonoro musical. Logo depois o acompanhei, fazendo a
harmonia no piano, na mesma sessão, como na partitura a seguir.
Perguntei como ele sentia a melodia e ele disse: “você tocou alegre, mas é
sombrio, triste”.
Ele acabou por memorizar essa melodia e voltava sempre a tocá-la,
pedindo que eu o acompanhasse, o que resultou nesta composição grafada
musicalmente por mim e gravada em áudio, 15 anos após a alta201.
Iniciamos, a partir daí, um trabalho de improvisação e composição tendo
eu, por objetivo, levá-lo a exprimir seus sentimentos, já que lhe era muito difícil
expressar-se verbalmente, pois, além da dificuldade de fala, ele era muito
reservado, aspecto decorrente, talvez, de suas raízes europeias.
Ele passou a se expressar através de suas improvisações/composições,
embora não declarasse isso. Essa primeira composição não tem título ou letra,
mas uma observação do paciente.
Levando-se em consideração a sua história, pode-se inferir que esta
melodia “está no lugar” ou é uma metáfora musical – substitui o que não pode
ser dito verbalmente, porque o paciente não quer ou não pode – do que parece
ser um sentimento de tristeza, expressado através de um andamento “lento e
pesado”, num tom menor, configurando uma condição convergente, que foi
tocada inicialmente na viola, instrumento considerado “uma versão contralto do
violino, com sonoridade menos enérgica do que a desse instrumento”
(Dicionário Grove De Música, 1994, p. 995).
Aqui, a combinação do andamento lento com o modo menor, levando-se
em consideração também o timbre da viola, pode estar expressando a tristeza
que pode advir de seu estado atual, significando as muitas perdas que sofreu na
vida.
Assim, respondendo à pergunta feita anteriormente se poderíamos
considerar que os achados das autoras, realizados em uma situação de escuta
poderiam ser levados em conta em uma situação de expressão, penso que se
pode concluir que embora os estudos tenham sido realizados em uma situação
distinta da aqui apresentada, considero ser possível que eles sejam transpostos
para uma situação de produção, como no caso de Carlos. Mas, esta conclusão
abre uma nova pergunta: Carlos é um paciente com formação musical o que
possibilita que ele possa lidar com o aspecto do modo, por exemplo. No entanto,
seria possível um paciente sem formação musical lidar com este aspecto?

A composição de Raphael
Raphael nasceu com Mielomeningocele202 e, desde então, faz tratamento.
No momento em que foi atendido em musicoterapia tinha 18 anos e completara
até a 7ª série numa escola estadual. Desde os 10 anos vem sendo submetido a
tratamento dialítico numa clínica de doenças renais, juntamente com mais seis
pacientes na mesma enfermaria, com idades que vão de três a 20 anos. Este
grupo foi atendido em musicoterapia no momento da diálise.

Por que a composição?


Considero que a vida de pacientes em tratamento dialítico é altamente
previsível pelo fato de eles permanecerem durante 12 horas semanais (três vezes
por semana durante quatro horas cada sessão) “ligados” à máquina de diálise, da
qual dependem para sobreviver e que, mesmo existindo aspectos considerados
imprevisíveis e de risco – como as múltiplas intercorrências clínicas, e até a
morte – estes são de certa forma previsíveis, por fazerem parte dos
desdobramentos da patologia.
Assim, não só pela previsibilidade proveniente da ligação com a máquina,
mas, também, pelo contato “exaustivo”203 com a canção popular considero que,
além de o empoderamento204 destes pacientes, um dos objetivos – que no dizer
de Fiorini (1995, p. 20) se configura como “o coração da clínica”, para levar os
pacientes à criação de um novo discurso, organizador de “novas tramas de
sentido”–, é provocar e ativar uma capacidade humana que está preservada: a
capacidade de criar, tendo como objeto de criação, aqui, a música, através da
improvisação, referencial ou não referencial, e da composição.
Neste contexto há que se fazer um esforço para acreditar na capacidade de
criar, já que a doença é visível, inexorável, e pode nos induzir a não levar em
conta aspectos da ordem da saúde, que devem ser considerados como
necessários para uma vida minimamente normal. Deve-se confiar na afirmação
de Sartre que “Em todo padecimento humano se encontra oculta alguma
empresa” (citado por Fiorini, 1976, p. 24).
Baseada em experiências anteriores, e aberta a qualquer manifestação
sonoro/musical/verbal dos pacientes, percebi que quando todos cantavam juntos:
pacientes, enfermagem e familiares, a canção popular era o tipo de música
escolhido sendo, portanto, a re-criação musical a experiência escolhida pelos
pacientes. Contudo, nos momentos de atendimento individual, a improvisação e
a composição foram as experiências musicais utilizadas e a técnica mais
adequada a ser empregada pelas musicoterapeutas.

Cena clínica 23
Aqui utilizo uma situação clínica da qual Raphael foi o protagonista, para
ilustrar a utilização da composição e, para responder à indagação feita
anteriormente sobre a possibilidade de um paciente sem formação musical lidar
com o modo, por exemplo.
Mas, antes de analisar o processo da composição da música, considero
importante algumas observações sobre a letra trazida por Raphael, observando
que esta “composição” tem que ser “lida” dentro do tempo e espaço nos quais foi
criada: em um dia e momento em que a sala de diálise estava sendo abalada por
um episódio clínico com a paciente de três anos que, depois de intervenções da
enfermagem, reagiu e se recuperou, mas que apontou para uma ameaça de morte
a todos aqueles que estavam na mesma condição, isto é, numa sessão de diálise
com possibilidades de oposição de vida e morte.
Possivelmente para fazer ressoar oposições e tensões internas, Raphael se
“apoderou” e transformou em letra de canção, algumas ideias de um texto de
autor desconhecido205, retirado da internet, utilizando o oxímoro206. Certamente
a escolha do texto foi para “compor” novas tramas de sentido para exprimir
aspectos relativos às histórias de vida e clínica de todos os que ali se submetiam
ao mesmo tratamento, sem dúvida, expressando inconscientemente a oposição
entre vida e morte, e a ameaça iminente de morte, pela qual todos tinham
acabado de passar.
Fiorini (1995) considera que a forma retórica da figura de linguagem
oxímoro, que faz ‘ressoar’ oposições e tensões, é uma característica do
pensamento criador que não se entende nem como princípio da realidade, nem
como pensamento do processo primário ou secundário, mas sim, que é da ordem
do processo criador, pertencente ao processo terciário207. Abaixo, as palavras do
referido texto.

Nada de nada208

(R. C. C. – 2/04/09)

Já passava da meia noite


E o sol raiava no horizonte
Vacas pulavam de galho em galho
Enquanto o homem dizia calado
Melhor morrer do que perder a vida.

“Na verdade eu prefiro perder a vida porque posso encontrar” (falado),


acrescenta o paciente, no final. (Esta última frase foi criada pelo paciente, como
resposta à escolha entre a morte ou a “perda” da vida).
Refiro-me, anteriormente, a oposições e tensões existentes na letra, mas
estas também podem ser encontradas na música criada por Raphael: um ‘Funk
Melody’209, como ele solicitou, onde são encontradas síncopas e contratempos.
A composição está em uma escala de Ré m, numa forma primitiva (o dó natural
– Buhomil, 1996) e em um andamento Allegro, o que poderia caracterizar uma
“condição divergente” (modo m e andamento rápido – aqui um andamento entre
médio e rápido). Depois de composta a música, Raphael reclamou que a
musicoterapeuta estava tocando a música, no violão, como se estivéssemos “num
velório”. Muito lenta. (Interessante a forma como o paciente “denuncia” o
andamento não desejado por ele).
Cabe assinalar que o paciente ainda solicitou que depois de ele ‘recitar’ a
frase final (que se refere à sua escolha em ‘perder a vida porque pode
encontrar’), fosse feita no violão o que ele denominou “uma descida”. Como
nós, musicoterapeutas, entendemos este pedido de formas diferentes e como
Raphael não sabia nada de música e não poderia explicar o que queria, tocamos
duas vezes, das duas formas, pedindo-lhe que escolhesse uma delas. Ele apontou
a segunda forma como sendo o que havia solicitado, que era uma descida no
braço do violão. A musicoterapeuta fez essa descida, percorrendo todo o braço
do violão até chegar ao acorde da tônica, exatamente na cabeça do tempo,
retomando-se, aí, não só o tom, mas, também, o andamento. Musicalmente
falando, esta descida pode ser vista como uma metáfora da perda da vida e, logo
depois, na retomada do tom e do andamento, o reencontrar a vida, ou o retomar
do ritmo da vida, como canta o paciente. Além de outros aspectos identificados,
poder-se-ia dizer que a expressão de Raphael, depois de uma ameaça existente
na sala, retoma a vida, com a recuperação da paciente.
Mas, iluminando novamente o estudo de Gagnon e Peretz, deve-se
mencionar que as autoras consideram que o andamento, ou tempo, pode ser
relacionado a funções em outros domínios das atividades humanas, além da
música. Para elas, esse resultado sustenta a ideia que a sensibilidade ao tempo
precede a sensibilidade aos modos em música e que estes últimos dependem de
aprendizagem, isto é, “o tempo é um aspecto geral, o modo não” (2003, p. 37).
Ou seja: o tempo é um aspecto geral com o qual lidamos sempre em nossas
vidas, em qualquer atividade, o que não acontece com os modos musicais.
Mas, cabe responder ao questionamento anterior: como pacientes não-
músicos podem lidar com a questão dos modos? Aqui se faz uma sugestão de
emprego da estratégia de Diane Austin (In: Barcellos, 1999b, p. 78) para levar os
pacientes a se expressarem através de sua técnica, denominada “associação livre
cantada”, que foi por nós utilizada na situação referida da composição acima.
Com aqueles que têm pouco ou nenhum conhecimento musical, a
musicoterapeuta toca um acorde no modo maior e outro no modo menor (no
mesmo tom), e pede que o paciente escolha qual deles prefere: o primeiro, ou o
segundo. Esta seria uma possibilidade de permitir aos pacientes a escolha de um
dos modos, o que estiver em consonância com o que quiserem expressar, sem a
necessidade de conhecimento musical ou, simplesmente, pela atmosfera que
podem criar.
A musicoterapeuta tocou, então, um acorde de Ré m e outro de Ré M,
repetindo algumas vezes, e solicitou que o paciente escolhesse um deles.
Raphael escolheu o acorde de Ré m e denunciou o andamento no qual sua
música estava sendo executada como não sendo o por ele requerido dizendo que
estávamos tocando como se fosse ‘música de velório’. Segundo ele, teríamos
que tocar mais rápido!
Acredito que a narrativa do processo de composição de Raphael possa
responder à pergunta feita anteriormente, mostrando que existem possibilidades
de que uma pessoa que não tenha conhecimento musical possa lidar com a
questão dos modos, por exemplo, e que isto possa facilitar os processos de
composição ou improvisação dos pacientes que não têm conhecimento musical.

Considerações finais
Partindo do estudo de Gagnon e Peretz (2003), que traz evidências que a
música, considerada a linguagem das emoções, é um meio ideal tanto para o
estudo da cognição como da emoção, — e fundamentada na minha prática
clínica, que apresenta pacientes atendidos em situações distintas no que se refere
à idade, patologia, condições clínicas, grau de instrução e diferentes níveis de
relação com a música, bem como tipo de atendimento (um musicoterapeuta ou
em coterapia) —, considero importante e possível a utilização dos conceitos de
condição convergente e divergente tanto na musicoterapia receptiva quanto na
interativa, por se tratar de uma poderosa ferramenta para que o musicoterapeuta
potencialize a utilização da música como elemento terapêutico:

na musicoterapia receptiva, pelo fato de a observância dos mesmos poder


influir na qualidade das respostas dos pacientes e,
na musicoterapia interativa, pela possibilidade de o musicoterapeuta
poder contribuir para ampliar as possibilidades de expressão de conteúdos
internos.

Deve-se observar que os estudos sobre o tema ratificam que não há


necessidade de formação musical para se julgar se um trecho ou música é triste
ou alegre. Esta frase poderia justificar a não necessidade de formação musical
para o musicoterapeuta. Considero, no entanto, que esta é fundamental na
musicoterapia interativa, numa situação em que o musicoterapeuta deva, por
exemplo, facilitar ao paciente não-músico a escolha de parâmetros como o modo
e na musicoterapia receptiva, porque os critérios de escolha da música a ser
utilizada estão, ou deveriam estar, a cargo do musicoterapeuta (ou outro
profissional que utiliza música como recurso), e o não conhecimento da estrutura
musical pode provocar emoções indesejáveis em determinados pacientes, em
momentos ou situações específicos, transformando a música em elemento
iatrogênico, ao invés de utilizar a sua potência terapêutica.
SENTIDO E SIGNIFICADO EM MÚSICA E
MUSICOTERAPIA: “PRA NÃO DIZER QUE NÃO
FALEI DAS FLORES...”

Nas sociedades modernas, os poderes da música são


– ainda que fortemente ‘sentidos’ –
tipicamente invisíveis e
difíceis de serem especificados empiricamente.
Tia DeNora (2000, p. ix).

Introdução
A questão de como se constroem e se percebem os sentidos e o significado
na comunicação, e de como eles são percebidos e interpretados, tem sido objeto
de estudos e vem sendo discutida por várias áreas como antropologia, filosofia,
linguística, sociologia, psicologia e, ainda, áreas da música como: psicologia da
música e musicologia.
Em musicoterapia, essa questão tem sido menos debatida do que seria
necessário, considerando-se a sua importância para a área, declarada por alguns
pensadores do campo como Even Ruud que afirma que “A questão do
significado musical é fundamental para a prática da musicoterapia” (2010, p.
61). Assim, faz-se necessário a discussão do tema para que se tenha uma
compreensão daquilo que o paciente expressa, musicalmente, o que pode
contribuir para um melhor desenvolvimento do processo musicoterapêutico.

Sobre os termos sentido e significado


A música tem a possibilidade de que a ela se atribuam vários sentidos, o
que se caracteriza como uma natureza polissêmica. Assim, entende-se que
quando aqui for utilizada a palavra sentido, significa que várias são as
possibilidades de atribuição ou que a questão não se refere a um único sentido.
Quando um único sentido for atribuído à música, fecha-se em significado.
Isto fica muito claro na leitura da importante obra de Jean-Jacques Nattiez
Music and discourse (1990a), que utiliza respectivamente sens para sentido, e
meaning para significado e, também, na do musicoterapeuta Even Ruud – Music
Therapy: a perspective from the humanities (2010). Ainda seria importante
esclarecer que aquilo que em música consideramos significado, a psicanálise
denomina sentido.
Para tornar mais clara a diferença entre como a questão é tratada em
musicoterapia e na psicanálise, embora sucintamente, vale apresentar o
psicanalista João Paulo Barretta210 (2009) que analisa e discute o tema do
sentido em um artigo intitulado O problema do sentido na psicanálise de Freud,
tendo como pergunta central: “[...] o que significa sentido aqui? Como Freud
concebe o sentido quando fala do sentido dos sonhos, atos falhos, sintomas e
demais formações do inconsciente? A partir desta questão Barretta afirma que
“Em primeiro lugar, Freud observou que o sentido se vincula às experiências
anteriores dos pacientes (as vivências), de modo que a interpretação deve ser
histórica, levando em consideração a biografia particular do indivíduo em
questão” (ibid., p. 4)211 .
Logo o autor explica que os sintomas neuróticos e as outras formações do
inconsciente têm um sentido psicológico, ou seja, estão conectados a
recordações, intenções e, também, a fenômenos psíquicos (que o paciente
desconhece e que constituem o “sentido de um sintoma”). Como se pode
entender, aqui, sentido se fecha em uma única direção e é algo que remete a
outra coisa ou, como afirma Nattiez, referindo-se à música: “objetos que, para
alguém, se referem a algo” (1990a, p. 9), como será visto adiante. Assim, pode-
se entender que o que em psicanálise é visto como sentido, em música denota
significado.
Ainda é interessante sinalizar que no prefácio do livro A metáfora
freudiana – de Donald Spence (1992), que é um estudioso da obra de Freud –
Jerome Bruner212 afirma que a associação livre do paciente e a atenção
flutuante, do analista, “dois princípios centrais do procedimento psicanalítico”,
são impulsionados por um “esforço pelo significado”, valendo-se da expressão
utilizada por Frederic Bartlett (p. 12 e 13).
Assim, pode-se depreender que em psicanálise a palavra significado
também aparece como sinônimo de sentido.

Sobre o(s) sentido(s) na música e na musicoterapia


Foram as canções “Pra não dizer que não falei das flores...”213, uma das
mais potentes vozes de Geraldo Vandré, com outras forças como “Disparada”214
e “Canção da Despedida”215, que me levaram a retomar a questão do sentido e
significado na música, sobre a qual me debrucei a partir de 1995. Nesse ano,
inspirados por Even Ruud, que introduz a questão da polissemia da música na
literatura da musicoterapia em 1980, o musicoterapeuta Marco Antonio Carvalho
Santos e eu, escrevemos um texto sobre A natureza polissêmica da música e a
musicoterapia, onde tratamos da possibilidade que a música tem que a ela sejam
atribuídos muitos sentidos por aqueles que a escutam, e a importância disto para
a musicoterapia. Nesse artigo, referindo-nos à produção musical, afirmamos que

O sentido dessas produções sonoro-musicais do paciente não se


apresenta, em todas as ocasiões, de uma forma clara e
transparente. O sentido não se encerra em uma única
possibilidade ou direção216. Captar essa pluralidade de
caminhos abertos na relação sonoro-musical implica numa
atitude vivencial de abertura, mas, também, numa concepção
teórico – perceptiva – vivencial, capaz de abranger com a maior
riqueza possível este movimento de desabrochar do paciente
(Barcellos e Santos, 1996, p. 18).

Algumas considerações podem ser feitas a partir desta afirmação. A


primeira delas é sobre a necessidade que os autores apontam existir de se captar
a pluralidade de caminhos abertos na relação sonoro-musical o que, para eles,
“implica numa atitude vivencial de abertura, mas, também, numa concepção
teórico – perceptiva – vivencial [...]” (ibid.). Na música, essa necessidade é
também apontada e ratificada pela afirmação do musicólogo francês Jean-
Jacques Nattiez, que declara que “(...) não há símbolo sem interpretação (...). O
símbolo deve ser objeto de exegese217; ele pede uma interpretação que é um
trabalho de compreensão. (...) (1990a, p. 35 e 36). Percebe-se, aqui, que Nattiez
considera a música como uma forma simbólica, ou seja, capaz de carregar o
significado que se quiser a ela atribuir.
O musicoterapeuta Marco Antonio Carvalho Santos em 2002 escreve um
artigo Sobre sentidos e significados da música e a musicoterapia218, no qual
analisa a questão. Nesse texto o autor declara, enfaticamente, que “Tornar-se
cada vez mais capaz de entender o(s) significado(s) dessa expressão é
fundamental para os musicoterapeutas” (p. 56), o que corrobora a afirmação de
Kenneth Bruscia que considera que “as produções dos clientes têm que ser
escutadas e compreendidas pelo musicoterapeuta e que a escuta é uma
competência fundamental porque é a partir dela que o musicoterapeuta vai
responder ao cliente” (2001, p. 7).
Para Bruscia (ibid., a análise feita a partir da escuta envolve a descrição, a
compreensão e a interpretação (compreensão). Para a interpretação da música
trazida/criada pelo cliente o musicoterapeuta se vale de muitas perspectivas,
sendo a hermenêutica uma das principais ferramentas para levá-lo a discernir
sobre quais são os sentidos ou o significado que o fenômeno musical pode ter.
Isto demonstra que o autor trabalha com a necessidade de se levar em
consideração a questão dos sentidos/significado que o paciente pode atribuir à
música, posição com a qual vários teóricos estão de acordo, e dentre os quais me
incluo.
Ruud (2005), explicando que originalmente a hermenêutica219 foi aplicada
à análise de textos bíblicos e jurídicos, também se refere à sua utilização em
musicoterapia, considerando que esta abordagem prevalece para o entendimento
de expressões musicais, de improvisações e conversações. O autor apresenta a
hermenêutica e declara que esta deve sempre ser vista como criativa e não como
reflexão mecânica sendo, por isto, sempre relativamente objetiva e jamais
absoluta. Para o autor, ela é utilizada quando nos confrontamos, por exemplo,
com questões relativas ao significado que pode estar sendo comunicado.
Considerando que em musicoterapia as interpretações podem ser feitas através
de distintas perspectivas, tais como: de uma posição filosófica, de uma teoria
psicológica, de teorias relativas a metáforas e narrativas, de teorias de análises
musicológicas ou, ainda, de concepções inerentes à natureza do processo
musicoterápico, Ruud afirma que “A tradição hermenêutica coloca seus esforços
no significado, tentando revelar alguns dos níveis que estão escondidos atrás do
comportamento do cliente enquanto envolvido na interação simbólica com
música” (1998, p. 115).
Mas, voltemos à citação inicial de Barcellos e Santos (1996), na qual ainda
está implícita a definição de sentido na música: “aquilo que não se encerra em
uma única possibilidade ou direção”. Assim, pela natureza polissêmica da
música, várias pessoas podem atribuirlhe diferentes sentidos, ou mesmo uma
mesma pessoa pode atribuir muitos sentidos, em diferentes momentos.
Para encerrar a questão, pode-se lançar mão de exemplo retirado de uma
arte visual, trazendo um quadro onde se pode perceber que o sentido se
caracteriza pela pluralidade como, no caso de “Mujer llorando con pañuelo”,
(Pablo Picasso, 1937), ao qual muitos são os sentidos atribuídos.
Na verdade, quando várias pessoas contemplam essa obra, não há consenso
no que representa, como pude perceber em aulas, com muitos alunos presentes.
Os sentidos apontados podem ser tantos quantos forem aqueles que a
contemplam. Ela pode ter qualquer sentido, se não se souber o título, ou se ela
não estiver ligada a uma situação, pessoa ou fato especial da vida daquele que a
contempla220.

Sobre a semiotização: de sentido para significado


Um acontecimento pode fazer com que uma determinada música, à qual
estava aberta para a atribuição de muitos sentidos, ou seja, que não era ligada a
nenhum fato ou pessoa, passe a ter um único significado, num processo de
semiotização.
Para que ainda melhor sejam entendidas essas três definições – sentido,
semiotização e significado – permito-me trazer uma experiência pessoal.
Há muito tempo considero a canção Beatriz221 como sendo uma das mais
lindas do cancioneiro brasileiro, senão a mais linda. Sempre tentei entender a
razão dessa preferência. Parei para pensar na letra, que considero um primor,
mas não encontrei nada que me chamasse especial atenção. Decidi, então,
analisar os aspectos musicais, depois de analisar a letra: pensei na melodia, e
nada encontrei; considerei a harmonia igualmente linda, mas nada podia explicar
o que eu sentia. E continuei sentindo a mesma emoção sem, no entanto, entender
por quê. Na verdade, a necessidade de saber explicar o quê me emociona nesta
música, vem do lugar que ocupo profissionalmente e como estudiosa da música
porque, jamais eu, como pessoa, teria tal necessidade. Mas, continuei sem saber
e me aquietei. Até aqui, eu poderia atribuir qualquer sentido à canção, já que a
música tem uma natureza polissêmica e eu não sabia explicar o que ela ‘queria
dizer’ para mim. Era ‘apenas’ uma música preferida.
Em 2003, recebemos no Rio de Janeiro, a visita de Even Ruud, após sua
apresentação como convidado internacional do XI Simpósio Brasileiro de
Musicoterapia realizado em Natal (RN). Como Ruud estava pela terceira vez no
Rio de Janeiro e até então não tinha sido possível levá-lo ao Theatro Municipal,
fomos ao que estava sendo apresentado nos dias em que ele e sua mulher
estavam na cidade: O circo místico. Éramos seis pessoas: o casal Ruud, meu
marido e eu, e mais um casal. Eu não tinha percebido que Beatriz ali estaria e, no
momento em que o teatro se encheu da voz de Milton Nascimento, naquela
interpretação numa gravação que todos nós conhecemos, fiquei tão ou mais
mobilizada do que antes. Foi uma emoção positiva muito especial. Mas, a partir
desse momento, toda vez que ouço Beatriz, seja qual for a interpretação ou
gravação, esta me traz aquela situação, ou me leva ao Theatro Municipal, que
potencializa a emoção não só da música mas, também, da companhia das outras
cinco pessoas. Beatriz se semiotizou: mudou, para mim, da possibilidade de ter
vários sentidos para significado. Hoje, toda vez que ouço Beatriz me vêm à
cabeça as pessoas que lá estavam, e a situação. Sempre.

Sobre a semiotização coletiva


Acima me refiro à semiotização de Beatriz, isto é, relato o fato que fez com
que ela passasse de sentido e se fechasse em significado, para mim. Transpondo
isto para o coletivo, retomo “Pra não dizer que não falei das flores” que se
transforma coletivamente em significado, ou seja, semiotizando-se em âmbito
coletivo.
Essa música foi composta em 1968, e participou do III Festival
Internacional da Canção. O Refrão “Vem, vamos embora / Que esperar não é
saber / Quem sabe faz a hora, / Não espera acontecer” foi interpretado como uma
chamada à luta armada contra os ditadores. Assim, para grande parte da geração
que viveu nos tempos da ditadura, ela é escutada com ouvidos que a ligam
imediatamente à ditadura, como “Apesar de você” (Chico Buarque, 1970) e
tantas outras canções.
Mas, também músicas eruditas são semiotizadas coletivamente. Entre elas
podemos citar: Pour Elise (Beethoven) que anuncia a chegada do caminhão do
gás em bairros das cidades grandes e nas cidades do interior do Brasil; o Inverno
(Quatro Estações de Vivaldi), que chega a nos fazer sentir o perfume do sabonete
Vinólia, por conta de uma propaganda veiculada há algum tempo na TV; O
Cânon (Pachelbel) que nos leva à velocidade do anúncio de uma marca de
carros, e a Ode à Alegria (9a Sinfonia de Beethoven), que é utilizada até num
coral de galinhas, todas brancas, literal e devidamente empoleiradas para nos
trazer o gosto do guaraná Antártica e fazer-nos odiá-lo para sempre, por conta
desse comercial que foi retirado do ar como resultado de protesto dos músicos!

De significado para sentido?


Como visto acima, uma música pode se semiotizar, passando de sentido a
significado. Mas aqui cabe perguntar se o oposto seria possível, isto é, uma
música que tem um significado poderia voltar a ter a possibilidade que vários
sentidos sejam a ela atribuídos? Seria possível se dessignificar222 uma música?
Nas artes visuais temos exemplos da possibilidade desse processo, isto é,
de um objeto que tem um significado, transformarse em sentido, na medida em
que muda o contexto. Este é o caso da Fonte, de Duchamps (1917), que nada
mais é do que um mictório, que no banheiro tem um significado: serve para os
homens urinarem.
Entretanto, colocado num museu por Duchamps223, embora o objeto
continue sendo um mictório se transforma, pela mudança de contexto. Não se
pode vê-lo como tendo o mesmo significado. Ele não é mais para os homens
urinarem e, cada um pode ver nele um sentido diferente224.
Contudo, o que acontece nas artes visuais, como exemplificado acima —
uma obra passar de significado a sentido —, ainda não vi acontecer na música.
Por que será que uma música que tem um significado para nós, fecha-se neste e
não conseguimos que volte a ter a possibilidade de que a ela possamos atribuir
vários sentidos? Ou será que isto é possível?

Sobre o significado na música


O significado é caracterizado pela atribuição de um único sentido a uma
obra, como, por exemplo, no quadro de Andy Warhol: Michael Jackson
(1984)225, para se trazer um exemplo também advindo da arte visual. Quando as
pessoas veem essa obra de Andy Warhol, imediatamente afirmam: Michael
Jackson. Sempre que se apresenta esse exemplo, as pessoas são unânimes em
prontamente fechar em um único sentido, ou seja, significado: referindo-se
exclusivamente a Michael Jackson, em contraposição ao que acontece na obra de
Picasso, anteriormente apresentada. Não falam da expressão do rosto. Não se
referem ao sorriso, que poderia denotar alegria. Enfim, é Michael Jackson!
Para Tia DeNora (2000, p. 38), na música, “O significado é uma força
semiótica, uma propriedade não inerente a materiais culturais, sejam linguísticos,
tecnológicos ou estéticos. Ao mesmo tempo, os materiais não são espaços
semióticos vazios de jeito nenhum”, pois admitem que a eles sejam atribuídos
significados. No entanto, no caso da música, não se pode presumir o que ela vai
causar, ou “o que a força semiótica da música vai transmitir”, afirma a autora (p.
31). Contudo, DeNora admite que a força semiótica dos trabalhos musicais pode
ser decodificada ou lida.
No entanto, vale dizer que nem mesmo o significado verbal é imanente.
Uma frase dita pode ter alguns sentidos. Assim, isto nos leva a tirar algumas
conclusões como, por exemplo, que mesmo a linguagem verbal e seus sentidos
têm uma relação interdependente com o contexto social; que, para o ouvinte, o
significado de uma declaração estará ligado a relações sociais e a aspectos de
estilo como: voz, timbre, volume, fraseado, linguagem corporal, a relação que
aquele que fala tem com o setting, e muitos outros. Assim, depreendese que o
significado depende de como os ouvintes respondem. Como declara o sociólogo
alemão Jürgen Streeck, linguista e professor de estudos de comunicação na
University of Texas, (Austin, USA), pesquisador especialista em interação
humana na vida cotidiana: “o significado de uma afirmação é clarificado pela
resposta do ouvinte” (apud DeNora, 2000, p. 37), ou, dito de outra forma: “a
música não tem como função veicular significados” (Nattiez, 1990, p. 26). No
entanto, não é desprovida de possibilidades expressivas, função que lhe é dada
do exterior, pelo ouvinte.
E aqui reside a diferença entre sentido e significado: o primeiro, como se lê
em item anterior, vindo do pensamento de Ruud, não se fecha em uma única
direção e, sobre o segundo, Nattiez declara:

Um objeto de qualquer tipo assume um significado para um


indivíduo que apreende aquele objeto, tão logo o indivíduo
coloque esse objeto em relação a áreas de sua experiência vivida
– ou seja, em relação a uma coleção de outros objetos que
pertencem ao seu ou sua experiência do mundo (1990, p. 9).

Ou, dito de uma forma mais literária, nas palavras do mesmo autor: “o
significado existe quando um objeto está situado em relação a um horizonte”
(idem). Aqui eu me permitiria detalhar mais essa definição de significado dada
por Nattiez, partindo da minha própria experiência em música e musicoterapia,
esclarecendo que considero que essa coleção de ‘outros objetos’ a que se refere o
autor, pode ser vista como situações, fatos, ou, ainda, pessoas. Assim, a música
tem um significado para nós quando nos remete a uma situação, fato, ou pessoa,
e vem carregada da emoção que este fato, essa pessoa ou situação provocaram.
Ainda se deve voltar à DeNora que afirma: “a capacidade semiótica da
música resulta de sua relação intertextual com outras coisas” (2000, p. 28), ou
seja, “a força semiótica da música não pode ser derivada da música em si
mesma: a relação entre música e a situação de escuta também tem consequências
teóricas importantes” (ibid, p. 30).
Também o renomado neurocientista Daniel Levitin226 traz contribuições
sobre o tema, explicando o processo de significação da música, ou seja, como a
música passa a ter significado para cada um de nós. Afirma o autor que

Como os modelos mnemônicos de múltiplos traços227 partem do


princípio de que o contexto é codificado juntamente com os
traços mnemônicos, a música que você ouviu em diferentes
ocasiões de sua vida é codificada paralelamente aos fatos e
acontecimentos dessas épocas. Ou seja, a música é relacionada
aos fatos e os fatos são relacionados à música (2010, p. 187).

Assim, música e fatos são interrelacionados. O autor ainda considera que


uma canção pode funcionar como uma pista exclusiva, ou seja, como uma chave
que é capaz de reativar as experiências associadas à sua lembrança, lugar e
época.
Assim, as ideias apresentadas anteriormente, sobre o significado que pode
ser atribuído à música, são corroboradas e ratificadas pelas evidências
apresentadas pelos resultados dos estudos de Levitin que consideram que os
modelos de múltiplos traços “são capazes de gerar abstrações com estímulos
auditivos” (2010, p. 185).
Mas, um dos primeiros autores a se referir à questão do sentido/significado
na música foi o musicólogo suíço Jean Molino, no importante artigo Fait social
et sémiologie de la musique228 (1975), com o qual inaugura a sua obra e onde o
seu modelo semiológico é apresentado: o “Modelo Tripartido”. Nesse texto,
Molino, referindose à música, enfatiza que existe a necessidade de uma
abordagem da música que não se limite em analisar exclusivamente a sua
estrutura. E declara que “não há pois uma música, mas músicas, não a música,
mas um fato musical” (p. 38), a partir do conceito de “fato social total”, cunhado
pelo sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss, que postula que “fatos
sociais totais, (...) mobilizam, (...) em certos casos, a totalidade da sociedade e de
suas instituições...” (p. 38). No entanto, parece que estas diferenças não seriam
suficientes para demarcar a existência de músicas, e sim para sinalizar as
inúmeras possibilidades da prática musical ou as distintas formas que a música
tem de se articular com outras atividades.
Para Molino, então, a música, ou o fato musical, não é constituída por um
só nível, mas por três dimensões: os processos de produção (poiesis), de
recepção (estesis) e pelo vestígio (a produção ou o nível imanente ou neutro). O
autor propõe que para se analisar “os fatos musicais”, não só a análise de sua
estrutura deve ser realizada, mas, também os referidos processos de produção e
de escuta dos mesmos. Assim se apresenta a Tripartição de Molino:

Consubstanciada na afirmação do musicoterapeuta norteamericano John


Pellitteri (2009, p. 53) que declara que “O significado é acompanhado pelo
afeto”, proponho que dois aspectos sejam entendidos: que uma música (ou uma
manifestação sonoro/rítmica em musicoterapia) tem significado quando está
ligada a um fato importante da vida da pessoa, a uma determinada situação
vivida, ou à outra pessoa e que, levando em consideração que este fato, situação
ou pessoa, carrega e acessa um afeto ou uma emoção vivida anteriomente, esta
vai ser revivida, pela memória afetiva, a cada vez que essa música/manifestação
sonoro/rítmica for ouvida, cantada, ou tocada.
Assim, um significado poderá ser positivo ou negativo, dependendo do tipo
de emoção que carrega (Barcellos, 2012b)229.
Dentre os muitos modelos existentes para representar as emoções positivas
e negativas proponho que se utilize o de Sloboda e Juslin, (2001), apresentado
pelo musicoterapeuta norte-americano John Pellitteri230 (2009, p. 36), que
consiste em uma abordagem que considera as dimensões de ativação e valência,
que vêm assim representadas:
Modelo multidimensional da representação emocional com exemplos
de emoções em cada quadrante.

Aqui valeria perguntar, ‘para falar de flores’ – ou de espinhos –, quem de


nós não fica marcada(o) para toda a vida — positiva ou negativamente — com a
música preferida de pessoas próximas? Ou, quem não se lembra imediatamente
de um paciente quando ouve a música por ele preferida? Quem não se recorda
dele quando toca a música por ele sempre cantada? Quantas vezes não
desligamos a aparelhagem que nos traz uma música que nos causa uma forte
emoção por termos perdido uma pessoa que tinha essa música como preferida?
Mas, ainda considero que existam significados múltiplos em música,
embora eu não tenha notícias de que algum autor a isto se refira. No entanto,
parto mais uma vez da minha experiência para discutir esse aspecto. Refiro-me,
aqui, a uma música que tem mais de um significado. Exemplificando: em uma
aula onde eu explicava a questão do significado e apresentava a canção Beatriz
como uma das músicas que têm significado para mim, ouvi de um aluno: ela
também é a minha preferida e, imediatamente falou sobre o significado dela para
ele. A partir de então, toda vez que escuto Beatriz, além de relembrar a situação
do Theatro Municipal, ainda me vem a imagem do aluno, no momento em que
ele declarou que ela também tem significado para ele. Ou seja: agora Beatriz traz
as pessoas presentes ao Municipal e a cena do aluno declarando que Beatriz
também tem significado para ele.
Ainda valeria se perguntar qual a importância dessas dimensões para um
estudo que tem por centro estudar o sentido e significado não só na música mas,
também na musicoterapia?

O significado em musicoterapia
Para Ruud, a questão do significado para a prática da musicoterapia é
fundamental e as intervenções musicoterapêuticas são baseadas nas experiências
musicais “e nas relações que se desenvolvem através delas como forças
dinâmicas de mudança” (2010, p. 61).
Um aspecto que interessa sobremaneira aos musicoterapeutas é a
declaração de Ruud (2010, p. 62), sobre o fato de o significado ser “relacional”,
isto é, “(...) de se conectar com outras partes de experiências passadas, presentes
e futuras”, como exemplificado anteriomente, através da visão de vários autores.
Para melhor se entender essa afirmação, parece pertinente se evocar a
questão do tríplice presente de Santo Agostinho que entende que o presente traz
o passado pela memória e o futuro pela expectativa. Através da música, pela
memória, pode-se trazer o passado. Deste modo, a música pode funcionar como
“uma chave capaz de reativar as experiências associadas à sua lembrança, lugar
e época” nas palavras de Levitin (2010, p. 187). O autor ainda afirma que “as
pistas mais exclusivas são as mais eficientes na evocação de lembranças” (p.
187).
Vale retornar-se à representação do Modelo Tripartido de Molino, em
música:

Partindo-se do pressuposto que “o paciente é o narrador musical de sua(s)


história(s)” (Barcellos, 2006), no processo musicoterapêutico ele é o autor de
uma produção, que deixará um vestígio. Vários sentidos chegarão ao
musicoterapeuta (como mostram as setas acima), partindo-se do fato que este
vestígio/música/manifestação sonoro/rítmica tem uma natureza polissêmica.
Assim, a tarefa do receptor (musicoterapeuta) é identificar e (re)construir um dos
muitos sentidos possíveis por ele recebidos. Isto só será possível a partir de uma
análise do vestígio, levando ainda em consideração tanto os processos de
produção (do paciente), tanto quanto as suas histórias, como os processos de
recepção (musicoterapeuta).
Introduzido na musicoterapia por Barcellos (1999a), este modelo seria
assim representado:

Deve-se sublinhar que esta possibilidade, tanto de atribuição de sentidos,


quanto de significado (pelo paciente), ou dos muitos sentidos recebidos pelo
musicoterapeuta, num processo ativo de (re)construção, é um dentre os muitos
aspectos que tornam a música um poderoso elemento terapêutico.
Os musicoterapeutas Barcellos e Santos (1996), no artigo antes referido,
abordam a questão da “apreensão de sentido/significado na audição” (p.16) –
que na musicoterapia, mais adequadamente, seria a (re)construção de sentido
pelo receptor ou pelo musicoterapeuta – representado pela seta pontilhada.
Deve-se ressaltar que numa sociedade são muitas as possibilidades de escuta,
(escuta aqui como (re)construção de sentido), mas não infinitas, pois a cultura
colocaria limites históricos que não podem ser ultrapassados. No entanto, cabe
ainda sinalizar que o musicoterapeuta reconstrói o significado que pode ter sido
atribuído/ construído pela narrativa do paciente.
Nattiez (1990b) considera que essa (re)construção de significado depende
da experiência vivida do receptor, ou ouvinte. Mas, como se afirmou acima,
deve-se enfatizar que não bastaria a análise do nível neutro para se (re)construir
o sentido da manifestação sonoro/musical ou da música do paciente. Em
musicoterapia é mandatório se levar em consideração os processos de produção
e as histórias de vida, clínica e sonoro/musical do paciente, que nos dão a
dimensão de quem é o autor desse vestígio. Aqui se tem a análise
musicoterapêutica (Barcellos, 1982, p. 1; 1994, p. 3 e 4; e 2004c, p. 108), que
difere da análise musical que inclui somente a análise da estrutura musical (o
nível neutro), à exceção da análise musical de Ruwet, preconizada pelo Modelo
Tripartido de Molino.
Em verdade, em musicoterapia não caberia uma análise musical
exclusivamente do nível neutro, ou da estrutura da música que, segundo Nattiez,
é descritiva, isto é, “descreve formas e estruturas” (2002, p. 16). Tampouco seria
possível (re)construir o sentido da produção de um paciente através de uma
análise musical estésica externa (ou poiética indutiva). Estas deveriam ser
acrescidas de uma análise poiética externa, para dar conta de uma (re)construção
de sentido mais consistente. Para Nattiez (1990b), a análise desses níveis é
explicativa. O autor refere-se, aqui, às diferentes famílias de análise dessa teoria
semiológica, utilizada segundo seis casos de figura, que ele apresenta231:

Mas, ainda com relação à polissemia, deve-se observar que Even Ruud traz
uma valiosa contribuição para o campo, afirmando que o impacto é uma das
funções primordiais da música, e que a sua natureza polissêmica pode “nos
forçar, algumas vezes, a nos abrirmos na direção de áreas não pesquisadas do
corpo e da consciência” (Ruud, 1990, p. 91). O autor ainda afirma que novas
categorias podem ser construídas a partir desse conhecimento ampliado,
combinado com pensamento e reflexão. Este conhecimento ampliado inclui não
somente aspectos relativos à mente e ao corpo, mas também um novo
conhecimento de nossa relação com outras instâncias, tais como com a natureza,
a comunidade social, cultural e universal; isto é, há uma experiência na qual a
música pode conduzir a mudanças pessoais. Embora nesta afirmação o autor não
se refira a pacientes como ouvintes, a polissemia constitui-se, na minha visão,
em algo de extrema importância para a terapia, já que pode causar também um
impacto que pode levar o paciente a mudanças pessoais ou, a uma abertura.
Aqui cabe, mais uma vez, a apresentação de uma cena clínica, agora para
ilustrar a questão do significado atribuído a uma situação rítmica/sonoro/cênica,
por uma paciente atendida por mim em consultório.
Cena clínica 24
A paciente como narradora sonoro/cênica de sua história e a interpretação
dessa narrativa, através da tripartição Molino/Nattiez.

História de vida e clínica da paciente


Marina foi a quarta filha de um casal com bom nível econômico e cultural,
e nasceu quando suas três irmãs tinham, respectivamente, 20, 19 e 17 anos. A
história de vida de Marina mescla-se com sua história clínica de uma forma
quase trágica. A menina nasceu em três de agosto de 1985, aos oito meses de
gestação, num parto por cesariana e, de acordo com a mãe, nasceu “arroxeada,
mas logo voltou ao normal” [sic]232.
Aos 20 dias de nascida, Marina apresentou um aumento significativo do
perímetro abdominal. Os exames clínicos realizados constataram a existência de
um neuroblastoma233 abdominal. Aos 22 dias de nascida a menina foi submetida
a uma cirurgia para a retirada do tumor e ficou internada, por dois meses,
inicialmente na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e, depois, na Enfermaria
do Instituto Nacional do Câncer no Rio de Janeiro – INCA. Durante este tempo,
Marina foi submetida à quimio e radioterapia.
Sabe-se dos efeitos colaterais que estes dois tipos de tratamento causam em
adultos. A partir disto, pode-se imaginar o sofrimento desta criança pois, além
dos efeitos do tratamento, ainda ficou separada da mãe nos primeiros meses de
vida. A mãe relata que ia ao hospital diariamente para amamentar a filha e que
não “aguentava mais ver o sofrimento do bebê” [sic].
Aos dois meses a menina teve alta do hospital, mas o seu desenvolvimento
em relação às etapas neuroevolutivas foi bastante prejudicado. A menina falou
aos quatro anos de idade e apresentou um atraso psicomotor. Foi colocada no
jardim de infância aos três anos e fez dois anos de psicoterapia.

História Sonora
A entrevista inicial foi feita com os pais da menina em março de 1992 e
com relação à história sonora, a mãe declarou que cantou músicas infantis e
populares para embalar a menina e que em casa ouvia muito música erudita.
Com relação à história sonora, a mãe relata que a criança tinha “horror a
barulhos”: não queria ir ao banheiro por causa do barulho da válvula do vaso
sanitário, e não utilizava secador de mãos (de ar quente) pelo mesmo motivo234.
A narrativa sonoro/cênica de Marina
Marina foi encaminhada à musicoterapia e seu atendimento começou em
abril de 1992, antes de completar sete anos de idade, tendo tido alta por
solicitação dos pais em dezembro de 1995, com 10 anos, quando, por orientação
do neurologista, foi encaminhada à fisioterapia, fonoaudiologia e
psicopedagogia235. Assim, além da escola, que ela frequentava em tempo
integral, ainda se dividia entre essas formas de terapia, sendo difícil encontrar
horário disponível para continuar na musicoterapia.
Mas o que se pretende ilustrar e discutir aqui é uma situação sonora
recorrente, que Marina trouxe durante muitas sessões. Contudo, antes de
descrever a situação, talvez seja pertinente ressaltar que, em musicoterapia,
além da utilização de música estruturada – através da audição, recriação,
improvisação e composição –, são admitidas manifestações rítmico/sonoras não
necessariamente ‘organizadas’. E vale observar a importância da utilização
destas, como aqui pode se perceber.
Voltando-se aos registros das sessões se lê, sempre, no início: “Marina
entra na sala, dirige-se ao armário e joga, de forma ruidosa, todos os
instrumentos no chão. Depois Marina faz outras atividades, como cantar, tocar
instrumentos ou dançar”. Descrita de diferentes formas, esta situação era
recorrente e se prolongou por muitas sessões.
Mandam os cânones de qualquer tipo de terapia que limites sejam
colocados quando ocorrer uma transgressão – neste caso, com relação ao
material da sala –, atitude que era cobrada pelo estagiário/coterapeuta, ao final
de cada sessão. E caberia uma crítica a mim, como musicoterapeuta, por não
considerar adequado colocar o limite, ‘sentindo’ que a paciente ‘queria dizer
alguma coisa’ através daquela situação. No entanto, essa justificativa não seria
suficiente para a não colocação de limites, principalmente por tratarse de algo
que decorria exclusivamente da minha intuição. Mas, eu considerava
fundamental para esse processo musicoterapêutico, entender o quê a paciente
queria dizer com essa manifestação.
Cabe pensar no(s) ‘vestígio(s)’ deixado(s) por Marina quando acabava de
jogar todos os instrumentos para fora do armário: o visual e o sonoro. O visual –
o chão da sala coberto por toda espécie de instrumentos de percussão e de sopro
de médio e pequeno portes: pandeiros pequenos e grandes, chocalhos,
metalofone, celestin, paus-de-chuva de vários tamanhos, tambores, tambor de
fenda, caixixis, afoxês, xequerê, e muitos mais. Este vestígio visual não é
considerado por Jean Jacques Nattiez, estudioso do Modelo Tripartido de Jean
Molino, porque o Modelo foi pensado para a música. Contudo, em
musicoterapia, todas as manifestações sonoro/musicais, de movimentação
corporal ou dança, e ainda as cênicas, devem ser valorizadas e são importantes
por complementarem o sonoro porque permanecem na cena. O segundo vestígio
era o sonoro/auditivo, que permaneceu gravado em fita cassete e na nossa
memória.
Havia uma única proposta da musicoterapeuta, aceita e respeitada pela
paciente: os violões e o teclado eletrônico não seriam jogados ao chão. Eram
retirados antes. Mas, fora estes, o armário ficava vazio após todos os
instrumentos terem sido jogados. Como havia instrumentos de vários tamanhos
e pesos, quando a paciente os jogava, os mais pesados caíam perto das portas
do armário e os mais leves ficavam no chão quase até o fim da sala.
Uma constelação de sentidos possíveis poderia estar sendo atribuída pela
paciente a esta situação e comunicada aos terapeutas, mas caberia a eles
(re)construirem um sentido plausível (repetindo: um único sentido se configura
como significado). “A narrativa do paciente sobre a sua doença nem sempre
mostra o sentido diretamente; este é demonstrado pela recriação de padrões
(...)”, afirma Aldridge, (2000, p. 5).
Assim, a paciente poderia estar comunicando um sentimento de raiva;
poderia estar testando a musicoterapeuta, no sentido de saber qual seria a sua
reação; ou poderia estar querendo quebrar os instrumentos. Mas, por quê?
Para se chegar a um significado, muitas intervenções verbais interrogativas,
relacionadas às hipóteses acima pensadas foram feitas, cantadas e faladas, às
quais Marina respondia sempre negativamente.
As fitas cassete gravadas nas sessões eram ouvidas repetidas vezes pela
musicoterapeuta e pelo coterapeuta, que refletiam sobre os vestígios deixados: o
caos visual e o caos sonoro. O caos sonoro trazia à memória dos terapeutas o
caos visual e vice-versa. Na recorrência da audição, a recepção deste caos
sonoro levava a se pensar sobre os estágios da situação. A paciente:

1 – abre as portas do armário;
2 – joga os instrumentos para fora, de uma forma completamente
desorganizada; e
3 – deixa os instrumentos espalhados pela sala.

O que isto tem a ver com a história da paciente? O que ela estará querendo
dizer, consciente ou inconscientemente? Qual significado estará atribuindo à
situação?
Embora a musicoterapeuta ainda não tivesse um estudo mais aprofundado
do Método de Análise Semiológica236 Tripartite de Molino e Nattiez, pode-se
perceber que as análises feitas à época do atendimento de Marina são com ele
compatíveis, podendo-se aqui sistematizar essa utilização para a análise da
manifestação sonoro/musical de pacientes, por ser este o método que considero o
mais adequado para ser empregado em musicoterapia.
Considerando-se que “o vestígio material não é em si portador de
significações imediatamente legíveis”, como afirma Sampaio (2003, p. 51),
citando Nattiez, três são os tipos de objetos do programa semiológico e três são
as análises “que tentam enfeixar a especificidade simbólica: a análise poiética, a
estésica237 e a das configurações imanentes da obra (do seu vestígio) [...] que é
uma realidade material amorfa até que o significado seja capturado pela análise
do nível neutro”, (p. 51-52) ou dos três níveis do Modelo.
O procedimento preconizado pelo Método recomenda que a análise
comece pela estrutura imanente ou nível neutro (os vestígios que foram deixados
aqui, pela paciente). Assim, inicialmente, deverse-ia fazer uma análise da
manifestação sonoro/cênica da situação clínica aqui apresentada: o vestígio
sonoro era constituído por timbres diversos, ritmos aleatórios e irregulares, e
intensidades as mais variadas possíveis. Estes aspectos eram recorrentes: o
resultado sonoro poderia ser visto sempre como caótico; o ritmo era sempre
irregular; e o timbre era sempre variado. Percebe-se que existe uma ação
repetida, que resulta na repetição de aspectos rítmicos, sonoros e cênicos, que
podem ser considerados como “unidades constitutivas repetidas e transformadas
no decorrer do texto musical (Sampaio, 2002)”, o que caracteriza uma
adequação da ‘análise paradigmática’ do belga Nicolas Ruwet, levando em
conta, no contexto musicoterápico, também as manifestações sonoro-rítmico-
cênicas, como ‘texto musical’.
Explicando: dos muitos métodos de análise musical existentes, proponho e
faço uma adequação do acima citado – que utiliza a análise paradigmática de
Ruwet – para que seja empregado para a análise da ‘música’ dos pacientes, em
musicoterapia, por considerar o método mais adequado para este fim por se
basear nas recorrências, sejam elas musicais, cênicas ou corporais. Ainda
esclareço que quando faço menção às recorrências musicais, refiro-me a
qualquer manifestação rítmica, sonora, melódica, harmônica, tímbrica, cênica ou
corporal.
A recorrência da audição das fitas configurava-se como as análises
estésicas indutiva e externa, (sobre como eram ‘escutados’ pelos
musicoterapeutas aqueles vestígios que, ‘isolados’ não eram suficientes para a
(re)construção do significado).
Uma hipótese foi tomando forma a partir do momento em que se incluiu o
processo de produção, ou a análise poiética, considerada por Nattiez (2002)
como interpretativa, porque “atribui uma pertinência a um fenômeno das
estruturas que ela interpreta poieticamente” (p. 30). Assim, as relações entre os
três níveis trouxeram a possibilidade da compreensão do ocorrido, corroborando
o pensamento de Nattiez, citado por Sampaio (2002), que afirma que

Idas e vindas podem se instaurar entre a poiética indutiva e a


poiética externa. (...) A análise poiética indutiva propõe uma
análise das estratégias composicionais a partir das observações
fornecidas pela análise do nível neutro ou a partir da partitura. A
análise poiética externa projeta informações externas (dadas
pelos esboços, correspondência, propostas do compositor etc.)
sobre a partitura ou sobre a análise do nível neutro (p. 55).

Em musicoterapia, as histórias do paciente e o processo poiético, os


processos de (re)produção ou (o contexto e a situação) são as informações
externas que devem ser levadas em consideração.
Na cena em pauta, algumas perguntas e respostas foram feitas sobre as
informações externas: “Qual é a história dessa paciente”? “Quem é essa
paciente”? – Uma menina que nasceu com um neuroblastoma. “Existe uma
forma mais desorganizada de alguém nascer do que com um câncer”? “Como
foram os primeiros meses de vida dessa paciente”? – Traumáticos no nível do
suportável.
No momento em que começamos a responder as perguntas que nós
mesmos fizéramos, muitos foram os sentidos pensados mas, nenhum tomava
forma, ou seja, não havia evidências que fosse nenhum dos pensados. Mas a
desorganização com que a paciente retirava os instrumentos do armário e a
desorganização sonoro/cênica nos levaram a uma nova hipótese: “Marina não
poderia estar mostrando como havia nascido”?
Houve a necessidade de muitas idas e vindas entre a poiética indutiva e a
externa, e as relações entre esses níveis começavam a dar forma a esse sentido.
Estaria Marina mostrando ou narrando de forma cênica e sonora como havia
nascido? Pensou-se que, se este sentido atribuído fosse o correto, a paciente
tentaria entrar no armário, depois de jogar todos os instrumentos para fora, para
refazer, de forma mais organizada, o seu nascimento. Mas os terapeutas
precisariam ter uma indicação de que o significado (ou sentido, em psicanálise)
que estava tomando forma e sendo construído seria o correto.
Algum tempo depois, Marina entrou no armário e pediu para o estagiário
fechar as portas, o que não foi possível devido aos instrumentos caídos à frente
das mesmas. A musicoterapeuta pensou que a maior oportunidade havia sido
desperdiçada e não acreditou que isto pudesse acontecer mais uma vez. No
entanto, havia um novo vestígio a ser considerado: a entrada da paciente no
armário, o que poderia confirmar a hipótese anteriormente pensada de que a
paciente deveria reviver o seu nascimento de uma forma menos traumática. A
partir de então, decidimos que cada instrumento que caisse em frente às portas
dos armários seria por nós colocado em outro lugar da sala para dar espaço ao
fechamento das mesmas, caso a paciente tentasse entrar no armário mais uma
vez e quisesse fechá-las.
Algumas sessões depois, a paciente voltou a entrar na prateleira que ficava
a uns 0,60 cm. do chão, encolhida para caber nela, e gritou: “Vem Rejane, fecha
a porta, Nilson!”238 Imediatamente, também encolhida, entrei na prateleira que
ficava a 0,05 cm. do chão, portanto, abaixo da prateleira onde estava a paciente,
e o estagiário fechou a porta. Com a hipótese do significado por nós
(re)construído quase confirmada, pensei no que fazer sonoramente, naquela
situação. Partindo da hipótese levantada anteriormente, comecei a fazer, com a
mão fechada, o ritmo do batimento cardíaco na parte inferior da prateleira onde
Marina estava deitada, encolhida. Ficamos assim por algum tempo e depois a
menina gritou: “Abre a porta, Nilson, e ajuda a gente a sair daqui!” O estagiário
abriu as portas, eu saí imediatamente e nós dois tiramos a paciente, no colo, de
dentro do armário.
Contudo, ainda não estávamos certos de que este seria o verdadeiro
significado. Devíamos esperar a sessão seguinte para saber o que ocorreria.
Nessa sessão a paciente entrou, dirigiu-se ao armário, pediu que o estagiário
trouxesse uma pequena mesa que estava no fundo da sala, abriu as portas do
armário e começou a pegar instrumento por instrumento e a colocá-los sobre a
mesa, dizendo: “Vamos, Nilson, ajuda a gente a arrumar a sala!” A partir de
então, Marina continuou a cantar e improvisar como fazia sempre, mas não
jogou mais os instrumentos para fora do armário.
Embora a paciente também cantasse, anteriormente, fazendo
improvisações com letra e com melodia claramente identificáveis,
provavelmente estes sons não eram suficientes para expressar a sua
desorganização, e ela precisou recorrer a ruídos, embora de instrumentos
musicais convencionais, que eram os únicos à sua disposição, para narrar a sua
história239.
O aspecto recorrente da narrativa estava centrado na ação de jogar os
instrumentos para fora do armário, o que se transformava no vestígio central
sonoro/cênico/visual de suas sessões. No registro de uma das sessões, lê-se:
“ouvindo-se a gravação após a sessão, o co-terapeuta faz uma observação ao
ouvir o som dos instrumentos sendo jogados do armário: esse é o som dela!”
Aqui, a manifestação sonoro/visual, através da qual Marina se expressou
narrando a história de seu nascimento (e muitas outras, dentro de seu processo
terapêutico), é uma metáfora auditivo/visual: um fenômeno expressando outro.
“As metáforas são mais bem entendidas dentro da ampla estrutura da
narrativa. A narrativa é uma forma específica de construir ou configurar
episódios de vida (...) tal como uma história ou biografia”, afirma o musicólogo
dinamarquês Lars Ole Bonde (s. d., p. 2).
Esta configuração é considerada pelo autor como um mecanismo básico da
narrativa mimética – que, em terapia, é a história do paciente contada por ele
mesmo, sua vida e problemas quando a terapia começa –, que é submetida a
ações e transformações. Pode-se começar a entender o paciente-protagonista da
narrativa seguindo o seu caminho através dos episódios das sessões, cada um
com seus desafios, escolhas, falhas e vitórias, e se perguntar, a partir daí, se
nessa ação ele é um protagonista herói, vilão, ou vítima. A história pode ser
contada de diversas maneiras, mas tem de ser reconfigurada para se tornar
compreensível.
Pode-se perceber que as questões colocadas em movimento, contadas e
recontadas por Marina, como protagonista, acabaram se transformando sem a
necessidade de serem traduzidas em palavras, pois a paciente mostrou ter uma
compreensão do ocorrido, consciente ou inconscientemente.
A apresentação desta cena clínica teve por objetivo aprofundar tanto os
estudos teóricos sobre o significado, quanto ilustrar, na prática clínica, a
adequação do Modelo Tripartido Molino-Nattiez, como modelo teórico de
fundamentação da musicoterapia, bem como a análise paradigmática de
Ruwet240, que se vale das recorrências, para analisar a (re)produção musical dos
pacientes em musicoterapia.
Deve-se ressaltar que embora muitos exemplos da prática clínica que
trazem músicas, canções ou improvisações pudessem ser aqui apresentados,
decidi pela escolha de um cuja expressão é sonoro-rítmica e cênica, exatamente
pela dificuldade de (re)construção de significado.
Com este exemplo clínico pode-se perceber que várias assertivas de Henk
Smeijsters (1999) são aqui confirmadas. Afirma o musicoterapeuta holandês: “A
hipótese fundamental da musicoterapia, em minha opinião, é que tocar, cantar e
ouvir música ‘re-soa’ o mundo interno da pessoa que toca, canta ou escuta. Na
música, o cliente se expressa como uma pessoa” (1999, p. 284). Para o corpo
teórico da musicoterapia, em construção, é básico entenderse que há uma
correspondência entre as experiências internas e as expressões observáveis do
paciente.
Assim como cada artista tem aspectos específicos de sua arte,
caracterizando um estilo próprio, um musicoterapeuta que observe e tenha uma
escuta cuidadosa de seu paciente poderá, guardandose as devidas proporções,
encontrar expressões características a partir das quais ele poderá inferir as
experiências internas do paciente. Estas expressões características apresentam-se
como padrões recorrentes que, em terapia, muitas vezes podem resultar de
aspectos patológicos, como, por exemplo, as estereotipias sonoras de um
paciente autista.
Na concepção de Smeijsters, um dos aspectos mais importantes para a
musicoterapia é o conceito de intermodalidade (crossmodality)241 (1999, p. 286–
287), que faz parte da teoria do norteamericano Daniel Stern, estudioso da
psicologia da interação mãe-bebê. Pode-se, aqui, fazer uma relação da
intermodalidade de Stern com a polidiscursividade242 da ópera, levantada pelo
musicólogo finlandês Eero Tarasti (1994) e que pode ser vista como de extrema
importância em musicoterapia. Esta importância reside no fato de em
musicoterapia existir a possibilidade de polidiscursividade, o que torna possível
que terapeuta e paciente exerçam a intermodalidade apontada por Stern e vista
por Smeijsters (1999) como um dos conceitos de extrema relevância para a
musicoterapia.
As expressões no espaço da música são vivenciadas e interpretadas como
expressões da psique. Através da música, o paciente mostra como se sente, e
expressa, narra seu mundo interno; e o musicoterapeuta apoia o paciente para
colocar-se e explorar as possibilidades de mudança na música, já que estas
mudanças se constituem como o objetivo de qualquer terapia. Para Smeijsters,
existe uma premissa da musicoterapia: “(...) um paciente muda quando sua
música muda” (1999, p. 289). E, percebe-se a importância que a intermodalidade
pode ter para provocar, ou insinuar/instigar essa mudança.
Com relação à narrativa, Stige (2002a) afirma que “Sentidos, entendidos
como relações constituídas por agentes sociais interagindo em contextos
culturais, estão intimamente relacionados a narrativas, isto é, ao tempo humano
organizado em ‘histórias’” (2002, p. 55).
Se refletirmos sobre o exemplo clínico aqui apresentado, podemos afirmar
que a mudança da expressão sonoro/corporal/cênica de Marina, inicialmente
apresentando a narrativa de uma situação vivida em seus primeiros momentos
de vida e modificada a partir da compreensão e do apoio dos musicoterapeutas,
pode traduzir a mudança da dinâmica intrapsíquica da paciente.
Para Aldridge (2002),

Narrativas são o recontar do que acontece no tempo. Elas não


estão simplesmente localizadas no passado, mas são também
sobre os eventos reais que acontecem agora e sobre as
expectativas que existem para o futuro. De forma semelhante, as
narrativas musicais ocorrem no tempo. O narrador, ou o
intérprete da narrativa, é um agente ativo. Ele não está
passivamente vivenciando o seu passado, mas interpretando uma
identidade com outra pessoa (o terapeuta). (...) As narrativas são
performed – literalmente produzem forma. Este aspecto da
performance é que dá uma vitalidade narrativa e nos informa,
como ouvintes, aquilo a que devemos prestar atenção. É a
compreensão da forma, e a maneira como as formas mudam, que
nos dará mais informações sobre a maneira como a
musicoterapia ajuda nossos pacientes a interpretarem as suas
vidas de outra maneira (p. 14 e 15).

Assim, pode-se considerar que a música é o veículo através do qual o


paciente pode interpretar a(s) sua(s) história(s), utilizando-se da narrativa como
um meio de autotransformação, como afirma o musicólogo dinamarquês, Lars
Ole Bonde. (s.d.).

A ressignificação
Há alguns anos foi incluída no Curso de Musicoterapia do CBM-CEU,
uma disciplina denominada Música em Musicoterapia, por mim ministrada, que
tem dentre os tópicos do programa a análise musical e a ampliação desta, que
denomino “análise musicoterapêutica”243por aproximação. Para introduzir o
tema, solicito aos alunos que escolham uma música simples para que façam uma
análise musical em aula e depois é feita uma análise musicoterapêutica,
possibilitada pela resposta dada à solicitação de uma justificativa para a escolha
da referida música.

De negativa para positiva


A primeira aluna a apresentar a sua análise no ano de 2012, que aqui será
Luciana, trouxe “Mãezinha querida”244. A aluna apresentou a análise e passou a
relatar por que havia escolhido essa música, o que será aqui reproduzido
resumidamente, a partir do depoimento dado apresentado por ela, por escrito
(2012).
Luciana começa dizendo que o trabalho proporcionou o resgate de
memória da música que estava no “arquivo morto”245. Na sua apresentação oral
passou a relatar, visivelmente emocionada, que quando tinha seis anos participou
da preparação da sua turma da escola, para uma apresentação musical no Dia das
Mães, que incluía a música “Mãezinha querida”. Mas, quando chegou esse dia,
sua mãe “confundiu o horário” e se atrasou. Assim, quando chegaram à escola, a
turma de Luciana já havia se apresentado. Isto deixou Luciana sem se alimentar
e sem brincar por muitos dias, só desenhando o tempo todo. Luciana relata:
“durante muito tempo eu detestei essa música pelas lembranças dessa frustração
da festa da escola”.
Mais tarde, já mãe de um menino de dois anos, Luciana foi à festa do Dia
das Mães na creche que o filho frequentava, e a canção cantada pela turma dele
foi exatamente a mesma. A aluna então conta que “só depois de muitos anos
voltei a tolerar essa música (talvez até gostar, não tenho certeza se gosto, apenas
não odeio mais)”...
Aqui se tem um exemplo de ressignificação de um significado negativo
para positivo, isto é, a emoção negativa é substituída por uma emoção positiva, a
partir do momento em que um fato novo muda essa emoção.

De positiva para negativa


Mas, o inverso também é verdadeiro. No momento em que discutíamos o
que havia acontecido com Luciana, outra aluna, Thalyta246, perguntou se uma
música podia ter dois significados, e passou a relatar que a mãe dela gosta muito
de “Jesus alegria dos homens”247 e sempre dizia que queria que a menina tocasse
essa música para ela, no violino. Assim, desde pequena a menina começou a
gostar muito da música e quando começou a estudar violino teve por meta tocar
a música para a mãe. Um dia, depois de muito estudar, a menina chamou a mãe e
tocou para ela.
Em 2011, Thalyta se inscreveu para a prova de Bacharelado em violino
para uma das universidades do Rio de Janeiro, e uma das músicas que escolheu
para tocar foi “Jesus alegria dos homens”, sem perceber que esta não era do
nível requerido para aquele teste. O investimento de Thalyta foi muito grande
para se submeter a essa prova. No entanto, no momento do teste, logo depois de
ter começado a tocar, um dos professores da banca a interrompeu e disse que ela
não precisava continuar. Nem mesmo permitiu que ela tocasse as outras músicas,
solicitadas pelos outros dois professores. Thalyta foi desclassificada. E, até hoje,
nunca mais conseguiu tocar “Jesus alegria dos homens”! Thalyta finaliza
relatando: “alguma coisa dentro de mim me trava”.
Sem dúvida, aqui temos um caso de ressignificação, de significado
positivo para negativo. A emoção positiva, que acompanha a primeira situação,
transforma-se em uma emoção negativa, resultante do fato relatado.
Num texto importante e poeticamente construído, Chagas e Pedro (2008)
se referem à questão da arte, numa visão de Jacques Deleuze e Felix Guattari,
fazendo afirmações que vão se revelando pouco a pouco e se transformando em
joias sendo retiradas de uma também preciosa caixa. Ao mesmo tempo vão
urdindo fios e tecendo uma trama, articulando isto com a musicoterapia.
Considero que este texto deve ser lido integralmente e desconstruí-lo seria
quebrar a sua unidade mas, através dele, as autoras mostram, com muita
propriedade, a importância da arte e a potência da música.
Como ratificando os dois momentos em que as alunas ressignificaram as
situações vividas, Chagas e Pedro declaram que “Essa expansão, provocada pela
arte, faz do afecto248 não a passagem de um estado vivido a outro, mas, o
despertar da possibilidade de uma nova vivência” (2008, p. 13).
E, ainda se referindo à arte, e à música em especial, através do olhar de
Deleuze e Guattari, afirmam que esta

Não celebra algo que se passou, mas transmite para o futuro as


sensações persistentes que encarnam o acontecimento. Não se
prende às marcas e dores da falta e das experiências passadas;
mesmo revivendoas, temos a chance de reinventá-las, de
encontrar outras formas de experimentá-las. Mais do que isso,
traduzindo-as pela arte, encontraremos novos e novos sentidos,
produziremos outras experimentações, encontraremos outras
formas de produção de subjetividades que podemos singularizar
(2008, p. 13,14).

A partir da leitura desta citação pode-se dizer que por isto, e por muito
mais, a música é este potente elemento terapêutico.

A ressignificação em musicoterapia
A partir dos relatos das alunas da disciplina de Música em Musicoterapia
pode-se entender melhor a questão da ressignificação que, como a palavra
sugere, é a possibilidade de dar-se um novo significado, a partir da música, ou
passar a pensar de outra forma, sobre uma mesma situação, um mesmo fato ou
uma mesma pessoa. No caso de um processo terapêutico, passar a pensar de uma
outra forma sobre uma mesma música que está ligada a um fato, situação ou
pessoa e que carrega uma emoção a estes ligada, pode ser a possibilidade de
ressignificar estes fatos, situações ou, ainda, relações com as pessoas ligadas a
essa música.
Também o exemplo das alunas está claro no que concerne à valência da
emoção: de significado negativo para positivo e de positivo para negativo
quando um fato, uma pessoa ou situação que tenha uma valência mais potente,
dê um novo significado à música.
Muitas pessoas, em geral leigas, pensam equivocadamente que o papel da
terapia é fazer com que os pacientes saiam da sessão sempre felizes. Sobre isto,
Pellitteri se manifesta de uma forma muito contundente afirmando que “Fazer o
cliente se sentir melhor alterando o seu humor para que ele se sinta ‘feliz’ pode,
realmente, ser superficial e ineficaz” (2009, p. 33).
Nesta mesma direção se manifesta o casal Aldridge, discutindo a questão
das emoções negativas em musicoterapia. Para eles, “as emoções negativas
como a ansiedade podem ser evocadas pela música (uma emoção estética), mas
têm que ser distinguidas da ansiedade causada por situações na vida real” (2008,
p. 39). E, utilizando as palavras de Levinson declaram que “Uma resposta
emocional negativa à música é desejável porque conduz à saúde mental; é
seguro” (p. 39).
Aqui parece pertinente referir-me ao que escrevi sobre utilizar músicas, ou
experiências musicais previsíveis, como a re-criação musical, para pacientes em
risco emocional como mães de bebês prematuros, pela imprevisibilidade da
situação destes bebês, ou seja, a música previsível para trazer conforto e
acolhimento a estas mães (Barcellos, 2004a). Por outro lado, utilizar músicas
imprevisíveis, musicalmente falando, ou experiências musicais que carreguem
em seu bojo a imprevisibilidade musical como a improvisação e a composição,
para pacientes com enfermidades crônicas como a doença renal crônica, para que
eles possam se lançar numa atividade de imprevisibilidade, na música, sem
riscos e com segurança, seria recomendável (Barcellos, 2010a). Mas, não se
deve esquecer “as novas avenida musicais” de Collin Lee!

Breve Discussão
Para alimentar esta discussão valho-me de uma situação relatada por uma
grande amiga, embora sabendo que os cânones de redação de trabalhos
científicos não considerem esta conduta adequada para um item de discussão.
Maria, como será chamada, tem uma formação pianística, mestrado e
doutorado em música, o que nos indica que se trata de pessoa que tem razoável
compreensão da questão que está sendo aqui abordada: o significado da
música. Transita pela musicoterapia e até discute algumas questões desde a sua
formação em música — como conhecedora da Teoria da Música —, e a partir da
proximidade que tem com alguns musicoterapeutas.
Em um determinado momento de sua vida, Maria precisou se submeter a
um tratamento de quimioterapia. Orientada pelo médico que a tratou que a
primeira sessão poderia se estender mais do que o previsto, dependendo da
resposta do seu organismo, Maria se preparou cuidadosamente. Na véspera do
dia marcado para a primeira sessão, Maria escolheu a comida e bebida a serem
levadas, conforme a orientação do médico.
Mas, a partir da informação que a sessão poderia ser longa, Maria pensou
que talvez devesse levar também algumas músicas de sua preferência, como
companhia. Na verdade, escolheu aquelas que mais haviam lhe acompanhado
pela vida afora: com significados, porque havia tocado, ou por outros motivos.
Assim, no dia marcado para a primeira sessão, Maria levava consigo comida
para matar a fome do corpo e da alma, para minimamente suprir as
necessidades físicas e emocionais.
No dia da sessão, depois de terminados os primeiros procedimentos e
quando os enfermeiros se afastaram, Maria pegou seu ‘walkman’ e escolheu
cuidadosamente um dos CDs. Logo que a música começou, Maria se sentiu
estranha e não conseguiu ouvir nem a primeira peça musical. Imediatamente
desligou o ‘walkman’ e guardou tudo, sem ouvir nada, mesmo sem saber por que
não queria ouvir. Quatro horas depois de começada a quimio, Maria teve um
episódio alérgico que fez com que a sessão a mantivesse no hospital por oito
longas horas. Ainda assim, Maria não quis ouvir música e relatou que não sabia
responder sobre o que se passou com ela para não querer escutar nada.
Muito tempo depois, voltei a conversar com Maria sobre esse episódio. Na
sua narrativa, Maria explicou que só o distanciamento posterior possibilitou
que ela entendesse o ocorrido. Embora Maria não tivesse consciência no
momento do acontecimento, um tempo depois relatou que só então pôde
perceber que a música ouvida durante a sessão de quimio ficaria
inexoravelmente ligada a um momento que trazia em si uma emoção negativa,
ou seja, carregaria um significado negativo, que ela atribuiria ao momento no
qual a música estaria presente.
Só agora, relatou Maria, podia perceber que queria ‘preservar’ a sua
música preferida e com significado, e por isso carregada de emoções positivas,
resultando em um significado positivo, por ela atribuído.
Maria ficou curada e ainda hoje escuta suas músicas preferidas que têm
para ela um significado positivo, que não foram ressignificadas no momento da
quimio para um significado negativo, mantendo o significado positivo que
sempre tiveram. Essa narrativa emocionada de Maria, e a afirmação de que
suas músicas que tinham um significado positivo tiveram esse significado
preservado, levaram-me a levantar algumas questões que ainda não vi
discutidas na literatura de musicoterapia:

sempre as músicas preferidas de um paciente, ou que têm significado,


devem ser utilizadas?
é possível uma generalização ampla e irrestrita nesse sentido?
nós, musicoterapeutas, já refletimos sobre a hipótese de que o que Maria
relata pode acontecer com nossos pacientes, mesmo que não sejam músicos,
ou não tenham consciência e/ou não possam nomear aquilo que lhes
acontece com relação à música?
só um músico tem músicas preferidas? Só músicos atribuem significados às
suas músicas? Evidentemente, não. A atribuição de significado independe
de se ter ou não, formação musical.
Aquele que não tem formação musical só não tem acesso à nomenclatura
mas, nós, musicoterapeutas estamos acostumados a ver pacientes começarem a
chorar ao ouvir determinadas músicas que lhes trazem à memória situações que
vêm ‘atreladas’ a emoções ‘ruins’: ‘significado negativo’ e, também, muitos, ao
ouvirem uma determinada música dizem se sentir muito bem e relatam que essa
música desencadeia emoções boas: ‘significado positivo’. Quando isto acontece
é frequente que as pessoas relatem as situações que as fazem se sentir bem ou
mal com as referidas músicas .
Enfim, considero que os aspectos aqui levantados devem ser objeto de
reflexão por parte dos musicoterapeutas clínicos que estão em práticas em
contextos como o que Maria teve necessidade de frequentar e, também, por
aqueles que são responsáveis pela formação de outros musicoterapeutas.

Considerações finais
Assim, entendo que a música, quando bem utilizada, é um meio
absolutamente eficaz para ressignificar fatos, situações ou relações, e utilizo o
que a socióloga britânica Tia DeNora, que tem uma estreita ligação com a
musicoterapia249, afirma: “uma das metáforas mais comuns para a experiência
musical na cultura Ocidental pós-século XIX é a metáfora de ‘transporte’, no
sentido em que a música pode nos carregar de um lugar (emocional) a outro”
(2000, p. 7). Essa afirmação de De Nora refere-se à ressignificação de situações
negativas para positivas. No entanto, a narrativa de Maria traz evidências de que
o oposto também é possível o que, a meu ver, apontaria para uma situação de
“iatrogenia musical”.
E eu acrescentaria que, ainda através da música, os pacientes podem, além
de expressar, também atualizar e/ou ressignificar conteúdos, que deveriam ser
sem riscos, cabendo ao musicoterapeuta entender qual o momento, com que
música, enfim, em que situação isto aconteceria. Por isso, a necessidade da
formação do musicoterapeuta e do conhecimento musical.
Concordo com Fiorini que considera que a criatividade é “o coração da
clínica” (1995, p. 20) e que há que se levar os pacientes à criação de um novo
discurso, organizador de “novas tramas de sentido” (p. 20), o que, certamente,
pode ser possibilitado pela natureza polissêmica da música e pelas possibilidades
da utilização de várias técnicas além da audição e recriação musicais: a
improvisação e composição musicais!
Sobre A Técnica Provocativa Musical em
Musicoterapia.
SOBRE A TÉCNICA PROVOCATIVA MUSICAL EM
MUSICOTERAPIA.

Introdução
Iniciei a prática clínica de musicoterapia em 1973, na Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação – ABBR, ainda como aluna/estagiária.
Embora essa instituição trate especialmente de problemas motores advindos de
enfermidades neurológicas, acidentes vasculares cerebrais ou traumas
raquimedulares, à época era comum se receber crianças com o hoje denominado
Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Sabe-se que a dificuldade de comunicação com essas crianças mobiliza
profundamente os terapeutas que com elas trabalham, principalmente os que
começam a sua caminhada profissional.
À época, as técnicas de audição, recriação, improvisação e composição já
eram por nós utilizadas, pois já tinham sido apresentadas pelas professoras de
musicoterapia Doris Hoyer de Carvalho e Gabriele Souza e Silva, e já estavam
descritas no Tratado de Musicoterapia de Thayer y Gaston (1968)250, só sendo
denominadas por Bruscia, em 1991251.
No entanto, era necessário buscar novos caminhos para tentar capturar os
pacientes autistas e engajá-los ou comprometê-los na atividade de “fazer
música”, a fim de facilitar a comunicação e tentar a construção do vínculo,
aspecto que, em se tratando de autismo, constitui-se como o centro do problema
e essencial para o desenvolvimento do processo terapêutico. Especialmente com
pacientes mais graves era fundamental a criatividade para se conseguir, às vezes,
uma pequena resposta como um gesto, um olhar ou um leve sorriso. Vinda de
um autista clássico252, qualquer manifestação era considerada importante.
Nessa busca acabei abrindo uma nova avenida musical253, que foi sendo
utilizada com certa frequência, por perceber que esta me levava a obter
respostas, e mais rapidamente. Como tenho registros escritos de todas as sessões,
de todos os pacientes que atendi desde quando era estagiária, voltei a esse
material para melhor estudar o tema. Revisitando esses relatórios percebi que há
uma recorrência na utilização dessa nova avenida e que, à medida que vão
aparecendo os resultados, surge uma intenção no seu uso, mesmo que ainda sem
uma denominação específica, uma explicação ou fundamentação da mesma,
aspectos responsáveis por ela só ter sido apresentada 29 anos depois de ter
começado a ser utilizada.
Só em 2005 é que consegui compreender por que esta nova avenida trazia
resultados e como este emprego poderia ser fundamentado, quando fui aluna da
disciplina de Música e Semiologia, ministrada pelo musicólogo francês Jean-
Jacques Nattiez254.

Sobre técnica
Técnica é um conjunto de processos e recursos práticos de que se serve
uma especialidade. Em musicoterapia é como o musicoterapeuta utiliza a parte
material, prática, para trabalhar com o paciente, interagindo ou intervindo, na
prática clínica e/ou terapêutica255.
O que aqui é denominado técnica é, para Bruscia, método. Assim, os
métodos por ele descritos, audição, recriação, improvisação e composição
musical, na verdade entendo como técnicas e se deve deixar claro que são
sempre utilizadas pelo musicoterapeuta.
Mas, para apresentar algo novo, considerei que devia fazer um estudo do
que já estava publicado, verificando denominações e formas de atuar, para
conferir se esta nova avenida que eu vinha utilizando era original. Assim, antes
de denominar essa técnica recorri ao estudo que Bruscia faz no Improvisational
Models of Music Therapy (Modelos de Improvisação de Musicoterapia), ou seja,
uma taxonomia de 64 técnicas256, agrupadas em nove grandes grupos, abrindo
cada um deles em várias possibilidades, totalizando as 64 técnicas. Contudo, no
referido texto o autor não se refere a nada relacionado a esse novo caminho que
estou propondo, nem é apresentada nem uma denominação próxima à por mim
escolhida. Os grupos aí apresentados são:

1. Técnicas de Empatia
2. Técnicas Estruturantes
3. Técnicas de Intimidade
4. Técnicas para Eliciamento (mobilização)
5. Técnicas de Redirecionamento
6. Técnicas de Procedimento
7. Técnicas Referenciais
8. Técnicas de Exploração Emocional
9. Técnicas de Discussão.

Certa de que estava apresentando algo ainda não referido em


musicoterapia, passei ao estudo dos principais aspectos da técnica mencionada.
Mas, fiquei surpresa quando, ao descrevê-la, ouvi revelações de muitos
musicoterapeutas que mencionavam já ter utilizado muito esta forma de
trabalhar. No entanto, esta não só não foi objeto de estudo pelas referidas
pessoas, ou seja, ninguém a fundamentou, como nas minhas buscas anteriores ao
estudo e apresentação da mesma não encontrei absolutamente nada registrado
por escrito.

Sobre a fundamentação da técnica Provocativa Musical.


O novo caminho é aqui apresentado como uma técnica que passa a ser
denominada técnica provocativa musical, e tem sua fundamentação na
completude, um dos princípios subsidiários da lei da Prägnanz (concisão em
alemão).
Leonard Meyer, americano, com formação em filosofia, música e história
da cultura, é conhecido por juntar princípios da psicologia cognitiva com os
dessas áreas, na pesquisa sobre aspectos como emoção e sentido em música,
teoria da expectativa e mudanças estilísticas, o que resultou no conhecido livro
Emotion and Meaning in Music (1956)257. Nesse livro, aspectos do campo da
percepção visual que foram estudados pela Gestalt estão transpostos para a
audição, e é esta a fonte principal que utilizo como fundamentação da técnica
provocativa musical.
O autor propõe uma teoria da percepção musical baseada no axioma da
Prägnanz, lei segundo a qual “a organização psicológica será sempre tão boa
quanto o permitam as condições prevalecentes”258 (1956, p. 86) e apresenta três
princípios subsidiários sendo que aqui só será utilizado o da completude259 que
postula que “a mente, governada pela lei Prägnanz, está continuamente lutando
por estabilidade, repouso e completude de um objeto que esteja fisicamente
incompleto. Mas o que representa completude varia de estilo para estilo e de
obra para obra” (p. 128). Meyer ainda afirma que “completude e incompletude
são produtos de padrões ou sons que se tornam estabelecidos como mais ou
menos fixos em um trabalho particular” (p. 29)260 e desdobra seus estudos
apresentando aspectos importantes na constituição deste princípio como: cultura,
tensão, forma, padrão, expectativa e memória, e discorre longamente sobre
completude melódica, rítmica e harmônica.

O filme Uma Cilada para Roger Rabbit e a completude.


Algum tempo depois de ter descrito a técnica provocativa, considerei
importante apresentá-la aos alunos do Curso de Musicoterapia do CBM e, nessa
ocasião, uma aluna se referiu à existência de um filme que tinha uma cena que
ilustrava o que eu estava narrando. Procurei o filme e, realmente, a cena em
pauta pode demonstrar o que quero alcançar com a utilização da técnica. Assim,
apresento a questão da completude analisando, inicialmente, uma cena desse
filme: Uma Cilada para Roger Rabbit, na qual desenho animado e atores
humanos contracenam num dos grandes momentos do cinema. A história foi
filmada nos EUA em 1988, e se passa em 1947, em Hollywood, onde um astro
do desenho animado entra em depressão e o estúdio onde trabalha contrata um
detetive para descobrir a causa da crise. Na cena citada, Roger Rabbit,
evidentemente um coelho, astro dos desenhos animados, está sendo procurado.
Num bar onde estava dançando, Rabbit é perseguido pelo Judge Doom (Juiz
Doom), implicado numa trama de assassinato.
Antes de se apresentar a completude, devem-se discutir outros dois
aspectos que são interessantes para os musicoterapeutas, ou seja, as duas pistas
ou vestígios que Rabbit deixa e que levam Doom a perceber que o coelho está no
bar.
A primeira pista é musical e se refere à preferência de Rabbit. Deve-se
ressaltar a perspicácia de Doom que lê, no disco que estava no aparelho de som,
o nome da música que tinha sido tocada: “O Carrossel se Quebrou” e que,
dirigindo-se aos frequentadores do bar reconhece ser “uma escolha muito
estranha para um grupo de bêbados e depravados” (referindo-se aos
frequentadores do bar). Imaginando as preferências musicais de um coelho, o
juiz utiliza isto para deduzir que aquela música não seria escolha dos homens
que se encontram no bar naquele momento, mas sim, do coelho.
A segunda pista é percebida por Doom no momento em que pega o disco e
cheira. Nesse momento ele declara: “ele está aqui”. Aqui caberia a afirmação do
musicólogo francês Jean-Jacques Nattiez que diz: “(...) as produções e ações
humanas deixam vestígios materiais”261, e “esses vestígios constituem formas
simbólicas porque são portadores de significações para aqueles que os produzem
e para aqueles que os percebem” (2002, p. 12). Estas pistas ou vestígios levam
Doom a ter certeza da presença de Rabbit. A partir disto, o juiz decide procurá-lo
e declara que “nenhum desenho resiste às duas batidinhas”!
Nessa cena, Doom bate repetidas vezes o ritmo marcado com seu nome no
exemplo abaixo, constituído de dois tempos e parte do terceiro, deixando
incompleto o trecho, e provocando Rabbit a um fechamento ou completude.

O coelho não vê o que se passa porque quando Doom se aproximava ele se


escondeu em um espaço contíguo ao bar, junto com o personagem humano com
o qual contracena. No entanto, ouve o que foi feito por Doom e se torce,
contorce e retorce, tentando resistir à vontade de completar o ritmo que se
constitui como um padrão262, muito utilizado na cultura musical ocidental, que
certamente Rabbit tem na memória e que está incompleto.
A tensão do coelho é crescente mas ele sabe que se completar o que falta
será denunciado pelo som e, finalmente, capturado por Doom. Mas Doom
conhece o poder “das duas batidas” (que faltam para completar o padrão), e sabe
que Rabbit não resistirá à necessidade de completar o ritmo. Assim, Doom
provoca uma resposta, deliberadamente, utilizando esse ritmo incompleto,
batendo na parede da sala onde está o coelho, com a certeza de que ele será
provocado a completar o ritmo e que assim poderá capturálo. E acontece
exatamente o que Doom espera: depois de ouvir o trecho incompleto, Roger
Rabbit se contorce, treme, esbraveja mas não resiste e salta no centro do bar, de
forma apoteótica, liberando a tensão, o que lhe traz um visível alívio no
momento em que completa o ritmo. E, como previsto, o coelho é imediatamente
capturado pelo juiz.
Nessa cena, que pode ilustrar perfeitamente o princípio da completude,
quatro aspectos devem ser observados:

o caráter provocativo da produção rítmica e da postura de Doom


a incompletude do material rítmico-sonoro que Doom utiliza – comum na
nossa cultura
a tensão que essa incompletude causa no ouvinte – no caso, em Rabbit, e
a liberação da tensão – o alívio de Rabbit no momento da completude.

Mas, qual a ligação desta cena com a técnica aqui apresentada?


Em musicoterapia, proponho a técnica provocativa musical como a
interrupção de uma sequência de sons, de um ritmo, de uma melodia ou de um
encadeamento harmônico já conhecidos pelo paciente, com o objetivo precípuo
de provocá-lo e levá-lo a completar o que se apresenta como incompleto. Ainda
se deve enfatizar que o musicoterapeuta pode fazer isto através da recriação ou
da criação (improvisação ou composição), desde que sejam músicas ou criações
já conhecidas do paciente.
Mas, como uma improvisação feita pelo musicoterapeuta poderia ser
conhecida do paciente? É bastante comum o musicoterapeuta repetir
improvisações numa mesma sessão e até voltar a uma improvisação feita em
sessões anteriores. Assim, ela pode se tornar familiar ao paciente e, se
interrompida, pode vir a ter um caráter provocativo.
A técnica provocativa foi inicialmente utilizada com pacientes autistas que
frequentavam escolas, onde a música sempre está presente, como referido acima.
No entanto, pensando sobre experiências vividas com pacientes que tiveram alta
há algum tempo e que completavam trechos musicais, executados por mim de
forma incompleta, admito que mesmo os autistas mais graves, que parecem não
ouvir e que não frequentam escola, são ouvintes dos sons e da música da familia,
da mídia e do próprio musicoterapeuta, durante as sessões263.
Assim, pode-se pensar que os autistas estão inseridos na cultura, não como
participantes diretos, mas, como ouvintes. A afirmação de Brynjulf Stige, no
interessante artigo sobre “O efeito Grieg”, coincide com meu modo de pensar
quando declara que “Terapia é um processo que também pretende que o paciente
entre no campo cultural e encontre seu caminho neste, como agente”264.

Por que técnica provocativa musical?


Como as técnicas são utilizadas pelos terapeutas e não pelos pacientes, a
denominação desta, vem do lugar do musicoterapeuta. Por isto, técnica
provocativa, pois é a execução do musicoterapeuta que provoca o paciente a
completar algo que ele conhece e que está incompleto.
Assim, denomina-se técnica provocativa porque a execução do
musicoterapeuta vai provocar no paciente:

a surpresa pelo não fechamento


a expectativa de fechamento
a tensão e engajamento [comprometimento] com o que foi feito e a
a necessidade de liberação de tensão, completando o que está incompleto.

Assim defino a técnica provocativa musical:

É a execução através da voz ou de instrumentos musicais, [pelo


musicoterapeuta], de forma incompleta, de um trecho: sonoro,
rítmico, melódico ou harmônico265; de uma música, ou da letra
de uma canção –, conhecidos pelo ou da cultura do paciente, que
se torna provocativo de uma atitude de fechamento ou
completude.

Isto vai trazer uma possibilidade de resposta, provocando o paciente a


completar o que ficou em aberto, evidentemente, dentro das suas possibilidades.

Cenas clínicas que ilustram o emprego da técnica


Tanto quanto tenho registros escritos dos pacientes que atendi, muitos são
os exemplos em slides, áudio ou vídeo que registram aspectos específicos de
sessões realizadas, bem como produções sonoro/musicais dos pacientes, grafadas
musicalmente. Para ilustrar a utilização desta nova técnica busquei, nos
relatórios escritos, nos registros em áudio e nas produções grafadas, situações
clínicas que pudessem exemplificar algumas das possibilidades anteriormente
apontadas.

A provocação através do ritmo


Ilustrada aqui pela cena de “Uma cilada para Roger Rabbit”. Mas, cabe
ressaltar que muitos outros ritmos podem ser utilizados e muitas situações
clínicas poderiam ser apresentadas como exemplo.
A provocação através da harmonia e a completude melódica
Muitas vezes uma provocação em um dos elementos da música pode
resultar numa completude em outro. Isto dependerá de alguns aspectos como: os
elementos com os quais musicoterapeuta e paciente estiverem trabalhando; as
possibilidades do paciente e, até, se ele/ela tem conhecimento musical.
Outro aspecto que deve ser enfatizado é que Meyer (1956, p. 130),
considera que existem dois tipos de incompletude:

“aquelas que aparecem no curso de um padrão porque alguma coisa foi


deixada de fora ou se omitiu, e
aquela na qual a figura, embora completa, simplesmente não é sentida como
tendo alcançado uma conclusão satisfatória, não está terminada”.

Considero que a cena clínica a seguir pode ilustrar esta segunda forma.

Cena clínica 25
A paciente Maria, com 15 anos de idade foi encaminhada à ABBR por ser
portadora de uma forma leve de Paralisia Cerebral266, ficando como sequela uma
hemiparesia direita267 e uma inco ordenação motora nos quatro membros. O
atendimento foi iniciado em 18/5/79, na ABBR e finalizado em 12/5/81, no
consultório onde continuei a exercer a prática clínica, totalizando 91 sessões.
Um dos objetivos do tratamento era melhorar a sua incoordenação motora.
Para isto eram feitas improvisações inicialmente na flauta doce e posteriormente
no piano, seu instrumento de preferência. Essas improvisações eram livres ou
orientadas com propostas feitas pela musicoterapeuta ou, mesmo, a partir de
sugestões e escolhas da paciente. Todavia, o material trazido pela paciente tinha
sempre uma organização, ou seja, embora a paciente não soubesse nada de
música parecia escolher cuidadosamente os sons que fazia. Cabe enfatizar que
era uma paciente de 15 anos.
O exemplo aqui apresentado foi gravado em fita K7, na 40a sessão, em
8/10/79. Aqui a proposta é da musicoterapeuta que sugere: “mão esquerda, teclas
brancas”, que significa que a paciente tocará só com a mão esquerda, sempre nas
teclas brancas, e será acompanhada pela musicoterapeuta. A paciente está no
agudo, improvisando melodicamente, só com a mão esquerda, enquanto a
musicoterapeuta improvisa a harmonia.
Esta improvisação tem uma introdução “à vontade”, onde ainda não
aparece um compasso bem estabelecido e se percebe que a paciente está
buscando um caminho. A musicoterapeuta ainda não toca, aparentemente
aguardando para saber como interagir musicalmente. A duração total é de 3’49”,
com 84 compassos. Aqui só serão grafados os últimos cinco compassos para
ilustrar o fechamento ou a completude melódica feita pela paciente.

Percebe-se que no compasso 80 a musicoterapeuta faz um fechamento da


improvisação com uma cadência perfeita (V – I), sendo que no primeiro grau da
harmonia, no compasso 81, a paciente toca na melodia a dominante do tom
(sol), o que seria um fechamento perfeitamente cabível, já que a fundamental do
acorde está no baixo.
No entanto, aparentemente, pode ser o fato de ela estar na dominante e não
na tônica, que faz com que não pare, acompanhando o fechamento harmônico
proposto pela musico terapeuta e siga, o que denominei ‘em busca da tônica’, no
compasso 83, embora ela não tivesse nenhuma formação musical. Mas, se
analisarmos mais atentamente o que faz a musicoterapeuta poderemos ter outra
explicação: no momento em que a musicoterapeuta improvisa, no compasso 80,
o acorde do V grau está na terceira inversão – fá no baixo ao invés do sol, que
seria o Estado Fundamental e que caracterizaria mais claramente a cadência
perfeita (V-I). Embora a musicoterapeuta não tenha pensado nisto, a harmonia
acaba por provocar um fechamento que não deve ter ficado inteiramente
satisfatório para a paciente, o que faz com que ela vá em busca de uma
completude clara, com a realização da regra clássica: sensível sobe à tônica!
Aqui parece possível dizer-se que se trata de uma provocação harmônica
involuntária, porque na compreensão da musicoterapeuta a melodia da paciente
já indicava um fechamento melódico, ou seja, cada uma fizera o fechamento com
o elemento musical com o qual improvisava: harmônico – musicoterapeuta, e
melódico – paciente. A paciente, então, surpreendeu a musicoterapeuta
continuando e seguindo lentamente, em stacatto, fazendo claramente uma busca,
e repousando na tônica.
Regnault, P.; Bigand, E.; e Besson, M.;268 (2001), estudaram as evidências
dos diferentes mecanismos cerebrais que mediam a sensibilidade e a percepção
sensorial da consonância e do contexto harmônico através dos potenciais
evocados269 e afirmam que existe uma “forte expectativa” na finalização de um
trecho numa cadência perfeita (V- I), ao passo que um fechamento I – IV
provoca uma “expectativa fraca”, conforme exemplificado abaixo. (Os acordes
são os mesmos, em contextos diferentes: Dó M e Sol M, respectivamente).

A partir destes estudos, pode-se concluir que assim como uma cadência
perfeita provoca uma “forte expectativa”, num contexto cultural como o nosso, e
uma finalização I-IV uma “expectativa fraca”, uma finalização V-I na 3ª inversão
poderia provocar uma “expectativa fraca” de fechamento, pelo acorde não estar
no Estado Fundamental. Ou seja, com o acorde no Estado Fundamental a
completude seria mais eficaz, mais viva e potente.
Poder-se-ia pensar que o que explicaria essa atitude de uma menina de 15
anos seria a sua inserção na cultura, já que a mesma não tinha nenhuma
formação musical.

Cena clínica 26
A provocação através da harmonia e a completude harmônica
Dora, uma paciente com 39 anos, vítima de um Acidente Vascular
Encefálico – AVE270, teve como sequelas uma hemiplegia direita e uma afasia
sensorial causadas por hemorragia cerebral em 8/9/1975. A paciente foi
internada na ABBR, carregada em maca, sem comunicabilidade em 10/10/1975.
Seu estado oscilava exclusivamente entre vigília e sonolência. Foi encaminhada
à musicoterapia com prescrição médica de ser atendida diariamente, o que não
era possível porque eu trabalhava só três dias por semana na instituição.
Começou o tratamento em musicoterapia em 22/3/1976. Tinha formação musical
anterior tendo como instrumento o piano, sendo que quando foi encaminhada à
musicoterapia ninguém tinha esta informação e seu encaminhamento à
musicoterapia se deveu ao fato de a fisioterapeuta ter percebido que ela só
cooperava quando essa profissional cantava.
Só depois de três sessões na musicoterapia, o filho de Dora veio à
instituição para ser entrevistado, ocasião em que fui informada que a paciente
tinha estudado piano e tocado música erudita e popular. Decidi, então, adaptar
o teste que o médico do compositor Maurice Ravel271, auxiliado por um aluno
de música deste, utilizara para verificar o que estava preservado e o que o
compositor perdera musicalmente. A partir da sessão sete comecei a testar o
reconhecimento de melodias, primeiro aspecto do teste272.
Gradativamente, Dora foi executando no piano músicas que faziam parte
da sua história sonora e que, provavelmente, tinham significado para ela,
estando dentre estas, a melodia da canção “É meu destino amar”273. Ela tocava
a melodia com a mão esquerda por ter uma hemiplegia direita que a
impossibilitava de tocar, e eu sempre fazia a harmonia, finalizando com a
cadência perfeita – V – I, que a melodia sugere, como grafado abaixo:
Na sessão 35, realizada em 11/8/76, e também gravada em K7, proponho
que Dora toque novamente “É meu destino amar”. Imediatamente ela começa a
tocar a música em Dó M, finalizando da seguinte forma:

Executo a harmonia de costume mas, no compasso 23, percebe-se, ao


ouvir essa execução, que ela ‘busca’ as notas, pelo ouvido274. Nos compassos
23-24, ao invés de fazer o I para caracterizar a cadência perfeita V – I, faço V –
VI do homônimo menor (sol – lá b, no baixo) — provavelmente influenciada
pelo que acontece com a melodia da paciente ao buscar a nota que deveria
tocar, ainda no final do compasso 23, e resultando em uma Cadência
Interrompida275, trazendo um elemento imprevisível e não completando o que
seria esperado. Aqui tive a intenção de provocá-la, com o objetivo de observar
como ela lidaria com uma situação nova.
Aparentemente Dora se perde, tocando sib, si, ré b, dó (comp. 24). No
entanto, eu poderia dizer que nessas execuções de músicas conhecidas ela
várias vezes tinha que “procurar” o som certo. Continuo, nos dois últimos
tempos do compasso, com o mesmo acorde (VI do homônimo m), agora
arpejado, e paro. No compasso 25 faço o I grau, que tanto pode ser a tônica de
dó m como de dó M (mas o lá b anterior pode indicar dó m). Pareço querer
fechar, já que estamos as duas na tônica. Mas ela faz, no compasso 26, o que
poderia se pensar ser o início de I Could Have Danced all Night276, da trilha
sonora de My Fair Lady, música que ela já havia tocado várias vezes em outras
sessões, para imediatamente voltar ao VI de dó menor, e modular por um acorde
comum de dó m e dó M do V (na 2a inversão), e completar, resolvendo, no I de
Dó M, voltando ao tom de origem da improvisação e liberando a tensão
instalada pela modulação ao homônimo menor277. Mas, pode-se perceber que
fechei no I, no compasso 25, e pareço estar esperando para ver como a paciente
vai terminar ou, se vai terminar!

Cena clínica 27
A provocação através da canção recriada
Numa fita K7 onde sessões de vários pacientes estão gravadas, com a data
de 1976, encontrei um exemplo da forma inicial como empreguei esta técnica. O
paciente não está identificado, mas percebe-se que é um menino pela forma
como a ele me refiro e parece tratar-se de uma criança pequena, pela maneira
como canto. Sem nenhum acompanhamento com instrumentos, ouve-se a minha
voz e palmas em alguns momentos. A canção cantada por mim é Parabéns pra
Você278, escolha que deve ter sido feita certamente por ser uma canção cantada
desde que a criança completa um aninho e em todas as festas de aniversário
sendo, assim, de conhecimento geral. De qualquer maneira, percebe-se que
canto várias vezes, da forma abaixo:

Parabéns pra você... (paro a cada final de frase)


Nesta data querida ...
Muitas felicidades ...
Muitos anos de vida...
Parabéns pra vo.......cê (aqui já começo a parar no meio da palavra)
Nesta data que....rida
Muitas felicida...des
Muitos a...nos de...................279

e depois desta última interrupção ouvem-se três batidas que parecem ser
em um instrumento de percussão mas que são seguidas por um comentário meu
que diz: Chi! Ele descobriu o violão! Que bom! Percebese, claramente, que as
batidas do paciente no violão fazem a completude do que estava interrompido,
embora com uma batida a mais do que deveria ser para completar a palavra
“vida”.
É importante observar que, neste exemplo, a interrupção é feita na letra e a
completude com ritmo, o que pode acontecer principalmente quando o paciente
não tem condições de completar na mesma modalidade, no caso, na fala ou,
melhor dizendo, no canto.

Cena clínica 8
Provocação através da letra da canção improvisada
Marcos era um paciente autista clássico, com exames complementares
normais, motricidade normal e quase nenhuma comunicação através do olhar e
verbal. Seu atendimento em musicoterapia teve a duração de cinco anos, com
duas sessões semanais de 45 min., e durante esse período seu horário foi
modificado algumas vezes, por vários motivos. Assim, durante um tempo,
Marcos foi atendido das 17h30min. às 18h15min., devendo-se observar que a
esta hora já está escuro no ‘inverno’ do Rio de Janeiro.
Percebi que quando começava a escurecer, Marcos se colocava à frente da
janela que dava para a rua e ficava olhando para o céu. Pensando que ele
poderia assim proceder por medo do escuro, improvisei uma música que passou
a ser cantada quase todas as vezes que M. ia para a janela, transcrita abaixo:
Quando Marcos voltava à janela, eu cantava a música. Decidi, então,
engajar Marcos na já não mais improvisação pois, como se pode ver, a pequena
canção já estava até grafada e era algo já conhecido por ele, pela recorrência
na utilização. Para isto, utilizei a técnica provocativa, interrompendo a
execução após a frase: “quem é quem tem medo”... No entanto, fui surpreendida
pelas respostas de Marcos. Ao invés de ele repetir o que eu vinha cantando, ele
passou a trazer “medos” diferentes daquele que eu tinha cantado inicialmente,
expressando, certamente, seus diferentes medos como da ‘poliça’ e ‘de cara
feia’. Percebi, então, que a interrupção poderia ter mais uma possibilidade: a de
provocar e permitir a expressão de conteúdos internos.

Considerações finais
Refletindo sobre a utilização da técnica e analisando as diferentes formas
de seu emprego entendo que esta pode ser utilizada com qualquer tipo de
paciente que tenha condições de cantar ou tocar, pois acredito que ela pode ser
provocativa de:

comunicação/interação
novas conexões neurais
abertura de novos caminhos de expressão de conteúdos internos e,
resgate da memória,

aspectos que podem abrir uma constelação de possibilidades de


crescimento em direções que podem potencializar o processo musicoterapêutico.
Essa técnica vem sendo utilizada com pacientes idosos, portadores de
Alzheimer, síndromes neurológicas e genéticas e vários musicoterapeutas têm
relatado os efeitos em seus pacientes.
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Notas
1 American Music Therapy Association. http://www.musictherapy.org/ Acesso
em 3/12/14.
2 ALTSHULER, Ira. The past, present and future of musical therapy. In:
PODOLSKY, Edward. Music Therapy. New York: Philosophical Library,
1954.
3 Nascido na Holanda, Van de Wall (1887 – 1953) viveu nos Estados Unidos.
Era harpista profissional, regente de coral e professor de educação musical.
Na década de 1920 começou a utilizar a música como elemento terapêutico
em prisões, hospitais, e outras instituições e escreveu numerosos artigos e
livros defendendo o uso estruturado e controlado da música. Dentre estes
está o considerado “monumental” livro Music in Institutions (1936).
4 Cabe esclarecer que a mesma fonte afirma que a música foi introduzida na
Sociedade Pestalozzi do Brasil (SPB) desde a sua fundação, em 1945: “A
música foi introduzida na SPB desde seu início, sempre integrada aos demais
recursos de trabalho, fazendo parte desta rede complexa de atividades
desenvolvidas nas oficinas. A pessoa responsável pela atividade musical se
afastou e Doris Hoyer de Carvalho, por tocar piano, foi encarregada de
substituí-la” (COSTA e CARDEMAN, 2008, p. 64).
5 “Sobre o poder do som”.
6 “Os aspectos físicos da música”, numa tradução livre.
7 Catalogada como Obra Rara na Divisão de Música e Arquivo Sonoro da
Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
8 “Estudos de ultrassom demonstram que com 16 semanas de gestação o feto
pode responder aos sons externos (Hepper & Shahidullah, 1994; Shahidullah
& Hepper, 1992, citados por DILEO, 1999, p. 14). E a autora continua,
afirmando que “A audição é o primeiro sentido que se desenvolve e o último
que se deteriora no ciclo da vida” (ibid).
9 Conceito cunhado pelo compositor e educador musical canadense Murray
Schafer (soundscape no original): “paisagem sonora é um som ou uma
combinação de sons que vêm ou surgem de um ambiente imersivo”. Uma
paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõem um
determinado ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana,
industrial ou tecnológica. O estudo de paisagens sonoras enquadra-se no
âmbito da Ecologia Acústica. Este conceito foi apresentado no livro The
Tuning Of The World, em 1977, e publicado no Brasil pela Editora Unesp,
com o título A afinação do Mundo (1997).
10 Sobre o assunto ver o importante livro de WIGRAM, T. e DILEO, Cheryl.
(Eds.). Music Vibration. Cherry Hill, NJ: Jeffrey Books, 1997.
11 Todas as situações clínicas aqui apresentadas terão os nomes dos pacientes
modificados ou abreviados para preservar suas identidades.
12 Atendimento realizado na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação
(ABBR).
13 Ambliopia – diminuição acentuada da visão.
14 Não só os sons percebidos na vida intra-uterina são universais mas, também,
os resultantes de um estado de espírito como o riso e o choro, e muitos
outros.
15 Fenômeno pelo qual um corpo sonoro vibra quando é atingido por vibrações
produzidas com frequência igual, ou quase, a uma de suas frequências
naturais. (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 1976).
16 “Objeto indermediário é um instrumento de comunicação capaz de atuar
terapeuticamente sobre o paciente mediante a relação, sem desencadear
estados de alarma intensos” (Benenzon, 1985, p. 47). Benenzon se baseou no
conceito que tem o mesmo nome, cunhado por J. G. Rojas Bermudez, que
considera os bonecos como “objetos intermediários”, no psicodrama, por
possibilitarem o estabelecimento de vínculos que podem tirar o paciente do
isolamento, permitindo-lhe relacionar-se.
17 Que ocorrem de forma espontânea num determinado habitat.
18 No livro II do Traité des objets musicaux: essai interdisciplines, Pierre
Schaeffer define o objeto sonoro como resultante de uma intenção de escuta.
O “Traité” é dividido em sete livros: Livro I, “Faire de la musique”; Livro II,
“Entendre”; Livro III, “Corrélations entre le signal physique et l’objet
musical”; Livro IV, “Objets et structures”; Livro V, Morphologie et
typologie des objets sonores”; Livro VI, “Solfège des objets musicaux” e
Livro VII, “La musique comme discipline” (1977).
19 É importante esclarecer que sempre trabalhei com estagiários do Curso de
Formação de Musicoterapeutas do Conservatório Brasileiro de Música –
hoje Centro Universitário, e o período mínimo de estágio para cada
estagiário era de um ano.
20 O título verdadeiro é Vamos viajar e o trem de ferro. (Domínio público), cuja
letra é: Tchu Tchu Tchu Tchu, Tchu Tchu Tchu Ttchu, vamos viajar. Tchu
Tchu Tchu Tchu, Tchu Tchu Tchu Ttchu, viajar de trem. (bis). O trem de
ferro quando vai pra Pernambuco vai fazendo tchuco tchuco com vontade de
parar (bis), Piuí!. Não é a letra original, mas trata-se de uma versão aqui
modificada. Ainda cabe ressaltar que além de esta música ser apropriada
para a situação e proporcionar um momento muito lúdico é uma melodia
bastante adequada para uma criança de quatro anos pois é constituída
exclusivamente de terças e segundas, e a mesma melodia da primeira parte é
repetida um tom abaixo. Na segunda parte a linha melódica muda, mas
continua tendo apenas terças e segundas.
21 Maria Regina Esmeraldo Brandão e Ronaldo Pomponet Millecco.
22 O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Jung concluiu que havia um nível
mental criador de mitos, o qual era comum às pessoas normais e psicóticas, e
também comum às pessoas de diferentes épocas e culturas, que ele
denominou inconsciente coletivo (STORR, 1974, p. 36).
23 Publicada no Brasil em 1985, nos Anais do 2o Encontro Nacional de
Pesquisa em Música, realizado em São João del-Rei, pela Escola de Música
da Universidade Federal de Minas Gerais, pela Orquestra Ribeiro Bastos de
São João del-Rei e pela Sociedade Brasileira de Estudos do Século do
Século XVIII, às páginas 257-265, com o título: A música utilizada como
elemento terapêutico.
24 Esta canção surgiu em setembro de 1964, gravada pelos Demônios da Garoa,
conhecido conjunto musical brasileiro, grande intérprete de Adoniran
Barbosa.
25 Canção composta em 1972 e que na década de 1980 foi a música de uma
campanha publicitária da Coca Cola. Essa talvez seja a única explicação que
se possa dar para a utilização dessa música por uma criança de cinco anos,
autista, que pouco falava e que a empregou de forma absolutamente
adequada ao contexto.
26 “Pedro, Antonio e João”, de Benedito Lacerda e Oswaldo Santiago, foi a
única música que Marcos trouxe para o setting terapêutico antes de cantar
“Águas de Março”.
27 Regina cantava “La Donna è móbile”, certamente repetindo o que ouvia em
casa e expressando grande prazer. Aria do terceiro ato da Ópera Rigoletto,
composta por Giuseppe Verdi (1851 a primeira audição).
28 Refiro-me à música erudita por ter feito uma experiência com esse tipo de
música e os resultados foram os acima referidos. No entanto, este aspecto
deveria ser objeto de pesquisa de musicoterapeutas que trabalham com
crianças com TEA.
29 No sentido de ‘repercute’.
30 Culture Centered Music Therapy, (STIGE. Brynjulf, 2002a).
31 Na musicologia existe uma grande discussão acerca do fato de a música ser
ou não uma linguagem. Em musicoterapia considera-se a música como uma
“espécie de linguagem” porque possibilita uma “situação comunicativa”, na
visão do musicoterapeuta norueguês Even Ruud (1990, p. 89). Assim,
linguagem virá sempre em itálico.
32 Vladimir Mikhaylovich Bekhterev (1857–1927) foi um neurologista,
psiquiatra, fisiologista, psicólogo e reflexologista russo, aluno do célebre
neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893). Bekhterev fez
significantes contribuições para as disciplinas nas quais tinha expertise,
sendo autor de dois clássicos compêndios de neurologia.
33 Divididas em: individual, grupal, cultural, universal e complementar, no
Manual de Musicoterapia (1985). Contudo, dois aspectos fundamentais na
obra de Benenzon devem ser observados: que em Musicoterapia: de la teoria
a la práctica (2000), o autor se refere a quatro tipos de Identidades Sonoras e
não mais cinco, tendo retirado a Identidade Sonora Complementar, e que, no
tópico dedicado ao assunto coloca, por extenso: “Identidade Sonora”, logo
após à abreviação ISO, o que acaba com a ambiguidade e imprecisão
existentes entre a abreviatura de Identidade Sonora (ISO) e a do Princípio de
ISO (aqui se referindo ao Princípio de Altshuler) e ao engano que causava
sobre a compreensão dos dois aspectos no texto explicativo desses
postulados teóricos.
34 Conferência pronunciada na Secção de Neuropsiquiatria da Associação
Paulista de Medicina em 5 de novembro, 1946.
35 A grafia correta é Altshuler. No entanto, será mantida a grafia que Novaes
coloca em seu artigo, nos momentos em que Altshuler estiver sendo citado
por ele, ou nas passagens onde estiverem sendo transcritas as suas palavras.
36 Evidentemente aqui Novaes se refere ao Hino Nacional Americano.
37 A ‘hipomanía’ é um estado afetivo caracterizado por um ânimo
persistentemente expansivo ou hiperactivo. Os indivíduos nesse estado têm
menos necessidade de dormir e descansar, pois têm uma enorme quantidade
de energia. É uma alteração semelhante à mania, porém com menor
intensidade.
38 Evidentemente, tal mudança só pode ser feita se estiver sendo utilizada
música viva, executada pelo musicoterapeuta, ou coterapeuta, que irá
modificando o andamento pouco a pouco.
39 Este tipo de Identidade Sonora (ISO) foi retirado da obra Musicoterapia: de
la Teoria a la Práctica (2000). No entanto, o autor não explica, pelo menos
nessa obra, quais as razões dessa supressão.
40 Para maiores informações sobre este assunto, ver o importante trabalho
Ruídos da Massificação na Construção da Identidade Sonora-Cultural,
de Ronaldo Pomponet Millecco, 1997.
41 Culture-specific music therapy.
42 Para a Antropologia enculturação (ou endoculturação) é um processo por
meio do qual os indivíduos aprendem o modo de vida da sociedade na qual
nascem, adquirindo e internalizando um sistema de valores, normas,
símbolos, crenças e conhecimentos (ULLMANN, 1991, citado por ASSIS e
NEPOMUCENO, 2008, p. 3).
43 Já “A aculturação é o processo de troca e/ou fusão entre culturas. Através do
contato prolongado ou permanente, duas ou mais culturas permutam entre si
seus valores, conhecimentos, normas, hábitos, costumes, símbolos, enfim,
seus traços culturais. Nesse processo, uma cultura se caracteriza como
doadora e a outra como receptora, o que não significa dizer que este seja um
processo de via única, ou seja, quando em contato, todas as culturas podem
sofrer mudanças, pois ocorre aí um processo de influxo recíproco”
(ULLMANN, 1991, citado por ASSIS e NEPOMUCENO, 2008, p. 5).
44 Perda parcial da capacidade auditiva que pode ser leve, moderada e grave e
pode ser unilateral ou bilateral. A deste paciente era bilateral grave, de mais
de 40 decibéis. A utilização de aparelhos auditivos aumentava a sua
capacidade auditiva em 20 a 30% da audição.
45 Up e down: para cima e para baixo.
46 ”Trupe” se refere a um grupo composto por artistas ou pessoas que pertencem
a uma companhia teatral. No entanto, não tive como saber se era este o
sentido que Maria estava utilizando porque esta foi a última sessão que
tivemos.
47 “Bumba-meu-boi” é uma manifestação cultural que pertence ao ciclo Cristão,
isto é, uma festa católica de verão da cultura agrária, na qual o boi representa
a imagem da fertilização. Como esta expressão tem muitas formas,
dependendo da região do país de onde se origina, existem também muitas
histórias diferentes. É uma cerimônia de excepcional penetração social e
afetiva (CASCUDO, 1962).
48 Sobre o texto publicado na Revista Eletrônica Voices: Barcellos, L. R. M.: A
World Forum for Music Therapy, em 15 de dezembro de 2003, na seção
Colunas Quinzenais (Fortnightly Columns), sob o título “’Bumba-meu-boi’:
a Brazilian Cultural Expression in Music Therapy”.
49 A Era do Rádio foi o período que no Brasil, como em outros países, houve o
sucesso das emissoras de rádio. No Brasil, o auge desse meio de
comunicação ocorreu de 1940 a 1950. Até a chegada da televisão o rádio era
o veículo de comunicação de massas com maior alcance e imediatismo.
50 Utilizarei “Negreiros” por ser como a musicoterapeuta é mais conhecida.
51 Diferença feita em outro lugar desta publicação.
52 Várias gerações de pacientes presentes, embora o centro, neste trabalho, não
seja trabalhar as relações entre as várias gerações.
53 Trabalho realizado de abril de 2012 a 2015 na enfermaria da Maternidade
Escola da UFRJ como parte de uma pesquisa de musicoterapia com
gestantes internadas com diagnóstico de pré-eclâmpsia.
54 Realizada de 2000 a /2001, com alunos de Musicoterapia do CBM, no
“Núcleo de Pesquisa José Maria Neves” que tinha acabado de ser criado. O
artigo sobre esta pesquisa só foi publicado em 2004, na Revista Brasileira de
Musicoterapia, editada pela UBAM. No entanto, na edição online, a autoria
deste artigo é atribuída à musicoterapeuta norte-americana Barbara Wheeler
e os comentários feitos por ela, publicados como sendo de autoria de Marco
Antonio Carvalho Santos. Os comentários emitidos por este musicoterapeuta
foram omitidos.
55 Como parte do Programa de Iniciação Científica.
56 No início do trabalho, como não tínhamos instrumentos, decidimos levar
garrafas pet já adequadamente cortadas, bem como contas especiais para a
confecção de bijouterias, para cada paciente construir um instrumento.
Depois, muitas vezes, na hora de tocar, eles escolhiam os instrumentos feitos
por outro paciente e os exploravam, certamente para conhecê-los melhor e
ter com eles uma maior intimidade. (Inicialmente pensei em colocar arroz,
feijão e milho dentro das garrafas pet mas a médica da instituição interditou
a utilização desses grãos pelo risco de contaminação, por serem materiais
orgânicos.
57 Para maiores informações sobre o GIM, ver BARCELLOS, Lia Rejane
Mendes (Org). Transferência, Contratransferência e Resistência (1999b),
onde há um capítulo específico sobre o Método (p. 89-122).
58 No GIM, que utiliza também uma indução, esta é feita para levar o paciente a
determinada imagem, e consequente entrada em estados incomuns de
consciência.
59 Para a realização dessa pesquisa, (2012 – 2015), a Musicoterapeuta Martha
Negreiros de Sampaio Vianna convidou as musicoterapeutas Maria Clarice
de Moura Costa e Lia Rejane Mendes Barcellos, além da participação do
musicoterapeuta Albelino Carvalhal, já integrante do Setor de Musicoterapia
da referida Maternidade. Tratava-se de um Ensaio clínico não-randomizado
prospectivo controlado.
60 Em coautoria com Denise de Camargo e Yára Lúcia Mazziotti Bulgacov.
Esse texto foi publicado primeiramente na revista Interação em Psicologia,
da Universidade Federal do Paraná – UFPR, em 2003. Só em 2006 o mesmo
artigo foi publicado no livro aqui utilizado.
61 Os autores definem a “empatia cultural” como uma habilidade de obter uma
compreensão acurada das experiências de clientes de outros contextos
culturais (1996, p. 270).
62 Domínio público. Atualmente disputando o primeiro lugar “nas paradas de
sucesso” com “A galinha pintadinha”!
63 Atendi uma paciente com Deficiência Intelectual que quando não era cantada
A canoa virou, em todas as sessões e durante toda a sessão, a paciente
rasgava a roupa, ‘comia’ a gola da blusa, lambia a sola dos sapatos, ou
cuspia!
64 Como se pode perceber em vídeo gravado nesse momento.
65 A “microanálise” tem uma longa história e é empregada de forma sistemática
em disciplinas relacionadas como a psicoterapia, a pedagogia e a educação
especial e no campo acadêmico da psicologia da música. O centro da
microanálise deve ser entendido e definido como se debruçando sobre o
estudo de “mudanças mínimas em relações ou interações entre pessoas ou
mudanças mínimas na música e em forças dinâmicas” (WOSCH, T. e
WIGRAM, T., 2007, p. 14). Na musicoterapia somente por volta do ano
2000 apareceram muitos estudos de pesquisa que envolveram o
desenvolvimento de ferramentas de análise detalhada, ou a utilização de
algumas já existentes como: musical, textual e de vídeos.
66 PhD pela Joensuu University (1998) (Finlândia), desde 2003, Ahonen-
Eerikainen é professora e Diretora do Manfred and Penny Conrad Institute
for Music Therapy Research, no Canadá.
67 A questão do significado está sendo tratada em outro capítulo deste livro.
68 Utilizo a expressão ‘de forma mecânica’ para me referir a uma execução
automática, aparentemente sem motivação interna.
69 Holding Environment (Winnicott, 1960) é um conceito que se refere a um
espaço físico ou psíquico entre a mãe e o bebê, e que permite uma transição
da criança para ser mais autônoma, gradualmente. Para o autor, o terapeuta
também tem como tarefa dar um holding environment para o seu paciente.
Pode-se entender que, em musicoterapia, a música e o terapeuta podem
funcionar como mãe (ou como campo materno, nas palavras de Negreiros).
70 Nome atribuído à indústria de composição e edição de canções populares em
folhas avulsas, que se concentrou em New York dos anos 1890 aos anos
1940 (Dicionário Grove de Música, 1994, p. 949). Embora a origem do
termo não seja clara, sabe-se que Tin Pan Alley era o local onde se
concentravam as editoras de música popular nessa época.
71 O coterapeuta da musicoterapeuta Martha Negreiros na Maternidade Escola
da UFRJ era, à época, o musicoterapeuta Albelino Carvalhaes, que tem uma
musicalidade extremamente desenvolvida e executa estes instrumentos
passeando por harmonias tanto simples como extremamente complexas com
grande habilidade e desenvoltura. Também a musicoterapeuta Martha
Negreiros utiliza o violão com grande habilidade.
72 A Indústria cultural (HORKHEIMER e ADORNO, 1989) é vista como um
complexo de produções de bens culturais que são disseminados pelos meios
de comunicação de massa e que impõem formas universalizantes de
comportamento e de consumo.
73 Ruud define musicoterapia como “um esforço para ‘aumentar as
possibilidades de ação’” e explica que “aumentar as possibilidades de uma
pessoa significa não somente empoderá-la, mas, também dar alívio (...) a
algum material de forças psicológicas que a mantém num papel de
desvantagem (1998, p. 52).
74 Como, por exemplo, “Viveu sete anos na frente do Aeroporto Santos
Dumont, depois mudou para a esquina do Cinema Roxy” (esquina da Rua
Bolivar com Av. Copacabana).
75 Tem-se aqui um exemplo de que as etapas do processo musicoterápico não
têm uma única forma de aplicação, isto é, cada musicoterapeuta deverá saber
como deve adequá-las, dependendo do tipo, idade ou condições dos
pacientes que vão ser atendidos ou, ainda, da instituição onde estiver
trabalhando.
76 O processo simbólico pode ser entendido como uma propriedade emergente
de interjogo de uma variedade de funções psicobiológicas e capacidades
psicológicas no contexto do corpo, objeto, e relações interpessoais. (Levin,
apud Erkkilä, In: MEADOWS, A. (Ed.), 2011, p. 200).
77 O atendimento era feito em coterapia com a psicóloga e musicoterapeuta
Mariana Barcellos, como já referido.
78 Essa prática foi realizada no Conservatório Brasileiro de Música, durante uma
semana por ano, por quatro anos seguidos, liderada pelo psicanalista e
musicoterapeuta argentino Dr. Rolando Benenzon.
79 “Musicoterapia com pacientes esquizofrênicos”.
80 Trabalho apresentado no VI Simpósio Brasileiro de Musicoterapia em 1988.
Em 1990 este trabalho foi ampliado, sendo inserido um estudo sobre as
interações em musicoterapia e nomeado A movimentação musical em
musicoterapia: interações e intervenções, e apresentado no VI Congresso
Mundial de Musicoterapia realizado no Rio de Janeiro, em 1990.
81 Grifo nosso.
82 Wilhelm Dilthey (1833-1911) – filósofo, psicólogo, historiador e pedagogo
alemão. Seus principais conceitos procuram fundamentar as “ciências do
espírito” como forma de conhecimento humano, em oposição às ciências da
razão. Para tal, dialoga e aprofunda o pensamento de vários filósofos, tais
como Kant, Locke, Auguste Comte, entre outros.
83 Os textos sagrados foram os primeiros dos quais se ocuparam os exegetas na
tarefa de interpretar e dar seu significado. A palavra exegese se origina do
grego: exegeomai, exegesis: ex tem o sentido de retirar, derivar, ex-trair,
externar, ex-teriorizar, ex-por e “hegeisthai” o de conduzir, guiar. O termo
exegese significa, como interpretação, revelar o sentido de algo que esteja
ligado ao mundo do humano, mas a prática reservou a palavra para a
interpretação dos textos bíblicos. Orígenes, cristão egípcio que escreveu
nada menos que 600 obras, defendia a interpretação alegórica dos textos
sagrados, afirmando que estes traziam, nas entrelinhas de uma clareza
aparente, um sentido mais profundo. Ser exegeta é contextualizar o que foi
escrito com a cultura da época e extrair os princípios morais para o tempo
presente.
84 Grifo nosso.
85 Melodia resgatada do folclore nordestino por Heitor Villa-Lobos que, a partir
de 1930, compôs as Bachianas Brasileiras n. 4, para piano solo, mas que foi
apresentada somente em 1939 e orquestrada em 1941 pelo próprio autor.
Essa Bachiana é integrada por quatro peças: Prelúdio (Introdução) – Lento;
Coral (Canto do Sertão) – Largo; Ária (Cantiga) – Moderato; e Dança
(Miudinho) – Muito animado. A terceira parte — Ária – é que foi retirada do
tema sertanejo de origem indígena da Paraíba chamado Ó mana deix’eu ir.
(De domínio público, em 1960 a música ganhou letra na voz de Othamar
Ribeiro, na trilha sonora do documentário ‘Aruanda’, de Linduarte Noronha,
gravado no interior da Paraíba.). Também nos anos de 1980 conhecemos a
interpretação de Milton Nascimento, através da música Cantiga (Caicó), do
seu disco ‘Sentinela’.
86 A cadência interrompida ou também denominada de engano dá uma sensação
que a música está sendo interrompida, pois ao invés de a resolução da frase
ser na tônica V – I, (numa cadência perfeita), o fechamento é feito no acorde
da superdominante, isto é, com um encadeamento V – VI.
87 I’m in the mood for love. Jimmy Mchugh e D. Fields (1935).
88 “Eu poderia ter dançado toda a noite” (1956), que é uma canção de
Frederick Loewe e Alan Jay Lemer que faz parte do musical My Fair Lady.
É interessante se observar que a canção é cantada pela heroína do musical,
para expressar a sua alegria depois de dançar com seu protetor.
89 Mari Tervaniemi: Cognitive Brain Research Unit, Institute of Behavioural
Sciences, University of Helsinki, Helsinki, Finlândia, 2009.
90 Síndrome cri-du-chat (Síndrome do Miado do Gato) é uma condição
genética relativamente rara que se caracteriza pela deleção do braço curto de
um dos pares do cromossomo cinco. É assim denominada porque o choro
dos recémnascidos é similar ao miado de um gatinho. Foi classificada pelo
geneticista francês Jerôme Lejeune, em 1963, sendo também denominada
Síndrome de Lejeune.
91 Hemiplegia – paralisia ou paresia (diminuição dos movimentos) de um dos
lados do corpo.
92 Afasia Sensorial – a Afasia se caracteriza pelos transtornos na fala e na
linguagem. Na Afasia Sensorial não há transtornos na articulação da fala
mas a linguagem está alterada na sua estruturação. Aparecem problemas nas
relações espaciais e temporais e pode aparecer Amusia que é a dificuldade
para reconhecer a música ouvida ou escrita.
93 Recentemente modifiquei a terminologia testificação musical para
testificação musicoterapêutica para definir que não se trata de um teste de
música mas, sim, de uma avaliação para se perceber quais os elementos
musicais que mais mobilizam o paciente, e como este responde a cada um
deles, com vistas ao início do atendimento.
94 Conceito do psicanalista e musicoterapeuta argentino Rolando Benenzon
(1985) que se refere a um mosaico, que segundo o autor é sonoro e
dinâmico, que caracteriza cada ser humano a partir das suas vivências
sonoro-musicais desde sua vida intra-útero até a sua morte, que vão definir
preferências e desagrados.
95 Cantar, aqui, significa que qualquer manifestação vocal da paciente seria
aceita.
96 Chico Buarque e Vinicius de Moraes (1971).
97 De Victor Young, do filme Around the world in 80 days (1956).
98 Pude observar que havia o predomínio do processo primário de pensamento.
Este predomina sobre o processo secundário em muitos casos de
enfermidades mentais ou orgânicas cerebrais mas sua presença não é
patológica. “Em tais casos, a anormalidade está na ausência do processo
secundário, mais do que na presença do processo primário (BRENNER,
1973, p. 46).
99 É importante observar que com a impossibilidade de a mão direita tocar, as
melodias que Dora passou a evocar eram executadas com a mão esquerda.
Aqui caberia uma discussão sobre o fato de Dora estar transferindo para a
mão esquerda uma ação que era executada sempre pela mão direita. Isto
passou a ser um importante exercício, pois, nesse momento, Dora começava
a trabalhar a mudança de lateralidade em terapia ocupacional, para substituir
a utilização da mão direita, o que estava sendo feito também aqui. Quando
Dora tocava a melodia, com a mão esquerda, eu a acompanhava fazendo a
harmonia com a mão direita, por comodidade com relação à minha
localização no teclado do piano. Mas, devo confessar que eu sentia muita
dificuldade, já que a harmonia é sempre, no piano, executada com a mão
esquerda. Na verdade, eu pude experimentar a ‘estranheza’ que causa a
transferência de lateralidade, mesmo que seja em uma única ação, e pude
avaliar a dificuldade que a paciente deveria estar sentindo, já que estava
bastante comprometida.
100 Cabe destacar que, em geral, a Ficha que tem por objetivo colher a história
sonoro-musical é realizada antes da Testificação Musicoterapêutica, já que
as informações sobre essa história são colhidas na Entrevista Inicial. No
entanto, no caso aqui referido, com a impossibilidade de a paciente falar, a
entrevista foi realizada com seu filho, que só pôde comparecer à instituição
depois de a paciente estar sendo atendida e, portanto, já tendo sido realizada
a Testificação Musicoterapêutica. As etapas estão apresentadas no texto na
ordem em que foram realizadas.
101 Era difícil perceber se Dora tinha transtorno do ritmo ou se a irregularidade
rítmica se devia à dificuldade de evocação das melodias (Dora ia evocando a
melodia pouco a pouco o que podia tornar o ritmo irregular).
102 Ravel perdeu parte da sua capacidade de compor devido às lesões cerebrais
causadas pelo acidente. A sua inteligência sempre se manteve intacta mas o
seu corpo já não respondia adequadamente, por causa de graves problemas
motores.
103 Segundo Gisele Brelet (1957), cada som do discurso musical adquire um
sentido pelo valor de movimento ou de repouso que lhe é imanente. A
mudança supõe necessariamente um ponto de referência. Assim, graças à
tonalidade, todos os elementos sucessivos da melodia se relacionam com um
som e com um acorde fundamental que governam esta sucessão. A
tonalidade realiza, pois, na matéria sonora, esta aliança do movimento e do
repouso, que é a própria definição do tempo.
104 Para Winnicott (1960), o terapeuta também tem como tarefa dar um holding
environment ao seu paciente. Para criar esse ambiente terapêutico seguro, ou
dar um continente, o terapeuta deve ser compassivo e empático para o
cliente. O “ambiente” começa com o terapeuta mantendo uma estrutura
terapêutica no tratamento, que significa que o terapeuta é um indivíduo
confiável e consistente. Em musicoterapia, o ‘continente musical’ seria
“propiciar um ambiente musicalmente seguro através da utilização de
músicas da preferência do paciente ou, ainda de ‘música previsível’.
Publicado como “continente”, sem especificar a música como continente
(BARCELLOS, 1985b, p. 263).
105 Na monografia de conclusão de curso (BARCELLOS, 1975) pode se
perceber a preocupação com a análise da música do paciente e esta
inquietação pode ser percebida em toda a minha produção escrita. No
entanto, embora eu já tivesse utilizado o termo ‘análise musicoterapêutica’
no artigo escrito para o II Symposium Internacional de Musicoterapia,
realizado na New York University em 1982, para o qual fui uma das
convidadas, eu ainda não tinha encontrado uma metodologia adequada para
fazer essa análise. O Modelo Tripartite Molino-Nattiez que eu já conhecia
através de uma palestra do musicólogo francês Jean-Jacques Nattiez,
proferida em 1989 (Porto Alegre) só me foi apresentado formalmente em
1999, quando no Curso de Mestrado (CBM-CeU) fui aceita na UNIRIO
como aluna externa, em uma disciplina sobre Análise Musical (Profa. Dra.
Carole Gubernikoff). Posteriormente, no Doutorado (UNIRIO), fui aluna da
disciplina “Seminários avançados I” (2005) ministrada por Jean-Jacques
Nattiez (que considerou as diferentres famílias de análise do modelo
Tripartite) e pelo musicólogo brasileiro Prof. Dr. Luiz Paulo Sampaio.
Assim, desde 1989 venho trabalhando na utilização dessa metologia para a
“análise musicoterapêutica”, que vem sendo apresentada em vários
congressos e publicações no Brasil (como neste artigo, apresentado em 1986
na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e publicado em 1994 e, mais
recentemente em Musicoterapia: alguns escritos, (2004c), bem como no
exterior, nos Anais do “XII Congreso Mundial de Musicoterapia” realizado
em Buenos Aires, Argentina, (2008), e no jornal online de Musicoterapia
Voices, com o título: Music, Meaning, and Music Therapy under the light of
the Molino/Nattiez Tripartite Model. Vol 12, No 3 (2012). No entanto, é em
A Música como Metáfora na Musicoterapia (tese de Doutoramento em
Música – na área de Estruturação e Linguagem Musicais – UNIRIO, 2009),
que completo os estudos que vinham sendo feitos através de todos esses
anos.
106 O EEG é um exame não-invasivo que analisa a atividade elétrica cerebral
espontânea, captada através da utilização de eletrodos colocados sobre o
couro cabeludo. O objetivo do exame é obter registro da atividade elétrica
cerebral para o diagnóstico de eventuais anormalidades dessa atividade.
107 Iatrogenia é um estado de doença causada pelo tratamento médico ou
farmacológico. Pode, igualmente, ser resultado das ações de outros
profissionais não médicos, tais como psicólogos, terapeutas, enfermeiros,
nutricionistas e dentistas. Além disso, doença ou morte iatrogênica não se
restringe à medicina Ocidental podendo ocorrer nas medicinas alternativas,
de acordo com a origem do termo. Na musicoterapia é a utilização de um
som ou música que, ao invés de trazer benefícios, resulta em aspectos da
ordem da doença. Tem-se como exemplo, um paciente cego com aquisição
de um comportamento autista para o qual o professor de música tocava
durante 30 minutos porque o menino “gostava de dançar” e ficava todo esse
tempo “dançando”. O que para o professor era a dança do menino tratavase,
na verdade, de uma estereotipia que consistia em uma movimentação de um
lado para o outro, como se fosse uma dança. Ele poderia ficar nesse
movimento durante uma sessão inteira sem parar, apesar da cegueira, caso
não houvesse uma intervenção nesse sentido. Sem dúvida, tratava-se de uma
atuação iatrogênica, na medida em que reforçava um aspecto da doença.
108 Qu’est-ce que c’est la Musique en Musicothérapie, no original. La Revue de
Musicothérapie. Paris, v. IV, n. 4, 1984a. p. 37- 48.
109 Denomino equipe informal aquela que é composta por vários profissionais
que trabalham com um mesmo paciente, cada um no seu espaço, ou seja, que
não estão em uma mesma instituição, mas que se reúnem para estudar e/ou
discutir sobre aspectos considerados como importantes para o bom
andamento do trabalho, em contraposição à equipe formal cujos
profissionais fazem parte da mesma instituição que atende o paciente.
110 Em musicoterapia entende-se que o som e a música podem dar continente ao
paciente, isto é, podem propiciar apoio ou acolhimento (conceito de
“continente musical” antes citado). Já havia me referido ao musicoterapeuta
como continente mas, só no texto apresentado publicamente em 1986, e
publicado em 1994, utilizo “continente musical”, como um conceito. Vide
Caderno 3, à página 14.
111 Benenzon cunhou esse conceito a partir do Princípio de ISO (Alsthuler,
1954), e, inicialmente, apontou cinco tipos de Identidades Sonoras:
Individual, Grupal, Coletiva, Complementar e Universal (1985, p. 44).
112 Aqui se utiliza a classificação dos instrumentos de Erich M. Hornbostel e de
Curt Sachs, que em 1914 criaram uma nova classificação, baseada, tanto
quanto possível, em princípios acústicos. Sachs, em seu livro The History of
Musical Instruments (1940), apresenta a classificação, ainda hoje muito
utilizada: instrumentos idiofones, membranofones, cordofones e aerofones.
Percebe-se que, aqui, a paciente introduz instrumentos idiofones maiores,
como o pau de chuva, e aerofones, como flauta e gaita de boca, e um
eletrônico: o teclado. O interessante é que ainda permanece a utilização de
um instrumento mais primitivo – o pau de chuva – como fazendo a ligação
de uma fase para outra.
113 A origem desta história tem várias versões. A mais conhecida é a do escritor
francês Charles Perrault, de 1697, baseada num conto italiano popular
chamado La gatta cenerentola (“A gata borralheira”). A mais antiga vem da
China (860 a.C.). Os psicanalistas veem na história de Cinderela muito mais
do que uma simples trama romântica. Pela origem atemporal e surgimento
em várias civilizações diferentes, a trajetória da protagonista representaria
uma espécie de arquétipo fundamental, traduzindo o anseio natural da psique
humana em ser reconhecida como especial e levada a uma existência
superior.
114 Emília é uma das personagens principais da obra infantil de Monteiro
Lobato, na série relacionada ao Sítio do Picapau Amarelo. Na trama criada
por Lobato, a boneca Emília foi feita por Tia Anastácia para a menina
Narizinho. Emília nasceu muda e é ‘curada’ pelo Dr. Caramujo, que lhe
receitou uma “pílula falante”. É uma boneca que vira gente. Ela é uma
boneca/menina muito inteligente, bonita e divertida. Nao é nem um pouco
tímida e pode conhecer e ficar amiga de pessoas rapidamente! Todos gostam
de conversar e ficar perto dela! Emília foi biografada pelo Visconde de
Sabugosa, que tem um conhecimento enciclopédico, e que aproveita para
dizer o que pensa sobre a boneca.
115 Giselle é um ballet da era romântica e foi criado pelo compositor de ópera
Adolphe Adam. A sua primeira apresentação foi em Paris em 1840. No
primeiro ato, a aldeã Giselle está apaixonada por Albrecht, um nobre
disfarçado de camponês. Quando Giselle descobre a fraude, fica
inconsolável e morre. No segundo ato, o amor eterno de Giselle por
Albrecht, que vem à noite visitar seu túmulo, o salva de ter seu espírito vital
tomado pelos willis espectrais, os fantasmas vampíricos de garotas noivas
que morreram antes do dia do seu casamento, e sua rainha. Giselle dança no
lugar de Albrecht e, dessa forma, impede que ele chegue à exaustão,
quebrando o encanto das willis. No final, ela o perdoa.
116 Rapport é uma palavra de origem francesa que não tem tradução para o
português mas que pode ser entendida como o estabelecimento de confiança,
harmonia e cooperação em uma relação. Esta palavra foi utilizada numa
supervisão em que eu estava presente, dada por Carol Robbins a um aluno,
na New York University, fazendo uma diferença com a utilização de ‘relação
terapêutica’. Para a musicoterapeuta norte-americana, rapport é uma relação
positiva. Segundo ela, uma relação terapêutica pode ter as duas polaridades:
positiva ou negativa. Cabe sinalizar que esta era uma palavra muito utilizada
para se falar de relação terapêutica no início de nossos estudos mas, que se
perdeu no tempo! No entanto, a sua utilização cabe bem nesse processo
terapêutico, pela qualidade da relação que foi aqui estabelecida.
117 Importante cravista brasileiro e responsável pela construção do primeiro
cravo no país e pela gravação dos dois primeiros discos deste instrumento no
Brasil. Foi, ainda, o criador do primeiro grupo de música antiga e é médico
anestesista embora tenha trabalhado por pouco tempo nessa profissão.
118 Iánnis Xenákis foi um engenheiro, arquiteto, teórico musical e compositor,
nascido na Romenia, de pais gregos e naturalizado francês. É considerado
um dos mais influentes compositores do século XX.
119 O médico otorrinolaringologista francês Alfred Tomatis foi o criador do
Método Tomatis que tem por objetivo melhorar o processamento auditivo a
partir da escuta terapêutica de música erudita ou música de concerto.
120 A ontogênese é todo o periodo de desenvolvimento de um organismo, desde
a fertilização do zigoto até que ele se complete como indivíduo adulto e a
Filogênese estuda a História da evolução humana, nomeadamente a
constituição dos seres humanos como sujeitos cognitivos.
121 Todas as sessões foram registradas por escrito e também foi feito registro em
vídeo.
122 Meningite bacteriana é a inflamação das meninges causada por bactérias e
uma das sequelas pode ser a perda da audição.
123 Surdez neurossensorial é a perda da audição devido a problemas no ouvido
interno (cóclea) ou nas vias nervosas que vão do ouvido interno ao cérebro.
É o tipo mais comum de surdez permanente.
124 Registro gráfico que mostra as variações da acuidade auditiva de um
indivíduo, indicadas pelo audiômetro. Os primeiros audiogramas foram
feitos na University of Manchester Centre of Audiology, Education of Deaf
and Speech Pathology. Inglaterra.
125 O Decibel (dB) é a unidade utilizada para medir a intensidade do som.
126 Hertz (Hz) é a unidade que mede a frequência do som.
127 Reflexo Estapediano – reflexo acústico de “atenuação ou acomodação” que
pode reduzir a intensidade da transmissão sonora. A função desse
mecanismo é, em parte, permitir a adaptação do ouvido a sons de diferentes
intensidades e, em parte, proteger a cóclea de vibrações causadas por sons
excessivamente intensos.
128 Exame que avalia a função auditiva.
129 Deve-se destacar que fui consultada da possibilidade de fazer a terapia em
inglês já que não seria recomendável que o paciente adquirisse dois idiomas
ao mesmo tempo. No entanto, embora o meu inglês não fosse fluente, foi
considerado suficiente para tal (a mãe se ofereceu para gravar uma sessão
em vídeo, o que possibilitou que ela me visse atuando).
130 Das latas vazias de Nescau eram retirados os rótulos, e as mesmas podiam
ser transformadas em vários instrumentos musicais, dependendo da forma
como eram “tocadas”. Guizos eram colocados dentro de algumas que,
quando sacudidas, tranformavam-se em chocalhos. As ranhuras que existem
na lata, quando friccionadas com uma baqueta tranformavam-na em um
reco-reco. Percutidas na tampa, com baquetas, convertiam-se em um
pequeno tambor. E, por fim, colocando-se um número determinado de
guizos em cada uma poder-se-ia ter um metalofone, já que cada uma poderia
ter um som determinado e vários sons (várias latas) poderiam resultar em
uma escala onde, por exemplo, podia se escolher dois sons que formassem
uma quinta e tê-los como um “tapete rítmico-sonoro” para uma
improvisação.
131 A fala em retotono é aquela que não tem inflexões sonoras. A pessoa fala
como se fosse um robô, sempre na mesma nota (ou frequência). Mello, 1988.
132 Em 1975 fui convidada pela profa. Carvalho para ministrar a disciplina de
Musicoterapia nas turmas de primeiro, segundo e terceiro anos, embora
ainda fosse aluna do quarto ano. Assim, desde 1975 ocupo o cargo de
professora de Musicoterapia do agora Bacharelado em Musicoterapia do
Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário.
133 O curso de Pós-graduação em Musicoterapia do CBM foi o primeiro do
Brasil (1993) e já está na sua 23a edição.
134 Coordenadoria para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.
135 Muitas vezes são pessoas normais que se dirigem a uma terapia para se
conhecerem melhor e/ou lidar melhor com as suas questões.
136 Aqui se trataria de equipe “interdisciplinar”, na qual os membros se reúnem
para discutir questões relativas aos pacientes. A equipe multidisciplinar é
aquela formada por vários profissionais que trabalham em uma instituição,
mas não se reúnem para discussões sobre os pacientes.
137 Na sala da casa que abrigava o Projeto “Meninos do Rio o Futuro é Hoje”.
138 Por dominar se entende: conhecer, lidar com, ou movimentar-se bem em um
determinado assunto ou área.
139 Sobre este assunto vide o trabalho de BARCELLOS, L. R. M. e SANTOS,
M. A. C., publicado em 1996.
140 Trata-se de um mecanismo através do qual parte do sinal de saída de um
sistema (ou circuito) é transferida para a entrada deste mesmo sistema.
141 Refiro-me ao Dr. Paulo César Muniz, médico neurologista e supervisor de
Musicoterapia da área de Reabilitação Neurológica à época em que este
trabalho foi escrito (hoje psicanalista). Esta reabilitação tem por finalidade
reduzir e minimizar os efeitos das incapacidades físicas e os danos
psicológicos e intelectuais, que muitas vezes as acompanham, por meio de
terapias que visam buscar a restauração das habilidades comprometidas. O
principal objetivo do tratamento é tornar o indivíduo o mais independente
possível.
142 Ver o artigo de Barcellos, L. R. M. sobre Mecanismos de Atuação do
Musicoterapeuta. Rio de Janeiro, 2004d, (não publicado).
143 Ostinatos formados por pequenas séries de notas repetidas, encontradas na
música popular e no jazz, formando uma parte distinta do acompanhamento.
Esses ostinatos podem trazer previsibilidade em algumas situações junto
com sentimentos de segurança e relaxamento. Em outras situações podem
provocar antecipação e aí acumulam e acumulam tensão (BRUSCIA,1987,
p. 247). (Vide o artigo de BARCELLOS e SANTOS, 1996).
144 Como os musicólogos contemporâneos Rink (2003) e Bowen (2003)
consideram o performer.
145 Esa Ala-Ruona é pesquisador e professor da Universidade de Jyväskylä,
uma cidade na região central da Finlândia.
146 O Caderno no 4 foi escrito em 1999 e o modelo de Ala-Ruona foi
apresentado em 2007, na Finlândia.
147 Vide a Entrevista inicial.
148 Graduado em Musicoterapia pelo Conservatório Brasileiro de Música –
Centro Universitário, (1991), o Dr. Niels Hamel é médico, Mestre em
“Behavioral Sciences” e “Art and Creative Therapies” (USA), e “Doctor
Scientiae Musicae” em Musicoterapia com Pessoas de Espectro Autista com
a filosofia cultural de Jean Gebser (Hamburgo). Há alguns anos é Diretor do
Centro de Terapia para Autismo e Coodenador do Setor de Ensino e
Aconselhamento dessa mesma instituição (Bielefeld – Alemanha). Ainda
trabalha como docente no Instituto Alemão-Dinamarquês de Terapia
Familiar em Berlim, baseado e inspirado por Jersper Juul e Instituto Kempler
de Copenhagen.
149 BRUSCIA, Kenneth. Metodological principles: Organizing the sesssion.
Excerto do capítulo 36. Improvisacional Models of Music Therapy.
Springfield: Charles C. Thomas Publishers, 1987.
150 RESOLUÇÃO Nº 466, Conselho Nacional de Saúde, 12 de dezembro de
2012.
151 Quando me refiro ao desenvolvimento do processo musicoterapêutico tanto
pode ser um desenvolvimento evolutivo como involutivo.
152 Os Centros de Atenção Psicossocial têm por objetivo oferecer atendimento
a pessoas com problemas psiquiátricos, realizar o acompanhamento clínico e
a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos
direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Dos
muitos dispositivos de atenção à saúde mental, os CAPS têm valor
estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Com a criação desses
centros se quer uma rede substitutiva e não complementar ao Hospital
Psiquiátrico no país. Os CAPS são serviços de saúde municipais, abertos,
comunitários que oferecem atendimento diário, sem internação. É uma
clínica produtora de autonomia, que convida os usuários à responsabilidade
e os convoca a serem os protagonistas em toda a trajetória dos seus
tratamentos.
153 Musicoterapeuta Coordenadora Técnica do CAPs III, João Ferreira da Silva
(RJ); Musicoterapeuta do Setor de Reabilitação e da Clínica Pediátrica do
Hospital Geral de Guarús (Concursada pela Secretaria Municipal de Saúde
de Campos dos Goytacazes, RJ) e do Centro Integrado de Geriatria e
Gerontologia Ativado, Rio de Janeiro.
154 Na consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), a Estratégia Saúde da
Família (ESF) tornou-se um dispositivo estratégico para inversão do modelo
assistencial curativo e hospitalocêntrico. Em suas diretrizes, tem como
centro a prevenção de doenças, o controle de agravos e a promoção da
saúde. Concomitantemente, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
apresenta-se como serviço de saúde ordenador das ações de saúde mental
nas redes assistenciais. O processo de matriciamento em saúde mental ocorre
na integração das equipes de saúde da família e atenção psicossocial para
acompanhamento das pessoas com problemas psíquicos leves.
155 BARCELLOS, L. R. M. and ÁLVARES, Thelma Sydenstricker. A changing
society and a changing concept of music therapy in Brazil. In: Goodman,
Karen (Ed.). In: International perspectives in music therapy education and
training: adapting to a changing world. Springfield; Illinois: Charles C.
Thomas, publisher, Ltd., 2015. p. 173-201.
156 Bogotá, abril de 2013. Tomaram parte nessa Jornada: Argentina, Brasil,
Chile, Colômbia e Noruega como convidada especial. A Espanha participou
por vídeo conferência.
157 204 milhões de habitantes numa estimativa de julho de 2015.
158 Termo só utilizado para adolescentes.
159 Resultados aferidos pela PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por
Domicílio).
160 RS, PR, SP, RJ, MG e GO.
161 SC, SP, RJ, BA, CE, PI, PE, PA.
162 Segundo levantamento feito pela coordenação do Curso de Pós-Graduação
em Musicoterapia do CBM a partir da região de origem dos alunos que aí
terminaram a sua formação.
163 Respectivamente Fundadora do primeiro Curso de Graduação em
Musicoterapia oferecido no Brasil em 1972 (com Doris Hoyer de Carvalho e
Gabriele Souza e Silva) e coordenadora (de 1976 a 1990).
164 Instituição da Fundação Estadual de Educação de Menores (FEEM).
165 Na administração do Prefeito Luiz Paulo Conde.
166 A Lei Federal de Saúde Mental, no 10.216, que regulamenta o processo de
Reforma Psiquiátrica no Brasil foi aprovada em abril de 2001.
167 Na época Barcellos era a supervisora dos estágios de Musicoterapia em
Saúde Mental (do CBM), mas foi criada uma supervisão exclusiva para os
musicoterapeutas que passaram a trabalhar nos CAPs.
168 Depoimento oral (19 de abril de 2016).
169 INOKUCHI é musicista, musicoterapeuta e tem formação no Bonny Method
of Guided Imagery and Music (BMGIM) (Método Bonny de Imagens
Guiadas e Música). Depoimento escrito por meio eletrônico. 7 de maio de
2016.
170 Arquivo pessoal.
171 Mantida terminologia da época em que o trabalho foi realizado (1993).
Hoje, “Meninos em situação de rua”.
172 Com a organização de songbook (Vandré Vidal: Cancioneiros do IPUB,
1998); Sidney Dantas (Harmonia enlouquece, com três CDs gravados, s/d e
apresentações públicas, incluindo a participação em novela de sucesso da
TV Globo, que pelo alto padrão de produção, exporta essas novelas para
muitos países do mundo; Raquel Siqueira da Silva, (Os Mágicos do Som,
s/d), todos no Rio de Janeiro e Richa e Moraes (Os Impacientes, s/d), em
Juiz de Fora.
173 Núcleo de Apoio às Vítimas de Trânsito (NAVI) – DETRAN (RJ,
2012/2013). Dois últimos trabalhos realizados por Leonardo Gonzaga, aluno
do 4o ano do Bacharelado do CBM-CEU. Este último ainda deve ser objeto
de maiores reflexões para ser definido como musicoterapia. O trabalho no
NAVI continuou como estágio, com a participação da aluna Thalyta de
Matos Azevedo que escreveu uma monografia denominada “A lembrança
que o outro cantou”: Musicoterapia no processo de Luto Inesperado. UNI-
CBM. 2015.
174 Paulo de Tarso de Castro Peixoto é Graduado em Musicoterapia (CBM-
CEU, RJ) e em Filosofia (Unimes, SP), Especialista na Abordagem
Gestáltica, Mestre e Doutor em Psicologia (UFF-Niterói) e tem Pós-
doutorado em Filosofia pela IFCS/UFRJ e pela Université Paris-Est-Créteil,
(Paris XII, França). Todas as informações e citações diretas foram obtidas
através de Comunicação pessoal (27/7/2015).
175 O paciente também começou a pintar com a boca, na Terapia Ocupacional.
176 O curso da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) é um
Bacharelado em Música com Habilitação em Musicoterapia.
177 O Consultório na Rua é uma proposta que procura ampliar o acesso da
população em situação de rua, da forma mais oportuna, à atenção integral à
saúde, por meio das equipes e serviços da atenção básica. As equipes que
trabalham nos Consultórios na Rua (CR) realizam atividades de forma
itinerante e, quando necessário, utilizam as instalações das Unidades Básicas
de Saúde (USB) do território, desenvolvendo ações em parceria com as
equipes dessas unidades. A população atendida é constituída,
principalmente, de usuários de substâncias psicoativas.
178 Alguns com mestrado/doutorado em diferentes áreas, no Brasil, e/ou em
outros países, em musicoterapia.
179 Therese A. Rando (1993), em seu livro Treatment of Complicated
Mourning, apresenta o que ela denomina “luto complicado” e divide este em
sete variações, dentre as quais se encontra o ‘luto inesperado’ que, como o
nome aponta, refere-se a uma perda inesperada por: ataque cardíaco,
acidente vascular cerebral, acidentes (de avião, trânsito, incêndio, enchente,
terremoto, atropelamento, assassinato, eletrocussão ou suicídio). Enfim,
trata-se de qualquer perda repentina.
180 O novo número da CBO do musicoterapeuta (2263-05) já está no Cadastro
Nacional de Estabelecimentos de Saúde possibilitando ao musicoterapeuta a
realização de mais dois procedimentos no SUS: consulta como Profissionais
de Nível Superior na Atenção Básica e Consulta como Profissionais de Nível
Superior na Atenção Especializada. (Reunião da Comissão SUS da UBAM
com a Coordenação Geral de Sistemas de Informação – CGSI/DRAC e do
DATASUS realizada em 18/4/13 de abril, em Brasília).
181 Aqui entendida como Teoria da Música (para diferenciar da Musicologia
Histórica).
182 Um evento fechado, organizado pela New York University, do qual só
tomaram parte 29 convidados de vários países.
183 O autor se refere a algo que é só para conhecer e não para praticar, ou seja,
exclusivamente em nível teórico.
184 Essa “nova” musicologia ou musicologia pós-moderna opõe-se à teoria da
música (ênfase na estrutura da obra) e à “velha” musicologia (ênfase no
cânon da música erudita europeia), propondo-se a lidar com aspectos sociais,
políticos e ideológicos.
185 Considero que dos muitos métodos existentes para fazer uma análise
musical em musicoterapia, o mais adequado é o do linguista, crítico literário
e musicólogo belga Nicolas Ruwet (1932 –2001) que é também utilizado
para a análise do Modelo Tripartido de Jean Molino.
186 Este assunto é o centro da Tese de Doutoramento em Música (Estruturação e
Linguagem Musicais) de Barcellos, que está disponível na Internet.
187 Na musicologia, a transdisciplinaridade emerge da constante preocupação
por alternativas que permitam a elaboração de um discurso musicológico que
transcenda as fronteiras da própria disciplina, sem abandonar as
especificidades técnicas da linguagem musical.
188 Refere-se à Teoria Organísmica do neurofisiologista Kurt Goldstein.
Complexo de ações e reações determinadas pelo conjunto orgânico-
corpóreo: em particular o cérebro visceral (complexo de ações e reações
determinadas por sinapses neurônicas alojadas no aparato intestinal), sistema
cardíaco e pulmonar, estômago e funções sexuais e eróticas.
189 Do Centro de Pesquisa do Envelhecimento (Quebec).
190 Neuropsicóloga belga professora de psicologia na University of Montreal e
do Laboratório de Neuropsicologia da Música e da Cognição Auditiva dessa
universidade.
191 Aqui o autor se refere aos modos rítmicos ou à teoria modal rítmica, na qual
os ritmos correspondem e derivam das classes e terminologias do número de
pés (pequenos grupos de sílabas) nos versos. O iâmbico e trocaico, aqui
citados, são dois dos seis mais comuns desses modos. O iambic se constitui
de duas sílabas sendo uma curta e outra e o trocaic, uma longa e outra curta.
Ou ainda se pode dizer forte e fraca (Berry, Wallace, 1976, p. 310).
192 A fundadora do Setor de Musicoterapia da ABBR e musicoterapeuta dessa
instituição até 2010 foi a musicoterapeuta Gabriele Souza e Silva.
193 Mais conhecida como Paralisia Cerebral.
194 Cabe sinalizar que o estudo foi realizado com 12 sujeitos que não tinham
experiência musical formal, nem com instrumento e, os outros quatro,
tinham menos de três anos de formação musical.
195 As autoras referem-se à escala de tons inteiros de Debussy.
196 Nomes fictícios.
197 Com a psicóloga e Musicoterapeuta Mariana Florenzano Barcellos na
Clínica de Doenças Renais, no Rio de Janeiro, de 2009 a 2013.
198 Relacionada à capacidade que o cérebro tem de realizar conexões entre as
suas diversas partes no desenvolvimento normal do indivíduo, e a novas
conexões quando existem estruturas danificadas. A efetivação dessas
conexões se dá principalmente através de estímulos externos (Dicionário
Médico Ilustrado Blakiston, 1973, p. 482).
199 Todas as sessões do processo terapêutico foram registradas por escrito e
algumas composições gravadas em áudio.
200 Música tema do filme “Tempos Modernos”. Música de Charles Chaplin
(1935) e letra de John Turner and Geoffrey Parsons – 1954.
201 A gravação só foi feita 15 anos após o atendimento porque decidi apresentar
o trabalho com ele desenvolvido em um Congresso. Ele foi capaz de
reproduzir inteiramente a melodia.
202 A Mielomeningocele, conhecida como Spina Bífida, é uma má formação
congênita da coluna vertebral da criança, que dificulta a função primordial
de proteção da medula espinhal, “tronco” de ligação entre o cérebro e os
nervos periféricos do corpo humano. O início do tratamento é o fechamento,
nas primeiras horas de vida, feito pelo neurocirurgião, para proteger e evitar
traumas e infecções. Cerca de 90% dos pacientes com Mielomeningocele
poderão apresentar algum tipo de problema urológico que pode variar desde
infecções urinárias até a perda de função renal e insuficiência renal com
necessidade de diálise e transplante renal.
http://www.crfaster.com.br/mielo.htm
203 Refiro-me a um contato de pessoas que utilizam os iPods durante várias
horas por dia, enquanto ligados à máquina de diálise e que, para
“alimentarem” esses iPods, se mantêm ligados à rede durante muito tempo,
escolhendo e “baixando” as músicas que querem ouvir.
204 Ruud define a musicoterapia como “um esforço para melhorar as
possibilidades de ação de uma pessoa” e explica que isto seria não só
empoderá-la, mas, também, “aliviar algum material ou forças psicológicas
que a mantém num papel de desvantagem” (1998, p. 52).
205 Diário de um Louco.
http://nebulosadereflexoes.blogspot.com/2009/01/dirio-de-um-louco.html
Acesso em março, 2010.
206 Figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressão ou
locução palavras que exprimem conceitos contrários, tais como exatamente
se apresentam no exemplo do texto trazido por Raphael, embora certamente
o paciente não saiba nem tenha conhecimento do oxímoro.
207 O “processo terciário” aparece em vários autores como Winnicott (1971),
Green (1972) e Arieti (1976), mas aqui é utilizado o pensamento de Fiorini
que o define como sendo “um tipo especial de processos de pensamento
ativados no trabalho criador” (1995, p. 15).
208 3a sessão, realizada em 2/04/09 e registrada por escrito.
209 Funk melody é o nome brasileiro que foi dado ao estilo musical que fez
sucesso nos Estados Unidos com o nome de Freestyle, no final dos anos
1980 e início dos anos 1990. No Brasil, o funk melody começou a ter sucesso
no início dos anos 1990. É um estilo musical que utiliza samplers e baterias
eletrônicas.
210 Psicanalista, mestre em Filosofia pela PUC-SP, doutor em Psicologia Clínica
pela PUC-SP, pós-doutor em Filosofia pela UNICAMP. Supervisor do
Ambulatório de Transtornos Somatoformes do IPq – HCFMUSP.
211 Essa afirmação corrobora a importância do conhecimento da história do
paciente.
212 Importante psicólogo norte-americano. Foi professor de psicologia em
Harvard, Oxford e na New York Univesity.
213 Canção que ficou em segundo lugar no “Festival de Música Popular
Brasileira” em 1968 e passou a ser considerada um dos hinos de resistência
do movimento civil e estudantil que fazia oposição à ditadura militar. Por
isso foi censurada.
214 Canção composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros. Ficou imortalizada
no II Festival de Música Popular Brasileira da Rede Record, em 1966, na
voz de Jair Rodrigues.
215 Composta por Geraldo Vandré e Geraldo Azevedo, em 1968, tendo sido
liberada pela censura apenas no início dos anos de 1980.
216 Grifo meu.
217 Análise, explicação ou interpretação de uma obra, de textos ou situações.
218 Seria preferível se falar sobre sentidos e significados na música, partindo do
pensamento de vários autores, aqui apresentado através das palavras de
Ansdell (2003), citado por Ruud (2010, p. 56): “A música não representa
emoção e significado – ela os legitima”. Ou seja: a música não tem
significado, somos nós, ouvintes, que a ela atribuímos significado.
219 Ruud aborda dois tipos de hermenêutica, que se subdividem em três e que
são importantes para a musicoterapia. Vide RUUD, Even. Philosophy and
theory of science. In: WHEELER, Barbara (Ed.). Music Therapy Research. 2
ed. Gilsum: Barcelona Publishers, 2005. p. 36 – 37.
220 Material disponível em https://www.artsy.net/artwork/pablo-picassocabeza-
de-mujer-llorando-con-panuelo.
221 BEATRIZ (Edu Lobo e Chico Buarque) é uma das canções que compõem a
trilha sonora da peça “O Grande Circo Místico”, escrita para o ballet do
Teatro Guaíra (Curitiba) em 1983. Nessa obra, que relata a história do
grande amor entre um aristocrata e uma acrobata de circo, música, balé,
teatro, ópera, circo e poesia estão mesclados. Muitas das canções aí incluídas
alcançaram vida própria o que faz com que o público não tenha ideia de que
façam parte de uma peça de teatro. Isso faz com que nem sempre as letras
sejam compreendidas, visto que estão fora do contexto para o qual foram
criadas. “Mas isso não diminui a beleza das canções nem a leitura que o
público faça delas: o que é belo é belo e ‘todas as leituras são válidas’”.
(Vera Vieira, In: Olhares, pensares e cantares. 2010. Acesso em 24 de julho,
2012). Esta afirmação de Vieira mostra que todos os sentidos que sejam
atribuídos à Beatriz são válidos.
222 Partindo do fato que o prefixo des é empregado como “oposição” quando se
liga a verbos, como, por exemplo: fazer ≠ desfazer, permito-me criar um
neologismo para me referir ao contrário de “significar”, criando
“dessignificar”, ou retirar o significado, o que até hoje ainda não consegui
fazer e o que ainda não vi acontecer com outras pessoas embora tenha
sempre buscado exemplos nesse sentido, dentre os muitos alunos que tenho.
Depois que se atribui um significado a uma música é possível ressignificá-
la, ou seja, mudar de um significado negativo para positivo, ou vice-versa.
No entanto, não acredito que seja possível abolir ou retirar um significado
que lhe tenha sido atribuído, voltando à possibilidade de que muitos sentidos
lhe sejam atribuídos.
223 Disponível em https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/
224 Disponível na Internet.
225 Disponível em: www.google.com.br/search?
q=Michael+Jackson+Andy+Warhol,+1984+Leiloado+em+2009+pela+Galeria++Vered,+e
Quadro leiloado em 2009 pela Galeria Vered, em Nova York.
226 Daniel Joseph Levitin, é um renomado neurocientista, psicólogo cognitivista
e músico norte-americano que dirige o Laboratório de Percepção, Cognição
e Especialização Musicais da McGill UIniversity em Montreal (Canadá). É,
ainda, Diretor do Laboratory for Music Perception, Cognition and Expertise,
nessa mesma Universidade.
227 Estudos de neuroimagística funcional realizados por Levitin apontam que
armazenamos ao mesmo tempo informações abstratas e específicas contidas
nas melodias e, provavelmente, em todos os tipos de estímulos sensoriais.
Estes estudos podem nos levar às associações sinestésicas, ou seja, uma
sensação secundária a uma percepção em outro sentido (Curso de
Psicoacústica realizado em Buenos Aires com o prof. Eduardo Bertola,
1973).
228 “Fato social e semiologia da música” (1975).
229 No entanto, existem músicas que trazem uma situação ou fato, portanto têm
um significado, e não provocam uma emoção especial. Apenas a situação
que ela traz de volta é revivida. Penso que este pode ser denominado
significado neutro, isto é, nem positivo, nem negativo porque embora exista
uma memória afetiva, ela pode não estar acompanhada de uma emoção.
Talvez a lembrança de acontecimentos vividos com alguns pacientes possa
servir como exemplo.
230 Pellitteri é Mestre em Musicoterapia pela New York University, onde foi
também supervisor por muitos anos e tem como área de concentração de
pesquisas a inteligência emocional. Seu PhD é em Aconselhamento
Psicológico.
231 Lembrando-se que na transposição feita por Barcellos do Modelo Tripartido
Molino para a musicoterapia (1999), P refere-se aos processos de produção
(recriação, improvisação ou composição do paciente); N ao nível neutro ou
imanente (ou seja, a obra ou em musicoterapia a manifestação
sonoro/musical do paciente ou a música que o paciente traz ou faz e E
processo de recepção ou escuta do musicoterapeuta.
232 Isto configura um quadro de anóxia de parto ou suprimento inadequado de
oxigênio, o que não deve ter chegado a causar danos.
233 “Tumor maligno originado em alguma porção do sistema nervoso
autônomo” (Dicionário Médico Ilustrado Blakiston, 1973, p. 421).
234 Isto poderia ser ligado ao som do respirador da Unidade Neonatal do Inca
onde esteve internada por tanto tempo.
235 Foram realizadas 286 sessões, na musicoterapia, todas registradas por
escrito. A cada ano um estagiário acompanhava o processo. As 50 sessões
realizadas no primeiro ano de atendimento, de onde foi retirada a situação
aqui relatada, foram acompanhadas pelo estagiário de musicoterapia Niels
Hamel, médico alemão, aluno da autora deste trabalho no então Curso de
Musicoterapia do CBM – CeU, Rio de Janeiro. Hamel trabalha hoje como
musicoterapeuta e diretor de uma clínica para crianças com TEA em
Bielefeld, Alemanha.
236 Na sua tese sobre Semiologia e Análise Musical (2003), o musicólogo Luiz
Paulo Sampaio discute, inicialmente, a questão dos termos semiologia e
semiótica. Citando Winfried Nöth, Sampaio apresenta os termos semiologia
e semiótica como sinônimos, sendo que semiologia vem da tradição
francesa, da linguística de Ferdinand Saussure, e semiótica, na tradição
anglo-saxônica, refere-se à teoria dos signos de Charles Sanders Peirce.
237 Para maiores esclarecimentos sobre o Modelo Tripartido de Molino
recomenda-se a leitura da Tese de Doutoramento de Barcellos, L. R. M., A
música como metáfora em musicoterapia. Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2009. Disponível na Internet.
238 A paciente não conseguia chamar o estagiário de Niels.
239 Em reunião realizada na escola, a professora relatou que Marina ficava
grande parte do tempo retirando os brinquedos de dentro de um saco de
estopa e depois entrava e ficava dentro do saco por grandes períodos de
tempo.
240 Ver SAMPAIO, Luiz Paulo, 2003.
241 Smeijsters refere-se aqui a Daniel N. Stern, da Harvard University, que, no
livro The interpersonal world of the infant: a view from psychoanalysis and
development psychology (New York: Basic Books, 1985), pesquisa a
complexidade da relação mãe-bebê. O conceito de intermodalidade significa
que um impulso pessoal que é expresso em uma modalidade de
comportamento pode ser refletido em outra modalidade. O autor exemplifica
dizendo que, quando um bebê vivencia alegria, ele a expressará com um
sorriso na face. A mãe pode responder sorrindo, ou seja, na mesma
modalidade. No entanto, os achados de Stern apontam que, em geral, as
mães respondem em outra modalidade. Stern afirma que o bebê “entende”
que o comportamento da mãe é uma resposta empática, e que é esta
intermodalidade, e não a imitação, que comunica empatia ao bebê.
242 Embora alguns autores como o arquiteto e encenador suíço Adolphe Appia,
citado por Tarasti (1994), coloquem a música em uma posição dominante na
Ópera, esta tem uma natureza polidiscursiva, pois vários tipos de arte estão
presentes: a música e o canto, poesia, teatro, balé e drama, o que possibilita
ao expectador uma experiência formada por uma simultaneidade de sons,
cores, palavras e gestos, enfim, aí estando superpostas várias modalidades de
arte. Transpondo-se isto para a musicoterapia, pode-se exemplificar este
conceito mostrando que, quando um paciente faz sons, o musicoterapeuta
pode responder fazendo movimentos, por exemplo, o que se aproxima do
que nos fala Stern ilustrando a importância da intermodalidade, com a mãe
respondendo ao sorriso da criança em outra modalidade, como através do
olhar, por exemplo. Pode-se entender a importância deste conceito quando
utilizado em musicoterapia.
243 Nos trabalhos iniciais (BARCELLOS, 1982), pode-se ler, também, “leitura
musicoterápica”.
244 De Getúlio Macedo e Lourival Faissal (1952). Música composta para o Dia
das Mães, festejado no Brasil pela primeira vez nesse ano, sempre no
segundo domingo de maio.
245 Grifo da aluna no relatório apresentado por escrito (2012).
246 Relatório apresentado por escrito (2012).
247 Johann Sebastian Bach (1641).
248 Grifo meu.
249 De Nora teve acesso a sessões de musicoterapia e contato com
musicoterapeutas que trabalharam com pacientes em saúde mental, com
crianças com problemas de aprendizagem e frequentou a biblioteca do
Centro Nordoff-Robbins de Londres para estudos na área.
250 Aqui ainda não tinham a denominação de técnicas, mas já apareciam na
descrição da prática clínica, em Thayer y Gaston, no original em inglês.
251 O autor a elas se refere como “métodos”.
252 Refiro-me aqui ao Autismo Infantil de Kanner (1943).
253 Expressão utilizada por Collin Lee. 2003, p. xvi.
254 No primeiro ano do curso de Doutoramento do Programa de Pós-Graduação
em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, (PPGM –
UNIRIO), 2005.
255 Refiro-me à ‘prática terapêutica’ para caracterizar que muitas vezes a
musicoterapia está inserida em espaços que não são formalmente clínicos
como, por exemplo, o trabalho que realizamos, a Musicoterapeuta Lenita
Moraes e eu, com meninos em situação de rua, no projeto Meninos do Rio o
Futuro é Hoje, numa casa localizada no Morro Pavão/Pavãozinho, em
Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1993.
256 Sixty-four Techniques in Improvisational Music Therapy. (1987, p. 535 –
537). Texto traduzido por mim em 2000 para ser utilizado na disciplina
Teorias, Técnicas e Métodos nos Cursos de Graduação e Pós-graduação em
Musicoterapia. Aqui o autor denomina “técnicas clínicas”.
257 Emoção e Significado em Música.
258 Grifo do autor que comenta que o termo boa não está definido.
259 Embora as palavras “completude” e “incompletude” não aparecessem nos
dicionários de português à época em que a técnica foi descrita, foram
utilizadas para significar “fechamento” e “não fechamento”,
respectivamente, a partir da sua existência na Lógica onde aparecem no
Teorema da Incompletude, de Kurt Gödel.
260 Um aspecto importante para a utilização do princípio da completude, como
fundamentação para a técnica provocativa musical, é a observação de Meyer
sobre o fato de que os teóricos da Gestalt reagem contra a associação entre
percepção e teoria da aprendizagem, ou seja, eles tendem a minimizar ou
negar o papel da aprendizagem na percepção e organização de figuras,
declarando que há uma “organização espontânea de figuras simples” (1956,
p. 84).
261 Deve-se observar que Nattiez admite que mesmo um som sem registro pode
ser considerado um vestígio, ou pista. Comunicação em entrevista pessoal na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, em 11/5/2005.
262 Grifos para sinalizar os aspectos que Meyer se refere como constituintes do
princípio da completude.
263 Atendi de 10/11/1978 a 26/5/1981, durante 2 anos e 6 meses, totalizando
143 sessões, um paciente autista, A. com cinco anos. No registro escrito da
última sessão lê-se uma última frase: “despedimo-nos e eu lhe disse que na
hora que ele quisesse me encontrar era só pedir aos pais que me
telefonassem”. Ele mesmo me ligou 11 anos depois da alta, em 31/12/1992,
na véspera do Ano Novo, para me cumprimentar. A partir das observações
que ele fez sobre o atendimento, nesse telefonema, decidi gravar uma
entrevista com ele, em vídeo, com a anuência dele e dos pais. Nesse vídeo,
em conversa comigo, percebe-se que, mesmo transpassando-nos com o
olhar, nas sessões, parecendo não ouvir e, no início, não participando do que
fazíamos, sabia, ainda agora, 11 anos depois, tudo que tínhamos feito e
nomeava e descrevia fisicamente as então estagiárias Clarice Moura Costa e
Maria Cecília de Carvalho.
264 The Grieg Effect. STIGE, Brynjulf. 2007.
265 Por um trecho conhecido do paciente quero significar, também, uma
improvisação que passa a ser conhecida pelo paciente, se executada
reiteradamente, mas não está grafada musicalmente nem veiculada por
nenhum dos meios de comunicação.
266 Encefalopatia Crônica da Infância – ECI.
267 Paralisia parcial de um dos lados do corpo.
268 Pascaline Regnault, do Centre National de la Recherche Scientifique,
Marseille; Emmanuel Bigand, da Université de Bourgogne, Dijon e Mireille
Besson, do Institut de Neurosciences Cognitives de la Méditéranée, Centre
National de la Recherche Scientifique de la France University.
269 Potencial Evocado Auditivo é um teste que reflete o uso funcional que o
indivíduo faz do estímulo auditivo, sendo altamente dependente das
habilidades cognitivas, entre elas atenção e discriminação auditiva.
270 A paciente teve um “aneurisma da artéria comunicante posterior esquerda”
e, imediatamente após, um “espasmo arterial difuso” que aumentou a
gravidade do quadro.
271 Maurice Ravel (1875-1937) teve alterações cognitivas de etiologia
desconhecida, com compromisso importante do hemisfério esquerdo. As
primeiras manifestações da doença foram aos 42 anos. Teve problemas na
escrita e na conversação. Foi assistido pelo famoso neurologista Pascale
Alajouanine que detectou que o compositor tinha incoordenação dos
movimentos. A partir de então tinha dificuldades para tocar piano e traduzir
para a pauta as ideias musicais, mas seu juízo e a sensibilidade artística se
mantiveram. Ainda compôs os concertos para piano e orquestra: para mão
esquerda, e em Sol, e as três serenatas de D. Quixote para Dulcineia.
Posteriormente teve um acidente de táxi, que não se sabe se teve efeitos na
doença já existente. Suspeitou-se de hematoma subdural crônico que o levou
a uma cirurgia que nada esclareceu. Seu médico, auxiliado por um aluno do
compositor, criou o teste adaptado por mim para ser utilizado com Dora,
para que se pudesse saber como a doença tinha afetado a sua capacidade
musical depois do AVE.
272 Esse teste, adaptado em 1976, foi publicado no Caderno de Musicoterapia
2, e está aqui incluído, no artigo que se refere ao tratamento de Dora.
273 I’m in the mood for love, de Jimmy Mchugh e D. Fields, (1935).
274 Cabe dizer que quando Dora tocava músicas cujas melodias eram muito
difíceis e que ela não conseguia “encontrar” as notas, eu cantava a nota a ser
executada (só o som, sem nomear a nota) e ela imediatamente tocava, o que
caracteriza um excelente ouvido e uma grande musicalidade que eram
evidenciados na execução de uma mesma música em diferentes tons, ou seja,
“onde a mão caísse”, apesar da afasia sensorial.
275 A Cadência Interrompida, “também chamada de Cadência de Engano, cujo
nome fala por si só, dirige-se excentricamente da dominante para um
inesperado acorde final que não o da tônica, normalmente superdominante”.
(Dicionário Grove de Música, 1994, p. 153).
276 A música de I Could Have Danced All Night foi composta por Frederick
Loewe e o livro e a letra são de Allan Jay Lerner. Trata-se de uma
composição feita para o musical e filme My Fair Lady. Julie Andrews a
interpretou na Broadway, e Audrey Hepburn no cinema. Muitas vezes ela
começava a tocar uma música e uma célula melódica ou rítmica poderia
levá-la a continuar em outra música o que parece ter acontecido aqui, mais
uma vez.
277 Apesar de a escolha das músicas não ter ligação direta com o assunto aqui
apresentado deve-se pensar na importância que estas e tantas outras músicas
devem ter tido na vida de Dora e a contribuição que elas deram ao
desenvolvimento do processo musicoterapêutico e à sua reabilitação e
retomada da vida normal, ainda que com a sequela motora, que se mostrou
quase irreversível. No entanto, cabe observar que a paciente retomou a sua
relação amorosa, assim que saiu do hospital.
278 Parabéns pra Você tem origem na canção Good Morning to All (Bom Dia a
Todos) de Preston Ware Orem publicada em 1893 e oficialmente registrada
em 1935 pela Summy Company.
279 Os pontos representam as interrupções e o maior ou menor número deles
significa maior ou menor tempo de espera.

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