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Quaternos de Musicoterapia e Coda
Quaternos de Musicoterapia e Coda
DE MUSICOTERAPIA E CODA
Agradecimentos
À minha família
Aos meus professores
A Kenneth Bruscia
Às instituições de educação onde trabalho como docente
Às instituições que me receberam para o exercício da prática
clínica
Aos meus amigos
Aos meus colegas
Aos meus alunos
Aos meus pacientes
PREFÁCIO1
Esta coleção dos “Cadernos’ oferece uma rica amostra das muitas contribuições
em musicoterapia de Lia Rejane Mendes Barcellos, uma liderança nos círculos
da musicoterapia no Brasil, América do Sul, e no mundo. Torna-se difícil captar
integralmente todas as suas contribuições nesse campo, e a importância pessoal e
profissional que tem demonstrado no que se refere ao desenvolvimento da
musicoterapia. Ela já ocupou muitas funções em diferentes espaços e tem
compartilhado seus insights acerca da musicoterapia pelo mundo.
Meu objetivo, nesse prefácio, é assinalar que esses Cadernos são
importantes em vários sentidos. Inicialmente, eles enfatizam a relevância dos
fatores culturais na prática clínica, na teoria e na educação em musicoterapia.
Lembro-me, claramente, ouvir de Rejane o tema da cultura, em nossas
discussões no Simpósio A Música na Vida do Homem, realizado na New York
University em 1982. Hoje em dia eu percebo, nitidamente, que Rejane já
mencionava questões do multiculturalismo muito antes do início do movimento
centrado na cultura, que surgia no alvorecer do século XXI. Ela estava muitos
anos à nossa frente.
Outro tópico a se destacar nesses Cadernos é a centralidade da música na
musicoterapia. Uma vez mais ela mostrou o caminho sendo uma das primeiras
proponentes do que alguns denominam na atualidade “musicoterapia centrada na
música”. Grande parte do seu trabalho trata da importância da música: sua
prática clínica, sua utilização de conceitos que elucidam a musicoterapia e seus
estudos de doutorado e a tese em musicologia. Rejane tem nos demonstrado
continuamente que a terapia se baseia na música.
Digno também de ser lembrado é que todos esses Cadernos estão imersos
em seu trabalho clínico. Suas ideias não são hipóteses ou carecem de
embasamento, ao contrário, foram construídas ao longo dos anos durante os
quais vem clinicando e estudando a prática clínica com uma clientela
diversificada. Acima de tudo, Rejane é uma profissional com profundo
conhecimento e maestria e que escreve a partir dessa perspectiva.
Finalizando, registro que é estimulante para mim que, mesmo nessa
pequena amostra compilada de seus escritos, Rejane destaca que a prática
clínica, a teoria e a pesquisa não podem ser discutidas sem considerarmos a
formação e a supervisão dos musico terapeutas. Toda nova prática gera
implicações na formação e na supervisão, assim como novas teorias e estudos de
pesquisa. Para que o campo cresça, todos esses aspectos da disciplina devem ser
considerados no seu todo, e Rejane tem reconhecido esse fato desde o início de
sua carreira.
Rejane ocupa um lugar central no coração da musicoterapia. Espero que os
Cadernos levem o leitor a compreender o porquê do meu respeito profissional,
profundo e duradouro, pela minha querida amiga de toda uma vida: Rejane!
Kenneth Bruscia
APRESENTAÇÃO
Há algum tempo deveria ter revisado e ampliado os quatro Cadernos de
Musicoterapia, publicados de 1992 a 1999. No entanto, vários foram os motivos
que me levaram a adiar essa tarefa: desde as exigências pessoais até os
compromissos que ocupam nosso tempo quase integralmente, fazendo com que
se adie aquilo que dá prazer, como é o caso de escrever. Por outro lado, é preciso
lembrar que uma revisão leva ao passado, a situações onde se revive o encontro
com pessoas/pacientes com quem foi estabelecida uma relação de afetividade, e
isto, sem dúvida, é reviver algo que não volta mais.
Contudo, seria necessário refazer essas pequenas publicações, com um
olhar atual, e com a inserção de novos textos, alguns escritos para apresentação
em congressos, palestras, ou ainda, para serem empregados como material
didático de disciplinas como “Musicoterapia”, da qual sou professora titular
desde 1976, no Bacharelado em Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de
Música do Rio de Janeiro – Centro Universitário (CBM-CeU); “Teorias e
Técnicas Musicoterápicas”, por mim inserida nesse mesmo curso em 1982, e
“Música em Musicoterapia”, que passou a integrar a grade curricular a partir da
década de 1990. Estas disciplinas são ainda hoje por mim ministradas tanto no
Bacharelado como no Curso de Pós-graduação em Musicoterapia dessa mesma
instituição, criado em 1993 e ainda hoje sendo oferecido, e em cursos do mesmo
nível existentes em muitas outras instituições brasileiras.
Ainda cabe uma observação sobre o fato de os textos inseridos nestas
publicações terem sido apresentados em eventos, como referido acima e, por
isso, ser importante que sejam lidas as notas de rodapé para que se saiba o ano
em que foram escritos.
O objetivo de relançar e ampliar os Cadernos é o de poder atualizar e
divulgar o meu trabalho tanto teórico – refletindo sobre a Musicoterapia —,
quanto prático/clínico, instigando e provocando críticas e discussões que possam
vir a contribuir para o des envolvimento da área.
Mas, uma reedição implica em se pensar que fontes primárias vão conviver
com obras contemporâneas. Essa coexistência se justifica, em primeiro lugar,
porque os Cadernos foram editados na década de 1990, quando a literatura da
área era ainda bastante limitada. Contudo, deve-se ressaltar que as fontes
primárias se constituem como um material precioso. Por outro lado, necessário
se faz assinalar que nestes 20 anos não tivemos grandes avanços no que diz
respeito a publicações brasileiras em livro, na área de musicoterapia.
Atualmente, no entanto, a literatura da musicoterapia em nível mundial se
expande com grande rapidez em outros espaços geográficos, como, por exemplo,
nos países nórdicos, onde existem e se desenvolvem centros de excelência no
ensino da musicoterapia, e onde estão grandes pensadores da área.
Mas, ainda se faz relevante repetir uma questão que vem sendo levantada
por muitos daqueles que falam sobre música, que se refere à dificuldade de
explicar os processos musicais em palavras e que cabe perfeitamente nas
discussões sobre musicoterapia. O musicoterapeuta argentino Diego Shapira
(2002) a ela se refere, embora sem nomeá-la. Referindo-se à busca de
explicações dos processos musicoterápicos, Shapira considera que algumas
vezes chegamos a caminhos que podem ser considerados como inexplicáveis, de
uma grande dificuldade, quando não impossível, para verbalizar o que ocorre
“além das fronteiras do verbo, na experiência que só pode se registrar no
momento em que submergimos nesse sentido último ao qual as palavras não
chegam” (SHAPIRA, 2002, p. 32).
Trata-se da questão que foi denominada pelo musicólogo Charles Seeger
como “o dilema de Seeger”, utilizado para o campo da etnomusicologia, citado
pelo musicólogo e musicoterapeuta britânico Gary Ansdell, no livro do também
musicoterapeuta norteamericano Kenneth Aigen e que se refere ao fato de se
usar “estratégias verbais para falar sobre processos musicais” (2014, p. 94).
Partindo das ideias de Seeger, Ansdell2 — que entende a musicoterapia
como sendo, fundamentalmente, um processo musical — afirma que o problema
é encontrado quando se emprega a linguagem verbal para apresentar os
processos da musicoterapia. O foco principal do autor é sobre “o uso de palavras
em contextos profissionais (publicações e palestras) como oposição aos
contextos clínicos (sessões de musicoterapia)” (apud Aigen, 2014, p. 94). Ou
seja, para Ansdell também existe grande dificuldade em se transpor para
palavras os acontecimentos musicais da prática clínica e esta é, em última
instância, uma manifestação recente do “Dilema de Seeger”, que ele denomina
“o dilema do musicoterapeuta” (idem). Este dilema sustenta o pensamento que
“usar estratégias verbais para falar sobre os processos musicais — e, mais
especificamente, definir a relação entre os processos musicais e os ‘processos
terapêuticos’” — vai resultar, inevitavelmente, em uma incompatibilidade entre
a descrição e o que está sendo descrito. Ansdell ainda afirma que este dilema não
estaria presente se os musicoterapeutas funcionassem somente na prática clínica
sem a necessidade de discutir ou apresentar seus trabalhos seja em fóruns com
seus pares ou em publicações (ibid).
No entanto, sabe-se que não é possível a prática clínica prescindir da
teoria, tanto quanto deixarmos de apresentar os processos terapêuticos que
vivemos. Eles levantam discussões importantes, questionamentos e até respostas,
daqueles que se dedicam à musicoterapia clínica, supervisão, docência, aos que
fazem teoria, e trazem exemplos importantes para alunos em formação ou, até,
aos novos profissionais.
A reapresentação dos quatro Cadernos — reunidos em uma edição única e,
por isto, denominada Quaternos e Coda — tem como objetivo levantar questões
que possam alavancar outros pensamentos, levando-nos, cada vez mais, a refletir
sobre nossas práticas clínicas, pois, sem elas a musicoterapia não existe, sem a
teoria, não se sustenta, e sem a pesquisa, não constrói conhecimento.
Lia Rejane Mendes Barcellos
Rio de Janeiro, 2016.
2. Gary Ansdell trata dessa questão em “Music Therapy as discourse and
discipline: A study of “music therapist’s dilemma”. (Doctoral Dissertation,
City University, London, 1999).
SUMÁRIO
Cover Image
Title Page
Agradecimentos
Prefácio
Apresentação
Música e Terapia
Musicoterapia e Cultura
Cultura e identidade cultural
Música, musicoterapia e cultura
Considerações finais
Nota Introdutória
Nota Introdutória
Caderno 4: Metodologia
Apresentação
Sobre a História do Caderno 4
Referências
Notas
CADERNO 1
Música, Musicoterapia e Cultura
MÚSICA E TERAPIA
A música é utilizada como elemento terapêutico há mais de trinta mil anos, mas
a musicoterapia, como profissão, existe há pouco mais de cinquenta anos. O seu
valor em terapia tem sido reconhecido através dos tempos e a musicoterapia tem
hoje um vasto campo de atuação.
Embora não seja descrita como “musicoterapia”, a música é ainda hoje
utilizada como cura em inúmeras tribos e outras sociedades não tecnológicas na
Ásia, África, Austrália, América, Oceania e Europa, como nos mostra a literatura
de Etnomusicologia.
Segundo a American Music Therapy Association1, a ideia da música como
“influência de cura”, podendo afetar a saúde e o comportamento do homem, é
tão antiga quanto os escritos de Platão e Aristóteles. No entanto, a profissão
nasce, formalmente, depois das duas grandes guerras que ocorreram na primeira
metade do século XX, informação dada por todos aqueles que se debruçam sobre
o estudo das origens da musicoterapia. Para esses autores, a semente da profissão
foi plantada após a I Guerra Mundial, tendo como principais protagonistas os
músicos, profissionais e amadores, que tocavam nos hospitais para os milhares
de feridos que sofriam de traumas tanto físicos quanto emocionais. No entanto,
após a II Guerra Mundial, as respostas obtidas com o emprego da música nos
hospitais foram as responsáveis pelo interesse de médicos e enfermeiros para
empregar músicos nessas instituições. Mas, logo ficou evidente a necessidade de
formação de profissionais capacitados para desenvolver tal trabalho.
Assim, para suprir essa necessidade, na década de 1940 começaram a ser
criados cursos em universidades americanas, sendo o primeiro na Universidade
do Estado de Michigan, em 1944, seguida por outras universidades.
Três inovadores emergiram como pessoas-chave para a organização tanto
da formação de profissionais como da musicoterapia clínica: o psiquiatra e
musicoterapeuta norte-americano Ira Altshuler, que promoveu a musicoterapia
por três décadas e que é bastante conhecido dos profissionais da área por ter
cunhado o Princípio de ISO, apresentado em 19542; Willem van de Wall3, que
foi o pioneiro no emprego da musicoterapia em instituições financiadas pelo
Estado e que escreveu Music in Institutions (1936), e o não menos importante
Everett Thayer Gaston que é considerado o “pai da musicoterapia”, e que a
impulsionou do ponto de vista organizacional e educacional, além de ter escrito
com colegas um dos primeiros livros sobre o assunto: o Tratado de
Musicoterapia, publicado em 1968, e traduzido para o Espanhol em 1971, obra
que até hoje se constitui como importante fonte primária de consulta e estudo
para os que transitam na área.
No Brasil, o primeiro curso de graduação foi criado em 1975, no
Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, orquestrado pelas
pioneiras: professoras Cecília Fernandez Conde, Dorys Hoyer de Carvalho e
Gabriele Souza e Silva.
Mas, algumas questões devem ser consideradas com relação às origens da
musicoterapia: a primeira delas é que se voltando às vertentes da musicoterapia
percebe-se que além das práticas que utilizavam a música no xamanismo, nas
sociedades não tecnológicas, e nas realizadas com os veteranos de guerra
internados em hospitais, também se deve pensar em uma terceira vertente, que
certamente vem da educação musical – originada em países de forte tradição no
campo – e que vai desaguar na musicoterapia na educação especial. Isto fica
claro na cuidadosa pesquisa sobre o desenvolvimento da musicoterapia no Rio
de Janeiro, realizada pelas musicoterapeutas Clarice Moura Costa e Clarice
Cardeman, e publicada em 2008. Evidências que a musicoterapia tem a educação
musical como uma das vertentes, podem ser constatadas na afirmação das
autoras, que entendem que
Cena clínica 1
Como primeiro exemplo, para ilustrar o que acabei de afirmar sobre a
importância do universo sonoro durante a vida intra-uterina, eu gostaria de
apresentar o caso de uma paciente chamada Ana, nome verdadeiro da paciente
que será mantido porque a sua utilização foi importante para o desenvolvimento
do processo musicoterapêutico12.
Ana era uma menina de cinco anos, portadora de Paralisia Cerebral. Não
tinha adquirido a marcha nem a fala e apresentava uma ambliopia grave13.
Como decorrência deste quadro, Ana adquirira um comportamento autista, ou
seja, não se comunicava de forma alguma. Por causa desta falta de
comunicação só era possível um procedimento em fisioterapia passiva, já que
Ana era simplesmente indiferente ou refratária a tudo que se passava à sua
volta.
Comecei a trabalhar com Ana e nada chamava a sua atenção. Ela
continuava em seu mundo. Decidi então utilizar elementos da chamada
“identidade sonora universal”, conceito desenvolvido pelo psiquiatra e
musicoterapeuta argentino Rolando Benenzon (1985). Para o autor, “a
‘identidade sonora universal’ é uma identidade que caracteriza ou identifica a
todos os seres humanos, independente de seus contextos sociais, culturais,
históricos e psicofisiológicos particulares” (ibid., p. 46).
Desta identidade sonora fazem parte os sons e o ritmo do batimento
cardíaco, sons de inspiração e expiração, enfim, todos aqueles sons e ritmos
com os quais todos, universalmente14, independente da cultura onde estão
inseridos, têm contato na vida intra-uterina, por exemplo.
Utilizando um atabaque, instrumento primitivo e que possibilita que se
refaça de forma mais aproximada esses sons, comecei inicialmente a fazer o
ritmo do batimento cardíaco. Eu segurava o instrumento com a abertura virada
para Ana. Esse ritmo era intercalado com o raspar de unhas de forma circular
na pele do instrumento, numa tentativa de refazer os sons resultantes de
movimentos peristálticos.
Durante algumas sessões utilizei estes sons e Ana começou, pouco a
pouco, a se aproximar da abertura do instrumento até acabar colocando a
cabeça dentro do mesmo. Continuei com o batimento cardíaco e comecei com
voz, fazendo “an”, através da pele do instrumento. Empreguei este som por se
tratar do início do seu nome, ser de fácil emissão e permitir uma vibração muito
forte na produção do N, sempre com a boca colocada muito próxima da pele do
instrumento (mas não encostada). Gradativamente fui utilizando o nome de Ana,
enfatizando o “an” e procurando a frequência que vibrasse mais a pele do
instrumento, por ressonância15.
Pouco a pouco, Ana começou a responder fazendo o som “an”. Mantendo
o batimento cardíaco intercalado com o roçar de unhas, fui introduzindo o
“Ana”, inteiro. Passei depois a retirar o instrumento no momento em que dizia
“an” ou Ana, e voltava a colocá-lo. Aumentei os momentos em que o atabaque
era retirado e, pouco a pouco, Ana respondia à minha voz, sem o instrumento.
Estabeleceu-se, então, uma comunicação já sem o “objeto intermediário”16 e, a
partir daí, outros elementos foram sendo introduzidos levando Ana a abrir-se
para uma comunicação interpessoal que possibilitou a sua abertura para o
mundo e, mais tarde, a colocação de outros procedimentos terapêuticos, como
por exemplo, a fisioterapia, o que permitiu que, alguns meses depois, Ana
adquirisse a marcha.
Cabe ressaltar que este foi um processo desencadeado exclusivamente pela
utilização de elementos rítmico-sonoros que fazem parte da nossa vivência
intra-uterina e que se estendeu por algum tempo.
Seguindo na nossa caminhada, para pensar a importância do sonoro na vida
do homem, chegaremos à primeira manifestação sonora do neonato – o choro.
No entanto, só a partir da terceira semana é que aparece a primeira emissão
sonora intencional, ou seja, a primeira comunicação, que é o grito para chamar
atenção. Surgem então, nessa época, segundo o psicanalista francês Didier
Anzieu, citado pela psicanalista Miriam Chnaiderman (1989), quatro tipos de
grito que têm estruturas e funções distintas. São estes: “o grito de fome, de
cólera, de dor, de origem externa ou visceral, e o grito de resposta à frustração”
(p. 97-98).
Depois de cinco semanas, o bebê já distingue a voz materna das outras
vozes, embora ainda não diferencie o rosto materno de outros. Há, portanto, uma
anterioridade do sonoro sobre o visual. Na verdade, afirma Chnaiderman, ainda
fazendo coro com Anzieu: “O fato é que o espaço sonoro é o primeiro espaço
psíquico” (1989, p. 99). A autora ainda afirma que o inconsciente do novo ser
humano, o inconsciente que ainda está por nascer, “banha-se no sonoro que
funde e nutre esse inconsciente, em sua aparição primeira” (ibid., p. 94).
Assim, pode-se imaginar a importância que têm os acalantos,
principalmente quando cantados pelas mães enquanto ninam seus filhos, pois
“Não há dúvida que o ninar é uma forma da mãe dar continência ao bebê”, no
pensamento do psicanalista Jeremias Ferraz Lima (1986, p. 38). Mais tarde, as
cantigas de roda exercem um importante papel na elaboração de aspectos do
desenvolvimento, uma vez que as crianças podem assumir diferentes papéis
dentro do jogo, através de elementos como agressividade, ansiedades não
resolvidas, enfim, aspectos que encontram nessas canções o conforto vindo do
social.
Como dissemos anteriormente, fazemos parte de uma “paisagem sonora”.
Inicialmente é interessante observar que o educador musical e músico canadense
Murray Schafer (1997) se utiliza de uma palavra ligada a uma história cultural e
social do olhar, para significar algo a ser percebido por outro sentido – a audição.
Esta paisagem sonora, que não é formada só pela música nem só pelos ruídos,
impõe-se pouco a pouco na nossa cultura, o que faz com que aconteça uma
modificação na nossa sensibilidade cultural. Não mais só aos nossos olhos, mas,
também, aos nossos ouvidos, novos objetos perceptíveis começam a ser
construídos.
A partir destas novas maneiras de se perceber o meio ambiente, ou de ouvir
o meio ambiente sonoro, poder-se-ia esperar a promessa de uma nova maneira de
compreendê-lo?
Será possível ultrapassar-se a radical contradição que na nossa civilização
desde longa data opõe o discurso sobre o ruído e o discurso sobre a música? É
possível falar-se de uma experiência sonora em geral? Ou ainda, para se
aproximar de interrogações musicoterápicas: a escuta no espaço cotidiano e a
escuta no espaço clínico, bem como a produção de sons em ambos, não fazem
parte da mesma experiência sonora humana?
Na medida em que se admite o significado de paisagem sonora há uma
introdução progressiva da descoberta do cotidiano sonoro na pedagogia infantil.
Pouco a pouco se modifica a representação sonora que era totalmente dominada
por uma concepção negativa e se altera, gradativamente, a ideia de
‘maniqueísmo sonoro’. Além disso, os observadores científicos começam a
reconhecer que as campanhas sobre os ruídos produzem uma sensibilização aos
mesmos.
Ainda outra questão: a escassez de códigos para se falar do som. A nossa
sociedade, bem diferente das sociedades silvestres tradicionais17, não sabe falar
de sons a não ser utilizando uma linguagem da acústica, da fonologia ou da
música. Toda ou qualquer outra forma para se referir à experiência sonora que
não utilize um destes três códigos autorizados, socialmente reconhecidos na
“república do saber”, é reputada como insignificante.
A atitude de ouvir torna-se estritamente passiva. A consciência dos ruídos
que nós fazemos ficou confinada a certas atividades muito específicas como
atividades profissionais ou lúdicas, não sendo estes ruídos reempregados em
outros setores da vida cotidiana. Sem dúvida, já existe na pedagogia musical e na
fonética uma verdadeira reflexão sobre o ato sonoro, mas ainda são raras as
pontes que se fazem entre estas disciplinas. É absolutamente importante se
pensar sobre a experiência sonora em geral sem esquecer a dimensão coletiva, as
sensibilidades culturais ou a percepção sonora.
A partir do fim do século XIX, paulatinamente foi imposta uma ideia de
que seria necessário repensar a matéria musical. Um pouco mais tarde,
compositores tentam introduzir nas suas obras musicais a imitação dos sons de
batalha, dos cantos de pássaros, gritos urbanos e outros sons correntes, que
atravessam a História da Música, ainda de forma discreta. Entretanto, só nos
anos 50 aparecem dois conceitos básicos para pensar o “sonoro” em geral. São
eles, o de “objeto sonoro”18 e o de “paisagem sonora”, anteriomente
apresentado. São dois conceitos relevantes, principalmente para a musicoterapia,
que não pode tratar do homem sem respeitar a sua experiência cotidiana e a sua
inserção na cultura, utilizando inicialmente como ferramenta o mundo
sonoro/musical na qual esta pessoa esteve e/ou está inserida e contribuindo,
gradativamente, para a ampliação deste mundo.
É importante ser ressaltado que os sons musicais facilitam as relações
interpessoais. Eles aproximam ou reaproximam os homens, levam-nos a se
agruparem, a cimentar uma empatia que, no dizer de Jean-François Augoyard
“na História, não foram utilizados para as melhores causas” (1989, p. 4).
Atribui-se, ao contrário, ao ruído, o poder de separar, de dividir, de isolar o
indivíduo. Todavia, sons e ruídos permitem que se estabeleçam relações
interpessoais, que elas tomem forma e sejam exprimíveis.
Por outro lado, a função musical pode ser exercida em estados emocionais
mobilizadores de situações psíquicas específicas. Estas situações podem
expressar vivências incontáveis através das cantigas de ninar e até dos sons
cósmicos de meditação, passando pelos temas românticos da juventude, pelas
melodias marciais e pelas grandes composições musicais da História da Música,
ainda no dizer de Carlos Byington (1990).
Caberia aqui ilustrar o que foi dito, com uma situação clínica de um
paciente que expressou através de uma música, uma ameaça que decorreu de
uma situação traumática vivida, e que foi por mim atendido na década de 80.
Cena clínica 3
Pedro, como será chamado, era um menino normal de oito anos de idade
que me foi trazido pela mãe que assim se expressou sobre a dificuldade que se
constituía como queixa principal:
- “Pedro não vive a afetividade. Não chora, não tem raiva, não expressa o
que sente. É uma criança que poderia viver com toda a sua potencialidade, mas
não vive porque não consegue. Não tem fantasias. Tudo é muito objetivo. Eu
queria que ele fosse levado a se expressar mais” [sic].
Começamos a trabalhar no meu consultório particular e, decorridos um
ano e onze meses do início do tratamento musicoterápico, Pedro sofreu um
atropelamento ao atravessar a rua. Nesse momento ele estava acompanhado por
dois amigos que permaneceram na calçada e gritaram que não dava tempo,
enquanto ele correu para atravessar. Pedro foi levado ao hospital e submetido a
uma intervenção cirúrgica. Fui chamada ao hospital no dia seguinte à cirurgia e
o encontrei ainda na cama, com muitas dores. As pessoas que estavam no quarto
se retiraram, à exceção de uma delas. Dirigi-me a Pedro e ele me pediu que lhe
alcançasse um pequeno teclado, que lhe fora trazido pelo primo.
É importante assinalar que o teclado era um dos instrumentos preferidos
de Pedro na musicoterapia e também cabe fazer uma observação sobre o fato de
Pedro não ter nenhum contato formal anterior com música, isto é, ele não sabia
tocar instrumentos de forma convencional nem tinha tido contato com os
aspectos teóricos da música, o que significa que ele não sabia nem mesmo o
nome das notas. No entanto, isto não o impedia de se expressar através da
música e seus elementos/instrumentos, de forma criativa.
Alcancei-lhe o teclado, como ele havia pedido, e ele o colocou sobre a
barriga. Começou a dedilhar o instrumento aleatoriamente. Num determinado
momento ele tocou uma nota repetida, com o seguinte ritmo
Cena clínica 4
Outro exemplo que ilustra o pensamento de Byington, anteriormente
referido, é o de um paciente que expressou seu sentimento em relação a uma
pessoa/situação, através de uma música.
Marcos, como será chamado, era um menino autista (à época Autismo
Infantil Precoce), sem comorbidades, que tinha cinco anos e praticamente não
falava.
Maria, nome fictício, era a estagiária que acompanhava o trabalho com
Marcos e, embora não tivesse cumprido inteiramente o tempo de estágio,
necessitou finalizar a prática, pois era filha única e a mãe se encontrava
enferma. Assim, como sempre, antes de qualquer estagiário sair, deveria se
trabalhar o término do estágio. Combinamos então, Maria e eu, que deveríamos
preparar o paciente para esse momento.
Maria falou então a Marcos que deveria sair, quando isto aconteceria e em
quantas sessões estaria ainda presente. Enfim, deu-lhe todas as informações que
constam deste tipo de procedimento e explicou: “Eu não posso ficar mais com
você”. Percebendo a semelhança desta frase com o início da música “Trem das
onze”, solicitei à Maria que cantasse essa música cuja letra é:
Águas de Março
Tom Jobin
Quem sabe
Carlos Gomes (1859)
determinados compositores
cantores
por um tipo de melodia específica
por gêneros específicos (marchinhas de carnaval, sertaneja, pagode, funk,
etc.)
por músicas que pertencem à cultura regional (música nordestina, gaúcha,
ou de uma região específica),
por determinados tipos de letras (música de “dor de cotovelo”, por
exemplo)
por músicas de determinadas épocas
por preferência coletiva: o grupo decide cantar músicas que todos
conheçam e, principalmente,
Embora a questão esteja posta aqui com pacientes adolescentes pode, sem
dúvida, ser estendida a qualquer outro tipo de pacientes e, com muitos deles essa
é a técnica principal empregada pelo musicoterapeuta, como é o caso da
musicoterapeuta Marly Chagas, que utiliza a canção inclusive para fazer
intervenções, como se constata no trabalho no qual faz uma intervenção
cantando “O Mundo é um Moinho” (Cartola, 1976). Considero que a
musicoterapeuta trabalha utilizando a canção como técnica. Chagas descreve a
situação da paciente e a intervenção que ela faz, como musicoterapeuta, o que
desencadeia um processo de extrema importância para que a paciente tenha uma
compreensão do que está ocorrendo (2012).
Com relação às preferências musicais dos pacientes, que englobam
principalmente as canções, a musicoterapeuta norte-americana Concetta M.
Tomaino, por exemplo, declara que “para verdadeiramente alcançar alguém com
demência, no nível pessoal, suas preferências musicais precisam ser levadas em
conta” (2014, p. 83). Para Tomaino, músicas favoritas, ou até trechos de
músicas, podem ficar “enraizados na nossa memória”, ou podem se constituir
como um estímulo para a memória, ou para melhorar as habilidades de
reminiscências naquelas pessoas com funções cognitivas fracas, como todos nós
que já trabalhamos com idosos podemos constatar (ibid.).
Quando se verifica que, com pacientes que têm condições de se trabalhar
diversificando as músicas a serem utilizadas mas, que, quase somente as suas
preferências musicais são levadas em conta, pode-se pensar no mito de Narciso e
fazer uma aproximação, bastante livre, considerando o musicoterapeuta como
aquele que segura o espelho no qual o paciente vai ficar contemplando a sua
própria imagem, como se estivesse o tempo todo olhando para si mesmo e sem
ter a possibilidade de poder sair desse lugar, e ampliar o seu mundo! O emprego
de outras músicas conhecidas, ou até músicas novas, ou ainda, a improvisação
ou composição, certamente poderia ajudar esses pacientes a se desenvolverem.
Para corroborar esse pensamento, tem-se uma afirmação preciosa do
musicoterapeuta canadense Collin Lee, que deve ser observada. O autor
recomenda que “Mesmo que a preferência musical [do paciente] seja importante,
nós [musicoterapeutas] temos que ter, também, o potencial para dar outras
avenidas musicais que irão equilibrar e fazer o processo terapêutico mais direto,
potente, e esteticamente poderoso” (2003, p. xvi).
Seguramente os musicoterapeutas têm condições de avaliar as
possibilidades dos pacientes e, quando e como poderão introduzir essas ‘novas
avenidas’, às quais Lee se refere.
Como supervisora de estágios tenho observado que, com muita frequência,
quando os estagiários se referem às sessões, trazem situações nas quais os
musicoterapeutas começam as sessões perguntando: “o que vamos cantar hoje”?
É evidente que uma pessoa que vem para um tratamento não sabe quais são as
muitas atividades que podem ser feitas dentro de uma sala de musicoterapia,
além de cantar, como, por exemplo: tocar, fazer movimentos corporais e dançar,
ou, ainda, quais as experiências musicais, além da recriação, que podem ser
realizadas, tais como: improvisar, compor ou fazer paródias, que jamais
denomino desta forma para os pacientes. No espaço terapêutico sempre me refiro
a elas como: “inventar música”, já que a maioria dos pacientes não sabe o que é
improvisar e quando ouvem ‘compor’, imediatamente dizem “eu não sei fazer
isto”.
Além disto, devemos nos lembrar que o paciente ainda pode ouvir música
(audição musical) que no Brasil vem geralmente combinada com outras
atividades como cantar, dançar, e/ou fazer movimentos corporais.
Assim, cabe ao musicoterapeuta utilizar estratégias para levar o paciente a
experimentar outras atividades e experiências musicais ou, ainda, utilizar as
“preferências musicais flutuantes” desses pacientes (McFerran, 2010, p. 87), que
devem fazer parte das músicas de sucesso na mídia naquele momento, estar
ligadas ao processo de massificação, e se tornarem parte constituinte da
Identidade Sonora Cultural (Millecco, 1997)40.
Considerações finais
Chegamos à conclusão que muitos aspectos que aqui foram abordados nos
levariam, depois de uma séria reflexão, à elaboração de novos trabalhos, por se
tratar de assuntos profundos e complexos.
No entanto, devemos observar a importância da cultura na musicoterapia
pois, a partir, e por meio dela, poderemos não só entrar mais facilmente em
comunicação com os pacientes como, também, dar-lhes um ponto de referência,
ou um parâmetro de realidade.
A música, como arte temporal, possibilita mais facilmente chegar-se ao
paciente sem “invadir” o seu mundo e “compartilhar” com ele desse mundo
podendo ser, para ele, um referencial.
Nas palavras de Grebe de Vicuña
Cena clínica 7
Neste primeiro exemplo, ainda como estagiária da musicoterapeuta
Gabriele Souza e Silva, a fundadora do Setor de Musicoterapia da Associação
Brasileira Beneficente de Musicoterapia (ABBR), tive a oportunidade de
acompanhar a condução de um processo musicoterapêutico de um paciente
alemão, com um AVC (Acidente Vascular Cerebral), e um quadro grave de
afasia (perda da capacidade e das habilidades de linguagem falada e escrita, em
geral como sequela de AVC).
O paciente era alemão, mas morava no Brasil há muito tempo, sendo um
indivíduo bilíngue, já que antes do AVC se comunicava com os familiares na
língua materna e com as outras pessoas em português. Cabe esclarecer que,
segundo a literatura neurolinguística que se dedica a estudar o tema, em geral,
é a língua materna do sujeito que fica mais preservada frente à patologia
cerebral. Diz-se que o que foi adquirido há muito tempo tem maiores condições
de ser preservado (Cruz, Morato e Perotino, s/d).
O paciente praticamente não se comunicava verbalmente, mas utilizava
um som, repetidamente, visivelmente do alemão, para responder à
musicoterapeuta, que vinha de uma família alemã e com esta se comunicava só
nessa língua. Além disto, a musicoterapeuta conhecia muito bem a música da
cultura alemã.
Assim, a musicoterapeuta tocava as músicas que, na entrevista, a família
declarara que eram da história sonoro-musical e das preferências do paciente e
ambos interagiam, o paciente dentro de suas condições (respondendo sempre
com o mesmo som), certamente por conta de a musicoterapeuta falar o idioma
dele e tocar e cantar as músicas da sua cultura e preferência.
Entretanto, neste caso, mesmo estando inserida no contexto, a minha
participação se restringia à execução de um pequeno instrumento de percussão,
só para que a minha presença não se tornasse persecutória. Inútil, e mesmo
impossível, seria tentar ter o mínimo de conhecimento tanto da língua quanto da
cultura desse paciente.
E aqui fica a pergunta: seria possível para um musicoterapeuta que não
falasse o mesmo idioma de um paciente nestas condições atendê-lo? Talvez sim,
mas, certamente, a musicoterapeuta falando o idioma do paciente teria muito
mais chances de chegar até ele com maior sucesso.
Cena clínica 8
O segundo paciente que pode ser apresentado como exemplo das
dificuldades apontadas por Stige, no atendimento de pacientes de outras
culturas, é o de Charles, nascido em uma família norueguesa, que passou a
infância na Grã-Bretanha, fez seus estudos superiores nos Estados Unidos e,
finalmente, veio morar e trabalhar no Brasil, tendo sido, aqui, vítima de um
acidente de mergulho. Tratava-se de um paciente poliglota, mas que já falava
português correntemente, quando foi atendido por mim. As músicas de sua
preferência eram principalmente eruditas ou canções populares americanas.
Assim, não surgiram aspectos que me impedissem de trabalhar com ele e a
situação era bastante confortável, ao contrário da que vivi com o paciente
anterior, embora naquele processo eu não tivesse o papel de terapeuta. No
entanto, mesmo falando português, muitas vezes, em alguns momentos, Charles
se dirigia a mim em inglês.
Cena clínica 9
A terceira situação já não foi tão confortável. Recebi um paciente com dois
anos e nove meses, com uma hipoacusia bilateral grave44, advinda de uma
meningite bacteriana. O paciente nasceu no Brasil, de pais ingleses que só se
comunicavam em inglês com a família — constituída pelo casal e três filhos. No
momento em que comecei a atender Simon, recebi a recomendação que deveria
trabalhar em inglês, pois não seria adequado inserir mais um idioma, já que o
paciente tinha grande dificuldade para ouvir e ainda não falava.
Recebi o paciente para a primeira sessão, acompanhado da mãe que
trouxera também um livro com canções infantis em inglês. Não seria difícil
aprender as músicas, mas provavelmente, eu não tocaria e cantaria aquelas
músicas com a mesma desenvoltura que poderia executar a música brasileira.
No entanto, tão logo o paciente entrou na sala ‘se encantou’ pelas cortinas
japonesas penduradas nas janelas da sala, e passou a levantar e abaixar uma
delas. Imediatamente aproveitei esse movimento que ele fazia com a cortina,
para começar o trabalho, improvisando com a voz — que deslizava do grave ao
agudo junto com a subida da cortina, acompanhada da palavra ‘up’
(aproveitando para trabalhar também a aquisição da linguagem) —, e que vinha
lá do agudo ao grave, quando ele abaixava a cortina, acompanhada de
‘down’45.
Certamente a imprevisibilidade da ação ajudou, e a improvisação passou a
ser a grande aliada nesse atendimento, sendo a experiência musical mais
utilizada por nós dois. Não se pode saber se a terapia teria o mesmo sucesso se
eu tivesse trabalhado com a recriação das canções da cultura dele. Na verdade
o paciente ficou durante cinco anos na musicoterapia e não cantamos uma única
canção britânica o que, possivelmente, ele fazia com os irmãos e a mãe, que
tocava piano, e na escola que frequentava: a Escola Britânica. Percebe-se que,
neste atendimento, a cultura não foi o fator mais importante do atendimento que
teve, por cinco anos, a improvisação musical e corporal como o centro da
terapia.
Cena clínica 10
Esta última situação adveio de uma solicitação para que eu substituísse
uma colega musicoterapeuta por três sessões. A paciente era uma senhora de
origem judaica, idosa, que será aqui chamada de Maria, e o atendimento foi
realizado em sua casa. Eu estava consciente que poderia enfrentar dificuldades
por conta do desconhecimento da cultura judaica. Porém, só quando entrei na
casa da paciente percebi o quão difícil poderia ser trabalhar com ela, pois
grande parte dos objetos que faziam parte da decoração da casa eram dessa
cultura. Vi que não seria fácil. Mas, deixei que as situações acontecessem para
tentar entender como seria trabalhar naquele ambiente e com aquela senhora
que estava imersa em uma tradição/cultura/História judaicas, totalmente
desconhecidas, para mim.
As músicas que ela trazia eram da cultura brasileira, inserida que estava
nessa cultura. Contudo, as suas raízes eram judaicas. Em alguns momentos ela
me perguntava sobre o significado de algum objeto da decoração da casa, mas,
evidentemente, eu não sabia responder. Assim, deve ter ficado claro que eu não
era judia. Ela então me explicava detalhadamente, e eu sentia que isto lhe dava
grande satisfação e orgulho.
Em uma das sessões, fiz uma proposta que ela fizesse um ‘tour’ pela sala
— através do olhar (porque percebi que nesse dia ela estava bastante debilitada
e não podia caminhar como eu tinha pensado) —, e que escolhesse um objeto da
sala para ‘inventar’ uma música sobre ele. Ela escolheu um quadro que não
tinha a ver com a sua cultura e, talvez, por eu ter utilizado uma palavra em
francês quando fiz a proposta, ela começou a criar e toda a letra da música foi
nesse idioma, (bem mais fácil do que se fosse em iídiche!), o que me possibilitou
interagir com ela, em um tipo de composição que denomino composição
assistida, que defino como sendo
Monique
Maria
Aqui, a tradução da letra da canção:
“Monique”
(Maria)
Cena clínica 11
“Bumba-meu-boi”47: uma Manifestação Cultural em Musicoterapia48
Muitas são as festas populares vividas em escolas para crianças normais e,
também, em instituições de educação especial e saúde. A festa de São João é
uma das expressões católicas mais populares, muito comum no inverno do
Brasil, em junho. Nessa época do ano crianças podem ser vistas indo e vindo
pelas ruas vestindo roupas de ‘caipira’, mesmo nas grandes cidades brasileiras.
Todas as escolas, incluindo as que atendem a crianças especiais, e mesmo
hospitais psiquiátricos, preparam seus estudantes e pacientes para cantar e
dançar a “quadrilha” e para dramatizar o casamento com noiva, noivo, padre e
tudo mais.
Outras expressões culturais religiosas ou profanas também são vivenciadas
não só em escolas especiais, mas, também, hospitais psiquiátricos, CAPS e
instituições que abrigam idosos, como é o caso do trabalho a seguir que ilustra,
de forma exemplar, aquilo que Stige considera a musicoterapia centrada na
cultura.
A musicoterapeuta Martha Negreiros de Sampaio Vianna trabalhou por
muitos anos, na década de 80, em uma instituição especializada em atendimento
de idosos: a Casa São Luiz para a Velhice (RJ). A equipe interdisciplinar era
formada por musicoterapeuta, terapeuta ocupacional, assistente social e,
também, por uma pessoa especializada em teatro. Os pacientes além de terem
diferentes experiências de vida, tinham também diferentes raízes culturais,
apesar de serem todos brasileiros. Na musicoterapia eles cantavam e se
acompanhavam tocando nos instrumentos de percussão, músicas como antigas
marchas de carnaval, pois a maioria tinha vivido a “Era do Rádio”49 e,
também, músicas folclóricas das diversas regiões brasileiras de onde eram
oriundos.
Um dia, um deles tocou um ritmo que fez os outros pacientes se lembrarem
de uma manifestação cultural existente em várias regiões do país: o “Bumba-
meu-boi”. A partir dessa sessão, Negreiros50 decidiu trabalhar com diferentes
manifestações culturais das raízes destes pacientes e o “Bumbameu-boi” foi a
primeira delas, a partir do ritmo trazido pelo paciente.
Para que pudessem desenvolver um trabalho em conjunto foram
convidadas pessoas da equipe. Daí em diante, os pacientes, com a ajuda dos
terapeutas, passaram a decidir tudo o que iriam ensaiar e, posteriormente,
mostrar em diferentes espaços.
Para preparar a apresentação do “Bumba-meu-boi” eles tinham que
participar ativamente do processo, fazendo inicialmente uma pesquisa sobre
essa manifestação, decidindo que história escolher, já que existem várias, de
diferentes regiões do país; quem seria o paciente a interpretar cada papel – já
que são vários os personagens –, e que roupas e máscaras usar. Além disto, eles
tinham que confeccionar as roupas e as máscaras, sendo estas últimas em um
papel especial; organizar a coreografia; aprender as letras ou compor as letras
e as músicas e decidir como tocá-las. Os terapeutas apoiavam e ajudavam a
decidir, a construir, a organizar e, ao mesmo tempo, interagiam com eles ou
faziam as intervenções necessárias para facilitar o desenvolvimento tanto do
processo de organização da apresentação como do processo terapêutico.
Depois de terminarem a organização e ensaiarem, quando consideravam
que estavam suficientemente prontos, eles faziam o ‘show’ para outras pessoas
da própria Casa São Luiz e visitavam outras instituições levando o resultado do
trabalho, locomovendo-se em um ônibus especial. Eles se apresentaram muitas
vezes, incluindo uma cerimônia de abertura de um Congresso Brasileiro de
Gerontologia. Esta foi uma experiência muito forte para eles e, segundo
Negreiros, também para os terapeutas que puderam ter a dimensão e a
evidência da importância do trabalho!
Negreiros identifica e aponta muitos objetivos num trabalho deste tipo:
primeiro, a possibilidade que a música dá a estes pacientes, no sentido de eles
poderem se integrar com o grupo, com a equipe, com a realidade e com o
“fantasma do futuro” – uma expressão adequada que a musicoterapeuta escolheu
para representar o medo do futuro ou a insegurança da vida ou, ainda, uma forma
de enfrentarem o medo da morte. A musicoterapeuta também assinala a
relevância da possibilidade de se ‘religar’ com a cultura – já que muitos deles
estão internados por muitos anos e não têm contato direto com a realidade e com
o movimento cultural. Negreiros ainda enfatiza que isto pode promover o
desenvolvimento da iniciativa e de tomada de decisões e, também, que este
trabalho pode contribuir para a recuperação e re-atualização da memória, dando
aos pacientes a oportunidade para ressignificar conteúdos, o que contribui para
uma melhor qualidade de vida.
Este tipo de trabalho nos faz acreditar, uma vez mais, que a utilização dos
elementos da cultura, aqui vista diretamente como o centro da terapia, é de
extrema força e relevância em musicoterapia e que isto faz o tratamento mais
efetivo e potente.
Certamente, os resultados do trabalho desenvolvido por Negreiros são
importantes e se constituem como uma das razões para que hoje, muitos
musicoterapeutas brasileiros possam “dançar conforme a música”, isto é, possam
aceitar a realização de outras atividades em musicoterapia como coros, a
participação de pacientes em festas populares, oficinas musicais, bandas, grupos
musicais e qualquer manifestação cultural, quando necessário ou desejável, no
sentido de ajudar, promover saúde, possibilitar a alegria de viver para pessoas
que estão doentes ou internadas em instituições e, por isto, não inseridas em
contextos sociais.
Cena clínica 12
Apesar de não ser um trabalho clínico, mas, sim, terapêutico51, incluo o
trabalho desenvolvido pela educadora musical e musicoterapeuta Thelma
Sydenstricker Álvares, docente da Escola de Música da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), como Cena clínica.
A formação da referida musicoterapeuta lhe permite ter por objetivo um
diálogo entre a Educação Musical e a Saúde. Através da ‘Educação Musical na
Diversidade’, Álvares busca desconstruir os estigmas e procura construir novas
percepções e oportunidades que facilitem a inserção social de grupos
desfavorecidos.
A autora faz parte de um grupo formado por profissionais de várias áreas,
como saúde, educação e cultura, que desenvolvem ações como a Semana
Cultural da Diversidade que reúne várias atividades culturais. Álvares declara
que o trabalho que é realizado no Espaço UFRJ — que se constitui de
apresentações e exposições de arte realizadas por pessoas com deficiência visual,
dependência química, ativistas gays, meninos em situação de rua e pessoas que
fazem parte da população em geral — contribui para promover espaços de
convivência para pessoas com ou sem necessidades especiais (Álvares, 2012).
Álvares constata que a diversidade humana acolhe, além das diferenças
físicas, sensoriais e intelectuais, diferenças religiosas, sexuais, culturais, de
gênero, étnicas e biológicas e que o trabalho artístico pode promover a
expressão, a interação, e contribuir para uma sociedade mais igualitária (ibid.).
Além dessa atividade, as ações da UFRJ também incluem cursos de
educação musical na diversidade, e prática em hospitais, centros de reabilitação,
hospitais-dia e escolas especiais, bem como oferecem projetos artísticos e
culturais para estudantes de educação musical. Estes projetos permitem que os
estudantes tenham a oportunidade de ensinar música para pessoas que são
excluídas socialmente e, assim, podem ter uma percepção melhor dessa
realidade. A autora ainda acredita que ações como estas podem diminuir as
lacunas entre a educação, saúde e cultura, e que a consciência da existência da
diversidade e o desenvolvimento de habilidades para com elas lidar pode resultar
em novas possibilidades para a inclusão social. Trata-se de projetos onde a
cultura permeia todas as ações e tem aí, portanto, um papel primordial.
Cena clínica 13
Também o trabalho da musicoterapeuta Pollyanna Ferrari e da psicóloga
Marcela Weck de La Cerda (2012), é um exemplo que ilustra bem a
musicoterapia centrada na cultura. Trata-se de um projeto denominado “Coletivo
Carnavalesco “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”: Criação Musical e Artística na
Interface entre Cultura e Saúde Mental” que, segundo as autoras
da indução musical
uma escolha com critérios relacionais
uma escolha com critérios musicais
Para explicar o primeiro critério, que faz uma indução musical, a autora se
refere à ‘lavagem cerebral’ ou, ‘manipulação musical’, que o exército, a Igreja,
algumas seitas e certos regimes políticos fizeram através dos tempos, e fazem
ainda hoje. Na abordagem clínica, essa indução, ou sugestão, pode ser
facilmente associada à música para induzir um comportamento58. A segunda
escolha, a partir de critérios relacionais, apoia-se nos aspectos da relação
terapeuta-paciente e aqui Lecourt aponta principalmente musicoterapeutas que se
fundamentam em uma teoria psicanalítica, como é o seu caso.
A segunda escolha, a partir de critérios relacionais, apoia-se nos aspectos
da relação terapeuta-paciente e aqui Lecourt aponta principalmente
musicoterapeutas que se fundamentam em uma teoria psicanalítica como é o seu
caso.
Também existem critérios musicais de escolha, como aquele que é feito
“para evitar uma subjetividade grande demais da parte do terapeuta, sendo uma
das possibilidades retornar à própria música, a seus componentes, e de ficar mais
próximo desta forma de objetividade” (ibid, p. 103), exemplificando com a
utilização de um parâmetro que seria o de uma música executada por um
conjunto, justificando que a centralidade da terapia é a relação. Assim, uma obra
para quarteto ou uma sinfonia ilustram bem a questão: na primeira, com um
pequeno grupo, trazendo a intimidade da relação entre os componentes que
formam esse grupo, e na sinfonia, o anonimato da orquestra, constituída por
muitos componentes. Ainda se refere ao concerto, que sempre tem um solista
que é confrontado à orquestra, o que traz uma dificuldade para o indivíduo de se
afirmar nesse quadro.
Mais sutilmente, afirma Lecourt, o musicoterapeuta pode se apoiar na
análise clínica da estrutura musical: o ritmo mais ou menos próximo dos ritmos
biológicos, a qualidade dos timbres, a distância instrumental ou próxima da voz,
as frequências e outros parâmetros. A autora ainda se refere à duração da peça
escolhida para audição.
Esse foi um dos parâmetros musicais utilizados para fazer a escolha de
músicas a serem empregadas na pesquisa realizada com gestantes com pré-
eclâmpsia internadas na enfermaria de Gestantes da Maternidade Escola da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ME-UFRJ), com o objetivo de avaliar o
impacto da musicoterapia nos níveis de tensão arterial dessas gestantes59. Como
nenhuma pesquisa foi encontrada sobre o tema no levantamento bibliogáfico
realizado, optou-se pela pré-testagem do desenho clínico no período de três
meses. Como metodologia desse Projeto Piloto decidiu-se pelo modelo de
“sessão estruturada” (Bruscia, 1987, p. 527), constituindo-se de duas fases:
musicoterapia receptiva: audição de músicas eruditas (relaxamento e
consciência da respiração); e musicoterapia interativa (Barcellos, 1984a),
constando principalmente de recriação musical para possibilitar a expressão das
participantes (preferências musicais e motivações internas).
Na aplicação da musicoterapia receptiva (com a utilização de escuta de
músicas eruditas escolhidas pelos musicoterapeutas, portanto, presume-se,
desconhecidas das pacientes) o objetivo principal era o relaxamento, através da
conscientização do ritmo respiratório. A escolha desse desenho apontou para a
necessidade do estudo de repertório, já que se decidiu utilizar músicas eruditas
na parte receptiva da sessão. Para isto, foi feita uma ampla análise musical do
repertório escolhido pela equipe durante três meses, pensando-se
especificamente no tipo de pacientes e nos objetivos dessa utilização, e 20
músicas foram escolhidas para serem empregadas. Criamos uma grade para fazer
um estudo comparativo entre as músicas escolhidas levando em consideração
parâmetros como: tom, modo, andamento, compasso, compositor, época,
intérprete, acompanhamento, duração e, se com letra, em idioma estrangeiro.
Um aspecto que foi por nós considerado como sendo muito importante foi o
andamento, por dois motivos: o primeiro deles porque o cruzamento deste com o
Modo pode evocar alegria ou tristeza (Gagnon, L.; e Peretz, I., 2003) e, por outro
lado, porque ainda o andamento deveria estar próximo da frequência cardíaca
que normalmente se tem quando em repouso: entre 60 e 80 bpm, para deixar o
paciente numa zona de conforto. Assim, algumas músicas que tinham várias
versões eram escolhidas pelo tempo de duração, o que apontava para um
andamento mais, ou menos, rápido. Ainda cabe explicar por que músicas
eruditas: principalmente por serem, como afirmado acima, presumivelmente,
desconhecidas das pacientes. Sendo nosso objetivo o relaxamento, o que
queríamos evitar era que as músicas trouxessem situações anteriores, já vividas
pelas pacientes, o que as músicas preferidas certamente fariam.
Cabe, ainda, observar-se que, apesar deste trabalho ter sido realizado em
uma maternidade pública, as pacientes aceitaram a introdução de músicas
eruditas. Mais do que isto, mesmo que nada tenha sido comentado pelos
musicoterapeutas acerca do emprego dos dois diferentes tipos de músicas
(populares e eruditas) e da expressão e escuta, uma paciente fez, ouvida por nós
como portavoz do grupo, um comentário que surpreendeu os musicoterapeutas
dizendo que “tinha música para dizer o que queriam” (a recriação de músicas
populares) e “música para relaxar” (a audição das eruditas).
Tem-se, aqui, um exemplo claro da aceitação da introdução de novas
“avenidas musicais” em um espaço terapêutico, proporcionando novas
experiências.
A ordem da aplicação da musicoterapia receptiva e interativa na sessão
seria de acordo com a percepção do musicoterapeuta, isto é, do que ele
considerasse mais importante para as pacientes naquele dia, dependendo do
estado de ânimo das mesmas.
Cena clínica 14
No atendimento de uma menina de três anos, quando percebi que ela se
mantinha sempre cantando a mesma música, O sapo não lava o pé, comecei a
fazer intervenções musicais no violão (Barcellos, 1992c, p. 20), fazendo
mudanças no andamento, na intensidade, na harmonia e na forma de tocar: do
acompanhamento “batido” à forma dedilhada e vice-versa, e também na letra da
música, tudo isto no sentido de ‘convocar’ a paciente para entrar em contato e,
paulatinamente, construir a relação terapêutica, o que se percebe foi acontecendo
através do olhar e do sorriso64.
Para isto, improvisei a letra, mantendo a linha principal da melodia com o
objetivo de manter um aspecto conhecido para dar previsibilidade, para que ela
pudesse se manter numa zona de conforto. Outro objetivo era trabalhar o
esquema corporal já que se tratava de uma menina que acabara de completar três
anos. Devese lembrar que o atendimento era feito durante a diálise e se tratava
de um início de trabalho onde se pretendia o estabelecimento do vínculo (3a
sessão). A letra original da música:
O sapo não lava o pé
Aqui a letra que foi sendo improvisada aos poucos, ou seja, em diferentes
sessões:
Cena Clínica 15
Gabriela, uma menina de 12 anos, com uma doença renal crônica e um
problema neurológico que resultava em crises convulsivas, algumas vezes nos
dizia diretamente, no momento em que entrávamos na sala: “Hoje eu não quero
música”. Pode-se entender esta fala de Gabriela, a partir do princípio de
“distância simbólica” trazido por Jaakko Erkkilä (2011, p. 201), citando a
musicoterapeuta também finlandesa Heidi Ahonen-Eerikainen66. Neste, a autora
prega que o musicoterapeuta que trabalha com pacientes jovens tem que
entender que estes podem não estar prontos para fazer conexões entre a sua
própria realidade e a simbólica, (relacionada à música), que carrega uma
expressão emocional. As conexões podem estar muito claras para o terapeuta,
mas o paciente pode necessitar de alguma distância que pode servir como um
‘abrigo simbólico’ contra experiências demasiadamente dolorosas ou
insuportáveis (idem).
Considero que muitas vezes o paciente pode se utilizar da “distância
simbólica” como proteção, quando ouve uma música (no caso trazida pelo
musicoterapeuta ou, até por outro paciente – quando em grupo), que tem um
significado para ele, ou seja, que por estar ligada a pessoas específicas, fatos ou
situações vividas anteriormente, vem carregada de emoções para as quais nem
sempre ele está preparado para reviver/sentir67.
É frequente acontecer conosco, em contextos não terapêuticos, de não
conseguirmos ouvir uma determinada música que nos traz um significado, seja
positivo ou negativo. Nem sempre estamos preparados para reviver uma situação
anterior, e estar submetidos à emoção, ou reviver a emoção que essa música
carrega. Frequentemente isto acontece e nos faz desligar o rádio, TV ou qualquer
outro meio (iPods, por exemplo), ou mudar de estação, faixa, enfim, utilizando
um mecanismo de proteção, um ‘abrigo simbólico’, nas palavras de Ahonen-
Eerikainen (ibid).
Mas, voltando-se à situação de Gabriela, deve-se assinalar que mesmo ela
dizendo que não queria música, tão logo nós começávamos a cantar no outro
lado da sala, ela participava da improvisação ou re-criação, caracterizando
uma “participação periférica legítima”, conceito cunhado pela educadora e
antropóloga americana Jean Lave, e pelo cientista da computação suíço-
americano Étienne Wenger (1991, p. 29), que se refere aos modos de
pertencimento nos grupos de trabalho. Esse processo de atuação nos grupos
passa pela fase inicial, a denominada “participação periférica legítima” que,
paulatinamente, transformase em uma participação plena. É também importante
mencionar o pensamento do educador britânico Harry Daniels, com relação a
esse conceito, que afirma que as barreiras à participação podem ser tanto sociais
como biológicas. Ele afirma que “Tipos específicos de inadequações podem
gerar problemas de participação numa sociedade onde a maioria dos
participantes não experimenta distúrbios similares” (2003, p. 65). Poderia ser o
caso de Gabriela, cujas crises deixavam as crianças/adolescentes da enfermaria
bastante assustadas.
Mas, ainda com relação à participação de Gabriela, cabe relatar uma
situação na qual a menina, em um determinado dia dirigiu-se a nós da sua
poltrona, do outro canto da sala, sugerindo que cantássemos uma canção para
Susana. Não tínhamos ideia sobre o que tinha acontecido, mas suspeitávamos
que esta última tinha ido a óbito, pois sua poltrona estava vazia. Imediatamente
Gabriela começou a cantar um “pagode romântico”, cuja letra se refere à
separação de um casal amoroso, mas, que, naquele contexto, era adequada para
expressar o luto pela morte da amiga. Era um dia chuvoso, cinzento, e as luzes
da enfermaria estavam apagadas, deixando a sala na penumbra, também em um
sentido metafórico. Os outros pacientes a acompanharam cantando em
pianíssimo, como a banda brasileira canta a introdução do referido pagode.
Abaixo a letra.
Eu não tô legal,
Não vai ser fácil de recuperar, vontade de viver tô
Sem astral,
Por falta de você.
Pior que nada que eu faça vai mudar sua decisão de separação,
Eu reconheço os seus motivos, tá coberta de razão,
Pra você caso de traição não tem perdão.
Cabe ressaltar que a este tipo de canção pertencem muitas das músicas que
as pacientes da Maternidade Escola da UFRJ cantam, bem como muitos outros
tipos de pacientes em sofrimento psíquico e físico, e em situações de fragilidade
e risco emocional, necessitando de acolhimento. Assim, a crítica de Adorno, que
tem como argumento central que a música, da maneira que é composta, afeta a
consciência e é um meio de controle social pela sua familiaridade e
previsibilidade, neste contexto, e exatamente pelos mesmos aspectos, configura-
se como um importante holding. Negreiros (2011) se refere à importância de os
musicoterapeutas darem o holding às mães dos bebês prematuros, para que elas
tenham condições de dar o holding a seus filhos.
Discuto, contudo, que mesmo que estas mães tenham absorvido um padrão
musical midiático empobrecido, do contexto social do qual participam, elas
podem ressignificá-lo e ressubmetêlo a reapropriações e releituras
idiossincráticas, na interação com o próprio grupo com quem partilham os
mesmos problemas e a mesma dor, e com os terapeutas, na escuta dessa dor.
Assim, penso que, por incoerente que possa parecer, e deixando de lado a causa
da crítica de Adorno e de muitos outros autores à indústria cultural, a
familiaridade e a previsibilidade por eles criticadas na música popular acabam
por ser úteis em um contexto terapêutico como este, onde há musicoterapeutas
atentos para proporcionar a introdução de elementos de variação.
É, portanto, na especificidade da relação musicoterapeuta/ paciente que se
faz possível tanto o acolhimento quanto a ressignificação no campo da
transferência. São ainda os musico terapeutas que proporcionam uma renovação
do clima acústico [sonoro/musical] e da sensibilidade musical, trazendo a
possibilidade de uma transformação significativa, com a introdução de
determinados elementos musicais que conservam o mais intacto possível o seu
modo específico e único de impactar a mente e os sentidos dessas mães, como é
o caso dos acalantos, por exemplo, que fazem parte do mundo sonoro do
momento que está sendo por elas vivido.
Assim, os musicoterapeutas, através da execução de instrumentos de
percussão, mantêm a base rítmica e, por meio das letras, acentuam, ao mesmo
tempo, a familiaridade, a previsibilidade e a confortabilidade dessas canções,
possibilitando o acolhimento e se constituindo como o “continente
sonoro/musical”. Mas também, pela diversidade tímbrica das vozes, trazem a
diferença; pela utilização de instrumentos harmônicos como o violão e o teclado,
aí execu tados com grande habilidade musical71, enriquecem e rein ventam
harmonias, renovando o acompanhamento e improvisando variações. Com isso,
impedem a “demolição da musicalidade”, na concepção de José Jorge de
Carvalho (1999, p. 68), num espaço onde o espontâneo e o “erro” têm lugar, e
onde tanto o acolhimento como o instigante pode acontecer, elevando a recriação
da canção musical ao patamar de técnica mais adequada para ser utilizada com
as mães de crianças prematuras e com tantos outros tipos de pacientes que
necessitam desse mesmo acolhimento (Barcellos, 2004a).
Esta atuação dos musicoterapeutas está em ressonância com o pensamento
de Collin Lee (2003), já apresentado em outro espaço deste trabalho, sobre o fato
da introdução de novas avenidas musicais em processos terapêuticos onde existe
a repetição ou a utilização unicamente de músicas que podem ser consideradas
como pertencentes à indústria cultural72.
Assim, poder-se-ia dizer que em musicoterapia não existem músicas ou
sons bons ou ruins. Cabe ao musicoterapeuta partir do que trazem os pacientes
(quando trazem) e juntar a esta escolha aquilo que ele, (musicoterapeuta), pensa
que seja importante para que o processo possa ser direto, potente e poderoso,
para utilizar as palavras de Lee (2003), com o objetivo de facilitar o
desenvolvimento da terapia.
O trabalho do musicólogo e musicoterapeuta dinamarquês Lars Ole Bonde,
professor do PhD em Musicoterapia na Aalborg University, deve ainda ser
mencionado, por ser uma das maiores contribuições no campo da pesquisa da
música que se faz em musicoterapia. Em um artigo, publicado no importante
livro sobre pesquisa em musicoterapia editado pela musicoterapeuta
norteamericana Barbara Wheeler, Bonde (2005) parte da pergunta sobre ‘quando
e por que é relevante para musicoterapeutas e pesquisadores em musicoterapia
focalizarem seus estudos na análise do material musical’, para desenvolver o
capítulo em questão. Como transita tanto pelo domínio da musicologia como da
musicoterapia, Bonde afirma, com propriedade, que a pesquisa sobre música é
diferente para um musicólogo e para um musicoterapeuta. Para este último existe
mais sentido em estudar a experiência musical baseada nos diferentes aspectos
ou propriedades que podem influenciar o corpo, a mente e o espírito humanos,
levando-se em consideração o contexto cultural e social.
Seguindo o caminho iniciado no item sobre a recriação musical, com
relação à previsibilidade musical, considero que com os pacientes com doenças
renais crônicas deve acontecer o oposto, por estranho que possa parecer. Entendo
que a vida destes pacientes é, por um lado, altamente previsível pelo fato de eles
passarem durante 12 horas semanais “ligados” à máquina de diálise, da qual
dependem para sobreviver e que, mesmo existindo aspectos imprevisíveis e de
risco, como as múltiplas intercorrências clínicas e até a morte, estas são de certa
forma esperadas, por fazerem parte dos desdobramentos da patologia e, por isso,
parcialmente previsíveis.
Não só pela previsibilidade proveniente da ligação com a máquina, mas,
também, pelo contato diário com a canção popular ouvidas dos iPods e
computadores, muito utilizados pelo menos pelos adolescentes durante a sessão
de diálise, considero que, além do empoderamento73 destes pacientes, um dos
objetivos – que se configura como “o coração da clínica” para levar os pacientes
à criação de um novo discurso, organizador de “novas tramas de sentido”, no
dizer de Fiorini (1995, p. 20) –, é provocar e ativar uma capacidade humana que
está preservada: a capacidade de criar, tendo como objeto de criação, aqui, a
música, através da improvisação, referencial ou não referencial, e da
composição. Neste contexto há que se fazer um esforço para acreditar nessa
capacidade de criação, já que a doença é visível, inexorável e pode nos induzir a
não levar em conta aspectos da ordem da saúde, que devem ser considerados
como necessários para uma vida minimamente normal. Deve-se confiar na
afirmação de Sartre que “Em todo padecimento humano se encontra oculta
alguma empresa” (apud Fiorini, ibid, p. 24).
Erkkila (2011) também aborda a questão da criatividade, perguntando por
que esta é tão importante e, ao mesmo tempo respondendo que
Cena clínica 15
No momento em que era sorteado o ‘amigo oculto’ para as festas de fim de
ano, uma paciente adolescente, portadora de doença renal crônica, perguntou-
me que presente eu queria ganhar. Imediatamente lhe devolvi a pergunta, mas
acrescentando que a resposta teria que ser cantada. Logo após a minha
intervenção, a paciente começou a cantar e foi criando a letra abaixo
apresentada. Cabe observar que a melodia é absolutamente simples e que, sem
dúvida, apenas existe para ‘carregar’ a letra daquilo que dificilmente seria dito
verbalmente.
O presente de Natal
Paula e Nina
Cena clínica 16
Ramon, como será chamado o paciente em questão, era portador de uma
Doença Renal Crônica e tinha 18 anos. Era atendido durante a sessão de diálise
e muitas vezes quando chegávamos na sala, Ramon era encontrado escutando
seu iPod. Muitas vezes, para que nos “visse”, perguntávamos o que estava
ouvindo e ele colocava um dos fones no ouvido de uma de nós77. Em uma
determinada sessão entramos e o encontramos com o iPod. Não me parece uma
boa estratégia se solicitar ao paciente que desligue o iPod. Além disto, é muito
difícil se competir com um iPod que tem qualquer música que o paciente queira
ouvir, com orquestras de todas as formações possíveis e com cantores que
trazem músicas de qualquer lugar do mundo. Enfim, considero quase
impraticável se competir mesmo com iPods pequenos (que podem ter até 800
músicas), carregando embaixo do braço apenas um violão! No entanto, temos
que ter ferramentas e estratégias para fazer com que a ‘nossa música’ seja mais
atraente que a dos iPods, embora isto possa parecer impossível!
Mas, voltando a Ramon, deve-se dizer que num determinado dia o
encontramos com o iPod ligado, ou, ligado ao iPod! Imediatamente
perguntamos como ele estava e ele, retirando o fone de um dos ouvidos
respondeu: “mais ou menos”. Perguntamos por que e ele disse: “porque hoje à
noite tenho prova de Química”. Perguntei: e você está preparado? E ele
imediatamente, sorrindo, respondeu que não. Continuei a falar sem dar tempo
de ele voltar com o fone para o ouvido: você sabe a Tabela Periódica? E ele
imediatamente respondeu: esse é um problema!
Pedi, então, à outra musicoterapeuta que fizesse uma harmonia em
“looping”, para facilitar a improvisação melódica com a voz, e comecei a
cantar, perguntando: “qual é o símbolo do Ferro”? E ele respondia.
Imediatamente a Mariana, a outra musicoterapeuta perguntava: e o símbolo do
Níquel? E ele respondia. Logo ele perguntava e uma de nós respondia. Acontece
que a nossa cultura de Química é bastante reduzida. A minha pelo menos! Mas,
aí surgiu uma situação nova: quando um de nós três não sabia, a enfermeira
respondia, de onde estivesse na sala. Como percebi que ela sabia tudo, quando
era a minha vez e eu não sabia (ou às vezes sabia, mas aproveitava para incluí-
la na atividade), eu cantava “e o símbolo do Titânio, Luna”? E ela, sempre
rindo, respondia, cantando.
Entendemos, a partir dessa situação, que além de Ramon estar sendo
preparado para a prova, a relação entre os quatro tomava uma nova forma e a
enfermeira me parecia bastante satisfeita por estar sendo incluída na atividade e,
principalmente, podia mostrar que sabia química mais do que nós, sem dúvida.
Mas, o importante é que esta pequena situação trouxe muitos ganhos para a
terapia: fortaleceu a relação entre o paciente e nós três; incluiu uma enfermeira
que nunca tinha participado conosco, sendo valorizada pelo fato de ela saber o
que não sabíamos, enfim, uma improvisação que musicalmente era simples mas
possibilitava muitos ganhos e nos mostrou, na prática, que o processo é mais
importante que o produto!
Temos como exemplo, aqui, que qualquer tema pode ser objeto de uma
improvisação: comidas, bebidas, cores, e qualquer que seja o assunto, podendo
contribuir grandemente para o estabelecimento e fortalecimento do vínculo
terapêutico, não só entre musico terapeuta e pacientes mas, também, em grupo.
Introdução
Este trabalho é fruto de indagações, inquietações e reflexões que advieram
do exercício da minha prática clínica; da observação do trabalho desenvolvido
por outros musicoterapeutas; do contato com a literatura especializada em
musicoterapia onde, surpreendentemente, quase nada é encontrado sobre o tema
e, finalmente, da minha experiência como integrante de um grupo de
Musicoterapia Didática onde se realizou uma prática seguida de discussões
teóricas78.
A escolha deste tema evidencia, mais uma vez, a preocupação que me
acompanha no sentido de o musicoterapeuta saber ‘lidar’ também com a música,
seu principal elemento de trabalho em musicoterapia.
O objetivo deste texto é refletir sobre como se faz a movimentação musical
em musicoterapia e, também, como nós, musicoterapeutas, estamos procurando
estudar ou levantar esta questão além da prática clínica, na tentativa de uma
maior compreensão teórica.
Trata-se, a meu ver, de uma discussão de extrema importância pois o
desenvolvimento e a fundamentação da musicoterapia certamente dependem,
também, da forma como a música é utilizada e da leitura que o musicoterapeuta
faz do processo musicoterápico.
É importante ressaltar que esta divisão é feita para efeitos didáticos e que
esses momentos vão aparecer sem seguir qualquer ordem ou, ainda, podem não
estar todos presentes em uma mesma sessão. Enfim, esta movimentação será
feita da maneira mais livre possível, dependendo da situação, do momento, das
necessidades do paciente, da compreensão que o musicoterapeuta tiver deste e
do desenvolvimento do processo terapêutico, como um todo.
O objetivo, aqui, é apresentar as formas de interação possíveis e as
implicações destas decorrentes, e as intervenções e os prováveis desdobramentos
e resultados que podem desta resultar para o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico.
Interações em musicoterapia
No trabalho Qu’est-ce que la Musique en Musicothérapie (Barcellos,
1984a) refiro-me à importância da Musicoterapia ativa interpessoal ou
Musicoterapia inter-ativa, que posteriormente denominei Musicoterapia
Interativa, onde há uma inter-ação simultânea musicoterapeuta-paciente e a
possibilidade de uma consequente “interação”. Quando estamos ativos no
processo de fazer música e partilhamos essa experiência com o outro, ao mesmo
tempo, somos puxados para fora de nós mesmos.
Watzlawick, Beavin e Jackson, (1977), no trabalho sobre comunicação
humana, definem a interação como sendo uma série de mensagens trocadas
entre pessoas sendo a mensagem, ou comunicação, entendida pelos autores como
uma unidade comunicacional isolada. Os autores afirmam que muitas obras se
restringem ao estudo da comunicação humana como sendo um fenômeno
unilateral, ficando aquém do estudo da comunicação como um processo de
interação.
Para eles, a comunicação, que é uma condição sine qua non da vida
humana e da ordem social, configura-se como um veículo de manifestações
observáveis da relação e não é apenas verbal mas, sim, um complexo de
numerosos modos de comportamento tais como tonais, posturais e contextuais,
que podem aparecer em conjunto, condicionando o significado de todos os
outros, ou de alguns deles, isoladamente (ibid).
Existem dois tipos de comunicação: a digital e a analógica. A
comunicação digital é a comunicação puramente verbal como a linguagem
falada por um computador (sem inflexões rítmicosonoras). É apenas uma
convenção semântica da nossa linguagem e fora dessa convenção não existe
nenhuma correlação entre a palavra e a coisa que ela representa, à exceção
insignificante das palavras onomatopaicas.
A comunicação analógica é, virtualmente, toda a comunicação não verbal
como: postura, gestos, expressão facial, inflexão de voz, sequência, ritmo e
cadência das próprias palavras e, ainda, qualquer manifestação não verbal de
que o organismo seja capaz, assim como as pistas comunicacionais
infalivelmente presentes em qualquer contexto em que uma interação ocorra
(ibid).
A comunicação estabelecida através da música é uma comunicação
analógica. As relações entre a comunicação digital e analógica foram estudadas
pelo musicoterapeuta e psiquiatra alemão Dr. Wolfgang Strobel (1985) que
escreveu um artigo intitulado “Music therapy with schizofrenic patients”79.
Strobel se refere ao fato de muitos pacientes negarem ou evitarem a
comunicação digital (verbal) por desconfiarem das palavras. Ao contrário da
comunicação verbal, a comunicação musical não contém, por si só,
possibilidades de contradição.
Segundo Watzlawick, Beavin e Jackson, (1977), existem dois tipos
principais de interações: simétrica e complementar, que são descritas como
relações baseadas na igualdade ou na diferença.
Na interação simétrica tende-se a refletir o comportamento do outro e na
complementar, como o nome sugere, complementa-se o comportamento do
outro.
Menos importante, mas também existentes são:
a interação meta-complementar – onde se deixa ou força o outro a
complementar o comportamento, e
a interação pseudo-simétrica – onde se deixa ou força o outro a ser
simétrico.
Ela prepara o campo para entrar em aspectos mais ricos e para outras
intervenções como assinalar e interpretar e proporciona o exercício do paciente
para perceber a própria experiência.
Mas, ainda temos como intervenções:
Recapitular – estimula a capacidade de síntese, que é fundamental no
processo terapêutico para produzir recortes e “fechamentos provisórios” nas
palavras de Fiorini que conclui que “Sem se firmar em contínuas sínteses
provisórias, o processo de pensamento não avança” (1976, p. 162 e 163);
Assinalar – é uma forma de intervenção que incita o paciente a desenvolver
uma nova maneira de perceber a própria experiência. Assinalar um
determinado aspecto leva o paciente a desenvolver a capacidade de
autocompreensão. Nas respostas que os pacientes dão quando o terapeuta
“assinala”, revelam-se muitas vezes as suas capacidades de insight e seus
recursos intelectuais.
a descrição
a compreensão e
a interpretação da música trazida/criada pelo cliente.
Casa no Campo
Peixe Vivo
Intervenções Musicais
A partir daqui discute-se a questão das intervenções estritamente musicais,
isto é, aquelas que acontecem exclusivamente por meio de aspectos da estrutura
musical e, em geral, têm o mesmo objetivo das intervenções verbais: ser um
agente de modificação. No entanto, diferem das intervenções verbais porque são
feitas a partir da introdução de novos elementos musicais por parte do
musicoterapeuta, ou da modificação que o musicoterapeuta faz, naquilo que foi
trazido pelo paciente. Deve-se assinalar que à época em que foi escrito o
primeiro trabalho sobre intervenções em musicoterapia, não foi encontrado
nenhum artigo sobre o tema tanto na literatura brasileira como estrangeira.
Percorreremos agora o caminho inverso isto é, a partir das possibilidades
de intervenções musicais podendo, ou não, fazer um paralelo com as verbais.
A partir daqui serão apresentados os tipos de intervenções que cunhei em
1990, agregando aqui mais duas possibilidades de intervenções sonoro/musicais:
por oposição e por desagrado. Assim teremos:
Cena clínica 17
Como exemplo poderia ser citado o caso de Branca, uma menina de 10
anos, extremamente agressiva e hiperativa. Em determinadas sessões Branca
chegava jogando objetos/instrumentos, batendo em mim e na estagiária,
correndo e pulando pela sala. Eu pedia que a estagiária fizesse um ritmo
compatível com a movimentação corporal de Branca, em um instrumento de
grande porte, em intensidade forte, geralmente num andamento rápido e,
juntamente com Branca, quase sempre de mãos dadas, eu fazia a mesma
movimentação. Paulatinamente, íamos acompanhando o ritmo corporalmente, e
o andamento ia sendo diminuido juntamente e de forma gradativa com a
intensidade sonora e até a mudança de compasso (geralmente de 2/4 para 6/8).
Depois de um tempo, quando eu percebia que Branca já tinha descarregado
aquela energia, sentávamos e continuávamos a movimentação que agora era
feita só com os braços e era canalizada para jogos rítmicos: palmas numa
interação entre musicoterapeuta e paciente, ou a utilização de um instrumento
pelas duas. Este mesmo procedimento foi utilizado posteriormente, com outros
pacientes, comprovando-se que esta intervenção possibilita a descarga e
canalização da agressividade e diminuição da hiperatividade.
A musicoterapeuta dinamarquesa Grethe Lund (1990), citando Ricchard
Blander e John Gringer (1976), afirma que três sistemas de representação são
por nós utilizados para construir ‘o modelo de mundo’: o visual, o corporal e o
auditivo. Cada um desses canais sensoriais nos dá informações que usamos para
organizar nossas experiências.
Uma informação recebida por um desses três canais pode ser armazenada e
representada por outro canal. Nós somos capazes, por exemplo, de formar uma
representação visual a partir de uma fonte auditiva e etc. (associações
sinestésicas). Todos nós temos um sistema de representação de mundo preferido
e cada um de nós tem um “modelo de mundo” diferente.
É importante que o musicoterapeuta esteja consciente de qual é o sistema
de representação de mundo preferido pelo paciente ou por qual canal ele se
expressa. Deveria, ainda, perceber se a resposta mais adequada seria nesse
sistema preferido ou em um dos outros possíveis. Dependendo do paciente, isto
poderá facilitar ou dificultar uma resposta ou, ainda, poderá estimular o paciente
a se abrir para caminhos novos. Cabe ao musicoterapeuta perceber quem é este
paciente e quais são as suas necessidades.
Suzana Mordkowsky e Ricardo Osvaldo Testa (1977), musicoterapeutas
argentinos, apresentam algumas intervenções rítmicas divididas em:
Aqui se trata, a meu ver, pelo exemplo prático dado pela musicoterapeuta,
de uma intervenção clarificadora e os dois primeiros exemplos apresentados
pelos autores como intervenções são, na verdade, formas de interagir com o
paciente (Interações complementares).
Cena clínica
Rita era uma menina deficiente visual (cega) de sete anos, e a
improvisação era uma das técnicas mais utilizadas por mim e uma experiência
musical que dava a ela muito prazer. Em geral improvisávamos muito criando
melodias e letras sobre situações/conteúdos de suas vivências, no momento em
que eram por ela trazidos. Estas improvisações eram acompanhadas por mim no
violão, a pedido dela, tocado de uma forma específica: dedilhado.
Geralmente essas improvisações tinham melodias e harmonias simples,
como por exemplo: I, V, I, IV, V, e I graus, o que caracterizava uma finalização
na cadência perfeita. Em uma determinada sessão, resolvi colocar na harmonia
uma cadência interrompida86, com o objetivo de verificar a reação de Rita à
introdução de um novo elemento, verificar se ela estaria pronta a aceitar algo
novo e, principalmente, para ampliar a sua linguagem musical e através disto
favorecer o seu desenvolvimento.
Mas, para minha surpresa, Rita reagiu de acordo com o elemento
harmônico utilizado para fazer a intervenção, isto é, ‘interrompeu’ a sua
atividade no momento em que o V grau foi para o VI, caracterizando a cadência
interrompida. Parou de cantar, mostrando-se surpresa. Voltei a cantar, e depois
de ela ter ouvido a mesma harmonia algumas vezes e de ter continuado a reagir
da mesma forma, passou a lidar com esta nova situação musical de forma para
mim inesperada: começava a rir quando eu não terminava com a cadência
perfeita, mas, sim, com a interrompida. E, finalmente, passou, depois de algum
tempo, não só a continuar improvisando como ‘reclamando’ quando eu
terminava com a cadência perfeita dizendo: “não é assim”! No entanto, Rita
não podia dizer como era já que não tinha nenhum conhecimento musical.
Quando eu tocava com o VI grau, sorria satisfeita. Incorporou assim um aspecto
musical novo, o que significa, em minha opinião, que ela já poderia aceitar
novas situações, não musicais, o que antes era muito difícil.
Cena clínica 19
Este exemplo demonstra que também podem ser feitas intervenções
harmônicas quando se utiliza a recriação musical e não só quando se emprega a
improvisação musical como técnica. Mas, cabe ressaltar que aqui se trata de uma
paciente muito especial porque tinha tido formação musical anterior, o que
acontece raramente.
Com a paciente Dora, 39 anos, que havia sofrido um A. V. E., utilizei uma
variante desta mesma cadência, que consiste em colocar o VI grau do
homônimo menor, após o V, e ao invés do I. Como relatado acima, essa paciente
tinha formação musical anterior ao AVE e, pelo que pude perceber, uma ampla
experiência musical na medida em que era compositora tendo ganho muitos
concursos de composição de música popular em sua cidade, no interior de
Minas Gerais.
Assim, tocávamos ambas ao piano, ela a melodia com a mão esquerda
(por conta de uma hemiplegia direita), na região aguda, porque no início ela era
capaz de tocar exclusivamente as melodias das músicas. Eu a acompanhava
fazendo a harmonia, em geral com as duas mãos, pela dificuldade em fazer isto
só com a mão direita, como seria preferivelmente desejável!
Na medida em que o processo musicoterapêutico foi se desenvolvendo,
Dora foi trazendo várias músicas que lhe vinham à memória e, dentre elas, “É
meu destino amar”87. Inicialmente eu sempre terminava ‘comporta damente’,
com uma cadência perfeita (V – I), como pode se verificar no exemplo grafado
abaixo, a partir da gravação em fita, feita na sessão.
No entanto, depois de Dora ter trazido essa música muitas vezes, onde eu
sempre terminava com a cadência perfeita, decidi fazer a mesma intervenção
harmônica, com os mesmos objetivos e baseada na experiência vivida com a
paciente anteriormente relatada, entendendo a introdução do si b e ré b pela
paciente, na melodia, como uma ‘sugestão’ de entrar no modo menor. Levando
em conta a formação musical anterior de Dora, resolvi introduzir no acorde
final do VI grau um lá b, (caracterizando o homônimo menor) como pode ser
visto no exemplo a seguir. A paciente para, e na audição desse trecho, percebe-
se que eu tento finalizar trazendo a tônica. No entanto Dora volta a tocar,
trazendo o início do tema principal de “I could have danced all night”88e segue,
fazendo uma finalização inesperada: o acorde do VI grau do homônimo menor,
seguido do V grau tanto do homônimo menor como do maior (acorde comum),
resolvendo no tom original – Dó M, com uma cadência perfeita (V – I)! Ou seja,
a paciente vai para o homônimo menor e volta para Dó M, fazendo uma
modulação por acorde comum, evidentemente sem saber o que fez, mas trazendo
da memória o que fazia antes ou, readquirindo funções musicais que tinha antes,
o que poderia estimular a reaquisição de funções não-musicais, como pode ser
visto no exemplo grafado musicalmente por mim, retirado da gravação em fita
K7, da sessão no 49, realizada em 29/09/1976.
Aqui se poderia entender que a paciente, que consegue resolver esta
situação se valendo de ferramentas musicais anteriormente utilizadas, estaria
preparada para lidar com outras situações.
Mas, ainda cabe uma observação com relação à musicoterapeuta: percebe-
se que depois de esta ter feito um fechamento no primeiro grau (no compasso
25), para de tocar até o final como se estivesse ‘paralisada’, surpreendida pela
atuação musical da paciente! A sensação que se tem é que a musicoterapeuta faz
uma intervenção, mas se surpreende com o “rumo” que esta toma, ou seja, com a
resposta da paciente que começa a ser capaz de acionar antigas ferramentas, pela
restauração da memória ou o recrutamento de estruturas cerebrais.
Apesar de serem muitos os neurocientistas que têm estudado as relações
entre música e memória, ainda não se sabe por que a música facilita a
reaquisição desta. Não é raro se encontrar pacientes com demência que se
esquecem dos fatos das próprias vidas, mas que são capazes de recordar e cantar
canções que fizeram parte de suas infâncias, o que pode indicar que se a
memória para a música se não é especial, pelo menos é diferente da memória
para imagens e fatos do cotidiano (Rocha & Boggio, 2013).
Mas, deve-se mencionar que além dos muitos estudos realizados com
relação a distúrbios neurológicos, também são numerosas as pesquisas
conduzidas com o objetivo de melhor conhecer as relações entre o cérebro dos
músicos e a plasticidade, sabendo-se, já, que existem diferenças estruturais entre
os cérebros de músicos e não-músicos. Ainda se tem evidências, com relação à
neuroplasticidade, que indicam que existe uma correlação entre tempo de estudo
musical e as diferenças estruturais.
Em um artigo de revisão realizado por Tervaniemi (2009)89, (citado por
Rocha e Boggio, 2013) tem-se indicativos de que as diferenças encontradas entre
cérebros de músicos e não músicos poderiam ser resultado da prática musical.
No entanto, apesar das evidências da importância da utilização da música
no tratamento de distúrbios neurológicos, são necessários maiores estudos para
que se possa chegar a propostas concretas de tratamentos. Assim, mesmo com
um grande número de estudos que relacionam música e neuroplasticidade, ainda
não é possível se afirmar que a música “desempenha papel ativo em mudanças
estruturais no cérebro” (Rocha e Boggio, 2013, p. 138).
Mas, voltemos às intervenções:
Cena clínica 19
Alex, como será chamado o paciente aqui apresentado, era portador da
Síndrome do Miado do Gato90 que tinha um ano e seis meses quando foi
encaminhado à musicoterapia pela médica da instituição. Apresentava como
características da síndrome: hipotonia moderada, micrognastia (mandíbula
pequena), deficiência intelectual e uma leve microcefalia. Com essa idade ainda
não se mantinha sentado sem apoio e não emitia nem um som. Mas, o motivo de
seu encaminhamento à musicoterapia foi a aquisição de um comportamento
autista que não está entre os aspectos que em geral fazem parte da síndrome.
Alex não mantinha contato com o olhar, nem sequer olhava para os objetos
colocados à sua frente. Quando se entrava em seu campo de visão para mostrar
algo, ele olhava para cima. Se esse objeto fosse colocado no ponto para onde
ele dirigia seu olhar ele inclinava a cabeça para trás, ou seja, ele fugia não só
do contato através do olhar, mas, também, recusava-se a ter que olhar alguma
coisa. Além disto, Alex não aceitava o contato corporal. Eu não conseguia ficar
com ele no colo: ele escapava do meu colo, como um peixinho molhado que se
debate e escorrega das mãos, mesmo que eu tentasse mantê-lo comigo.
Eu tocava vários instrumentos e cantava músicas infantis conhecidas e
improvisava criando letras que “legendavam” as ações que fazíamos, enfim,
tentava de todas as maneiras o contato com Alex. Na busca de um instrumento
que o interessasse percebi que ele tinha uma reação facial que parecia de
desagrado quando eu tocava o reco-reco de madeira.
Depois de tentar de várias maneiras entrar em contato com Alex decidi
utilizar o reco-reco! Imaginei que ele poderia me “ouvir” e perceber a minha
presença através do reco-reco. Assim, decidi tocar o instrumento e ver qual
seria a sua reação. Como eu esperava, ele fez imediatamente uma expressão
facial de que aquilo o desagradava, mas me olhou. Rapidamente substituí o
instrumento pelo violão acompanhando a voz e assim conseguia trazê-lo para o
contato, ou seja, eu utilizava algo que o desagradava e no momento em que ele
respondia, eu trazia um instrumento do seu agrado.
Aqui foi utilizado um instrumento, mas poderia ser uma melodia, uma
canção, enfim, algo do desagrado do paciente, ou seja, que chamasse a sua
atenção por desagradá-lo.
Cena clínica 20
Norma, 21 anos, com um quadro de “epilepsia com expressão deficitária”,
com um comportamento perseverativo, não aceitava que os instrumentos
musicais, pessoas e objetos da sala fossem trocados de lugar e que se tocasse os
instrumentos musicais de uma maneira não convencional. Trabalhar esse seu
comportamento perseverativo era um dos objetivos na musicoterapia.
Em uma determinada sessão, ao entrar na sala, Norma me encontra
sentada na almofada em que ela costumava sentar-se. Imediatamente assume
uma postura corporal de autoridade e desafio: mãos na cintura, perna direita
para frente e pé direito batendo no chão! Ao mesmo tempo dizia num tom
autoritário; “nós não vamos começar”? Ainda sentada na almofada, coloco as
mãos na cintura, espelhando ou refletindo a sua atitude. Assim que Norma se vê
‘refletida’ por mim, ‘quebra o pulso’, desaparecendo o caráter de desafio que
havia assumido. Senta-se numa outra almofada e me diz com tom de quem
‘manda no espaço’: – “pode sentar aí, Rejane, eu deixo”! Continuo sentada na
almofada onde ela costumava sentar-se, e a sessão começa.
No momento em que Norma vê a minha intervenção corporal espelhando
a sua postura de desafio, percebe o que estava acontecendo e muda
completamente de atitude, inclusive o tom de voz e a forma como se dirige a
mim.
Ainda se torna necessário apresentar intervenções musicais que embora
não sejam feitas através da estrutura musical, são importantes ferramentas a
serem empregadas, como tenho testemunhado frequentemente na prática clínica:
Discussão
Caberia aqui uma última discussão: deveríamos nos ater à utilização de
intervenções musicais, já que estamos trabalhando com um elemento não verbal,
que é a música? Partindo da postura que adoto com relação à utilização da
palavra num processo musicoterapêutico eu diria que quaisquer intervenções
devem ser utilizadas, sejam elas musicais ou verbais, desde que possam
contribuir para o desenvolvimento do processo terapêutico.
Em minha opinião, deve-se utilizar a palavra em musicoterapia quando for
necessário ou quando o paciente dela se valer, desde que não seja para
‘controlar’ a situação. Caso contrário, estaremos numa situação “autista”, na qual
o paciente fala e o musicoterapeuta responde tocando ou cantando. No entanto, o
musicoterapeuta deve perceber em que momentos é adequado, ou não, fazer uso
da palavra.
Mas, voltando-se à questão das intervenções, ainda se deve sinalizar que
mesmo que a musicoterapia não utilize todas as intervenções empregadas em
psicoterapia, abre-se uma enorme gama de possibilidades a partir do momento
em que as intervenções musicais também podem, e devem, ser feitas.
Outro aspecto importante é que não há em musicoterapia uma hierarquia
no emprego das intervenções. Mas há, ou deve haver, uma flexibilidade por parte
do musicoterapeuta que as utiliza. O emprego das mesmas vai depender de
alguns fatores, como, por exemplo, do paciente, do momento e, evidentemente,
da abordagem teórica à qual se filia o musicoterapeuta.
A possibilidade de se distinguir os diferentes tipos de intervenções
passíveis de serem utilizadas em musicoterapia abre caminho para se investigar
mais acerca do emprego das mesmas. Assim, pouco a pouco, poderemos
avançar, refletir e discutir sobre os usos da música como elemento fundamental
em um processo musicoterapêutico.
Considerações finais
À medida que se reflete e discute sobre aspectos que fazem parte de um
processo musicoterapêutico, cresce em mim a certeza de que não só o ato de
“fazer música” a torna uma ferramenta extremamente importante para ser
utilizada como elemento terapêutico. Cada vez mais acredito que a música, além
de dar um grande prazer àqueles que dela se acercam, tem qualidades que se
constituem como experiências que podem ser terapêuticas para os pacientes
quando utilizadas por profissionais que dela se valem de forma apropriada e
específica, num contexto onde se tem por objetivo o desenvolvimento de pessoas
que precisam de ajuda. Ela pode provocar reações e associações, ou seja,
mobilizar aspectos físicos, psíquicos e emocionais que muito vão contribuir para
o desenvolvimento bio-psico-social do indivíduo.
Guardo ainda a convicção de que a compreensão musical e a leitura
musicoterapêutica que fizermos de um processo, serão de extrema importância
para o desenvolvimento da musicoterapia, que terá na própria música, grande
parte da sua fundamentação teórica.
A MUSICOTERAPIA NO TRATAMENTO DA
AMUSIA DE UMA PACIENTE COM FORMAÇÃO
MUSICAL ANTERIOR
Introdução
A utilização da música como elemento terapêutico com pacientes com
formação musical tem provocado muitas discussões entre os musicoterapeutas.
Este trabalho objetiva apresentar o desenvolvimento do processo
musicoterapêutico de uma paciente de 39 anos, que havia tido experiência como
pianista e compositora e que foi acometida de um Acidente Vascular Encefálico
(A.V.E.), deixando como sequela uma Hemiplegia Direita91 e uma Afasia
Sensorial com Amusia92. O tratamento foi desenvolvido na Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), Rio de Janeiro, no período de
março a outubro de 1976 – num total de 53 sessões – sob supervisão médica. A
musicoterapeuta fazia parte de uma equipe interdisciplinar composta de
fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga e, posteriormente,
psicoterapeuta.
História clínica
A paciente sofreu uma hemorragia cerebral em 8/9/1975, deixando como
sequela uma hemiplegia direita e uma afasia sensorial com amusia. Uma
angiografia constatou um “aneurisma da artéria comunicante posterior
esquerda”. Imediatamente após, sofreu um “espasmo arterial difuso” que
aumentou a gravidade de seu estado sendo então submetida a uma “clipagem do
aneurisma”. O quadro de hemiplegia e afasia se manteve e a paciente oscilava
entre o estado de vigília e sonolência quando foi internada.
Dora foi admitida na instituição um mês depois do A.V.E. (10/10/75),
chegando em maca, sem nenhuma comunicabilidade. Por estar em estado total
de dependência era necessário ser alimentada, vestida e higienizada. Abria os
olhos, mas não acompanhava com o olhar os movimentos que eram feitos ao seu
redor. Sua mastigação e deglutição eram normais. Tinha sonda permanente na
bexiga e seu intestino não funcionava.
Foi solicitada uma avaliação na fisioterapia, para troca de decúbito e
mobilização passiva no leito. Logo após, a paciente começou, também ainda no
leito, um tratamento de terapia ocupacional. Este tinha por objetivo o
desenvolvimento da percepção e movimento do membro superior direito.
Posteriormente a paciente foi encaminhada à fonoaudiologia, para o tratamento
da afasia. Depois de uma evolução parcial nestes tratamentos, foi encaminhada à
musicoterapia.
Encaminhamento à musicoterapia
A terapeuta ocupacional foi quem sugeriu à equipe médica o
encaminhamento da paciente à musicoterapia, objetivando o apoio ao
desenvolvimento da percepção, aspecto que estava sendo trabalhado naquele tipo
de tratamento. Quando Dora começou a ser atendida na musicoterapia estava em
cadeira de rodas, sem comunicação verbal. Cabe sinalizar que a paciente era
destra, informação importante pelo fato de ter ficado como sequela uma
hemiplegia direita, ou seja, com o dimídio direito comprometido motoramente.
Dados pessoais
Testificação musicoterapêutica93
Na impossibilidade de se ter informações sobre a sua história sonoro-
musical decidiu-se começar o processo pela etapa possível: a testificação
musicoterapêutica, feita com a própria paciente.
No primeiro contato que tive com Dora tentei descobrir aspectos de sua
Identidade Sonora94 e de seus interesses e preferências – músicas e
instrumentos. Dora rejeitava tudo. Sentada na cadeira de rodas colocada à
direita, no final do teclado do piano — de forma que eu me virando à direita
ficasse à sua frente —, negava-se, com movimentos de cabeça, a segurar os
instrumentos que eu lhe oferecia: pandeiro, maraca e guizos (presos a uma
armação de madeira), e não aceitava cantar95 as músicas que eu tocava. Enfim,
negava-se a fazer qualquer atividade proposta.
Na segunda sessão voltei a lhe oferecer instrumentos e ela escolheu o
pandeiro, apontando para o instrumento, para acompanhar uma música em
compasso 2/4 que eu tocava ao piano. Segurou o instrumento mas nem sequer
moveu a mão. Eu toquei também músicas infantis e músicas de sua região de
origem.
Perguntei-lhe se queria trocar o instrumento e ela moveu a cabeça
afirmativamente. Assinalou a maraca com o dedo e novamente só segurou o
instrumento sem tocar. Frente à não participação de Dora, tomei a decisão de
tocar outra música, desta vez em 3/4 – a Valsinha96, cujo componente
predominante é a melodia (carregada de elementos expressivos muito fortes –
apogiaturas, modulações e possibilidades de fraseado e variações de agógica e
dinâmica). Nesse momento a minha intenção era a de ‘impactar’ Dora. Eu não
pretendia mais que ela tocasse junto comigo mas, sim, tinha por objetivo
mobilizá-la através da música, para com ela me comunicar e começar a
estabelecer o vínculo terapêutico. Ela permaneceu muito atenta e quando
terminei, ela disse, vagarosamente: – “gostei muito”! Toquei então outra valsa: A
Volta ao Mundo97 e, quando acabei, ela falou, ainda lentamente, como
procurando as palavras: – “muito bem”!
Pude observar, enquanto tocava, o seu interesse pelo que eu fazia através
da forma como ela olhava para o teclado do piano. Percebi que nesse momento
estava se abrindo um canal de comunicação. Isto me levou a lhe perguntar se
gostaria de tocar piano. Ela respondeu que sim e sua cadeira de rodas foi
colocada frente ao instrumento. Começou a tocar com a mão esquerda (a direita
estava sem movimentação), sem produzir sons, apesar de pressionar as teclas.
Estava acabando a segunda sessão.
Avaliação
A partir das duas primeiras sessões, tomadas como testificação, pude
observar que a identidade sonora de Dora estava ligada ao piano; que o
compasso 3/4 parecia atraí-la mais, assim como os elementos musicais mais
expressivos. Também pude constatar que Dora não estava localizada no espaço e
que não tinha noção de tempo98. Seu tipo de linguagem era “não-verbal” –
negava-se a tudo com movimentos de cabeça e sinalizava apontando com o
dedo. Sua percepção estava prejudicada. Tinha transtornos no reconhecimento e
evocação de melodias. Com estas informações, estabeleci os seguintes objetivos:
Ficha Musicoterapêutica100
Só foi possível obter as informações que constam da ficha
musicoterapêutica, após a vinda do filho de Dora à instituição, depois da terceira
sessão. Nessa entrevista eu soube que Dora havia estudado piano, bem como
todos os seus irmãos. Tocava música erudita e popular. Compunha e cantava.
Havia competido em sua cidade natal em alguns festivais de música popular com
composições de sua autoria. Não tinha piano em sua casa no Rio de Janeiro.
Deve-se, sinalizar, aqui, a partir da situação desta paciente, que apesar de
existir uma ordem de realização das etapas de um processo terapêutico, é preciso
que o musicoterapeuta seja flexível, pois nem sempre pode se seguir a ordem
desejável, ou, até, realizar todas essas etapas.
Alta
Em 6/10/76, (um ano depois de ser admitida na instituição – 10/10/75 – e
cinco meses depois de ter começado a musicoterapia – 22/3/76), Dora teve alta
do regime de internação. Voltou para casa e passou a vir regularmente para os
tratamentos, só duas vezes por semana.
Dora não teve grandes avanços na reaquisição da marcha, embora pudesse
caminhar com auxílio de bengala; falava com inflexões rítmico-sonoras e
utilizava bem a linguagem que estava agora adequada à sua idade e à sua
situação sócio-cultural. Apresentava-se bem localizada no espaço e no tempo e a
sua percepção do mundo estava adequada à realidade (tinha preservada a
consciência do “eu” e percebia bem o “outro”).
Pouco depois, passou a faltar a todos os tratamentos e os terapeutas
ficaram sabendo, através da secretaria da instituição, que a família solicitara alta.
Por falta de orientação, a família não teve condições de acompanhar e
compreender melhor o desenvolvimento da paciente, o que culminou com a
solicitação de alta. Dora continuou em casa, apenas com o tratamento
fisioterápico, ou seja, a alta não foi dada por nem um dos muitos terapeutas que
a acompanhavam na instituição.
Breve Discussão
Hoje são muitas as contribuições das neurociências sobre a relação da
música e distúrbios neurológicos. Além disto, muitos são os estudos conduzidos
atualmente, que buscam estabelecer a relação entre a plasticidade e o cérebro de
músicos; a correlação entre tempo de estudo musical e diferenças estruturais no
cérebro e, ainda, a possibilidade de uma possível correlação entre a idade em que
a pessoa começou a estudar música e mudanças estruturais no cérebro, além de
haver hipóteses ainda necessitando de comprovação que definam se já havia uma
predisposição para o desenvolvimento destas mudanças, anterior ao estudo de
música (Zatorre; Chen; Penhume, 2007; Schlaug et al., 1995, citados por Rocha
e Boggio, 2013).
Destes estudos, pode-se depreender a complexidade do tema. Atualmente
já existem também achados que comprovam a diferença entre o funcionamento
do cérebro de músicos e não- músicos mas, à época em que a paciente objeto
deste estudo foi atendida só se podia observar a diferença da sua atuação em
relação aos outros pacientes com sequela de AVC e AVE e, também, a diferença
nos resultados obtidos entre ela, com formação musical e os outros sem nenhum
conhecimento de música, embora o seu estado fosse muito mais grave do que a
maioria dos outros pacientes. Especialmente no caso de Dora, que havia sido
pianista e compositora, a música era um terreno comum onde tanto a
musicoterapeuta quanto a paciente pisavam, contribuindo para que a interação
numa área de expertise da paciente mobilizasse e pusesse em movimento
aspectos muito específicos de sua identidade.
Considerações finais
Através do processo musicoterapêutico se pôde observar e compreender
que a música, um elemento tão próximo de Dora possibilitou:
Introdução
Alguns musicoterapeutas têm a preocupação em utilizar a música não só
como elemento terapêutico, mas também dela se valem para explicar o processo
musicoterapêutico. Esta explicação feita através da própria linguagem musical
eu denomino de “leitura ou análise musicoterapêutica” (Barcellos, 1982).
A preocupação em fazer uma “análise musicoterapêutica” pode nos levar a
refletir sobre o processo terapêutico e, consequentemente, contribuir para que a
musicoterapia tenha uma especificidade, o que vai nos conduzir para a obtenção
de uma maior identidade profissional.
Minha indagação é: será possível explicar e avaliar o processo
musicoterapêutico, isto é, explicar o quê e como acontece, partindose da “análise
musicoterapêutica” da sessão?
Cabe aqui diferenciar-se “análise musical” de “análise musicoterapêutica”.
A “análise musical é a análise que tem como referência a própria música, e
não parâmetros externos” (Dicionário Grove de Música, 1994, p. 28). Assim, é
possível se fazer uma análise musical da música/produção musical do paciente.
No entanto, difícil seria ter-se uma compreensão do paciente através da análise
musical. Já a “análise musicoterapêutica” é compreender-se o paciente através
do musical que ele expressa e de como ele expressa. Isto em relação aos
parâmetros musicais, à escolha dos instrumentos e à forma de tocar os mesmos,
enfim, em relação ao setting musicoterápico, e às histórias do paciente: de vida,
clínica e sonoro-musical.
Para fazer uma diferença entre estes dois tipos de análise pode se trazer
exemplo que é: um paciente fez um trecho
no tambor,
em fff,
em 2/4,
rápido.
Dados Principais
História da Paciente
Inicialmente marquei uma entrevista com a mãe de Norma para conhecer
dados das histórias: pessoal, clínica e sonora da paciente. No momento da
entrevista me foi entregue, pela mãe de Norma, um “relatório” batido à máquina,
com toda a evolução da paciente, penso que numa tentativa de não se realizar o
contato pessoa-pessoa ou pelo fato de a mãe estar cansada de repetir a mesma
história para todos os profissionais que atendiam a filha, ou, talvez, por ser
penoso para a mãe relatar essa história. Contudo, o relatório foi guardado para
leitura posterior e a entrevista foi realizada.
Norma foi concebida logo após o casamento e nasceu de parto normal em
1959, com 2,510 kg. Foi alimentada no seio durante um mês e dias e teve sempre
alimentação normal. Tomou as vacinas de praxe. Com dez meses apresentou uns
“tiques”: “jogava a cabeça para frente e revirava ligeiramente os olhos” [sic]. Por
causa disto, foi feito um Eletroencefalograma106 (EEG), cujo resultado foi
normal. Com três anos teve a primeira convulsão e começou um tratamento
neurológico com Diamox, Misoline, Mirontin e Gardernal. Aos quatro anos fez
novo EEG que apresentou resultado “Anormal com Acentuada Disrritmia”.
Entre os três e cinco anos teve catapora, caxumba, coqueluche e sarampo.
Continuou com a medicação – Mirontin, Gardernal, Zarontin, Diamox e
Misoline. Apesar de estar medicada continuou com as crises convulsivas. A
medicação passou a ser Trinuride, Ácido Glutâmico e Organo Neurocerebral.
Nessa época o diagnóstico foi: “crises de pequeno mal”. As crises foram
mudando de forma e o comportamento de Norma também, pois ela ficou
completamente “aérea” [sic]. Fez “tratamento espiritual” com o médium Arigó
que também deu o mesmo tipo de medicação. Em 1968, com nove anos, passou
a fazer um tratamento de recuperação em clínica especializada, através de
exercício de etapas neuroevolutivas iniciais como rolar, arrastar-se, engatinhar
etc. A menarca foi aos dez anos.
Segundo o relato da mãe, Norma ainda fazia em casa, em 1980, com 21
anos, esta “ginástica”, quando não estava bem, o que pude constatar em vários
momentos do tratamento musicoterapêutico, quando ela propunha que
fizéssemos ‘ginástica’ e trazia exercícios que podiam ser identificados como
sendo de fisioterapia e, também, pela calosidade que apresentava nos joelhos
(consequência do engatinhar, certamente).
É interessante se observar que além de Norma ser levada a etapas
primitivas de desenvolvimento, ela era vestida e penteada como uma menina,
pois, apesar de ter 21 anos, quando iniciou a Musicoterapia, usava “cachos” e
“tranças”. É importante ressaltar que à medida que Norma foi apresentando
mudanças de comportamento a sua aparência foi se modificando – roupas,
penteados e até os adereços que usava como pulseiras, colares e brincos
passaram a ser de uma adolescente/adulta. Foi colocada na escola com cinco
anos e novamente com sete, mas foi imediatamente retirada por não acompanhar
as turmas. A mãe passou a conduzir seu processo de alfabetização. Continuou
com a medicação e as crises passaram a acontecer principalmente nos períodos
de transição entre vigília e sono e vice-versa. Durante toda a infância e
adolescência Norma foi cuidada pela avó materna ou por empregadas pelo fato
de sua mãe trabalhar no serviço público. Seu pai era comerciante.
Foram realizados alguns testes de QI (Quociente Intelectual) que revelaram
a expressão deficitária mas à época em que foi admitida na musicoterapia Norma
lia e escrevia bem fazendo inclusive palavras cruzadas. A mãe a ensinava em
casa e foi também contratada uma professora particular.
Segundo diagnóstico médico Norma apresentava um quadro de Epilepsia
com início precoce, nos primeiros anos de vida, com crises iniciais de tipo
pequeno mal, evoluindo para um quadro de grande mal com crises
generalizadas. Foi relatado que Norma apresentava uma Expressão Deficitária
Mental, resultante do quadro epiléptico.
Encaminhamento à Musicoterapia
Norma foi encaminhada na mesma época, por um psicanalista, à
musicoterapia e à psicoterapia, tendo iniciado os dois tratamentos em abril de
1980. O psicanalista a encaminhou a estes dois tratamentos por achar que ela se
beneficiaria mais destes do que da psicanálise.
Contato
não fazia contato visual com a musicoterapeuta;
não aceitava contato tátil tentado através de atividades como roda e dança.
Comportamento Perseverativo
preocupação em ocupar sempre o mesmo lugar na sala;
preocupação em encontrar e arrumar os instrumentos musicais sempre no
mesmo lugar e da mesma forma;
perseveração na escolha dos instrumentos musicais;
utilização dos instrumentos musicais só de forma convencional e não
aceitação de outro tipo de utilização;
utilização do mesmo material sonoro: fitas, discos e músicas;
não aceitação em ouvir o lado dois ou B de fita ou disco sem ouvir o lado
um ou A antes porque “o A vem antes do B e o 1 vem antes do 2”!
Memória
impossibilidade de lembrar o material rítmico-sonoro ou os instrumentos
utilizados em sessões anteriores.
Ocupação do Espaço
não utilização do espaço. Só utilizava o espaço que ocupava, tendo
dificuldade de se afastar dele, mesmo quando a musicoterapeuta solicitava.
Orientação Temporal
sem orientação no que dizia respeito a dias e horas.
Iniciativa
impossibilidade de escolha de instrumentos a serem utilizados, músicas a
serem cantadas ou tocadas e atividades a serem realizadas, solicitando
sempre que a musicoterapeuta ou estagiária o fizessem.
Movimentação Corporal
movimentos rígidos e irregulares que ela chamava de “ginástica” ou
“exercícios” para serem realizados junto com música.
Objetivos na Musicoterapia
A partir da entrevista com a mãe, da observação da atuação de Norma no
setting musicoterapêutico e de uma reunião com o neurologista e o
psicoterapeuta, foram estabelecidos os seguintes objetivos:
A Equipe Interdisciplinar
A equipe que atendia Norma não fazia parte de uma mesma instituição, ou
seja, cada profissional a atendia em seu consultório particular. Denomino este
tipo de equipe, de equipe informal109, em contraposição à equipe formal,
constituída por vários profissionais que fazem parte de uma mesma instituição e
podem aí se reunir para discutir as questões relativas a um mesmo paciente.
Em 1980 e 1981, a equipe que trabalhou com Norma era formada por
neurologista, psicoterapeuta e musicoterapeuta que realizavam reuniões
frequentes, sempre no consultório de um dos profissionais que a atendiam, para
debater sobre os procedimentos a serem adotados no tratamento. Em 1981,
Norma foi por nós encaminhada à Escolinha de Arte do Brasil. A partir daí a
equipe passou a contar com uma professora especializada em Educação através
da Arte.
Abordagem Teórica
A abordagem teórica utilizada para fundamentar o processo
musicoterapêutico de Norma foi a Humanista Existencial que acredita que a
experiência de cada pessoa é única e que todas as pessoas têm dentro de si
mesmas uma força que as conduz ao crescimento. O terapeuta tem o papel de
facilitador; daquele que se “introduz” no mundo perceptivo do cliente e partilha
com ele seus sentimentos e percepções.
Anteriormente me referi à “Musicoterapia Interativa” onde
musicoterapeuta e paciente partilham a experiência musical, ativos no processo
de fazer música. Aqui o musicoterapeuta trabalha a partir do paciente que é o
centro da terapia. Qualquer manifestação rítmico-sonora, musical ou não, trazida
por este, é aceita pelo musicoterapeuta que tem o papel de facilitar e ajudar a
expressão da experiência interna através da música, interagindo ou fazendo
intervenções, quando necessário, em geral, musicalmente. Assim, dentro de uma
relação estabelecida através de um elemento não verbal – a música – o paciente,
por ter a expressão de sua experiência interna aceita integralmente e por
compartilhar esta experiência com o musicoterapeuta, pode se sentir livre para
crescer, passando a expressar seus conflitos e conteúdos internos através da
música.
A música é, então, ao mesmo tempo, o elemento de expressão e
clarificação/conscientização, através do qual se faz o crescimento do paciente,
num movimento que denomino “reação sonora em espiral” (Barcellos, 1984a, p.
39).
1. manifestação sonora do paciente;
2. aceitação e utilização da manifestação sonora do paciente por parte do
musicoterapeuta e retorno desta para o paciente, para um ponto diferente
por trazer uma gratificação decorrente da aceitação + utilização +
valorização;
3. nova manifestação do paciente, impulsionada pela gratificação advinda da
manifestação anterior.
Nos casos em que o paciente não tem condições ou não quer trazer
nenhuma manifestação, cabe ao musicoterapeuta incentivar/estimular/induzir o
mesmo a fazê-lo.
Algumas vezes é possível que o paciente repita uma mesma manifestação
até que consiga trazer uma nova ou a modificação da que foi trazida pelo
musicoterapeuta. Cabe ao musicoterapeuta entender quais são as possibilidades
do paciente e incentivá-lo, o que fará com que aconteça essa espiral sonora de
desenvolvimento.
Técnica Utilizada
A escolha da abordagem teórica Humanista Existencial para nortear o
desenvolvimento do processo musicoterápico de Norma se deveu a dois fatores.
Em primeiro lugar, evidentemente, porque se trata da abordagem teórica com a
qual mais me identifico e, em segundo lugar, porque como esta não tem técnicas
específicas, tornase possível a utilização de técnicas musicoterapêuticas.
Em geral utilizo como técnica principal, quando o paciente tem condições,
a “Improvisação Musical Livre” ou, em alguns momentos ou com alguns
pacientes, a “Improvisação Musical Orientada”, entendendo que uma situação
musical improvisada dá lugar para que qualquer coisa aconteça. Num sentido
muito amplo, improvisar é sinônimo de “brincar” musicalmente.
A improvisação se aplica a todo processo de desenvolvimento e pode
promover a expressão e “descarga pessoal”. Assim, a desinternalização de
materiais e estruturas utilizadas permite que se conheça melhor e mais
rapidamente a pessoa que improvisa, ao mesmo tempo que lhe traz um efeito
benéfico, resultado da ação expressiva e comunicativa (Gainza, 1983).
Por outro lado, a improvisação proporciona processos de internalização de
novas formas, materiais e estruturas. A utilização desta técnica, segundo Ruud
(1980), representa um desafio ao musico terapeuta que deve ter, além de uma
formação musical bastante sólida, uma musicalidade que lhe permita perceber
“musicalmente”, ou “através da música”, seu paciente, isto é, discriminar sons,
intervalos, ritmos, compassos e, eventualmente harmonias. Ainda mais: o
musicoterapeuta deve poder lidar com estes elementos de forma clara e segura
para que o paciente sinta nele(s) um “continente sonoro/musical”110, onde possa
se apoiar e depositar seus conflitos, sentimentos e necessidades. Assim, além de
manipular e dominar a linguagem musical, o musicoterapeuta que utiliza esta
técnica deve ter condições de perceber e fazer uma leitura do material
expressado pelo paciente para ter dele uma compreensão, ou seja, uma análise
musicoterapêutica.
Vale lembrar que embora não se exija resultado estético na produção
musical do paciente é importante estar atento para as mudanças nesse sentido.
Em uma palestra que proferi em 2007, sobre as diferenças e semelhanças entre a
educação musical e a musicoterapia, levantei uma discussão sobre esse ponto,
afirmando que na educação musical existe uma preocupação com a estética e na
musicoterapia eu penso existir um estado de atenção à estética, isto é, o
musicoterapeuta deve estar atento ao que acontece com relação a este aspecto
porque uma mudança estética na produção musical do paciente pode significar
uma mudança interna (Barcellos, 2007b).
É importante frisar que são realizadas improvisações com voz, corpo e
instrumentos e que estas podem ser rítmicas, melódicas, com ou sem harmonia, e
que também é feita a criação de letras, o que é de extrema importância, pois
podem expressar conteúdos internos que mais dificilmente seriam exteriorizados
‘só’ através da palavra. A música impulsiona e leva à criação da letra.
Torna-se necessário observar ainda que a utilização desta técnica –
Improvisação Musical Livre – não impede que se utilize a recriação de música
popular, folclórica, erudita ou qualquer outro material sonoro a ser trazido pelo
paciente ou, ainda a composição de músicas, caso seja o seu desejo, pois se parte
das necessidades ou interesses dele. Por outro lado, deve-se assinalar que
raramente se começa um processo musicoterapêutico pela improvisação musical,
por vários motivos:
gaita de boca,
flauta,
teclado e
pau de chuva
“Quando”
Essas histórias eram cantadas por ela que improvisava a música e que
dialogava com os outros personagens (musico terapeuta e estagiária). Assim a
história era vivida por ela.
É importante ressaltar que ela trazia o tema que queria desenvolver,
escolhia o personagem que iria “viver” e escolhia, sempre a pedido meu, os
personagens que eu e a estagiária seríamos. É também fundamental se observar
que, ao final da sessão, quando eu sinalizava que o tempo estava acabando ela
dizia: “agora eu sou Norma outra vez”, voltando sempre à realidade. Eu e a
estagiária também voltávamos a ser nós mesmas.
Emília114
Nesta história Norma foi a boneca Emília que se transforma em gente que
passa, segundo ela cantou, “a andar com os próprios pés e a falar como se fosse
gente”. A musicoterapeuta foi o Dr. Sabugosa (a musicoterapeuta) que, com as
“pílulas” (sementes dentro da cabaça da maraca – portanto o som), a
transformou em gente.
O ballet “Gisele”115
Na história que Norma trouxe deste ballet ela foi a bailarina que reviveu
quando o príncipe (a musicoterapeuta) “colocou o diadema” na sua cabeça.
Quando Norma trouxe o ballet, que foi dançado por nós durante algumas
sessões — com a música original da gravação trazida por mim em disco, tão
logo ela se referiu ao mesmo —, não me parecia um tema de transformação. No
entanto, um ano depois, refere-se às histórias que trouxera e canta,
improvisando: “a Gisele cai, fica como que morta e o bailarino vem, toca nela e
ela revive. Ele coloca o diadema na cabeça dela e eles dançam. Está acabando o
ballet”!
Não é necessária uma análise muito profunda para se entender o que
aconteceu com Norma na dramatização dessas histórias, que ela certamente
conhecia, e a importância que a expressão delas, todas representando a sua
transformação, tiveram em seu processo terapêutico. A paciente se valeu daquilo
que conhecia para expressar a consciência que tinha de seu estado e do
desenvolvimento, e mostrou saber qual era o papel de cada uma de nós na
musicoterapia.
vegetais com os quais fazia comida — cada uma de nós era um vegetal
como, por exemplo, ela era a cebola, a musicoterapeuta o tomate, e a
estagiária o alho, com os quais, improvisando cantando, através da letra,
fazia um molho;
animais — relacionam-se entre si, interagindo;
jogos de baralho — éramos sempre cartas de baralho que eram apresentadas
em sequência, ou apresentando uma relação entre elas e
política — aqui ela improvisa cantando/contando o seu amor por um dos
candidatos e a sua decepção pela derrota do mesmo, mostrando a sua
participação no momento político do país.
Como se pode perceber, esta fase poderia ser intitulada “relações”, pois,
através de vários temas, a paciente faz a relação entre os elementos trazidos em
cada um dos temas. Aqui Norma parece fazer um exercício preparatório para a
fase subsequente.
Quinta fase
Foi certamente a vivência das histórias de transformação, através da
improvisação musical, que possibilitaram que Norma passasse a um novo
momento, criando uma história em que ela era uma ‘lagarta’ que se transformava
em ‘borboleta’, a musicoterapeuta era uma ‘rosa azul’ e a estagiária um ‘grilo
falante’. Nesse tema ela se deteve por alguns meses. Sempre cantando e
contracenando com o Grilo e a Rosa Azul ela saía do seu casulo e voltava a ele a
cada sessão. A cada saída ela ia visitar a ‘rosa azul’ e ‘exercitava’, nessas visitas,
a percepção através de todos os sentidos. Cantava que queria sentir o perfume e
as pétalas da ‘rosa azul’. Imobilizava a musicoterapeuta, “plantada” em um
canteiro, e se locomovia até ela para esse exercício através dos sentidos. A
evolução de Norma, no que se refere ao espaço que ocupava, poderia ser
representada graficamente da seguinte maneira:
A personagem que ela escolheu para viver — uma lagarta — que tem um
tempo de vida finito e que se transforma depois deste tempo;
O papel por ela escolhido para ser vivido pela musico-terapeuta é único – a
‘rosa azul’, o que pode representar a importância e a forma especial como
ela vê a musicoterapeuta, resultante do estabelecimento do rapport116 .
Sexta fase
No último ano do processo musicoterapêutico Norma trouxe basicamente a
sua sexualidade. Inicialmente ‘se transformou de ave em mulher’, improvisando,
cantando. Depois escolheu um disco de Roberto de Regina117, tocando música
espanhola, e dançou, com toda a sensualidade e feminilidade características
desse tipo de dança, tocando castanholas junto com a música, enquanto dançava.
Depois de falar sobre a sua forma de dançar música espanhola é importante
relembrar o que relatamos no início deste trabalho, sobre a dificuldade e a
rigidez que Norma apresentava na criação de movimentos os quais ela chamava
de “ginástica” ou “exercícios”.
Na sessão posterior, Norma fez uma festa de l5 anos. Vestiuse
imaginariamente com um vestido comprido, fazendo os gestos e cantando,
sempre improvisando; fez uma maquiagem olhandose num espelho também
imaginário, colocou um disco inexistente e dançou uma valsa com o namorado –
sem música e sem namorado. Aqui aconteceu nitidamente um “rito de
passagem”. Após a valsa, convidou o namorado com quem dançara – cantando,
para dormir com ela.
Era impossível se prever o que esperar na sessão seguinte: fomos
surpreendidas, musicoterapeuta e estagiária, por um desdobramento inesperado
do rito de passagem da sessão anterior. Possivelmente por culpa de ter ‘dormido’
com o namorado, Norma trouxe uma santa, construiu um altar — com uma
almofada sobre a qual colocou a santa — e transformou a sala numa igreja.
Transformou o violão no padre João e nós três em freiras. Executou, no teclado
eletrônico com som de órgão, num andamento lento e muito legato, uma música
com uma harmonia aleatória (porque não saberia fazer de outra forma), cantando
que éramos três freiras que estávamos ali para rezar. O resultado sonoro trazia
uma atmosfera sagrada. Na sessão seguinte Norma voltou a transformar a sala
em igreja, o violão em padre e nós em três freiras com o seu discurso cantado.
Dizia que estávamos na igreja e que viéramos ali para rezar. No entanto, ao
invés do órgão, Norma escolheu uma maraca, com a qual fez um ritmo bem
brasileiro num compasso 2/4, com andamento rápido, em intensidade forte e
com bastante agressividade na forma de tocar. Percebi que algo denunciava que
o seu discurso verbal, cantado, não era compatível com o discurso musical
executado no instrumento. Um dos dois discursos não estava expressando os
seus conteúdos internos. Na sua forma de cantar havia a sacralidade da sessão
anterior, mas, na música instrumental, o resultado era o de uma batucada.
Guardando as devidas proporções era como se nós estivéssemos assistindo a
uma Escola de Samba desfilando dentro de uma igreja!
Partindo da afirmação de alguns teóricos que dizem ser mais difícil
controlar o discurso musical do que o verbal, fiz uma intervenção cantando,
dizendo-lhe que assim como havia nos transformado em três freiras, poderia nos
transformar em qualquer outra coisa, se quisesse. Mantive a sacralidade do seu
canto – com o andamento lento e a voz suave. Imediatamente ela nos
transformou em três leoas e o padre João (o violão) em um leão. A igreja foi
transformada em uma floresta, e ela passou a rugir e a expressar a sua raiva em
relação à avó, que a havia contrariado porque não queria levá-la à Escolinha de
Arte do Brasil, para a aula. É importante frisar que o discurso musical continuou
o mesmo, enquanto ela expressava a sua raiva. É relevante ressaltar ainda que a
percepção e a intervenção da musicoterapeuta possibilitaram que Norma
exteriorizasse sentimentos que, de outra forma não seriam expressados nem
elaborados.
O último tema abordado por Norma foi a vivência da “Princesa Menuda”.
A musicoterapeuta foi escolhida para viver o Príncipe Menudo a quem, depois
de algum tempo ela pediu um filho “que tenha olhos azuis como o mar e onde
navegue um barquinho branco”. Este foi o momento da vinda do conjunto
Menudo ao Brasil e ela utilizou o tema por muito tempo, cantando como eles.
Ainda no momento em que trazia a sua sexualidade utilizou determinados
instrumentos, falando sobre os mesmos, sobre ser instrumento ‘de homem’ e ‘de
mulher’ e, numa determinada sessão, enfiou a cabeça da baqueta no orifício de
outro instrumento, de forma muito simbólica.
Ainda se deve ressaltar que Norma não vinha penteada mais com cachos
ou tranças, mas, sim, com penteados e roupas compatíveis com a sua idade, o
que deve ter sido, também, resultado da compreensão de sua mãe, do
desenvolvimento e tranformação pelos quais ela passou.
Compassos
Melodia
Harmonia
Movimentos Corporais
Vimos que havia uma progressão clara no uso dos instrumentos. Dos mais
primitivos, de pele ou chocalhos, Norma passou à utilização de instrumentos
melódicos e harmônicos e, finalmente, todos eles, de qualquer forma.
Breve discussão
O ponto central desse atendimento parece ser o que reúne e resume os
momentos de transformação, principalmente a história da ‘lagarta que se
transforma em borboleta’. Nessa história, criada por Norma, percebe-se a
evolução da sua movimentação, pois, pouco a pouco ela ‘canta’ voar a outros
lugares “para conhecer o mundo”. Finalmente, numa determinada sessão, algum
tempo depois, ela conta — ainda trabalhando o tema, no qual se manteve por
meses — cantando, improvisando, que voou para o alto de um monte, onde
pousou para observar tudo que estava acontecendo, sem voltar mais ao casulo.
À luz do pensamento do médico austríaco e psicanalista Junguiano que se
estabeleceu nos Estados Unidos, Edward C. Whitmont, “uma mulher que
compra tudo que encontra com a forma de borboleta, é dominada por um
impulso que requer compreensão simbólica” (1969, p. 15).
Partindo dessa afirmação, buscamos entender a situação na qual a própria
paciente se transforma em borboleta, em episódos que se estenderam por alguns
meses, levando-a a exercitar os sentidos e a manifestar a sua “vontade de
conhecer o mundo”, até o seu “voo para o alto do monte, onde pousou para
observar tudo que estava acontecendo, sem voltar mais ao casulo”!
Whitmont, referindo-se ainda “à mulher que compra tudo com a forma de
borboleta”, declara que “a borboleta pode ser a expressão de uma forte
necessidade interior de se livrar de um casulo que confina, talvez um casulo de
velhas atitudes protetoras” (idem). O interessante no caso de Norma é que ela
chega a se livrar do casulo, dizendo através da música, cantando, aquilo que
certamente não consegue falar verbalmente, sem acompanhamento musical.
Aqui, pode-se entender que ela utiliza uma metáfora musical, cantada, para
expressar o que acontece e vivencia.
Em todas as histórias que trouxe, sempre passava por um rito de
transformação. Aqui se despe ‘do casulo’ para se livrar, na medida do possível,
das amarras que a mantêm como criança, submissa e confinada! E, mais do que
isto, provavelmente tentando se libertar da condição de “especial”,
transformando-se e viajando para conhecer novas terras...
Considerações finais
Nos cinco anos de trabalho com Norma pude perceber, através da leitura da
sua produção musical e daquilo que ela escolheu musicalmente para trazer —
análise musicoterapêutica — e também através da sua atitude no setting
musicoterapêutico, seu crescimento e sua evolução, o que foi ratificado pela
mãe.
Através do relato aqui feito, pode-se constatar que seu crescimento musical
traduz o seu crescimento interno, o que era o nosso principal objetivo, isto é, que
Norma crescesse como pessoa. Assim, a música, principalidade da
musicoterapia, como elemento básico de expressão e sensibilização, levou-a a
vivenciar e experienciar situações que a impulsionaram para um processo de
desenvolvimento.
MUSICOTERAPIA: ABORDAGEM
FUNDAMENTAL NO TRATAMENTO DO
DEFICIENTE AUDITIVO
Introdução
O psicanalista francês Didier Anzieu afirma textualmente em seu livro “O
Eu-Pele”, que “o espaço sonoro é o primeiro espaço psíquico” do ser humano
(1989, p. 197). Para investigar sobre a importância do som no desenvolvimento
do psiquismo humano e chegar a esta afirmação Anzieu se apoia em teóricos
como o compositor francês Xenakis118 e o médico, também francês, Alfred
Tomatis119 .
A partir de suas ideias, decidi repensar e refletir sobre a questão que resulta
numa grande incoerência para muitos: a utilização da musicoterapia com
deficientes auditivos tendo, também, como objetivo, discutir sobre a diferença
entre a música na educação especial e a musicoterapia, e sobre a importância da
utilização desta última em instituições de educação de pessoas com deficiência
auditiva – DA.
Mais do que uma contribuição ao desenvolvimento da audição, da fala e da
melhoria do equilíbrio emocional, a musicoterapia se constitui como uma
abordagem fundamental, também, para a evolução psíquica daqueles a quem
falta a audição, ou têm o desenvolvimento desta interrompido, em qualquer que
seja o momento.
Assim, levanta-se a hipótese de que a música (e seus elementos
constitutivos) é essencial para o tratamento de uma criança DA, tratamento este
que deve, antes de mais nada, objetivar a “reconstituição” da evolução da
audição, contribuindo para o desenvolvimento psíquico daquele que perdeu a
capacidade de ouvir.
Sabe-se da recomendação de professores de educação de deficientes
auditivos para a não utilização da vibração do som, pelo fato de as crianças
correrem o perigo de não se interessarem por “ouvir” (por via aérea) – o que é
muito mais difícil para elas —, e sim, de continuarem só “sentindo” as
vibrações.
Apesar de eu ter sido advertida para não utilizar o som desta forma, no
tratamento de uma criança DA apresentado a seguir, optei por fazê-lo, por dois
motivos:
História Sonora
Com relação à história sonora de Simon a mãe relatou que o acalentou
embora isto fosse muito difícil para ela, porque depois da doença o menino
passou a encostar a cabeça em seu peito para sentir a sua voz. Ele gostava de
aparelhos eletrodomésticos como liquidificador, enceradeira e máquina de
costura elétrica, na qual colocava as mãos enquanto a mãe costurava, certamente
para sentir a vibração.
Fiz um levantamento das músicas infantis mais comuns na Inglaterra e a
mãe me trouxe algumas partituras. Optei por não utilizar esse material por
alguns motivos. Em primeiro lugar porque Simon talvez tivesse tido pouco
contato com as músicas da sua cultura já que a mãe relata que ele colocava a
cabeça no seu peito para sentir a vibração. Segundo porque eu talvez ficasse
pouco à vontade para utilizar esse material por não conhecer bem o mesmo e, em
terceiro lugar porque no caso de Simon, não me parecia ser esse o trabalho
fundamental. É claro que não posso invalidar as raízes musicais do paciente pelo
fato de ele ter uma DA. No entanto, não me parecia imprescindível lançar mão
deste tipo de recurso sonoro já que eu considerei que deveria partir de etapas
sonoras anteriores.
Ele respondia com um movimento de cabeça a um tambor em intensidade
forte (aproximadamente 120 dB)125 e com uma piscadela a um xilofone (entre
500 e 1000 Hz)126 com aproximadamente 100 dB. O resultado da timpanometria
foi normal, mas Simon não apresentou reflexo estapediano127. Trata-se de uma
informação importante para nós musicoterapeutas, pois é este reflexo que atenua
os sons com uma intensidade que passaria do nosso limiar de dor. (Deve-se levar
em consideração que Simon fazia uso de um aparelho que amplificava o som). A
ausência do reflexo estapediano acendeu um alerta para o cuidado que se deveria
em não emitir sons em intensidade fortíssima pois isto poderia se constituir em
um desprazer. Estaríamos correndo o risco de não interessá-lo, ou, mais do que
isto, de afastá-lo do mundo dos sons já que para ele não seria um prazer, pela
possibilidade de a intensidade poder ultrapassar o limiar de dor e desconforto.
Suas primeiras audiometrias128 foram realizadas em Manchester, na
Inglaterra e, posteriormente, na John Trace Clinic, nos Estados Unidos, para
onde a família foi em julho de 1990.
O diagnóstico de DA foi feito quatro meses após a meningite e
imediatamente Simon passou a usar um aparelho bilateral – Phonak – que lhe
dava um ganho de aproximadamente 45 dB, como apontam os resultados dos
exames, e a ser atendido por uma professora especializada em DA. (Novembro
de 1988). Quatro meses depois foi encaminhado à musicoterapia por um
musicoterapeuta amigo da família, com a recomendação de que deveria ser
trabalhado em inglês, como a professora especializada o fazia.
O processo musicoterapêutico
Após entrevista com os pais, onde fiquei a par das histórias de vida, clínica
e sonora de Simon e também da sua capacidade auditiva através dos
audiogramas, comecei o trabalho.
Mas, devo assumir que o próprio Simon foi quem me mostrou o caminho.
Eu apenas o segui, cuidadosamente. Atraído imediatamente pelas cortinas
japonesas das janelas da sala, Simon, no momento em que entrou, começou a
brincar levantando e abaixando repetidas vezes uma delas. Imediatamente
aproveitei o movimento e cantei uma linha ascendente, quando a cortina subia,
acompanhada da palavra up, e uma melodia descendente, com a palavra
down129, quando a cortina descia. Isto ajudaria na aquisição das inflexões
sonoras da fala e, ao mesmo tempo, já o introduzia em uma atividade onde o
som estava presente.
Para efeito didático, o processo musicoterapêutico foi dividido em quatro
fases:
vibração;
som e ritmo;
música e expressão;
música e expressão verbal.
Considerações Finais
Para concluir, seria importante se convocar novamente Tomatis que afirma
que “é do poder de se ouvir que nasce a faculdade de se escutar. E do poder de se
escutar que nasce a faculdade de falar” (1978, p. 83).
Já Anzieu, referindo-se à relação mãe-bebê, considera que
Antes que o olhar e o sorriso da mãe que alimenta e cuida,
produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente
perceptível e que seja interiorizada para reforçar seu Self e
esboçar seu Eu, o banho melódico (a voz da mãe, suas cantigas,
a música que ela proporciona) põe à disposição um primeiro
espelho sonoro do qual a criança se vale a princípio por seus
choros (que a voz materna acalma em resposta), depois por seus
balbucios e, enfim, por seus jogos de articulação fonemática
(1989, p. 195).
Introdução
Grandes foram as discussões que antecederam o pedido de Doris Hoyer de
Carvalho (1975) para que os alunos do quarto ano de musicoterapia de 1975
elaborassem um trabalho sobre as etapas que poderiam ser, segundo ela, um
alicerce teórico imprescindível para a prática clínica. Essas discussões giravam,
principalmente, em torno de atitudes acirradas que ponderavam que o
musicoterapeuta perderia a naturalidade no atendimento a partir do momento em
que se tomassem posições teóricas.
No entanto, Carvalho defendia que não se podia prescindir destas posições
para organizar, sistematizar e edificar metodologias para alicerçar os processos
terapêuticos. Para a autora,
Quando se encaminha
É mandatório que uma pessoa seja encaminhada aos tratamentos
adequados tão logo se perceba que existe algum problema a ser trabalhado.
Muitas vezes, ficar decidindo por algum tempo qual seria o tratamento mais
apropriado e se este é o momento certo para encaminhar pode retardar as
possibilidades de desenvolvimento — como no caso de uma criança, por
exemplo —, ou, ainda, retardar o tempo de melhora de pacientes portadores das
mais diversas doenças.
Em qualquer situação de doença é necessário que a pessoa seja atendida
imediatamente. No entanto, no caso de bebês, o desenvolvimento pode ser
acelerado a partir da identificação precoce de um problema de desenvolvimento
nas etapas neuroevolutivas.
Em musicoterapia não é diferente. Como exemplo, temos crianças ou
bebês de risco que devem ser encaminhados tão logo sejam reconhecidos como
“de risco” pois se ganha tempo e se tem maiores possibilidades de êxito no
tratamento.
A psicóloga Olga Maria Rodrigues (2003) considera que são vários os
fatores de risco e que a presença destes é uma constante durante o
desenvolvimento do homem, desde a sua concepção. Por outro lado, muitas são
as condições que contribuem para tal. Citando o Plano Nacional de Ação
Conjunta para a Integração da Pessoa Deficiente, da Corde134, a autora declara
que
Como se encaminha
Pode-se encaminhar dando dados do musicoterapeuta/ instituição que
levem os responsáveis por um paciente a ter acesso ao terapeuta, como, por
exemplo: telefone, endereço de consultório/instituição, enfim, qualquer forma
que leve o responsável ou o próprio paciente a encontrar o musicoterapeuta.
Hoje são muito usadas informações e indicações de musicoterapeutas também
por whatsapp.
Objetivos
A entrevista inicial, primeira etapa do processo musico terapêutico, é
comum a qualquer terapia, ou seja, é a primeira etapa de qualquer processo
terapêutico.
O objetivo principal desta é obter dados do paciente que não são
encontrados no prontuário, quando em instituição, porque não são necessários a
outros profissionais, ou, ainda, porque muitas vezes são omitidos para alguns
terapeutas da equipe. Entre os dados que interessam só aos musicoterapeutas
estão os da “história sonoro-musical” do indivíduo. Estes deverão ser colhidos
pelo próprio musicoterapeuta. Cabe ressaltar que embora o objetivo principal da
entrevista inicial seja a coleta de dados, é fundamental se levar em consideração
que nela é que se dá o primeiro “encontro” terapeuta – paciente, quando esta é
feita com o próprio, e que este é de suma importância para o desenvolvimento do
processo terapêutico pois, na maioria das vezes, é dele que vai depender o
estabelecimento da relação terapêutica, que aí pode começar.
Quando se fala em colher dados do prontuário, evidentemente, fala-se do
trabalho de musicoterapeutas que trabalham em instituições onde a entrevista
será a complementação da “história de vida e clínica do paciente”, já colhida no
prontuário e complementada através de reuniões com outros profissionais que
integram a equipe multi ou interdisciplinar136.
Com pacientes de consultório, a entrevista assume ainda maior
importância, pois só através dela vamos ter, de início, as histórias destes (de
vida, clínica e sonoro-musical). No entanto, na maioria das vezes, os pacientes
são encaminhados por outros profissionais que já os conhecem, cabendo ao
musicoterapeuta estabelecer contato com os mesmos a fim de obter o máximo de
dados possíveis, sem, no entanto, prescindir da entrevista.
É também nesta etapa que vão ser elucidadas possíveis dúvidas do paciente
com relação ao tratamento.
Com quem deve ser feita
Quando se pergunta com quem a entrevista inicial deve ser feita,
imediatamente se pensa que a pessoa mais indicada é o próprio paciente. É ele
que poderá nos dizer dos seus problemas, das suas ansiedades, das suas
preferências e desagrados em termos sonoro/musicais e da sua expectativa frente
ao processo que vai ser iniciado. No entanto, é preciso que se esteja consciente
que nem sempre o paciente está em condições de ser entrevistado como, por
exemplo, um autista ou afásico, ou, ainda, muitos outros tipos de pacientes.
Nestes casos dever-se-á entrevistar uma pessoa da família ou o responsável. Por
outro lado, mesmo nos casos em que o paciente pode ser entrevistado existem
dados que o mesmo não tem condições de fornecer e que muitas vezes podem
ser importantes. (Como condições de nascimento, por exemplo). Quando isto
acontecer, o paciente será informado que o terapeuta entrará em contato com
outra pessoa da família.
Segundo Carvalho (1975), a entrevista vai ser feita também com outros
membros da equipe. A meu ver não se trata de entrevistas propriamente ditas,
mas de contatos/reuniões que vão ser marcados com o fim de se complementar
os dados já coletados e obter novos sobre a história do paciente.
O musicoterapeuta e o entrevistado
A atitude que o musicoterapeuta deve adotar já foi abordada em itens
anteriores. No entanto, alguns parâmetros dessa atitude ainda devem ser
discutidos.
O musicoterapeuta deve estar suficientemente atento e “aberto” para
receber e ser capaz de observar e perceber atitudes, posturas, aparência e
disponibilidade do entrevistado, fatores muito importantes para o
desenvolvimento do processo, principalmente quando este for o próprio
paciente.
O terapeuta deve ser: discreto, mas firme; objetivo, mas capaz de perceber
as sutilezas de uma resposta subjetiva; permissivo, mas saber interferir a tempo
e, claro, quanto às possibilidades do processo musicoterapêutico. Deve ainda
conhecer os limites do seu trabalho frente aos problemas que deverá enfrentar e
ter a capacidade de fazer com que o entrevistado não hipervalorize o tratamento.
Isto deve ser feito com muito cuidado para que não se interfira na vontade de
melhora do paciente, o que dificultaria qualquer processo terapêutico. Enfim, o
musicoterapeuta deve, antes de tudo, ter em mente que tem diante de si uma
pessoa em busca de ajuda e não apenas um diagnóstico, e que, exatamente
porque precisa de ajuda, para si ou para alguém próximo, esta pessoa está, na
maioria das vezes, angustiada ou muito ansiosa, e na expectativa e esperança de
ter encontrado um caminho. Cabe ao musicoterapeuta ajudá-la, tentando
minimizar as suas dificuldades e possibilitando um crescimento, estando
consciente que a relação entre duas pessoas implica em um crescimento mútuo,
por menor que seja, e se dispondo a crescer junto com o outro. Contudo, não
deve perder de vista que o centro da terapia é o paciente. Assim, mesmo que o
terapeuta saiba que pode crescer junto com um paciente, este não é um espaço
específico de crescimento do terapeuta, mas, sim, do paciente.
Uma última observação deve ser feita: quando o musicoterapeuta estiver
entrevistando um casal ou duas pessoas que sejam próximas do paciente, deve
ter o cuidado de não tomar partido de um dos dois, quando surgir alguma
discussão entre os mesmos, ainda que um deles se dirija diretamente ao terapeuta
pedindo a sua opinião ou, em última instância, cumplicidade.
A Ficha Musicoterapêutica
Se quisermos justificar o emprego da música como elemento terapêutico,
podemos fazê-lo reportando-nos à sua importância na evolução cultural e
biológica do homem; à permanência da sua existência na vida de cada um de
nós; ao fato de tratar-se de um elemento não verbal; às reações e associações que
seus elementos constitutivos podem provocar; ao fato de constituir-se como um
objeto intermediário de relação; à sua natureza polissêmica, enfim, ao que
representa em todas as culturas, épocas, ou, ainda, nos mais diversos momentos
de nossas vidas.
Quando falamos em música em musicoterapia estamos evidentemente nos
referindo não só à música estruturada, mas a qualquer manifestação que se
apresente através de um dos elementos que a constituem, utilizados de forma
isolada ou não (ritmo, som). Por isso, quando nos referimos à história de cada
indivíduo com a música, ainda em musicoterapia, utilizamos o termo história
sonoro-musical para denotar que esta relação vai além do emprego único da
música estruturada, mas, sim, leva em conta o mundo rítmico-sonoro que nos
rodeia.
Objetivos
A ferramenta de trabalho da musicoterapia é a música, assim como a
palavra o é da psicoterapia verbal. Seria possível o trabalho do psicoterapeuta
que trabalha com este tipo de psicoterapia se ele não conhecesse bem o
significado das palavras? Evidentemente não, pois este é um dos seus
instrumentos de trabalho. Da mesma forma acontece com o musicoterapeuta. Em
primeiro lugar é preciso que ele ‘domine’138 o seu objeto de trabalho, a música e,
por outro lado, é preciso que ele possa reconhecer quê sentidos os sons têm para
o paciente, quais as implicações do som e do ritmo, enfim da música, na vida do
paciente.
O objeto/ferramenta de trabalho da musicoterapia é muito amplo e
complexo, pois a música é formada por elementos como som, ritmo, melodia e
harmonia – que têm, alguns, diferentes parâmetros como o som, por exemplo –
altura, intensidade, duração, e timbre. Estes elementos e seus diferentes
parâmetros se combinam formando uma malha ou um tecido musical (Barcellos,
1999a) que pode permitir que a ela se atribuam muitos sentidos, o que se entende
como uma natureza polissêmica139.
Para que exista música é necessário que haja uma fonte emissora que tanto
pode ser o corpo humano, como instrumentos musicais, ou aparelhos elétrico-
eletrônicos, e que esta fonte emissora realize determinadas atividades como:
movimentos corporais, dança, canto, execução dos instrumentos ou que acione
os aparelhos elétrico-eletrônicos. É preciso que exista, além da “fonte emissora”,
que pode em musicoterapia ser o próprio paciente, o musicoterapeuta ou ainda
os dois – uma “fonte receptora”, no caso, o homem novamente. É interessante se
assinalar que quando o paciente é tanto a “fonte emissora quanto receptora”,
realiza-se um mecanismo de “feedback”140, de grande importância no processo
terapêutico – daí a relevância daquilo que alguns chamam de Musicoterapia
ativa e que eu denomino “Musicoterapia Interativa”.
Fala-se de ‘fonte receptora’ porque para o silêncio não precisaríamos de
‘fonte emissora’ mas seria necessário alguém que ‘escutasse’ o silêncio. (Não
vamos entrar aqui na discussão entre físicos e filósofos a respeito da existência
ou não de som a partir da existência ou não do sujeito para perceber o som: para
os físicos o som é um fenômeno físico que independe de ser ou não captado pelo
ouvido humano; para os filósofos, ou mais precisamente os fenomenólogos, o
som só existe a partir do momento em que é captado pelo ouvido humano).
Ter-se-ia, exemplificando, aproximadamente o seguinte processo:
O que se tenta mostrar, aqui, é que a música, principal ferramenta da
musicoterapia, é formada por muitos elementos – som, ritmo, melodia e
harmonia – e os diferentes parâmetros destes e, que para que ela exista, é
necessário, na maioria das vezes, a utilização de instrumentos musicais que têm
que ser “animados” pelo homem. Tem-se, então, uma enorme possibilidade de
combinações.
Assim sendo, é necessário que se conheça, além da música, o máximo
possível da história sonora do paciente tornando-se, para isto, imprescindível a
realização da ficha musicoterápica.
a patologia do paciente e
o regime de internação ou a possibilidade de um atendimento prolongado
ou não.
A patologia do paciente
Diversos musicoterapeutas, trabalhando em diferentes áreas já elaboraram
fichas específicas para que tenham informações que os ajudem a melhor atender
às necessidades dos pacientes. Assim sendo, temos já diferentes fichas de acordo
com as áreas a serem atendidas:
deficiência intelectual
saúde mental
deficiência física
geriatria e muitas outras áreas de atuação da musicoterapia.
Algumas destas áreas já têm fichas de acordo com a patologia do paciente
como, por exemplo:
deficiência física
breve ou
prolongado(a)
O Estudo Biográfico
O Estudo Biográfico que, segundo Carvalho (1975), é a segunda etapa,
trata-se, a meu ver, de uma complementação da Entrevista Inicial ou de uma sub-
etapa desta. Este estudo serve para complementar, com o estudo do prontuário,
aquilo que já foi obtido através da realização da entrevista inicial.
Objetivos
Com a história pessoal e clínica completas, coletadas na entrevista e no
prontuário e com a elaboração da ficha musicoterapêutica, que nos dará a
história sonora do indivíduo, teremos conhecimento das etapas de
desenvolvimento (em caso de crianças), das condições de adaptação bio-psico-
social e da história clínica do indivíduo. Dentre alguns dos objetivos da
realização do Estudo Biográfico apontados por Carvalho estão: “documentar o
estado do paciente no início do tratamento e levantar hipóteses e planejar
tecnicamente que áreas devem ser especificamente atendidas em cada paciente,
além do atendimento global implicitamente incluído no atendimento a todos”
(1975, p. 9).
É necessário assinalar que a coleta da história pessoal, clínica e sonoro-
musical vai assumir diferentes aspectos dependendo do tipo de paciente a ser
atendido. Seria desnecessário, por exemplo, investigar as etapas de evolução de
um paciente que sofreu um Acidente Vascular Encefálico aos sessenta anos de
idade ou mais; no entanto, estas informações serão certamente muito úteis no
caso de uma criança com 11 anos com problemas emocionais graves. Por outro
lado, a história sonoro-musical completa do indivíduo, tão necessária no caso de
um autista, será menos importante no caso de psicóticos internados em
instituições que tenham regime de internação breve. Para estes, mais importante
será elaborar fichas com dados que se refiram às preferências e desagrados
atuais, por exemplo. Isto se dá devido ao pouco tempo que o musicoterapeuta
dispõe para entrevistas que, quando possível, são feitas quase que semanalmente,
para atender à alta rotatividade de pacientes, bem como porque seriam
desnecessárias informações muito detalhadas sobre pacientes que muitas vezes
frequentam três sessões de musicoterapia e lhes é concedida alta, por motivos
que fogem ao objetivo de estudo desta etapa.
A Testificação Musicoterapêutica
A testificação musicoterapêutica é, tanto quanto a ficha musicoterapêutica,
uma etapa específica do processo musico terapêutico, ou seja, não é encontrada
em outras terapias.
Objetivos
A testificação musical é uma complementação da ficha musicoterapêutica,
isto é, na ficha colhemos as informações com o próprio paciente, ou com o
responsável quando aquele não tiver condições, e na testificação vamos observar
as reações que os sons, o ritmo, os diferentes instrumentos, enfim, os distintos
tipos de estímulos sonoro-musicais provocam no paciente.
Esta tem por objetivos observar as possibilidades de comunicação do
paciente; as suas dificuldades, inibições, preferências, desagrados, impulsos,
bloqueios, reações e desejos frente aos diferentes parâmetros e instrumentos
musicais.
Procedimentos
Também na testificação musicoterapêutica vamos adotar diferentes
procedimentos, de acordo com o paciente que temos para ser atendido.
É interessante se conhecer os diferentes procedimentos já existentes para a
realização da testificação musicoterapêutica e, a partir destes, cada
musicoterapeuta poderá utilizar o que considerar mais adequado ou criar novos,
dependendo das necessidades e partindo de suas próprias experiências.
Local e material
O local onde vai ser realizada a testificação deve ser a própria sala de
musicoterapia onde o paciente vai ser atendido. Isto porque o paciente já
começa, nesse momento, a se identificar com o espaço e o ambiente onde será
estabelecida a relação e onde será desenvolvido o processo terapêutico.
Na testificação preconizada por Benenzon e Yepes (1972), o instrumental a
ser utilizado vai ser o piano aberto, o violão, os instrumentos de percussão e um
gravador com uma fita contendo quatro estímulos musicais gravados o que hoje
pode ser apresentado em CD ou, mesmo em gravadores de celulares ou
computadores. Os instrumentos utilizados serão de acordo com as possibilidades
da instituição ou do musicoterapeuta, quando se tratar de trabalho em consultório
particular, e seriam os mais característicos do folclore do país ou da região de
origem do paciente. Deverão ser colocados, de preferência, na mesma disposição
em todas as testificações para que o musicoterapeuta possa ter um padrão de
observação.
Quanto aos estímulos gravados deverão ser sempre os mesmos, pelo
mesmo motivo pelo qual os instrumentos deverão ser colocados na mesma
disposição. Eles serão escolhidos pelo musicoterapeuta e serão uma
representação de sua personalidade ou como afirma Benenzon, um ‘cartão de
apresentação’ do musicoterapeuta.
O autor preconiza que quatro seriam os estímulos escolhidos para fazerem
parte dessa testificação e que os mesmos devem ter aproximadamente uma
mesma duração. O primeiro será um ritmo primitivo; o segundo, uma melodia
primitiva e o mais arrítmica possível, o terceiro um fragmento sinfônico e o
quarto, um fragmento de música eletrônica (Benenzon, 1985).
Antes de tudo, o paciente deve ficar livre para fazer o que quiser, enquanto
o musicoterapeuta anota as manifestações que forem sendo apresentadas com
relação aos instrumentos, ou seja, o que o paciente toca: ritmos, melodias, gestos
e/ou canções que canta, e como se ‘movimenta’ na sala.
Após vinte minutos observando-se o paciente, cada estímulo gravado é
colocado, dando um espaço de cinco minutos entre um e outro, e continuando a
observar as reações frente ao que está se ouvindo e vendo.
O autor esclarece que se houver uma grande inibição do paciente ou ainda
ansiedade deste ou do musicoterapeuta, no início da sessão, e por nada acontecer
durante algum tempo, pode se passar, imediatamente, para os estímulos sonoros.
A atitude do musicoterapeuta
Ainda na testificação preconizada por Benenzon (1985) existe a
recomendação que o musicoterapeuta inicialmente explique ao paciente o que
vai ocorrer. No entanto, a atitude do musicoterapeuta deverá ser passiva o tempo
todo, podendo interferir apenas nos momentos em que houver necessidade (o
autor insiste em que a atitude deve ser passiva pois uma atitude ativa poderia
modificar a atitude do paciente).
É preciso lembrar que esta testificação é preconizada por Benenzon para
pacientes psiquiátricos sendo que ele não se refere, em nenhum momento, à
utilização da mesma com qualquer outro tipo de pacientes.
A nossa experiência tem nos mostrado que, com alguns pacientes, como
por exemplo, paralisados cerebrais, que em geral têm impedimento motor, a
primeira parte da testificação não seria factível e a atitude do musicoterapeuta
não poderia ser passiva. Nestes casos, a meu ver, o musicoterapeuta será ativo,
tocando instrumentos, e observará as reações do paciente. Parece ainda
interessante que sejam escolhidos instrumentos mais primitivos como bumbo e
chocalho, por exemplo, com crianças em uma faixa etária mais baixa e que, com
crianças em idade mais avançada sejam introduzidos além daqueles,
instrumentos mais elaborados. Pensamos também que deve ser levado em
consideração o nível cultural do paciente, se bem que, pelo contato com a TV,
mesmo os instrumentos mais elaborados já são, muitas vezes, conhecidos,
mesmo pelos pacientes de nível cultural mais baixo. Isto, no entanto, não é regra
fixa e é a percepção do musicoterapeuta que vai lhe dar, possivelmente, a melhor
maneira de proceder.
É interessante se observar que assim como se recomenda a utilização dos
instrumentos de certa forma seguindo uma evolução, pode-se perceber que
também nos estímulos musicais preconizados por Benenzon há nitidamente uma
evolução: um estímulo rítmico, um melódico, um sinfônico e um eletrônico. Será
que isto poderia inclusive nos mostrar o estado de regressão de um paciente?
Acredito que sim, tanto quanto isto pode ser visto, a meu ver, no emprego de
instrumentos mais, ou menos primitivos. Penso, no entanto, que unicamente a
sistematização de ditos comportamentos frente aos mesmos estímulos poderia
nos dar a certeza de tal afirmação. Isto porque existem muitas variáveis que vão
interferir e estas só poderiam ser comprovadas através de estudos e pesquisas.
Doris Hoyer de Carvalho (1975) nos dá também alguns procedimentos
para a realização da testificação, procedimentos estes que diferem daquilo que é
preconizado por Benenzon.
A autora criou uma forma de testificação musicoterapêutica que estabelece,
para a sua realização, um número de sessões que pode variar de três a cinco, para
que possamos avaliar as reações do paciente frente à música e aos instrumentos
musicais. Segundo ela, a atitude do musicoterapeuta será ativa junto com o
paciente e ela não nos fornece exemplo de estímulos musicais a serem colocados
para os pacientes.
Acredito que só a partir do estudo e pesquisa vamos poder chegar a novos
procedimentos ou à utilização dos já existentes, dependendo do tipo de paciente
a ser atendido. No momento que encontramos o paciente, somos levados pelo
bom senso a utilizar um ou outro procedimento, ou ainda aspectos de um ou de
outro, de acordo com aquilo que julgamos mais adequado para cada paciente.
Alguns teóricos da musicoterapia recomendam a utilização de ambas as
testificações, já que as veem como complementares.
Vê-se que nestas duas testificações alguns pontos são absolutamente
antagônicos como, por exemplo, a atitude do musicoterapeuta, que na de
Benenzon é de observação e na de Carvalho é de participação e, com relação ao
que é apresentado: na do autor são estímulos musicais gravados e na de
Carvalho, apenas instrumentos musicais.
Com a realização da testificação musicoterapêutica se completa a ficha
musicoterapêutica e se tem elementos suficientes para dar início ao trabalho,
tendo já alguns aspectos delineados com relação ao paciente. Assim, sabendo-se
da elegibilidade do paciente para a musicoterapia, poderá ser feito o “contrato
terapêutico”.
O Contrato Terapêutico
Quando se fala em Contrato Terapêutico, muitas vezes se pensa no
contrato que é feito entre um musicoterapeuta e uma instituição. No entanto, o
contrato terapêutico, ao qual nos referimos, é uma das etapas do processo
musicoterápico ou, melhor dizendo, é um dos aspectos a serem abordados na
Entrevista Inicial. Trata-se de um procedimento comum a outras terapias, e não
exclusivo da musicoterapia.
Objetivos
Obtidos os dados que compõem a história do paciente através da Entrevista
Inicial e observadas as suas reações frente aos estímulos musicais na
Testificação Musicoterapêutica, somos capazes de verificar se este é um paciente
elegível para a musicoterapia e já teremos dados suficientes para começar o
atendimento e estabelecer os objetivos a serem trabalhados. No entanto, antes
ainda devemos combinar com o próprio paciente, se ele tiver condições para tal,
ou com o responsável por ele, determinados aspectos do tratamento.
O objetivo do Contrato Terapêutico é estabelecer os papéis de cada um,
terapeuta e paciente, e especificar os compromissos de ambas as partes: deveres
e direitos. Neste contrato estarão sendo estabelecidas as normas básicas do
tratamento tais como: o horário, a frequência e a duração das sessões;
honorários, forma e o momento do pagamento, caso se trate de paciente de
consultório, isto é, se o pagamento deve ser feito em cheque ou dinheiro e se
deve ser efetuado no início ou no final do mês. É ainda no contrato que vai ser
negociado o preço, caso o paciente não possa pagar a quantia cobrada pelo
musicoterapeuta.
Ainda outros aspectos devem ser levantados no contrato com pacientes de
consultório. Estes dizem respeito às faltas e férias do paciente e do
musicoterapeuta, isto é, como o pagamento vai se dar nestes casos e, por último,
mas não menos importante, a questão do recibo para imposto de renda, um outro
assunto muito delicado. É ainda no contrato que se deve falar se esse recibo será
disponibilizado, ou se haverá interesse dos responsáveis pelo paciente em
utilizá-lo, para que, no momento em que este se faça necessário, não aconteçam
situações que possam vir a criar malentendidos entre paciente/familiares e
musicoterapeuta, o que poderia, sem dúvida, ‘minar’ a relação terapêutica.
A experiência tem mostrado que, em geral, há necessidade de uma
explicação sobre o que é musicoterapia, bem como, de que não é preciso que o
paciente saiba música. Muitos pacientes ao chegarem à sala e ao verem os
instrumentos à sua frente dizem: “eu não sei tocar nada”. Esclarecemos, então,
no momento do contrato ou da entrevista, que não é necessário saber música.
Cabe ainda lembrar que alguns aspectos esclarecidos no contrato
terapêutico são de suma importância para o desen volvimento do processo
musicoterapêutico. Como poderíamos, por exemplo, estabelecer um ‘limite de
tempo’ com uma criança, ou qualquer outro paciente, que não quer sair da sala
de musicoterapia, se não foi ‘combinado’ antes, com ela/ele, qual seria o seu
tempo de atendimento? Deve-se frisar que isto deve ser feito mesmo que a
criança pareça não entender ou não ter condições de compreensão do tempo. Por
isso, é muito importante que tudo seja ‘combinado’ e discutido no contrato
terapêutico.
Procedimentos
O contrato terapêutico é feito, em geral, com o próprio paciente. Quando
este não tem condições, ou parece não ter, é ao responsável que serão
apresentados os aspectos do atendimento. No entanto, é preciso que tomemos
muito cuidado para não subestimar o paciente. Muitas vezes achamos que ele
não tem condições de entender e por isso não explicamos ao próprio, aspectos
que seriam facilmente compreendidos. A nossa experiência e a orientação do
supervisor nos levaram a quase sempre expor ao paciente determinados aspectos,
mesmo que, muitas vezes, nos parecesse impossível que ele estivesse
entendendo e que, por isto, o contrato tivesse sido feito com o responsável.
Dizia-nos o supervisor “é muito importante a atenção que é dispensada ao
paciente e, mesmo que seja uma criança que não entenda o significado das
palavras, ela pode perceber a intenção”.
Vale, talvez, o exemplo de uma paciente de três anos que estava pronta
para que se finalizasse o tratamento. Quando comecei o trabalho de preparação
para a alta, mesmo achando que ela não tivesse condições de entender, baseada
no que acabei de expor, decidi fazer o trabalho com ela mesma. Na primeira
sessão que lhe falei que já estava fazendo uma ‘porção de coisas bonitas’,
imediatamente ela abriu um armário da sala e começou a mexer aleatoriamente
no que tinha dentro como fazendo não ouvir o que eu falara. Na sessão seguinte
voltei a falar sobre o assunto e ela voltou a abrir e mexer no armário. No entanto,
na sessão da semana seguinte, ela não mais abriu o armário e me olhou,
mostrando que estava escutando. Assim, falei novamente e combinamos que
chamaríamos seus pais, para informar que ela não precisaria ‘vir mais aqui’. Vi
que ela aceitara a alta e, ainda mais, também aceitara comunicar ela mesma, aos
pais, junto comigo, dizendo em uma linguagem própria de sua idade: “nós
combinamos de eu não ir mais aqui”.
O contrato terapêutico é feito na própria sala de musicoterapia, antes de ser
iniciado o processo musicoterapêutico propriamente dito, ou, as sessões.
Objetivos Terapêuticos
Para que melhor seja entendida a importância do estabelecimento de
objetivos devemos esclarecer que, além da formação do musicoterapeuta – que
vai dar ao profissional um perfil específico -, este procedimento é de extrema
importância para delinear a prática clínica de forma a diferenciá-la das outras
atividades que utilizam música.
Todos os profissionais que trabalham em atividades que utilizam música
devem ter, evidentemente, conhecimento musical. O musicoterapeuta, além do
conhecimento musical, tem que ter uma formação científico-médica que vai
capacitá-lo para trabalhar em uma equipe terapêutica inter ou multidisciplinar,
bem como vai lhe dar condições de atender a quase todo tipo de paciente, isto é,
ele tem uma formação de Anatomofisiologia, Neurologia, Medicina de
Reabilitação, Psicopatologia, Psiquiatria, Psiquiatria Infantil e Neurociências,
bem como estudos de Psicologia que vão lhe possibilitar reconhecer e abordar
atitudes e comportamentos num sentido bastante amplo.
Por outro lado, as disciplinas da área de Sensibilização do Curso de
Musicoterapia têm por objetivo o desenvolvimento do campo perceptivo do
aluno, dando-lhe a possibilidade de perceber o outro, bem como a si mesmo em
relação ao outro ou a um grupo, possibili tando que ele perceba o paciente e/ou
grupo, posteriormente.
É evidente que o trabalho numa nova área levará o musicoterapeuta a
estudar para que possa melhor lidar com aspectos específicos desta. Mas, cabe
uma observação sobre o atendimento de pessoas normais ou os ditos neuróticos.
Na opinião de vários musicoterapeutas, o currículo dos cursos de graduação em
musicoterapia existentes no país ou o nível desses estudos não dá condições para
que um musicoterapeuta trabalhe nesta área. Estudos adicionais devem ser
realizados para que um musicoterapeuta graduado se torne apto para a prática da
musicoterapia com pacientes neuróticos.
Além deste aspecto é importante ressaltar que grande parte dos alunos de
curso de graduação são muito jovens faltando-lhes, muitas vezes, uma
experiência de vida tão necessária para tal atendimento. Exceções devem ser
feitas e coordenadores e professores de tais cursos saberão como lidar com essa
questão. Um encaminhamento para uma terapia pessoal seria uma das estratégias
possíveis a serem adotadas para contribuir para o desenvolvimento não só destes
jovens alunos como, também, é de extrema importância para todos que desejam
ser terapeutas.
Mas, voltando-se à razão da importância da formação do musicoterapeuta e
da relevância de se traçar objetivos cabe dizer que todas as atividades que
utilizam música podem vir a ter efeitos terapêuticos mas a única que tem esses
objetivos e se constitui como terapia é a musicoterapia. Isto poderia ser assim
representado:
Estabelecimento de objetivos
O estabelecimento dos objetivos se faz necessário por que:
Isto seria facilmente exemplificado com uma frase que várias vezes nos foi
dita pelo supervisor clínico141: “o paciente pode estar perdido, o musicoterapeuta
não”. Se tivermos objetivos claros será mais fácil não nos afastarmos das
necessidades do paciente. Também o estabelecimento destes vai nos levar a um
aproveitamento maior dos recursos rítmico-sonoros na especificidade dos casos
atendidos e na generalização dos resultados.
No entanto, é preciso que o musicoterapeuta seja capaz de reconhecer a
necessidade de modificação dos objetivos estabelecidos no início do
atendimento ou, ainda, da introdução de novos, caso surja uma situação
prioritária. Isto vai ser levado à equipe, se o trabalho estiver sendo desenvolvido
em instituição, e também discutido com o supervisor.
Procedimentos
Para o estabelecimento dos objetivos vamos partir:
Estes quatro itens vão nos ajudar a estabelecer objetivos calcados nas reais
necessidades do paciente. Entretanto, se o trabalho for desenvolvido em
consultório particular, onde não existe equipe formal, só os contatos com os
familiares, com o próprio paciente e com outros profissionais que estejam
atendendo o paciente (equipe informal) poderão nos dar subsídios para o
estabelecimento dos objetivos. Estes nos permitirão, então, estabelecer os
propósitos do processo musicoterapêutico permitindo, assim, com mais
segurança e/ou clareza, a evolução do tratamento.
Ainda caberia, aqui, uma observação sobre o estabelecimento dos objetivos
a priori isto é, aqueles objetivos que são conhecidos antes de se estar com o
paciente. Como exemplo podem ser citadas instituições de internação breve, (em
geral de Saúde Mental) nas quais os pacientes são atendidos por um tempo que
não pode ser previsto. Não é raro, neste tipo de instituições, pacientes que
frequentam duas ou três sessões e recebem alta.
Sessões Musicoterapêuticas
1 – O musicoterapeuta
É muito difícil se dar normas de como deve ser uma sessão de
musicoterapia. A meu ver é, principalmente, no momento da prática da
musicoterapia que vai ser muito importante a capacidade perceptiva do
musicoterapeuta para que ele possa perceber o paciente e utilizar a música da
forma mais adequada, tanto para satisfazer os interesses e necessidades dele
(paciente), quanto a alcançar os objetivos estabelecidos. Teríamos, então:
a – o conhecimento musical
b – o autoconhecimento e a sensibilidade
c – o conhecimento da história do paciente e
d – o conhecimento da patologia do paciente.
a – O conhecimento musical
Muitas vezes, o musicoterapeuta sabe o que utilizar sonoramente, mas não
tem condições de fazê-lo porque não domina bem um determinado instrumento
musical ou, ainda, um determinado aspecto da música. O musicoterapeuta tem
que dominar o instrumento musical e não, ser dominado por ele. À medida que
não conhecemos bem um instrumento não nos sentimos livres para utilizá-lo;
sentimo-nos presos.
Isto não quer dizer que temos que saber tudo sobre música ou que devemos
saber tocar todo e qualquer instrumento. Isto é impossível. No entanto, devemos
ter um grau de competência e habilidades em música que nos permitam uma
movimentação minimamente suficiente para trabalhar com os pacientes, pois
esta é o objeto de trabalho do musicoterapeuta.
Esse conhecimento e o domínio vão possibilitar também ao
musicoterapeuta fazer intervenções musicais que, às vezes, podem ser o ‘gatilho’
que vai permitir o desenvolvimento ou a reabilitação de algumas capacidades
que foram comprometidas. Essas intervenções podem estimular, muitas vezes,
áreas cerebrais que passam, aos poucos, a funcionar cada vez mais, ou a
substituição das que foram comprometidas: a neuroplasticidade. Ou, em outros
casos, vão permitir que aspectos inconscientes venham à consciência. Se o
musicoterapeuta não tem condições de fazer intervenções como, por exemplo,
uma intervenção musical clarificadora de aspectos musicais na produção musical
de um paciente, pode perder oportunidades que seriam muito importantes para a
evolução deste.
Cena clínica 21
O carnaval é a mais conhecida festa profana da cultura brasileira, e o
‘samba’ e as ‘marchas’ os principais gêneros cantados nessa festa. As letras
destas músicas contam/cantam o cotidiano e o que acontece durante o ano na
política, sociedade e economia, e se constituem como as preferidas a serem
cantadas por pacientes idosos. Nesta cena clínica, apresenta-se um grupo destes
pacientes, atendidos na década de 1970, em um hospital de reabilitação física.
Em uma determinada sessão, que se propôs que fosse gravada, eles decidiram
cantar “uma música que todos soubessem”. Assim, ouve-se, na gravação, a
discussão de qual seria essa música e a conclusão a que chegaram: vamos
cantar “Bandeira Branca”! No entanto, quando começam a cantar ouve-se isto:
“As Pastorinhas”
“Bandeira Branca”
Isto permitiu que eles pudessem continuar e cantar a música inteira, cuja
letra está a seguir:
Embora se trate de uma marcha rancho que musicalmente esteja entre as
músicas que podem ser consideradas ‘previsíveis’ que, em geral têm: 32
compassos, melodias, ritmos, riffs143 e harmonias simples (I, IV, V) ou ‘uma
linguagem musical natural’ como afirma o musicólogo britânico Richard
Middleton (1990, p. 46), referindo-se à harmonia, eles não conseguiram cantá-la,
de início.
É comum os pacientes idosos cantarem marchas antigas e através delas
podem ser os “narradores musicais144” de sua[s] história[s] (Barcellos, 2006).
Em geral, as letras dessas músicas ‘significam’ cenas, pessoas ou épocas
importantes das vidas desses idosos que, através delas, trazem o passado, pela
memória musical. E, foi, sem dúvida, a intervenção clarificadora que possibilitou
que eles pudessem cantar.
Mas, deve-se observar que não só as intervenções musicais são
importantes, mas, também as interações musicais são fundamentais pois podem
dar acolhimento e aproximar musicalmente e, por conseguinte, emocionalmente,
musicoterapeuta e paciente.
Kenneth Bruscia (1987, p. 531) afirma que para que aconteçam as
mudanças necessárias em uma terapia, o paciente, mais cedo ou mais tarde, tem
que se confrontar com os seus problemas de uma forma mais ativa. Para facilitar
que isto aconteça, o musicoterapeuta tem que engajar o paciente em um
‘encontro’ com vários aspectos e, dentre estes, com o próprio terapeuta.
Considero que uma das formas de entrar em contato e levar o paciente a esse
engajamento com o musicoterapeuta é ‘na música’, onde os dois estarão juntos.
Para isto, o musicoterapeuta pode imitar, completar, colocar uma base para dar
acolhimento, nas várias possibilidades que a música oferece, ou seja, através do
ritmo, da melodia, da intensidade, da altura, do timbre, de intrumentos
semelhantes ou distintos. Complementando, o autor apresenta uma taxonomia de
técnicas clínicas que podem ser utilizadas pelos musicoterapeutas para facilitar o
desenvolvimento de um processo terapêutico (ibid, p. 533).
Todos nós, músicos, que já tocamos em conjunto, sabemos das sensações e
emoções que as interações proporcionam.
b – O autoconhecimento e a sensibilidade
Apesar de muitos musicoterapeutas não serem terapeutizados, desde a
entrevista pessoal que se realiza no vestibular de ingresso para admissão de
candidatos ao Bacharelado em Musicoterapia, tenta-se conscientizar o candidato
da necessidade de que aqueles que desejam seguir a carreira de terapeutas devem
se submeter a uma terapia, seja ela qual for, ou tenha ela a linha de
fundamentação teórica que tiver.
É impossível se exigir que o aluno procure uma terapia, por vários
motivos. Primeiro, porque se trata de tratamentos bastante caros e, segundo,
porque achamos que é muito mais válido o aluno procurar a terapia por uma
necessidade interna do que por uma imposição externa. Pensamos, então, que o
melhor caminho é mobilizá-lo e conscientizá-lo dessa necessidade, para que ele
não venha a projetar as suas dificuldades nos pacientes.
Melhor seria, ainda, se cada futuro musicoterapeuta pudesse ser
musicoterapeutizado, isto é, pudesse passar pelo processo musicoterápico,
vivenciar todos os aspectos do mesmo, para, mais tarde, poder aplicar aquilo que
aprendeu na teoria e vivenciou na prática como paciente, sendo que aqui
teríamos mais uma vantagem: a de o musicoterapeuta ter conhecimento da sua
Identidade Sonora, das suas preferências e desagrados para não misturar os
aspectos que lhe são característicos, com aqueles dos pacientes.
Até agora falamos de aspectos que se referem ao musico terapeuta.
Contudo, outros aspectos devem ser vistos.
O Relatório Progressivo
Introdução
No sentido etimológico da palavra, relatório significa a descrição
minuciosa de fatos, tendo como raiz o verbo relatar, do latim relatum, ou seja,
expor, descrever. Do ponto de vista musicoterapêutico, dir-se-ia do relatório
como sendo um conjunto de informações sistematicamente ordenadas,
permitindo avaliar a atividade, ou seja, funcionando como documentação oficial
do trabalho desenvolvido; permitindo medir as vantagens e desvantagens
relativas ao uso de determinados recursos e procedimentos; apresentando os
objetivos programados e a melhora ou não, ou o alcance ou não, dos objetivos.
O ‘relatório progressivo’ constitui-se no relato, por escrito, de um conjunto
de fatos que ocorreram num determinado espaço de tempo, circunstanciados
pelos recursos humanos e materiais. É um relato feito para avaliar a situação do
paciente, naquele dado momento, em relação ao tratamento. Quando em
instituição, o relatório progressivo será feito com a frequência exigida por esta
ou, a qualquer momento que aconteça um fato considerado significativo para ser
registrado em prontuário, com o objetivo de informar os outros profissionais da
equipe que trabalha com um mesmo paciente sobre o ocorrido.
O ‘relatório progressivo’ que é feito pelo musicoterapeuta que trabalha em
consultório, tem por objetivo tanto levá-lo a se situar frente ao desenvolvimento
do processo musicoterapêutico151, bem como, muitas vezes, responder à
solicitação de outros profissionais que trabalham com um mesmo paciente ou,
também, da família.
Objetivos
O ‘relatório progressivo’ tem por objetivos:
Linguagem e extensão
A linguagem a ser utilizada na elaboração do relatório progressivo, tanto
quanto a das observações ou relatórios das sessões, deve ser clara, objetiva e
técnica. Este deve ser resumido, desde que isto não venha a prejudicar a sua
compreensão. É necessário lembrar que, em geral, este vai ser lido pelo médico
no momento da consulta e/ou por outros profissionais que atendam ao paciente e
que estes dispõem de pouco tempo. Assim sendo, devemos ser objetivos, mas ter
o cuidado de não prejudicar a clareza do referido relatório pois ele dará os
resultados do processo musicoterapêutico, sejam eles favoráveis ou
desfavoráveis.
Ainda se deve notar que as observações feitas sobre aspectos musicais não
devem ser em uma linguagem técnica na medida em que os outros profissionais,
em geral, não têm conhecimento musical. Por outro lado, devem-se ressaltar
aspectos da música através dos quais foram obtidos alguns resultados, desde que
façam parte do ‘senso comum’. Como exemplo teríamos: ‘a agressividade foi
sendo descarregada e canalizada em instrumentos musicais de grande porte, o
que foi observado através da diferença de intensidade utilizada no início do
trabalho e em sessões posteriores (forte e fraca)’.
Estes itens vão variar de acordo com alguns aspectos, isto é, cada
musicoterapeuta vai encontrar a melhor maneira de elaborar o relatório,
dependendo a qual tipo de profissional/instituição se destina e, também,
dependendo do tipo de paciente ao qual o relatório se refere.
Introdução
Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, ‘alta’
significa “considerar um doente como capaz de sair da enfermaria, curado, apto
a viver fora do hospital” (1976, p. 59).
Muitas instituições estabelecem um limite de idade para o atendimento de
pacientes. Isto se faz necessário como consequência do grande número de
pacientes que esperam para serem atendidos e pelo número reduzido de locais
especializados existentes. Também, como consequência da realização de
pesquisas que asseguram o progresso da medicina, que possibilita a
sobrevivência de crianças ou pacientes que não resistiriam a determinadas
enfermidades se não fossem tratados por técnicas altamente sofisticadas durante
longos períodos de tempo. Assim, a sobrevida desses pacientes aumenta
expressivamente, o que significa longos tratamentos, que vão impossibilitar o
atendimento de novos pacientes. Por isto, muitas instituições têm um limite
máximo de idade para a permanência de pacientes, — 18 anos em geral —, para
possibilitar que outros pacientes que têm, muitas vezes, maiores condições de
melhora, sejam admitidos para tratamento na instituição. Essa é a justificativa de
tais instiuições para manter esse limite de idade.
No entanto, muitos são os limites impostos pela realidade social brasileira
que estabelece limites àqueles que necessitam de cuidados institucionais. São
limites impostos não só pelo órgão responsável pela assistência de saúde do país,
como, também, pelas próprias instituições.
Como supervisora dos estágios de musicoterapia em Saúde Mental,
acompanho, desde a implantação e implementação da Reforma Psiquiátrica, a
transformação da musicoterapia dos hospitais psiquiátricos — que poderia ser
chamada de tradicional —, em uma prática dinâmica e mais socializadora,
exercida nos dispositivos denominados Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS)152. O atendimento realizado hoje se diferencia do antigo, que era
caracterizado pelo confinamento, no denominado tratamento no modelo
‘hospitalocêntrico’.
E aqui cabe entender um pouco dessa nova concepção de tratamento,
convocando La Haye (2007), que explica que
Assim, a ideia da criação dos CAPS surge de uma aposta pautada por uma
posição ética, que deve ser o sustentáculo para tudo o que será criado e para que
se possa através dessa postura exercer uma aposta de que a loucura e o louco têm
sentido, voz, vez e obra, nas palavras da psicanalista Alessandra Monachesi
Ribeiro (2005). E, valendo-se das ideias de Figueiredo e Coelho Junior que se
detêm no debate da ética psicanalítica — que pode ser entendida como abertura,
respeito, resposta e propiciação ao outro —, a autora aproxima a ética
psicanalítica da ética da Reforma Psiquiátrica, que não pode ser convertida em
código de prescrições e proibições. Trata-se, mais, de uma disposição ao
convívio acolhedor onde coexistem o inesperado e o irredutível que caracteriza a
alteridade, do que da formação de regras prescritivas que possam modelar o
fazer analítico (Ribeiro, 2005).
Ribeiro ainda alerta para o fato de que as pessoas ingressam no CAPS para,
um dia, poderem ir embora, e que há um risco de que se repita, aqui, o que está
na origem da condição psicótica. Sabe-se da importância dos CAPS na vida de
muitos dos seus usuários, transformando-se em referência como um lugar de
possibilidades, sendo a alta o que anuncia a eficácia do tratamento.
A autora admite que não se pode desconsiderar a importância que os CAPS
passam a ter na vida de grande parte de seus usuários, tornando-se referência de
lugar possível e possibilitador. Ou seja, na sua visão, acaba-se por ter que
sustentar o campo dos paradoxos e das contradições para apoiar um lugar que
crie condição de inclusão e acompanhamento e, ao mesmo tempo, tanto quanto
de ausência e diferenciação. Um papel que não pode ser recusado, em nenhum
momento, levando-se em conta que é a alta que anuncia a eficácia do tratamento.
Referindo-se à alta, Ribeiro faz uma análise da situação, questiona e, ao mesmo
tempo, tenta responder,
por óbito
por mudança de residência: quando o usuário muda para outra região ou
outro estado, tem que ser transferido para um CAPS da região da futura
residência
por abandono de tratamento, mesmo que a equipe envide todos os esforços
para que o usuário retorne ao CAPS
por melhora: o usuário em crise fica no CAPS em avaliação, sendo aí
acompanhado/ atendido. A melhora indica que ele poderá ser acompanhado
em um ambulatório ou pelo Apoio Matricial, ligado às Equipes de Saúde da
Família e ter alta do CAPS (Farnettane, 2015)154.
Entende-se que mesmo o usuário que tem alta, ainda é acompanhado por
uma equipe, seja em ambulatório ou por uma equipe matricial. No entanto, deve-
se lembrar que a alta está sendo tratada, aqui, de forma geral, ou seja, não só em
instituições de saúde mental mas em todas as outras, onde pacientes são
atendidos em musicoterapia, bem como em consultórios particulares.
Ou, como no caso dos CAPS, visto como um serviço tão abrangente e que
se configura como acompanhante e produtor de projetos de vida, mas que pode
vir a ser um “perigo de se tornar a vida de seus usuários” (Ribeiro, 2005, p. 39).
a – O papel da equipe
Phillippe Monello e Vitor Jacobson (1971), que fizeram um estudo
detalhado sobre equipes, consideram que cada membro da equipe deve observar,
refletir, emitir hipóteses e registrar por escrito as conclusões às quais chegou.
Mas, o importante é o conjunto da equipe. Esta é uma necessidade técnica, pois
só ela permite uma ação coerente, resultado de uma reflexão daqueles que
trabalham ao redor do paciente.
Assim, no caso de o paciente ser atendido em vários tipos de terapia em
uma mesma instituição, a alta será discutida pela equipe. No entanto, pode
ocorrer que o paciente seja atendido por um só membro da equipe. Aqui, a
indicação para alta pode partir do médico ou do próprio terapeuta, cabendo aos
dois a responsabilidade, a discussão e a conclusão sobre a conveniência da
mesma.
No caso de paciente de consultório que seja atendido por vários terapeutas,
cabe à equipe, embora cada um em seu espaço de atendimento, mas que tenham
contato entre si — equipe informal —, a decisão da alta. Mesmo que seja de um
dos atendimentos, esta deve ser discutida pela equipe toda, incluindo-se nela o
médico, desde que ele participe das reuniões que a equipe realiza.
b – A família
Pode acontecer que a família peça a interrupção do tratamento. Nessa
situação a responsabilidade será exclusivamente da mesma, sendo que, em caso
de paciente cuja saída da instituição seja contraindicada, por qualquer
circunstância, a família deverá assinar uma declaração dizendo que tem a
responsabilidade, e que apesar da opinião contrária dos médicos, ou do(s)
terapeuta(s) que atende(m) o paciente, este está sendo retirado. Se o médico
considera o paciente como “perigoso”, (no caso de pacientes psiquiátricos, por
exemplo) pode opor-se à sua saída.
a – A preparação do paciente
Um paciente que permanece por algum tempo num atendimento estabelece
uma relação afetiva com o terapeuta. (É importante que se faça a diferença
necessária entre ‘relação afetiva’, como fala Rogers, e ‘envolvimento’.) Assim,
essa relação não poderá ser interrompida abruptamente e o paciente deverá ser
preparado para receber alta. A sua preparação será feita pelo terapeuta ou
terapeutas, no caso de ele ter vários atendimentos. O paciente deve ser avisado
que vai deixar a terapia e, ao mesmo tempo, pode haver uma diminuição na
frequência das sessões. Virgínia Mae Axline, a psicóloga norte-americana que
concebeu a Ludoterapia entende que “parece imprudente terminar estes
encontros sem uma preparação adequada” (1972, p. 247). Assim, o terapeuta
deve estar consciente de que é de extrema relevância que o paciente seja
preparado para ter alta.
c – A preparação da família
Não só o paciente, o terapeuta, ou o grupo ao qual o paciente pertence
devem ser preparados. Também a família, que receberá o paciente ou que não
terá mais onde ou em quem se apoiar, deverá ser orientada pelo médico, pelo
psicólogo, pelo assistente social ou, ainda pelo musicoterapeuta, no sentido de
saber lidar com o paciente a fim de não proporcionar o aparecimento de novos
problemas ou o reaparecimento dos que já haviam sido superados.
d -A preparação do terapeuta
O terapeuta, segundo Carl Rogers, (1970, p. 83) “sente em relação ao
paciente uma reação afetiva, calorosa e positiva”. Isto vai justificar a necessidade
de este também se preparar para a ‘separação’. Presume-se a existência de um
supervisor, e o seu papel, em relação ao terapeuta, vai ser de extrema
importância, não só durante a terapia como, também, no momento da alta do
paciente.
Considerações finais
Em musicoterapia a alta deverá ser dada no momento em que a avaliação
nos mostrar que os objetivos foram atingidos, estando o paciente apto a viver em
sociedade, ou quando acharmos que seu estado é estacionário, como pode
acontecer com pacientes portadores de diferentes deficiências, de qualquer outra
enfermidade ou, ainda, pelos motivos já apontados anteriormente.
A alta será indicada pelo médico ou sugerida pelo terapeuta ou terapeutas,
ou mesmo, em alguns casos, solicitada pelo próprio paciente ou pela familia,
devendo sempre ser discutida e debatida pelos mesmos e/ou por toda a equipe.
O paciente, o grupo, a família e também o terapeuta deverão ser preparados
para o fim da terapia. O encaminhamento do paciente a outra instituição, a outra
forma de terapia ou outra atividade, deverá ser cuidadosamente estudado, sempre
com o fim de proporcionar uma maior abertura do mesmo, ou um maior
crescimento, objetivo de qualquer terapia.
CODA
Formação e novas práticas
DIÁLOGO ENTRE AS NOVAS PRÁTICAS DA
MUSICOTERAPIA CONTEMPORÂNEA E OS
CURSOS DE FORMAÇÃO DE
MUSICOTERAPEUTAS
Introdução
Situações recentes me levaram a pensar sobre as práticas da musicoterapia
contemporânea. Uma delas foi a realização do XVIII Fórum Estadual de
Musicoterapia, realizado pela Associação de Musicoterapia do Rio de Janeiro –
AMT-RJ e pelo Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário
(CBM-CEU), em setembro de 2012, que teve por tema “As diferentes
abordagens da música em musicoterapia”, onde jovens musicoterapeutas
apresentaram seus trabalhos: musicoterapia nos Consultórios de Rua, nos
CAPSad, na rua ou no DETRAN.
Também em outubro do mesmo ano, um convite feito por uma
musicoterapeuta norte-americana para que eu escrevesse o capítulo de um
livro155 a ser por ela organizado, tendo por objetivo apresentar como os cursos
de musicoterapia estão preparando os futuros profissionais para as novas
práticas, o que indicava que também fora do Brasil estas estão surgindo.
Ainda no início de 2013, um novo convite chamou minha atenção, desta
vez vindo da Universidad Nacional de Colombia, em parceria com a Prefeitura
da cidade de Bogotá que, preocupadas com a situação da infância e adolescência
da América Latina organizaram a Jornada Latinoamericana de
Musicoterapia156, que teve como convidados especiais países como a Espanha e
Noruega, este último para fazer um ‘contraponto’ com as nossas realidades. E,
por fim, o XIII Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia e o V Fórum
de Musicoterapia da AMT-RS, realizados em São Leopoldo (RS) em setembro de
2013, cujo tema foi “A clínica na Musicoterapia: avanços e perspectivas”.
Instigada e inspirada pelo tema destes eventos, realizados de 2012 a 2103,
e levada ultimamente, por circunstâncias, ao encontro das novas práticas, decidi
refletir sobre qual seria a real situação da musicoterapia clínica no Brasil e sobre
como os cursos que preparam os futuros profissionais brasileiros estavam se
adequando para enfrentar essa nova realidade.
Diante das evidências que apontavam para a existência de movimentos de
renovação e necessitando me preparar para as participações acima, foi necessário
criar estratégias, já que o material escrito sobre o tema é ainda escasso. Assim,
foi necessário encontrar instrumentos para ter a real dimensão de onde se
realizam e quais são essas práticas em todo o país, identificar as sementes que
plantaram essas inovações, bem como verificar como os cursos de formação vêm
se adequando para instrumentalizar e sensibilizar os novos profissionais para o
enfrentamento e necessidade de adaptação à situação social vigente, além de
estimular o ativismo para alcançar melhores condições de trabalho.
O Brasil hoje
Dados publicados no Diário Oficial de 29 de agosto de 2013 pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informam que a população do
Brasil157 aumenta a cada 19 segundos.
No último Censo Demográfico realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), num total de 190 milhões de habitantes o país
tinha 21.083.635 de adolescentes, com idades entre 12 e 17 anos, distribuídos
pelas diversas regiões, tendo-se uma maior concentração nas regiões da Costa
Leste do país: Nordeste, Sudeste e Sul. Com relação às crianças, a mesma fonte
aponta para uma população de aproximadamente 32 milhões, sendo que um
grande número destas pode ser considerado em diversas situações de risco,
como, por exemplo, as exploradas sexualmente (comercialmente ou não), as
exploradas no que diz respeito ao trabalho, as deficientes, as que estão em
situação de rua, as discriminadas pela identidade étnica, religiosa ou gênero, as
“em conflito com a lei”158 e as institucionalizadas (ABREU, 2002). Mais de
100.000 crianças e adolescentes vivem nas ruas do país; aproximadamente um
milhão de crianças e adolescentes estão institucionalizados, portanto, fora do
convívio familiar por motivos distintos e, por isto, frequentemente submetidos a
diversas formas de violência e privação. Crianças e adolescentes
institucionalizados têm um risco seis vezes maior para transtornos psiquiátricos
em comparação aos que vivem com suas famílias. Assim, pode-se falar em
grupos de crianças com necessidade de medidas especiais, embora seja comum
uma mesma criança viver mais de uma dessas situações acima apresentadas.
Por outro lado, os avanços da medicina e melhores condições de vida têm
proporcionado uma maior expectativa de vida no país. Os idosos, com mais de
60 anos, somavam 23,5 milhões de brasileiros159. No entanto, os dados positivos
divulgados pelo (IBGE) apontam para problemas que deverão se agravar nas
próximas décadas, como assinalam os especialistas que destacam a falta de
políticas públicas específicas para o novo perfil da população.
O conhecimento da situação relativa a crianças, adolescentes, adultos e
idosos justifica a urgência de mudanças que têm passado por estudos detalhados
para a realização de ações que possam enfrentar um problema de tal dimensão.
Pode-se considerar que a magnitude dos números potencializa os problemas.
Os problemas relativos à violência contra a pessoa idosa, por exemplo, têm
se tornado uma questão importante para a Saúde Pública. A compreensão da
complexidade deste tema como um todo exige uma abordagem interdisciplinar
na formulação de políticas públicas integradas. No entanto, aqui não cabe uma
análise mais ampla da situação, mas sabe-se que a musicoterapia vem se unindo
a ações que têm por objetivo o atendimento de todas essas populações e
integrando-se a espaços terapêuticos de saúde pública que têm esse objetivo.
Metodologia
Num país continental como o Brasil não se tem condições de discorrer
sobre a prática da musicoterapia em âmbito nacional, sem um levantamento que
forneça informações mais fidedignas. Assim, pela inexistência de literatura na
área, utilizei as respostas dadas ao questionário elaborado para o trabalho
apresentado na Colômbia, além de entrar em contato com musicoterapeutas que
trabalham em novas áreas, e analisei as grades dos cursos de musicoterapia
existentes no país. Há que se considerar que aqui se apresenta uma amostra das
novas práticas em musicoterapia.
Cena clínica 21
João era tetraplégico, como resultado de um assalto à mão armada.
Assim, comecei o trabalho perguntando: o que você gosta de cantar? A pergunta
foi feita dessa forma porque o paciente não poderia fazer mais nada já que só
fazia movimentos com a cabeça. O corpo todo estava paralisado. Mas, qual foi a
minha surpresa quando o paciente respondeu que não gostava de cantar!
Imediatamente me senti perdida. Passei, então, a pensar como poderia trabalhar
com este paciente, além da musicoterapia receptiva, evidentemente. E encontrei
uma solução que seria levá-lo a utilizar uma gaita de boca com suporte em
metal, muito utilizado pelos músicos que tocam gaita de boca e se acompanham
em outro instrumento como no violão, por exemplo. Fiz uma ‘romaria’ por todas
as lojas de instrumentos musicais que conhecia na cidade, atrás desse suporte,
muito utilizado por instrumentistas que tocam violão e gaita de boca ao mesmo
tempo, e não consegui encontrar. Decidi, então, projetar um suporte deste tipo,
embora nunca tivesse tido um em mãos. Mas, fui ajudada pela Oficina
Ortopédica da instituição que, com as minhas explicações e um desenho
rudimentar, construiu o suporte. Com isto, o paciente começou a tocar,
principalmente improvisando, acompanhado por mim no piano. O seu prazer em
tocar era visível pois, certamente, era uma das poucas coisas que podia fazer, já
que só tinha condições de movimentar a cabeça175. Depois de algumas sessões
ele pediu para levar a gaita de boca e ficava tocando no pátio. E, num
determinado momento, alguns pacientes hemiplégicos e paraplégicos passaram
a ir para o pátio e tocar com ele. Estes pacientes tocavam violão em um
conjunto musical que havia sido formado no Setor de Musicoterapia da ABBR,
com a aquiescência e incentivo da chefe do Setor, a musicoterapeuta Gabriele
Souza e Silva, e que inclusive se apresentou em congressos médicos. Depois
disto, ele pediu para levar a gaita quando ia para casa nos fins de semana. Ou
seja, isto ilustra bem o Efeito Ripple. A música levou o paciente para fora da
sessão, atraiu outros pacientes, e ainda foi com ele para casa!
Aspectos gerais
Considerações finais
A partir do aqui descrito, pode-se entender que a musicoterapia se
desenvolve através de cinco caminhos principais: do estudo da literatura da área
(e de áreas afins), de pesquisas e de mudanças na prática clínica — primeiro,
impulsionadas pelo movimento de outros campos de atuação como é o caso da
Saúde Mental, por exemplo; segundo, pela Legislação que regula a profissão de
musicoterapeuta e, também, pelo ensino-aprendizagem da musicoterapia. Devo
esclarecer que quando me refiro que há uma evolução da musicoterapia pelo
ensino da mesma, refiro-me à retroalimentação que o professor tem quando está
no papel daquele que democratiza e/ou transmite conhecimento, em tempos de
grandes avanços das técnicas e tecnologias em uma sociedade globalizada. Mas
não se pode deixar de apontar os perigos que podem advir da ausência de senso
crítico em um meio onde tudo e qualquer material é veiculado.
No entanto, cabe ressaltar que, na interação professor/aluno, muitas vezes,
a pergunta de um aluno leva o professor a ter insights que vão desaguar na
elaboração de um novo conceito, possibilitam a compreensão de aspectos que há
muito eram pensados pelo professor/musicoterapeuta ou, ainda, que fomentam
novas ideias.
Mas, voltando-se às questões políticas referentes à área, cabe sinalizar que,
além da inserção na CBO180, a Musicoterapia ainda passou a integrar as carreiras
que fazem parte do Sistema Único de Assistência Social Brasileiro (SUAS), em
2011, o que coloca o musicoterapeuta engajado com outros profissionais, na
oferta de assistência social, com abrangência nacional.
A análise feita anteriormente com relação os diferentes aspectos da
musicoterapia mostra que não existem grandes diferenças no que tange à
utilização da música como elemento terapêutico nos diferentes espaços mas, sim,
percebe-se que a grande diferença está na ampliação dos papéis que o
musicoterapeuta desempenha, nos procedimentos empregados que, apesar de
serem os mesmos das práticas tradicionais, assumem uma nova roupagem nesses
novos espaços, na utilização de novos conceitos teóricos como resultado do
desenvolvimento da área e, principalmente, na inserção da Musicoterapia nas
Políticas Públicas de Saúde.
Depois desta análise cabe uma questão: se todos estes aspectos são
utilizados de forma muito semelhante qual seria a especificidade da
musicoterapia nessas áreas? Tenho defendido que a musicoterapia é uma só, ao
contrário de alguns teóricos que sustentam que temos musicoterapias. Assim, em
minha opinião, o que traz diferenças na sua aplicação é como a musicoterapia é
aplicada, dependendo: da área onde se aplica, do tipo e possibilidades da
instituição, da faixa etária dos pacientes, das qualidades pessoais e
competência/ habilidades do musicoterapeuta (musicais/musicoterápicas),
enfim, de um conjunto de questões que exigem do musicoterapeuta competência,
flexibilidade e criatividade para estarem inseridos e compreenderem os
tipos/idiossincrasias de cada instituição/área e a inserção destas nas políticas
públicas mais amplas às quais estão ligadas ou das quais dependem. E, sem
dúvida, isto vai estar diretamente ligado à: formação do musicoterapeuta,
potencializando a nossa responsa bilidade como coordenadores de cursos,
professores e supervisores de estágios ou práticas clínicas/terapêuticas; à
participação/atualização do musico terapeuta nas atividades e eventos das
suas associações; e, de forma mais abrangente, no ativismo do musicoterapeuta
nas discussões que dizem respeito à inclusão da musicoterapia mais
amplamente: nas políticas públicas de saúde.
Por fim, percebe-se que as respostas ao questionário apontam alguns
objetivos que são comuns tanto às práticas tradicionais quanto às novas práticas
como: a música é utilizada para explorar e expressar sentimentos, para trabalhar
problemas, para desenvolver/resgatar habilidades, que podem ser musicais e
nãomusicais, e para encontrar caminhos para se relacionar e se comunicar com
os outros, que coincidem com as ideias de Bruscia (2000).
Todavia, aparecem objetivos que podem ser considerados distintos dos das
práticas tradicionais, embora o empoderamento, por exemplo, seja um objetivo
comum tanto em algumas das tradicionais quanto das novas práticas. Outros, no
entanto, podem ser vistos como específicos das novas práticas: dentre estes estão
o protagonismo social e o fortalecimento de vínculos sociais.
Para finalizar, cabe frisar que as práticas tradicionais continuam sendo tão
importantes quanto foram até hoje e, mesmo que surjam novas metodologias,
técnicas, abordagens, estratégias, e novas linguagens sejam utilizadas para que o
usuário possa se expressar, a musicoterapia contemporânea não é substitutiva
das práticas tradicionais. É, sim, um desenvolvimento e uma ampliação
destas, e com elas deve conviver em harmonia.
Articulações entre musicoterapia e musicologia.
ARTICULAÇÕES ENTRE MUSICOTERAPIA E
MUSICOLOGIA: OS CONCEITOS DE
‘CONDIÇÃO CONVERGENTE’ E ‘DIVERGENTE’
EM MUSICOTERAPIA.
Introdução
Teóricos da musicoterapia contemporânea como o norueguês Even Ruud
(1998), o britânico Gary Ansdell (2001), o canadense Colin Lee (2003), dentre
os quais me incluo (Barcellos, 1982; 1994a; 1999; 2004c, 2009a), todos
musicoterapeutas e musicólogos, têm assinalado a necessidade de articulações
mais consistentes entre musicoterapia e áreas da música como musicologia181,
psicologia da música e etnomusicologia, por exemplo.
Na visão destes autores, estas articulações resultariam em ganhos que
poderiam facilitar tanto o desenvolvimento de processos terapêuticos quanto a
ampliação dos cânones e do corpus da área, na medida em que dariam uma
contribuição para uma melhor utilização da música como elemento terapêutico.
Na introdução de artigo escrito em 1982 para o II International Symposium
on Music Therapy182, afirmo que
Lee ainda se refere à questão da ‘análise musical’ como sendo uma das
formas de apoiar e “desafiar a musicoterapia a um crescimento intelectual”
(2003, p. 16). Na verdade, eu diria que este é um objetivo da análise
musicoterapêutica.
O musicoterapeuta Colin Lee (2003) considera que para se avaliar o papel
da música em musicoterapia é necessário estar preparado para utilizar teorias de
análise musical, mesmo que estas sejam vistas como parte da musicologia
“tradicional”. Lee explica que a musicoterapia tem que levar em conta as
“engrenagens” do conteúdo musical em relação aos efeitos terapêuticos, o que
significa examinar em detalhe a notação musical, de forma acurada. Percebese
que Lee já inclui outros aspectos, ou seja, além da análise musical, e já inclui
mais um ator: o musicoterapeuta e a sua escuta.
Considero que seria mais do que isto: o musicoterapeuta, além de observar
as questões musicais, (a análise musical), deve fazer uma articulação destas com
as condições de vida, clínicas e sonoro-musicais do paciente, e levar em conta o
contexto no qual a música acontece.
Ainda se referindo à compreensão da engrenagem da música, Lee afirma
que “só através de uma análise detalhada nós começaremos a entender como a
música funciona” (2003, p. 16), embora tenha a consciência e o bom senso de
declarar que não se pode pretender que a análise musical vá trazer hipóteses
universais sobre os efeitos da música e da terapia. No entanto, admite que a
tentativa de analisar as interações entre musicoterapeuta e paciente, na crença de
entender a sua construção, pode iluminar e possibilitar a compreensão de outros
aspectos. Para ele, “A união da música e da terapia é complexa e estudar uma ou
outra isoladamente é uma noção insensata” (p. 16), ou superficial, acrescentaria
eu.
Talvez a afirmação e a contribuição mais relevante de Lee, que não se
encontra em outros autores que discutem o mesmo tema, seja a de que a análise
musical, mesmo que concentre a ênfase na música, também equilibra os seus
achados dentro da dinâmica do todo, ou, como afirma Ruud (1998), que a análise
musical não seja separada dos contextos clínicos dos quais os pacientes se
originam.
O pensamento de Ruud e Lee com relação à análise musical, que leva em
consideração os contextos clínicos, corresponde ao que denomino análise
musicoterapêutica, conceito que criei e venho estudando e desenvolvendo desde
1982, conforme descrito anteriormente. Entendo que a análise da produção
musical do paciente deve ser articulada às suas histórias: de vida, clínica e
sonoro/musical, ao contexto, e à situação em que se dá o fazer musical (1982,
2004c, 2009a). Este conceito de análise musicoterapêutica foi ampliado, e
fundamentado, posteriormente, no Modelo Tripartido de Molino, revisto por
Nattiez e adaptado para a musicoterapia por Barcellos, desde 1999, incluindo e
recomendando, mais recentemente (2209a), a adequação da análise
paradigmática do musicólogo belga Nicolas Ruwet185, para a compreensão
exclusivamente da produção musical do paciente (Barcellos, 2009a).
O conceito, de análise musicoterapêutica foi tomando forma a partir do
momento em que percebi que a análise musical, exclusivamente, não é suficiente
para explicar a música do paciente. É, sim, mandatório, que
Cena clínica 22
A improvisação/composição de Carlos.
Carlos tinha 44 anos quando fui procurada por sua mulher, para atendê-lo
em musicoterapia. Isto ocorreu 18 anos depois de ele ter tido um acidente de
mergulho que lhe causou uma lesão difusa, deixando sequelas psicomotoras que
resultaram em uma marcha levemente atípica, dificuldades leves na fala, perda
parcial da memória e problemas na área emocional.
Não me parecia possível conseguir-se qualquer modificação no quadro,
depois de tanto tempo. Não seria mais possível a neuroplasticidade cerebral198,
ou a substituição de funções das áreas lesadas.
Filho de estrangeiros de bom nível sociocultural, com formação em
Economia na Stanford University (USA), além de poliglota, Carlos tocava
violino, viola e clarinete. O acidente o impossibilitou de continuar a trabalhar.
Empregado de um importante banco multinacional quando sofreu o acidente,
sua vida profissional foi interrompida e ele passou a se manter exclusivamente
com uma parca pensão do INSS. Como considerei que dificilmente se poderia
conseguir minimizar as dificuldades de Carlos não aceitei trabalhar com ele. No
entanto, pressionada por sua mulher, já consciente das dificuldades dessa
reabilitação, voltei atrás e comecei o trabalho.
O acidente ocorreu quando o paciente tinha 26 anos e como nunca deixara
de tocar, a sua memória musical estava parcialmente preservada. Ele tocava as
mesmas músicas em todos os instrumentos que estudara pois, além da formação,
tinha muita musicalidade.
Na primeira sessão (28/4/89)199, Carlos solicitou que eu o acompanhasse
ao piano e começou tocando “Smile”200ora no violino, ora na viola, em
diferentes tonalidades, transportando com facilidade e resolvendo naturalmente
os aspectos musicais. Também passava do violino para a viola e vice-versa,
tocando essa mesma música, sem mudar as posições dos dedos, o que a
transportava uma 5a abaixo ou uma 4a acima, dependendo do instrumento que
tocava primeiro e, consequentemente, me levava a também transportar, porque
eu sempre o acompanhava no piano. Ainda deve ser destacada a dificuldade a
ser enfrentada por um músico (não paciente) que não tivesse uma musicalidade
tão desenvolvida como Carlos, e que tocasse uma mesma música mantendo a
tonalidade quando tocava no violino e mudasse para a viola ou vice-versa. Ou
seja, aqui se teria outro tipo de desafio: mudar completamente as posições.
Pode-se imaginar o quanto isto poderia contribuir para a
neuroplasticidade, caso acontecesse imediatamente após um acidente que
danificasse algumas conexões. Ou será que isto ainda seria possível 18 anos
depois? Não sei se isto mudou com as novas evidências das neurociências.
As músicas que tocava eram repetidas várias vezes. Assim, tudo era
familiar e, consequentemente, previsível para ele. Percebi, então, que deveria
levá-lo a novas experiências musicais, improvisar ou compor, para que
conseguisse lidar com situações novas e tivesse maiores desafios já que resolvia
facilmente as questões de mudanças de instrumentos. Mas Carlos era resistente
ao novo, talvez por querer se manter na sua zona de conforto, ou, talvez pela
impossibilidade de absorver/executar novas músicas.
Em um determinado momento, enquanto tocava viola, sugeri que ele
criasse uma melodia. Ele improvisou a melodia a seguir.
Solicitei que ele colocasse um título, mas ele disse que “não tinha título”.
Certamente se tivesse um título eu teria como entender melhor o que ele estava
querendo expressar. De qualquer forma, eu já tinha dados suficientes para poder
entender o que estava acontecendo, já que conhecia a sua história, tanto de
vida, quanto clínica e sonoro musical. Logo depois o acompanhei, fazendo a
harmonia no piano, na mesma sessão, como na partitura a seguir.
Perguntei como ele sentia a melodia e ele disse: “você tocou alegre, mas é
sombrio, triste”.
Ele acabou por memorizar essa melodia e voltava sempre a tocá-la,
pedindo que eu o acompanhasse, o que resultou nesta composição grafada
musicalmente por mim e gravada em áudio, 15 anos após a alta201.
Iniciamos, a partir daí, um trabalho de improvisação e composição tendo
eu, por objetivo, levá-lo a exprimir seus sentimentos, já que lhe era muito difícil
expressar-se verbalmente, pois, além da dificuldade de fala, ele era muito
reservado, aspecto decorrente, talvez, de suas raízes europeias.
Ele passou a se expressar através de suas improvisações/composições,
embora não declarasse isso. Essa primeira composição não tem título ou letra,
mas uma observação do paciente.
Levando-se em consideração a sua história, pode-se inferir que esta
melodia “está no lugar” ou é uma metáfora musical – substitui o que não pode
ser dito verbalmente, porque o paciente não quer ou não pode – do que parece
ser um sentimento de tristeza, expressado através de um andamento “lento e
pesado”, num tom menor, configurando uma condição convergente, que foi
tocada inicialmente na viola, instrumento considerado “uma versão contralto do
violino, com sonoridade menos enérgica do que a desse instrumento”
(Dicionário Grove De Música, 1994, p. 995).
Aqui, a combinação do andamento lento com o modo menor, levando-se
em consideração também o timbre da viola, pode estar expressando a tristeza
que pode advir de seu estado atual, significando as muitas perdas que sofreu na
vida.
Assim, respondendo à pergunta feita anteriormente se poderíamos
considerar que os achados das autoras, realizados em uma situação de escuta
poderiam ser levados em conta em uma situação de expressão, penso que se
pode concluir que embora os estudos tenham sido realizados em uma situação
distinta da aqui apresentada, considero ser possível que eles sejam transpostos
para uma situação de produção, como no caso de Carlos. Mas, esta conclusão
abre uma nova pergunta: Carlos é um paciente com formação musical o que
possibilita que ele possa lidar com o aspecto do modo, por exemplo. No entanto,
seria possível um paciente sem formação musical lidar com este aspecto?
A composição de Raphael
Raphael nasceu com Mielomeningocele202 e, desde então, faz tratamento.
No momento em que foi atendido em musicoterapia tinha 18 anos e completara
até a 7ª série numa escola estadual. Desde os 10 anos vem sendo submetido a
tratamento dialítico numa clínica de doenças renais, juntamente com mais seis
pacientes na mesma enfermaria, com idades que vão de três a 20 anos. Este
grupo foi atendido em musicoterapia no momento da diálise.
Cena clínica 23
Aqui utilizo uma situação clínica da qual Raphael foi o protagonista, para
ilustrar a utilização da composição e, para responder à indagação feita
anteriormente sobre a possibilidade de um paciente sem formação musical lidar
com o modo, por exemplo.
Mas, antes de analisar o processo da composição da música, considero
importante algumas observações sobre a letra trazida por Raphael, observando
que esta “composição” tem que ser “lida” dentro do tempo e espaço nos quais foi
criada: em um dia e momento em que a sala de diálise estava sendo abalada por
um episódio clínico com a paciente de três anos que, depois de intervenções da
enfermagem, reagiu e se recuperou, mas que apontou para uma ameaça de morte
a todos aqueles que estavam na mesma condição, isto é, numa sessão de diálise
com possibilidades de oposição de vida e morte.
Possivelmente para fazer ressoar oposições e tensões internas, Raphael se
“apoderou” e transformou em letra de canção, algumas ideias de um texto de
autor desconhecido205, retirado da internet, utilizando o oxímoro206. Certamente
a escolha do texto foi para “compor” novas tramas de sentido para exprimir
aspectos relativos às histórias de vida e clínica de todos os que ali se submetiam
ao mesmo tratamento, sem dúvida, expressando inconscientemente a oposição
entre vida e morte, e a ameaça iminente de morte, pela qual todos tinham
acabado de passar.
Fiorini (1995) considera que a forma retórica da figura de linguagem
oxímoro, que faz ‘ressoar’ oposições e tensões, é uma característica do
pensamento criador que não se entende nem como princípio da realidade, nem
como pensamento do processo primário ou secundário, mas sim, que é da ordem
do processo criador, pertencente ao processo terciário207. Abaixo, as palavras do
referido texto.
Nada de nada208
(R. C. C. – 2/04/09)
Considerações finais
Partindo do estudo de Gagnon e Peretz (2003), que traz evidências que a
música, considerada a linguagem das emoções, é um meio ideal tanto para o
estudo da cognição como da emoção, — e fundamentada na minha prática
clínica, que apresenta pacientes atendidos em situações distintas no que se refere
à idade, patologia, condições clínicas, grau de instrução e diferentes níveis de
relação com a música, bem como tipo de atendimento (um musicoterapeuta ou
em coterapia) —, considero importante e possível a utilização dos conceitos de
condição convergente e divergente tanto na musicoterapia receptiva quanto na
interativa, por se tratar de uma poderosa ferramenta para que o musicoterapeuta
potencialize a utilização da música como elemento terapêutico:
Introdução
A questão de como se constroem e se percebem os sentidos e o significado
na comunicação, e de como eles são percebidos e interpretados, tem sido objeto
de estudos e vem sendo discutida por várias áreas como antropologia, filosofia,
linguística, sociologia, psicologia e, ainda, áreas da música como: psicologia da
música e musicologia.
Em musicoterapia, essa questão tem sido menos debatida do que seria
necessário, considerando-se a sua importância para a área, declarada por alguns
pensadores do campo como Even Ruud que afirma que “A questão do
significado musical é fundamental para a prática da musicoterapia” (2010, p.
61). Assim, faz-se necessário a discussão do tema para que se tenha uma
compreensão daquilo que o paciente expressa, musicalmente, o que pode
contribuir para um melhor desenvolvimento do processo musicoterapêutico.
Ou, dito de uma forma mais literária, nas palavras do mesmo autor: “o
significado existe quando um objeto está situado em relação a um horizonte”
(idem). Aqui eu me permitiria detalhar mais essa definição de significado dada
por Nattiez, partindo da minha própria experiência em música e musicoterapia,
esclarecendo que considero que essa coleção de ‘outros objetos’ a que se refere o
autor, pode ser vista como situações, fatos, ou, ainda, pessoas. Assim, a música
tem um significado para nós quando nos remete a uma situação, fato, ou pessoa,
e vem carregada da emoção que este fato, essa pessoa ou situação provocaram.
Ainda se deve voltar à DeNora que afirma: “a capacidade semiótica da
música resulta de sua relação intertextual com outras coisas” (2000, p. 28), ou
seja, “a força semiótica da música não pode ser derivada da música em si
mesma: a relação entre música e a situação de escuta também tem consequências
teóricas importantes” (ibid, p. 30).
Também o renomado neurocientista Daniel Levitin226 traz contribuições
sobre o tema, explicando o processo de significação da música, ou seja, como a
música passa a ter significado para cada um de nós. Afirma o autor que
O significado em musicoterapia
Para Ruud, a questão do significado para a prática da musicoterapia é
fundamental e as intervenções musicoterapêuticas são baseadas nas experiências
musicais “e nas relações que se desenvolvem através delas como forças
dinâmicas de mudança” (2010, p. 61).
Um aspecto que interessa sobremaneira aos musicoterapeutas é a
declaração de Ruud (2010, p. 62), sobre o fato de o significado ser “relacional”,
isto é, “(...) de se conectar com outras partes de experiências passadas, presentes
e futuras”, como exemplificado anteriomente, através da visão de vários autores.
Para melhor se entender essa afirmação, parece pertinente se evocar a
questão do tríplice presente de Santo Agostinho que entende que o presente traz
o passado pela memória e o futuro pela expectativa. Através da música, pela
memória, pode-se trazer o passado. Deste modo, a música pode funcionar como
“uma chave capaz de reativar as experiências associadas à sua lembrança, lugar
e época” nas palavras de Levitin (2010, p. 187). O autor ainda afirma que “as
pistas mais exclusivas são as mais eficientes na evocação de lembranças” (p.
187).
Vale retornar-se à representação do Modelo Tripartido de Molino, em
música:
Mas, ainda com relação à polissemia, deve-se observar que Even Ruud traz
uma valiosa contribuição para o campo, afirmando que o impacto é uma das
funções primordiais da música, e que a sua natureza polissêmica pode “nos
forçar, algumas vezes, a nos abrirmos na direção de áreas não pesquisadas do
corpo e da consciência” (Ruud, 1990, p. 91). O autor ainda afirma que novas
categorias podem ser construídas a partir desse conhecimento ampliado,
combinado com pensamento e reflexão. Este conhecimento ampliado inclui não
somente aspectos relativos à mente e ao corpo, mas também um novo
conhecimento de nossa relação com outras instâncias, tais como com a natureza,
a comunidade social, cultural e universal; isto é, há uma experiência na qual a
música pode conduzir a mudanças pessoais. Embora nesta afirmação o autor não
se refira a pacientes como ouvintes, a polissemia constitui-se, na minha visão,
em algo de extrema importância para a terapia, já que pode causar também um
impacto que pode levar o paciente a mudanças pessoais ou, a uma abertura.
Aqui cabe, mais uma vez, a apresentação de uma cena clínica, agora para
ilustrar a questão do significado atribuído a uma situação rítmica/sonoro/cênica,
por uma paciente atendida por mim em consultório.
Cena clínica 24
A paciente como narradora sonoro/cênica de sua história e a interpretação
dessa narrativa, através da tripartição Molino/Nattiez.
História Sonora
A entrevista inicial foi feita com os pais da menina em março de 1992 e
com relação à história sonora, a mãe declarou que cantou músicas infantis e
populares para embalar a menina e que em casa ouvia muito música erudita.
Com relação à história sonora, a mãe relata que a criança tinha “horror a
barulhos”: não queria ir ao banheiro por causa do barulho da válvula do vaso
sanitário, e não utilizava secador de mãos (de ar quente) pelo mesmo motivo234.
A narrativa sonoro/cênica de Marina
Marina foi encaminhada à musicoterapia e seu atendimento começou em
abril de 1992, antes de completar sete anos de idade, tendo tido alta por
solicitação dos pais em dezembro de 1995, com 10 anos, quando, por orientação
do neurologista, foi encaminhada à fisioterapia, fonoaudiologia e
psicopedagogia235. Assim, além da escola, que ela frequentava em tempo
integral, ainda se dividia entre essas formas de terapia, sendo difícil encontrar
horário disponível para continuar na musicoterapia.
Mas o que se pretende ilustrar e discutir aqui é uma situação sonora
recorrente, que Marina trouxe durante muitas sessões. Contudo, antes de
descrever a situação, talvez seja pertinente ressaltar que, em musicoterapia,
além da utilização de música estruturada – através da audição, recriação,
improvisação e composição –, são admitidas manifestações rítmico/sonoras não
necessariamente ‘organizadas’. E vale observar a importância da utilização
destas, como aqui pode se perceber.
Voltando-se aos registros das sessões se lê, sempre, no início: “Marina
entra na sala, dirige-se ao armário e joga, de forma ruidosa, todos os
instrumentos no chão. Depois Marina faz outras atividades, como cantar, tocar
instrumentos ou dançar”. Descrita de diferentes formas, esta situação era
recorrente e se prolongou por muitas sessões.
Mandam os cânones de qualquer tipo de terapia que limites sejam
colocados quando ocorrer uma transgressão – neste caso, com relação ao
material da sala –, atitude que era cobrada pelo estagiário/coterapeuta, ao final
de cada sessão. E caberia uma crítica a mim, como musicoterapeuta, por não
considerar adequado colocar o limite, ‘sentindo’ que a paciente ‘queria dizer
alguma coisa’ através daquela situação. No entanto, essa justificativa não seria
suficiente para a não colocação de limites, principalmente por tratarse de algo
que decorria exclusivamente da minha intuição. Mas, eu considerava
fundamental para esse processo musicoterapêutico, entender o quê a paciente
queria dizer com essa manifestação.
Cabe pensar no(s) ‘vestígio(s)’ deixado(s) por Marina quando acabava de
jogar todos os instrumentos para fora do armário: o visual e o sonoro. O visual –
o chão da sala coberto por toda espécie de instrumentos de percussão e de sopro
de médio e pequeno portes: pandeiros pequenos e grandes, chocalhos,
metalofone, celestin, paus-de-chuva de vários tamanhos, tambores, tambor de
fenda, caixixis, afoxês, xequerê, e muitos mais. Este vestígio visual não é
considerado por Jean Jacques Nattiez, estudioso do Modelo Tripartido de Jean
Molino, porque o Modelo foi pensado para a música. Contudo, em
musicoterapia, todas as manifestações sonoro/musicais, de movimentação
corporal ou dança, e ainda as cênicas, devem ser valorizadas e são importantes
por complementarem o sonoro porque permanecem na cena. O segundo vestígio
era o sonoro/auditivo, que permaneceu gravado em fita cassete e na nossa
memória.
Havia uma única proposta da musicoterapeuta, aceita e respeitada pela
paciente: os violões e o teclado eletrônico não seriam jogados ao chão. Eram
retirados antes. Mas, fora estes, o armário ficava vazio após todos os
instrumentos terem sido jogados. Como havia instrumentos de vários tamanhos
e pesos, quando a paciente os jogava, os mais pesados caíam perto das portas
do armário e os mais leves ficavam no chão quase até o fim da sala.
Uma constelação de sentidos possíveis poderia estar sendo atribuída pela
paciente a esta situação e comunicada aos terapeutas, mas caberia a eles
(re)construirem um sentido plausível (repetindo: um único sentido se configura
como significado). “A narrativa do paciente sobre a sua doença nem sempre
mostra o sentido diretamente; este é demonstrado pela recriação de padrões
(...)”, afirma Aldridge, (2000, p. 5).
Assim, a paciente poderia estar comunicando um sentimento de raiva;
poderia estar testando a musicoterapeuta, no sentido de saber qual seria a sua
reação; ou poderia estar querendo quebrar os instrumentos. Mas, por quê?
Para se chegar a um significado, muitas intervenções verbais interrogativas,
relacionadas às hipóteses acima pensadas foram feitas, cantadas e faladas, às
quais Marina respondia sempre negativamente.
As fitas cassete gravadas nas sessões eram ouvidas repetidas vezes pela
musicoterapeuta e pelo coterapeuta, que refletiam sobre os vestígios deixados: o
caos visual e o caos sonoro. O caos sonoro trazia à memória dos terapeutas o
caos visual e vice-versa. Na recorrência da audição, a recepção deste caos
sonoro levava a se pensar sobre os estágios da situação. A paciente:
1 – abre as portas do armário;
2 – joga os instrumentos para fora, de uma forma completamente
desorganizada; e
3 – deixa os instrumentos espalhados pela sala.
O que isto tem a ver com a história da paciente? O que ela estará querendo
dizer, consciente ou inconscientemente? Qual significado estará atribuindo à
situação?
Embora a musicoterapeuta ainda não tivesse um estudo mais aprofundado
do Método de Análise Semiológica236 Tripartite de Molino e Nattiez, pode-se
perceber que as análises feitas à época do atendimento de Marina são com ele
compatíveis, podendo-se aqui sistematizar essa utilização para a análise da
manifestação sonoro/musical de pacientes, por ser este o método que considero o
mais adequado para ser empregado em musicoterapia.
Considerando-se que “o vestígio material não é em si portador de
significações imediatamente legíveis”, como afirma Sampaio (2003, p. 51),
citando Nattiez, três são os tipos de objetos do programa semiológico e três são
as análises “que tentam enfeixar a especificidade simbólica: a análise poiética, a
estésica237 e a das configurações imanentes da obra (do seu vestígio) [...] que é
uma realidade material amorfa até que o significado seja capturado pela análise
do nível neutro”, (p. 51-52) ou dos três níveis do Modelo.
O procedimento preconizado pelo Método recomenda que a análise
comece pela estrutura imanente ou nível neutro (os vestígios que foram deixados
aqui, pela paciente). Assim, inicialmente, deverse-ia fazer uma análise da
manifestação sonoro/cênica da situação clínica aqui apresentada: o vestígio
sonoro era constituído por timbres diversos, ritmos aleatórios e irregulares, e
intensidades as mais variadas possíveis. Estes aspectos eram recorrentes: o
resultado sonoro poderia ser visto sempre como caótico; o ritmo era sempre
irregular; e o timbre era sempre variado. Percebe-se que existe uma ação
repetida, que resulta na repetição de aspectos rítmicos, sonoros e cênicos, que
podem ser considerados como “unidades constitutivas repetidas e transformadas
no decorrer do texto musical (Sampaio, 2002)”, o que caracteriza uma
adequação da ‘análise paradigmática’ do belga Nicolas Ruwet, levando em
conta, no contexto musicoterápico, também as manifestações sonoro-rítmico-
cênicas, como ‘texto musical’.
Explicando: dos muitos métodos de análise musical existentes, proponho e
faço uma adequação do acima citado – que utiliza a análise paradigmática de
Ruwet – para que seja empregado para a análise da ‘música’ dos pacientes, em
musicoterapia, por considerar o método mais adequado para este fim por se
basear nas recorrências, sejam elas musicais, cênicas ou corporais. Ainda
esclareço que quando faço menção às recorrências musicais, refiro-me a
qualquer manifestação rítmica, sonora, melódica, harmônica, tímbrica, cênica ou
corporal.
A recorrência da audição das fitas configurava-se como as análises
estésicas indutiva e externa, (sobre como eram ‘escutados’ pelos
musicoterapeutas aqueles vestígios que, ‘isolados’ não eram suficientes para a
(re)construção do significado).
Uma hipótese foi tomando forma a partir do momento em que se incluiu o
processo de produção, ou a análise poiética, considerada por Nattiez (2002)
como interpretativa, porque “atribui uma pertinência a um fenômeno das
estruturas que ela interpreta poieticamente” (p. 30). Assim, as relações entre os
três níveis trouxeram a possibilidade da compreensão do ocorrido, corroborando
o pensamento de Nattiez, citado por Sampaio (2002), que afirma que
A ressignificação
Há alguns anos foi incluída no Curso de Musicoterapia do CBM-CEU,
uma disciplina denominada Música em Musicoterapia, por mim ministrada, que
tem dentre os tópicos do programa a análise musical e a ampliação desta, que
denomino “análise musicoterapêutica”243por aproximação. Para introduzir o
tema, solicito aos alunos que escolham uma música simples para que façam uma
análise musical em aula e depois é feita uma análise musicoterapêutica,
possibilitada pela resposta dada à solicitação de uma justificativa para a escolha
da referida música.
A partir da leitura desta citação pode-se dizer que por isto, e por muito
mais, a música é este potente elemento terapêutico.
A ressignificação em musicoterapia
A partir dos relatos das alunas da disciplina de Música em Musicoterapia
pode-se entender melhor a questão da ressignificação que, como a palavra
sugere, é a possibilidade de dar-se um novo significado, a partir da música, ou
passar a pensar de outra forma, sobre uma mesma situação, um mesmo fato ou
uma mesma pessoa. No caso de um processo terapêutico, passar a pensar de uma
outra forma sobre uma mesma música que está ligada a um fato, situação ou
pessoa e que carrega uma emoção a estes ligada, pode ser a possibilidade de
ressignificar estes fatos, situações ou, ainda, relações com as pessoas ligadas a
essa música.
Também o exemplo das alunas está claro no que concerne à valência da
emoção: de significado negativo para positivo e de positivo para negativo
quando um fato, uma pessoa ou situação que tenha uma valência mais potente,
dê um novo significado à música.
Muitas pessoas, em geral leigas, pensam equivocadamente que o papel da
terapia é fazer com que os pacientes saiam da sessão sempre felizes. Sobre isto,
Pellitteri se manifesta de uma forma muito contundente afirmando que “Fazer o
cliente se sentir melhor alterando o seu humor para que ele se sinta ‘feliz’ pode,
realmente, ser superficial e ineficaz” (2009, p. 33).
Nesta mesma direção se manifesta o casal Aldridge, discutindo a questão
das emoções negativas em musicoterapia. Para eles, “as emoções negativas
como a ansiedade podem ser evocadas pela música (uma emoção estética), mas
têm que ser distinguidas da ansiedade causada por situações na vida real” (2008,
p. 39). E, utilizando as palavras de Levinson declaram que “Uma resposta
emocional negativa à música é desejável porque conduz à saúde mental; é
seguro” (p. 39).
Aqui parece pertinente referir-me ao que escrevi sobre utilizar músicas, ou
experiências musicais previsíveis, como a re-criação musical, para pacientes em
risco emocional como mães de bebês prematuros, pela imprevisibilidade da
situação destes bebês, ou seja, a música previsível para trazer conforto e
acolhimento a estas mães (Barcellos, 2004a). Por outro lado, utilizar músicas
imprevisíveis, musicalmente falando, ou experiências musicais que carreguem
em seu bojo a imprevisibilidade musical como a improvisação e a composição,
para pacientes com enfermidades crônicas como a doença renal crônica, para que
eles possam se lançar numa atividade de imprevisibilidade, na música, sem
riscos e com segurança, seria recomendável (Barcellos, 2010a). Mas, não se
deve esquecer “as novas avenida musicais” de Collin Lee!
Breve Discussão
Para alimentar esta discussão valho-me de uma situação relatada por uma
grande amiga, embora sabendo que os cânones de redação de trabalhos
científicos não considerem esta conduta adequada para um item de discussão.
Maria, como será chamada, tem uma formação pianística, mestrado e
doutorado em música, o que nos indica que se trata de pessoa que tem razoável
compreensão da questão que está sendo aqui abordada: o significado da
música. Transita pela musicoterapia e até discute algumas questões desde a sua
formação em música — como conhecedora da Teoria da Música —, e a partir da
proximidade que tem com alguns musicoterapeutas.
Em um determinado momento de sua vida, Maria precisou se submeter a
um tratamento de quimioterapia. Orientada pelo médico que a tratou que a
primeira sessão poderia se estender mais do que o previsto, dependendo da
resposta do seu organismo, Maria se preparou cuidadosamente. Na véspera do
dia marcado para a primeira sessão, Maria escolheu a comida e bebida a serem
levadas, conforme a orientação do médico.
Mas, a partir da informação que a sessão poderia ser longa, Maria pensou
que talvez devesse levar também algumas músicas de sua preferência, como
companhia. Na verdade, escolheu aquelas que mais haviam lhe acompanhado
pela vida afora: com significados, porque havia tocado, ou por outros motivos.
Assim, no dia marcado para a primeira sessão, Maria levava consigo comida
para matar a fome do corpo e da alma, para minimamente suprir as
necessidades físicas e emocionais.
No dia da sessão, depois de terminados os primeiros procedimentos e
quando os enfermeiros se afastaram, Maria pegou seu ‘walkman’ e escolheu
cuidadosamente um dos CDs. Logo que a música começou, Maria se sentiu
estranha e não conseguiu ouvir nem a primeira peça musical. Imediatamente
desligou o ‘walkman’ e guardou tudo, sem ouvir nada, mesmo sem saber por que
não queria ouvir. Quatro horas depois de começada a quimio, Maria teve um
episódio alérgico que fez com que a sessão a mantivesse no hospital por oito
longas horas. Ainda assim, Maria não quis ouvir música e relatou que não sabia
responder sobre o que se passou com ela para não querer escutar nada.
Muito tempo depois, voltei a conversar com Maria sobre esse episódio. Na
sua narrativa, Maria explicou que só o distanciamento posterior possibilitou
que ela entendesse o ocorrido. Embora Maria não tivesse consciência no
momento do acontecimento, um tempo depois relatou que só então pôde
perceber que a música ouvida durante a sessão de quimio ficaria
inexoravelmente ligada a um momento que trazia em si uma emoção negativa,
ou seja, carregaria um significado negativo, que ela atribuiria ao momento no
qual a música estaria presente.
Só agora, relatou Maria, podia perceber que queria ‘preservar’ a sua
música preferida e com significado, e por isso carregada de emoções positivas,
resultando em um significado positivo, por ela atribuído.
Maria ficou curada e ainda hoje escuta suas músicas preferidas que têm
para ela um significado positivo, que não foram ressignificadas no momento da
quimio para um significado negativo, mantendo o significado positivo que
sempre tiveram. Essa narrativa emocionada de Maria, e a afirmação de que
suas músicas que tinham um significado positivo tiveram esse significado
preservado, levaram-me a levantar algumas questões que ainda não vi
discutidas na literatura de musicoterapia:
Considerações finais
Assim, entendo que a música, quando bem utilizada, é um meio
absolutamente eficaz para ressignificar fatos, situações ou relações, e utilizo o
que a socióloga britânica Tia DeNora, que tem uma estreita ligação com a
musicoterapia249, afirma: “uma das metáforas mais comuns para a experiência
musical na cultura Ocidental pós-século XIX é a metáfora de ‘transporte’, no
sentido em que a música pode nos carregar de um lugar (emocional) a outro”
(2000, p. 7). Essa afirmação de De Nora refere-se à ressignificação de situações
negativas para positivas. No entanto, a narrativa de Maria traz evidências de que
o oposto também é possível o que, a meu ver, apontaria para uma situação de
“iatrogenia musical”.
E eu acrescentaria que, ainda através da música, os pacientes podem, além
de expressar, também atualizar e/ou ressignificar conteúdos, que deveriam ser
sem riscos, cabendo ao musicoterapeuta entender qual o momento, com que
música, enfim, em que situação isto aconteceria. Por isso, a necessidade da
formação do musicoterapeuta e do conhecimento musical.
Concordo com Fiorini que considera que a criatividade é “o coração da
clínica” (1995, p. 20) e que há que se levar os pacientes à criação de um novo
discurso, organizador de “novas tramas de sentido” (p. 20), o que, certamente,
pode ser possibilitado pela natureza polissêmica da música e pelas possibilidades
da utilização de várias técnicas além da audição e recriação musicais: a
improvisação e composição musicais!
Sobre A Técnica Provocativa Musical em
Musicoterapia.
SOBRE A TÉCNICA PROVOCATIVA MUSICAL EM
MUSICOTERAPIA.
Introdução
Iniciei a prática clínica de musicoterapia em 1973, na Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação – ABBR, ainda como aluna/estagiária.
Embora essa instituição trate especialmente de problemas motores advindos de
enfermidades neurológicas, acidentes vasculares cerebrais ou traumas
raquimedulares, à época era comum se receber crianças com o hoje denominado
Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Sabe-se que a dificuldade de comunicação com essas crianças mobiliza
profundamente os terapeutas que com elas trabalham, principalmente os que
começam a sua caminhada profissional.
À época, as técnicas de audição, recriação, improvisação e composição já
eram por nós utilizadas, pois já tinham sido apresentadas pelas professoras de
musicoterapia Doris Hoyer de Carvalho e Gabriele Souza e Silva, e já estavam
descritas no Tratado de Musicoterapia de Thayer y Gaston (1968)250, só sendo
denominadas por Bruscia, em 1991251.
No entanto, era necessário buscar novos caminhos para tentar capturar os
pacientes autistas e engajá-los ou comprometê-los na atividade de “fazer
música”, a fim de facilitar a comunicação e tentar a construção do vínculo,
aspecto que, em se tratando de autismo, constitui-se como o centro do problema
e essencial para o desenvolvimento do processo terapêutico. Especialmente com
pacientes mais graves era fundamental a criatividade para se conseguir, às vezes,
uma pequena resposta como um gesto, um olhar ou um leve sorriso. Vinda de
um autista clássico252, qualquer manifestação era considerada importante.
Nessa busca acabei abrindo uma nova avenida musical253, que foi sendo
utilizada com certa frequência, por perceber que esta me levava a obter
respostas, e mais rapidamente. Como tenho registros escritos de todas as sessões,
de todos os pacientes que atendi desde quando era estagiária, voltei a esse
material para melhor estudar o tema. Revisitando esses relatórios percebi que há
uma recorrência na utilização dessa nova avenida e que, à medida que vão
aparecendo os resultados, surge uma intenção no seu uso, mesmo que ainda sem
uma denominação específica, uma explicação ou fundamentação da mesma,
aspectos responsáveis por ela só ter sido apresentada 29 anos depois de ter
começado a ser utilizada.
Só em 2005 é que consegui compreender por que esta nova avenida trazia
resultados e como este emprego poderia ser fundamentado, quando fui aluna da
disciplina de Música e Semiologia, ministrada pelo musicólogo francês Jean-
Jacques Nattiez254.
Sobre técnica
Técnica é um conjunto de processos e recursos práticos de que se serve
uma especialidade. Em musicoterapia é como o musicoterapeuta utiliza a parte
material, prática, para trabalhar com o paciente, interagindo ou intervindo, na
prática clínica e/ou terapêutica255.
O que aqui é denominado técnica é, para Bruscia, método. Assim, os
métodos por ele descritos, audição, recriação, improvisação e composição
musical, na verdade entendo como técnicas e se deve deixar claro que são
sempre utilizadas pelo musicoterapeuta.
Mas, para apresentar algo novo, considerei que devia fazer um estudo do
que já estava publicado, verificando denominações e formas de atuar, para
conferir se esta nova avenida que eu vinha utilizando era original. Assim, antes
de denominar essa técnica recorri ao estudo que Bruscia faz no Improvisational
Models of Music Therapy (Modelos de Improvisação de Musicoterapia), ou seja,
uma taxonomia de 64 técnicas256, agrupadas em nove grandes grupos, abrindo
cada um deles em várias possibilidades, totalizando as 64 técnicas. Contudo, no
referido texto o autor não se refere a nada relacionado a esse novo caminho que
estou propondo, nem é apresentada nem uma denominação próxima à por mim
escolhida. Os grupos aí apresentados são:
1. Técnicas de Empatia
2. Técnicas Estruturantes
3. Técnicas de Intimidade
4. Técnicas para Eliciamento (mobilização)
5. Técnicas de Redirecionamento
6. Técnicas de Procedimento
7. Técnicas Referenciais
8. Técnicas de Exploração Emocional
9. Técnicas de Discussão.
Considero que a cena clínica a seguir pode ilustrar esta segunda forma.
Cena clínica 25
A paciente Maria, com 15 anos de idade foi encaminhada à ABBR por ser
portadora de uma forma leve de Paralisia Cerebral266, ficando como sequela uma
hemiparesia direita267 e uma inco ordenação motora nos quatro membros. O
atendimento foi iniciado em 18/5/79, na ABBR e finalizado em 12/5/81, no
consultório onde continuei a exercer a prática clínica, totalizando 91 sessões.
Um dos objetivos do tratamento era melhorar a sua incoordenação motora.
Para isto eram feitas improvisações inicialmente na flauta doce e posteriormente
no piano, seu instrumento de preferência. Essas improvisações eram livres ou
orientadas com propostas feitas pela musicoterapeuta ou, mesmo, a partir de
sugestões e escolhas da paciente. Todavia, o material trazido pela paciente tinha
sempre uma organização, ou seja, embora a paciente não soubesse nada de
música parecia escolher cuidadosamente os sons que fazia. Cabe enfatizar que
era uma paciente de 15 anos.
O exemplo aqui apresentado foi gravado em fita K7, na 40a sessão, em
8/10/79. Aqui a proposta é da musicoterapeuta que sugere: “mão esquerda, teclas
brancas”, que significa que a paciente tocará só com a mão esquerda, sempre nas
teclas brancas, e será acompanhada pela musicoterapeuta. A paciente está no
agudo, improvisando melodicamente, só com a mão esquerda, enquanto a
musicoterapeuta improvisa a harmonia.
Esta improvisação tem uma introdução “à vontade”, onde ainda não
aparece um compasso bem estabelecido e se percebe que a paciente está
buscando um caminho. A musicoterapeuta ainda não toca, aparentemente
aguardando para saber como interagir musicalmente. A duração total é de 3’49”,
com 84 compassos. Aqui só serão grafados os últimos cinco compassos para
ilustrar o fechamento ou a completude melódica feita pela paciente.
A partir destes estudos, pode-se concluir que assim como uma cadência
perfeita provoca uma “forte expectativa”, num contexto cultural como o nosso, e
uma finalização I-IV uma “expectativa fraca”, uma finalização V-I na 3ª inversão
poderia provocar uma “expectativa fraca” de fechamento, pelo acorde não estar
no Estado Fundamental. Ou seja, com o acorde no Estado Fundamental a
completude seria mais eficaz, mais viva e potente.
Poder-se-ia pensar que o que explicaria essa atitude de uma menina de 15
anos seria a sua inserção na cultura, já que a mesma não tinha nenhuma
formação musical.
Cena clínica 26
A provocação através da harmonia e a completude harmônica
Dora, uma paciente com 39 anos, vítima de um Acidente Vascular
Encefálico – AVE270, teve como sequelas uma hemiplegia direita e uma afasia
sensorial causadas por hemorragia cerebral em 8/9/1975. A paciente foi
internada na ABBR, carregada em maca, sem comunicabilidade em 10/10/1975.
Seu estado oscilava exclusivamente entre vigília e sonolência. Foi encaminhada
à musicoterapia com prescrição médica de ser atendida diariamente, o que não
era possível porque eu trabalhava só três dias por semana na instituição.
Começou o tratamento em musicoterapia em 22/3/1976. Tinha formação musical
anterior tendo como instrumento o piano, sendo que quando foi encaminhada à
musicoterapia ninguém tinha esta informação e seu encaminhamento à
musicoterapia se deveu ao fato de a fisioterapeuta ter percebido que ela só
cooperava quando essa profissional cantava.
Só depois de três sessões na musicoterapia, o filho de Dora veio à
instituição para ser entrevistado, ocasião em que fui informada que a paciente
tinha estudado piano e tocado música erudita e popular. Decidi, então, adaptar
o teste que o médico do compositor Maurice Ravel271, auxiliado por um aluno
de música deste, utilizara para verificar o que estava preservado e o que o
compositor perdera musicalmente. A partir da sessão sete comecei a testar o
reconhecimento de melodias, primeiro aspecto do teste272.
Gradativamente, Dora foi executando no piano músicas que faziam parte
da sua história sonora e que, provavelmente, tinham significado para ela,
estando dentre estas, a melodia da canção “É meu destino amar”273. Ela tocava
a melodia com a mão esquerda por ter uma hemiplegia direita que a
impossibilitava de tocar, e eu sempre fazia a harmonia, finalizando com a
cadência perfeita – V – I, que a melodia sugere, como grafado abaixo:
Na sessão 35, realizada em 11/8/76, e também gravada em K7, proponho
que Dora toque novamente “É meu destino amar”. Imediatamente ela começa a
tocar a música em Dó M, finalizando da seguinte forma:
Cena clínica 27
A provocação através da canção recriada
Numa fita K7 onde sessões de vários pacientes estão gravadas, com a data
de 1976, encontrei um exemplo da forma inicial como empreguei esta técnica. O
paciente não está identificado, mas percebe-se que é um menino pela forma
como a ele me refiro e parece tratar-se de uma criança pequena, pela maneira
como canto. Sem nenhum acompanhamento com instrumentos, ouve-se a minha
voz e palmas em alguns momentos. A canção cantada por mim é Parabéns pra
Você278, escolha que deve ter sido feita certamente por ser uma canção cantada
desde que a criança completa um aninho e em todas as festas de aniversário
sendo, assim, de conhecimento geral. De qualquer maneira, percebe-se que
canto várias vezes, da forma abaixo:
e depois desta última interrupção ouvem-se três batidas que parecem ser
em um instrumento de percussão mas que são seguidas por um comentário meu
que diz: Chi! Ele descobriu o violão! Que bom! Percebese, claramente, que as
batidas do paciente no violão fazem a completude do que estava interrompido,
embora com uma batida a mais do que deveria ser para completar a palavra
“vida”.
É importante observar que, neste exemplo, a interrupção é feita na letra e a
completude com ritmo, o que pode acontecer principalmente quando o paciente
não tem condições de completar na mesma modalidade, no caso, na fala ou,
melhor dizendo, no canto.
Cena clínica 8
Provocação através da letra da canção improvisada
Marcos era um paciente autista clássico, com exames complementares
normais, motricidade normal e quase nenhuma comunicação através do olhar e
verbal. Seu atendimento em musicoterapia teve a duração de cinco anos, com
duas sessões semanais de 45 min., e durante esse período seu horário foi
modificado algumas vezes, por vários motivos. Assim, durante um tempo,
Marcos foi atendido das 17h30min. às 18h15min., devendo-se observar que a
esta hora já está escuro no ‘inverno’ do Rio de Janeiro.
Percebi que quando começava a escurecer, Marcos se colocava à frente da
janela que dava para a rua e ficava olhando para o céu. Pensando que ele
poderia assim proceder por medo do escuro, improvisei uma música que passou
a ser cantada quase todas as vezes que M. ia para a janela, transcrita abaixo:
Quando Marcos voltava à janela, eu cantava a música. Decidi, então,
engajar Marcos na já não mais improvisação pois, como se pode ver, a pequena
canção já estava até grafada e era algo já conhecido por ele, pela recorrência
na utilização. Para isto, utilizei a técnica provocativa, interrompendo a
execução após a frase: “quem é quem tem medo”... No entanto, fui surpreendida
pelas respostas de Marcos. Ao invés de ele repetir o que eu vinha cantando, ele
passou a trazer “medos” diferentes daquele que eu tinha cantado inicialmente,
expressando, certamente, seus diferentes medos como da ‘poliça’ e ‘de cara
feia’. Percebi, então, que a interrupção poderia ter mais uma possibilidade: a de
provocar e permitir a expressão de conteúdos internos.
Considerações finais
Refletindo sobre a utilização da técnica e analisando as diferentes formas
de seu emprego entendo que esta pode ser utilizada com qualquer tipo de
paciente que tenha condições de cantar ou tocar, pois acredito que ela pode ser
provocativa de:
comunicação/interação
novas conexões neurais
abertura de novos caminhos de expressão de conteúdos internos e,
resgate da memória,
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