Você está na página 1de 266

HISTÓRIA DO TEMPO

PRESENTE NAS AMÉRICAS:


POLÍTICA, MOVIMENTOS
SOCIAIS E EDUCAÇÃO
Organizadores
Eduardo Scheidt
Igor Lapsky
Rafael Araújo
RECIFE, 2020
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique Falcão
VICE-REITORA Profa. Dra. Socorro Cavalcanti

EDITORA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – EDUPE


CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Ademir Macedo do Nascimento
Profa. Dra. Ana Célia Oliveira dos Santos
Prof. Dr. André Luis da Mota Vilela
Prof. Dr. Belmiro do Egito
Profa. Dra. Danielle Christine Moura dos Santos
Prof. Dr. Emanoel Francisco Spósito Barreiros
Profa. Dra. Emilia Rahnemay Kohlman Rabbani
Prof. Dr. José Jacinto dos Santos Filho
Profa. Dra. Maria Luciana de Almeida
Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos
Prof. Dr. Rodrigo Cappato de Araújo
Profa. Dra. Rosangela Estevão Alves Falcão
Profa. Dra. Sandra Simone Moraes de Araújo
Profa. Dra. Silvânia Núbia Chagas
Profa. Dra. Sinara Mônica Vitalino de Almeida
Profa. Dra. Virgínia Pereira da Silva de Ávila
Prof. Dr. Vladimir da Mota Silveira Filho
Prof. Dr. Waldemar Brandão Neto

GERENTE CIENTÍFICO Prof. Dr. Karl Schurster


COORDENADOR Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura
PROJETO GRÁFICO Aldo Barros e Silva Filho

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU)

H673
História do Tempo Presente nas Américas : política, movimentos
sociais e educação [recurso eletrônico] / Eduardo Scheidt, Igor
Lapsky e Rafael Araújo (Organizadores). – Recife : Edupe, 2020.
266 p.:il. E’book PDF.
Modo de acesso: world wide web: http://www.edupe.com.br
ISBN: 978-65-86413-28-1
1. Tempo presente. 2. América Latina. 3. Política. 4. Movimen-
tos sociais. 5. Educação. I. Scheidt, Eduardo. II. Lapsky, Igor. III.
Araújo, Rafael. IV. Título.
CDU: 98:316
Elaborado por Neide M. J. Zaninelli - CRB-9/ 884
SUMÁRIO
7 APRESENTAÇÃO
Organizadores

13 O TRABALHO DE MULHERES NOS SERINGAIS APÓS A SEGUNDA


GUERRA MUNDIAL NO AMAZONAS
Agda Lima Brito

35 “SATANÁS NÃO PREGA MAIS QUARESMA NO BRASIL”: O APOIO DE


SETORES CIVIS E A RESISTÊNCIA À DITADURA CIVIL-MILITAR DE
1964-1985 EM ILHEUS, BA
Luiz Henrique dos Santos Blume
Maíza Ferreira dos Santos

63 MEMÓRIA E TEMPO PRESENTE:


MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE (MEB)
Sara Oliveira Farias

87 DISCURSO E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO IMPEACHMENT DE


DILMA ROUSSEFF
Ivana Veloso de Almeida

115 IMAGENS DE CUBA REVOLUCIONÁRIA: UMA DISCUSSÃO SOBRE A


CINEMATOGRAFIA DE TOMÁS GUTIÉRREZ ALEA
Igor Lapsky

135 É POSSÍVEL AFIRMAR QUE HOUVE SOCIALISMO NA VENEZUELA


CHAVISTA? UM ESTUDO DE CASO SOBRE COMO CONCEITUAR
ECONOMIAS CONTEMPORÂNEAS
Lucas Lemos Walmrath
Wallace de Moraes

161 PDVSA “AD HOC”: VOLVIENDO A LAS VIEJAS MAÑAS


Carlos Mendoza Pottellá

167 OS GOVERNOS DE SALVADOR ALLENDE (1970-1973) NO CHILE E


HUGO CHÁVEZ (1999-2012) NA VENEZUELA. TECENDO ALGUMAS
COMPARAÇÕES 164
Eduardo Scheidt

195 INSURREIÇÕES POPULARES NA AMÉRICA LATINA NO TEMPO


PRESENTE: A BOLÍVIA ENTRE 2000 E 2005 191
Rafael Araújo

217 DEMOCRACIA E NEOLIBERALISMO NO MÉXICO E BRASIL:


AS CRISES DO FINAL DO SÉCULO XX 213
Ricardo Neves Streich

245 EMBATES ENTRE A UNIÃO, OS ESTADOS E O MOVIMENTO NEGRO NA


GUERRA À POBREZA DOS ESTADOS UNIDOS
(1964 – 1968) 240
Barbara Maria de Albuquerque Mitchell
APRESENTAÇÃO
DEMOCRACIA, AUTORITARISMOS E
MOVIMENTOS SOCIAIS NAS AMÉRICAS
NO TEMPO PRESENTE
O atual cenário das Américas é demarcado por profundas tensões
sociais e políticas, decorrentes de uma crescente crise econômica nos
últimos anos, agravada pela crise sanitária desde o início da pandemia de
Covid-19. Protestos sociais em diversos países latino-americanos, rebelião
popular no Chile e a mais recente onda de protestos nos EUA contra o seu
racismo estrutural, são alguns desdobramentos deste contexto de crise. O
convulsionado cenário da região, em parte, tem como uma das suas causas
fundamentais o recente fortalecimento das direitas no continente, que vêm
ocupando a agenda política, ameaçando conquistas dos movimentos sociais
e acelerando a adoção do modelo neoliberal.
Os historiadores dedicados aos objetos do Tempo Presente de-
bruçam-se na compreensão do mundo contemporâneo, a partir de uma
perspectiva interdisciplinar, mantendo a tradição dos Annales. Os regimes
ditatoriais dos anos de 1960 e 1970 no Cone Sul deixaram um legado de
violência e de autoritarismo, que são mazelas ainda presentes nas sociedades
sul-americanas. Por outro lado, a questão democrática vem adquirindo
relevância no subcontinente latino-americano, em especial após o fim das
ditaduras militares ao longo da década de 1980, com o processo de abertura
política, chamado de redemocratização. Desde o final da década de 1970
surgiram movimentos sociais favoráveis à democracia em meio às crises dos
regimes militares. Os processos de redemocratização instituíram regimes
de democracia constitucional, com eleições de representantes, liberdades
de organização partidária e de expressão política e fim das práticas de
terrorismo de Estado. Ao longo da década de 1990, a aplicação da agenda
neoliberal em boa parte dos países das Américas proporcionou aumentos
da pobreza e das desigualdades sociais, bem como crise dos recentes regimes
democráticos. Em meio a esse processo, surgiram vários movimentos sociais,
desde aqueles críticos ao neoliberalismo e muitos deles reivindicando
ampliações e reformulações das práticas democráticas até movimentos de

7
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

direita radical que atentam contra a democracia representativa moderna.


Alguns exemplos desses movimentos foram as rebeliões indígenas no Equador
e na Bolívia, o levante dos neozapatiastas no México, as mobilizações dos
sem-terra no Brasil, os piqueteros na Argentina, o movimento Occupy Wall
Street nos EUA, entre outros.
A partir do final da década de 1990 e ao longo dos anos 2000 houve
a eleição de vários governos de esquerda e de centro-esquerda na América
Latina. Esses governos foram eleitos com o compromisso de deter a agenda
neoliberal e implementar novas políticas econômicas e sociais que viessem
a distribuir renda e promover a inclusão social das camadas populares
historicamente excluídas. Em alguns casos, essas gestões também colocaram
em sua agenda a questão democrática, buscando transformar e ampliar a
democracia representativa introduzindo mecanismos de democracia par-
ticipativa e protagônica. A década atual, entretanto, está sendo demarcada
pela crise das experiências de e a ascensão das direitas na América Latina,
no Caribe e nos EUA, incluindo eleições de presidentes de extrema-direita,
como Iván Duque na Colômbia, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro
no Brasil. Até mesmo a democracia está em risco, com o ressurgimento de
golpes de Estado, agora como neogolpes ou golpes de novo tipo (Honduras
em 2009, Paraguai em 2012, Brasil em 2016 e Bolívia em 2019). Esses neogol-
pes, as eleições de presidentes de extrema-direita e o recrudescimento das
repressões contra os movimentos sociais são exemplos de perigos de novos
autoritarismos no continente.
Esses processos históricos vêm suscitando um interesse crescente entre
os pesquisadores sobre História do mundo contemporâneo, especialmente
com a consolidação e o crescimento da História do Tempo Presente. Os
capítulos aqui reunidos tratam de diferentes temáticas em distintos países
e/ou espaços regionais das Américas em torno de questões democráticas,
de autoritarismos e de movimentos sociais nas últimas décadas.
No artigo “O trabalho de mulheres nos seringais após a Segunda
Guerra Mundial no Amazonas”, Agda Lima Brito estuda o trabalho femi-
nino e o seu cotidiano nas atividades seringueiras ocorridas no estado do
Amazonas, entre 1950 e 1970. A autora almejou, ainda, a compreensão dos
impactos da Segunda Guerra Mundial na região norte. Em razão disso, ela

8
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

refletiu sobre a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da


Amazônia (SPVEA) e as suas influências regionais.
Luiz Henrique Blume e Maíza dos Santos, no artigo “‘Satanás não
prega mais Quaresma no Brasil’: O apoio de setores civis e a resistência à
ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ihéus, BA”, analisaram a consolidação
de memórias hegemônicas sobre a cidade de Ilhéus durante a ditadura
civil-militar, partindo da hipótese de que houve repressão e resistência
na cidade, assim como cooperação com o regime de determinados atores
da sociedade civil. Os autores desenvolvem o debate sobre memórias em
disputa, afirmando que a memória hegemônica deve ser analisada critica-
mente, permitindo a escrita de “outras histórias de resistência e luta pelas
liberdades democráticas”.
Sara Farias, em “Memória e Tempo Presente: Movimento de Educação
de Base (MEB), analisa a atuação do MEB na cidade de Amargosa (BA) nos
anos 1960. A autora argumenta que o movimento é um dos mais significativos
da Igreja, contribuindo para a luta contra a desigualdade durante a ditadura.
Em “Discurso e representações sociais no Impeachment de Dilma
Rousseff”, Ivana Almeida faz uma análise dos discursos desenvolvidos nas
redes sociais durante o início do segundo governo de Dilma Rousseff. A
autora realiza um grande debate teórico sobre discurso e representação,
para explicar as postagens de pessoas nas reportagens do jorna Folha de São
Paulo em 2015. São destacadas questões como o teor machista de diversas
mensagens, fazendo com que seja desenvolvido no texto um amplo debate
sobre gênero e a política brasileira no período analisado.
O cinema cubano foi analisado por Igor Lapsky no texto “Imagens
de Cuba Revolucionária: uma discussão sobre a cinematografia de Tomás
Gutiérrez Alea”. O artigo tem como objetivo analisar longas-metragens
dirigidas por Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) produzidos após a Revolução
Cubana até os anos 1990. O autor relacionou as produções ao contexto de
cada período e ao funcionamento do Instituto Cubano del Arte e Industria
Cinematográficos (ICAIC).
Lucas Lemos Walmrath e Wallace de Moraes fazem uma reflexão
teórica no capítulo “É possível afirmar que houve socialismo na Venezuela
chavista? Um estudo de caso sobre como conceituar economias contempo-

9
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

râneas”. Os autores partem do questionamento se houve ou não socialismo


na Venezuela durante o governo de Hugo Chávez. Primeiramente os autores
partem de uma conceituação de socialismo que definem o sistema sob vários
aspectos, como um amplo predomínio de propriedade pública ou estatal
dos meios de produção, planejamento econômico, produção motivada por
distribuição da riqueza, entre outros. Ao analisar os dados econômicos da
Venezuela durante o governo Chavista, Walmrath e Moraes demonstram
que a maior parte da produção econômica continuou nas mãos de empresas
privadas e nem sequer houve aumento significativo da presença de empresas
estatais. Os autores concluem que não houve socialismo no país e propõem
o uso do conceito de “plutocracia social-democrata de las calles”, afirmando
que as programas sociais impulsionados pelo governo seriam de cunho
social-democrata (pois não romperam com o capitalismo) e o chavismo se
amparava na mobilização e politização das camadas populares.
O economista venezuelano Carlos Mendoza Pottellá trata da questão
da exploração de petróleo em seu país no capítulo “PDVSA ‘Ad Hoc’:
Volviendo a las viejas mañas”. O autor alerta para o risco de privatização
da estatal venezuelana no cenário de crise dramática enfrentada pelo país.
Caso o projeto vingue, significará um duro retrocesso na soberania do país,
que tem na exportação do hidrocarboneto sua principal fonte de recursos.
Em “Os governos de Salvador Allende (1970-1973) no Chile e Hugo
Chávez (1999-2012) na Venezuela. Tecendo algumas comparações”, Eduardo
Scheidt refletiu sobre essas duas experiências históricas. Utilizando a
metodologia da história comparada, o autor analisou a como a democracia
e institucionalidade foi utilizada pelos dois líderes para o início de gestões
que se intencionaram radicais transformações sócio-políticas e econômicas,
de teor revolucionário. Ele apresenta, ainda, pertinentes chaves explicativas
para o conhecimento desses dois processos que, definitivamente, marcaram
a história latino-americana nos séculos XX e XXI.
O capítulo “Insurreições populares na América Latina no tempo
presente: a Bolívia entre 2000 e 2005”, de Rafael Araujo, analisa a ascensão
de movimentos sociais e o estopim de levantes populares nos anos que
antecederem a eleição de Evo Morales como presidente do país. O autor
demonstra as importantes mobilizações sociais, principalmente de populações
indígenas, contra a crise econômica e os projetos de privatização das políticas

10
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

neoliberais. Destaca também as insurreições populares, como a “Guerra da


água” e a “Guerra do Gás”. Araujo explica como esse conjunto de mobilizações
foi importante para politizar as camadas populares, proporcionando o
fortalecimento do Movimento Al Socialismo (MAS) e da liderança de Evo
Morales até sua eleição pelo voto popular com um programa que prometia
uma “revolução democrática e cultural” no país.
Em “Democracia e neoliberalismo no México e Brasil: as crises
do final do século XX”, Ricardo Neves Streich avaliou a combinação dos
impactos socioeconômicos decorrentes do neoliberalismo com as histórias
políticas dos dois maiores países latino-americanos no final do século XX.
O autor buscou, com isso, compreender as vitórias eleitorais de Vicente
Fox, Partido Acción Nacional (PAN), em 2000, e de Luiz Inácio Lula da
Silva, Partido dos Trabalhadores (PT), em 2002, no Brasil.
Barbara Maria de Albuquerque Mitchell no capítulo “Embates
entre a união, os estados e o movimento negro na guerra à pobreza dos
Estados Unidos (1964-1968)” avalia a guerra à pobreza durante a gestão do
presidente Lyndon Johnson. As tensões e conflitos entre o poder público
e o movimento negro, sobretudo no tocante aos direitos civis, permeiam
a argumentação da autora. A tentativa dessas entidades em influenciarem
a elaboração dos programas sociais também aparecem no capítulo que
apresenta, à luz da história, a questão racial norte-americana. Em razão da
nova onda de manifestações nos Estados Unidos e no Mundo, desencadeada
pelo assassinato de George Floyd, a discussão dessa temática torna-se
fundamental para os historiadores preocupados com os acontecimentos,
que mais uma vez, influenciam fortemente o nosso presente.
O presente livro pretende contribuir para com os debates e as
reflexões acerca das questões esboçadas acima. Boa leitura!!!

Os organizadores.

11
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

12
O TRABALHO DE MULHERES NOS SERINGAIS
APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NO
AMAZONAS
Agda Lima Brito1

Introdução
Pretendemos desvendar o mundo do trabalho e cotidiano, dentro
dos seringais do Amazonas entre 1950 e 1970, entendendo que esse período
abrange mudanças políticas para região Norte, como por exemplo, a
Implementação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica
da Amazônia – SPVEA. Nosso objetivo é investigar o trabalho familiar nos
seringais, onde homens, mulheres e crianças trabalharam em uma serie de
atividades buscando a sobrevivência no Amazonas, entendendo que dentro
desses planos de recuperação os trabalhadores passaram por mudanças no
ambiente onde moravam, os seringais, as matas.
Ressaltando que daremos maior atenção ao trabalho feminino,
nos preocupando com as dificuldades que essas trabalhadoras enfrentam
dentro do espaço de trabalho citado. Para isso faremos uso principalmente
de fontes orais tendo em vista a dificuldade de encontrar fontes que tratem
do trabalho feminino dentro das matas amazônicas, o que não exclui o uso
de outras fontes, como os Relatórios de Comercio do Amazonas, O Plano de
Valorização da Amazônia, entre outras.
Dito isso, sabemos que a atividade feminina sofrera uma menor
valorização, ainda que as mulheres que eram nascidas na região ou imigrantes nordestinas
tenham uma rotina de trabalho extremamente cansativa trabalhando
nos seringais, conforme apontam as fontes orais, entrevistas de homens e
mulheres que trabalharam nos seringais nesse período. O serviço feminino
acabava tendo um olhar desvalorizado. Por isso decidimos ter como ponto
principal o trabalho feminino nos seringais.
Vale destacar que essas entrevistas foram colhidas em pesquisa de
campo. Na ocasião, essas pessoas não moravam mais nos seringais devido
à idade avançada. Elas optaram por sair das matas e irem para municípios

1 Doutoranda do PPGHS – UERJ, bolsista FAPERJ.

13
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

do Amazonas, como Manaus, Manacapuru, Anori e Codajás. Conseguimos


reunir um montante de 21 entrevistas, sendo a maioria de mulheres. No
entanto, apenas algumas foram usadas para nesse artigo. Passada a Segunda
Guerra Mundial, outros cultivos vão ter maior evidência além da borracha.
Na realidade, no Relatório da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas
19432, já encontramos uma preocupação com o plantio de certos gêneros,
como coco, castanha, pau rosa, entre outros, a fim de abastecer a cidade
de Manaus.
Em contrapartida, segundo as fontes orais, existia uma pressão por
parte dos patrões para que somente a coleta da borracha fosse realizada e
as famílias que insistiam em fazer roçados eram consideradas preguiçosas,
“seringueiros ruins” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 60).
Esses trabalhadores iram resistir a esse sistema de trabalho, em que
principalmente as mulheres iram ser responsáveis pela produção de outros
gêneros alimentícios, a fim de evitar consumir nos barracões. As famílias
que trabalhavam em outras atividades, como por exemplo, os cultivos da
roça, acabaram sofrendo maior repressão por parte dos patrões. Esse tipo
de atitude perdurou até o Pós Segunda Guerra Mundial, pois conforme a
extração da borracha entra em crise, ocorre um maior empenho do serin-
galista em perpetuar esse sistema de dívidas para manter o trabalhador no
local onde trabalhavam. Nos Relatórios do Diretório do Comercio do Amazonas
de 19503, percebemos como os donos de seringais enxergam na extração da
borracha a solução para a crise da região.

O Plano de Recuperação Econômica


para a Região da Amazônia
O governo visava criar uma política de recuperação para a região da
Amazônia discutida desde 1946, conforme aponta Carlos Eugenio Renha:
Proposto pelo deputado federal pelo Amazonas Leopoldo
Peres, o artigo 199 da Constituição Federal de 1946 criou

2 Relatório da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas. Ano social 1942. Rio de


Janeiro, p. s/n –. Arquivo da Biblioteca Nacional do Brasil.
3 Relatório da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas. Ano social 1950. Rio de
Janeiro, p. s/n – Arquivo da Biblioteca Nacional do Brasil.

14
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Sucinto,


o artigo apenas definia que a União plicasse quantia não
inferior a três por cento da sua renda tributária no desen-
volvimento da área amazônica por, no mínimo, vinte anos
consecutivos. Além da União, os Estados e os Territórios
da região amazônica, bem como os respectivos Municípios,
também estavam obrigados a reservar para o mesmo fim,
anualmente, três por cento das suas rendas tributárias”
(RENHA, 2017, p. 46).

No entanto, somente em 1953, foi criada a lei nº1. 806. O Plano de


Valorização Econômica da Amazônia4, o plano visava implementar ações que
buscassem desenvolver a região Norte em diversos setores, afim de gerar
um crescimento econômico na região Norte, tendo em vista que mesma
passava por um crise após a Segunda Guerra Mundial. Destacamos o artigo
1, que resume parte do referido plano:
Art. 1º O Plano de Valorização Econômica da Amazônia,
previsto no Art. 199 da Constituição, constitui um sistema
de medidas, serviços, empreendimentos e obras, destinados
a incrementar o desenvolvimento da produção extrativa e
agrícola pecuária, mineral, industrial e o das relações de
troca, no sentido de melhores padrões sociais de vida e
bem-estar econômico das populações da região e da expan-
são da riqueza do País. 5

Para que a lei nº1. 806 fosse executada foi criado O programa de
Emergência do Planejamento da Valorização Econômica da Amazônia foi elaborado
incialmente por seis técnicos federais e nove representantes dos Estados
e Territórios, foram reservados a quantia de CRS 300.000.000,00 para ser
aplicada na Superintendência, com acréscimo de CRS 30.000.000,00 que

4 Legislação Informatizada - Lei nº 1.806, de 6 de janeiro de 1953 –Pagina Consultada em


19 de setembro de 2016. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-ja-
neiro-1953-367342- publicacaooriginal-1-pl.html.
5 Legislação Informatizada - Dados da Norma. LEI Nº 1.806, DE 6 DE JANEIRO DE
1953 - EMENTA: Dispõe sobre o Plano de Valorização Econômica da Amazônia, cria a
superintendência da sua execução e dá outras providências. Pagina Consultada em 20 de
novembro de 2016. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-janei-
ro-1953-367342- publicacaooriginal-1-pl.html.

15
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

viria da arrecadação dos Estados e Municípios da Amazônia, na proporção


de 3% da renda tributaria6.
O Plano Emergencial deveria ser passageiro e ser executado enquanto
o Plano Quinquenal era melhor elaborado pelos técnicos, desse modo às ações
na Amazônia não ficariam estagnadas. De acordo com Plano de Emergência
precisaria haver melhorias e desenvolvimento na agropecuária, transporte,
comunicações e energia, desenvolvimento cultural, recursos naturais e saúde.
No desenvolvimento agropecuário deveriam ocorrer diversas melho-
rias, tais como, fomentar as produções agrícolas, da pecuária e a sua defesa
sanitária; a mecanização da lavoura e a colonização na região, tendo em
vista que, para que as colônias agrícolas fossem criadas seria preciso investir
na imigração para povoar a extensa região da Amazônia7.
Para Arthur Reis, a situação da região era preocupante e a SPVEA
era vista como uma forma de integrar e desenvolver muito além dos moldes
anteriores, que só se sustentavam na extração da borracha e não adquiriam
novos meios de se sustentar, conforme aponta no livro do governo federal:
Essa obra de recuperação se exerce sobre uma região cujo
colapso econômico decorre não propriamente de condi-
ções particularmente hostis do meio, mas da extinção de
um ciclo econômico da borracha silvestre, das perturbações
sofridas pelo tipo de organização social e econômica que
criou e que não pode ainda adaptar-se a novas condições
econômicas, nem absorver novas técnicas de trabalho, nem
método de vida. 8

Uma vez que a venda borracha só beneficiava os seringalistas, os


donos de seringais, houve muito pouco investimento em técnicas que
buscassem melhorar a produção desse produto. Na realidade, o lucro da
extração do látex na década de 1940 foi bem menor se comparado com o
primeiro “boom da borracha”, o governo preocupava-se em tentar incentivar

6 Setor de Coordenação e Divulgação - Artigo 19 da lei n° 1.806, de 6 de Janeiro de 1953


– Superintendente Artur Cezar Ferreira Reis.
7 Ibid. p. 3.
8 Ibid. p. 4.

16
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

o plantio de outros gêneros, mas os patrões durante muitos anos insistiam


que a borracha deveria ter amparo do governo federal.
Foram vários os superintendentes que tentaram assumir a SPVEA,
essa mudança se dava devido a pressões internas e a falta de recursos financei-
ros que impediam que o projeto avançasse, além da política regional. A União
não repassava a verba acordada, os políticos de cada região a disputavam
e inexistia um plano eficiente para a sua localidade, a imagem da SPVEA
como instituição que não funcionava só aumentava, levando à sua extinção
em 1966 (RENHA, 2017, p. 136). A SPVEA esteve envolta em acusações de
mal uso de verba pública, em relatório feito na década de 1960 com nome
“Da SPVEA a Sudam”, acusam a política tanto municipal como estadual
de má administração, assim como desvio de verba, para romper com esse
modo de administrar segundo o relatório, seria necessário à criação de um
sistema eficiente e novo, para substituir a SPVEA (BATISTA, 2016, P. 102).

O Trabalho Feminino
Pensar a Amazônia como área central era tentar desenvolver aquela
região no setor agrícola para que conseguisse atender o resto do país, não
só com alimentos, mas também com matérias primas. Para isso, deveriam
existir investimentos na região, por meio de uma maior intervenção da
União, que impulsionasse o crescimento não só do Norte do Brasil como
também no Nordeste conforme ressalta Celso Furtado (1976).
Importante ressaltar que entendemos os seringais como um espaço
de trabalho que abrange várias atividades e não somente o lugar onde é
colhida a seringa. Nos Relatórios de Comercio do Amazonas de 1950, por
exemplo, produtos como a castanha, a farinha, juta dentre outros vão ser
amplamente tratados como um recurso de incentivo da Amazônia.
Segundo Rodolfo Coelho e Carlos José, a SPVEA não teria tido
êxito em seus planos de desenvolvimento devido a uma série de fatores
que tornavam inviáveis modernizar aquelas regiões. A falta de recursos
financeiros suficientes para isso seria um desses fatores. Durante o governo
Juscelino Kubitschek, seria realizado o planejamento da construção de
rodovias através do Planos de Metas. Para os autores, essas rodovias teriam
contribuído para o desmatamento da região, conforme aponta Rodolfo:

17
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

O principal elemento que deu condições para a ampliação


do desmatamento na região foi a construção das rodovias
Belém-Brasília (BR-010) e Brasília-Acre (BR-29, atualmen-
te BR-364). Esses dois grandes eixos rodoviários permiti-
ram a formação de muitos povoados, vilas e cidades que,
adotando como atividade econômica a agricultura e a pe-
cuária em áreas próximas a essas rodovias, culminaram no
desmatamento ao longo dos mesmos. (PRATES E BACHA,
2011, p. 608)

Além de contribuírem para o desmatamento nos arredores da-


quelas regiões, segundo Gilberto Marques (2013), o governo de Juscelino
Kubitscheck acabou favorecendo os conflitos na região da Amazônia, uma
vez que apoiaram empresários, passando títulos de terras para seus nomes,
sobretudo no Pará. Gilberto Marques fala sobre a situação dos trabalhadores:
“Enquanto na nova política se propõe o estabelecimento do capitalismo na
Amazônia (como que se, de alguma forma, ele já não estivesse presente),
o Programa de Emergência negava o assalariamento entre os camponeses
(MARQUES, 2013, p. 178)”.
Então, se por um lado, ocorriam mudanças nos investimentos na
Amazônia e nos incentivos do que seriam produzidos naquele momento,
as famílias que trabalhavam no campo possivelmente continuavam em uma
situação difícil. Além disso, a degradação do meio onde viviam causaram
tensões no meio do trabalho. Para isso, é importante analisar os serviços
que realizavam e o cotidiano dessa população na mata.
Essas mulheres que durante o período estudado trabalhavam em
vários serviços, tais como pescar, colher frutos, fabricar farinha, realizar a
coleta de látex, defumar borracha, mas principalmente realizar o serviço
de roça. Na roça estava concentrada boa parte da energia dessas mulheres,
em muitos casos acompanhadas de seus filhos, essas trabalhadoras desde
cedo começavam a realizar todos os processos que a roça precisava para que
esse roçado pudesse gerar uma boa colheita.
Essa atividade se estende por um longo período dentro do Amazonas
e são essas mulheres que ficaram a frente desse plantio, ensinando seus
filhos e em alguns casos seus maridos, a plantar nas terras amazônicas, nas
áreas de seringais onde moravam e continuaram morando por um longo

18
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

período, levando em consideração as fontes orais. O trabalho feminino


esteve presente nessas regiões, destacamos que as atividades realizadas por
mulheres estavam intimamente ligadas à sobrevivência de sua família. Dessa
forma, sua rotina girava a maior parte do tempo em torno do trabalho. As
que trabalhavam nas colocações, ao mesmo tempo em que produziam para
os seringalistas, experimentavam certa liberdade criando suas formas de
resistência, pois segundo Gerson Albuquerque:
A diferença é que no mundo em que vivem, os personagens
dessas histórias ganham forma no silêncio, na solidão e nos
seus modos de relacionamento com a floresta. Em sua com-
preensão de mundo, eles ganham concreticidade porque se
articulam com os significados da preservação da existência
humana, com suas tradições e valores, significados que fa-
zem parte de seus modos de vida em constante reelabora-
ção (ALBUQUERQUE, 2005, p. 60).

O autor, pesquisando acerca da história de resistência desses traba-


lhadores do rio Muru, destaca suas vivências na mata, demonstrando uma
história de lutas, de solidariedades entre essas famílias. Segundo Albuquerque,
os seringueiros, dentro dos seus territórios de produção, a mata, buscavam
estratégias de burlar o sistema, desviar a produção e negociar mercadorias
longe dos olhos do patrão, realizando fugas ou reivindicações por melhores
preços. Tudo isso simboliza a resistência nas colocações, dentro de suas
experiências de trabalho, rompendo com o medo presente e apresentando
formas de reação contra os patrões.
Resistência nesse sentido silenciosa, não necessariamente de enfren-
tamento direto com o patrão, mas sim criando estratégias para romper com
a dominação dos donos dos seringais. Dessa forma, eles estavam burlando
o sistema imposto de troca dos barracões e buscavam alternativas.
Segundo Maria Ferreira (2004) essas mulheres estavam longe de
serem apenas donas de casa e mães de famílias, onde a figura do homem é
o único responsável pelo sustento da casa. A autora destaca a questão da
resistência da mulher quebrando esse domínio do marido e aprendendo a
realizar trabalhos dentro da mata como o corte da seringa. Um caso evidente
é o processo de tomada de decisões e nas mulheres que foram estabelecendo
canais importantes no ambiente doméstico e de trabalho.

19
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

A divisão entre trabalho produtivo relacionado com os homens e o


trabalho reprodutivo vinculado à mulher já está enraizado em nossa cultura.
Há uma ideia de que o trabalho feminino é complementar ou menor. Por
isso, não se tem essa visão que o trabalho feminino é primordial, sem levar
em consideração que antes esses trabalhadores não conseguiam realizar outras
tarefas além da coleta da seringa e que, portanto, acabavam consumindo
em maior quantidade produtos nos barracões. Só que com a presença da
família, nesse segundo momento de produção da borracha, toda a família é
inserida nessa dinâmica de trabalho. Importante lembrar que não estamos
afirmando que essas famílias pararam de consumir nos barracões, o que
buscamos destacar é que, o trabalho feminino contribuiu para que outros
meios de cultivos fossem realizados, desse modo teriam outros alimentos
além daqueles fornecidos pelo barracão.
Mesmo as mulheres que iriam cortar seringa, cortavam em menor
quantidade, que os homens, pois elas em sua maioria se preocupam em
cortar nas regiões mais próximas das colocações e de suas casas, por conta
dos filhos. Sem contar que o faziam com ferramentas mais velhas, doadas
pelo marido, e com isso sua produção seria de menor escala se comparada
ao do homem (WOORTMANN, 1998, p. 21-22).
É importante lembrar, que no período que a borracha não era
cortada, homens e mulheres se dedicavam as mesmas funções, como coletar
castanha, por exemplo, mesmo realizando o mesmo serviço, ocorre uma
diferenciação do trabalho feminino, ainda colocado como menor. Em
documentário colhido na década de 1990 por um grupo de estudantes, as
mulheres narram suas trajetórias em seringais de Rondônia e os serviços que
realizavam, ao passo que elas contam suas histórias, é colocado também à
narrativa de homens, ilustrando que elas até poderiam fazer esses serviços,
mas que eram serviços pesados, “não era coisa que mulher deveria fazer”9.
Por isso, se fez necessário comprovar como essas mulheres começaram
a buscar outras formas de se manter fora das dependências dos barracões.
Além da borracha, a coleta da castanha, a produção da farinha e a manutenção
de uma roça são exemplos claros de mercadorias que eram vendidas nos

9 Documentário por Alejandro Ulises Bedotti e Maria Luzia Ferreira Santos. Refere-se
ao produto final de pesquisa na área de Geografia Humana realizada pela Fundação Uni-
versidade Federal de Rondônia, com apoio do CNPq.1996.

20
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

regatões e também armazenadas para consumo próprio (WOORTMANN,


1998, p. 12-14).
Como relata Ana Xavier Pinto, após a morte do pai, ela começou a
exercer a atividade do corte da seringa nas regiões mais afastadas. Depois de
casada, ela continuou trabalhando na lida de coleta do látex e outras atividades:
(...) por que o serviço mais pesado que tinha, era você corta
seringa, brincadeira mana eu saía de madrugada, o Anibal
(marido de Ana Xavier) saía duas horas da madrugada para
estrada, dava um rodo, quando chegava oito horas do dia
chegava em casa, aí almoçava, ficava um pedacinho virava
para trás, chegava em casa quatro horas, quatro e meia, com
o leite, ia colher. Aí defumava, guardava, botava a borrachi-
nha lá, vamos para o lago, vamos mariscar...10

Organizavam-se de modo que envolvia toda família nos afazeres


diários, trabalho esse que se fazia necessário, sobretudo mulheres e crianças
quando falamos do serviço de roça. No relato de Consuelo Ladislau Pereira
que toda sua família trabalhava com agricultura, desse modo descreve com
que trabalhavam na região:
Com feijão, arroz. Elas plantavam, eles eram agricultores,
era assim cuidava daquelas pessoas, cozinhava, matava boi
e tudo, porco, galinha, ela fazia para os que estavam traba-
lhando com eles, do nordeste também.11

Essas mulheres também eram responsáveis pelo serviço de defumação.


O processo de transformar o látex em borracha era realizado dentro dos
tapiris, que eram abrigos de madeira, cobertos de palha, em sua maioria
realizados por mulheres, que ficavam expostas a fumaça. Francisca Ribeiro
trabalhadora do seringal, evidência esse serviço:
(...) ele cortava seringa e eu ficava em casa com os meni-
nos, aí quando era de tarde que ele chegava com o leite,
ajudava ele defumar, fazia borracha (risos) defumar né,

10 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. depoimento [15 novembro. 2013]. Entrevista-
dora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013.
11 LADISLAU, Consuelo. Consuelo Ladislau [10 abril. 2016]. Entrevistadora: Jéssyka
Samya, Manaus: Amazonas, 2016.

21
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

no tapiri né, aí (ele) nos deixava defumando, eu mais


o Jucelino (filho de Francisca) e ele ia atrás de matar um
bicho para nós comer, caçar.
Aí quando ele chegava nós já tínhamos acabado de de-
fumar a borracha, aí no outro dia ele saia quatro horas da
madrugada para cortar, ele ia cortando e ia botando aquela
tigelinha na árvore né, aí quando acabava de corta todi-
nho, meio dia ele voltava colhendo já o leite no balde né, aí
quando ele chegava, já era de tarde né...12

Apesar dos perigos na defumação da borracha, onde muitos adoeciam


por causa da fumaça, percebemos como as mulheres também estão inseridas
neste tipo de serviço mesmo que ele fosse nocivo para sua saúde, tendo em
vista uma das entrevistadas, dona Adelia Marinho Ladislau, que enfrentou
problemas de saúde quando trabalhava com a defumação da borracha quando
trabalhou colhendo na extração do látex.
Esse serviço causava danos à saúde dessas pessoas. No entanto, à
medida que as mulheres vão trabalhando em várias funções, contribuem
para que estas famílias tenham tempo, por exemplo, para caçar, para cultivar
roça, para pescar diminuindo assim o consumo nos barracões.
Francisca das Chagas trabalhava entre dois seringais um mais
próximo da beira no rio em Hamburgo e um seringal mais no centro no
Jutaí. O seringal de Hamburgo que ficava mais na beira no rio, possibilitava
a essa trabalhadora o serviço de roça, trabalho esse que não era possível no
seringal mais no centro da mata em Jutaí, aponta:
não, por que era demais longe, era na terra firme mesmo é
muito longe, não dava não...
Era tão longe da beira menina que nos andávamos umas
duas horas e meia a pé para chegar lá na colocação, cortava
e cortava.
No começo logo era bom tinha caça tinha tudo, depois
não tinha nada não, só faltava morrer de fome, os bichos

12 RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. depoimento [10 feve-
reiro. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

22
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

tudo tinham se afugentado tudo, não tinha mais nada, nos


sofria muito..13

Ana Xavier Pinto, durante todo seu relato, manifestou insatisfação


com os patrões. Ela que tinha uma rotina constante de trabalho em meio à
mata, demonstrou a todo instante a revolta com o domínio exercido pelos
seringalistas, ao mesmo tempo em que, através de sua produção, burlava o
sistema imposto pelo patrão vendendo para o regatão.
Ainda que fosse difícil até para os patrões fiscalizar o serviço dos
seringueiros, se eles descobrissem que o trabalhador estava vendendo borracha
para os regatões (que se tratavam de embarcações fluviais que atracavam na
beira dos rios, normalmente de noite para comprar borracha dos seringueiros
escondido dos patrões) eles confiscavam toda mercadoria do seringueiro,
entre outras práticas mais violentas.
Nas entrevistas, percebemos como estas famílias, sobretudo as mulheres
e crianças, trataram de trabalhar em outros afazeres, dentre eles os mais
presentes são o roçado, plantio de milho, mandioca, tabaco, coleta de castanha,
fabricação de farinha, defumação da borracha, pesca e coleta de frutas. Uma
infinidade de práticas que foram usadas para ficarem menos dependentes
dos desmandos dos patrões e, mais a frente, com os dos empresários atraídos
pela ideia de desenvolvimento para a região.
Constatando que, no Pós-Guerra, esse controle sobre as famílias que
trabalhavam nos seringais se estenderia por mais alguns anos. Na realidade,
essa prática de trabalho análogo ao escravo tem se perpetuado por diversas
regiões da Amazônia. Neste sentido, estamos tentando dar conta desse período
de 1950, momento no qual existe uma preocupação do Governo Federal com
o desenvolvimento da Amazônia, e seguindo até 1970, quando a SPVEA deixa
de existir devido a diversos fatores e ocorre o surgimento da Superintendência
de Desenvolvimento da Amazônia SUDAM14. Estamos tentando entender o
porquê de o mesmo sistema de trabalho ter perdurado dentro das matas. As

13 RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. depoimento [10 feve-
reiro. 2014].
14 Lei nº 5.173, de 27 de outubro http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5173.htm.
Recorte de Revista sobre incentivos fiscais para SUDAM - Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro.

23
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

famílias da mata foram mantidas como trabalhadores não reconhecidos, em se


tratando das mulheres a situação se torna ainda mais grave, pois a negligência
ocorre desde a década de 1940, quando elas já eram trabalhadoras na região
do Amazonas e não conseguiram se aposentar como seringueiras.
Se pensarmos que essas mudanças incentivaram principalmente a
agricultura, poderemos perceber também que atingiram essas trabalhadoras
que tinham como principal tarefa o roçado. Boa parte da família estará
envolvida nessa atividade de agricultura e também na extração da madeira,
que já está em voga em 1960.
Acreditamos que surge aí outro problema, pois essa degradação do
meio onde vivem essas famílias implicara uma quebra com sua cultura de
preservação, tendo em vista que aprenderam outras práticas além do trabalho
com a terra, como as práticas de cura dependiam da preservação do meio
onde viviam.
A falta de organização dos planos da SPVEA em cada região e a falta
de recursos acabaram por contribuir para que os patrões, pelo menos até a
década de 1950, continuassem a pressionar essas famílias para que extraíssem
seringa, para isso cada vez mais exploravam essas famílias.
Já na década de 1960, percebemos como os problemas nas matas
Amazônicas se tornaram outros, como a modernização da agricultura, a
derrubada da madeira que iram afetar a vida das comunidades. Para João
Carlos de Souza (2014, p. 228) o processo de desmatamento ocorreu juntamente
com o aumento de rebanhos na região, anteriormente a 1960 travasse de 5
milhões de cabeças, ocorreu um deslocamento superior a 40% do rebanho
para a Amazônia, que vieram de todo Brasil, isso tudo em menos de 50 anos
ocorrendo aumento do desmatamento “Desde a década de 1960, a área des-
matada aumentou 14 vezes e o rebanho, 16 vezes, numa correlação direta entre
desmatamento e aumento do rebanho”. Sabemos que as mulheres na década
de 1940 (e até anterior a isso) já estavam inseridas em diversos afazeres nos
seringais localizados no Amazonas. Ainda assim, as atividades que realizavam
durante muito tempo foram consideradas inferiores.
À medida que economia do Amazonas muda e o Brasil pensa em
novos planos para a região, a realidade dentro das matas também muda e
com isso ocorrem transformações na vida dessas mulheres nos seringais. A

24
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

roça, por exemplo, que anteriormente era considerado trabalho de mulher


agora passa a ser cultivada por homens; assim como outras atividades, onde
principalmente as mulheres estavam inseridas, mas percebemos que apesar
da aproximação dos serviços, em alguns casos o trabalho feminino continua
sendo visto por seus companheiros ou parentes como complementar, não
reconhecendo que estão exercendo o mesmo serviço.
As narrativas dessas mulheres em relação ao serviço que exerciam
se diferenciam dos homens à medida que elas reconhecem que trabalham
que tem outras funções e que seus maridos “as ajudam” nessas atividades, ao
passo que os homens não reconhecem em alguns casos o trabalho que suas
companheiras exercem. Se antes a roça era serviço de mulher, no decorrer do
tempo, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com a crise da borracha,
a roça é serviço de todos, mas a mulher apenas auxilia, já não é o serviço
feminino no sentido inferior, é o serviço da família, ou do homem e os demais
como mulheres e crianças apenas ajudam.
Outra atividade que aparece nos relatos das entrevistadas ao lembrarem
a vida nos seringais, tratasse da malva e da juta, mais principalmente da malva,
pois segundo os entrevistados seria mais fácil de trabalhar. É importante que
o historiador ao trabalhar com as fontes orais esteja atento à discussão sobre
memória, conforme aponta Verena Alberti (2008) “cabe ao pesquisador estar
atento aos significados e escolhas, determinadas por uma visão retrospectiva,
que dá sentido as experiências no momento que são narradas”, é preciso
entender os instrumentos que possui, para lidar com a memória desses sujeitos.
Por isso, julgamos importante percorrer todos os campos de trabalho que
essas mulheres buscaram relembrar e nos relatar através de suas entrevistas.
Desse modo destacam a malva e da juta15 como atividades de trabalho,
sendo que nas entrevistas explicam que a malva seria melhor para cultivar,
pois seria mais fácil de trabalhar no cultivo dessa planta. Na década de 1930
a juta e malva já estavam sendo comercializadas na região da Amazônia.
O cultivo e beneficiamento da malva e da juta cresce consideravelmente

15 A malva e a juta após serem coletadas são transformadas em fibras que tinha valor
comercial, essas plantas se desenvolvendo melhor nas áreas de várzeas do rio Amazonas,
após a queda da coleta da borracha na região, boa parte da mão de obra acabou optando
por trabalhar com a malva e a juta, período em que o governo Federal também estimulava
que fossem cultivadas na região (BENTES, 2015).

25
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

na década de 1950 e 1960, desse modo as famílias que trabalham na região


cultivam essas plantas afim de obter lucro através da venda da fibra, extraída
da juta e da malva, para comerciantes, regatões que iam até os seringais na
suas embarcações ou esses trabalhadores iam até os municípios próximos dos
seringais para realizar a venda dessas fibras.
Interessante pensar que a juta foi trazida para a região na década
de 1930 por imigrantes japoneses e ganhou valor comercial. O início de
sua produção foi em Parintins, introduzida por Ryota Oyama, assim como
pimenta do reino. Com as técnicas para produzir juta, a malva também ganha
destaque que chegando a dominar a produção de juta em áreas de várzeas
(HOMMA, 2012, p. 21).
Conforme os autores Adalberto Santos e Geraldo Mendes, a juta
começa a ser comercializada ainda na década de 1930, mas ganha destaque
em 1960, nos aponta que:
A imigração japonesa na Amazônia promoveu uma grande
modificação na agricultura da região, através da introdu-
ção de duas culturas: juta e pimenta do reino. A lavoura da
juta atingiu seu apogeu na década de 1960 quando chegou
a representar 1/3 do PIB do Estado do Amazonas e envol-
ver mais de 60 mil famílias. A partir da década de 1970
entra em declínio, devido à concorrência dos sintéticos,
ao transporte a granel e à implantação da Zona Franca de
Manaus, provocando a drenagem da mão-de-obra rural. Foi
a lavoura da juta que iniciou o processo de agroindustriali-
zação, mediante a implantação de indústrias de sacaria, em
Manaus, Parintins, Santarém, Belém e Castanhal. (VAL E
SANTOS, 2011. p. 17.)

O Cultivo dessas plantas tratasse algo muito trabalhoso que passa


por vários processos até chegar ao estagio final que são as fibras, essas
fibras que são vendidas por essas famílias, destacamos que devem passar
pelas seguintes etapas: Beneficiamento - afogamento - Desfibramento - lavagem
- Secagem – Enfardamento16, estes processos são fundamentais para que a
fibra seja extraída.
16 Empresa Brasileira de Assistência Técnica Extensão Rural /Empresa Brasileira de Pes-
quisa Agropecuária –i-- Sistemas de produção para juta e malva, Amazonas --( revisão)--.
Manaus, 1980. 24 p. (Sistemas de produção Boletim n 195). p. 11.

26
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Percebe-se que a Malva e a Juta passam por uma serie de processos até
se torna fibra própria para a venda e as mulheres estão inseridas nesse tipo
de trabalho. Inclusive na negociação com os comerciantes, que já na década
de 1960, eram os regatões, marreteiros, ou comerciantes dos municípios
próximos aos seringais onde essas famílias trabalhavam, existindo assim
outra mudança, o patrão deixa de ser fixo e agora podem negociar com
outros interessados em suas mercadorias.
Raimunda Vidal de Lima, em sua entrevista, narra que saiu do
trabalho da borracha para a malva e que sabia realizar todos os processos de
malva, ressalta que cuidar de uma roça seria menos complicado que cuidar
do plantio e fabrico da malva:
é para a malva, aí fomos plantar roça, melhor ficou na roça
mesmo, melhor de fazer né, por que a malva ou com chuva
ou com sol, tem que cuidar né e na roça não, na roça é
quando a gente pode ir. Quando faz a chuva a gente não vai
né, aí só vai capinar, só vai plantar quando esta fazendo sol,
só vai capinar quando esta fazendo sol e aí é desse jeito...
cuidando só da roça, até hoje.17

As entrevistadas admitem entre cortar seringa e trabalhar com malva,


gostavam mais da malva, o que não significa que se tratava de um serviço
fácil, conforme nos aponta Francisca Correia Esmeraldo. A entrevistada
fala com detalhes do serviço na juta, onde acabou ficando com sequelas que
contribuíram para que ela viesse a se aposentar por invalidez no futuro,
devido a doenças como, por exemplo, problemas de coluna, hérnia de
disco e dores pelo corpo, que adquiriu enquanto realizava o processo de
transformação de juta em fibra para a comercialização:
O trabalho de juta, era cortar, botar na água, plantava,
capinava, aí depois que capinava crescia desfiava aquela
juta todinha pela mata, cortava e ia botar na água, botava,
afogava, no caso tinha que cavar o barro pra afogar aquela
malva, aquela juta, aí depois que afogava que amolecia, que
a juta passa mais de dois meses pra amolecer né, a malva
não, que ela amolece rápido, aí quando amolecia a gente ia
lá, lavar aquilo. Na época eu não sabia lavar aí eu chorava

17 LIMA, Raimunda Vidal. Depoimento [10 FEVEREIRO. 2020]. Entrevistadora: Agda


Lima Brito, ANORI: Amazonas, 2020.

27
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

que embolei um feixe de juta todinho... aí perdia, que não


sabia, aí até que um primo meu me ensinou, aí eu aprendi,
só ensinou uma vez ...18

Além disso, conforme podemos perceber, ainda teriam as implicações


nas técnicas usadas, para não perder a mercadoria, como foi o caso da
entrevistada Francisca Correia Esmeraldo que perdeu um feixe de juta por
não saber lavar e acabar embolando a mercadoria, nesse caso e entrevistada
trabalhava com família e aprendeu a o processo de juta com seu primo, para
assim poder ajudar a família.
Ainda assim, vale ressaltar que o trabalho mais citado pelas en-
trevistadas trata-se da roça, com o fim do segundo ciclo da borracha,
conseguiam cultivar sem a constante ameaça do patrão, na realidade seriam
até incentivados pelo governo a plantarem a fim de abastecer a cidade de
Manaus, conforme consta nas mensagens de governo do Amazonas da
década de 1950-1960.
Percebemos que os homens estão cada vez mais inseridos em
serviços antes considerados femininos, visto que durante a guerra, existia a
mentalidade que o serviço de roça, entre outras atividades eram serviços de
mulher. Por sua vez, encontramos mulheres em atividades pouco faladas na
década de 1940. Temos mulheres proprietárias de terrenos, donas de regatão,
ou seja, comerciantes. Elas trabalham em pé de igualdade com seus maridos,
pois realizam os mesmos serviços, inclusive no corte da seringa, que durante
muito tempo foi considerado trabalho de homem. No entanto, devemos
avaliar com cuidado as relações entre homens e mulheres nessas regiões,
a fim de entender como foi se dando as relações de gênero e trabalho nos
seringais com o final da Segunda Guerra Mundial e com as mudanças que
foram se dando dentro dos seringais do Amazonas.
Além disso, logo após vieram os planos do governo militar para
Amazônia, que implicaram em uma serie de problemas que até hoje deixam
feridas abertas na região sobre questões ambientais, causando as disputas por
terra e problemas com a degradação da mata que foram se agravado ainda
mais nos anos 1970 em diante. Após a substituição da SPVEA pela SUDAM,

18 ESMERALDO, Francisca Correia Esmeraldo. Depoimento [10 FEVEREIRO. 2020].


Entrevistadora: Agda Lima Brito, ANORI: Amazonas, 2020.

28
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

os projetos dos militares ficavam pautados em um tipo de desenvolvimento


que degradava a região e não levavam em conta as populações que moravam
em região de mata, mas por outro lado, incentivava grandes projetos de
empresários que vinham atraídos pela política fiscal, contribuindo para
o avanço de propostas que causaram tensões e expropriações nas regiões,
tais como madeireiras, pecuária, mineração que acabaram implicando em
disputas na década de 1980 (FERREIRA e BASTOS, 2016, p. 21-22).

Considerações Finais
Os Planejamentos realizados para que a SPVEA funcionassem,
acabaram não tendo êxito devido a uma serie de fatores, desde o Plano
de Emergência que deveria servir de base ao Plano Quinquenal, que as
medidas não eram executadas conforme deveriam ocorrer, além disso, para
que tivesse êxito seria preciso que recebesse a verba integralmente, algo que
nunca ocorreu, do mesmo modo os planejamentos que foram feitos sem um
total conhecimento da região Amazônica, por isso admitiam que deveriam
investir em pesquisa sobre a região19.
Para Wesley Pereira, José Raimundo Trindade e Danilo Fernandes
existiam cinco pontos pelos quais o Plano Quinquenal acabou fracassando,
o primeiro seria o empenho de pessoas qualificadas e realmente engajas
em fazer o plano da certo, a negligência em relação ao alguns projetos do
programa, a omissão acerca da administração dos recursos financeiros, o
reajuste de valores devido à inflação que corroborou para o declínio do
plano, a ausência de empresários que pudessem incentivar as metas, pois a
região ainda estava fortemente ligada à questão da extração da borracha, a
falta de um conhecimento aprofundado acerca da região, também colaborou
para o fracasso do plano, o escasso conhecimento sobre o solo, a geografia
da região, implicavam problemas para explorar a região de modo positivo
(OLIVEIRA, TRINDADE, e FERNANDES, 2014, p. 221-222).

19 Presidência da República- Superintendência do Plano de Valorização econômica da


Amazônia. Valorização econômica da Amazônia- Programa de Emergência (artigo 19 da
lei nº 1.086. de 6 de janeiro de 1953). Setor de coordenação e Divulgação, Belém- Pará-
Brasil. 1954..

29
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Desse modo, podemos perceber como apesar de todas essas mudanças


políticas, esses planejamentos não trouxeram benefícios para essas famílias
que trabalhavam em áreas de seringais, novamente o Estado deixava que
essas pessoas desamparadas em meio às matas sem políticas eficientes que
trouxessem realmente benefícios no âmbito do trabalho. Pelo contrário,
contribui para que essas mulheres continuassem invisibilizadas dentro
das matas, mesmo sendo trabalhadoras atuantes nos seringais e em alguns
casos, de acordo com as fontes orais, trabalhando e criando seus filhos
sozinhas, passando por grandes dificuldades dentro dos seringais, acabaram
sendo as maiores prejudicas, uma vez que segundo processos de pedido de
aposentadoria20, elas não tiveram sucesso na hora de solicitar seus pedidos
de aposentadoria.

Referências
Fontes orais
LADISLAU, Consuelo. Consuelo Ladislau [10 abril. 2016]. Entrevistadora:
Jéssyka Samya, Manaus: Amazonas, 2016.
NOGUEIRA, Raimundo. Raimundo Nogueira. Depoimento [06 Abril.
2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.
PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. Depoimento [15 novembro. 2013].
Entrevistadora: Agda
Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013.
GUIMARÃES, Antônio. Antônio Guimarães. Depoimento [06 Abril.
2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.
RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. Depoimento
[10 fevereiro. 2014].
Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

20 OLIVEIRA, Rafaela Bastos e PANTOJA, Tamily Frota.Relatório sobre os Soldados


da Borracha. 2017.

30
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Fontes
Empresa Brasileira de Assistência Técnica Extensão Rural /Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária i Sistemas de produção para juta e malva, Amazonas
( revisão). Manaus, 1980. 24 p. (Sistemas de produção Boletim n? 195).
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. O Brasil de JK > A criação da Sudene. https://
cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/Sudene. Acesso em
22 de janeiro de 2018.
OLIVEIRA, Rafaela Bastos e PANTOJA, Tamily Frota. Relatório sobre os
Soldados da Borracha. 2017
Legislação Informatizada - Lei nº 1.806, de 6 de janeiro de 1953. Pagina
Consultada em 19 de setembro de 2016. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/
lei/1950-1959/lei-1806-6-janeiro-1953-367342-publicacaooriginal-1-pl.html.
Legislação Informatizada - Dados da Norma. LEI Nº 1.806, DE 6 DE
JANEIRO DE 1953 - EMENTA:  Dispõe sôbre o Plano de Valorização
Econômica da Amazônia, cria a superintendência da sua execução e dá
outras providências. Pagina Consultada em 20 de novembro de 2016.http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1806-6-janeiro-1953-367342-
publicacaooriginal-1-pl.html.
Presidência da República- Superintendência do Plano de Valorização
econômica da Amazônia. Valorização econômica da Amazônia- Programa
de Emergência (artigo 19 da lei nº 1.086. de 6 de janeiro de 1953). Setor de
coordenação e Divulgação, Belém- Pará- Brasil. 1954.
Relatório da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas. Ano social
1950. Rio de Janeiro, p. s/n – Arquivo da Biblioteca Nacional do Brasil.
Relatório Administração Sesp. Serie Organização e Funcionamento. 1944. p.
s/n – Departamento de Arquivo e Documentação, Fiocruz, Rio de Janeiro.
Relatório da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas. Ano social
1942. Rio de Janeiro, p. s/n – Arquivo da Biblioteca Nacional do Brasil.

31
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Bibliografia
ASSUNÇÃO, Sandra; SILVA, Josué; SILVA, Adnilson. Lembranças do
Lugar: O ser Seringueiro em Extrema RO. Revista Igarapé, Vol. 1, No 1 (2013).
BATISTA, Iane Maria da Silva. A Natureza nos Planos de Desenvolvimento
da Amazônia (1955-1985). Tese- Universidade Federal do Pará, 2016.
BENTES, Jones Gomes. Influência do Espaçamento na Produtividade
de Sementes de Malva. (Urena lobata L.) em Terra Firme no Amazonas-
Dissertação-Universidade Federal do Amazonas. 2015
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na Cepal.
Tradução de Vera Ribeiro. - Rio de Janeiro: Record, 2000.
CHEROBIM, M. — Trabalho e comércio nos seringais amazônicos.
Perspectivas, São Paulo, 6:102-107, 1983.
DAUPHIN, Célia, FARGE, Arlette, PERROT, M. A história das mulheres.
Cultura e Poder das Mulheres: Ensaio de Historiografia. Tradução de Rachel
Soihet. Rosana M. A. Soares e Suely Gomes Costa. Gênero. NUTEG- Núcleo
Transdisciplinar dos Estudos de Gênero. 2º. Sem 2001- vol.2, n.1(2 sem 200),
Niterói : Ed. UFF,2000.
FERNANDES, Danilo Araújo. A Questão regional e a formação do discurso
desenvolvimentista na Amazônia. Tese (Doutorado) – Universidade Federal
do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de Pós - Graduação
em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Belém, 2011.
FERREIRA, Maria Liége Freitas. Mulheres no Seringal: submissão, resis-
tência, saberes e práticas (1940-1945). VIII Simpósio Internacional Processo
Civilizador, História e Educação. Paraíba, 2004.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil, 14ª ed. São Paulo,
Nacional, 1976.
LEAL, Davi Avelino. Por uma arqueologia dos seringais. Revista Canoa do
tempo (UFAM), v. 1, p. 205-2201, 2007.

32
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. A Batalha da Borracha: propaganda


política e migração nordestina para a Amazônia durante o Estado Novo.
Revista de Sociologia e Política. n° 9,1997.
HOMMA, Alfredo Kingo. Amazônia: desenvolvimento agrícola com a
criação de mercados. Radar nº 20 - Junho de 2012. - http://www.ipea.gov.
br/radar/temas/agricultura/342-radar-n-20-amazonia-desenvolvimento-a-
gricola-com-a-criacao-de-mercados - Acesso em 14 de Fevereiro de 2020.
LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha, das vivências
do passado às lutas contemporâneas. Dissertação de mestrado. UFAM:
Manaus, 2013.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky, PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão
fundiária na Amazônia. ESTUDOS AVANÇADOS 19 (54), 2005.
MARQUES, Gilberto S. Revista Soc. Bras. Economia Política, São Paulo,
nº 34, p. 163-198, fevereiro 2013.
MEDEIROS FILHO, João; SOUZA, Itamar. Os Degredados Filhos da
Seca. Petrópolis, Vozes, 1984.
MCGRATH, David. Parceiros no Crime: regatão e a resistência cabocla na
Amazônia tradicional. Novos Cadernos NAEA vol. 2, nº 2 - dezembro 1999.
NASCIMENTO, Maria das Graças. O Trabalho silencioso da mulher no
interior da Floresta Amazônica. Revista de Educação, Cultura e Meio
Ambiente- Março. - N° 11, Vol. II, 1998.
PEREIRA, Marcelo Souza. Servidão Humana na Selva: o aviamento e o
barracão no seringal da Amazônia. Revista Somanlu, ano 12, n. 1, jan./jun.
2012.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisio-
neiros. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 4ª. Ed, 1988.
PRATES, Rodolfo Coelho e BACHA, Carlos José Caetano. Economia e
Sociedade, Campinas, v. 20, n. 3 (43), p. 601-636, dez. 2011.
Reis, Arthur Cézar Ferreira. O seringal e o seringueiro. Rio de Janeiro:
Ministério da Agricultura, 1953.

33
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Reis, Arthur Cézar Ferreira. “O ciclo do ouro negro. Ampliação do espaço.


A concorrência asiática”. In: A Amazônia que os portugueses revelaram ao
mundo [versão mimeografada e anotada]. Rio de Janeiro: Real Gabinete
Português de Leitura, 1956.
RENHA, Carlos Eugenio Aguiar Pereira de Carvalho. “A Superintendência
do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a política de desenvol-
vimento regional e o Amazonas (1953-1966)”, 2017. Dissertação (Mestrado
em História) - Universidade Federal do Amazonas, 2017.
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. O genius de uma economia: reflexões
e propostas sobre o desenvolvimento da Amazônia. Populações Humanas
e Desenvolvimento Amazônico. Belém: UFPA, 1989.
SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria. “A emergência da pesquisa da
História das Mulheres e das Relações de Gênero”. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 27, nº 54, jul – dez. 2007.
SOIHET, R. História das Mulheres e História de Gênero - um depoimento.
Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas/ São Paulo, v. 11, 1998.
SOUZA, Carlos Alberto Alves. “Varadouros da Liberdade”: Cultura e
trabalho entre os trabalhadores seringueiros do Acre. Projeto História,
São Paulo, (16) de fev. 1998.
TEXEIRA, Carlos Correia. Servidão Humana na Selva: O Aviamento e o
Barracão nos Seringais da Amazônia. Manaus, editora Valer/ Edua, 2009.
VAL, Adalberto Luis, SANTOS, Geraldo Mendes. Grupo de Estudos
Estratégicos Amazônicos --- Manaus; Editora INPA, 2011. v. 4.
WOORTMANN, Ellen. Família, Mulher e Meio Ambiente no Seringal. In.
Os estudos rurais e estudos urbanos. (Org.). Ana Maria Niemayer; Emilia
Pietrafeza Godoi. São Paulo: Editora Mercado das Letras, 1998.

34
“SATANÁS NÃO PREGA MAIS QUARESMA
NO BRASIL”: O APOIO DE SETORES CIVIS E A
RESISTÊNCIA À DITADURA CIVIL-MILITAR DE
1964-1985 EM ILHEUS, BA
Luiz Henrique dos Santos Blume1
Maíza Ferreira dos Santos2

“A ditadura não passou por aqui”:


a zona cinzenta da memória local
“Limitemo-nos ao Lager… É uma zona cinzenta, com con-
tornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une os
campos dos senhores e dos escravos.” (Primo Levi, 2004, p.36)

Podemos afirmar que existe na região sul da Bahia, em especial no


trecho Ilhéus-Itabuna, um mito de que não houve resistência ou que a ação da
ditadura civil-militar não foi significativa. Trata-se de entender que grupos
sociais consolidaram memórias que tornaram hegemônicas um certo mito
da passividade dos trabalhadores da região, empenhados, que estavam no
progresso da lavoura cacaueira. Esta acepção de que “a ditadura não passou
por aqui” foi verbalizada por uma importante professora de História e
Geografia da cidade numa reunião pública do movimento Ação Ilhéus, em
abril de 2012. E apesar da contradição histórica, temos escutado os mesmos
argumentos em algumas situações envolvendo estudantes universitários à
época que posteriormente tornaram-se professores da Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC) e também alguns moradores da cidade de Ilhéus que

1 Doutor em História Social pela PUCSP. Professor Adjunto “B” na UESC - Universidade
Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-BA. Agradeço a colaboração de Franciane Nunes dos San-
tos, ex-bolsista PIBIC/FAPESB 2017-2018 na pesquisa com o periódico Diário da Tarde e
na catalogação de informações do Projeto Brasil Nunca Mais.
2 Licenciada em História pela UESC, Mestranda em História no Programa de Pós-Gra-
duação em História da UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana. Participou
como bolsista no programa de Iniciação ao Ensino modalidade PAIG-UESC nos anos
2012-2017, no projeto “Laboratório de História Oral: pesquisa e ensino com fontes orais”
(2012-2014) e “Outras memórias da ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ilhéus-Itabu-
na:imprensa e narrativas orais” (2015-2017).

35
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

vivenciaram o período da ditadura. Ouvimos os mesmos questionamentos


de estudantes do ensino fundamental e médio3 de escolas públicas em Ilhéus,
quando realizamos oficinas vinculadas aos projetos de Iniciação ao Ensino
“Outras memórias da ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ilhéus-Itabuna:
imprensa e narrativas orais”, realizadas entre 2015 e 2017.
Este artigo apresentará alguns questionamentos iniciais mas que
indicam a presença dos militares na região e que tiveram o apoio de entidades
civis e de personalidades intelectuais importantes, inclusive na formação
da futura UESC. Os resultados, ainda que parciais, podem suscitar outras
referências que possibilitam questionar o mito da inexistência de uma
repressão mais direta e incisiva dos governos militares na região, trazendo
à discussão a presença de sujeitos políticos que apoiaram o golpe nos seus
primeiros dias.
De outra forma, existem narrativas que evidenciam a tentativa de
constituição de focos guerrilheiros junto aos trabalhadores rurais, num
trabalho político clandestino. Passados 56 anos do golpe civil-militar de
1964, estes sujeitos, ainda que derrotados, reafirmam em suas narrativas
a legitimidade das formas de resistência à implantação da ditadura que
tentaram construir. Trata-se de pensar que as memórias do período da
ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ilhéus e região estão em disputa e,
portanto, é possível encontrar novas perspectivas políticas que reivindiquem
outro papel para a História da região.
Dessa maneira, entendemos que existe um problema de início. É
preciso questionar se as memórias hegemônicas em torno da inexistência
da repressão ou da resistência no período da ditadura civil-militar de
1964-1985 na região de Ilhéus-Itabuna não fazem parte de um silenciamento
de muitas memórias de outros sujeitos sociais que resistiram à ditadura.
Entendemos que a memória encontra-se em disputa (THOMSON: 2012),
quando memórias hegemônicas negam ou desqualificam outras que buscam
questionar papéis históricos predefinidos ou mesmo querem refazer e

3 Os projetos de ensino citados na nota 2 tinham como objetivo realizar oficinas em


escolas públicas na cidade de Ilhéus. Ao longo dessas oficinas, em específico durante as
atividades programadas previamente pela equipe do projeto, foi bastante comum ouvir-
mos dos estudantes (turmas do 8º ano nível fundamental e 3º ano do ensino técnico) falas
que relativizavam e contestavam ações da ditadura em nível nacional e local.

36
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

questionar sentidos históricos dominantes que reforçam a visão de mundo


de classes dominantes e vencedoras de projetos políticos autoritários.
Alessandro Portelli (2006) afirma existir uma “zona cinzenta”,
imediatamente após o período da libertação do nazifascismo na Itália, em
que não se tinha clareza sobre quem ou quais interesses estavam ligados ao
antigo regime, visto que os partidários e apoiadores de Mussolini buscavam
refugiar-se no anonimato para não serem identificados pelos portadores da
nova ordem, vencidos de ontem, vencedores de hoje.
Poderíamos falar de uma “zona cinzenta”, em que a participação e
colaboração de sujeitos ficaram obscurecidas após a transição conservadora
da ditadura civil-militar até as eleições livres e diretas para presidente da
República em 1989? Esta “zona cinzenta” seria responsável pelo silenciamento
de outras memórias de resistência e de colaboracionismo com o regime nos
anos da ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ilhéus-Itabuna? Talvez este
sentido seja ainda muito pouco claro, mas é preciso investigar nas fontes
históricas e perguntar se realmente “a ditadura não passou por aqui”, conforme
afirmou a palestrante em reunião citada.
Ademais, é preciso retomar uma discussão em torno das opções
políticas vencedoras que resultaram no projeto de Anistia até o reesta-
belecimento das eleições gerais e para presidente da República, em 1989.
Conforme Teles, trata-se de uma “memória vencedora da transição” (2018, p. 29).
Os limites dessa negociação com os militares envolveram a impossibilidade
de julgamento dos crimes cometidos por agentes da ditadura e a inexistência
de uma justiça de transição.
A historiografia brasileira também tem sido um espaço de lutas
por versões e memórias que revelam, além de perspectivas historiográficas,
posições políticas de releituras sobre a ditadura de 1964-1985. Tratando do
que denomina historiografia revisionista, Demian Bezerra de Melo (2014)
afirma que alguns autores, nos 40 anos do golpe de Estado, retomam a
versão que foi bastante discutida durante o período da ditadura, de que
Jango pretendia dar um golpe de Estado, impedindo as eleições gerais de
1965, transformando o país numa “república sindicalista”. Além disso, esses
autores produziram uma nova perspectiva historiográfica, considerada
“revisionista” pelo autor.

37
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Conforme Melo, a nova interpretação sobre o golpe se resumiria nas


teses de que “esquerda e direita foram igualmente responsáveis”, reafirmando
a ideia de que do lado da “esquerda”, Jango estaria conspirando com o PCB
e os sindicatos para dar um golpe de Estado e, do outro lado, os militares
e os civis. Essa historiografia revisionista afirma ainda que a resistência à
ditadura não passou de um mito criado pelas próprias esquerdas que, adeptas
ou não da ação armada, foram massacradas pelos órgãos de repressão da
ditadura. (MELO: 2014, p.158).
Essa historiografia traz elementos que reforçam a manipulação
das massas pelo governo de Jango, destacando o caráter populista de seu
governo. Ao mesmo tempo, criticam o desprezo pela democracia liberal,
representada pela posição das esquerdas que atuavam no período. Dessa
forma, endossam a tese de que Jango pretendia alterar a Constituição para
possibilitar disputar a reeleição e de que a sua queda deveu-se ao caráter
“populista” e “radicalizado”, após o Comício da Central do Brasil, em que
anuncia as reformas de base.
Autores que se tornaram referências enquanto expoentes dessa
“nova” interpretação historiográfica da ditadura, FERREIRA&REIS,
(2007), GASPARI (2014), FICO (2004), reforçam o caráter demagógico e
populista do governo Jango, introduzem sob o termo ditadura civil-militar
um apoio das massas ao golpe e posteriormente ao regime, sem aplicar uma
análise mais complexa de que o golpe foi preparado pelos representantes
dos interesses do imperialismo norteamericano, na constituição do IPES -
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e do IBAD - Instituto Brasileiro de
Ação Democrática. Estes institutos foram criados para construírem uma
propaganda anticomunista e de valorização do ideal liberal e na cooperação
norteamericana.
A participação do embaixador Lincoln Gordon nos preparativos
do golpe foi extremamente ativa, com a operação “Brother Sam”, que
disponibilizou recursos financeiros para a campanha eleitoral de 1960,
denunciada inclusive pelo ex-deputado e um dos desaparecidos, Rubens
Paiva, na Comissão Parlamentar de Inquérito IPES-IBAD.
Dessa forma, ao incluir o termo “civil” à ditadura militar, estes
autores promovem uma inversão da perspectiva histórica pós-64. Ao invés
de indicarem as articulações de setores da sociedade civil, notadamente

38
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

grandes empresários, multinacionais, setores católicos conservadores, estes


autores promovem um descrédito da legitimidade do governo Jango e dos
setores que o apoiavam. Em outro sentido, corroboram para a visão de que
os setores que apoiaram e/ou participaram ativamente do golpe o fizeram
com receio do possível golpe que Jango iria promover.
Neste sentido, esta historiografia “revisionista” reforça a participação
e o apoio de grupos e setores da sociedade civil ao golpe. Entre os principais
grupos e sujeitos políticos que apoiaram o golpe, destacam-se a CNBB,
representante da hierarquia da Igreja Católica no Brasil e os setores laicos
conservadores, tais como a “Legião de Maria”, Círculos Operários e outros.
No setor empresarial nacional, deram significativo apoio ao golpe os grupos
Camargo Correa, Mendes Júnior, Odebrecht, Gerdau, Votorantim, asso-
ciados às empresas multinacionais. E ainda a grande imprensa, controlada
desde sempre por grupos empresariais familiares conservadores da mídia:
Organizações Globo, Grupo Bandeirantes, Diários Associados. E, é claro,
os agentes políticos, os partidos com representação no Congresso Nacional,
especialmente a UDN e o PSD, além das lideranças que apoiaram o golpe
na primeira hora: Carlos Lacerda, Juscelino Kubistchek, Ulisses Guimarães,
Magalhães Pinto, sendo que alguns construíram uma imagem posterior de
“pais da democracia”. (MELO: 2014, p. 168)
O caráter “demagógico” de Jango e sua guinada à esquerda são apon-
tados por FERREIRA (2007, p. 526-528) como elementos para o isolamento
político e a queda do governo. O autor aponta, entre os principais elementos
que enfraqueceram o governo, gestos públicos e poucas ações efetivamente
realizadas. Entre elas, o anúncio das “reformas de base” e a radicalização de
Brizola na constituição da Frente de Mobilização Popular (FMP), exigindo
uma reforma agrária que não indenizasse os latifundiários em pagamento em
dinheiro com valor de mercado. Além disso, seriam elementos de desgaste
as críticas ao congresso, a radicalização do discurso de Jango no comício
das “reformas de base”.
A perspectiva de Ferreira continua a reproduzir uma imagem de um
presidente populista, demagogo, que isolou-se politicamente de um “centro
político”, adotando uma perspectiva de radicalização e, por estes motivos,
foi deposto, sem protestos populares. O autor caracteriza o anúncio das

39
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

reformas de base como uma medida extrema, pois o presidente estaria sem
alternativas:
Mais ainda, estou convencido de que Jango não acreditava
no sucesso da estratégia da FMP. Ele, na verdade, encontra-
va-se sem alternativas. A radicalização política o empurrou
para suas bases históricas: as esquerdas e o movimento sin-
dical. Escolher a Frente Progressista de San Thiago Dantas
negaria todo o seu passado de líder reformista e nacionalis-
ta e o tornaria refém político do PSD. A estratégia, a partir
daí, era a de mobilizar os trabalhadores contra o Congresso
Nacional, obrigando os parlamentares a aprovar as refor-
mas de base.” (FERREIRA, 2007, p. 528)

Em termos de produção de uma memória do ex-presidente Jango,


o autor ainda reitera as imagens de um governo “populista”, ao mesmo
tempo reforçando conceitos que deslegitimam opções políticas de ruptura
radical da sociedade.
Por outro lado, temos ainda a produção de memórias que são
barradas enquanto uma perspectiva de ruptura com um pacto estabelecido
entre os setores militares e políticos na “transição negociada” do regime da
ditadura para a democracia.
Teles afirma que esta memória criou uma “ficção da reconciliação”,
construída
(…) sob o silêncio do pacto pela democratização em opo-
sição aos corpos desaparecidos, assassinados e torturados”,
reforçando a “teoria dos dois demônios”, “(…) ora mobi-
lizando um aspecto, o da lembrança, ora outro, o do es-
quecimento, se constrói o silêncio sobre o passado, com a
ausência dos movimentos sociais. (TELES: 2018, p. 29)

Tratando das memórias em disputa, é preciso situar um embate de


memórias no presente e memórias do presente. Conforme Peixoto afirmou
em palestra na UESC: “quando me refiro à memória no presente, quero ressaltar
as disputas que, no presente, envolvem a retomada e a releitura de acontecimentos
do passado, a partir das razões do presente” (PEIXOTO: 2013).

40
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Dessa forma, também entendemos que as memórias sobre a ditadura


encontram-se no embate entre memórias hegemônicas e memórias dissidentes.
Neste sentido, é preciso problematizar de que forma se deram e continuam
acontecendo os processos de constituição desses campos antagônicos de
memória, e como revelam projetos históricos que foram vencidos e outros
que continuam exercendo uma forma de poder sobre a sociedade.
Então é preciso se perguntar, nesse embate de memórias e projetos
históricos de classe, quais projetos estavam sendo gestados antes do golpe?
Como foram derrotados e colocados no esquecimento? Trata-se de buscar
muitas memórias e outras histórias, fazendo da luta pelo reconhecimento de
utopias e projetos silenciados pela memória hegemônica e desconhecidos
da memória histórica um ponto de partida para a reflexão das memórias
sobre o período (PEIXOTO: 2013).
Somente fazendo novos questionamentos às evidências históricas
é que poderemos nos perguntar se existiram outros projetos políticos
que não aceitaram o projeto da burguesia em aliança com os militares
na condução do golpe e instalação de uma ditadura, que ceifou outros
projetos políticos com base na construção de cidadania e democracia no
país. Sabemos que existiram alguns núcleos de resistência à ditadura em
Ilhéus-Itabuna. Através de participação em projeto de memória sindical na
ADUSC, tivemos contato com ex-militantes que lutaram contra a ditadura
na região, colocando por terra o mito da não resistência e passividade dos
trabalhadores e da população de Ilhéus e Itabuna.

A Faculdade de Sociologia e Política e


Faculdade de Direito de Ilhéus e a amnésia histórica
A partir das iniciativas do ANDES-SN para que as Seções Sindicais
constituíssem Grupos de Trabalho para tratar das consequências das ações
da ditadura civil-militar nas universidades, bem como as permanências
de aparelhos repressivos e as memórias dos estudantes, professores e
servidores técnico-administrativos, participamos da iniciativa de construir
um GT – Grupo de Trabalho da Comissão da Memória e da Verdade na
ADUSC – Seção Sindical do ANDES, sindicato dos professores da UESC,
para buscar evidências da presença da ditadura civil-militar na constituição

41
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

das Faculdades de Filosofia de Itabuna, Faculdade de Economia de Itabuna,


Faculdade de Direito e Faculdade de Sociologia e Política de Ilhéus.4
A UESC originou-se da junção de faculdades isoladas em Ilhéus e
Itabuna. A constituição da FUSC - Fundação Universidade de Santa Cruz
(1974-1983), como entidade de direito privado, se efetivou através de escritura
pública, em 11 de agosto de 1972 (posteriormente passou a ser denominada
de Fundação Santa Cruz). A FESPI - Federação das Escolas Superiores de
Ilhéus e Itabuna, criada em 1974, congregou os cursos superiores de Filosofia,
Direito e Economia. (MIDLEJ: 2004, p.142)
Os cursos foram criados por associações de caráter comunitário.
Assim, o curso de Direito iniciou suas atividades em 20 de janeiro de
1960 e foi autorizado em 19 de maio de 1960, tendo como mantenedora a
Sociedade Sul-Bahiano de Cultura, «entidade especialmente criada para
instruir, manter, dirigir ou congregar os Institutos que hão de integrar a
futura Universidade Católica do Sul da Bahia” (MIDLEJ, 2004: p.142-3).
O curso de Filosofia esteve a cargo da Faculdade de Filosofia de Itabuna,
autorizada em 05 de outubro de 1960, iniciando suas atividades a partir de
02 de janeiro de 1961. O curso de Economia, pela Faculdade de Ciências
Econômicas de Itabuna, foi autorizado em 08 de agosto de 1970, tendo
iniciado suas atividades em 01 de março de 1967. (MIDLEJ: idem)
Por motivos ainda desconhecidos, a Faculdade de Sociologia e Política
de Ilhéus teve curta duração. Entre os preparativos para a sua criação, em
1963, e o fechamento, em 1974, temos poucas informações, sendo esquecida
até pela memória institucional da UESC. O Curso de Sociologia foi criado
por professores que já atuavam na Faculdade de Direito de Ilhéus, entre
estes, Soane Nazaré de Andrade e Francolino Neto. A manutenção também

4 ADUSC - Seção Sindical do ANDES-SN, representa os docentes da UESC. Entre 2014


e 2017, participei de um Grupo de Trabalho de História e Memória Docente no sindicato
local. Junto com outros colegas e estudantes, buscávamos informações sobre a partici-
pação de estudantes e professores no período da ditadura, entre os anos de 1964 a1985.
Obtivemos poucas informações, mas algumas questões apontadas nesse grupo de traba-
lho indicaram que há muitas questões sobre a participação de professores das Faculdades
de Direito e Sociologia de Ilhéus e Faculdade de Filosofia de Itabuna, consideradas as
antecessoras da criação da UESC, no apoio ao golpe e também da prisão de pelo menos
um professor no período. Essas questões levaram-me a continuar o interesse em pesquisar
essa temática.

42
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

esteve sob a responsabilidade da mesma fundação, Sociedade Sul-Bahiano


de Cultura, com o seu primeiro vestibular realizado em março de 1964
(MIDLEJ, 2004: p.143).
Não há evidências desta faculdade na constituição da FESPI, mantidas
pela Fundação Universidade de Santa Cruz (FUSC), que, através de decreto
do ex-governador Waldir Pires (PMDB), foi estadualizada, sendo o termo
de convênio assinado pelo ex-governador Antônio Carlos Magalhães em
1991 com o nome atual, Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Há pelo menos duas versões para o fechamento da Faculdade de
Sociologia e Política de Ilhéus. Conforme Midlej :
Quanto à Faculdade de Sociologia e Política de Ilhéus, cria-
da em 1963, com a primeira turma iniciando as atividades
em 1964, enfrentou problemas ideológicos com a implan-
tação do regime militar naquele ano, dificultando-lhe sua
curta atuação de cerca de dez anos, período em que não
conseguiu autorização para funcionamento.(2004: p. 148)

Conforme depoimento do ex-aluno Evilásio Teixeira Cardoso,


além da dificuldade da desconfiança do regime, havia ainda problemas na
própria concepção do curso, pois seguia o modelo da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, que, em sua origem, era mantida pela norteamericana
Fundação Ford. Neste, apresentava um currículo de Sociologia pura, diferente
dos demais cursos superiores de Ciências Sociais, que não tinha ainda o
reconhecimento para a formação de Sociólogo, que só ocorreu em 1980. O
terceiro diretor da faculdade, Ramagem Badaró ainda tentou uma mudança
na habilitação, de Sociologia para Ciências Sociais, e alterar a faculdade para
Administração, com dois cursos superiores, Ciências Sociais e Administração,
mas sem sucesso. Isto fez com que as tentativas de manter o curso fossem
aos poucos vencidas pelos embaraços e dificuldades administrativas, sendo
finalmente fechada a Faculdade de Sociologia e Política de Ilhéus em 1974,
segundo os relatos de Cardoso e do professor e criador da Faculdade, Soane
Nazaré de Andrade (MIDLEJ, 2004: p. 148).
Este episódio de “apagamento da memória” do curso de Sociologia na
formação inicial da UESC nos faz questionar os motivos desse “esquecimento”,

43
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

sabendo-se que entre alguns dos criadores do curso temos apoiadores de


primeira hora do golpe que depôs o presidente eleito, João Goulart.
Certas leituras produzidas no período do final da ditadura servi-
ram para consolidar uma visão de que a resistência à ditadura aconteceu
em alguns centros universitários e com a presença de uma classe média
pequeno-burguesa, enquanto a classe trabalhadora não teria feito parte
da resistência. Estas concepções devem muito à chamada “literatura de
resistência”, principalmente de Sirkis e Gabeira, que
(…) contribuiriam para a mitificação da figura do ex-guer-
rilheiro, por vezes tido como um ingênuo, romântico ou
tresloucado, diluído no contexto cultural de rebeldia típico
dos anos 60, algo que não condiz com as efetivas motivações
da assim chamada “luta armada” – expressão que, diga-se,
traduz mal as descontinuadas e incertas iniciativas milita-
res da esquerda brasileira de então (…). (FICO: 2004, p.32).

Para nossa reflexão, não se trata de buscar qual seria então a


“verdadeira” imagem dos estudantes universitários e das organizações de
esquerda revolucionárias, mas de perceber que podem existir outras memórias
“não-heróicas”, fugindo também às memórias hegemônicas de grupos de
esquerda que lutaram contra a ditadura e consolidaram memórias sobre si
e sobre seus agrupamentos ao longo do período da ditadura, construindo
identidades coletivas que fazem parte da avaliação crítica daqueles que não
aceitaram a imposição do regime e lutaram pela democracia e também pela
revolução socialista.
É necessário fugir à certa mitificação do heroísmo juvenil da
resistência à ditadura. A partir de algumas conversas com ex-estudantes da
antiga Faculdade de Filosofia de Itabuna, entre os quais um que se tornou
posteriormente professor reconhecido da UESC, pudemos perceber um
pouco mais do cotidiano dos universitários no interior da Bahia. Este
contato nos revelou um misto de conformismo e resistência, em que a
auto-vigilância e o medo das consequências de uma prisão por motivos
políticos foi mais acentuado do que a naturalização da resistência do meio
universitário à ditadura.

44
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Conforme narrou em entrevista o ex-estudante do curso de Letras,


da Faculdade de Filosofia de Itabuna (FAFI) e professor aposentado Rui
Póvoas: “(…) a sensação que eu tenho hoje, olhando na distância, é isto,
nos deixaram em paz. Logo no começo futucaram, futucaram, não viram
nada, não viram alguma coisa grave, a não ser em Ilhéus, nos deixaram em
paz(…).” (PÓVOAS, 2014)
Essa narrativa em parte corrobora com a memória dominante de que
não houve resistência e nem mesmo uma ação mais incisiva dos governos
militares que alterassem a ordem política na região. Porém, na mesma
direção, Rui deixa escapar que em Ilhéus, haveriam sim motivos para que
as autoridades militares tivessem uma atenção redobrada. Ele cita, nesta
mesma conversa, o episódio da cassação do mandato do prefeito Nerival
Rosa Barros, eleito para o período 1967-1970, mas que foi cassado um ano
após assumir o mandato, sendo incluído na lista de políticos cassados com
a promulgação do Ato Institucional n.o 5, em 1968.
Em conversas com antigos estudantes da FAFI, alguns ex-alunos
que se tornaram professores da FESPI e, posteriormente, da UESC afirmam
terem “conhecimento” de algumas perseguições e prisões, mas o único caso
público conhecido é o da prisão do professor Flávio Simões. Este parece
ser o caso “símbolo” das perseguições aos adversários políticos daqueles
que assumiram o poder local. Os próprios ex-alunos afirmaram que Flávio
Simões não era comunista, mas um democrata. Os relatos informam ainda
de uma prisão que funcionou no Farol do Morro do Pernambuco, em Ilhéus.
Essa prisão não está registrada nos processos abertos pelos militares locais,
localizados no Projeto Brasil Nunca Mais, nem no relatório final da CNV,
publicados em dezembro de 2014.
Porém, nos perguntamos: se existiu uma prisão clandestina no Farol
do Morro do Pernambuco, no bairro do Pontal, essa prisão funcionou
somente para abrigar um único preso político? Infelizmente, o professor
Flávio Simões já é falecido, não podendo nos dar mais informações. Mas há
outras pessoas que também estiveram presas nesta prisão clandestina, que
estamos em contato para futuras entrevistas e que poderão nos esclarecer
sobre este episódio da presença da ditadura civil-militar em Ilhéus.

45
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

“Satanaz já não prega Quaresma no Brasil”


Gostaríamos de tratar, agora, da presença e do apoio ao golpe
em Ilhéus. Algumas figuras e sujeitos políticos foram importantes para a
consolidação do golpe na região. Alguns vereadores mantinham relações
cordiais com o então presidente João Goulart, ao ponto da Câmara lhes
conceder o título de “cidadão ilheense” em 1963. Esse título nunca foi
entregue, pois estava previsto para ocorrer com a presença do presidente,
durante a inauguração da ponte Lomanto Júnior, que liga o centro da cidade
ao bairro do Pontal, o que efetivamente só ocorreu após a deposição de
Jango. O apoio ao golpe pela maioria dos vereadores e as reviravoltas no
cenário político local fizeram com que a cassação do título fosse posta em
discussão por iniciativa de alguns vereadores logo após o golpe. Em 1966 o
tema foi debatido pelos parlamentares e o título foi mantido. Porém, jamais
foi entregue, pois Jango encontrava-se em exílio no Uruguai.
Em janeiro de 1964, o embaixador norte-americano Lincoln Gordon
visitou a região, numa ação que fez parte da preparação ao golpe, com
a política da Aliança para o Progresso, que além de visitar autoridades,
também promovia ações sociais, tais como a distribuição de roupas, ali-
mentos e remédios à população mais pobre. Esta visita foi organizada pelo
presidente do Instituto do Cacau da Bahia (ICB), Antônio Vianna, com o
objetivo de mostrar a riqueza com a produção do cacau e as possibilidades
de investimento econômico na região. Temos informações de que estas ações
acabaram por promover a eleição, em 1966, da vereadora mais jovem do
Brasil, Ida Viana Rego, filha do então presidente do Instituto do Cacau,
que tornou-se uma voz crítica ao regime . 2

Este clima político na cidade de Ilhéus às vésperas do golpe nos


indicam como parte da sociedade estava dividida, entre o apoio às reformas
e ações do presidente João Goulart e a tentativa de aproximação com o
governo e as políticas norte-americanas para a América Latina (SANTOS:
2018, p.11).
Nos dias seguintes ao golpe de Estado que depôs o presidente João
Goulart, no jornal Diário da Tarde, o colunista Soane Nazaré de Andrade
publicou o artigo “A tarefa da Revolução”:

46
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Já não há relevância na discussão histérica dos motivos da


revolução triunfante, porque é preciso agora unir todas as
forças efetivamente democráticas para a construção de um
Brasil maior. (…) O ex-presidente Goulart não tombou por
acaso. Caiu ferido porque foi flagrado atentando contra a
Constituição, que é legítimo pretender reformas, mas é cri-
minoso pretender destruir. (…) É hora para provar à Nação
que a demagogia dos que monopolizavam o poder estava
impedindo que o Brasil encontrasse os seus destinos glorio-
sos. E que Satanaz já não prega Quaresma no Brasil.(Diário
da Tarde – 04 de Abril de 1964)

Portanto, um aliado de primeira hora, o professor da Faculdade


de Direito de Ilhéus reitera a tese de que o golpe civil-militar foi um ato
“democrático”, repetindo as afirmações de que Goulart tivesse atentado
contra a Constituição, ao anunciar a Reforma Agrária e outras ações que
foram promulgadas após o comício na Central do Brasil.
Como podemos perceber, o apoio ao golpe em Ilhéus se utilizou
dos mesmos argumentos apresentados pelos golpistas em todo o país.
Aliás, o golpe de Estado se autointitulou “revolucionário”, confundindo as
cabeças dos brasileiros durante 21 anos. Talvez seja por isso que tenhamos
dificuldades em promover uma justiça de transição, como alguns países do
Cone Sul o fizeram.
Gostaria de destacar que o professor Soane Nazaré era uma figura
importante no cenário local. Articulista do principal jornal da cidade,
tornou-se diretor da Faculdade Católica de Direito de Ilhéus, o primeiro
diretor-geral da Federação das Escolas Superiores de Ilhéus-Itabuna (FESPI)
em 1974. Esta federação de escolas era administrada por uma fundação
municipal de Itabuna, Fundação Universidade de Santa Cruz (FUSC),
que recebia verbas da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
(CEPLAC), tornando-se o primeiro reitor da Universidade de Santa Cruz
(1984-1987) e atualmente dá o nome ao campus da UESC, apesar de ainda
estar vivo. Portanto, a participação de elementos civis no apoio ao golpe
instaurado contra o presidente Jango também teve representantes dos
setores intelectuais na cidade.
Nesse sentido, é importante tratar do movimento que tem sido
caracterizado como uma resposta às propostas de reformas de base de

47
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Jango. As “Marchas da Família, com Deus e pela liberdade” foram apontadas


como o sinal de apoio ao golpe de Estado que depôs Jango e um sinal de
que haveria uma insatisfação e o receio do presidente adotar um governo
denominado “República de sindicalistas”.
É preciso ressaltar que o movimento de desestabilização de João
Goulart teve início logo após os resultados das eleições presidenciais, que
indicaram o titular de uma chapa, Jânio Quadros (UDN) e o vice de outra,
João Goulart (PTB). Naquele período o voto para escolha do presidente e
seu vice era feito em separado, sendo possível eleger candidatos de chapas
distintas. Dessa forma, o resultado das eleições de 1960 gerou um conflito
inicial ao impor uma composição com um presidente de uma chapa - Jânio
Quadros, e o vice de outra - João Goulart.
Com a renúncia de Jânio após sete meses de governo, seria natural
que o vice assumisse. Porém, setores contrários ao ex-ministro do Trabalho
de Getúlio Vargas, articulados pelos chefes militares e setores conservadores,
que enxergavam em Jango um simpatizante do comunismo, pressionaram para
que o mesmo não retornasse ao país. O impasse foi reduzido com a adoção
do regime parlamentarista, que durou até 1963, quando Jango na presidência
da República teve plenos direitos restituídos.
Porém, a campanha de desestabilização, capitaneada pelo IPES-IBAD,
assumiu um caráter francamente hostil ao presidente e, apoiando-se no discurso
anticomunista e de defesa de valores cristãos tradicionais, realizou campanhas
de divulgação e mobilização de atos de rua abertamente em defesa do slogam
“Deus, Pátria e família”. Esse movimento possuía um conteúdo de valores
tradicionais cristãos, utilizando-se também da imagem de Nossa Senhora,
naquilo que foi denominado de “marianismo”, a valorização da piedade cristã
representada pela figura da mãe de Jesus Cristo.
Na Bahia, tais marchas ocorreram após a destituição de Jango e tiveram
o caráter de apoio ao golpe, “na defesa de valores tradicionais, imbuído de um
anticomunismo associado às imagens da Virgem Maria, naquilo que é entendido
como “marianismo”. Esse sentimento é utilizado como uma carga de valores
que visam enquadrar as mulheres numa imagem perfeita para o que é pregado
no discurso majoritário cristão, da Virgem Maria, modelo católico-cristão
que toda mulher deveria seguir. Caberia à mulher o papel de resguardar os
pilares da sociedade cristã: “Deus, Pátria e família”. (SANTANA, 2009)

48
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Em Salvador, a marcha ocorreu no dia 15 de abril. E conforme


noticiado pelo jornal A Tarde, contou com a participação de cerca de 400 mil
pessoas, entre os setores militar, civil e eclesiástico, com o apoio do prefeito
e governador, entidades dos empresários, Federação das Indústrias do estado
da Bahia (FIEB), sindicatos de trabalhadores, e as associações de mulheres,
dando a impressão de que toda a sociedade baiana estava, em uníssono,
apoiando o golpe.
Em Ilhéus, as marchas também ocorreram após o golpe no distrito
de Pimenteira, zona rural de Ilhéus5, antes da realização na cidade, em 07 de
junho6, e foram organizadas pela Federação da Congregações Marianas da
diocese de Ilhéus, representando a Igreja Católica. No dia da sua realização, a
marcha fez o trajeto pelas ruas tradicionais do centro da cidade. Ela seguiu o
seguinte roteiro: saída da Praça J.J Seabra, Rua Araújo Pinho, Rua Tiradentes,
Rua Visconde de Mauá, Avenida Bahia, Avenida Soares Lopes e finalizando
na Praça Dom Eduardo sendo este último o lugar no qual havia um palanque,
montado pela prefeitura municipal, para garantir a realização de discursos7.
O jornal Diário da Tarde, do dia 09 de junho de 1964, fez uma nota
apresentando quais pessoas e respectivas entidades que estavam representando
falaram no palanque após a passeata da Marcha da Família com Deus pela
Liberdade8.
Enedino Britto Selmann usou a palavra representando a Congregações
Marianas; Padre Jorge Saraiva, em nome da diocese de Ilhéus; Waly Oliveira

5 Unidade Territorial a nível de distrito da cidade de Ilhéus – Bahia.


6 No dia 09 de junho, um dia após a realização da Marcha da Família em Ilhéus, o jornal
anunciava que o Instituto Nossa Senhora da Piedade (estabelecimento educacional ge-
renciado pelas freiras da cidade), Instituto Municipal de Educação, Centro Educacional
Álvaro Melo Vieira, Escolas Primárias estaduais e municipais, representações da Asso-
ciação Comercial de Ilhéus, do Lions Clube de Ilhéus, da Loja Maçônica Regeneração Sul
Bahiana, representantes dos trabalhadores, arrumadores e estiva fizeram-se presente ao
ato “apoteótico”.
7 Diário da Tarde . Ilhéus,06 de junho de 1964.
8 De acordo com o jornal instituições educacionais contribuíram para o sucesso da Mar-
cha da Família em Ilhéus. Instituto Nossa Senhora da Piedade, Instituto Municipal de
Educação, Centro Educacional Álvaro Melo Vieira, Escolas Primárias estaduais e mu-
nicipais, além delas a Associação Comercial de Ilhéus, Lions Clube e Loja Maçônica
“Regeneração Sul Bahiana”.

49
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

pelos promotores de Ilhéus, em nome do judiciário local; Osório da Silva


Pinto pelos trabalhadores de Ilhéus; Soane Nazaré de Andrade representando
a Faculdade de Direito de Ilhéus; como representante das Forças Armadas e
fazendo agradecimento em nome da instituição o Major José Carlos Santos
Júnior. Por fim, o bispo Diocesano Dom Caetano. De acordo com o jornal,
todos eles ressaltaram o papel desempenhado pelas forças armadas, o papel
do povo no combate ao comunismo, sendo, por isso, todos entusiasticamente
aplaudidos pelos presentes9.
No dia 10 de junho, logo após a realização da “Marcha da Família
com Deus pela Liberdade”, o jornal Diário da Tarde divulgou em formato de
nota, na folha de número 04 do exemplar do dia, o discurso proferido por
Soane Nazaré de Andrade na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Na ocasião, o jornal intitulou o discurso como sendo Palavras aos democratas
de Ilhéus.
Falo aos operários que até aqui ainda puderam chegar. (...)
Falo aos estudantes, aos meus queridos estudantes de Ilhéus
que até aqui vieram, escapando às tentações – e eu bem as
conheço – com que o Poder espúrio tentava seduzi-los a
qualquer preço. (...) Falo aos camponeses, contra os quais
se assentaram as baterias da mais pertinaz demagogia, a
serviço de conhecidos latifundiários outrora instalados no
poder. (Diário da Tarde– 10 de junho de 1964).

Ao finalizar o discurso, o professor Soane Nazaré se colocou como


democrata, patriota e encarregado de fé que instauraria no Brasil um
regime democrático para fazer justiça social. O discurso de Soane Nazaré
ratifica as posições de valorização do golpe realizado, apontando seu apoio
e a necessidade de a população também caminhar nesse sentido. Posição
que já vinha sendo apresentada em outras notas já publicadas pelo jornal.
Além de Ilhéus, outras cidades colocaram-se em movimento e foram
às ruas para homenagear e agradecer às Forças Armadas pela deposição de
João Goulart. Em Buerarema, município localizado no sul da Bahia, tendo
aproximadamente 50 km de distância de Ilhéus, o ato foi realizado no dia
21 de abril e teve como tema “Marcha da Família e pela Constituição”10.
9 Diário da Tarde. Ilhéus, 09 de junho de 1964.
10 Diário da Tarde. Ilhéus 20 de abril de 1964.

50
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Na mesma semana a cidade de Itabuna, município localizado a aproxima-


damente 30 km de Ilhéus, o ato também foi realizado tendo como pauta
o agradecimento às Forças Armadas pela destituição do governo de João
Goulart naquele mesmo ano11.
Na região, a marcha foi realizada em diferentes datas. Contudo um
aspecto as coloca num ponto em comum. Todas as mobilizações lá realizadas
ocorreram após o comício da Central do Brasil e no contexto após o golpe.
Parece irrelevante, mas carregar esse entendimento é fundamental para
compreendermos as funções que essas atividades políticas desenvolveram
em diferentes períodos. É inegável que as Marchas da Família com Deus
pela Liberdade tiveram papel elementar no processo do golpe, mobilizando
e apresentando para o conjunto dos diversos setores sociais o apoio da
sociedade às Forças Armadas. Contudo, a forma discursiva como as marchas
são apresentadas no contexto de golpe consumado nos coloca diante um
chamado em apoio, no sentido de ratificar o suposto clamor social pela
intervenção militar na vida política brasileira.
O movimento denominado Marchas da Família com Deus pela
Liberdade agitou a dinâmica política das grandes e pequenas cidades. No
caso de Ilhéus e cidades próximas, impulsionando e ampliando o processo
de busca pela legitimação social da ditadura civil-militar. Movimentações
como a exposta possibilitam que analisemos a forma na qual as camadas
sociais da cidade se comportaram mediante a conjuntura política da época.
Em outra direção, existem memórias sobre a participação de pessoas
da região na resistência à ditadura civil-militar. A própria atuação da verea-
dora Ida Viana Rego12 foi destacada, inclusive nacionalmente, por ter sido
indicada como a vereadora mais jovem do Brasil e fazer pronunciamentos
críticos em relação às políticas adotadas no Brasil pelo governo da ditadura.
Conforme Santos (2018: p. 43-45), o primeiro pronunciamento da
vereadora foi uma dura crítica ao regime, causando incômodo e reações:
(…) Eu sei que, nesta minha cidade, nesta querida Ilhéus,
muitos me chamaram de subversiva pelos princípios que
defendi na campanha, pelas teses que levantei. Tenho hoje

11 Diário da Tarde. Ilhéus 25 de abril de 1964.


12 Ida Viana Rêgo foi indiciada pelo IPM 199/73 como integrante do PC do B em Ilhéus.

51
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

a alegria de responder-lhes que, sinto muito, mas subversi-


vo é o Papa, subversiva é a Igreja, subversivo é D. Helder,
subversivos são Dom Marcos de Santo André, Dom Avelar
do Piauí, Dom Távora de Aracajú, Dom Eugênio Sales de
Salvador. (Diário da Tarde– 10 de Abril de 1967).

Como resposta, o bispo diocesano, D. Caetano foi à rádio e fez a


leitura de uma nota de esclarecimento:
(…) Mãos a consciência! Por qual motivo sois acusados de
subversivos? Será somente porque defendeis os pobres, os
sofredores, porque gritais contra as injustiças que devastam
a terra? Então, tôda a Igreja poderia ser acusada de subver-
siva, o próprio Evangelho.
Mas, se sois acusados de subversivos, porque sois semeado-
res de ódio e de cizânia; se sois acusados, porque não respei-
tar as autoridades; se sois acusados porque procurais levar
o país aos caos, à anarquia, a uma série de greves consecu-
tivas para depois estabelecerdes o comunismo, o colonialis-
mo sob o guante de Moscou, de Pequim ou de Cuba para
suprimirdes a liberdade, a propriedade legítima, o direito
de educar dos pais, o culto livre ao criador. (…) (Diário da
Tarde– 11 de abril de 1967).

Por outras memórias, construindo muitas Histórias:


Nossa perspectiva começou a mudar quando encontramos, no Projeto
Brasil Nunca Mais, o IPM 199/73, que trata da prisão e do desmantelamento
de um núcleo do Partido Comunista do Brasil(PC do B) que atuou na região
(Ilhéus, Itabuna, Camacã, Potiraguá entre outras cidades) chegando a recrutar
e estabelecer contato com trabalhadores e estudantes do campo e da cidade.
Todos os investigados foram acusados de infringir o disposto no art. 43 do
decreto de lei nº 898 de 29 de setembro de 1969. O artigo aponta como passível
de reclusão por até cinco anos indivíduos que tentassem reorganizar partido
político ou associação, dissolvidos por força de disposição legal ou “(...) fazê-lo
funcionar, nas mesmas condições, quando legalmente suspenso”13.

13 Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-


-898-29-setembro-1969-377568-publicacaooriginal-1-pe.html > acesso em: 21 de abril de 2020.

52
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Entre os processados, tivemos a grata surpresa de nos deparar com


um familiar da estudante de História da UESC e ex-bolsista do projeto de
Iniciação ao Ensino14. O Sr. Antonio Calasans dos Santos, tio de Maíza Ferreira
dos Santos, foi um dos presos relacionados ao Inquérito Policial Militar 199/73,
que está digitalizado e disponibilizado na rede de computadores através do
Projeto Brasil Nunca Mais. Aliando sua narrativa de uma pessoa que participou
diretamente na tentativa de opor-se através de armas à ditadura, temos então
uma rica experiência para questionar o mito da passividade e da ausência de
uma ação político-militar de resistência na região.
Antonio nos contou que sua participação política iniciou-se quando
ainda era estudante secundarista, na organização de passeatas em apoio
aos estudantes do Rio de Janeiro e de Salvador. Na sua narrativa, recorda
principalmente a realização de uma passeata contra o assassinato do estu-
dante secundarista do Rio de Janeiro, Edson Luís, na passeata em apoio e
solidariedade aos estudantes de Salvador (junho 1968), na criação de um
Boletim Estudantil e na participação e fundação da Associação Geral dos
Estudantes de Ilhéus (AGEI).
Segundo Antônio Calasans15:
(...) fundamos a organização estudantil aqui, o AGEI (As-
sociação Geral de estudantes de Ilhéus). Nós fundamos, cria-
mos um jornal, criamos um programa na emissora de rádio,
onde falávamos sobre a questão do campesinato no Brasil.
(...) O certo é que esse pessoal junto comigo, nós criamos
um movimento aqui de combate à ditadura e chegou no
seu auge quando aconteceu aqueles crimes do Calabouço lá
no Rio de Janeiro, onde foi assassinado o estudante Edson
14 O projeto em questão é o Projeto de Iniciação ao Ensino Laboratório de História Oral:
ensino e pesquisa com fontes orais, que procurou buscar novas fontes históricas para o en-
sino de História, partindo de narrativas orais, buscando trazer outras memórias sobre
a ditadura civil-militar na região, numa perspectiva de possibilitar outras perspectivas
de História e ensino de História. A entrevista realizada com o Sr. Antonio Calasans dos
Santos abriu-nos novas possibilidades de narrativas históricas que contestam a afirmação
de que não houve movimentos de resistência à ditadura na região.
15 Antônio Calasans dos Santos foi militante do Partido Comunista do Brasil – PCdoB –
durante o final da década de sessenta até a sua prisão, em 1973. A entrevista foi realizada no
dia 28 de outubro de 2015 na Universidade Estadual de Santa Cruz. Essa entrevista faz parte
do conjunto de atividades realizadas pelo projeto ensino Memórias da ditadura civil-militar de
1964-1985 em Ilhéus/Itabuna: imprensa e fontes orais no ensino e na pesquisa em História.

53
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Luís. E nesse dia, nos dias seguintes nós fizemos um movi-


mento grandioso. Foi o único movimento estudantil que
aconteceu em Ilhéus foi quando nós fizemos esse movimen-
to, organizamos e dirigimos esse movimento. (...) Quando
ganhamos as ruas, as faixas que indicavam eram, uma delas
diziam assim, o lema da ditadura: Ouro pros americanos, pra-
ta pros militares e chumbo pra quem não gostar. Então isso nos
rendeu uma perseguição muito forte. (...) passaram recado
dizendo que o comandante militar da área não ia permitir
nenhuma ofensa às forças armadas, qualquer coisa eles iam
intervir violentamente. (Ilhéus, 28 de outubro de 2015).

As narrativas de Sr. Antonio nos trazem outras dimensões da luta


política em Ilhéus, que nunca foram expostas publicamente. Conforme
Santos (2004), até o ano de 1971 a estrutura partidária no Estado era emi-
nentemente urbana e com atuação no meio estudantil. Entretanto, a partir
de 1971, as mudanças na estrutura organizativa fizeram com que militantes
da direção regional voltassem sua atenção para o trabalho no interior do
Estado. Na oportunidade Sérgio Miranda de Brito e Carlos Augusto Diógenes
Pinheiro fixaram residência na região, além de outros militantes que foram
direcionados para atuar pelo interior da Bahia, a exemplo de Selma Martins
de Oliveira e Silva16, que veio do Rio de Janeiro.
A política de migração interna adotada pelo PC do B indica a priori-
dade dada pelo partido nessa região. Os documentos partidários evidenciam
que essa política não foi fruto de uma decisão adotada isoladamente pelo
Comitê Regional da Bahia (CR), mas sim resultado de uma avaliação da
conjuntura brasileira e, com isso, os melhores caminhos para nela intervir17.
Por volta de 1967, o partido iniciou a sua articulação na região sul
da Bahia. Inicialmente formaram um Comitê Estudantil e depois de já
terem formado um núcleo, direcionaram seus trabalhados para o setor do
16 Atuou no movimento estudantil nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, ingressan-
do nas fileiras do PC do B foi enviada para a Bahia com a finalidade de realizar trabalhos
políticos. Na região sul da Bahia foi responsável pelo setor de finanças e assistência po-
lítica. No inquérito 199/73 foi acusada de efetuar trabalho junto a pequena burguesia no
sentido de angariar fundos para garantir as ações de campo. Pelo envolvimento com o
partido foi sentenciada a cumprir dois anos de prisão.
17 Ver: O Partido Comunista do Brasil na luta contra a Ditadura militar. In: PC do B.
Política e revolucionarização do Partido. Lisboa, Edições Maria da Fonte, 1974. p. 23 – 70.

54
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

campo, mantendo também sua estrutura urbana. Além disso, trouxeram


para a região militantes de outros estados para a consolidação de grupos
de apoio à formação de núcleos do partido.
Ao entrevistar sujeitos que ocuparam a direção do partido na Bahia
naquele período, Santos (2004) evidencia que a região sul da Bahia foi
avaliada como possível área de conflitos entre patrões e trabalhadores da
lavoura cacaueira, tendo em vista que a situação desses trabalhadores eram
precárias e carregadas de tensões por conta das conhecidas lutas pela terra.
Quanto ao entendimento no âmbito do papel tático e estratégico do
sul da Bahia no projeto do partido, diferentes perspectivas sobre o objetivo
e o sentido da luta política e organização dos trabalhadores naquela área
na época estão colocadas. Para Santos (2004):
Se a intenção do partido era a de que a região sul pode-
ria ser uma área importante de eclosão dos conflitos entre
trabalhadores rurais, inclusive para reverberar e juntar-se à
luta dos guerrilheiros travada no sul do Pará, ela sucumbiu
tal como fogo de palha apesar dos esforços e dos sonhos
daqueles que para lá se deslocaram. (p.146)

Santos (2014) aponta que o PC do B, em sua estratégia política, aliava


a luta política no movimento estudantil com a preparação para o trabalho
armado no campo, com a integração das lideranças estudantis. Dessa forma,
adotava um “‘dualismo tático-estratégico’ , pois ao mesmo tempo em que defendia
uma tática de ‘Frente Ampla’, tendia a privilegiar a preparação do movimento de
guerrilha no sul do Pará, planejado desde 1967” (p. 121)
Dessa forma, em que pese as tentativas de organizar o movimento
de luta no campo terem sido frustradas no sul da Bahia, com a prisão de
militantes que estavam atuando no interior do estado em 1972, o projeto
em torno da luta armada e o empenho para realizá-la aparece nas narrativas
de ex-militantes. Seu “Tonho” nos relata que:
(...) o partido deu uma palavra de ordem: você tem que
cumprir em beneficio da revolução. (...) Você se engajou
na luta contra a ditadura militar que envolvia uma luta po-
lítica, uma luta social e uma luta armada. Envolvia as três
questões, uma luta social, uma luta política e uma luta ar-
mada! Tudo junto. (...) Quando eu saí daqui (da cidade de

55
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Ilhéus) o partido disse: você vai pro campo. (Ilhéus, 28 de


outubro de 2015).

A narrativa de seu “Tonho” é posta apresentando para nós as questões


que estavam em jogo ao envolver-se com a luta contra a ditadura. Em outros
momentos da entrevista, ele nos falou que a presença do partido na região
tinha como objetivo a construção de novos focos de guerrilha rural, além
da já conhecida ação da guerrilha do Araguaia. Ainda nos relatou que
levantamentos sócio-econômicos da região estavam sendo efetuados com
a finalidade de dimensionar os problemas regionais para o partido. Além
disso, indicou a existência de condições geográficas favoráveis para tal feito:
o estabelecimento de núcleos que desenvolvessem a luta armada no campo.
Esta informação contesta a memória consolidada pelo PC do B
e também adotada até pouco tempo por parte da historiografia, de que
a Bahia seria uma área de “recuo”. Dessa forma, quando os militantes
estariam “queimados” em outras cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo,
seriam transferidos para a Bahia ou regiões do interior para que não fossem
reconhecidos pelos aparelhos de repressão. (SOUZA: 2009, p. 128)
O processo de articulação política iniciada no sul do estado não
obteve importantes conquistas ou grandes êxitos, pois foi interrompido de
maneira embrionária, com a prisão dos militantes a partir de maio em 1973,
ainda no início dos preparativos para a construção do movimento entre os
trabalhadores rurais. As informações obtidas em nossa pesquisa, a partir
da entrevista com um ex-militante que atuou na tentativa de construção
de um foco guerrilheiro, sobre o entendimento do papel tático-estratégico
e político da região sul da Bahia ainda é uma questão que merece maior
atenção. Diferentes perspectivas sobre o objetivo e o sentido da luta política
na região, mesmo partindo de apenas um sujeito até o momento, devem
ser consideradas e analisadas criticamente. Além do núcleo do PC do B,
os militantes também tinham contatos com outra organização que lutava
contra a ditadura, a Ação Popular (AP):
(...) havia algumas ações coordenadas entre nós, não diga-
mos assim, substantivas, né? Mas ocorreu uma ação aí ar-
mada que nós invadimos uma delegacia de polícia e foi a
única ação digamos assim objetiva que aconteceu (...). (An-
tônio Calasans, 28 de Outubro de 2015).

56
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Dessa forma, tivemos a intenção de apresentar neste artigo alguns


elementos que esboçam uma pesquisa mais ampla, para dar continuidade
à escuta de vozes silenciadas na memória hegemônica sobre a ditadura
civil-militar em Ilhéus e região. Muito ainda há de ser trabalhado, mas nossa
hipótese inicial, de que existem outras memórias que possam trazer novas
perspectivas históricas para a memória e história local têm plena condição
de serem abordadas, com o compromisso crítico de não repetir clichês
políticos de uma dualidade maniqueísta de cooperação versus resistência,
mas de pensar em como se construíram memórias bifrontes de avaliação
do período.

Considerações finais: à guisa de continuidade


Devemos buscar as formas instituintes da memória histórica, perceber
nesse jogo quais memórias podem revelar outros sujeitos no processo de cons-
trução e disputa pela memória e pelo esquecimento. Atualmente assistimos
a uma guerra de narrativas que prega o “negacionismo” histórico promovido
por governantes que alçaram à presidência da República, reafirmando a
teoria dos “dois demônios” e endossando os crimes cometidos por agentes
do Estado contra os opositores do regime. Mesmo com essa perspectiva de
“nova ordem”, é preciso que nós enquanto historiadores críticos também
questionemos outras memórias que consolidam a disputa e o projeto de
poder de uma parte da esquerda que ocupou governos e esteve por 12 anos
na presidência da República, representados especialmente pelo PT e pelo
PC do B. Nessa disputa por memórias hegemônicas, um grupo que lutou
contra a ditadura e esteve no poder buscou construir uma narrativa heróica
que legitimasse a luta política no atual processo político que vem desde a
redemocratização, ainda na ditadura civil-militar.
Além disso, é preciso nos perguntarmos por que a Anistia, promul-
gada ainda na ditadura, tem sido entendida como esquecimento? Porque este
sentimento de impunidade em relação aos crimes cometidos por membros
das forças armadas e por elementos civis ainda não foram julgados, ou sequer
revistos? A ditadura civil-militar, instalada em 1964 e encerrada em 1985,
teve ou não apoio popular?

57
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

A Comissão Nacional da Verdade e Reparação, instalada por decreto


pela ex-presa política e ex-presidente da República, Dilma Rousssef, foi mais
uma vez, uma “costura política” que envolveu todos os partidos, de espectros
ideológicos representados no Congresso Nacional, à direita, o DEM, à
esquerda, o PSOL. Porém, os resultados finais, publicados em relatório em
dezembro de 2014, pouco trouxeram de novidades. Para se ter uma ideia,
o relatório final da CNV cita, para o caso da Bahia, apenas a ocorrência
de prisões e centros de tortura em Salvador, uma prisão em Vitória da
Conquista e um centro clandestino de presos políticos em Porto Seguro.
É preciso desfazer mitos, em especial o de que “a ditadura não passou
por aqui”, encontrar novas evidências e fazer novas perguntas às fontes para
enfim, memórias de sujeitos que foram silenciados possam ser colocados,
pois as memórias hegemônicas continuam ocultando a resistência a projetos
autoritários que seguem vigentes no país e na região. Dessa forma, poderemos
escrever outras histórias de resistência e luta pelas liberdades democráticas.

REFERÊNCIAS
Fontes impressas:
Jornal Diário da Tarde. Ilhéus, 04.01.1964.
Jornal Diário da Tarde. Ilhéus, 03.04.1964.
Jornal Diário da Tarde. Ilhéus, 10.04.1967.
Jornal Diário da Tarde. Ilhéus, 11.04.1967.
PC do B. Guerra popular – caminho da luta armada no Brasil. Lisboa,
Edições Maria da Fonte, 1974.

Formato eletrônico:
Processo 119 do Projeto Brasil Nunca Mais – encontrado em: <http://
bnm-acervo.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_02&Pa-
gFis=138388&Pesq=>. Acessado em: 12 de agosto de 2017 às 09h: 31 min.

58
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Orais:
PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Outras histórias e outras memórias.
Ilhéus, 12.11.2013. Áudio gravado da palestra no Seminário do Laboratório
de História Oral: ensino e pesquisa com fontes orais. UESC. Gravado em
áudio wav. 60’.
PÓVOAS, Rui do Carmo. Entrevista realizada em 13.08.2014, Itabuna-BA.
Entrevistadores: Luiz Henrique dos Santos Blume e Paulo Rodrigues dos
Santos. 712 MB. Áudio waveform.
SANTOS, Antônio Calasans dos. Entrevista realizada em 28.10.2015, no
Centro de Documentação e Memória Regional da Universidade Estadual
de Santa Cruz. Entrevistadores: Luiz Henrique dos Santos Blume, Maíza
Ferreira dos Santos e Marcelo da Silva Lins. (Acervo do Projeto Memórias
da ditadura civil-militar de 1964-1985 em Ilhéus/Itabuna: imprensa e fontes orais
no ensino e na pesquisa em História)

Bibliografia
FERREIRA, Jorge. Entre a história e a memória: João Goulart. In: FERREIRA,
J.; REIS, D.A. (orgs.). Nacionalismo e reformismo radical. 1945-1964. vol.
2. p. 509-541. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007. (Coleção
As esquerdas no Brasil)
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev.
Bras. Hist.,  São Paulo, v.24, n.47, p.29-60,2004.Availablefrom <http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 01882004000100003&ln-
g=en&nrm=iso>.access on  16  Apr.  2018.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
01882004000100003.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. As ilusões armadas. vol. 2 São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: Os delitos, os castigos, as
penas e as impunidades. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 175 p. Tradução
de: Sérgio Henriques.

59
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

MELO, Demian Bezerra de. O golpe de 64 e meio século de controvérsias:


o estado atual da questão. __In: A miséria da historiografia: uma crítica
ao revisionismo contemporâneo (org.). p. 157-188.Rio de Janeiro: Ed.
Consequência, 2014.
MIDLEJ, Moema Maria Badaró Cartibani. Universidade e Região: territoria-
lidade da Universidade Estadual de Santa Cruz. Doutorado (Tese). Salvador:
Programa de Pós-Graduação em Educação-FACED/UFBA. 2004, 273 fl.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana,
29.06.1944): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, J.;FERREIRA,
M.M. (orgs.) Usos e abusos da História Oral. 8. ed. p. 103-130. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 2006.
REIS FILHO, Daniel Aarão. 2001. O colapso do colapso do populismo ou
a propósito de uma herança maldita. In : FERREIRA, Jorge. (org.). 2001.
O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira.
SANTOS, Andrea Cristiana. Trajetória da militância do Partido Comunista
do Brasil na Bahia (1965-1973). In: ZACHARIADES, Grimaldo (org.) Ditadura
militar na Bahia: histórias de autoritarismo, conciliação e resistência. vol.
2. p. 105-123. Salvador: EDUFBA, 2014.
SANTOS, Andrea Cristiana. Ação entre amigos: História da militância do
PC do B em Salvador 1965-1973. Dissertação de mestrado. Departamento de
Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal da Bahia – UFBA; 2004.
SANTOS, Maíza Ferreira dos. Outras memórias e muitas histórias sobre
a ditadura civil-miliar em Ilhéus (1964-1974). Monografia. Trabalho de
Conclusão de Curso em História. Ilhéus: Universidade Estadual de Santa
Cruz, 2018, 64 fls.
SANTANA, Ediane Lopes de. Campanha de desestabilização de Jango:
as “donas” saem às ruas. In: ZACHARIADES, Grimaldo (org.) Ditadura
militar na Bahia: novos olhares, novos objetos, novos horizontes. vol. 1. p.
13-29. Salvador: EDUFBA, 2009.

60
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

SOUZA, Sandra Regina Barbosa da Silva. Bandeira vermelha: aspectos da


resistência armada na Bahia. In: ZACHARIADES, Grimaldo. Ditadura
militar na Bahia. Novos Olhares, Novos Objetos, Novos Horizontes. vol.
1. p. 127-150. Salvador: EDUFBA, 2009.
TELES, Edson. O abismo na História: ensaios sobre o Brasil em tempos de
Comissão da Verdade. São Paulo: Alameda Editorial, 2018, 141 fls.
THOMSON, Alistair. Quando a memória é um campo de batalha: envol-
vimentos pessoais e políticos com o passado do exército nacional. Projeto
História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São
Paulo, v. 16, set. 2012. ISSN 2176-2767. Disponível em: <https://revistas.pucsp.
br/index.php/revph/article/view/11182>. Acesso em: 20 abr. 2018.

61
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

62
MEMÓRIA E TEMPO PRESENTE:
MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE (MEB)
Sara Oliveira Farias1

Introdução
Os passos iniciais da pesquisa sobre o Movimento de Educação de
Base tinham, entre outros objetivos, a atuação do MEB em uma região da
Bahia, a cidade de Amargosa, (localizada 244 km da capital do estado,
no centro sul da Bahia, nos anos de 1960. Nossa atuação como docente
de Programa de Pós-Graduação stricto sensu fez com que orientássemos
pesquisas que tinham como foco a relação Igreja, trabalho, trabalhadores e
movimentos sociais nas décadas de 1960,1970 e 1980 em algumas regiões do
Estado. Dessa forma, foram orientadas pesquisas que analisavam, discutiam
movimentos da Igreja católica como a Juventude Agrária Católica (JAC);
Juventude Estudantil Católica (JEC); Juventude Operária Católica (JOC)
e Juventude Universitária Católica (JUC) nos anos de 1960 e, nas décadas
de 1970 e 1980, movimentos como as comunidades eclesiais de base (CEBs).
Em um desses estudos foi possível conhecer fontes históricas que tratavam
sobre o MEB no Brasil e, também, sua atuação na Bahia. Assim foram
traçados objetivos para tentar compreender a atuação do MEB, sobretudo
a partir de documentos que o movimento utilizava para poder alfabetizar
e conscientizar uma parte significativa de regiões mais pobres e carentes
do Brasil do século XX, como a população da região nordeste, centro-oeste
e norte do país.
A tensão entre passado e presente é fundamental em estudos que
tem como recorte temporal, o próprio tempo presente. Estudar e analisar
o período da História do Brasil contemporâneo possibilita, entre outras
questões, reconhecer que a garantia da objetividade em estudos recentes,
definitivamente é coisa do passado, visto que nos estudos sobre o tempo
presente existe não uma dicotomia entre passado e presente, mas uma
“união e interação entre passado e presente.”(FERREIRA, 2016, p.127) Além
disso, quando François Bédarida criou na França, o Instituto da História do

1 Doutora em História (UFPE). Professora Titular da Graduação e Pós-graduação em


História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

63
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Tempo Presente (IHTP), buscou enfrentar esses desafios como a interação


já mencionada, mas também o próprio conceito de “tempo presente.” Desse
e de outros debates se concluiu que o próprio conceito constitui no mínimo
um campo singular. Marieta Ferreira Moraes, em muitos trabalhos, destacou
esse caráter do referido campo e sinalizou entre outras questões, o seguinte:
A primeira dificuldade é que o período histórico em ques-
tão é definido por balizas móveis. Assim, que cronologia,
que evento-chave e reconhecido deve ser adotado como
marco inicial da História do Tempo Presente? Para alguns,
trata-se da época em que vivemos e de temos lembranças
ou da época cujas testemunhas são vivas e podem supervi-
sionar o historiador e colocá-lo em xeque. Ou ainda como
afirma Hobsbawn, o tempo presente é o período durante o
qual se produzem eventos que pressionam o historiador a
revisar a significação que ele dá ao passado... (FERREIRA,
2016 p.127).

Essa pesquisa se situa na História do Tempo Presente. Entretanto,


este capitulo não tem como objetivo a discussão teórica desse campo,
mas sim situar a discussão sobre um dos principais movimentos da Igreja
Católica, o MEB, no recorte cronológico dos anos de 1960, configurando-o
como um dos movimentos significativos da Igreja e como este movimento
colaborou na luta por um mundo menos desigual, colocando homens e
mulheres como sujeitos de suas histórias.
O século XXI impõe refletir a história e suas interfaces, pensando
como exercício diário, a interdisciplinaridade no campo da ciência. Nos
últimos anos, talvez essa tenha sido a tônica mais constante dos encontros
e simpósios acadêmicos na nossa área. No que diz respeito aos encontros
nacionais e suas seções regionais em História Oral, a análise sobre os
relatos orais de memória possibilita análise detalhada de acontecimentos e
episódios, através de uma narrativa que revela, quando possível, fragmentos
de histórias de homens e mulheres que registraram de alguma forma suas
experiências de vida.
Desde a segunda metade do século XX, os estudos e pesquisa em
História, sobretudo aqueles relacionados ao fazer histórico, ganharam novas

64
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

dimensões, ampliaram novos temas e objetos de pesquisa, propiciando um


verdadeiro boom em termos de inovações e novidades para os historiadores.
Nessa perspectiva, pode-se pensar nos relatos orais que constituem
a história oral, metodologia de análise e pesquisa que ao final dos anos
de 1970 e início dos anos de 1980, foi introduzida no Brasil e ampliou as
possibilidades para a pesquisa na área da História. Desse período até o
momento atual, as pesquisas que utilizam esta metodologia avançaram
através de trabalhos e pesquisas de professores e alunos dos cursos de
História, com destaque para os de seus Programas de Pós-Graduação, bem
como dos cursos de mestrado e doutorado de outras áreas como Sociologia,
Educação, Antropologia, Literatura e Geografia, entre outras. A história
oral, portanto, revela seu caráter interdisciplinar. Esta pesquisa, talvez
queira revelar um pouco da interface com outras áreas do conhecimento,
particularmente com a Educação.
Ao longo de muitas décadas de trabalho e pesquisa de muitos e
renomados historiadores, podemos afirmar sobre a consolidação da História
Oral no campo da História. Desde o início, a metodologia foi muito criticada
pelos historiadores mais tradicionais, que valorizavam apenas o documento
escrito, considerado como único instrumento de análise para reconstrução do
passado. Por outro lado, esses historiadores talvez não tivessem tão atentos
às mudanças produzidas pelas sociedades, não apenas a brasileira, mas as
de outros países que desde a segunda metade do século XX, passariam por
profundas transformações como o interesse por estudos em relação a grupos
historicamente considerados desprestigiados, que precisavam fazer ecoar
suas histórias, suas memórias.
A sociedade se transformava, cada vez mais, em tecnológica, au-
diovisual, não sem propósito foram inventados gravadores, rádios (esse foi
o meio mais eficaz de comunicação por muito tempo, cumprindo, muitas
vezes, uma função social) o uso da imagem, da mídia visual e o tempo
cibernético: internet, telefone smartphone. Essas mudanças avançaram
na sociedade e, foi centralizado o debate a favor de uma história possível,
de uma história aberta às possibilidades e no campo da história oral, não
foi muito diferente. Abria-se, assim, novas perspectivas e caminhos para o
estudo da História, destacando também a História e o uso das fontes orais,
a História e a metodologia da história oral.

65
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Na pesquisa sobre o MEB foram entrecruzadas, quando possível,


as fontes orais e as fontes escritas. A procura por ex-alunos que foram
alfabetizados pelo MEB, particularmente na Bahia continua. Talvez trabalhar
com estes homens e mulheres, construindo suas trajetórias constitua uma
outra pesquisa. De outro modo, a história e as produções de memória
sobre o movimento é o objetivo deste artigo, ou seja analisar como foram
produzidos e, selecionados os discursos que constituíram, em parte os
livros, cartilhas, canções utilizados para alfabetização de jovens e adultos
em diversas regiões do Brasil, mas antes é preciso apresentar o que era e
como se formou o Movimento de Educação de Base no Brasil.

O Início e o MEB
O Movimento de Educação de Base (MEB) foi criado oficialmente em
1961, no governo do Presidente da República Jânio Quadros pela Conferência
Nacional dos bispos (CNBB) em acordo com o bispo progressista de Aracaju
Dom José Távora. “Apesar de ser um órgão vinculado à Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) e de ter recebido ajuda financeira do governo
federal, sua dinâmica estabeleceu-se a partir da ideologia dos agentes que
dele participavam”. (MACHADO&MARQUES,2015, p.154).
Muitos participantes do MEB vieram da Ação Católica Brasileira
(ACB)- criada em 1920 e ligada a Ação Católica, um dos movimentos de leigos
mais significativos na Igreja contemporânea, criado no século XIX. Antes
de narrar a trajetória do MEB é necessário sinalizar que é a partir de 1947,
com a criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (UNESCO) pela Organização das Nações Unidas (ONU) que
Passou a incentivar a educação de adultos, entre as nações
que dela eram membros. Tal proposta sugeria a aquisição
de conhecimento como um dos quesitos necessários para
a elevação das condições de vida das populações. O acesso
ao conhecimento seria capaz de garantir a superação das
condições de miserabilidade existente em vastas regiões do
planeta, criando-se, assim, um clima de compreensão e res-
peito em torno da diversidade cultural entre povos (MA-
CHADO&MARQUES,2015, p.151-152).

66
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

A partir dessa diretriz da UNESCO, foram criadas campanhas


de alfabetização pelo país. De forma sistemática o MEB foi um marco nos
anos de 1960. Naquele período, o MEB tinha como objetivo a formação
integral do homem para sua promoção, entendendo como educação um
processo global não se limitando apenas à instrução, mas formando “na
ação, ajudando o homem a promover-se.” (MEB, 1979, p.4).
Em meados de 1962, o MEB se declarava a favor da transformação
social radical. “A educação deveria ser um meio de realizar essa transformação
ao invés de ser um fim em si.” (MACHADO &MARQUES, 2015, p.157).
Assim, o MEB passou a politizá-los:
Destacando em seus discursos a necessidade de serem
promovidas mudanças estruturais na sociedade, as quais
possibilitariam grandes melhorias na condição socioeconô-
mica desses trabalhadores. Mas, esse discurso era resguar-
dado pela visão cristã do movimento, a qual salientava a
necessidade das mudanças em virtude do espírito cristão.
(MACHADO &MARQUES, 2015, p.157)

O MEB enfatizava a conscientização, uma abordagem que encorajasse


o povo a enxergar os seus problemas como parte de um sistema social mais
amplo.” (MAINWARING; 2004, p.89) Juntamente com outros movimentos
sociais do cenário brasileiro desse período, estava associado não apenas à
educação, mas também à cultura popular e pode ser pensado como uma
dentre outras experiências novas de educação popular. Teria, a princípio,
a duração de cinco anos e projeção de instalação de quinze mil escolas
radiofônicas.
O Programa de Educação de Base tinha como base essas escolas radio-
fônicas, nos Estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste do país. Para isso, a
CNBB colocava à disposição do Governo Federal a rede de emissoras filiadas
à Representação Nacional das Emissoras Católicas (RENEC) (FÁVERO,
2004), comprometendo-se em aplicar adequadamente os recursos recebidos,
a partir da mobilização de voluntários que atuaram como monitores, uma
vez que o trabalho desenvolvido nas comunidades envolvidas só poderia
ser efetivado com a colaboração de monitores que trabalhavam junto às
escolas. Paralelo aos monitores, o papel da comunidade foi fundamental,
pois sem as lideranças locais, possivelmente o programa não teria êxito.

67
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

As escolas radiofônicas estão relacionadas em parte com a experiência


de um grupo de padres, popularmente conhecido como movimento de
Natal, em que
Um grupo de apenas seis padres da Arquidiocese de Natal,
na década de 1960, criou o hábito de se reunir regularmen-
te, todo mês, para tentar responder uma pergunta que os
inquietava: como podemos servir melhor à Igreja? Surgiram
várias respostas em forma de pequenos movimentos inova-
dores que se transformaram num conglomerado de ações,
gerando chamado Movimento de Natal. Compondo este
grupo estava Dom Eugênio de Araújo Sales, Administrador
Apostólico da Arquidiocese de Natal.

Em linhas gerais, o grupo de Natal se reunia uma vez por mês para
traçar os planos para aplicar um planejamento no âmbito pastoral como,
por exemplo, as maternidades. “Chegamos a ter de sete a oito maternidades
para os pobres, funcionando em casas comuns; educação rural e também do
ensino médio. Portanto, o Movimento de Natal era todo um conglomerado de
iniciativas.”2 Além disso, o movimento percebendo a importância dos meios
de comunicação decidiu instalar uma rádio – a rádio rural – e direcionou
a programação diretamente para o meio rural, porque segundo D. Eugênio
estas eram as mais pobres e as que moravam na cidade possuíam outras
possibilidades. O Bispo havia tido “uma experiência de alfabetização pelo
rádio, na Colômbia, com a rádio Sutatenza.3
Esse movimento de Natal para a educação de jovens e adultos na
Arquidiocese de Natal, assim como outros movimentos no Brasil daquele
período, pode ser pensado como iniciativas para a implementação da
doutrina social da Igreja.
Estas iniciativas significam aceitar ao invés de lutar contra
a secularização, criticar ao invés de tolerar as desigualdades
da sociedade e trabalhar com os pobres assim como com as
elites. Inspiradas em parte pelo anticomunismo, essas ino-
vações rompiam com as práticas tradicionais. Ao invés de
ensinar a aceitação da pobreza, promoviam soluções que

2 Dom Eugênio explica a origem do Movimento de Natal.” Disponível em www.domeu-


geniosales.com.br. Acesso em 19/042012.
3 Idem.

68
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

apontavam na direção de se superar ou de aliviar a miséria.


(MAINWARING: 2004, p.67).

Nesse sentido, pode-se pensar o trabalho significativo do movimento


de Natal. Dom Eugênio recordando sobre esse trabalho da Igreja afirmou:
Há pouco tempo, celebrando em Natal, conversei com um
Padre que tinha trabalhado nisso, e ele me disse que uma
pessoa que havia feito pós-graduação em São Paulo tinha
aprendido a ler e escrever nas Escolas Radiofônicas. A es-
cola não tinha o objetivo de só ensinar a ler e escrever, mas
também de transmitir a cultura e ver como as pessoas tam-
bém pudessem crescer... (BEOZZO, 2005, p.347)

A experiência com o grupo de Natal ajudou na criação do Movimento


de Educação de Base e de outros movimentos de Educação Popular.
Entretanto, para compreender sobre estes movimentos é necessário descrever
o cenário nacional em que a Igreja Católica estava inserida.
O cenário em que movimentos de educação e de cultura popular
emergem é repleto de mudanças dentro da Igreja Católica, tanto no âmbito
nacional como internacional. No período de 1955 a 1964, alguns episódios
transformaram a Igreja. O Papa João XXIII, por exemplo, promoveu reformas
importantes. As encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963)
modificaram o pensamento católico oficial. Estas encíclicas procuravam
estar em sintonia com o mundo secular moderno, procurando melhorar a
vida das pessoas e promover a justiça social.
A carta encíclica Mater et Magistra, considerada “como a primeira
encíclica a tratar dos problemas dos países pobres”(MACHADO&MAR-
QUES, 2015, p.155), propagava a ideia de um mundo mais justo, menos
desigual e revelava alguns aspectos da luta dos trabalhadores, temática
inclusive reatualizada e ampliada nos ensinamentos da encíclica “RERUM
NOVARUM,” do Papa Leão XXIII, datada de 1891. Nesse sentido, a Mater
et Magistra afirmava:
Sentimo-nos no dever de conservar viva a chama acesa pe-
los nossos grandes predecessores, e de exortar a todos que
nela busquem incentivo e luz, para resolverem a questão
social da maneira mais adequada aos nossos tempos. Por

69
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

este motivo, comemorando, de forma solene, a Encíclica


Leonina, comprazemo-nos em aproveitar a ocasião para
repetir e precisar pontos de doutrina já expostos pelos nos-
sos predecessores, e, ao mesmo tempo, fazer uma exposição
desenvolvida do pensamento da Igreja, relativo aos novos
e mais importantes problemas do momento. (MATER et
MAGISTRA, 2010, p.17).

A encíclica, portanto, centraliza a discussão e o interesse em pro-


blemas atuais, dentre eles, a questão da pobreza, da distribuição desigual
da renda no mundo e suas consequências.
A REMUNERAÇÃO DO TRABALHO
Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espe-
táculo tristíssimo de inumeráveis trabalhadores, em muitas
nações e continentes inteiros, os quais recebem um salário
que os submete, a eles e às famílias, a condições de vida in-
fra-humanas...“Mas, alguns desses países, a abundância e o
luxo desenfreado de uns poucos privilegiados contrasta, de
maneira estridente e ofensiva, com as condições de mal-es-
tar extremo da maioria... “Devem considerar-se exigências
do bem comum, no plano nacional: dar emprego ao maior
número possível de trabalhadores; evitar que se constituam
categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores...
(MATER et MAGISTRA, 2010, p.23 e 27).

A Carta Encíclica centralizou alguns aspectos, como a luta desigual


entre os grupos sociais, a pobreza e a exploração do trabalho. Estas pareciam
ser questões fundamentais da Igreja Católica do período. Não sem propósito,
a encíclica Mater et Magistra foi produzida nesse cenário de mudanças
significativas da instituição romana sob o comando de João XXII. Uma
dessas alterações foi a organização do Concílio Vaticano II (1962-1965),
Concílio Ecumênico inaugurado no dia 11 de outubro de 1962 que reuniu
os bispos do mundo inteiro, em Roma, “para discutir uma visão mais aberta
da Igreja.” (MAINWARING, 2004, p.62). O Concílio, realizado em quatro
sessões, terminou no dia 08 de Dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo
VI, que de maneira geral, continuou o processo de renovação da Igreja até
sua morte, em 1978.

70
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

O Concílio foi composto por uma série de conferências realizadas


entre 1962-1965 e, de maneira geral, teve como objetivo modernizar a Igreja
e atrair os cristãos afastados da religião. Temas como rituais da missa, os
deveres de cada padre, a liberdade religiosa e a relação da Igreja com os fiéis e
os costumes da época permearam as discussões. Após três anos de encontros,
as autoridades católicas promulgaram 16 documentos (quatro constituições,
três declarações e nove decretos) como resultado do Concílio. Entre eles,
a Sacrosanctum Concilium (trata da Liturgia); a Lumen Gentium (trata sobre
a Igreja); a Dei Verbum (trata sobre a revelação e a escuta e transmissão da
Palavra de Deus); a Gaudium et Spes (trata da questão da relação da Igreja
com o mundo moderno).
As Declarações expõem a visão da Igreja sobre determinadas ques-
tões importantes da sociedade: Gravissimum Educationis (trata da educação
católica); Nostra Aetate (trata da relação entre a Igreja e os não-cristãos); e
Dignitatis Humanae (trata da questão da liberdade religiosa). Os Decretos
apresentam as normas disciplinares e pastorais advinda da reflexão conciliar:
Unitatis Redintegratio (trata do Ecumenismo); Orientalismo Ecclesiarum
(trata das igrejas orientais católicas); Optatam Totius (trata da formação dos
presbíteros); Perfectae Caritatis (trata sobre a vida religiosa); Christus Dominus
(trata sobre o serviço pastoral dos bispos); Apostolicam Actuositatem (trata
do apostolado dos leigos); Ad Gentes (apresenta a atividade missionária da
Igreja); Presbyterorum Ordinis (trata do ministério e da vida do presbítero); e
Inter Mirífica (trata da relação da Igreja com os meios de comunicação social).4
Pode-se pensar que Concílio trouxe mudanças significativas nas
questões teológicas e na hierarquia da Igreja, apesar das:
“Contradições, tensões e limites que cercavam as mudan-
ças, o Concílio enfatizou a missão social da Igreja, declarou
a importância do laicato dentro da Igreja... desenvolveu a
noção de Igreja como povo de Deus, valorizou o diálogo
ecumênico, modificou a liturgia de modo a torná-la mais
acessível... Nesse sentido, as encíclicas apostólicas pro-
gressistas e o Vaticano II incorporaram e legitimaram ten-
dências que já existiam ao invés de criar algo de novo.... o
Concílio Vaticano II reproduziu uma dialética que reapa-
rece nas várias instâncias da Igreja Católica. A mudança

4 Ver www.ihu.unisinos.br. Acesso em 07 jan 2015.

71
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

iniciou-se a partir da base, mas tomou impulso somente


quando foi legitimada pela cúpula.” (MAINWARING,
2004, p.62-63).

A Igreja tentava se modificar. Muitos desses documentos indicavam


o caminho a ser seguido pela instituição, como o “Pacto das Catacumbas
da Igreja Serva e Pobre”, documento redigido por um grupo de padres
participantes do Concílio Vaticano II no dia 16 de novembro de 1965, pouco
antes da conclusão do Concílio. Por este documento de treze itens, firmado
na Catacumba de Domitila, em Roma, eles se comprometeram a levar uma
vida de pobreza, rejeitar todos os privilégios e símbolos de poder (trocando
a cruz de metal pelo anel de madeira e renunciando às insígnias episcopais,
por exemplo) e colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral.
( PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE, 1966).
Entre os quarenta padres signatários, nada menos que quatro fazem
parte do grupo de bispos proféticos nordestinos: Antônio Fragoso, Crateús
–CE), Francisco Austregésilo de Mesquita Filho Afogados da Ingazeira PE,
Hélder Câmara (Olinda e Recife-Pe) e José Maria Pires (João Pessoa-Pb).
(COSTA,2013, p.17)
O impacto do Concílio Vaticano II na Igreja Brasileira foi apontado
por Dom Jose Maria Pires como um motor de mudança. “Sempre houve,
na Igreja, teólogos, pastores e leigos que assumiram uma posição dialética,
em favor dos oprimidos, mas foi só a partir do Vaticano II que essa posição
tornou-se oficial e as atitudes foram sendo sistematizadas.” (MAINWARING,
2004, p.63).
A publicação da Mater et Magistra, em maio de 1963, levou a CNBB
a emitir a Declaração da Comissão Central, a qual, estando baseada na
encíclica papal, teve como papel renovar:
[...] nos meios católicos progressistas menos radicais a con-
fiança na Doutrina Social da Igreja reascendeu debates
controvertidos como a ênfase na função social da proprie-
dade privada, a participação dos trabalhadores nos lucros
das empresas, a socialização dos meios de produção, a re-
forma agrária etc. [...] O documento era praticamente diri-
gido à Ação Católica Rural, postulando maior dinamismo
para o meio agrícola – Juventude Agrária Católica (JAC) e

72
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Liga Agrária Católica (LAC) – no sentido de ‘assegurar’ às


massas católicas no campo ‘mística forte para contrabalan-
çar e superar a mística comunista’. Neste contexto, a CNBB
aplaudia como iniciativas dignas de apoio e chancela a
sindicalização rural, em processo na Igreja do Nordeste, as
‘frentes agrárias’ de iniciativa dos Bispos do Norte do Para-
ná e do Rio Grande do Sul e, especialmente, o Movimento
de Educação de Base (MEB) (PIERUCCI in MACHADO
&MARQUES, 2015, p.155-156).

O cenário de mudança, sobretudo a partir do surgimento dos


movimentos de cultura e educação popular, ajudaram a impulsionar a Igreja
para que esta se aproximasse dos problemas do mundo atual. Nesse sentido,
o crescimento dos movimentos populares no final dos anos de 1950 foi
fundamental, pois encorajava a inovação do trabalho pastoral entre pobres,
trabalhadores e os grupos menos favorecidos. Para Scoot Mainwaring, esses
movimentos:
Afetaram muitos líderes da Igreja, tanto por chamarem
atenção para a importância de se dar apoio às reformas,
quanto por criarem, no caso de conservadores, uma cons-
cientização do rápido crescimento da esquerda. Inovações
na educação popular, inclusive o Movimento de Educação
de Base (MEB), o trabalho de Paulo Freire e os Centros de
Cultura Popular, estimularam reflexões sobre o papel das
massas na sociedade. (MAINWARING, 2004, p.64).

Os acontecimentos sociais e políticos do período do final da


década de 1950 e início de 1960 marcaram aspectos fundamentais na
história dos movimentos sociais no país. Havia formas de organização
dos trabalhadores no campo, como as Ligas Camponesas de Pernambuco,
bem como a politização, cada vez mais crescente, da União Nacional dos
Estudantes (UNE), ambos radicalizando mais à esquerda da política. De
outro modo, o governo de João Goulart tentava coalizar as forças políticas
no país, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Ligas Camponesas,
a Frente Parlamentar Nacionalista, o movimento sindical representado pelo
Comando Geral dos Trabalhadores, militares, como sargentos do exército,
marinheiros e fuzileiros da Marinha, entre outros grupos, uma vez que as
pressões internas e externas eram cada vez maiores. Não sem propósito, o

73
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

governo tentava implantar as reformas de base. Entretanto, para os grupos


mais à esquerda, estas foram apenas uma etapa da revolução brasileira.
(FERREIRA, 2011, p.279).
Todavia, o governo de Jango conseguiu implementar algumas políticas
considerada à época progressistas, como aprovação, no Congresso, da Lei de
Diretrizes e Base da Educação, execução do Plano Nacional de Educação,
“com uma campanha de alfabetização em massa utilizando o método Paulo
Freire.” (FERREIRA, 2011, p.280).
Nesse cenário, ganhou força os movimentos populares e/ou os
movimentos educacionais e de cultura, dentre eles destaca-se o MEB.

Como funcionava o MEB: cenário e política


Antes de analisar as produções discursivas sobre o Movimento de
Educação de Base é necessário apresentar a estrutura do MEB nos primeiros
cinco anos de sua criação (FÁVERO, 2006, p.5), a seguir descritos:
• No âmbito nacional, era coordenado por um Conselho Diretor
Nacional, composto de bispos e um representante do Ministério
de Educação e Cultura.
• Cada Estado contava com uma Coordenação Estadual.
• O sistema rádio educativo atingia uma área determinada que na
maioria das vezes correspondia à área geográfica da diocese a que
se vinculava.
• A base era estruturada através de uma rede de escolas radiofônicas
ou por uma teia de grupos, em geral havia nos sistemas uma com-
posição entre os dois.
No período de 1961 a 1965, considerado áureo da abrangência do
MEB pelo Brasil, houve um aumento do número das escolas radiofônicas,
passando de 2.687, em dezembro de 1961, para 7.353, em setembro de 1963.
No período pós-golpe militar, ainda existiam, em dezembro de 1965, mais
de 4.500 escolas radiofônicas. Pode-se considerar que, em cinco anos, um
número aproximado de 320 mil alunos concluiu o ciclo de alfabetização
(FÁVERO, 2006, p.6).

74
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

O cenário político e social do Brasil assinalava, desde a segunda


metade dos anos de 1950, um quadro em que os movimentos sociais e políticos
lutavam por direitos, entre eles o direito a posse da terra. Nesse sentido,
as ligas camponesas em Pernambuco indicaram o início dessa luta. Aliado
a esse aspecto, não se pode esquecer a situação precária dos trabalhadores
rurais do Brasil, como os da região Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Assim, o quadro político e social nessas regiões se agravava, ocorrendo
denúncias das condições precárias do trabalho nas zonas rurais, destacando
a completa ausência dos direitos trabalhistas, influenciando de maneira
significativa no cotidiano das famílias dos trabalhadores, além dos altos
índices de analfabetismo da população. Na década de 50, dioceses do Rio
Grande do Norte e de Sergipe já realizavam experiências de educação pelo
rádio e, formalizaram tempos depois “à Presidência da República, em
nome da CNBB, proposta de criação de amplo programa de alfabetização
e educação de base, através das escolas radiofônicas” (FÁVERO, 2004, p.2)
Essas experiências juntamente com outras do mesmo período,
como a “Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos
e Campanha Nacional de Educação Rural, radiofusão educativa realizadas
pela Igreja Católica na América Latina, sistema rádio educativo nacional,
organizado em 1957, pelo Ministério da Educação e Cultura,” (FÁVERO,2004,
p.3) entre outras experiências favoreceram a criação do MEB no Brasil.
Para criação do MEB, foram firmados convênios com órgãos públicos,
como o Ministério da Educação e Cultura, Ministério da Agricultura,
Ministério da Saúde e outros setores da administração pública federal que
colaboravam financeiramente e, em certa medida, de maneira técnico-ad-
ministrativa. Teve como finalidade a promoção do homem carente das
áreas menos desenvolvidas do país e para atingir seus objetivos, celebrou
convênios com instituições públicas e privadas. Em 1967, através do decreto
militar, foi considerado órgão de colaboração do MEC (MEB, 1979, p. 7).
Nos tempos iniciais do MEB, no período de 1961 a 1966, tentavam
discutir e implementar em algumas regiões do Brasil o conceito de Educação
de Base, definido pela UNESCO:
Educação de Base é o mínimo de educação que tem por fim
ajudar as crianças e os adultos, privados da vantagem de

75
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

uma educação escolar, a compreenderem os problemas do


meio em que vivem, a fazerem uma ideia dos seus direitos
e deveres, tanto coletivos como individuais, e a participa-
rem mais eficazmente do progresso econômico e social da
comunidade da qual fazem parte. Ela tem, igualmente, um
trabalho de formação que visa a despertar a consciência
e a dignidade da pessoa humana e a desenvolver o senti-
mento de solidariedade cultural e moral da humanidade.
(MEB,1979:7-8).

Nessa perspectiva, o MEB centralizou seu discurso na ideia de que


o trabalhador e a trabalhadora no campo obtivessem os conhecimentos
mínimos para se levar uma vida humana, uma vida com condições dignas.
Considerando como básica “a educação que forma o homem na sua eminente
dignidade de pessoa. Daí decorre, como condição primeira, o direito de
viver humanamente.” (MEB em 5 anos,1982, p. 22) Assim, o básico pode ser
compreendido não apenas como o primeiro, inicial ou a alfabetização para
a instrução, mas como ação radical para o ser humano, no sentido de que
tome a direção de sua vida enquanto sujeito, consciente sobretudo de seus
direitos. Dessa forma, o MEB estabeleceu “em suas declarações iniciais, a
preocupação com uma população eminentemente rural, local, atribuindo
genericamente a esta população o conceito de camponês, homem do campo
ou homem rural” (SOUZA, 2010, p. 290).
Os números sobre a atuação do sistema radiofônico do MEB im-
pressionam no período considerado áureo. “De 11 sistemas, em 1961, chega
a 31, em 1962, a 59, em 1963, atingindo o Nordeste, parte da Região Leste e
parte da Região Amazônica.” (MEB em 5 anos, 1982, p.76). Pode-se pensar
que nas 15 unidades federativas que criaram o MEB o foco era a cultura
como ferramenta política para modificar uma realidade extremamente
desigual e que a história só seria possível de ser realizada, através da luta e
do combate (FOUCAULT, 2001).
Nessa perspectiva, pode-se pensar que o MEB estava intimamente
ligado à educação popular, que tinha como proposição e diretriz que o
“povo devia ser o agente de sua própria história” (MAINWARING, 2004,
p. 88). Assim, o MEB se declarava da seguinte maneira:

76
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Já em meados de 1962, o MEB declarou-se a favor da trans-


formação social radical. A educação deveria ser um meio de
realizar essa transformação ao invés de ser um fim em si. O
MEB enfatizava a conscientização, uma abordagem que en-
corajasse o povo a enxergar os seus problemas, como parte
de um sistema mais amplo (MAINWARING,2004, p.88).

O discurso central do MEB, portanto, tomava o “povo” como ponto


de partida para a transformação seria possível através da participação
popular, criticando dessa forma toda e qualquer prática paternalista. O MEB,
juntamente com outros movimentos, mais particularmente com o método
de educação utilizado por Paulo Freire, fez com que a Igreja desenvolvesse
um novo tipo de trabalho junto aos segmentos populares.
Nesse sentido, o MEB partia da necessidade de se trabalhar como o
povo percebia sua realidade, “ao invés de começar por considerações mais
abstratas ou tentar divulgar uma consciência revolucionária. Também
implicava um respeito pela cultura e valores populares e pelo indivíduo.”
(MAINWARING, 2004, p. 88-89). Osmar Fávero avaliou o trabalho dos
membros da equipe do MEB como necessário naquele contexto:
“[A sensação que dava na gente] é que estávamos fazendo
um trabalho que valia a pena... tudo bem a gente podia ter
sido ingênuo, mas fomos verdadeiros, a gente acreditava
que podia mudar o Brasil dentro de uma perspectiva de
um socialismo utópico....a gente queria um modelo...não
era um modelo nem da Rússia nem de Cuba, era um mo-
delo mais próximo talvez da África que a gente conhecia
de leitura ou coisa assim, agora 1964 quebrou basicamente,
quebrou (silêncio) eu não sei..” 5

Em 1964, os líderes progressistas sofreram um duro golpe, pois os


militares, juntamente com a direita católica, restringiram o papel do MEB,
reduzindo seu papel político. Restringiram a atuação mais política do MEB,
centralizando seus trabalhos para a alfabetização dos moradores das zonas
5 Faço referência especialmente ao professor doutor Osmar Fávero, ex-integrante da
Diretoria Nacional do MEB que concedeu entrevista oral em 05 abril de 2016, em sua
residência no Rio de Janeiro. Osmar Fávero também cedeu documentos produzidos pelo
MEB, nesse acervo documental foi possível encontrar alguns documentos sobre o MEB-
Bahia.

77
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

rurais da região, retirando em parte, sua linha histórica que consistia na


Educação Popular (autonomia do Educando que contribuía para que este
se tornasse sujeito).
Uma das medidas criadas pelo governo militar foi instituir, em
1967, o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), como uma das
formas de esvaziar a ação política do MEB. Segundo alguns depoimentos
colhidos, em Amargosa, município baiano, equipes do MEB na década de
70 chegaram a utilizar material do MOBRAL para as atividades na diocese.
Devido ao prestígio que obteve por conta do trabalho desenvolvido,
o MEB e “graças à proteção da Igreja, foi a única experiência de educação
popular a sobreviver ao golpe. Entretanto, a sobrevivência tinha um
preço: o MEB foi obrigado a moderar suas atividades.” (MAINWARING,
2004, p.89). Entre as medidas repressivas do Estado, estavam a redução do
orçamento para o movimento, além de um certo controle e ambivalência
da hierarquia católica, deixando em certos aspectos de ter sido “um dos
impulsos chaves na transformação da Igreja. Mas o MEB pôde continuar
as experiências progressistas na educação popular numa época em que isso
era extremamente difícil” (MAINWARING,2004, p.89).

As experiências do MEB- Bahia


Na Bahia, o MEB parece ter sido instalado a partir de 1962, mas a
documentação escrita sobre esse período no estado é restrita. Uma alternativa
viável tem sido a realização de entrevistas orais com alguns representantes da
Igreja Católica, lideranças locais e um dos membros da Diretoria Nacional
do movimento que participou dos treinamentos na Bahia. Além disso, a
Diocese de Amargosa tinha uma abrangência considerável na região e os
documentos sobre o MEB estavam sob a guarda do bispo da cidade. O
município de Amargosa compõe a nomeada região econômica do Recôncavo
Sul do Estado da Bahia, “integrando um dos vinte cinco municípios que
constitui a bacia do rio Jiquiriça.” (AMARGOSA, s\d:4) Segundo alguns
registros históricos, Amargosa foi “o centro de uma região de economia
basicamente cafeeira.” (SANTOS, 1963, p. 5).
Em um cenário no qual parte da população de Amargosa vivia da
produção econômica voltada para a agricultura e pecuária, é significativo

78
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

considerar suas condições de trabalho. A vida no campo, permeada de


muitas dificuldades e de trabalhos, muitas vezes inadequados e exploratórios,
poderá explicar, em parte, a formação e atuação de sindicatos, tendo como
apoio, em muitas localidades, o trabalho de assessoria de membros da Igreja
Católica junto a essas entidades. Conscientizar pode ter sido considerado
a palavra de ordem de muitos componentes do MEB para o trabalho, luta
e articulação dos sindicatos rurais. Assim, em uma primeira abordagem,
pode-se pensar em três aspectos do trabalho do MEB em Amargosa: resgate
da cidadania, ação sindical e comunicação popular.
O sujeito deveria se (re)conhecer dono de sua história. Para isso,
deveria lutar pelas condições necessárias, tentando romper os obstáculos
produzidos de sua realidade. Assim, pregava o método utilizado pelo MEB,
em parte baseado nas lições do educador Paulo Freire, em que a autonomia
dos sujeitos se constituía em sua filosofia de trabalho e de vida, centralizando
o papel dos educadores para, entre outros aspectos, ensinarem aos seus
educandos\as a serem, “Serem Mais.” (FREIRE,2010)
Nessa perspectiva, pode-se pensar como foi significativo o trabalho
do MEB, não somente em Salvador e Amargosa, mas em todo o Brasil, pois
ao alfabetizar a população rural, proporcionava conhecer e compreen-
der o mundo que vivia, encorajando-a a seguir adiante, questionando,
problematizando a sua condição de população pobre, desassistida e que
desnaturalização a pobreza, passando, a partir desse método de ensino,
a historicizar o conjunto de causas que levavam àquela situação. E como
atingir um maior número de pessoas, uma vez que os autores da zona
rural superavam e muito o contingente urbano nos anos de 1960 e 1970? A
alternativa encontrada, baseada em experiências existentes desde os anos
de 1950, era o rádio.
Um rádio receptor, o conjunto didático composto de car-
tilha e livros de leitura, uma lousa, cadernos e lápis eram
os elementos necessários para a formação de uma escola
radiofônica. Além desses recursos, a escola de rádio depen-
dia da dedicação e boa vontade do monitor, trabalhador
voluntário com mínima escolaridade que era escolhido en-
tre os membros da própria comunidade em que a escola se
instalava. (SOUZA,2010, p. 285).

79
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Para a Igreja Católica, era uma forma criada “para multiplicar a


capacidade de alcance da educação de adultos.” (SOUZA, 2010, p.285). Por
outro lado, é preciso assinalar que essas ações interventoras da Igreja também
foram formas encontradas para enfrentar os problemas sociais, econômicos
e políticos. Alguns estudiosos da temática destacam que esta intervenção
da Igreja se fez por uma ala conservadora uma vez que os camponeses
disputavam espaço político sobretudo com o Partido Comunista Brasileiro e
outros movimentos\instituições esquerdistas. (SOUZA, 2010, p.283. Nota 3).
Discutir ou não o conservadorismo do movimento não constitui
o cerne da questão, estas questões perpassam na discussão sobre o MEB,
contudo, o trabalho do historiador consiste em traçar os fios de um enredo
que apresenta multiplicidades de fatos, acontecimentos. Portanto, requer
paciência, o historiador tece a vida de homens e mulheres em um determinado
espaço e durante um período.
As várias tramas, que tecem a história do MEB, formaram um mosaico
complexo daquela realidade sobre o movimento. Apontar se o movimento
foi conservador não enriquece a trama histórica. Ao invés disso, é mais
significativo para a pesquisa histórica, centralizar a análise dos múltiplos
significados que o MEB construiu. Um dos caminhos possíveis foi o de
conhecer parte do material didático produzido pela direção nacional do
movimento. Ao ler os livros, cartilhas, boletins, entre outros materiais, uma
pergunta foi se delineando com força: como foi possível selecionar discursos
contundentes que denunciavam a desigualdade social, econômica, cultural
de uma parte significativa da população do Brasil nos anos de 1960? Para
tentar responder esta pergunta, é necessário conhecer o material didático
produzido pelas lideranças do MEB e, aplicado, sobretudo, entre a população
pobre das zonas rurais das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país.

Os Livros de leitura: educar para transformar


Os livros de leitura e fundamentação, que serviram de base para
preparar as equipes do MEB, constituem em fontes de pesquisa que podem
revelar múltiplos aspectos da história do movimento na Bahia e demais
regiões do Brasil, centralizando os discursos construídos em torno da

80
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

conscientização dos sujeitos sobre sua história. Nessa primeira etapa da


pesquisa, foi possível identificar um conjunto de livros:
a) Os livros “Saber para viver” e “Viver é lutar,”6 livros de leitura
que destacavam a autonomia dos sujeitos, o trabalho e o direito à
terra, livros produzidos pela Diretora Nacional em parceria com
apoiadores, lideranças, intelectuais e professores do MEB;
b) O livro de leitura Fundamentação que reúne textos complementa-
res para fundamentação filosófica dos livros de leitura Saber para
Viver e Viver é Lutar;
c) Justificação que é um conjunto de textos complementares para
fundamentação filosófica dos livros de leitura Saber para Viver e
Viver é Lutar;
d) Mensagem também composto por textos complementares para a
fundamentação, no Evangelho, dos livros de leitura Saber para Vi-
ver e Viver é Lutar.

Os livros trazem múltiplos significados, entre eles, ensinam a ler


o mundo numa acepção em parte inspirada nos trabalhos de Paulo Freire,
como indica uma das lições de um dos conjuntos didáticos:
VIVER É LUTAR7
17ª.edição
Pedro ainda entendeu outras coisas
O povo ignora que é explorado
O povo ignora seus direitos e deveres
Seus direitos não são respeitados.
E as leis que existem não são cumpridas.
O povo precisa conhecer seus direitos e deveres.
O povo precisa ficar esclarecido.

6 Os livros foram fundamentais para a elaboração das aulas, preparadas pela equipe do
MEB e, aplicadas à comunidade, considerando como fundamental, a existência humana.
7 O livro Viver é Lutar está disponível em formato digital no endereço eletrônico www.
forumeja.org.br. É um dos primeiros livros de leitura do MEB nos anos de 1960.

81
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

As lições das cartilhas quase sempre foram enfáticas, diretas e


objetivas quando se tratava de narrar a situação econômica e social dos
trabalhadores do Brasil. A desnaturalização da miséria e das condições
de vida e de trabalho parece ter sido um dos objetivos das cartilhas, que
tinha o propósito de alfabetizar jovens e adultos, respaldando-se na própria
realidade do educando. Através dessa metodologia e filosofia de trabalho,
o MEB educou muitos alunos e alunas nas regiões nordeste, norte e centro
oeste do Brasil.
Um estudo mais aprofundado sobre o conjunto didático produzido
pelo MEB associado ao uso de fontes orais é um caminho viável para que
estudos e pesquisas nas áreas das Ciências Humanas, Ciências Sociais e
Educação revelem os múltiplos aspectos da história sobre o Movimento
de Educação de Base.
Os depoimentos orais tornaram-se centrais nos estudos do presente,
particularmente na pesquisa sobre o Movimento de Educação de Base.
Através deles, percorreu-se o caminho da memória, buscando entender as
interdições, as nuances, o caráter subjetivo das narrativas contadas, (re)
atualizando o passado de acordo com as necessidades do presente, imputando
assim, aos trabalhos com fontes orais uma de suas singularidades: o caráter
subjetivo das histórias contadas e organizadas em forma de narrativas. É
possível também pensar como, em certa medida, o MEB contribuiu para
que a população do campo construísse sua própria trajetória, reivindicando
direitos, denunciando as perigosas condições de trabalho. Não sem propósito,
o regime militar reprimiu duramente as atividades, consideradas mais
subversivas no pós 1964.
Sobre este aspecto, é emblemático o depoimento do professor
Osmar Fávero, ex-membro da Diretoria Nacional e, que também realizou
treinamentos com equipes pelo Brasil, incluindo a Bahia. Ao ser questionado
sobre a repressão do regime militar, afirmou que ele e mais alguns partici-
pantes do MEB foram “chamados no DOPS para prestar esclarecimentos
sobre as fotografias e, consequentemente, sobre os textos que criávamos
para as cartilhas...”8 Fávero também citou outros professores, intelectuais
que trabalhavam em prol do movimento. Um deles foi o antropólogo,
8 Entrevista com Osmar Fávero, realizada em 05 abril 2016. Entrevistadora Sara Oliveira
Farias.

82
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Carlos Brandão. Narrando suas experiências e vivências sobre o movimento,


Brandão afirmou:
Eram os anos sessenta. Sonhávamos com a felicidade repar-
tida entre todas e todos. Lutávamos para transformar tudo:
o coração e a mente das pessoas, a força criadora do povo; a
sociedade perversa, injusta, excludente, desigual...
E, talvez naqueles anos, antes e durante os “anos de fogo”
da ditadura militar, aprendemos a viver nossas lutas de bus-
ca da liberdade ou de resistência, de viver a luta também
como vivência coletiva. E por isso fazíamos teatro, pintura,
cinema, poesia e música... aprendemos, entre camponeses,
estudantes e artistas, a inventar outras letras para as nossas
músicas, pois queríamos traduzir e cantar outros desejos
e outros mundos...(BRANDÃO apud CD CANTOS DA
RESISTÊNCIA,2015,.p.3)

A experiência de trabalhar com o MEB parece ter sido uma apren-


dizagem para todos os envolvidos. Através não apenas das cartilhas, livros,
boletins, mas também da arte, foi possível traduzir aquela realidade dos
homens e mulheres do campo. Como afirmou uma das lideranças do MEB,
no estado de Goiás:
A fecunda troca de conhecimentos e saberes, a proble-
matização como forma de apreensão crítica da realidade,
as perspectivas de esperança, na luta por uma sociedade
igualitária, conferem ao MEB, com a originalidade de seu
modelo pedagógico, um papel relevante na construção
da Educação Popular, em nosso país.(BORGES apud CD
CANTOS DA RESISTÊNCIA,2015,p.5)

Nessa perspectiva, a estratégia pedagógica para apreender de forma


crítica aquela realidade do Brasil parece ter sido ampla. Foram criadas
canções por artistas, estudantes, militantes da Ação Popular9 entre outros,
quase sempre as canções traduziam a situação precária em que viviam os
trabalhadores rurais e a população das regiões mais pobres e carentes do país:
9 A Ação Popular – AP, movimento político, criado nos anos de 1960 a partir de ações,
reflexões e práticas de um grupo de militantes da Ação Católica brasileira com objetivos
de interferir na realidade social para transformá-la em uma sociedade menos desigual,
mais justa e humana.

83
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Meu Brasil (Sambinha)


Betinha (Goiânia, 1962)
Meu Brasil analfabeto
Meu Brasil de pés descalços....
Meu Brasil, a juventude
Fará com que a coisa mude
Pra que todos tenham pão
Levará você pra frente
Convocando toda a gente
Pra fazer revolução. (CD CANTOS DA RESISTÊNCIA,
2015, p.16)

Esta canção conhecida pelo MEB como sambinha da Betinha,


geralmente era cantada nos encontros, congressos e atividades dos núcleos
de cultura e educação popular como o MEB, CPC, JUC e AP. O “sambinha”
tornou-se o hino do grupo e foi apresentado em teatros, locais públicos,
no período entre 1962-1965, anos considerados áureos pelo MEB. A canção
é um hino à liberdade, aos direitos, à utopia de um Brasil mais igualitário,
uma crítica profunda à situação do país.
As canções, juntamente com o conjunto didático e os relatórios
anuais produzidos e utilizados pela equipe do MEB, tornam-se fontes de
pesquisa significativas para o estudo de um Brasil contemporâneo, que
revelam lutas, práticas de determinados segmentos da população pobre do
Brasil, sobretudo das zonas rurais do país. Portanto, abrem possibilidades de
investigação para uma História política do Tempo Presente, mas também
para o estudo da cultura, da educação popular e da Igreja contemporânea.
O MEB, criado em 1961 como sociedade civil, de direito privado,
sem fins lucrativos, continua atuando na atualidade, realiza ações diretas
de educação popular em diversas regiões do país com destaque. A opção
preferencial definida em seu estatuto é pelo trabalho em áreas populacionais
do país em que os indicadores socioeconômicos revelam situação de pobreza
e, consequentemente, índices sociais e econômicos abaixo dos desejados.
Sua missão é contribuir para a promoção humana integral e superação da
desigualdade social por meio de programas de educação popular libertadora
ao longo da vida.

84
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

No cenário brasileiro atual, em que a Democracia tem sido cons-


tantemente ameaçada e o avanço do fascismo inevitável, o MEB ressignifica
seu papel na contemporaneidade e, continua conclamando, não apenas
os mebianos, mas também a sociedade brasileira a lutar, pois o caminho
é a luta, o combate e, assim, mais atual não poderia deixar de ser um dos
títulos dos livros de leitura do MEB, “Viver é lutar”. Continuamos exigindo
um mundo menos desigual e tentando resistir a onda conservadora e de
extrema direita que invadiu o Brasil em pleno século XXI.

Referências
Fontes:
Arquivo do CEDIC- PUC-SP

Impressas
- MEB. Relatório Anual do Movimento de Educação de Base, 1979
- MEB em 5 anos.1982
- Livro de Leitura Viver é Lutar.

Sonoras
- CD Cantos da Resistência: Pela preservação da memória contra o esque-
cimento ( 07 novembro 2015)

Oral
- Entrevista com Osmar Fávero, professor aposentado da UFF e ex-diri-
gente do MEB- Nacional em 05 abril 2016, na cidade do Rio de Janeiro.
Entrevistadora Sara Oliveira Farias.

Bibliografia
BEOZZO, José O. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II 1959-1965,
São Paulo, Paulinas, 2005.

85
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

COSTA, Iraneidson Santos. “Eu ouvi os clamores do meu povo:” O epis-


copado profético do nordeste brasileiro. Horizonte. Belo Horizonte, v.11,
n.32, out/dez 2013, p.1461-1462.
FÁVERO, Osmar. “MEB- Movimento de Educação de Base. Primeiros
tempos:1961- 1966.” In V Encontro Luso-Brasileiro de História da Educação,
Évora, Portugal,2004.
_______________. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática
educativa do MEB – Movimento de Educação de Base (1961-1966). Campinas-
SP: Autores Associados,2006. (Coleção Educação Contemporânea).
FERREIRA, JORGE. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2011.
FERREIRA, Marieta de Moares. “História do Tempo Presente, História
Oral e ensino de História.” In RODEGHERO, Carla; GRINBERG, Lucia
; FROTSCHER, Méri(org) História Oral e práticas educacionais, Porto
Alegre, EDUFRG.2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários á prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010 (coleção leitura)
FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a Genealogia e a História.” In: Microfísica
do Poder.16ª.ed.Rio de Janeiro: Graal,2001.
MACHADO, Vitor &MARQUES, Antonio F. “A trajetória do MEB ( Movimento
de Educação de Base ) e o significado dos programas de educação rural instituídos
pelo governo militar (1964-1985)”. Revista de Ciências da Educação. UNISAL,
Americana, São Paulo, ano XVII, n.33,jul/dez, 2015, p.149-172.
MATER et MAGISTRA – Carta Encíclica de sua Santidade o Papa João
XXIII sobre a evolução da questão social à luz da Doutrina Cristã. 13ª.
ed.São Paulo.
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985).
São Paulo: Brasiliense, 2004.
SOUZA, Claudia Moraes. “Vida e Trabalho no mundo rural: trabalhadores
do Movimento de Educação de Base (1961-1964)” In: Revista Mundos do
Trabalho, vol.2, n.3, janeiro-julho de 2010, p.281-306.

86
DISCURSO E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO
IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF
Ivana Veloso de Almeida1

Ao trabalharmos com a Teoria da História é possível compreender


sua importância para a elaboração de trabalhos acadêmicos e, sobretudo,
para a compreensão de conteúdos vinculados à História em suas variadas
dimensões, podendo, assim, alcançar aspectos decisivamente importantes.
A partir deste pressuposto, Arthur Assis (2010) nos coloca que a Teoria da
História, desde as conferências propedêuticas dos historiadores alemães do
século XVIII, que inauguraram a sua vertente moderna, tem como uma de
suas atribuições responder à questão: o que fazem os historiadores, quando
fazem história? Todavia, nos últimos 250 anos, os historiadores e filósofos
que se ocuparam do tema chegaram a respostas frequentemente colidentes
e não raro irreconciliáveis.
Dessa maneira, Arthur Assis (2010) ressalta que, de fato, está longe
de ser alcançado um consenso abrangente que pusesse fim às muitas e
infrutíferas dicotomias que marcam a reflexão sobre história e historiografia,
tais como realismo e construtivismo, método e narrativa, objetividade e
subjetividade, ciência e vida, entre várias outras. Acredita-se, porém, que,
ao menos uma parte do impasse, seria ultrapassada caso fosse possível
acordar que, ao fazerem história, os historiadores profissionais põem em
marcha, no mínimo, três procedimentos fundamentais. Primeiramente eles
(e mesmo aqueles melhor escondidos por detrás de fantasias metodológicas
como o empirismo puro ou a imparcialidade total) assumem consciente ou
inconscientemente posições nos contextos sócio-político-culturais em que
estão inseridos. Em segundo lugar, os historiadores pesquisam registros das
experiências pretéritas, com escolhas de temas e estruturas das interpretações
amiúde nas quais se relacionam com as suas expectativas de futuro, em que
se desenvolvem também em jogo com as suas auto apreciações do próprio
presente. Em terceiro lugar, eles escrevem narrativas nas quais, por se referirem
de maneira controlada à experiência do passado, se pretendem plausíveis.

1 Mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros-UNI-


MONTES. Bolsista da CAPES- Apoio Financeiro da FAPEMIG.

87
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Nessa perspectiva, Aróstegui (2006), em seu texto O Processo


Metodológico e a Documentação Histórica, apresenta-nos um plano de pesquisa
e os cuidados que se deve ter no campo da pesquisa histórica. Para tanto, o
autor frisa a importância da metodologia no plano de pesquisa. Neste mesmo
caminho, Revel (2010), em seu texto Micro-História, Macro-História: o que as
variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado, traz reflexões
importantes acerca das várias maneiras de se escrever história, definidas
por várias metodologias, que consequentemente resultarão em técnicas de
pesquisas diferenciadas. A partir deste pressuposto, o autor ressalta que
a micro-história trouxe benefícios para a ciência história como um todo,
pois incluiu no trabalho do historiador uma gama de fontes de pesquisa
até então desconhecidas e que permitiu reconstituir com melhor detalhe o
cotidiano do passado.
Por outro lado, é importante destacar a história social como uma
modalidade da historiografia na qual possui a sua interdisciplinaridade com
as ciências sociais e sobretudo rica em objetos de estudos. Sendo assim, a
história social se abre a variadas possibilidades de delimitações de trabalhos
de pesquisadores, principalmente historiadores que atuam no campo
interdisciplinar. Assim, abre caminhos para que possamos trabalhar com
mais diversos temas, que estão na nossa contemporaneidade, assim como
o objeto de estudo da presente pesquisa, o impeachment de Dilma Rousseff.
Para tanto, o objetivo deste trabalho é discutir algumas teorias
e mostrar, de modo geral, como o discurso, as representações sociais e o
imaginário estão presentes no objeto de estudo aqui trabalhado. Por outro
lado, ao pensarmos no impeachment de Dilma, é necessário que discutamos
sobre o golpe contra a democracia brasileira durante esse cenário conturbado
enfrentado pela então presidente eleita. Primeiramente, procuramos discutir a
parte teórica; no segundo tópico, busca-se pensar o discurso e representações
sociais no impeachment de Dilma. E, por fim, fez-se uma reflexão em torno
da democracia brasileira com o golpe contra a presidente.

Uma Discussão Historiográfica


Hayden White (1994), em seu texto O Texto Histórico como Artefato
Literário, traz reflexões acerca da ciência como transgressiva e o olhar para

88
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

a história com o fazer histórico. Nesse sentido, o autor se propõe a nos


fazer pensar o texto histórico como um artefato literário, verbal e com
construção de sentido. O autor caracteriza o fazer histórico, ressaltando
que o que fazemos é literatura, uma vez que a história não é uma ciência
e está mais próxima da literatura por causa da sua subjetividade. Nessa
premissa, ele traz algumas comparações entre o texto histórico e o literário
para comprovar a sua tese.
Em linhas gerais, o autor busca discutir os termos história e estória,
citando R. G. Collingwood para mostrar que o historiador era, sobretudo, um
contador de estórias e afirmava que a sensibilidade histórica se manifestava
na capacidade de criar uma estória plausível, a partir de uma congérie de
“fatos” que, na sua forma não processada, carecia absolutamente de sentido.
Ele conclui ressaltando que os historiadores fornecem explicações plausíveis
para corpos de testemunhos históricos quando conseguem descobrir a
estória ou o conjunto de estórias contidas implicitamente dentro delas
(WHITE, 1994).
A partir deste pressuposto, isso sugere que aquilo que o historiador
traz à consideração do registro histórico é uma noção dos tipos de con-
figuração dos eventos que podem ser reconhecidos como estórias para o
público na qual ele está escrevendo (WHITE, 1994). Seguindo essa linha,
White (1994) cita Frye para dizer que a história é o modelo verbal de um
conjunto de acontecimentos exteriores à mente do historiador. Portanto,
por um lado, entende-se o olhar lançado sobre a materialidade, o olhar
semântico. Por outro, o conhecimento é histórico, não relativo.
Ao pensar neste olhar semântico no objeto de estudo desta pesquisa,
entende-se que o que está em jogo é entender até que ponto as pessoas
estavam votando para melhorar o Brasil, para assim fazer uma análise global
e entender quais os sentidos construídos pela mídia para compreender as
construções de sentidos e inscrições ideológicas presentes na situação do
impedimento da presidente. Levi-Strauss pontua uma decisão de “abandonar”
um ou mais dos domínios de fatos que se oferecem para inclusão em seus
relatos. Assim, suas explicações de estruturas e dos processos históricos são
determinadas mais pelo que deixamos de fora das nossas representações do
que pelo que nela incluímos (WHITE, 1994).

89
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Por outro lado, Keith Jenkins (2013), em seu texto A História


Repensada, traz discussões do que é história e diz que o objetivo é ajudar-nos
a desenvolver nossa própria reflexão sobre a história e a ter controle do
nosso próprio discurso. Pensando na história como artefato literário, Jenkins
(2013) coloca que os historiadores, vigorosamente práticos demais, ainda
fogem dos discursos teóricos e, decerto, os textos ocasionais sobre Teoria da
História não exercem pressão com o mesmo grau de intensidade que muitos
textos de teoria literária, por exemplo, têm sobre o estudo da literatura.
Para tanto, o autor busca tratar a história como discurso, e assim
ressalta:
Não obstante, pode-se muito bem dizer que esse é o ca-
minho que a história deverá trilhar se quiser modernizar-
-se. Por conseguinte, recorri a áreas correlatas, como, por
exemplo, a teoria filosófica e a literária – pois, se estudar
história refere-se a como ler e entender o passado e o pre-
sente, então me parece importante usar discursos que te-
nham por grandes preocupações as “leituras” e a elaboração
de significados (JENKINS, 2013, p. 20).

Nessa lógica, pensando o discurso no impeachment de Dilma, enten-


de-se o quanto o discurso, sobretudo da nova direita, descrita por Flávio
Henrique Calheiros Casimiro (2018, p. 41) com “um significativo avanço
do pensamento e da ação política de direita no Brasil”. Para tanto, a nova
direita é ressaltada pelo autor como “o discurso de ódio sobre minorias,
movimentos sociais e sindicatos, a perseguição a professores e à liberdade
de cátedra, o ataque a concepções progressistas, o repúdio ao bem público
e a exaltação exacerbada do mercado têm sido algumas das manifestações
dessa espécie de ‘refluxo’ reacionário”. Portanto, Casimiro (2018, p. 41)
pontuou que “o debate acadêmico progressista e crítico tem convergido
no entendimento de que esse fenômeno configura-se como a constituição
de uma “nova direita” no Brasil”.
Seguindo esta linha, Casimiro (2018) trouxe importantes posi-
cionamentos em relação à nova direita no Brasil, sobretudo durante as
manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff. O autor ressaltou que
não podemos reduzir tal fenômeno de avanço de pensamento e da ação
política da direita aos acontecimentos que marcaram o ano de 2015, como as

90
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

manifestações pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff. Nessa lógica,


Casimiro (2018) mencionou que:
Esse é um processo de reorganização das classes dominan-
tes que lança suas raízes em meados dos anos de 1980 e que
tem como uma de suas manifestações, entre várias outras,
o surgimento de um novo modus operandi de ação política
ideológica. Essa representação política não partidária dos
seguimentos de direita liberal conservadora, atualizada,
militante e, muitas vezes, truculenta, configura-se, por-
tanto, como aparelhos privados hegemonia, cuja ação foi
ganhando amplitude e intensidade, assim como foi radi-
calizado seu discurso ao longo do tempo (MIGUEL, 2018,
p. 41-2).

Nesses termos, pensando sobre a nova direita no Brasil, especialmente


nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, compreende-se
que ela influenciou a população no sentido de fazer com que fossem às
ruas protestar para o afastamento da presidente, o que nos faz perceber a
grande elaboração de significados presentes nesses discursos. Nesse sentido,
sabe-se que o objeto de estudo possui várias discussões e inquietações que os
historiadores querem responder, mas Jenkins (2013) relata que a história não
precisa falar tudo e que não temos todas as respostas. Mas lembra também
que a história é o oficio do historiador, que cabe a ele interrogar os fatos e
não deixar nada despercebido, ressaltando que o conhecimento histórico
não é relativo.
O texto História Nova, de Fernando Novaes e Rogério Forastieri (2011),
traz reflexões sobre a História Nova, o campo documental, o crescimento da
geografia de Vidal e a história política. Os autores buscam mostrar a história
como sendo produto do seu tempo e criticam o que veio antes da História
Nova. Outro ponto interessante é o discurso dos autores em relação à história
política. Segundo eles, ela é, por um lado, uma história narrativa e, por
outro, uma história de acontecimentos, uma história acontecimental, teatro
de aparências que mascara o verdadeiro jogo da história, que se passa nos
bastidores e nas estruturas ocultas, em que é preciso ir para seguir sua pista.
Seguindo essa linha, os autores fazem uma ressalva, dizendo que,
numa sociedade, seja ela qual for, tudo está interligado, tudo se comanda

91
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

mutuamente, a estrutura política e social, a economia, as crenças, as


manifestações mais elementares e as mais sutis da mentalidade. Assim
sendo, ao estudar a história política em um viés social, pode-se dizer que
esta contribui de maneira significativa, pois pode-se tematizar o político
de forma que priorize o seu enraizamento nas práticas sociais uma maneira
de entender a experiência política da população na esfera pública em seus
diversos aspectos.
Em relação à função do historiador, Michel de Certeau (1982)
relata que o historiador possui a função de dar voz ao não dito, através do
campo teórico-metodológico e do profissional da história, onde constrói
e confere sentido a um determinado acontecimento ou artefato, o qual é
visto fora de seu contexto e que não nos apresenta informação relevante.
Nessa perspectiva, entende-se a importância de trabalhar a questão do
gênero no impeachment, para dar voz às mulheres que muitas vezes são
silenciadas. Dilma Rousseff, mesmo exercendo o cargo político mais alto do
país, não era ouvida. A primeira mulher na história do Brasil que se tornou
chefe da nação deveria ser um fato histórico com grande repercussão na
mídia. No entanto, este momento histórico foi abafado porque ela estava
longe de ser a “bela, recatada e do lar”, mas sobretudo por não ser do sexo
masculino. Nessa direção, buscaremos discutir, de modo geral, o discurso
e as representações sociais no impeachment de Dilma Rousseff.

Discurso e Representações Sociais no


impeachment de Dilma Rousseff
Ao trabalharmos com a imagem pública, neste caso a de Dilma
Rousseff, sabe-se que essa imagem é construída, sobretudo, por um universo
de representações que emerge sobre cada um em seus mais variados espaços.
Seguindo esta linha, compreende-se que na sociedade atual, a mídia é vista
como uma mola importante para a produção das representações, onde estão
articuladas com as imagens públicas. A partir deste pressuposto, entende-se
a necessidade de discutir estas noções, sobretudo, o modo como elas se
entrelaçam na constituição para buscar entender como foi construída a
imagem pública de Dilma Rousseff durante o processo de impeachment,

92
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

onde os conceitos de representações, discurso e imaginário são importantes


para esse entendimento.
Quando falamos em representação, surgem algumas possibilidades:
representação política, legal, pictórica, midiática. Essas interpretações do
substantivo mantêm relação com as várias definições que o próprio verbo
representar possui. Segundo o Dicionário Aurélio, algumas acepções do
termo são: 1) ser a imagem ou reprodução de; 2) significar, denotar; 3)
desempenhar papel em espetáculo teatral, em filme; 4) reproduzir; descrever;
5) desempenhar o papel, as atribuições.
Empregamos o termo, cotidianamente, quando algo ou alguém está
no lugar de alguma coisa ou pessoa. Uma figura política que nos representa
ao ser votada e assumir o cargo; um (a) advogado (a) que nos representa
perante a Justiça; um familiar que vai à reunião de condomínio representando
toda a família; uma placa de trânsito com um “e” cortado, representando
a proibição de estacionamento naquele local. Esses exemplos configuram
algumas representações diárias com as quais temos contato (LIMA; SIMÕES).
Por outro lado, a representação é ilustrada por Roger Chartier (1991)
em seu texto O mundo como representação, enfatizando a subjetividade das
representações (a que se ligaria a uma outra história dedicada aos discursos
e situada à distância do real). Para tanto, o autor frisou que a princípio é
importante considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificação
e de percepção como verdadeiras “instituições sociais”, incorporando sob
a forma de representações coletivas as divisões da organização social. As
primeiras categorias lógicas descritas por Chartier (1991) foram as categorias
sociais; já, as primeiras classes de coisas foram classes de homens em que
estas coisas foram integradas, mas também considerar, corolariamente,
estas representações coletivas como as matrizes de práticas construtoras do
próprio mundo social. Assim sendo, o autor ressaltou que as representações
coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na
medida em que comandam atos. (CHARTIER, 1991, p. 183).
Nesses termos, pensando na construção das identidades sociais e
seu vínculo com as representações, Chartier ponderou da seguinte forma:
Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção
das identidades sociais como resultando sempre de uma re-

93
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

lação de força entre as representações impostas pelos que


detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de
aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz
de si mesma; outra que considera o recorte social objetiva-
do como a tradução do crédito conferido à representação
que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de
fazer reconhecer sua existência a partir de uma demons-
tração de unidade. Ao trabalhar sobre as lutas de repre-
sentação, cuja questão é o ordenamento, portanto a hie-
rarquização da própria estrutura social, a história cultural
separa-se sem dúvida de uma dependência demasiadamen-
te estrita de uma história social dedicada exclusivamente
ao estudo das lutas econômicas, porém opera um retorno
hábil também sobre o social, pois centra a atenção sobre as
estratégias simbólicas que determinam posições e relações
e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-
-percebido constitutivo de sua identidade (CHARTIER,
1991, p. 183-4).

Nesse ponto de vista, Chartier (1991) deixou claro que a representação


supõe uma definição clara entre o que representa e o que é representado;
de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma
coisa ou de uma pessoa. Para tal, o autor segue pontuando que:
A relação de representação — entendida como relação en-
tre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valen-
do pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a teoria
do signo do pensamento clássico, elaborada em sua maior
complexidade pelos lógicos de Port Royal. Por um lado,
são essas modalidades variáveis que permitem discriminar
diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, natu-
rais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que
é representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua di-
ferença com outros signos. Por outro lado, ao identificar
as duas condições necessárias para que uma tal relação seja
inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo,
no seu desvio em relação à coisa significada, e a existência
de convenções regulando a relação do signo com a coisa),
a Lógica de Port-Royal propõe os termos de uma questão
fundamental: a das possíveis incompreensões da represen-
tação, seja por falta de “ preparação” do leitor (o que reme-
te às formas e aos modos de inculcação das convenções),

94
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

seja pelo fato da “extravagância” de uma relação arbitrária


entre o signo e o significado (o que levanta a questão das
próprias condições de produção das equivalências admiti-
das e partilhadas (CHARTIER, 1991, p. 184-5).

A partir desta prerrogativa, ao pensarmos os discursos no impeach-


ment de Dilma, entende-se que essa categoria está inteiramente associada
ao modo como as coisas são significadas pelo sujeito, sobretudo quando
este se filia a uma determinada posição. Nesse sentido, a construção,
pela mídia brasileira, do impeachment de Dilma Rousseff, ex-presidente
do Brasil (2014-2016)2, é o acontecimento discursivo, visto nos gestos de
interpretação das mobilizações. Após as eleições presidenciais de outubro
de 2014, em que a então presidente Dilma Rousseff foi reeleita, uma série
de manifestações defendendo a instauração de um processo de impeachment
contra o seu governo passou a acontecer e a tomar conta dos noticiários em
todo o país ainda em 2015, primeiro ano de seu segundo mandato, o que
continua ocorrendo em 2016, com proporções ainda maiores. Ao final do
seu primeiro mandato, porém, já havia uma grande insatisfação em relação
ao seu governo (JESUS, 2017).
A despeito das profundas desigualdades, diferenças e desconexões que
estruturam a sociedade brasileira, a relação com as mídias digitais constitui
uma prática cultural já arraigada no cotidiano de um enorme contingente de
pessoas. Categorias analíticas como ciberativismo, ciberdemocracia e cida-
dania digital são exemplos de formulações teóricas recentes, que procuram
interpretar esse fenômeno e lhe conferir sentidos particulares nos processos
decisórios e eleitorais, bem como na própria configuração da agenda pública
do país. Tais formas de participação eletrônica pressupõem a apropriação

2 Dilma Rousseff se candidatou nas eleições presidenciais do Brasil em 2010, tendo como
seu vice Michel Temer (PMDB), e em 31 de outubro desse mesmo ano foi eleita presiden-
te do Brasil com 56,05% do total de votos válidos, contra 43,95% de José Serra. Em 2014
Dilma se candidatou novamente, tendo como vice novamente Michel Temer (PMDB),
no dia 26 de outubro de 2014, com mais de 54 milhões de votos, ela foi reeleita pelo povo
brasileiro. Em decorrência dos protestos que exigiam o impeachment da presidenta, em
31 de agosto de 2016 Dilma Rousseff perdeu o cargo de Presidente da República, depois
de longos três meses de tramitação do processo de impedimento, que havia se iniciado
no Senado em 2 de dezembro de 2015 pelo presidente da Câmara Eduardo Cunha com a
denúncia de Crime de Responsabilidade.

95
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

de mídias por parte de indivíduos ou de coletivos que reconstroem o social


na mediação com o universo on-line, produzindo manifestações variadas por
meio da experimentação de tecnologias e de modelos sociais (CARNIEL;
RUGGI; RUGGI, 2018).
Optamos por descrever o discurso da população através de duas
imagens retiradas da rede social Facebook, em links de notícias publicadas
pelo Jornal Folha de São Paulo e compartilhadas na referida rede, ambas
de março de 2015, momento em que a presidente sofria grandes ataques e
manifestações contrárias ao seu governo. Como apoio à reflexão proposta,
trazemos ainda o artigo de Pâmela Stocker e Silvana Dalmaso (2016)
denominado Uma Questão de Gênero: ofensas de leitores a Dilma Rousseff no
Facebook da Folha, pois trata-se de riquíssimo material de catalogação dos
comentários realizados nas publicações correspondentes às imagens trazidas
abaixo. Faz-se importante o seu uso, pois, como é possível observar, as
duas publicações somam quase sete mil comentários, o que implica em um
grande esforço de análise e filtragem entre os assuntos que se deseja tratar,
como, por exemplo, aqueles que se referem à desqualificação profissional,
machismo/sexismo ou ódio/misoginia.
A partir destas perspectivas, é altamente importante e necessário
refletir e descrever sobre o gênero, uma vez que esta categoria é a parte
principal do nosso trabalho, tendo em vista que o objeto de estudo é o
governo de Dilma Rousseff, especificamente as questões de gênero em torno
das manifestações de impeachment da então presidente.
Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli (2014), em sua obra Feminismo e
Política, trouxeram importantes contribuições sobre a luta das mulheres na
história, desde a conquista do direito de voto, que foi, por muitas décadas,
o ponto focal do movimento de mulheres da metade do século XIX até as
primeiras décadas do século XX. Os autores ressaltaram que:
o sufragismo foi a face pública das reivindicações feminis-
tas. O acesso à franquia eleitoral representava o reconhe-
cimento, pela sociedade e pelo Estado, de que as mulheres
tinham condições iguais às dos homens para gerir a vida
coletiva e também que elas possuíam visões do mundo e
interesses próprios, irredutíveis aos seus familiares. Afinal,
um dos argumentos centrais para a exclusão política delas

96
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

era que seus interesses já seriam protegidos pelo voto dos


maridos ou dos pais (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 93).

Ainda em relação ao sufrágio feminino, os autores salientaram que as


décadas que se seguiam a obtenção deste mostraram que era perfeitamente
possível a convivência entre o direito do voto das mulheres e uma elite
política formada quase exclusivamente por homens. Portanto, entende-se
que a baixa proporção de mulheres nas esferas do poder político é uma
realidade constatada ainda hoje em quase todos os países do mundo
(MIGUEL; BIROLI, 2014).
Partindo deste princípio, pensando na sub-representação das
mulheres nas esferas de exercício do poder no Brasil, ressaltamos que:
No Brasil, essa mudança coincide com o processo de rede-
mocratização. A partir dos anos finais do regime militar,
foram criados conselhos estaduais dos direitos das mu-
lheres (sobretudo nos estados governados pelos partidos
de oposição à ditadura); em seguida, já no início do novo
governo civil, surgiram as delegacias policiais especializa-
das no atendimento à mulher e o Conselho Nacional do
Direito as Mulheres. Em 2003, por fim, o governo federal
criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres, com status
de ministério. Essas experiências marcam vitórias de um
movimento feminista que se empenhava em fazer o Estado
trabalhar no sentido de igualdade de gênero. (MIGUEL;
BIROLI, 2014, p. 95).

Pensando no termo gênero, Joan Scott (1995) afirmou que o uso


desse termo é altamente importante, onde dá jus a maneira de referir-se à
organização social da relação entre os sexos. Para este ponto de vista, Joan
Scott (1995, p. 72) pontuou que “as feministas começaram a utilizar a palavra
“gênero” mais seriamente, num sentido mais literal, como uma maneira de se
referir à organização social da relação entre os sexos. A referência à gramática
é ao mesmo tempo explícita e plena de possibilidades não examinadas”.
Nessa lógica, Scott (1995, p. 72) explica o uso gramatical do gênero
como sendo um envolvimento de “regras formais que resultam da atribuição
do masculino ou do feminino; plena de possibilidades não-examinadas,
porque em muitas línguas indo-européias há uma terceira categoria - o

97
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

sem sexo ou o neutro. Na gramática, o gênero é compreendido como uma


forma de classificar fenômenos, um sistema socialmente consensual de
distinções e não uma descrição objetiva de traços inerentes. Além disso,
as classificações sugerem uma relação entre categorias que torna possíveis
distinções ou agrupamentos separados”.
Em relação ao termo “gênero”, a autora segue salientando que:
(...) o que é talvez mais importante, “gênero” era um termo
proposto por aquelas que sustentavam que a pesquisa sobre
as mulheres transfonaria fundamentalmente os paradigmas
disciplinares. As pesquisadoras feministas assinalaram des-
de o início que o estudo das mulheres não acrescentaria
somente novos temas, mas que iria igualmente impor um
reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho
científico existente. “Nós estamos aprendendo”, escreviam
três historiadoras feministas “que inscrever as mulheres na
história implica necessariamente a redefinição e o alarga-
mento das noções tradicionais daquilo que é historicamen-
te importante, para incluir tanto a experiência pessoal e
subjetiva quanto as atividades públicas e políticas. Não é
demais dizer que ainda que as tentativas iniciais tenham
sido hesitantes, uma tal metodologia implica não somen-
te uma nova história de mulheres mas também uma nova
história”. A maneira pela qual esta nova história iria, por
sua vez, incluir a experiência das mulheres e dela dar conta
dependia da medida na qual o gênero podia ser desenvolvi-
do como uma categoria de análise. Aqui as analogias com a
classe e com a raça eram explícitas; de fato as pesquisadoras
feministas que tinham uma visão política mais global, in-
vocavam regularmente as três categorias como cruciais para
a escrita de uma nova história. O interesse pelas categorias
de classe, de raça e de gênero assinalava, em primeiro lugar,
o envolvimento do/a pesquisador/a com uma história que
incluía as narrativas dos/as oprimidos/as e uma análise do
sentido e da natureza de sua opressão e, em segundo lugar,
uma compreensão de que as desigualdades de poder estão
organizadas ao longo de, no mínimo, três eixos (SCOTT,
1995, p. 73).

Por outro lado, Stocker e Dalmaso (2016) destacaram a visão de


Marcia Veiga da Silva (2014, p. 480) para descrever que o estudo do gênero

98
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

como categoria de análise propicia uma reflexão “sobre os modos como as


convenções sociais sobre o masculino e o feminino são produzidas, associadas
a distintas formas de relações de poder e os modos como estas convenções
produzem hierarquias e desigualdades”.

Imagem 1: Notícia do Jornal Folha de São Paulo divulgada no Facebook. Dispo-


nível em: <https://www.facebook.com/folhadesp/posts/1034190459956290>.
Acesso em: 28 abr./2020.

99
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Imagem 2: Notícia do Jornal Folha de S. Paulo divulgada no Facebook. Dispo-


nível em: <https://www.facebook.com/folhadesp/posts/1034131459962190>.
Acesso em: 28 abr./2020.

As notícias que estampam as ilustrações estão relacionadas ao


primeiro pronunciamento de Dilma Rousseff após as manifestações a favor
do seu impeachment, ocorridas no dia 15 de março de 2015. A partir destes
pressupostos, iremos elencar alguns comentários, sobretudo aqueles que
possuem discurso de ódio contra a então presidente no que se refere à
questão de gênero. Os comentários, conforme mencionado, estão disponíveis
no artigo Stocker e Dalmaso (2016), divididos em categorias de ofensas
elencadas pelas autoras.

100
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

- Parece que ela esticou o rosto. Fez plástica?


- CALA ESSA BOCA IMUNDA SUA VAGABUNDA!
- Ninguém quer dialogar com a Sra. vai lavar uma boa pia
de louças vá!!
- Enfia a sua humildade no C*

Esses comentários são descritos pelas autoras como sendo voltados


para o discurso do machismo e do sexismo, com manifestações que relacionam
a mulher a papéis tipicamente associados ao feminino, como, por exemplo,
o cuidado com o ambiente doméstico (lavar a louça, limpar a casa) ou a
preocupação com a beleza (plásticas, perda de peso). Portanto, as autoras
descrevem o termo machismo como sendo utilizado no âmbito colonial3
e popular. Seu sentido está relacionado ao conjunto de leis, normas e
atitudes do homem que coloca a mulher em submissão. Outros comentários
observados ao longo das duas publicações foram:
- Alguém conseguiu entender o que ela tentou dizer no seu
pronunciamento? Não falou coisa com coisa. E ainda riu
da nossa cara.
- É piada dessa vermelha demente. Renuncia Dilma.
- Como pode essa senhora não tem mas condições alguma
pra administrar esse imenso país serar q ela é tão idiota
assim cara ela estar totalmente perdida ela náo tem humil-
dade pra conduzir esse país ela tar totalmente disorientada
sem noçáo fala bobagens de mais...
- Não acredito em nada que saia da boca dessa VACALOUCA
- será que essa mulher ainda nao nos entendeu??? nimguem
quer asunto com ela nao. queremos intervençao militar já
- depois de um evento impactante...a senhora presidenta
me vem com uma frase tão débil..sinceramente esperava
um pouco mais...
- É surda ou se faz de surda, essa Dilma ladra, a dissimulada,
da voz da rua, não entendeu nada. VAZA!

Stocker e Dalmaso (2016) ressaltam que esses tipos de comentários


estão relacionados aos termos galighting e mansplaining, o primeiro é utilizado
para associar a figura feminina com a violência emocional, transparecendo
3 No que diz respeito as condições impostas dos homens para com as mulheres.

101
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

a imagem de louca ou incapaz de exercer suas atividades, neste caso a admi-


nistração pública. O segundo termo é uma atividade que consiste em colocar
a mulher como incapaz de compreender ou executar determinada tarefa.
As autoras ressaltam ainda comentários que fazem alusão ao misticismo e
a religiosidade, trazendo falas que colocam Dilma como bruxa por exercer
poder na sociedade e, por isso, indicar perigo.
- bruxa macumbeira
- #foradilmaligna para essa bruxa malvada do centro-oeste
dialogar significa “eu falo e TODOS VOCÊS SÓ escutam,
seus vermes”
- Dialogue com o demônio, amaldiçoada!
- Enviada do diabo!!!

Para além destes dois exemplos expostos por Stocker e Dalmaso


(2016), pesquisamos outras duas reportagens, também publicadas pelo
Jornal Folha de São Paulo em seu site oficial e na sua página do Facebook,
elencando essa rede social porque é acessível à uma parte consideravelmente
grande dos brasileiros e que conta com os mais variados comentários, o
que nos permite aferir o impacto das notícias sobre parte da população.
O próprio teor das matérias já traz a reflexão acerca do preconceito de
gênero e nos leva a questionar: um presidente do sexo masculino passaria
pelas mesmas situações? Trazemos abaixo as imagens e alguns comentários
feitos na publicação.

102
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Imagem 3: Notícia do Jornal Folha de S. Paulo divulgada no Facebook. Dispo-


nível em: <https://www.facebook.com/folhadesp/posts/1116041178437884>.
Acesso em: 28 abr./2020.

A publicação referente à ilustração acima é composta por inúmeros


comentários ofensivos, como alguns destacados, colocando o pronunciamento
de Dilma contra ela, uma vez que a partir do momento que ele solicitou
que a chamassem de presidenta as pessoas poderiam ofendê-la. Isso explica
o comentário “Quem foi que quis ser chamada de presidenta em vez de a
presidente?”, dentre outros observados ao longo da publicação:
- Quem foi que quis ser chamada de “Presidenta” em vez de
“a presidente”.?
- Esse argumento é efeitos colaterais de uma mente fraca!
- A gente sabe que vc enfia o dedo em tudo, mas dá uma
olhada pra trás que c vai ver a mandioca que nós vamos
colocar em vc tb!

103
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

- o preconceito é sexual mesmo, a gente cansou de ser estu-


prado pelo governo dela.
- Preconceito não ... Abuso Sexual por parte dela fodendo
o rabo de todos os brasileiros !!!!
- Só pode ser falta de mandioca........

Pensando nos comentários mencionados acima, vale a pena destacar


o preconceito sofrido por Dilma, que na reportagem ela denomina como um
“preconceito sexual” pela sua maneira de governar. Mas, a verdade é que ela
sofreu o “preconceito de gênero”, conforme o teor da reportagem nos leva a
crer, Dilma estava sofrendo com comentários ofensivos e preconceituosos
por sua imagem de mulher, uma mulher altamente importante para o
movimento feminista, a primeira mulher eleita a presidente do Brasil, país
esse que se revelou misógino e preconceituoso.
Nesse sentido, fez-se uso da sua imagem enquanto mulher para
dizer comentários como: “A gente sabe que vc enfia o dedo em tudo, mas
dá uma olhada pra trás que c vai ver a mandioca que nós vamos colocar em
vc tb!; Só pode ser falta de mandioca........”. Deixando claro a face machista
de quem associava o desempenho de seu governo ao seu gênero.

104
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Imagem 4: Notícia do Jornal Folha de S. Paulo divulgada no Facebook. Dispo-


nível em: <https://www.facebook.com/folhadesp/posts/1121148787927123>.
Acesso em: 28 abr./2020.

A reportagem acima buscou dar voz a uma denúncia feita sobre o


preconceito de gênero sofrido por Dilma, através do adesivo em que ela foi
colocada com as pernas abertas na tampa do tanque de gasolina dos veículos
de milhares de brasileiros, como protesto pelo preço dos combustíveis. Esse
adesivo é considerado como altamente preconceituoso, machista, misógino,
com uma forte representação da violência de gênero sofrida pela então
presidente, fato que foi inclusive reconhecido por muitos de seus adversários
políticos. Ao passear pelos comentários, é notório que muitas pessoas,

105
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

mesmo não concordando com a maneira de Dilma Rousseff governar o


país, manifestaram repulsa a esse acontecimento, tamanho o choque que ele
causou. Ainda assim, foi possível coletar falas impregnadas de preconceito
e com a tentativa de minimizar o fato ocorrido, como vemos abaixo:
- Falta de respeito e o que ela ta fazendo com o povo bra-
sileiro.
- Ela faz tão pior com a gente!!!!!!! Tão pior! E ninguém faz
nadaaaaaaaaa!
- Ela ta fazendo pior colocando impostos em nosso firofo
- Pra mim não passa de álibi de vitimização para tirar o
foco do que realmente interessa, desde que o mundo é
mundo isso acontece, sempre há opositores mais exage-
rados. Os governos precisam conviver com isso, e mais, a
imagem do presidente é pública, este fato não merece toda
essa atenção, até porque são isolados, não viralizou. Chega
destas cortinas de fumaça para mudar o foco das discus-
sões. A balela de coração valente também já caiu por terra.
- E o que ela fez com o Brasil, vamos denunciar para
quem????

A partir desta prerrogativa, pode-se ver nos comentários que havia


muitas pessoas que utilizaram do adesivo para culpabilizar Dilma. Fica
claro que nada justifica a violência de gênero que ela sofreu em todo o
seu mandato, o que teve grande destaque nos movimentos de direita e nas
manifestações de rua que exigiam o impeachment da presidente. As imagens
dos presidentes são públicas, como bem destaca um desses comentários,
entretanto não se trata de justificativa plausível para o cometimento de
um crime que fere em muito os direitos das mulheres e a luta travada ao
longo dos anos pelo movimento feminista.
Por fim, entende-se, de acordo com Stocker e Dalmaso (2016) e
os comentários aqui elencados, o quanto esses tipos de ofensas estavam
impregnadas no imaginário da população em massa. Esses discursos podem
ser observados de maneira clara na mídia online, na qual o público tem mais
facilidade de interação, além de ser possível constatar que eles contribuíram
sobremaneira para o andamento do processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff.

106
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

O golpe contra a democracia brasileira


Pensando na democracia, Vivian Ramos (2019), em sua pesquisa
intitulada Do impeachment de Dilma ao golpe à democracia: o funcionamento
imaginário de um discurso de resistência, sinala a origem da palavra democracia
(do grego demos=povo e kratos=poder), chegamos ao sentido estabilizado de
“governo do povo”, “governo da maioria”, ou seja, nesse regime o soberano
mandante seria ou deveria ser o povo. Trata-se de um governo de todos e
de poucos ao mesmo tempo, já que a “vontade” da maioria deve prevalecer,
assim como a liberdade de autorrealização e autodeterminação de cada
um, ao invés do mando de uns sobre os outros. Essa “vontade” expressa,
muitas vezes, a falta de opção, já que a escolha dos representantes políticos
é limitada às conjunturas eleitorais.
Todavia, pela impossibilidade da participação pessoal de todos
que façam parte de uma comunidade, por excederem as proporções,
tanto geográficas como em número, temos, na prática, uma democracia
representativa ou indireta. Configura-se dessa maneira porque ela não é
necessariamente exercida pelo povo, mas sim por representantes escolhidos
por ele e que devem governar para todos, reunindo-se normalmente em
instituições chamadas Parlamento, Câmara, Congresso, Assembleia ou
Cortes (RAMOS, 2019, p. 45).
Pedro Nunes (2019), em sua obra Democracia Fraturada: a derrubada
de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a imprensa no Brasil, traz importantes
colocações sobre como ficou a democracia com o impeachment de Dilma,
que é visto pelo autor como um golpe. Ele acredita que, em muitos casos,
é preciso ousar no que se refere à investigação acadêmica. No caso das
ciências sociais, por exemplo, essa ousadia seria ir além da descrição de
relatos que ilustram acontecimentos próximos e pertinentes às narrativas
dos milhões de atingidos. Em tempos de golpes e flagrantes desrespeitados
à vida democrática, não basta incorporar esforços de modelos de disciplinas
seculares. Não se trata de assumir estrutura discursiva, em primeira pessoa
no singular ou no plural, mas de tomar posições, em especial quando a
desigualdade aumenta em todos os espaços e situações, ao ponto de nem
mesmo os grupos negociados da mídia conseguirem esconder.
Assim, o autor segue pontuando que o impeachment de Dilma Rousseff
pode ser visto como um “golpe à democracia” e ressalta uma série de atos

107
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

que levam ao golpe. As manifestações de junho, protagonista de cunho


coletivo com marcas indiciais que contextualizam e culminam o golpe em
si, além dos protagonistas do campo político: o ex-senador Aécio Neves e o
ex-deputado federal Eduardo Cunha, que representam as Casas legislativas
(Câmara e Senado), dentre outros. Vale destacar que foi na representação
midiática que se ganhou força e visibilidade a espetacularização do golpe.
Assim, Nunes (2019) traz uma importante indagação: o que fazer com os
gestores dos espaços de poder do Estado, se atuam como “adversários ou
inimigos da democracia”?
Em resposta, o autor elenca diversos fatores: uma presidenta empo-
derada ; um dirigente parlamentar com trajetória de incontáveis denúncias
4

de corrupção; um partido que deixa de ser aliado para tentar protagonizar


política, pois, ainda sem legitimidade de escolhas eleitorais, desde 1994 o
PMDB não apresenta candidato próprio no executivo federal; um Poder
Judiciário “silencioso” diante de questionamentos públicos, alegando suposta
autonomia de poderes republicanos; e, no “varejão” – entre bravatas, men-
tiras e negociatas de voto – algumas centenas de representantes políticos,
dispostos a leiloar interesses coletivos em troca de favores, cargos e, claro,
as velhas emendas parlamentares para manter bases nas diversas regiões e
estados da União.
Seguindo essa linha, Nunes (2019) situa que este é o Brasil de 2016,
mas poderia ser não muito diferente daquele do impeachment de Fernando
Collor (PRN) em dezembro de 1992, da emenda que garantiu cinco anos de
mandato indireto de José Sarney (PFL) em 1988 ou ainda da mesma lógica
que aprovou a reeleição do então presidente Fernando Henrique Cardoso
(PSDB) em 1997, que também apelou aos artifícios oficiosos de concessões de
rádio e TV aos aliados (PDS, ex-Arena, PFL, PMDB e demais governistas),
desde que voltassem por mais um mandato para o presidente. E foi assim:
o golpe que retirou a presidência de Dilma Rousseff (PT) teve tudo isso e,
claro, outros ingredientes, que o autor cuidadosamente apresenta e avalia.
A partir dos protagonismos coletivos referentes à Operação Lava
Jato, Nunes (2019) enfatiza o processo de impeachment de Dilma Rousseff,

4 O empoderamento feminino pode ser compreendido como uma consciência coletiva,


que se manifesta por meio de atitudes que visam fortalecer as mulheres para que assim
possa alargar a equidade de gênero.

108
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

demarcando os protagonismos coletivos ou individuais do ex-presidente


Lula, do ex-juiz Sergio Moro, do ex-deputado Eduardo Cunha, do ex-senador
Aécio Neves, do desenrolar de todas as manifestações decorrentes das
jornadas de junho, em 2013, até a consolidação do golpe, com a entrada
definitiva do governo Temer até final de 2018. Os protagonistas dos Poderes
Legislativo e Judiciário foram dimensionados com base nesses recortes de
acontecimentos multifacetados, a avassaladora crise política que afetou a
democracia brasileira e o Estado democrático de direito.
O impeachment foi, então, espetacularizado, tanto no âmbito do
Parlamento, como na esfera da própria imprensa brasileira, que tratou
temas tão complexos de modo superficial, com pré-julgamentos e sem a
necessária contextualização dos fatos. Com base em seus critérios próprios
de noticiabilidade, essa mesma imprensa também ignorou acontecimentos
importantes, sem lhes conferir, portanto, qualquer destaque jornalístico
(NUNES, 2019).
Nesse ponto de vista, no artigo denominado Como a Rede Globo
Manipulou o Impeachment da Presidente do Brasil Dilma Rousseff (2016), Van
Dijk pontua que distorcer, selecionar e divulgar opiniões como se fossem
fatos não é exercer o jornalismo, mas, sim, manipular o noticiário cotidiano
segundo interesses outros que não os de informar com veracidade. Se esses
recursos são usados para influenciar ou determinar o resultado de uma
eleição, configura-se golpe com o objetivo de interferir na vontade popular.
Não se trata aqui do uso da força, mas sim de técnicas de manipulação da
opinião pública. Nesse contexto, o uso do conceito “golpe midiático” é
perfeitamente compreensível.
Seguindo esse pensamento, Van Dijk (2016) interpreta o impeach-
ment da ex-presidente como resultado de um golpe orquestrado pela elite
oligárquica e conservadora contra o Partido dos Trabalhadores (PT), no
poder desde 2002. Neste golpe, a imprensa de direita brasileira desempenhou
um papel determinante ao manipular a opinião pública, além dos políticos
que votaram contra Dilma. Destaca-se o envolvimento do poderoso con-
glomerado midiático Organizações Globo, que utilizou de seus veículos de
comunicação, como o jornal O Globo e o noticiário televisivo de mais alta
audiência no país, o Jornal Nacional, para demonizar e deslegitimar de maneira
sistemática a então presidente Dilma, o ex-presidente Lula e o PT em suas

109
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

reportagens e editoriais. Havia uma clara intenção, diga-se de passagem


bastante seletiva, de associá-los à corrupção disseminada e culpá-los pela
seria recessão econômica que o país enfrentava naquele momento.
Deste modo, Nunes (2019) reforça o posicionamento do papel
da imprensa, quando enfatiza a manipulação dos eventos notadamente
relacionados ao processo de impeachment, a desestabilização do Poder
Executivo, o mascaramento de folhas de atas ilegais da Operação Lava Jato,
a mitificação santificada do ex-juiz Sergio Moro em oposição à demoni-
zação do ex-presidente Lula, o desdém da capacidade de Dilma Rousseff,
a falta de profundidade e contextualização das narrativas jornalísticas
que ressignificaram a crise política, e, enfim, a ausência de ética e rigor
nas rotinas dos processos de produção noticiosa. Como resultado desse
retrocesso sociopolítico conjuntural, temos uma democracia fraturada,
com seus pilares institucionais fortemente abalados.

Considerações Finais
Em 2013, o Brasil vivenciou uma grande eclosão de manifestações
por grande parte da população em razão do aumento das passagens do
transporte público. Em linhas gerais, Cláudio Penteado e Celina Lerner
(2018) em seu artigo A direita na rede: mobilização online do impeachment de
Dilma Rousseff ressaltam que essa onda de protestos, que tomaram as ruas em
junho de 2013 em várias cidades brasileiras, chamou a atenção para o poder
das mídias sociais como ferramenta de mobilização política e expressão de
indignação e esperança. Bem como um espaço alternativo de produção de
informação política, colocando em discussão os modelos emergentes de
participação institucional.
Nessa perspectiva, as jornadas de junho de 2013 despertaram a
atenção das Ciências Sociais e da sociedade em geral para a importância
das redes sociais dentro do atual contexto social de crise de representação
e a emergência de novas formas de mobilização e expressão política. Nesse
sentido, pode-se compreender que as eleições de 2014 tiveram as redes
sociais como um espaço para o embate não somente entre as campanhas,
mas, sobretudo, para o embate entre os eleitores e militantes. Portanto, a
campanha de 2014 foi marcada pela radicalização ideológica entre direita e

110
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

esquerda, com expressões de ódio e um clima hostil, sobretudo contra Dilma


Rousseff em sua campanha de reeleição. Entende-se o quanto esse cenário
de mobilizações antes e durante as eleições de 2014 contribuiu para as crises
e para o impeachment. Além do cenário marcado pelo discurso do ódio, com
ofensivas e xingamentos massivamente direcionados à figura da presidente.
A partir desta prerrogativa, o presente trabalho teve como pretensão,
a princípio, discutir a importância da modalidade da história social, e as
possibilidades para várias áreas de estudo, como o impeachment de Dilma,
além de fazer uma reflexão acerca do discurso e representação presentes nas
mobilizações a favor do afastamento de Dilma Rousseff que culminaram
no seu processo de impeachment. Por outro, descrever de modo geral o golpe
contra a própria democracia brasileira, que ficou profundamente fragilizada
após esse processo. Nesse viés, uma frase que relata como a democracia pode
ser vista durante esse cenário de golpe e injustiças é a que está presente no
documentário Democracia em Vertigem (2019): “Temo que a nossa democracia
tenha sido apenas um sonho efêmero”.

Referências
ARÓSTEGUI, Júlio. O processo metodológico e a documentação históri-
ca. In: _______. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: Edusc, 2006,
p. 465-512.
ASSIS, Arthur. A teoria da história como hermenêutica da historiografia:
uma interpretação de Do Império a República, de Sergio Buarque de Ho-
landa. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 30, n. 59, p. 91-120, 2010.
CARNIEL, Fagner; RUGGI, Lennita; RUGGUI, Julia de Oliveira. Gênero
e Humor nas Redes Sociais: a campanha contra Dilma Rousseff no Brasil.
Opinião Pública, Campinas, vol. 24, n. 3, set-dez/2018, p. 523-546.
CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: _______. A Escrita
da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 56-104.
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Estudos Avançados, v.
5, nº 11, 1991, p. 173-191.

111
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

DEMOCRACIA em vertigem. Direção: Petra Costa. Produção: Shone Bo-


ris et al. São Paulo: Busca Vida |Filmes; Londres: Violet Films, 2019. 1 DVD
(121 min.), color.
JENKINS, Keith. Introdução e O que é a História? In: _______. A história
repensada. São Paulo: Contexto, 2013, p. 17-52.
JESUS, Gilvan Santana de. Impeachment da presidente Dilma Rousseff: a le-
gitimação do processo pelo dispositivo midiático. 2017. 102f. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universi-
dade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2017.
LIMA, Laura Antônio; SIMÕES, Paula Guimarães. A construção da
imagem pública de Dilma Rousseff durante o impeachment: uma análise
preliminar. In: 47º Encontro Anual da Anpocs. Anais. Disponível em:
https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt17-21/
10759-a-construcao-da-imagem-publica-de-dilma-rousseff-durante-o-im-
peachment-uma-analise-preliminar/file . Acesso em 01 de fev. /2020.
MIGUEL, Luís Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo:
Boitempo, 2014.
NOVAES, Fernando; FORASTIERI, Rogério. Nova história em perspectiva.
São Paulo: Cosac Naify, 2011.
NUNES, Pedro. Democracia fraturada: a derrubada de Dilma Rousseff, a
prisão de Lula e a imprensa no Brasil. João Pessoa: Editora do CCTA, 2019.
O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil / Luís Felipe Mi-
guel ... {et al.}; organização Esther Solano Gallego; [ilustração Laerte Gê,
Gilberto Maringoni]. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2018.
PENTEADO, Claudio Luiz Camargo; LERNER, Celina. A direita na rede:
mobilização online do impeachment de Dilma Rousseff. Em debate, Belo
Horizonte, v. 10, n. 1, p. 12-24, 2018.
RAMOS, Vivian Elis Golfetto. Do impeachment de Dilma ao golpe à demo-
cracia: o funcionamento imaginário de um discurso de resistência. 2019.
151 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em
Letras, Universidade Estadual de Maringá, Maringá/PR, 2019.

112
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de es-


cala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Edu-
cação, v. 15, n. 45, 2010, p. 434-445.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
STOCKER, Pâmela C.; DALMASO, Silvana C. Uma questão de gênero:
ofensas de leitores à Dilma Rousseff no Facebook da Folha. Estudos Femi-
nistas, Florianópolis, vol. 24, n. 3, set.dez/2016, p. 679-690.
VAN DIJK, Teun A. Como a Rede Globo manipulou o impeachment da
presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Carta Maior, São Paulo, 2016. Dis-
ponível em: < https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Como-
-a-Rede-Globo-manipulou-o-impeachment-da-presidente-do-Brasil-Dil-
ma-Rousseff/12/37490>. Acesso em 04 abr./2020.
VEIGA DA SILVA, Marcia. Masculino, o Gênero do Jornalismo: Modos de
Produção das Notícias. Série Jornalismo a rigor, v. 8. Florianópolis: Editora
Insular, 2014.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura.
São Paulo: EDUSP, 1994.

113
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

114
IMAGENS DE CUBA REVOLUCIONÁRIA:
UMA DISCUSSÃO SOBRE A CINEMATOGRAFIA
DE TOMÁS GUTIÉRREZ ALEA
Igor Lapsky1

Introdução
O cinema é uma arte inventada no século XIX pelos irmãos Lumiére,
quando, em 1895, produziram uma série de filmes, com destaque para A
chegada do trem à estação, que mostrava a imagem em movimento como
fruto de seguidas inovações tecnológicas, principalmente, a fotografia em
sequência, desenvolvida por Étienne-Jules Marey, na década de 1860. Nos
primeiros anos do cinema, a tecnologia era o elemento central: não havia
necessidade de contar histórias ou desenvolvimento dos personagens, uma
vez que o movimento projetado na tela era o que cativava o público, que
aparentava curiosidade e espanto ao assistir os filmes daquele período. A
partir da primeira década do século XX, temos o desenvolvimento do cinema
enquanto arte. A teatralização dos movimentos passou a ser o ponto central
dos filmes, fazendo com que fossem desenvolvidas histórias complexas,
que exigiam personagens ensaiados. Além disso, os filmes, compostos por
frações de minutos, passam a ser mais longos, fazendo com que os diretores
desenvolvessem o método da decupagem, ou seja, o corte dos filmes em
cena para melhor adequação da história.
A montagem dos filmes é utilizada para dar sentido aos mesmos. Os
longas-metragens, de mais uma hora de duração, popularizados por David
Wark Griffith na década de 1910, foram possíveis graças ao processo de
corte e colagem de frames para dar sentido a uma história. Tal método foi
aprimorado ao longo deste período, principalmente com a escola soviética
de cinema, tendo Sergei Einsenstein como um de seus principais diretores.
Segundo Fuhrhammar e Isaksson (1976), a relação entre cinema e
política ocorreu a partir da Primeira Guerra Mundial. Na ocasião, filmes foram
produzidos sob investimento do Estado para fins de propaganda, de apoio à
1 Doutor em História Comparada pela UFRJ. Professor Adjunto de História Contempo-
rânea do departamento de História da UPE/Campus Mata Norte e docente do programa
de Mestrado Profissional em Ensino de História da UPE (ProfHistória UPE).

115
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

guerra e/ou de personificação do inimigo. Assim, Hearts of the World (1918),


dirigido por D. W. Griffith, foi financiado pelo governo britânico e permitiu
que o cineasta gravasse em zona de trincheira. Os autores argumentam que
os trabalhos cinematográficos são frutos de “correntes e atitudes existentes
numa sociedade, sua política. O cinema não vive num sublime estado de
inocência, sem ser afetado pelo mundo; tem também um conteúdo político
consciente ou inconsciente, escondido ou declarado.” (p.6).
O cinema soviético, sobretudo a cinematografia de Eisenstein nos
anos 1920, desenvolveu histórias que apresentavam a questão política a partir
da montagem de filmes. Seja em A greve (1924), em que o dono da fábrica
era comparado com um animal, ou em O Encouraçado Potemkin (1925), com
a sequência de imagens mostrando o punho de um dos revolucionários
se fechando como forma de apresentar o descontentamento das pessoas
em relação ao regime do Czar, a montagem destaca um sentido, que é
relacionado ao político.
Nesse sentido, a relação entre cinema e política se desenvolveu ao
longo do século XX, a partir da relação institucional entre cinema e Estado,
como ocorreu na União Soviética, na Alemanha, entre as décadas de 1930
e 1940 e nos Estados Unidos até o final dos anos 1960. Muitos filmes foram
custeados pelo Estado como forma de promover uma ideia política e criar
o espectro do inimigo.
O cinema latino-americano também adotou viés político com e sem
apoio do Estado. No Brasil, em meados dos anos 1950, o cinema tratou de
elementos sociais de forma crítica. Nelson Pereira dos Santos, ao lançar Rio,
40 graus (1955), apresentou as bases do Cinema Novo: filmes voltados para a
temática da desigualdade social. O movimento se fortaleceu nos anos 1960,
principalmente com as obras de Glauber Rocha, que escreveu o manifesto A
estética da fome, em que reforçava a necessidade de se apresentar os problemas
do país no cinema nacional, fugindo dos padrões Hollywoodianos.
O cinema cubano, principalmente após a Revolução, teve apoio
do Estado, a partir do financiamento de produções que valorizavam o
movimento contra o governo de Fulgêncio Batista e a presença dos Estados
Unidos na ilha antes de 1959. Segundo Mariana Villaça

116
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Em Cuba, o cinema foi fundamental para difundir as cam-


panhas e resoluções do governo, para projetar a imagem
do país no exterior, para a construção de uma memória
da Revolução e também para demarcar uma determinada
identidade cubana vinculada ao conceito de latino-ameri-
canidade. (2006, p. 354)

A partir do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos


(ICAIC), os filmes foram chancelados pelo Estado, que autorizava sua
divulgação de acordo com o conteúdo apresentado. Nesse contexto, Tomás
Gutiérrez Alea foi um dos cineastas de maior representatividade do cinema
cubano no mundo, que iniciou seus trabalhos realizando produções em
favor da Revolução e, depois, adotou um tom mais crítico em relação ao
regime implementado.
Nascido em Havana, em 1928, Alea dirigiu cerca de 25 filmes,
incluindo curtas-metragens, documentários e longas-metragens, e escreveu
18 obras, nas quais foi diretor. Sua carreira iniciou com dois pequenos
filmes, La caperucita roja (1946) e El faquir (1947). Ele estudou Direito na
Universidade de Havana, formando-se em 1951. Em 1953, graduou-se em
cinema em Roma, onde estudou o neorrealismo, corrente cinematográfica
do pós-segunda guerra mundial que tratava de temas como miséria, pobreza
e o sofrimento das sociedades europeias na guerra2.
Alea foi responsável por fazer o primeiro documentário sobre o
processo revolucionário no país, intitulado Esta Nuestra Tierra, em 1959,
quando auxilia na fundação do ICAIC, junto com Julio García Espinosa e
Alfredo Guevara. Segundo Mariana Villaça (2016, p. 2), o ICAIC foi a primeira
instituição cultural criada após a revolução e tinha o objetivo de produzir
arte para todos os públicos, especialmente, os não-letrados, atuando como
instrumento de opinião pública e formação da consciência revolucionária.
O ICAIC funcionava de diferentes formas, de acordo com a visão
dos críticos de cinema. Segundo Del Rio (2011, p. 145):
Desde aquele mês de março de 1959, quando o governo re-
volucionário crio o Instituto Cubano de Arte e da Indús-
tria Cinematográficas (ICAIC), os filmes produzidos por
2 Para mais informações sobre o neorrealismo italiano, ver: NOWELL-SMITH, Geoffrey.
The Oxford History of Cinema. New York: Oxford University Press, 1997. P. 357-359.

117
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

essa entidade têm sido chamados por alguns críticos, sobre-


tudo fora de Cuba, de mera propaganda oficial, destinada
a divulgar os triunfos e ocultar os erros do socialismo na
Ilha. Outros observadores e especialistas estrangeiros se de-
tém na exaltação de alguns títulos paradigmáticos por sua
autonomia artística e contínua crítica às intemperanças de
um sistema em processo de estabelecer os ideais de maior
justiça social. (p. 145)

De acordo com Villaça (2006), o instituto, criado como veículo de


pedagogia política, foi um local de tensões e debates acerca das críticas
sobre o regime implementado em 1959. Nesse sentido, era necessário nego-
ciações constantes com o governo para que os filmes críticos pudessem ser
aprovados, embora com indicações de cortes em sequência para tornarem
a obra “aceitável” tanto para o executivo quanto para os diretores. Assim, o
ICAIC tinha duas frentes de debate: a pressão pela propaganda do Estado
e a pressão pela liberdade artística das obras.
Alea foi um diretor que trabalhou nas duas vertentes apresentadas
por Villaça. Dirigiu obras de propaganda, entre 1959 e 1960, exaltando o
movimento revolucionário e a derrubada das tropas de Batista, e fez obras
críticas ao regime, algo que o obrigou a negociar a aprovação dos seus filmes.
O seu rompimento com o ICAIC ocorreu em junho de 1961, quando o
curta metragem PM, dirigido por Sabá Carrera Infante e Orlando Jiménez
Leal foi proibido. O filme contava a história da organização da população
contra o ataque das tropas norte-americanas na Baía dos Porcos. Alea, em
carta de pedido de demissão do conselho diretivo do ICAIC, afirma que o
instituto censurou o filme a partir de uma nova diretriz de produção de obras
cinematográficas do país. Na carta, o diretor apresenta o descontentamento
com a política do instituto, uma vez que não havia justificativas para a
proibição da obra de Infante e Leal3.
Sobre a relação entre política e arte, Fidel Castro, em discurso
intitulado Palabras a los intelectuales4, realizado em 30 de junho de 1961, no
encerramento do ciclo de reuniões com artistas cubanos ao logo daquele mês,
3 A carta está disponível em: http://journals.openedition.org/cinelatino/1738 Acesso em
15 mai 2020.
4 O discurso está disponível em: http://www.uneac.org.cu/sites/default/files/pdf/publi-
caciones/boletin_se_dice_cubano_no.9.pdf Acesso em 15 mai 2020.

118
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

afirmou que a Revolução estava mudando o panorama econômico e social do


país e que era necessário uma política cultural revolucionária. Fidel defendeu
em seu discurso que tais diretrizes não haviam sido pensadas pelo comando
revolucionário, uma vez que o movimento foi acelerado, inviabilizando a
organização em diversas frentes. Foi enfatizado no discurso que os artistas e
outros intelectuais eram peças importantes no desenvolvimento do regime
e a liberdade era um elemento central. Porém, os intelectuais deveriam
ser revolucionários e suas obras deveriam estar aliadas a este viés. Assim,
o discurso de Castro foi direto: os artistas deveriam valorizar a revolução,
seguindo as diretrizes governamentais.
Após a sua saída do comitê diretor do ICAIC, Alea passou a produzir
filmes críticos ao regime. Seja na estrutura burocrática estatal ou em questões
sociais, como a homossexualidade, o diretor fez obras com críticas, sutis ou
diretas, à política cubana. Ele faleceu em 1996, na cidade de Havana, sendo
considerado um dos maiores diretores do cinema cubano, responsável pela
única indicação do país ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Para o desenvolvimento do texto analisamos cinco produções
ficcionais de Alea: Historias de La Revolución (Histórias da Revolução, Cuba,
1960, 81 min), La muerte de um burocrata (A morte de um burocrata, Cuba,
1966, 85 min), Memórias del Subdesarollo (Memórias do subdesenvolvimento,
Cuba, 1968, 104 min), Fresa y Chocolate (Morango e chocolate, Cuba, 1993,
110 min) e Guantanamera (Cuba, 1995, 105 min). Optamos pelas ficcionais
devido à argumentação de Villaça (2006, p. 1). Segundo ela, embora o ICAIC
tenha produzido mais documentários, os filmes de ficção foram os grandes
catalisadores dos problemas políticos em Cuba após a Revolução.

119
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Revolução como esperança (e propaganda):


Historias de La Revolución em contraposição à Soy Cuba
Em Historias de La Revolución, foram contadas três histórias sobre
o movimento revolucionário, ocorridas entre 1957 e 1958. Nas histórias,
principalmente nas duas primeiras, há uma ênfase em questões individuais
para destacar a importância do processo revolucionário e dos seus atores
políticos.
A primeira história se passa em Havana, em 1957, no período em
que os conflitos urbanos passaram a atingir a capital do país. É iniciado
com uma sequência documental, de imagens de tiroteio entre os insurgentes
e as tropas de Batista. Há uma transição do documental para o ficcional
ao apresentar dois insurgentes, um deles feridos no tiroteio, fugindo de
carro. Sua busca por abrigo os leva ao apartamento de Miriam e Alberto,
em que a mulher os abriga, após o pedido de Helena, que acompanhava
os insurgentes. Alberto, contrário à posição, resolve sair de casa. Nesse
momento, a história passa a ser centrada em Alberto: um homem que se
recusou a ajudar os insurgentes por medo, e decide se abster do problema,
passeando na rua. Porém, o receio e as desconfianças sobre Alberto fazem
com que ele seja denunciado para a polícia, que o prende em um quarto de
hotel. Alea apresenta a sequência punitiva do personagem: é retido pela
polícia, seu apartamento é tomado por um tiroteio em que Miriam é morta
por um policial. A lição se torna completa para Alberto na manhã seguinte,
quando, foragido, clama pela ajuda de um leiteiro, que, por medo, se recusa
inicialmente a o ajudar, mas que cede, escondendo Alberto na traseira de
seu caminhão. Alberto, ferido e sozinho, deixa uma lição: como não ajudou
os revolucionários, acabou sendo punido pela polícia.
A segunda história se passa em Sierra Maestra, em 1958. Na pelí-
cula, os guerrilheiros organizam emboscadas contra as tropas de Batista,
roubando suas armas e matando os soldados. Como contra-ataque, foi feito
um bombardeio nas colinas, que atingiram um grupo de insurgentes. Nesse
momento, é apresentada diversas questões sobre a imagem dos guerrilheiros.
Ruben, o líder, semelhante a Fidel Castro, é apresentado como um homem
que não abandona seus companheiros feridos e nem é tomado pelo medo
diante da possibilidade de ser atacado pelas tropas de Batista. Ele cuida de
Carlos, ferido gravemente pelo bombardeio e que não pode ser movido.

120
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Em um dos diálogos, Ruben afirma que cuidará de Carlos enquanto os


demais fogem. Porém, a equipe opta por ficar e ajudá-lo. Carlos, ciente da
gravidade do ferimento e do problema em atrasar os companheiros, opta
pela tentativa de suicídio, que foi impedida pelo grupo. Um dos guerrilheiros
resolve fugir com medo. Mas, pensativo, retorna ao grupo, mostrando ao
espectador que o grupo e a causa revolucionária eram mais importantes que
os receios individuais. Nesse sentido, Alea exalta a figura dos personagens
participantes do movimento, em especial Fidel Castro.
A última história se passa em Santa Clara, em 1958, apresentando o
panorama da expansão dos rebeldes pelas cidades do país. Mesmo com um
arsenal reduzido e aparentemente menor número de pessoas, os guerrilheiros
enfrentam soldados, tanques de guerra e bombardeios, que não diferenciam
os insurgentes dos civis e se mostram resistentes, ganhando a batalha. O
final apresenta os soldados se rendendo e o festejo dos civis, entoando as
bandeiras de Cuba, como sendo o fim do processo revolucionário. O filme
é uma ode à revolução e apresenta aspectos caraterísticos das produções
defendidas pelo ICAIC no início dos anos 1960.
Outra produção de propaganda é Soy Cuba, desenvolvida pela
MOSFILM em parceria com o ICAIC (Mikhail Kalatozov, Cuba/URSS,
1964, 143 min). Embora não seja uma produção de Alea, é importante
compararmos os filmes e seus principais pontos para compreendermos a
característica da narrativa do diretor.
Soy Cuba é uma exaltação da Revolução inserida no contexto da
Guerra Fria. Enquanto os Estados Unidos produziam filmes tendo os sovié-
ticos como os principais inimigos das tramas, a União Soviética optou por
um modelo pedagógico, parecido com a linguagem adotada pela escola de
Eisenstein, embora o filme não seja mudo. O filme inicia com uma tomada
aérea de Cuba, exaltando a beleza natural da ilha, reforçada pelo discurso
de Cristóvão Colombo: “é a terra mais formosa já vista por olhos humanos”.
A narração, que acompanha a sequência de imagens, destaca a exploração
das belezas da ilha enquanto colônia espanhola: “Meu açúcar, seus barcos
levaram. Minhas lágrimas, eles deixaram. Que coisa estranha é o açúcar,
Sr. Colombo. Ele contém tantas lágrimas, e ainda assim, é doce”. A fala é
acompanhada de imagens de um barco passando por palafitas e uma mãe
segurando uma criança nua. Ao término, a sequência muda, escancarando

121
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

o contraste social do país: enquanto os explorados andam em pontes


improvisadas de madeira e moram em palafitas, a elite está aproveitando
música, piscina e o sol (o mesmo sol que castiga os trabalhadores rurais),
em uma cobertura de um prédio na cidade. A residência, nesse sentido,
representa a separação entre a vida da elite, nos prédios e nas coberturas,
com a vida dos pobres, nas ruas e campos, sem as mesmas regalias.
Após essa sequência, é apresentado a diversão dos turistas, prin-
cipalmente os norte-americanos. Casas noturnas, com prostitutas, bebida
e música. A sequência mostra três americanos falando inglês escolhendo
bebidas e mulheres como acompanhantes. O maitre pergunta “algo para
acompanhar, senhor?”, o americano responde “Eu vou querer aquela coisinha
apetitosa”, seguido pelo seu colega que o está acompanhado “eu vou querer
aquele prato”. A cena muda para uma mulher no bar, que é convocada pelo
maitre para ir à mesa dos americanos. Assim, o filme apresenta que os
estrangeiros veem as cubanas como um acompanhamento apetitoso para
suas bebidas em casas noturnas. O americano que está na mesa afirma que
“nada é indecente em Cuba, se você tem dinheiro”.
Outra sequência mostra um dos americanos com Betty, uma mulher
obrigada a se prostituir para ganhar dinheiro dos turistas como sustento. O
americano paga pelo programa e vai visitar a casa de Betty, no meio da favela.
Ao chegar e sair se depara com um choque de realidade: existia uma Cuba
dos turistas, rodeadas por cassinos, bordéis e bebidas, e outra dos pobres,
com ruas sem saneamento básico e extrema pobreza. O desprezo pelo local
é destacado quando o americano tenta sair da casa de Betty e se perde nos
becos da favela, sendo cercado por crianças e adultos pedindo dinheiro.
A exploração da terra também é apresentada no filme. Mostra a
história de Pedro, um estivador que alugava um pedaço de terra do Sr.
Acosta para plantar cana-de-açúcar. Pedro reza para que a colheita seja
produtiva naquele ano para conseguir pagar suas dívidas. Ao acordar e ver
que a plantação está alta e extensa, Pedro se sente aliviado e começa a extrair
cana com os filhos. Sua felicidade acaba quando Sr. Acosta chega com dois
capangas e o expulsa da terra, afirmando que havia vendido a propriedade

122
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

para a United Fruit Company5. O homem, desesperado, ateia fogo em sua


casa e na plantação que ele havia cultivado.
Outro elemento importante é a apresentação da revolução na cidade
e no campo. O filme destaca o papel dos universitários em Havana, que
esperavam a chegada de Fidel Castro para a tomada do poder na capital da
ilha. Eles preparam panfletos, organizam manifestações e buscam informar
a população da necessidade da revolução. No campo, os guerrilheiros são
resistentes às caçadas das tropas de Batista e chamam os adeptos para a
luta revolucionária. A repressão das forças de Batista é um gatilho para o
fortalecimento dos movimentos, em ambos os casos. A morte dos estudantes
que faziam panfletos e o assassinato de um dos estudantes que discursavam
na rua pelo chefe de política, fortalece a revolução na cidade; no campo, o
bombardeio das tropas a casa de Mariano, um camponês que vivia com sua
mulher e 3 filhos, o faz mudar de ideia e integrar a luta armada. As últimas
falas do filme exaltam o movimento revolucionário:
Esta é a Rádio Rebelde, transmitindo desde as montanhas
do Oriente, na Sierra Maestra, território livre de Cuba.
Cubano, junte-se à luta. Você, que foi vítima do abuso, da
maldade e do crime. Você, que sofreu na própria carne a in-
justiça, a miséria, o roubo de todos os seus direitos, escute
este chamado vibrante!
Revolução! Revolução!
Frente ao ódio do inimigo, você, camponês; você, operário;
você, estudante; você, cubano! Levante o braço armado! A
revolução luta pela plena e absoluta soberania nacional de
nossa pátria. A educação não seja um privilégio de mino-
rias e que todos tenham oportunidade para estudar. Para
defender o direito à vida. Para defender a saúde do povo,
lutamos!
Cada família tem o direito a uma habitação decente. Cada
cubano tem o direito ao trabalho. Milhares de chefes de
família e de jovens não têm emprego; não têm futuro. A

5 Fundada em 1899, a United Fruit Company era uma das maiores multinacionais dos Es-
tados Unidos, responsável pela produção de frutas, principalmente bananas, na América
Latina. Foi utilizada como fortalecimento da hegemonia norte-americana na virada do
século XIX para o XX. Para mais, ver: ALBANO, G. P. Multinacionais e Neocolonialismo:
a atuação da United Fruit Company na América Latina no Século XX. Revista GeoSer-
tões, n.1, v.1, 2016.

123
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

revolução fará a industrialização do país eliminando o de-


semprego e resgatando para o povo toda a riqueza que dele
foi roubada.
Você, camponês. Você, operário. Você, estudante. Ocupe
seu lugar na luta. Esta é a revolução de vocês! Liberdade
ou morte!
Eu sou Cuba. Suas mãos antes pegavam nas enxadas, mas
agora há um rifle em suas mãos. Você não dispara para ma-
tar. Dispara no passado. Você está disparando para prote-
ger seu futuro.

A produção soviética é uma cartilha pedagógica da revolução.


Ela culpou os Estados Unidos pela miséria em Cuba e a necessidade de
liberdade da ilha. O filme tem como contexto o pós-revolução, a tentativa
de invasão da Baía dos porcos em 1961 e a crise dos mísseis em 1962. A
produção tinha como objetivo o reforço dos laços entre Cuba e União
Soviética. O filme de Alea se passa no imediato pós-revolução, e também
há elementos pedagógicos em suas passagens. Porém, os Estados Unidos não
são evidenciados no filme, dando maior ênfase aos problemas internos do
país. Assim, a desigualdade social, a concentração de terras e a exploração
do povo cubano foi um elemento nulo na trama de Alea, que destacou a
repressão das forças de Batista nas histórias.
A opção soviética pela narrativa que valorizou o papel dos Estados
Unidos na Cuba controlada por Batista reduz a história do país à geopo-
lítica europeia e norte-americana, inserida no contexto da Guerra Fria. A
apresentação do início do filme subvaloriza a história da ilha, tornando-a
um ator secundário em sua própria trajetória (Colombo – Estados Unidos).
O filme valoriza elementos pessoais nas duas primeiras histórias, pois
as decisões dos indivíduos são fundamentais para o desenvolvimento da trama.
Assim, há um dilema e as consequências das escolhas das pessoas. Alberto
é punido por ter optado não ajudar os insurgentes e Ruben é exaltado por
escolher cuidar de seu companheiro mortalmente ferido, mesmo sabendo
que poderia ser alcançado pelas tropas de Batista. A produção soviética
trata de dois dilemas, que são secundários no argumento do filme, mas
importantes para o desenvolvimento da história: a decisão de Henrique,
um dos líderes estudantis, em não assassinar o chefe de polícia enquanto

124
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

teve a oportunidade, e a entrada de Mariano para as forças rebeldes, graças


ao bombardeio que matou um de seus filhos.

La Muerte de Um Burocrata (1966) e Guantanamera (1995):


críticas ao sistema burocrático do regime cubano
A Revolução Cubana adotou o socialismo como base política,
econômica e social do país. Houve grandes avanços na distribuição de renda,
educação dos mais pobres, no sistema de abastecimento da população,
políticas de geração de emprego e moradia universal (SADER, 2006). Porém,
elementos como a burocratização6 dos processos foi uma das dificuldades
a serem superadas pelos cidadãos cubanos, que enfrentavam as etapas
administrativas dos órgãos públicos para avançar com seus processos.
Segundo Emir Sader (2006), a crise cubana, a partir dos anos 1970, levou a
um aumento da burocratização dos processos, um dos pontos mais críticos
do regime.
Alea utilizou da comédia como forma de crítica ao sistema burocrá-
tico de Cuba em duas produções: La muerte de un burocrata e Guantanamera.
A primeira conta a história da família de Paco, um escultor responsável
por fazer estátuas para serem fixadas em praças públicas, que é enterrado
com sua carteira de trabalho por ser reconhecido como um trabalhador
exemplar. A história se desenvolve com o seu sobrinho tentando exumar
o corpo do tio para dar entrada na pensão para a família, uma vez que só
seria concedida com a apresentação da carteira de trabalho do defunto. A
segunda conta a história de Gina e o enterro de sua tia Yoyita, que havia
retornado dos Estados Unidos após ter partido do país durante a Revolução.
Ela morre na cidade de Guantánamo e deve ser levada em carro fúnebre até
Havana para ser enterrada. O primeiro filme é uma comédia pastiche, que
brinca com uma série de elementos da administração do Estado, enquanto
o segundo é um road movie, com aspectos de comédia romântica, em que a
burocracia não é o elemento central, mas aparece em pontos cruciais para

6 Burocracia é um conceito muito debatido na Ciência Política. Não é do escopo do


nosso texto tratar da bibliografia e das discussões desenvolvidas. Para saber sobre o con-
ceito, ver: GIRGLONI, P. P. Burocracia. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco (orgs). Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998.

125
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

o desenvolvimento da história, sobretudo no arquétipo do personagem


Adolfo, marido de Gina.
La muerte de un burocrata possui dois elementos a serem destacados. O
primeiro é a discussão sobre a planificação da economia a partir a valorização
da função de Paco, que havia inventado uma máquina de produção de bustos
em série, aparelho que acabou causando sua morte. Os bustos eram imagens
das lideranças políticas produzidas a partir de uma série de metas. Já Paco,
era um trabalhador exemplar, pois cumpria todos os objetivos propostos
pelo planejamento estatal. As metas também aparecem no emprego do
sobrinho, que trabalhava com a produção de cartazes oficiais, elemento que
é explorado por Alea ao longo do filme em diversos momentos.
O segundo ponto é a crítica à burocratização do Estado. Na sequência
em que o sobrinho e a esposa de Paco estão no banco para dar entrada na
pensão para a família é apresentado ao protagonista (o sobrinho) uma série
de informações confusas sobre o processo, em um linguajar complexo, mas
que é direto: sem a carteira de trabalho de Paco, não será possível a entrada
na pensão. Em outra sequência, o sobrinho está no cemitério pedindo
explicações à atendente, que dá informações sobre diversos processos que
precisam ser encaminhados para a exumação do corpo do tio.
Alea desenvolve a narrativa a partir da ideia do sobrinho de “abreviar”
a burocracia, solicitando ajuda aos funcionários do cemitério para abrir a
cova do tio e pegar a carteira de trabalho. Ele consegue ajuda, mas o plano dá
errado: ele acaba fugindo com o corpo e escondendo em casa, dificultando a
vida do protagonista. O sobrinho, então, organiza novamente o enterro do
tio, negado pelo gestor do cemitério, que solicita uma ordem de exumação
para abrir novamente a cova, gerando uma briga generalizada na frente do
cemitério, dos tipos de comédia pastiche.
Em um momento do filme, o sobrinho necessita ir a uma central
administrativa fazer o pedido de exumação do corpo, pois sem a carta
assinada e carimbada, o gestor do cemitério não permitiria a abertura da
cova. Ao chegar, há uma recepção central, que encaminha todas as solicitações
dos cidadãos e diferentes mesas. Paco é redirecionado a um funcionário
e inicia sua aventura para conseguir o documento. Ele foi redirecionado
para mesas diferentes até chegar à inicial, onde consegue o documento
assinado pelo primeiro funcionário que o atendeu, que estava conversando

126
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

com outra pessoa e dizia que era muito difícil resolver problemas naquele
órgão, apontando para a pilha de requerimentos que necessitavam ser
preenchidos. O funcionário é apresentado para o espectador como uma
pessoa totalmente desorganizada. Não cumpre a ordem, não há critério para
desenvolver o trabalho e redireciona o público para outros funcionários,
sem tentar resolver o problema. Ao conseguir o documento, o sobrinho é
encaminhado para o departamento de aceleração de trâmites (DEPATRAM),
em que ele precisa de uma assinatura e carimbo no documento feito pelo
funcionário que emitiu a solicitação de exumação do corpo. Ao chegar no
local, é apresentado o cartaz “DEPATRAM. Número 1 em ping pong”. O
sobrinho se aventura para ter o seu papel carimbado e assinado, se trancando
no departamento para roubar o carimbo.
Com o documento de exumação resolvido, o sobrinho, exausto dos
problemas burocráticos, volta ao cemitério para enterrar seu tio. O gestor
nega o pedido, dizendo que aquela era uma exumação e não um enterro. O
sobrinho, enfurecido, mata o gestor do cemitério.
Em Guantanamera, a morte também é um papel importante para
o desenvolvimento da história. O filme inicia com Gina recebendo a tia
Yoyita na cidade de Guantánamo. Esta havia retornado a Cuba após fugir
para os Estados Unidos durante a Revolução. Adolfo, esposo de Gina, estava
em uma reunião em Havana com a organização do setor de enterros do
país: cada região tinha um responsável nomeado pelo Estado para gerir os
enterros locais. Quando era necessário enterrar pessoas em outras regiões,
os gestores se organizavam para o processo dar andamento. Adolfo era um
entusiasta da ideia e tinha como principal objetivo ser reconhecido em
seu trabalho. Durante a reunião, Adolfo recebe a notícia que Yoyita havia
falecido em Guantánamo e prepara a documentação necessária para levar
o corpo da tia de Gina para ser enterrado em Havana.
A história se desenvolve a partir de três personagens: Gina, Adolfo
e Mariano, um caminhoneiro mulherengo que conhecera Gina quando
estudava na Universidade de Havana. Alea apresenta o arquétipo dos três
personagens relacionando-os com a característica da sociedade cubana. Gina,
uma mulher muito inteligente, professora de economia da universidade, que
tinha uma paixão por seu aluno Mariano, que se formou engenheiro, mas
virou caminhoneiro, pois o salário era melhor. Ela abandona a universidade

127
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

para casar-se com Adolfo, um burocrata, que segue todas as recomendações


do Estado e visa a perfeição da máquina pública.
Adolfo é a personificação do regime cubano. Burocrata, inflexível e
abusivo com Gina, que tinha suas vestimentas, hábitos e as escolhas de carreira
controladas. As “regras do jogo” são apresentadas no início do filme, quando
Yoyita conversa com Gina a respeito da sua vida em Guantánamo. Elas saem
para fazer compras e Gina afirma que não pode usar vestidos estampados; é
proibida de fumar e não pode participar do programa de orientação sexual
proposto pelo locutor da rádio local. Ele é extremamente regrado: a viagem
para o enterro de Yoyita deve ocorrer como estritamente planejado (não é
possível improvisar e perder sequer um minuto) como prova de comprovar a
eficiência da burocracia no sistema funerário. Ele rejeita o conhecimento de
administração e economia de Gina, afirmando que ela não conhece sobre o
assunto. Adolfo passa toda a viagem passando dificuldades em se alimentar
porque acreditava que os tíquetes de abastecimento do Estado era o suficiente
para a viagem. Durante o caminho, Gina e o motorista se alimentavam de
outras formas, utilizando restaurantes particulares irregulares, escondidos
de Adolfo, e comprando frutas na estrada.
Mariano é o oposto de Adolfo. O fato de ser um caminhoneiro
mulherengo o faz conviver com uma série de problemas com suas amantes. A
apresentação do personagem ocorre quando ele está fugindo de uma de suas
mulheres, que diz a ele que está grávida e deve acompanhá-lo até Havana.
Em outros momentos, Mariano utiliza de estratégias para fugir dos seus
casos na estrada, principalmente quando se reencontra com Gina. Sua vida
é feita de improvisos, no amor e na profissão. Era engenheiro e decidiu virar
caminhoneiro porque pagava melhor do que o Estado devido os serviços
paralelos feitos na estrada. Mariano criticava o modelo comunista, afirmando
que não havia abastecimento suficiente para a população, enquanto Adolfo
acreditava cegamente no Estado.
Ao longo da viagem, Gina se envolve cada vez mais com Mariano,
durante os encontros inesperados nas cidades em que param. Ao mesmo
tempo que ela começa a se questionar sobre o relacionamento com Adolfo,
passa a se libertar, expressar suas opiniões e se vestir da forma que gostaria.
Na sequência em que mostra Gina com novas roupas e cabelo solto, Adolfo
diz que ela “parece uma prostituta”, agindo com violência contra ela.

128
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

A burocracia em La muerte de un burocrata e Guantanamera é retratada


da mesma forma, apesar de serem filmes de gêneros distintos: é fria, não se
preocupa com o sentimento e tampouco com a condição de terceiros. As
críticas feitas no longa de 1995 são mais diretas do que as feitas em 1966,
porém, Adolfo e o gestor do cemitério são as mesmas pessoas: minuciosos
com documentos e desatenciosos com as necessidades das pessoas.

Memorias del subdesarollo (1968) e Fresa y Chocolate


(1994): drama como questionamento do sistema
político e social
Memorias del subdesarollo conta a história de Sérgio, um homem da elite
cubana que perde tudo na Revolução. Suas propriedades, que eram alugadas,
sua esposa, família e amigos, que resolveram fugir para os Estados Unidos
em busca de melhores condições de vida. Sérgio optou por ficar no país e
compreender as mudanças que estavam ocorrendo. Ele acreditava que faltava
decência nas pessoas que fugiam do país. Ele afirma que todos são figuras do
“subdesenvolvimento”. Pessoas atrasadas, com pensamento limitado, e pouco
interesse na vida pública. Nesse sentido, Sérgio rejeita o popular, a cultura de
massa, sempre exaltando o que era oriundo do continente europeu, música
clássica, bebidas destiladas e roupas de corte fino.
Sérgio conhece Elena, uma jovem cubana que tentava fazer teste para ser
atriz, e passa a se relacionar com ela. Sérgio a vê como uma “subdesenvolvida”:
não conhece arte, não gosta de literatura e pouco se interessa por política, não
sabendo opinar sobre a situação do país. Sérgio cansa da relação e abandona
Elena, que o acusa de estupro. O caso vai para a justiça popular, em que ele
percebe a mudança social da revolução. Ao entrar na corte, Sérgio reflete:
antes, o processo não iria adiante, devido a sua posição na sociedade, agora,
ele precisa se explicar, mesmo sendo inocente.
O filme é considerado uma das obras mais importantes do cinema
latino-americano. Obteve muitas análises positivas pelos jornais e revistas
especializadas cubanas no período de seu lançamento, bem como elogios da
imprensa internacional, sobretudo a norte-americana. Os destaques estão
voltados para a sensibilidade do diretor em adaptar a obra literária, dando
seus tons críticos e ótimos enquadramentos (CASTILLO, 2016).

129
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Fresa y Chocolate conta a história da amizade entre Davi, membro da


juventude comunista, e Diego, artista homossexual desiludido com o regime
cubano. A relação surge graças a atração que Diego tem por Davi, que aceita
o convite para ir à casa do artista para o investigar. Durante os diálogos dos
dois, há uma série de discussões sobre política, economia e sociedade, em que
os argumentos são rebatidos de cada lado. Diego, mais velho, mostra a Davi
que o regime comunista possui limitações, principalmente nos âmbitos social
e cultural. Não há espaço para a criatividade, liberdade e o amor. O artista
critica o modelo de arte proposto pelo regime: “Arte não é para transmitir,
é para sentir e pensar. Transmitir é para a Rádio Nacional”. Diego oferece
outra perspectiva de vida a Davi: empresta livros literários de autores que não
condizem com a orientação do regime e ingere whisky, a “bebida do inimigo”.
A discussão central do filme é a questão da sexualidade. Davi, que inicia
o filme com sua primeira experiência sexual frustrada com sua ex-namorada,
discute com Diego, homossexual perseguido pela sua condição. Davi afirma
que a homossexualidade é um “problema hormonal e não é revolucionário”.
Em outro momento, Miguel, amigo de universidade de Davi, discute com o
colega, afirmando que “revolução não entra pelo cu”. Com essas afirmações,
Alea mostra que revolução socialista exclui determinadas parcelas da população,
sobretudo os homossexuais.
Diego consegue fazer com que Davi aceite sua perspectiva, mas
continua desiludido. O regime proíbe a sua exposição de artes, ele perde o
emprego na universidade e continua perseguido por ser homossexual. Ele
se sente “expulso” do país e toma a decisão de ir embora, assim como seus
amigos, artistas e homossexuais, fizeram ao longo do filme.
Sérgio e Diego são homens cultos, leem literatura, consomem bebidas
internacionais e estão desiludidos com a política do país. O primeiro era
da elite no contexto da revolução, recebia indenização por ter perdido as
propriedades alugadas para terceiros. O segundo morava em um prédio
velho, mal conservado, e não tinha a mesma condição social do primeiro
protagonista. Entretanto, ambos estão desiludidos e possuem críticas sobre
o subdesenvolvimento: a falta de reconhecimento dos autores na literatura,
recusa das artes e, principalmente para Diego, o excesso de regras nas relações
de trabalho e o preconceito.

130
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Sérgio mostra a decepção com o regime implementado em 1959, da


mesma forma que Diego, de Fresa y Chocolate faz no longa de 1994. Porém,
Diego passa por mais dificuldades: além de estar decepcionado com os rumos
políticos e econômicos do país, ele é perseguido por ser homossexual.

Considerações finais
Tomás Gutierrez Alea foi um dos maiores cineastas de Cuba. Foi
reconhecido por seus prêmios internacionais, sendo responsável pela única
produção cubana indicada ao Oscar na categoria melhor filme estrangeiro
em 1995. Sua atuação diante da Revolução Cubana foi de apoio, até o
momento em que os artistas foram censurados pelo regime de Fidel Castro.
A partir do seu rompimento com a direção do ICAIC, as críticas ao regime
passaram a ser abordadas em seus filmes de ficção.
O ICAIC, mesmo com as censuras impostas pelogoverno, conseguia
divulgar filmes que não seguiam a política do país. Segundo Mariana Villaça
(2006), isso se deu graças a um duplo diálogo entre ICAIC, governo e
diretores, produzindo filmes a partir da conciliação entre as duas frentes.
Portanto, ao mesmo tempo que se desenvolvia documentários apoiando
o Estado e valorizando a revolução, eram produzidas obras ficcionais que
não estavam de acordo com o regime (VILLAÇA, 2016).
Todas as produções de Alea analisadas no artigo foram produzidas
pelo ICAIC. A primeira, em 1960, foi o primeiro longa-metragem de
Cuba pós-revolução, e exaltava o movimento, a partir de destaques dos
protagonistas nas histórias. A partir de 1961, com a sua saída do comitê
diretor do ICAIC, os filmes de Alea passaram a ser críticos, principalmente
com relação ao sistema administrativo e político, nos anos 1960, e social,
nos anos 1990.
Em 1966 e 1968, Alea produziu filmes que tratavam de formas
distintas o regime cubano. La muerte de un burocrata criticava a burocracia
administrativa retratada a partir do gestor do cemitério. Memorias del
subdesarollo mostra a representação do subdesenvolvimento de uma geração
que não gosta de política, mas também apresenta a desilusão com a sociedade
cubana após a revolução. Nos anos 1990, Alea ampliou as discussões sobre o

131
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

regime, criticando o comunismo, a crise de abastecimento, a regulamentação


da sociedade e das relações de trabalho.
Os cinco filmes analisados possuem uma característica comum.
Todos valorizam o indivíduo, a partir do desenvolvimento da consciência
nos personagens principais. Isso se dá na primeira história de Historias
de la revolución, com Alberto; o sobrinho, em La muerte de un burocrata,
Sérgio, em Memorias del subdesarollo, Davi, em Fresa Y Chocolate, e Gina,
em Guantanamera. Todos esses personagens passaram por situações que
os levaram a um aprendizado sobre um determinado elemento central
desenvolvido na história.
Outro elemento a ser destacado é a crítica ao contexto político
cubano. Tanto nas produções dos anos 1960 quanto em 1990, os filmes
analisados não questionam a validade do movimento de 1959, porém, critica
a estrutura implementada após a revolução. Nos quatro filmes de tom
crítico analisados neste artigo, não há discurso de valorização do regime
de Fulgêncio Batista, tampouco a valorização dos estrangeiros, sobretudo
os Estados Unidos. Alea desenvolve questões do cotidiano inerentes à
contemporaneidade da sociedade cubana, em que seus indivíduos, a partir de
suas lutas pessoais, mostravam as limitações do sistema político, econômico
e social implementado na revolução.
Os filmes dirigidos por Alea e sua relação com o ICAIC corroboram
com a tese de Villaça. Mesmo com sua saída do Instituto e a realização dos
filmes críticos, as produções foram exibidas em Cuba e tiveram repercussão
nacional e internacional, gerando debates e visões sobre a revolução. Alea
não fugiu de Cuba e nem produziu obras para denunciar o regime cubano
para a comunidade internacional. Ele acreditava que ser crítico cubano era
sua obrigação como cidadão para aperfeiçoar o sistema implementado na
revolução, utilizando a linguagem cinematográfica como meio para tratar
dos problemas do cotidiano da sociedade cubana7.

7 Há uma citação de entrevista na reportagem do jornal New York Times, no obituário do


diretor, em que ele se intitula como “um homem que faz críticas dentro da revolução, que
quer melhorar o processo, aperfeiçoa-lo, mas não destruí-lo”. Para mais, ver: NY Times,
17 abr 1996. Tomas Gutierrez Alea, Cuban Film Maker, 69. Disponível em: https://www.
nytimes.com/1996/04/17/arts/tomas-gutierrez-alea-cuban-film-maker-69.html Acesso
em 20 mai 2020.

132
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Referências
CASTILLO, Luciano. Crónica y flashback de un redescubrimiento: Me-
morias del subdesarollo. Cine Cubano, n. 200, 2016.
DEL RÍO, Joel. Algumas memórias do cinema cubano mais polêmico. Es-
tudos Avançados, v. 25, n.72, 2011.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012.
FURHAMMAR, Leif & ISAKSSON, Folke. Cinema & Política. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976.
SADER, Emir. Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da Amé-
rica Latina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
VILLAÇA, M. M. O Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográ-
ficos (ICAIC) e a política cultural em Cuba (1959-1991). Tese de doutora-
do. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
________________. Aproximações e tensões entre o ICAIC e a política
cultural em Cuba. IdeAs, n.7, 2016.
VIRILIO, Paul. Guerra e cinema: logística da percepção. São Paulo: Boi-
tempo, 2005.

133
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

134
É POSSÍVEL AFIRMAR QUE HOUVE SOCIALISMO
NA VENEZUELA CHAVISTA? UM ESTUDO DE
CASO SOBRE COMO CONCEITUAR ECONOMIAS
CONTEMPORÂNEAS1
Lucas Lemos Walmrath2
Wallace de Moraes3

Introdução
Esta pesquisa é guiada por algumas perguntas; 1) podemos afirmar
categoricamente que o chavismo implementou o socialismo na Venezuela?; 2)
como classificar a economia de um país como socialista?; 3) do ponto de vista
metodológico, quais os critérios essenciais para cravar tal classificação? Por
fim, pretendemos contribuir com alguns critérios essenciais que balizem a

1 Este capítulo é resultado dos estudos desenvolvidos pelos autores entre os anos de 2017
e 2019 no grupo de pesquisa Observatório do Trabalho na América Latina (OTAL), vin-
culado e sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e liderado
pelo prof. Dr. Wallace de Moraes. Uma versão anterior foi originalmente publicada como
artigo no “Dossiê 60 anos da Revolução Cubana e 20 anos da Revolução Bolivariana: um
balanço histórico, literário e historiográfico” no periódico Cadernos do Tempo Presente
da Universidade Federal do Sergipe (UFS), em 2019.
2 Mestrando em Sociologia (com ênfase em Antropologia) pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências So-
ciais (IFCS) da UFRJ. Colaborador do Observatório do Trabalho na América Latina
(OTAL) no mesmo instituto.
3 Professor Associado do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-
-Graduação em Filosofia (PPGF) e História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Pesquisa-
dor membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT/PPED). É editor da
Revista Estudos libertários da UFRJ e líder do grupo de pesquisa OTAL/UFRJ. É autor
de vários artigos e livros acadêmicos. Coordena a coleção “Governados por Quem? – Di-
ferentes Plutocracias nas Américas, sendo autor de dois livros 1) História das diferen-
tes plutocracias no Brasil e 2) A história da Venezuela que não te contaram na TV”. É
também autor do livro: “2013 – Revolta dos Governados ou, para quem esteve presente,
Revolta do Vinagre”. Pesquisa atualmente: Filosofia política negra; As Regulações Tra-
balhistas na América Latina e nos EUA; Teoria Política Anarquista e Libertária; e a
Relação entre Representação Política, Plutocracia e Democracia. Desde 2018, é bolsista
do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.

135
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

denominação de uma determinada economia como socialista. Nesse sentido,


utilizaremos o exemplo da Venezuela sob a Era Chávez.
Partimos da premissa de que, mesmo sem uma precisa mensuração
de quantos entendem a Venezuela como socialista, a mera constatação desta
conceituação, por si só, já levanta um problema pertinente a ser investigado.
Cabe lembrar que até o atual presidente dos EUA, Donald Trump, se referiu
ao país caribenho como socialista (CNN ESPAÑOL, 2017), ao criticar o
governo de Nicolás Maduro.
O primeiro aspecto a destacar é que cada governança política pode
atribuir à sua administração o nome que bem entender. Não discutiremos
isso. Não obstante, um cientista social não pode negligenciar a história das
ideias políticas, bem como os instrumentos necessários para caracterizar
um conjunto de políticas públicas, de acordo com critérios objetivos. Para
tanto, nosso caminho metodológico não pode classificar todo e qualquer
conceito de socialismo simplesmente como um anátema, como fazem as
perspectivas conservadoras e liberais, atribuindo-lhes todos os males da
organização societal sob seu nome.
A Era Chávez é majoritariamente interpretada por duas diferentes
maneiras. A literatura liberal a classifica como populista, ou como uma
ditadura, às vezes até como um amálgama das duas coisas. Os social-demo-
cratas no mundo inteiro interpretam o governo Chávez como um grande
líder que criou direitos para os pobres na Venezuela. Ambas incorreram
em um grande erro: personalizar toda uma governança política. Trata-se da
perspectiva da agorafobia política (DUPUIS-DÉRI, 2018) que, ao seguir na
perspectiva aristocrática, ignora ou desmerece a participação popular e foca
todo um governo em uma única pessoa. Ao fazer isso, essas matrizes teóricas
mostram todo seu caráter autoritário e centralista.
Nossa análise, amparada tanto na agorafilia política quanto no
histórico das lutas dos governados na Venezuela, aponta para o entendimento
do chavismo como resultado delas. Assim, a governança política de Hugo
Chávez Frías (1999-2013) foi consequência da força crescente dos movimentos
sociais, desde meados da década de 1980, culminando com a explosão do
Caracazo, em 1989. A partir de então, os governados não saíram mais das
ruas, tendo aumentado sua intensidade em 1999 (LÓPEZ MAYA, SMILDE,
STEPHANY, 2003), quando ocorreram ocupações de terras e de prédios.

136
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

O governo Chávez, portanto, foi oriundo das forças dos trabalhadores


organizados nas calles, contrários às políticas neoliberais.
Feitas as ressalvas necessárias, propomos uma contribuição para
o debate na forma de um estudo de caso, visando debater a alegação de
que a Venezuela chavista se configura como um exemplo de socialismo.
O artigo se subdivide nas seguintes seções: Revisão de Literatura, onde
revisamos brevemente o debate acadêmico quanto a melhor conceituação
da Venezuela sob o chavismo; Metodologia, onde exporemos a abordagem
escolhida para lidar com a questão colocada nesta introdução; Resultados,
onde apresentamos os achados dos dados e das leituras conduzidas; por
fim, na seção de Discussão discutiremos os resultados encontrados na seção
anterior, concluindo o artigo com uma reflexão libertária e crítica.

Como o mainstream tem classificado


o governo Chávez – breve revisão de literatura
Nesta seção, apresentamos um breve apanhado da literatura acadêmica
sobre o problema levantado. É preciso dizer que, para os intentos desta
pesquisa, muitos dos artigos e livros pesquisados não versavam sobre o exato
problema a qual nos propomos neste artigo, isto é, de conceituar a economia
venezuelana enquanto socialista. Muitos dos estudos a seguir se concentraram
em descrever o chavismo em suas facetas políticas e econômicas. Para Steve
Ellner, por exemplo, “A maioria dos analistas políticos coloca os governos de
Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador)
na mesma categoria, mas sem identificar suas características comuns” (Ellner,
2012, p. 97). O mesmo autor salienta que “Morales, Chávez e Correa propuseram
adaptar o socialismo à realidade concreta da América Latina, numa época em
que a sabedoria convencional no Ocidente é de que este modelo está quase
morto” (Ellner, 2012, p. 105).
Hawkins (2003, p. 1157) conceitua politicamente o chavismo como um
fenômeno do populismo, ainda que reminiscente e não idêntico aos modos
clássicos do século XX. Schamis (2006, p. 31) entende ser o chavismo um
representante da petro-esquerda: uma versão do século XXI da dominação
patrimonial sobre o Estado, composta por uma oratória populista vaga,
conjuntamente a objetivos nebulosos em sua suposta direção ao socialismo. No
entanto, o autor descarta o conceito de populismo para entender o chavismo

137
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

e demais esquerdas latino-americanas contemporâneas (SCHAMIS, 2006, p.


32). Mainwaring (2012, p. 955) enxerga historicamente a Venezuela migrando
da democracia representativa – ou partidocracia – que durara desde 1953, para,
em tempos de chavismo, um regime autoritário, ainda que participatório e
competitivo politicamente.
Jorge Lanzaro (2006) estabeleceu três conceitos para classificar os
governos latino-americanos do século XXI: populista, nacional-popular e
social-democrata. A alocação em um dos três depende fundamentalmente
do respeito/desrespeito aos preceitos macroeconômicos neoclássicos. Isto
é, se o governo respeita esses fundamentos e, ainda assim, investe no social
com o que sobra, é classificado como social-democrata. Se o modelo não
desrespeita os postulados determinados pelos organismos internacionais e seus
governantes políticos pertencem a partidos tradicionais, então é classificado
de nacionalismo popular. Quando o governo desrespeita os fundamentos
da macroeconomia, impondo um controle sobre o mercado com objetivos
redistributivos, sem o devido “cuidado” com o déficit fiscal e os equilíbrios
econômicos, é logo classificado como populista. Estes são os principais
argumentos para a alocação em um dos conceitos estabelecidos pelo autor.
Sob esta lógica, o governo Chávez foi populista.
Pannizza (2005) divide as governanças políticas dos anos 2000 na
América Latina em social-democratas e populistas. Aqueles respeitam os
ditames do mercado, têm relações com os sindicatos e são estáveis. Já os
populistas, caracterizam-se pelos mesmos princípios ditados por Lanzaro
(2006). Assim, também para Pannizza (2005), Chávez foi um populista.
Sheahan (2002)I classifica a Venezuela sob Chávez como sendo popu-
lista, por ter tido ampla intervenção do Estado na economia. Javier Corrales
(2005) e Michael Penfold (CORRALES, PENFOLD, 2007) igualmente se
enquadram no pensamento liberal crítico a Chávez. Suas inferências colocam
o governo bolivariano como ditatorial e extremamente impopular. Teodoro
Petkoff (2007)4, na mesma linha, associa o governo Chávez aos resquícios
da URSS como uma esquerda autoritária, segundo ele, como Cuba. Suas
críticas amparam-se na ideia, segundo a qual o presidente da República seria
4 É importante ressaltar que Teodoro Petkoff foi ministro da economia no mandato de
Carlos Andrés Pérez, caracterizado por implementar as políticas neoliberais no país que
vieram a culminar no Caracazo de 1989, grande manifestação popular contra o Estado. Esse
governo sofreu impeachment acusado de prática de corrupção, dentre outras denúncias.

138
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

“personalista, com fortes traços de militarismo, messianismo, caudilhismo e


autoritarismo” (PETKOFF, 2007, pág.1).
Quais os equívocos das conjecturas liberais supracitadas?
Pormenorizadamente, os problemas destas análises são muitos: 1) não levam
em conta a história dos diversos atores sociais envolvidos no processo; 2) não
concebem a diferença de interesses no seio da sociedade; 3) colocam a perspec-
tiva do mercado como se fosse a de todos. Com efeito, elas comungam de um
problema comum: são superficiais e descontextualizadas. Podemos antecipar
que essas interpretações são carentes de exame mais profundo sobre a questão
e que, por consequência, atendem mais a interesses políticos-ideológicos dos
governantes da economia do que possuem compromissos com os fatos.
Steve Ellner (2012, p. 98), por sua vez, resume o debate da primeira
década dos anos 2000: alguns teóricos caracterizaram o chavismo enquanto
uma espécie de “populismo de esquerda”, como Castañeda e Morales, ao passo
que outros, como Marta Harnecker, entoavam o conceito de “Socialismo do
século XXI”. Ellner (2012, pp. 101, 111-112) aponta que a Venezuela chavista (e
demais países da onda “bolivariana”) não se aproxima de nenhum caso real de
esquerda historicamente observados: o chavismo não encontra total semelhança
nem com os regimes políticos aceitos e entendidos como parte do “socialismo
real” (China, URSS, Cuba, por exemplo), nem com outras escolas de esquerda
clássica, como a linha social-democrata, que governou brevemente, ainda
que exercendo considerável influência na socialdemocracia Europa durante
o século XX. Tampouco o chavismo se entende tendo em vista o populismo
clássico. Em suma, para este autor “O modelo híbrido emergente, combinando
as dimensões da democracia radical e a democracia representativa herdada do
passado, também é, em muitos aspectos, sui generis” (ELLNER, 2012, p. 101,
tradução própria). Em uma linha semelhante, Claudio Katz (2007) entende
os governos bolivarianos desta onda recente como nacionalistas radicais.
Demais acadêmicos também buscaram descrever e conceituar o
chavismo em outras bases analíticas. Raphael Seabra (2012), ao perguntar
no título de seu trabalho se estaríamos testemunhando a primeira revolução
do século XXI, entende que a Venezuela sob chavismo de fato passara por
uma Revolução Bolivariana, constituída por, ao menos, três etapas: a “etapa
Constituinte da Revolução” (1990-2001); a “etapa Nacional-Soberana da
revolução” (2001-2005); e, por fim, a “etapa de construção da via venezuelana
ao socialismo” (2006-2012). Contudo, escrevendo o autor em 2012, ainda

139
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

estaríamos presenciando uma construção, e não uma etapa de Socialismo


pleno em território venezuelano. Em uma linha similar, Fermin e Soteldo
apontam que o “modelo societal capitalista, configurado en la formación
histórica de Venezuela desde la época de la colonia, que en nuestro días se
resiste a ser desmontado y sustituido por el llamado socialismo bolivariano,
como se bautiza al llamado nuevo socialismo del siglo XXI” (Fermin e Soteldo,
2014, p. 62) .
Também não considera a Venezuela um país propriamente socialista
Raúl Zelik (2011, p. 23), ao apontar que o país ainda avançava para superar
o modelo rentista do petróleo, não sendo claras as metas e objetivos para
transformação proposta pelo Socialismo do Século XXI. Ao comparar as
transformações sociais conduzidas pelo chavismo com a Revolução cubana,
Eliane Soares destaca que, “no caso cubano, a revolução socialista foi simultânea
à revolução nacional-democrática e, no caso venezuelano, está se buscando
avançar por vias graduais da revolução nacional-democrática ao socialismo”
(Eliane Soares, 2010, p. 30), descartando a leitura de que o país já tenha
alcançado sua fase socialista.
Conclui-se desta breve pesquisa à literatura que, ao menos, o chavismo
se encontra no campo à esquerda dos movimentos e práticas políticas,
herdando conceitos e inspiração no socialismo, mas sendo um fenômeno
muito característico, a sua própria maneira. É preciso dizer que a literatura
especializada não nos ajudou muito com o propósito deste trabalho. Apesar
de também problemática e insuficiente, a nosso ver, para conceituar o
chavismo, a academia se preocupa demasiadamente em conceituar a forma
do governo de Chávez e seus traços principais. Assim, esquece a economia em
suas transformações. Além disto, muitas das vezes, os acadêmicos consultados
parecem simplesmente assumir o conceito de socialismo do Século XXI como
sinônimo do período atual do chavismo, sem precisar ou especificar o uso
do conceito.
A seguir, contrastamos o debate acadêmico com os entendimentos
conceituais providenciados por críticos do chavismo: é nestas críticas onde
residem as alegações de um suposto socialismo chavista na Venezuela, espe-
cialmente as advindas dos oligopólios de comunicação de massa, governantes
socioculturais da grande mídia (MORAES, 2019, p. 63) e críticos do governo.
Por outro lado, os chavistas, muitas vezes, incorporaram como se estivesse
em curso o conceito de socialismo do século XXI (PARTIDO SOCIALISTA

140
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

UNIDO DE VENEZUELA – PSUV, 2016). Por exemplo, Seabra (2012, p. 202)


aponta que havia no país, em seu período de estudo, certa “convicção oficial
de que o socialismo já é parte da realidade cotidiana da Venezuela, sendo
assim, do ponto de vista do próprio governo bolivariano, as discussões sobre
o que seria o socialismo do século XXI é uma questão superada”.
Por sua vez, o renomado jornal econômico The Economist (2017), em
um recente artigo avaliando como Chávez e Maduro haviam empobrecido a
Venezuela em seus governos, mencionava a política econômica chavista como
imprudente, no que diz respeito a relação com o petróleo, e como sendo a
responsável pela crise econômica do “Venezuelan socialism”. Em um artigo de
opinião no New York Post, Rich Lowry (2017) afirmava, com todas as letras,
que a Venezuela era um país devorado pelo socialismo. Jason Mitchell (2017),
escrevendo em sua coluna como correspondente na Venezuela para o The
Telegraph, criticava o recente caos social venezuelano como induzido pelo
socialismo, aproveitando ainda para atacar Jeremy Corbyn, representante
da esquerda partidária mais aguerrida da Inglaterra.
No entanto, mesmo na grande mídia comercial, havia espaço para
discordância, ainda que estas fossem exceções. Em um artigo peculiar, a
notoriamente conservadora FOX News (FOX NEWS, ASSOCIATED PRESS,
2010) estadunidense apontava que a Venezuela não era um país socialista,
mesmo com todos os esforços de Chávez. O tira-teima era simples: a maior
parte da economia venezuelana ainda estava em mãos privadas e não estatais.
O artigo também notava como as estatizações eram mal apreciadas em geral,
discutindo também como o capitalismo ia de vento em popa nas ilhas de
riqueza e consumismo da elite venezuelana.
Em suma, contrariamente ao aparente consenso cunhado pelos oligopó-
lios de comunicação de massa acerca da Venezuela, a literatura, especialmente
a advinda da Ciência Política, não produziu um conceito consensual acerca
do fenômeno do chavismo. Nem mesmo categoriza a Venezuela sob o governo
Chávez como socialista plenamente, especialmente em seu sentido econômico,
alegação midiática frequente, tendo em vista as medidas estatistas de Chávez
e Maduro. Exposta esta breve discussão bibliográfica e midiática acerca do
tema, na próxima seção discutiremos a abordagem escolhida no intento de
avaliar, política e economicamente, a Venezuela durante o chavismo.

141
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Metodologia
Nossos procedimentos metodológicos são os seguintes: 1) faremos
um estudo do caso venezuelano sob a governança política de Chávez, em
que pese uma breve comparação da Venezuela com demais países em alguns
indicadores; 2) Conduzimos uma pesquisa bibliográfica em dicionários
especializados, com foco nas disciplinas de Economia e Ciência Política,
além de uma pesquisa documental em fontes secundárias, abarcando mídia
eletrônica, documentos institucionais e oficiais; 3) realizaremos, ainda, uma
breve análise de dados qualitativos e quantitativos.
Para verificar e, posteriormente, classificar a Venezuela sob o cha-
vismo, optamos por uma análise não só da forma de governo em seus traços
gerais, mas em seus componentes institucionais, em termos dos aparelhos do
Estado/governo e, principalmente, da configuração dominante da economia
neste período.
Estudamos e sintetizamos os conceitos de Capitalismo e Socialismo
nos seguintes dicionários: The MIT Dictionary of Modern Economics (1992);
Novíssimo Dicionário de Economia (1999); Routledge Dictionary of Economics
(2002); A Dictionary of Economics (2003); Dicionário de Política, de Norberto
Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (1998); The Routledge
Dictionary of Politics (2004); Oxford Concise Dictionary of Politics (2009) e, por
fim, o Dicionário do pensamento marxista (1988).

Resultados
Para se analisar a validade conceitual da Venezuela enquanto um
país socialista, é necessário, antes, resgatar as suas principais definições
conceituais. Sabemos que, desde tempos imemoriais, diversas concepções
de socialismo foram criadas e elas tratam de temas centrais da economia
política de maneira bem dessemelhante. Portanto, não podemos descuidar
da história do conceito, tampouco que ele comporta alguns aspectos centrais
que não podem ser deixados de lado. Em resumo, toda categoria, embora
possa mudar ao longo do tempo, é composta por um mínimo comum que a
singulariza e, principalmente, a diferencia de outras.
De acordo com Bottomore (1988), as raízes históricas do socialismo
remontam ao movimento radical dos Diggers, na Inglaterra, no período da

142
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Guerra Civil inglesa, no século XVII. Babeuf, durante a Revolução Francesa, e


os chamados, por Marx e Engels, de utópicos (Owen, Fourier e Saint Simon)
também defenderam o conceito nos séculos XVIII e XIX. Cesare Pianciola
(BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 1998) asseverou que o sentido
moderno de socialismo foi adquirido nos programas de cooperação entre
os operários de gestão comum dos meios de produção, propugnados pelos
owenianos nos finais dos anos de 1820. Woodcock (2002) defendeu que as
ideias do anarquismo, uma das possibilidades de socialismo, tiveram suas
origens na crítica social dos líderes camponeses da Inglaterra e da Alemanha,
durante os séculos XIV e XVI, respectivamente, baseado no ataque simultâneo
à propriedade e à autoridade. Max Nettlau (2008) foi mais longe, encontrando
no pensamento de Carpócrates, da escola gnóstica, no século II, no Egito,
indícios claros da defesa de um tipo de socialismo. Sam Mbah e Igariwey
(2001) mostraram a existência de uma espécie de comunismo primitivo em
África. Pierre Clastres (2012)I expôs como as sociedades indígenas na América
lutaram contra a existência de Estado e da propriedade privada.
Certo é que o referido conceito teve múltiplos significados ao longo
da história. Em comum, se apresentam em contraposição ao escravismo,
ao feudalismo e ao capitalismo. No entanto, um bom conceito não pode se
fazer a partir de suas negações. É preciso entender o que propõe os socia-
listas. Podemos dizer que buscavam, de alguma forma, justiça social e igual
distribuição daquilo que era gerado pela comunidade, sempre postulando,
se não a igualdade total, pelo menos a diminuição drástica das desigualdades
produzidas por outros sistemas.
Dessas propostas de socialismo, duas ainda permanecem com força e
é com elas que debateremos: o socialismo anarquista e o socialismo marxista.
A discussão a partir do conceito de socialismo libertário dos anarquistas
(PROUDHON, 2001; BAKUNIN, 2003; KROPOTKIN, 1975; CHOMSKY,
2008) pressupõe o autogoverno, sem a dicotomia entre governantes e
governados, sem Estado, estando os trabalhadores organizados de modo
a gerir o produto de seu trabalho autonomamente, sem a intervenção de
qualquer patrão ou autoridade, que nesse modelo não podem existir. Ajuda
mútua, coletivismo, autogestão e comunismo anarquista são conceitos caros
dessa corrente.
A partir de um outro viés analítico, e muito mais difundido, temos
as concepções de Karl Marx e Friedrich Engels. Esses autores são expoentes

143
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

de uma das interpretações mais clássicas acerca do socialismo. O Manifesto


Comunista (MARX, ENGELS, 2012), reverenciado em todo o mundo pelos
seus seguidores, é a publicação mais importante sobre o assunto desta corrente.
Chamamos a atenção para o papel do Estado na futura sociedade comunista
ideal, de Marx e Engels, caracterizado por controlar praticamente todos
os meandros da vida social. A propriedade privada revela-se como capital
objeto de ataque, além de ser apontada por eles como principal expressão do
modo de produção capitalista. Em resumo, no projeto socialista dos autores,
o Estado controlaria toda a economia, fenecendo a propriedade privada,
com a finalidade de garantir a igualdade social.
Resgatadas as principais marcas dos socialismos marxista e libertário,
podemos agora apresentar o contraste das interpretações conceituais acerca
de socialismo com o seu oposto, o capitalismo, a partir de uma síntese
elaborada por oito dicionários especializados. Vejamos:

Quadro 1 – Síntese das principais características dos conceitos de socialismo


e capitalismo segundo dicionários especializados consultados:
Capitalismo Socialismo
Propriedade privada dos
Propriedade comum/estatal dos meios de
meios de produção, troca e
produção, troca e distribuição: controle e
distribuição: controle e decisões
decisões econômicas concentrados nos
econômicas concentrados nos
trabalhadores e/ou no Estado6
proprietários5
Produção motivada pela distribuição da
Produção motivada pelo lucro7
riqueza social8

5 e.g.: “economic system based on private property and private enterprise” (A DICTIO-
NARY OF ECONOMICS, 2003)
6 e.g.: “the general doctrine that the ownership and control of the means of production -
capital and land - should be held by the community as a whole and administered in the
interests of all” (THE MIT DICTIONARY OF MODERN ECONOMICS, 1992, p. 398)
7 e.g.: “Production motivated by the profit motive” (ROUTLEDGE DICTIONARY OF
ECONOMICS, 2002, p. 91)
8 e.g.: “gestão tenha por objetivo promover a igualdade social (e não somente jurídica ou
política), através da intervenção dos poderes públicos.” (DICIONÁRIO DE POLÍTICA,
1998, p.1197-1198)

144
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Economia de mercado não Economia planificada pelo Estado;


(inteiramente) planificada pelo economia mista de mercado e Estado;
Estado9 economias de mercado10
Diferentes níveis de intervenção
Diferentes níveis de intervenção e
e regulação estatal na
regulação estatal na economia12
economia11
Mercado de trabalho Mercado de trabalho assalariado no
assalariado13 Socialismo-estatal
Maioria dos empregadores e Trabalhadores empregados em empresas
empregados no setor privado14 estatais ou cooperativas autogestionadas
Fonte: Elaboração dos autores com base nos dicionários descritos na seção “Metodologia”

Após esclarecer os constituintes mínimos requeridos para se en-


quadrar uma economia em um dos sistemas acima, apresentaremos dados
para testar a hipótese de que a Venezuela seria um exemplo de economia
socialista.
O cerne da definição socialista reside, conforme demonstrado na
síntese conceitual, em uma economia baseada na propriedade comum dos
meios de produção, troca e distribuição, coletiva, (socialismo libertário)
9 e.g.: “Capitalism does not imply complete laissez-faire; it is compatible with having
parts of the economy in public ownership” (A DICTIONARY OF ECONOMICS, 2003);
“The use of markets not planning to allocate economic resources” (ROUTLEDGE DIC-
TIONARY OF ECONOMICS, 2002, p. 91)
10 e.g.: “Today, socialism for a whole economy is often associated with PLANNING (as in
SOVIET-TYPE ECONOMIES). Some economies modified central planning by combin-
ing planning with market mechanisms, e.g. Hungary and Yugoslavia, to create MARKET
SOCIALISM.” (ROUTLEDGE DICTIONARY OF ECONOMICS, 2002, p. 540)
11 e.g.: “The extent to which the price mechanism is used, the degree of competitiveness
in markets, and the level of government intervention distinguish the exact forms of cap-
italism.” (THE MIT DICTIONARY OF MODERN ECONOMICS, 1992, p. 52)
12 e.g.: “Socialists have included believers in voluntary co-operation, believers in central
planning, and believers in the use of the market mechanism in running a socialist eco-
nomy.” (A DICTIONARY OF ECONOMICS, 2003)
13 e.g.: “purchase of labour for money wages” (THE MIT DICTIONARY OF MODERN
ECONOMICS, 1992, p. 52)
14 e.g: “at least a major proportion of economic activity is carried on by private prof-
it-seeking individuals or organizations, and land and other material means of production
are largely privately owned.” (A DICTIONARY OF ECONOMICS, 2003)

145
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

ou estatal (socialismo marxista); nesta, o controle e as decisões econômicas


seriam concentrados no Estado e naquela nos próprios trabalhadores por
meio da autogestão.
O quanto a estrutura da economia venezuelana durante o chavismo
se alterou em prol de uma maior participação do Estado? Uma pista reside
em uma análise da participação do PIB quando separado nos dois principais
setores: público e privado. Se o chavismo, de fato, implementou um programa
socialista estatal, deveríamos esperar um crescente percentual do setor
público, tanto por sua expansão em gastos em programas sociais quanto,
principalmente, pela estatização progressiva das empresas de todos os setores.
No entanto, não é isto que verificamos: ao analisar o percentual relativo a
cada ano, percebemos que a participação do Estado no PIB nacional não
aumentou dramaticamente. Mais do que isso: o percentual da participação
estatal sequer aumentou em relação aos dois anos pré-chavismo, 1997 e 1998.

Figura 1 – Participação (em %) dos setores público e privado no PIB venezuelano,


1997-2013

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central de Venezuela, 2019a

Alguém poderia argumentar que empresas estatais representam um


percentual menor, mas muito relevante nas economias; e, dado interven-
cionismo de inspiração socialista do Chavismo, o controle das empresas

146
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

estatais e de seus empregos seria uma evidência suficiente para justificar o


socialismo venezuelano. De fato, o controle sobre a PDVSA, empresa estatal
produtora de petróleo, confere grande agência ao governo chavista, tendo
em conta a importância do petróleo para a economia deste país. No entanto,
um resultado muito parecido é obtido quando se analisa o PIB venezuelano
por classes econômicas15. Novamente, é possível ver que os setores privados,
não petrolíferos, continuam a produzir a maior parte do PIB do país: os
governos chavistas não conseguiram alterar dramaticamente os percentuais
em relação ao período antecessor, como visto nos dados para 1997 e 1998.

Figura 2 – Participação (em %) por classe de atividade econômica no PIB


venezuelano, 1997-2013

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central de Venezuela, 2019b

Em consonância com esta argumentação, ainda levando em con-


sideração a hipótese estatal e as definições conceituais apresentadas,
levantamentos realizados antes e durante a Era Chávez apontavam que os
servidores públicos na Venezuela respondiam por 18,4% da força de trabalho
nacional. Em comparação, servidores públicos no EUA, exemplo liberal de

15 Os dados oficiais do Banco Central de Venezuela segregam a participação e a classe de


atividade petroleira das demais atividades econômicas. No entanto, a participação estatal
existe em outras áreas. Por isso, na Figura 2 somamos o percentual da classe petroleira com
a do setor público, que consta na planilha como “Produc. servicios del Gobierno General”.

147
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Estado mínimo, contavam 14,2% da força de trabalho nacional, ao passo que,


na Europa, em muitos países a mesma cifra respondia por mais de 20% da
força de trabalho empregada pelo Estado (CEPR, 2012)I.

Figura 3 – Percentual de empregados no setor público e privado venezuelano,


referência para o mês de dezembro

Fonte: Encuesta de Hogares por Muestreo - Instituto Nacional de Estadística, INE. Disponível em
http://www.ine.gov.ve/index.php?option=com_content&view=category&id=103&Itemid=40#. Acesso
em 03 de fevereiro de 2020.

Além disto, outros indicadores parecem ir contra a hipótese: ao


menos nos últimos oito anos do governo Chávez, o setor privado, que deveria
diminuir consideravelmente (ou mesmo ser extinto) em um país socialista
de facto, cresceu mais rápido que o setor público-estatal nos primeiros oito
anos de Chavismo (WEISBROT; SANDOVAL, 2007, p. 9). Mais que isso, o
setor privado respondia por uma fatia maior da economia venezuelana em
2007 do que antes do início do Chavismo, isto considerando oito anos de
governo já decorridos (WEISBROT; SANDOVAL, 2007, p. 9), fato também
observado neste trabalho.
Instituições especializadas, não midiáticas, também produziram
pareceres relevantes sobre a Venezuela. Nenhum dos documentos consultados,
contudo, menciona o suposto socialismo de Chávez, em que pese as críticas
ao governo: nem mesmo em pareceres especializados em Economia, tais

148
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

como o apresentado pelo Banco Mundial (THE WORLD BANK, 2017).


O World Factbook (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY (CIA), 2018),
desenvolvido pela agência de inteligência estadunidense, aponta para as
críticas comumente feitas ao Chavismo: autoritarismo na esfera política e
civil somado a um maior controle da economia. Contudo, não consta o uso
do conceito de socialismo para descrever a economia e a política venezuelana.
Em uma análise das instituições que guiam o entendimento e as
operações de propriedade no país, podemos ver como a Constituição
bolivariana garante, formalmente, propriedades privadas, estatais e sociais
e mistas (ÁLVAREZ, 2009). De fato, o Chavismo galgou em medidas
associadas a programas socialistas (ELLNER, 2012)16, tais como expropria-
ções e reestatizações de setores industriais estratégicos; reforma agrária;
controle de preços; promoção de cooperativas sociais; e, por fim, políticas
de redistribuição, chamadas de misiones sociales (MORAES, 2019).
Dando continuidade a análise dos componentes estatais, que nos
ajudam a decifrar a questão posta, a República Bolivariana da Venezuela
se afirmava17 um Estado Social e Democrático de Direito e de Justiça.
Como forma de governo, em termos formais, o país era regido como uma
República federal presidencialista. A divisão do Poder Público Nacional
se fazia por meio dos poderes Legislativo, Executivo, Judicial, Cidadão e
Eleitoral. Vigorava no país, como órgão legislativo nacional, a Asamblea
Nacional de Venezuela, sendo um regime unicameral. Politicamente, o país
era configurado como uma democracia representativa, com frequente uso de
plebiscitos e referendos, havendo competição pluripartidária. Não julgamos
aqui o mérito e a veracidade de tais configurações: nos interessa apenas
descrever como o Estado venezuelano se afirmava “em termos formais”.
Desta breve descrição, ainda que o cerne do debate resida na
estrutura econômica, podemos ver, como já ressaltado anteriormente por
Ellner, que a estrutura política venezuelana seguia o modelo dominante
na contemporaneidade ocidental. Era mais assemelhado com os países
liberais capitalistas do que com as antigas experiências socialistas estatais
do leste europeu, por exemplo. Em que pese isso, o chavismo afirma que
16 Para este autor, trata-se de uma economia mista.
17 Até a escrita deste capítulo, que se refere em especial a Venezuela durante os governos
de Hugo Chávez.

149
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

implementara o socialismo do século XXI. Já os seus opositores o definiam


como regime populista ditatorial.

Breve análise das políticas públicas adotadas pelo


chavismo: uma Plutocracia Social-Democrata de las calles
Existem diversas maneiras possíveis de se conceituar economias
contemporâneas: muitas já foram propostas e os debates não cessam,
por serem tanto normativos quanto científicos. Contudo, não podemos
desprezar condições necessárias, suficientes e mínimas para se aventar uma
conceituação no lugar de outra. Neste artigo, propusemos avaliar as políticas
públicas postas em prática pelo Chavismo (1999-2013) e o tipo majoritário de
propriedade dos meios de produção garantidos pela lei no país. Para tanto,
é fundamental atentar para os eixos econômico e político. Como visto, ao
adentrarmos na discussão econômica, é de extrema relevância estar seguro
acerca da estrutura econômica geral disposta. Paralelamente, quanto ao
Estado, deve-se atentar, no mínimo, à Constituição e ao modelo político
predominante no país. Ademais, é preciso desenhar uma linha precisa nos
estudos comparativos, buscando similaridades e particularidades em cada
caso analisado.
Para demonstrar como o problema colocado neste artigo pode ser
enfrentado e lido de diversas maneiras, finalizamos com uma leitura socialista
libertária da questão. Apesar dos grandes avanços sociais empreendidos pelo
movimento bolivariano-chavista, com grande mérito para a mobilização
e organização popular do mesmo, as transformações que há pouco tempo
completaram 20 anos não deram conta de conduzir uma cisão completa
com o sistema capitalista. Especialmente após a morte de Chávez, ficou
nítido para populares e críticos, como o movimento se apoiava em sua
figura, excessivamente carismática, para o bem e para o mal.
Objetivamos aqui perceber se as principais políticas públicas adotadas
durante a governança política chavista podem ser enquadradas como socialis-
tas (libertárias ou marxistas) ou capitalistas (liberais ou social-democratas).
Antes de respondermos a essas questões, é mister estabelecermos algumas
advertências, posto que é premente definir qual foco de análise teórica
utilizaremos: a) do capitalismo de Estado; b) do socialismo marxista; c)

150
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

do socialismo libertário. Feitas as necessárias ressalvas, podemos olhar a


Era Chávez por diferentes ângulos. Vamos ao primeiro passo.
Chávez assumiu o governo em 1999, auge do neoliberalismo. Naquele
momento, as chamadas liberalizações estavam sendo implementadas em
todo o mundo. Sua governança foi a primeira a romper com o Consenso
de Washington em toda a América Latina, quando outros afirmavam que
era impossível lutar contra as forças do mercado.
Do ponto de vista do capitalismo de Estado, baseado em uma
interpretação tipicamente social-democrata, a governança política de
Chávez foi exemplar. Garantiu uma forte intervenção estatal na economia.
Reestatizou várias empresas. Construiu novas estatais. Ampliou direitos
sociais. Incrementou significativamente os direitos trabalhistas. Forneceu
créditos para os micro e pequenos empresários. Democratizou decisões
políticas por meio de referendos e plebiscitos. Criou diversas missões
sociais para erradicar o analfabetismo, distribuir alimentos e ampliar
atendimentos de saúde por meio de proliferação de postos médicos;
dentre elas estão: “Misión Barrio Adentro”, que levou atendimento de
saúde gratuito para moradores carentes; “Misión Ribas”, que acabou com
o analfabetismo; “Misión Habitat” e “Misión Vivienda”, que criaram casas
populares e programa habitacional. Afora as missões, o governo implantou
o Mercado Popular (MERCAL), que vendia comida subsidiada. Foram
criados seis mil restaurantes comunais, com a comida sendo preparada
na própria casa das pessoas. Ainda foram estimulados o surgimento de
cooperativas que produziam para a governança política. Devemos contar,
também, a criação de universidades e escolas públicas.
Outrossim, a perspectiva social-democrata assevera que o chavismo
fez uma revolução no país, a partir dos princípios de Simón Bolívar, e
implementou um modelo próprio: o “socialismo do século XXI”. Este, por
sua vez, advogavam seus publicistas, constituiu-se no modelo de gestão mais
avançado no mundo na primeira década do novo milênio, favorecendo,
exclusivamente, os trabalhadores. Podemos identificar essas interpretações
nos trabalhos de Weisbrot e Sandoval (2007), Petras (2007) e Lander (2005).
A despeito das previsões dos teóricos neoliberais, as políticas
social-democratas de Chávez reduziram o desemprego a menos da metade
e fizeram com que o crescimento do PIB fosse um dos mais altos do mundo,

151
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

estabelecendo um crescimento considerável do Índice de Desenvolvimento


Humano (IDH) (WEISBROT; SANDOVAL, 2007). É claro que o aumento
do preço do petróleo ajudou e muito.
Quando focamos as políticas públicas de Chávez com o olhar
do socialismo marxiano, percebemos erros e acertos. Os acertos dizem
respeito às estatizações, ao crescimento do Estado e a criação de direitos
para os trabalhadores. Todavia, o respeito à propriedade privada e a não
estatização de todos os meios de produção constituem em um grande erro
para essa literatura. Além do que, nem Chávez, nem a maioria de seus
ministros eram oriundos da classe operária, que teria proeminência, de
acordo com o pensamento de Marx, para dirigir o processo revolucionário.
Do ponto de vista da crítica do socialismo libertário, percebemos
que seu governo não tocou nas relações de produção capitalista, garantiu a
propriedade privada dos meios de produção, a exploração do trabalhador
pelo patrão, a divisão social e hierárquica do trabalho, enfim, instituições
basilares para o pleno desenvolvimento do mercado e de sua lógica. Não
houve um processo longo, contínuo e substantivo de expropriação de
empresas realizada pelos governados. As poucas fábricas que passaram
para a gestão dos trabalhadores logo depois foram estatizadas. Algumas
tentativas de ocupação de prédios, de fábricas e de autogestão foram
plenamente rechaçadas pelo governo, em seu conjunto, e tratadas como
caso de polícia. Foram criadas, aproximadamente, 140.000 cooperativas,
mas que produziam para o mercado capitalista e com a mesma lógica da
exploração do trabalho. Além de tudo, a governança política garantiu o
Estado, fortalecendo-o. Ocorreu, também, a criminalização de dirigentes
sindicais e líderes populares revolucionários18.
A governança política de Chávez colocou na pauta do dia as ban-
deiras da revolução e do socialismo, junto com a crítica ao capitalismo. Isto
foi uma grande vitória. Entretanto, ressignificou os conceitos de socialismo
e revolução, trazendo-os para o âmbito do Estado capitalista, tornando-se
dependente deste, como fizeram os reformistas. O autogoverno também
foi colocado na pauta, mas ficou longe de ser priorizado.

18 Ver Uzcátegui (2010).

152
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

A Era Chávez, com base nos movimentos populares, portanto,


produziu um tipo próprio de capitalismo, denominado por nós de
“Plutocracia Social-Democrata de las Calles” ou “Capitalismo das Ruas”,
que instituiu uma “Revolução Legal”. Vejamos.
A década de 2000, na Venezuela, deve ser lida pela pressão exercida
por diversos movimentos sociais. Logo após a posse de Hugo Chávez, em 1999,
vários grupos sociais promoveram ocupações de prédios, terras e fábricas.
Em todo o país, e desde então, as manifestações de rua se intensificaram,
defendendo o rompimento com a política neoliberal e puntofijista. Ao
mesmo tempo, a população pobre organizada foi trazida novamente para a
participação na institucionalidade e levada, paulatinamente, a abandonar os
protestos violentos contra as instituições, o capital e a ordem19. A tradição
inaugurada com o Caracazo criou uma “Revolução Legal”, que instituiu a
“Plutocracia Social-Democrata de las Calles”. Isto é, o capitalismo produzido
foi resultado de muitas das reivindicações dos governados nas ruas, que, com
absoluto respeito às leis do país, exigiram dos governantes que as mudanças
fossem feitas. Com efeito, os governados foram chamados, por várias vezes,
ao voto.
As mudanças estabelecidas na Plutocracia Social-Democrata de las
Calles mantiveram todas as relações capitalistas de produção e reprodução
do capital. O tripé sustentador do capitalismo foi mantido como a garantia
da propriedade privada, da divisão social e hierárquica do trabalho e do
Estado, fortalecendo-o, obstando o controle direto dos governados sobre
a sua produção. Com efeito, o governo de Chávez garantiu respeito às
principais instituições do regime do capital. Conquanto, embora o Estado
tenha assegurado a reprodução do capitalismo, indubitavelmente a Era
Chávez diferenciou-se daquilo que fora defendido pelo pensamento liberal
clássico: forte intervenção na economia, investimento no social, criação de
direitos trabalhistas e regulação de preços, definitivamente não fazem parte
do rol de desejos liberais.
Durante a década de 1960, estas opções políticas eram lidas como
social-democratas. Sob o governo de Chávez, podemos lê-las da mesma
maneira? Pensamos que sim. Se entendemos que as políticas social-democratas
19 Durante a governança política de Chávez, os protestos de rua tenderam a declinar. Ver
López Maya, (2006, p. 164).

153
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

na Europa foram postas em prática a partir das reivindicações do movimento


operário, na Venezuela o combustível do chavismo foi o amplo movimento
popular organizado. O próprio Chávez foi seu resultado, e não o contrário,
como costumam defender os autoritários de plantão.
Por fim (e o mais importante), embora a maioria dos governados
estivesse encampando e apoiando os conceitos de revolução e socialismo,
a governança política chavista não conseguiu acabar com o capitalismo e a
histórica plutocracia existente desde a chegada dos espanhóis. A exploração
continuou, apesar de todo esforço discursivo e prático do presidente. As
poucas cooperativas ficaram sob o jugo do mercado e não colaboram para a
autogestão socialista. Os governados não conseguiram sair dessa condição.
O discurso socialista e revolucionário de Chávez contrastou frontalmente
com a ação da burocracia estatal e esteve muito mais para sociedade do
espetáculo (DEBORD, 1997) do que para prática real.
Concluímos que a partir de uma perspectiva social-democrata, ou
de capitalismo de Estado, a Era Chávez foi um excelente exemplo. Destarte,
ainda esteve muito longe para poder ser chamada de socialista; mesmo que
o termo fosse ressignificado, ele não pode conter os princípios basilares do
capitalismo, o regime opositor. Por tudo, entendemos que a Era Chávez pode
ser mais bem caracterizada como Plutocracia Social-Democrata de las Calles.

Conclusão
O presente estudo, dadas as limitações da contribuição, da abordagem
e dos dados consultados, não entende como adequada a classificação da
Venezuela sob os governos de Hugo Chávez como exemplo de economia
socialista. Para tanto, nos amparamos na literatura especializada em conceitos
políticos e econômicos. Assim, visamos contribuir para construção futura
de modelos mais abrangentes, capazes de serem reproduzidos e aplicados
de maneira eficaz ao se analisar e conceituar economias contemporâneas.
Com efeito, afirmamos que a Era Chávez não acabou com o capitalis-
mo, mas indubitavelmente rompeu com uma de suas faces, o neoliberalismo.
Ao mesmo tempo, não criou o socialismo. Todavia, implementou políticas
muito fáceis de identificar, para um mínimo conhecedor da história. Trata-
se de políticas social-democratas, empurradas, tal como no período do

154
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

pós-guerra, por pressão dos governados. A economia venezuelana continuou


capitalista, isto é, com exploração do proprietário sobre seus trabalhadores.
As leis do mercado continuaram em pleno vigor. Por isso, chamaremos como
um governo plutocrático, pois continuou garantindo os interesses dos donos
do capital. Todavia, em que pese essa garantia, a exploração não ficou livre,
mas foi amplamente regulada pelo Estado, inclusive com incremento de
direitos formais para os trabalhadores por isso, não pode ser considerada
como liberal, seguindo, portanto, os princípios da social-democracia. Essas
políticas foram impulsionadas pelos movimentos “calleros”, com os protestos
de rua, assumindo papel fundamental nas escolhas de políticas públicas. Pelo
exposto, denominamos a Era Chávez por Plutocracia Social-Democrata de
las Calles. Embora a histórica plutocracia instalada na Venezuela há séculos
fora mantida por um modo menos ultrajante para o trabalhador.
Por fim, a Era Chávez pode ser conceituada como uma “Plutocracia
Social-Democrata de las Calles” (MORAES, 2019). Esta produziu uma
“Revolução Legal”, caracterizada por atender as demandas das ruas e cami-
nhar no sentido de desconstruir aquilo que fora imposto pela plutocracia
neoliberal desavergonhada, com políticas social-democratas, gerando alto
grau de instabilidade política, pois os interesses contrariados, embora de um
número pequeno de eleitores, eram muito fortes política e economicamente.
Nestas condições, a Venezuela passou por um momento estritamente
diferente do neoliberalismo com reversão de suas políticas, mas de maneira
alguma podemos chamá-lo de socialismo, como mostramos.

Bibliografia
ÁLVAREZ, Victor. Venezuela: ¿Hacia dónde va el modelo productivo? 1a
ed. Caracas: Centro Internacional Miranda (CIM), 2009. Disponível em:
<http://209.177.156.169/libreria_cm/archivos/pdf_199.pdf>. Acesso em: 3 out.
2018.
A Dictionary of Economics. 2a ed. [S.l.]: Oxford University Press, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. (2003) Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário.
BANCO CENTRAL DE VENEZUELA (2019a). Producto Interno
Bruto por Sectores Institucionales, a Precios Constamtes, 1997 –

155
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

2013. Disponível em: http://www.ine.gov.ve/index.php?option=com_


content&view=category&id=100&Itemid=59. Acesso em: 8 set 2019
______ (2019b). Producto Interno Bruto por Sectores Institucionales,
a Precios Constamtes, 1997 – 2013. Disponível em: http://www.ine.gov.
ve/index.php?option=com_content&view=category&id=100&Itemid=59.
Acesso em: 8 set 2019
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. [S.l.]: Zahar,
1988.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco
(Orgs). Dicionário de Política. 11ª ed. Brasília: Editora UNB, 1998.
CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY (CIA). The World Factbook —
Venezuela. Governamental. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/
publications/the-world-factbook/geos/ve.html>. Acesso em: 22 abr. 2018.
CEPR. Public Sector Employment in Venezuela Is Not So Large as the
Associated Press Suggests. 2012. Disponível em: <http://cepr.net/blogs/the-
americas-blog/public-sector-employment-in-venezuela-is-not-so-large-as-
the-associated-press-suggests>. Acesso em: 18 abr. 2018.
CHOMSKY, Noam. (2008) Razões de Estado. Rio de Janeiro: Record.
CLASTRES, Pierre. (2012). A sociedade contra o Estado – pesquisa de
antropologia política. São Paulo: Cosac Naify.
CNN ESPAÑOL. Trump: “La dictadura socialista de Maduro ha causado
dolor en el pueblo”. CNN Español, 19 set. 2017. Disponível em: <https://
cnnespanol.cnn.com/2017/09/19/trump-la-dictadura-socialista-de-maduro-
ha-causado-dolor-en-el-pueblo/>. Acesso em: 21 abr. 2018.
CORRALES, Javier. (2005), “In Search of a Theory of Polarization: Lessons
from Venezuela, 1999/2005”. Revista Europea de Estudios Latinoamericanos
y del Caribe, n. 79.
______; PENFOLD, Michael. (2007) “Venezuela: Crowding Out the
Opposition”. Journal of Democracy, v. 18, n. 2.
DEBORD, Guy. (1997) A sociedade do espetáculo. São Paulo: contraponto.

156
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

DUPUIS-DÉRI, Francis. (2018) “Who’s afraid of the people? The debate


between political agoraphobia and political agoraphilia”. Global Discourse,
8(2), 238-256, https://doi.org/10.1080/23269995.2018.1468607
ELLNER, Steve. The Distinguishing Features of Latin America’s New Left
in Power: The Chávez, Morales, and Correa Governments. Latin American
Perspectives, v. 39, n. 1, p. 96–114, jan. 2012.
FERMIN, Eudis; SOTELDO, Juan P. El socialismo bolivariano en Venezuela:
construcción de un modelo de desarrollo socio-económico. Universitas:
Relações Internacionais, v. 12, n. 1, 22 jul. 2014. Disponível em: <https://
www.publicacoesacademicas.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/
view/2602>. Acesso em: 9 jan. 2019.
FOX NEWS. ASSOCIATED PRESS. What socialism? Private sector still
dominates Venezuelan economy despite Chavez crusade. Disponível em:
<http://www.foxnews.com/world/2010/07/18/socialism-private-sector-
dominates-venezuelan-economy-despite-chavez-crusade.html>. Acesso em:
21 abr. 2018.
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. 1a ed. New
York: Free Press, 2006 [1992].
HAWKINS, Kirk. Populism in Venezuela: the rise of Chavismo. Third
World Quarterly, v. 24, n. 6, p. 1137–1160, dez. 2003.
How Chávez and Maduro have impoverished Venezuela. The Economist,
6 abr. 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/news/finance-
and-economics/21720289-over-past-year-74-venezuelans-lost-average-87kg-
weight-how>. Acesso em: 21 abr. 2018.
KATZ, Claudio. Las encrucijadas del nacionalismo radical. La página de
Claudio Katz. [S.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.lahaine.org/b2-img/
katzencr.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2018. 20 nov. 2007.
KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. Lisboa: Guimarães Editores, 1975.
LANDER, Luis E. (2005), “Petróleo e Democracia na Venezuela: do
fortalecimento do Estado à sublevação soterrada e à insurreição aberta”.
In OURIQUES, Nildo (org.). Raízes no Libertador. Bolivarianismo e poder

157
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

popular na Venezuela. (2ª ed.). Florianópolis: Insular.


LANZARO, Jorge. La Tercera Ola de las Izquierdas Latinoamericanas:
Entre el Populismo y la Social Democracia. Manuscrito, 2006.
LÓPEZ MAYA, Margarita. (2006). “Venezuela 2001-2004: actores y
estratégias en la lucha hegemônica”. In: CAETANO, Gerardo. Sujetos
sociales y nuevas formas de protesta em la historia reciente de América
Latina. Buenos Aires: Conselho Latinoamericano de Ciências Sociales –
CLACSO.
______; SMILDE, David; STEPHANY, Keta. (2003) “La protesta popular
venezolana entonces y ahora: ?câmbios em la política de la calle?” Revista
Politeia, 30: 157-181. Instituto de Estúdios Políticos, Universidad Central de
Venezuela.
LOWRY, Rich. Venezuela: a nation devoured by socialism. New York
Post. Disponível em: <https://nypost.com/2017/08/01/venezuela-a-nation-
devoured-by-socialism/>. Acesso em: 21 abr. 2018. 1 ago. 2017
MAINWARING, Scott. From Representative Democracy to Participatory
Competitive Authoritarianism: Hugo Chávez and Venezuelan Politics.
Perspectives on Politics, v. 10, n. 04, p. 955–967, dez. 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Edição: 1ª
ed. [S.l.]: Penguin, 2012.
MBAH, Sam; IGARIWEY, I.E (2001) African Anarchism: the history of
movement. Disponível em: https://libcom.org/history/sam-mbah-i-e-
igariwey
MITCHELL, Jason. Venezuela is collapsing into socialist induced chaos, yet
it remains a Corbynista poster child. The Telegraph, 1 maio 2017. Disponível
em: <https://www.telegraph.co.uk/news/2017/05/01/venezuela-collapsing-
socialist-induced-chaos-yet-remains-corbynista/>. Acesso em: 21 abr. 2018.
MORAES, Wallace De. Governados por quem? Diferentes plutocracias nas
histórias políticas de Brasil e Venezuela. 2a ed. Rio de Janeiro: Ape’ku, 2019.
NETTLAU, Max. História da anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São

158
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Paulo: Hedra, 2008.


Novíssimo dicionário de economia. 3ª ed. São Paulo: Editora Best Seller,
1999
PANNIZZA, Francisco (ed.). Populism and the Mirror of Democracy.
Londres: Verso, 2005.
PARTIDO SOCIALISTA UNIDO DE VENEZUELA – PSUV. Chávez
asumió hace nueve años como presidente reelecto encaminado al socialismo
del siglo XXI. institucional. Disponível em: <https://www.psuv.org.ve/
temas/noticias/hugo-chavez-venezuela-presidente-reeleccion-socialismo-
siglo-xxi/#.W4GxHc5Kjcc>. Acesso em: 9 jan. 2019.
PETKOFF, Teodoro. (2007) “As Duas Esquerdas”. Nueva Sociedad, www.
nuso.org.
PETRAS, James. (2007) “Día-D para Venezuela”. El 2, de diciembre,
referéndum constituyente. Artigo original: http://petras.lahaine.org/
articulo.php?p=1717.
PROUDHON, Pierre-Joseph (2001). A propriedade é um roubo e outros
escritos anarquistas: seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM.
RODRIK, Dani. Goodbye Washington Consensus, Hello Washington
Confusion? A Review of the World Bank’s Economic Growth in the 1990s:
Learning from a Decade of Reform. Journal of Economic Literature, v. 44,
n. 4, p. 973–987, dez. 2006.
Routledge Dictionary of Economics. 2a ed. Londres e Nova Iorque:
Routledge, 2002
SCHAMIS, Hector E. Populism, Socialism, and Democratic Institutions.
Journal of Democracy, v. 17, n. 4, p. 20–34, 2006.
SEABRA, Raphael Lana. A primeira revolução do século XXI? :
bolivarianismo e socialismo Venezuela. 2012. 237 f. Tese de Doutorado
– UnB, Brasília, 2012. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/
handle/10482/10635>. Acesso em: 10 jan. 2019.
SHEAHAN, John. Alternative models of capitalism in Latin America. In

159
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

HUBER, Evelyne (ed.). Models of Capitalism: Lessons from Latin America.


Pennsylvania, University Park, 2002.
SOARES, Eliane. Revolução nacional-democrática e socialismo na
américa latina: As Experiências da Revolução Bolivariana da Venezuela
e da Revolução Cubana de 1959. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as
Américas, v. 4, n. 1, 2 jul. 2010. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/
index.php/repam/article/view/16097>. Acesso em: 11 jan. 2019.
The Concise Oxford Dictionary of Politics. [S.l.]: Oxford University Press,
2009.
The MIT Dictionary of Modern Economics. 4a ed. Grã-Bretanha: MIT
Press, 1992.
The Routledge Dictionary of Politics. [S.l.]: Routledge, 2004
THE WORLD BANK. The World Bank In Venezuela. Disponível em:
<http://www.worldbank.org/en/country/venezuela/overview>. 2017. Acesso
em: 21 abr. 2018.
UZCÁTEGUI, Rafael. (2010) Venezuela: La Revolución como espetáculo.
Una crítica anarquista al gobierno bolivariano. Caracas, Madri, Tenerife,
Buenos Aires: El libertário/ Editorial La Cucaracha Ilustrada/ La Malatesta
Editorial/ Tierra de Fuego/ Libros de Anarres.
WEISBROT, Mark; SANDOVAL, Luis. The Venezuelan Economy in the
Chávez Years. Washington, DC: Center for Economic and Policy Research
(CEPR), jul. 2007. Disponível em: <http://cepr.net/documents/publications/
venezuela_2007_07.pdf>. Acesso em: 3 out. 2018.
WOODCOCK, George (2002) História das ideais e do movimento
anarquista. Vol. 1. Porto Alegre: L&PM.
ZELIK, Raúl. “Socialismo del siglo XXI” o viejo centrismo estatal? Una
lectura disidente de las transformaciones en Venezuela. Forum. Revista
Departamento Ciencia Política, v. 1, n. 1, p. 13–34, 1 jan. 2011.

160
PDVSA “AD HOC”:
VOLVIENDO A LAS VIEJAS MAÑAS
Carlos Mendoza Pottellá1

Cuando está por terminar el primer semestre del año en curso la


situación venezolana no puede ser peor: semiparalizada por la pandemia
y acentuado el cerco que desde 2017 mantiene sobre nuestra Nación el
Estado más poderoso del planeta, su industria petrolera ha llegado a niveles
críticos impensables, con una capacidad operativa que viene colapsando
desde hace más de siete años y que hoy, a duras penas, sólo puede sostener
su producción en volúmenes inferiores a los alcanzados siete décadas atrás.
El desconcierto generalizado ante ese trágico presente, y el aún más
oscuro futuro que augura la falta de perspectivas claras de superación de
estas circunstancias, ha permitido el florecimiento de recetas simplemente
reactivas, incoherentes, desesperadas e improvisadas, muchas de ellas
cargadas de las buenas intenciones que pavimentan el camino del infierno
y otras - contradictorias con el discurso político que pregonan - con por
las malas de aprovechar el sálvese quien pueda.
Frente a ese incierto panorama se levantan otras propuestas que sí
son coherentes y que provienen de sectores socioeconómicos con intereses
particulares y específicos muy claros, que están fundamentadas en estudios
realizados desde hace décadas en los think tanks del pensamiento neoliberal
nacional e internacional.

1 Economista (Magíster Scientiarum en Economía y Administración de los Hidrocarbu-


ros). Profesor Asociado de la Universidad Central de Venezuela (Jubilado). Asesor de la
Presidencia del Banco Central de Venezuela. Director de la Revista BCV. Coordinador
del Equipo de Estudios Petroleros del BCV.

161
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

En particular, y en artículos anteriores2, me he referido a las nove-


dosas propuestas de Ley de Hidrocarburos que cursan en la Comisión de
Energía y Petróleo de la Asamblea Nacional, destacando en ellos los planes
privatizadores que las mismas incorporan en sus cláusulas.
En esos trabajos denuncio los intentos de imponer el descono-
cimiento absoluto de toda nuestra tradición legal y constitucional, al
punto de transferir figuras características de la legislación anglosajona,
la denominada “common law”, la cual se fundamenta en la casuística de la
jurisprudencia y es absolutamente ajena a la tradición legal de la mayoría
de los países del mundo.
Sobre el primero de estos proyectos, escribí, el 17 de julio del año
pasado, lo siguiente:
Los términos de este anteproyecto desconocen todos los
aportes de Gumersindo Torres, en tiempos de Gómez, de
Néstor Luis Pérez Luzardo en tiempos de López Contreras,
de Manuel Egaña en tiempos de Medina Angarita, para no
hablar de Juan Pablo Pérez Alfonzo, demoníaco estatista
que hasta se atrevió a proponer y constituir una compa-
ñía petrolera auténticamente nacional, la CVP, de cortos
15 años de mal ejemplo, porque fue desmantelada en 1976
para fundirla con las “culturas corporativas” herederas de
las concesionarias Mobil y Gulf, en Corpoven, munida de
sus respectivos convenios de asistencia técnica y comer-
cialización, y así borrar, de paso, todo vestigio de la an-

2 Otros artículos escribidos por el autor acerca del tema de PDVSA y del petróleo son
los siguientes: El Cartero siempre llama dos veces. Disponible en: https://petroleovene-
zolano.blogspot.com/2019/07/el-cartero-siempre-llama-dos-veces.html#.Xu1T02hKjM4
Acceso: 22 de junho de 2020; Agencia Venezolana de Hidrocarburos Marca A.C.M.E.
Disponible en: https://petroleovenezolano.blogspot.com/2019/11/agencia-venezolana-de-
-hidrocarburos.html#.Xu1Vf2hKjM4 Acceso: 22 de junho de 2020; Vuelan los Rebullo-
nes. Disponible en: https://petroleovenezolano.blogspot.com/2020/02/vuelan-los-re-
bullones.html Acceso: 22 de junho de 2020; Petróleo Venezolano en la Tercera Década,
Cerco y Aniquilación. Disponible en: https://petroleovenezolano.blogspot.com/2020/02/
petroleo-venezolano-en-la-tercera-decada.html#.Xu1a5mhKjM4 Acceso: 22 de junho
de 2020; Cambalache Petrolero. Disponible en: https://petroleovenezolano.blogspot.
com/2020/03/cambalache-petrolero-la-nueva-apertura.html#.Xu1XAGhKjM4 Acceso:
22 de junho de 2020 y AVH: Agencia para el despojo del patrimonio público. Disponi-
ble en: https://petroleovenezolano.blogspot.com/2020/05/avh.html Acceso: 22 de junho
de 2020.

162
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

terior administración petrolera, autóctona y alineada con


los intereses de esa “Nación que somos todos”. Ahora, ante
el evidente desastre operativo y gerencial que es la actual
administración petrolera estatal, cundida de incapacidad,
corrupción y abierta delincuencia; enfrentada a la inviabi-
lidad de megaplanes fantasiosos y de resultados ruinosos,
cercada, además, por las agresivas sanciones políticamen-
te motivadas y aplicadas por el Estado más poderoso del
planeta, llegó la hora de cobrar para los privatizadores an-
cestrales, de restituir todos los negocios que garantizan el
aprovechamiento privado de un bien colectivo.3

El título en cuestión (Ley Orgánica para la regulación del comercio


de esclavos en Venezuela), intencionalmente provocativo, refleja también
mi opinión sobre la magnitud del retroceso institucional que representan
este y los subsiguientes proyectos introducidos en esa Comisión legislativa
hasta el día de hoy.
Según la opinión que he sustentado, se trata de desmontar la soberanía
nacional sobre sus recursos. Con la excusa de “desestatizar”, se promueve
una desnacionalización. Se minimizan para Venezuela las atribuciones
que caracterizan a todos los Estados-Nación en el mundo de hoy, cuando
los más poderosos de ellos pretenden imponer sus condiciones a todos los
demás, convirtiendo a nuestro país en tierra de nadie, una “no man’s land”
en el lenguaje bélico que aplicarían.
Sólo con un retroceso de esas magnitudes es posible fundamentar
la creación de un “ente regulador”, -concepto bastante plástico y maleable,
como lo muestran los proyectos en cuestión- autónomo e independiente
de los poderes públicos nacionales, que asumiría potestades omnímodas,
por encima de esos poderes, a los cuales corresponde, histórica, legal y
constitucionalmente la administración, gestión y control, de todos los
recursos, naturales y de cualquier clase, de la República.
En el empeño de difundir mis argumentos he citado permanente-
mente las referencias a los sitios en los cuales he publicado esos alegatos.

3 POTTELLÁ, Carlos Mendonza. Ley Orgánica para la regulación del comercio de es-
clavos en Venezuela. Disponible en: https://petroleovenezolano.blogspot.com/2019/07/ley-orga-
nica-para-la-regulacion-del.html#.Xu1KkGhKjM4 Acceso: 22 de junho de 2020.

163
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Y no será distinto en esta oportunidad, porque es la única manera


que encuentro, no por vanidad sino por compromiso de conciencia, de no
dejar morir esos argumentos, expresados en notas periodísticas que, por su
propia naturaleza efímera, tienen una limitada exposición ante los posibles
lectores de esos portales electrónicos.
Considero que se trata de un debate en el que debemos participar
todos, sin distingos, para poder decidir conscientemente, con el más amplio
de los consensos posibles, nuestro destino como Nación soberana.
También con la misma intención de difusión argumental, desde
entrega anterior inicié la utilización del recurso directo a los textos de años
pasados, para tratar de demostrar que las posiciones que estoy criticando
ahora han tenido sus orígenes en prácticas ancestrales.
En esta oportunidad lo voy a repetir con un texto sobre la interpre-
tación laxa que hacía la gerencia petrolera aperturista de los años 90 sobre
los costos en la industria.
Práctica que ahora reitera la nueva “PDVSA Ad Hoc”, al promocionar
sus proyectos de restauración de esa “apertura”, con la oferta a los futuros
inversionistas extranjeros, además de condiciones “competitivas” en cuanto a
la mínima intervención estatal en los negocios, crudos de la Faja con costos
de producción inferiores a 10 dólares el barril, en un ejercicio de ofertas
ilusorias a la manera de Narnia. Y valga la cita:
“Los supuestos de ese `Plan País Petrolero´ son tan auspiciosos, según
Szabo, puesto que
Venezuela no logrará nunca sacar del subsuelo todo el petróleo
que tiene en reservas. Pero se puede aprovechar una buena parte
de ello, tomando en cuenta que el costo de producción de un ba-
rril no pasará de los 10 dólares. “Es un costo muy competitivo”,
asegura (Cambalache Petrolero, Op. Cit.).

Al revisar como jugaban con los costos en los años 90 estos mismos
gerentes resurrectos, no resistí la tentación de transcribir mi comentario
de entonces:

164
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Los costos en la industria petrolera venezolana:


Al gusto del consumidor4
Cuando se intenta un análisis de los costos en la industria petrolera
venezolana con la información disponible en las publicaciones oficiales, lo
primero que se constata es que no hay un criterio uniforme para su registro
y que se realizan presentaciones al gusto del consumidor.
Hay costos de producción que demuestran que tenemos una in-
dustria petrolera muy eficiente y capaz de competir con cualquiera por los
bajos niveles relativos de este indicador. Este es el caso de la información
registrada en el PODE 1994, según el cual, para este último año tales costos
(1.347 mm USD) son inferiores a los 1.382 mm USD de 1984. Si tomamos
en cuenta que la producción se ha elevado de manera considerable en esta
década, al pasar de 660 millones de barriles en 1984 a 903 millones en 1994,
la disminución es mayor aún en términos unitarios, al pasar de 2,09 dólares
el barril a 1,50 USD/b en ese mismo lapso. La sola mención de estos ínfimos
niveles de costos, equiparables a los vigentes en el Medio Oriente, revela la
irrealidad de tales cifras.
En la misma fuente (PODE 1994) los costos operativos totales, que
incluyen el resto de las actividades de la industria a nivel nacional, mantienen
una impresionante horizontalidad al pasar, en diez años, de 2.540 millones
de dólares en 1984 a 2.685 en 1994.
A la hora de declarar impuestos, sin embargo, los costos operativos
muestran un comportamiento diametralmente opuesto y es así como en
las declaraciones a la Oficina Nacional de Presupuesto (Ocepre) para fines
presupuestarios –e impositivos, desde luego– los costos se duplican con
holgura en siete años, al pasar de 3.165 millones de dólares en 1987 a 6.592
millones en 1994. Esta última cifra de la Ocepre supera a la registrada por
el Ministerio de Energía y Minas (MEM) para el mismo rubro en casi 4.000
millones de dólares. Sería interesante encontrar las razones de esta diferencia.
¿De qué naturaleza son estos costos operativos que pueden registrarse con
cifras tan dispares?

4 Publicado en 1995. Reproducido en Mendoza P. Carlos, Nacionalismo Petrolero en


Cuatro Décadas, Págs. 256-257. BCV. Colección Venezuela y su Petróleo, Caracas 2017.

165
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Las cosas se complican, o tal vez se aclaran, cuando revisamos las cifras
aportadas por el Informe Anual de Petróleos de Venezuela, S.A. (Pdvsa),
las cuales se refieren al conjunto de las actividades de la casa matriz. Entre
1987 y 1989, podemos observar que, aunque ligeramente superiores, son
cifras comparables a las declaradas a Ocepre, dando un salto descomunal
a partir de 1990 por la inclusión de los costos incurridos en las actividades
de internacionalización.
Y es así como se llegan a registrar, para 1994, costos operativos de
14.676 millones de dólares, doce mil millones más que lo registrado por el
PODE para las actividades petroleras internas y ocho mil millones más
que lo declarado a Ocepre para el conjunto de los costos –petroleros y no
petroleros– incurridos a nivel nacional.
La última de estas diferencias es, sin embargo, inferior a lo que
debería ser, por lo que se sabe sobre los costos operativos incurridos en la
internacionalización: entre 12 y 13 mil millones de dólares. ¿O es que en
verdad las cifras de costos declaradas a Ocepre están infladas y la diferencia
que hay que considerar es la que se produce al comparar las cifras de Pdvsa
con las del MEM?
En fin, tomadas tal cual como son presentadas, estas magnitudes
solo sirven para realizar inferencias, interpolaciones y suposiciones sobre
las cuales no tenemos ninguna seguridad, por cuanto no se informa de los
criterios con los cuales la única fuente de tales informaciones, que es Pdvsa,
las elabora y suministra.

166
OS GOVERNOS DE SALVADOR ALLENDE
(1970-1973) NO CHILE E HUGO CHÁVEZ
(1999-2012) NA VENEZUELA. TECENDO
ALGUMAS COMPARAÇÕES
Eduardo Scheidt1

Neste ano de 2020, completam-se 50 anos da eleição de Salvador


Allende para presidência do Chile. No ano passado, cumpriram-se 20 anos
da posse de Hugo Chávez como mandatário da Venezuela. Embora em
contextos históricos distintos, ambos os governos tiveram em comum o fato
de terem chegado ao poder através de vitórias eleitorais em coligações de
perfil esquerdista. Eles também se elegeram com a promessa de impulsio-
narem profundas mudanças sociais, econômicas e políticas em seus países.
Os dois igualmente proclamavam iniciar uma revolução, mas pelas vias
democráticas e institucionais, sem recorrer a insurreições populares ou
guerras civis. Neste sentido, suas eleições corresponderam a importantes
vitórias da Revolução Chilena e da Revolução Bolivariana.
Caracterizar estes processos como revolucionários é controverso.
Nas análises realizadas nos círculos acadêmicos é predominante o uso do
conceito de revolução para processos históricos em que ocorrem notórias
transformações nos sistemas políticos acompanhadas de mudanças nas
ordens econômicas e sociais. É recorrente considerar que as revoluções
iniciam com o uso da violência, derrubando-se regimes anteriores através
das armas. É o que argumenta, por exemplo, Gianfranco Pasquino:
A necessidade do uso da violência como elemento constitu-
tivo de uma Revolução pode ser teorizada abstratamente,
mas nunca sem uma fundamentação histórica que mostra
como as classes dirigentes não cedem seu poder esponta-
neamente e sem opor resistência e como, em consequência,
os revolucionários são obrigados a arrebata-lo pela força, e
que sublinhe, além disso, como as mudanças introduzidas
pela Revolução não podem ser pacificamente aceitas, já que

1 Professor de História da América da UERJ – FFP. Doutor em História pela USP. E-mail
de contato: edusch.uerj@gmail.com.

167
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

significam a perda do poder, do status e da riqueza para


todas as classes prejudicadas (PASQUINO, 2010, p. 1122).

É característica das revoluções, pois, a divisão da sociedade em dois


campos distintos: os favoráveis e os contrários aos processos revolucionários.
Esta divisão gera alta polarização e confrontos políticos e sociais entre ambos
os grupos. Não há, entretanto, consensos em torno destas questões. Na
historiografia política latino-americana, por exemplo, os estudos recentes
sobre os processos de independências estão utilizando com frequência o
termo revolução para designar a ruptura da ordem colonial e início da
construção dos Estados nacionais, ainda que esses processos não tenham
vindo acompanhados de mudanças econômicas e sociais significativas. É
cada vez mais recorrente o uso do conceito de “Revoluções de indepen-
dência”2, alegando que o processo colocou abaixo a antiga ordem colonial,
fundamentada no absolutismo monárquico, para iniciar um processo de
construção de instituições políticas radicalmente diferentes, baseadas na
soberania popular, no governo constitucional e representativo, superando-se
os regimes absolutistas.
Embora a maioria dos estudiosos discordem, alguns autores carac-
terizam os governos de Allende e Chávez como expressões de processos
revolucionários. Sobre o Chile de Allende, citamos por exemplo o livro de
Peter Winn (2010). Segundo o autor, diversos fatores explicam o caráter
revolucionário do governo Allende, tais como as nacionalizações do cobre
e outros minerais, a criação da Área de Propriedade Social (conjunto de
empresas nacionalizadas), o controle governamental do sistema bancário,
a reforma agrária, os diversos programas sociais, a participação popular,
especialmente a construção de instâncias do poder popular, entre outros
aspectos. Sobre a ausência de luta armada ou insurreição popular, Winn
aponta justamente a originalidade da Revolução Chilena por iniciar uma
transição ao socialismo pelas vias democráticas e pacíficas.
O chavismo na Venezuela também pode ser considerado um processo
revolucionário na medida em que proporcionou importantes transformações
na composição do poder do Estado, no funcionamento das instituições
democráticas, em especial os diversos impulsos à construção de instâncias

2 Ver, por exemplo, Pamplona e Mäder (2007).

168
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

de democracia participativa e “protagônica”, na realização de amplos


programas sociais, que alteraram os índices de pobreza e distribuição de
renda, bem como nas medidas de soberania nacional e impulsos à integração
latino-americana. Entre autores que defendem considerar o governo de
Chávez como revolucionário citamos Karl Schurster e Rafael Araujo (2015),
bem como James Petras e Henry Veltmayer (2009).
Partilhamos da caracterização dos governos de Allende e Chávez
como processos revolucionários. Ao nosso ver, cada revolução é um processo
único, marcado por diversas singularidades típicas dos acontecimentos
históricos. Não há, pois, algum “modelo” acabado de revolução a ser seguido.
Neste sentido, ainda que concordemos com as definições gerais de Norberto
Bobbio sobre o que se define como revolução, entendemos que deve haver
flexibilizações, tais como defende o argentino Gustavo Guevara:
(...) el estallido del 19 y 20 de diciembre del 2001 en nues-
tro país [Argentina], junto con importantes luchas ante-
riores y posteriores en el subcontinente como la rebelión
zapatista en Chiapas, el Movimiento Sem Terra en Brasil,
la guerra del agua en Bolivia, la Revolución Bolivariana en
Venezuela, etc., reinstalan en la agenda la cuestión de la
Revolución. Las reivindicaciones oficiales del bicentenario
de las “revoluciones de independencia” son una confirma-
ción más de ello (GUEVARA, 2013, p. 21).

Além de um conceito de revolução ampliado, fizemos uso, em


nossas análises, da metodologia da história comparada. A comparação na
História ainda foi muito pouco teorizada. Conforme os historiadores Ciro
Flamarion Cardoso e Pérez Brignolli (1990), “Cumpre reconhecer, entretanto,
que o método comparativo tem, no contexto dos estudos históricos, uma
insuficiente elaboração teórica como método racional.” (CARDOSO;
BRIGNOLLI, 1990, p. 418-419). Sobre a comparação na História, ambos
autores remetem às reflexões de Marc Bloch. O historiador francês publicou,
originalmente em 1928, um artigo que se tornou um clássico. Entre suas
reflexões, Bloch defende o método da comparação, pois:
[...] estuda paralelamente sociedades, ao mesmo tempo,
vizinhas e contemporâneas, sem deixarem de ser influen-
ciadas umas sobre as outras, submetendo-se, em seus desen-
volvimentos, em razão, precisamente, de suas proximidades

169
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

e de seus sincronismos, à ação das mesmas grandes causas, e


parcialmente remetendo, entretanto, a uma origem comum
(BLOCH, 1963, p. 19).

Consideramos que embora o Chile e a Venezuela não tenham


fronteiras terrestres, as considerações de Bloch como sociedades “vizinhas”
são plenamente aplicáveis, pois ambos os países passaram por processos
históricos semelhantes, já que se constituíram como colônias espanholas
entre os séculos XVI e XIX, passaram por processos de independência e
formação de Estados nacionais ao longo do século XIX, bem como processos
de urbanização, modernização e superação dos regimes oligárquicos durante
o século XX. Embora os períodos comparados não se refiram ao mesmo
período (Chile de 1970 a 1973 e Venezuela de 1998 a 2012), consideramos válido
o termo “sociedades contemporâneas”, pois trata-se de um distanciamento
histórico bastante curto em termos temporais.
Marc Bloch ainda argumenta que: “O mais evidente de todas funções
que a gente possa esperar de uma comparação atenciosa, constituída entre
fatos tomados de sociedades diferentes e vizinhas, é de nos permitir distinguir
as influências exercidas por grupos de umas sobre as outras” (BLOCH, 1963,
p. 22). A partir desses pressupostos, entendemos que a comparação entre os
governos de Allende e de Chávez podem trazer à luz elementos de influências
e inspirações, especialmente do primeiro em relação ao segundo. Além de
similaridades, os estudos comparativos também apontam para diferenças,
permitindo ao historiador um aprimoramento de suas análises. Através da
comparação de “A” com “B”, é possível chegar-se a determinadas conclusões
de alguns aspectos tanto em “A” como em “B”, que talvez não fosse possível
sem a comparação.
Além disso, outra questão importante levantada por Marc Bloch na
defesa da comparação em história é o rompimento com uma prática predo-
minante entre os historiadores na época da publicação do texto de Bloch:
limitar-se a análise de histórias nacionais, ignorando os processos históricos
de outros países. A comparação entre sociedades diferentes proporciona
ao historiador não somente ampliar seus conhecimentos acerca dos outros
como também aprimorar as reflexões sobre si, através da identificação de
similitudes e diferenças que o método comparativo proporciona.

170
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

***

Tanto o governo de Salvador Allende quanto o de Hugo Chávez


chegaram ao poder através do voto popular. Eles tiveram vitórias nas eleições
presidenciais em seus respectivos países, sendo candidatos do coalizões de
esquerda que se comprometiam a realizar amplas transformações sociais,
econômicas e políticas. Entretanto, a eleição de Allende em 1970 e de Chávez
em 1998 se deram em conjunturas históricas distintas.
Allende foi eleito num contexto histórico conturbado, demarcado
por profundas disputas políticas e lutas sociais. Nas décadas anteriores, o
Chile e diversos outros países latino-americanas vivenciaram um intenso
processo de urbanização, de industrialização e de crescimento em número e
em importância política dos trabalhadores urbanos. As camadas populares
tinham obtido importantes conquistas socais, especialmente no que se
refere a regulamentações do trabalho e participação política. Especialmente
no Chile, os trabalhadores acumularam décadas de experiências nas lutas
sociais e políticas, inclusive com o crescimento dos dois principais partidos
populares: o Partido Comunista (PC) e o Partido Socialista (PS). Além disso,
em 1970 a conjuntura internacional se caracterizava pelo apogeu da Guerra
Fria, momento em que os EUA faziam intensa pressão sobre a América Latina
para um alinhamento ideológico contra o comunismo soviético e por abertura
econômica aos seus produtos e investimentos na região. Especialmente após
a vitória da Revolução Cubana, as pressões dos EUA sobre a América Latina
se intensificaram, ao mesmo tempo em que as lutas sociais se acirravam, com
o fortalecimento das esquerdas e dos movimentos sociais, mas também com
a ampliação das ações das direitas, alinhadas com os EUA e o grande capital
interno e externo, contra a ascensão das esquerdas. Quando Allende foi eleito,
boa parte da América Latina já estava sob o jugo dos golpes de Estado e das
ditaduras militares, enquanto o Chile aparentava ser uma exceção, com sua
democracia e respeito às regras constitucionais consolidadas.
Já a eleição de Chávez na Venezuela se deu em meio à consolidação
das políticas neoliberais em praticamente todo o subcontinente. Nas décadas
de 80 e 90, a América Latina passou por um processo de redemocratização,
pondo fim às ditaduras das décadas anteriores, embora a Venezuela tenha
sido um dos poucos países que não vivenciara ditaduras naquele período. A

171
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

redemocratização, entretanto, foi um processo conservador, em que houve


importantes mudanças políticas com a retomada das liberdades e da democracia
constitucional, mas sem alterações nas estruturas econômicas e na ordem
social. Os Estados latino-americanos continuaram expressando os interesses
prioritários do grande capital nacional e internacional. Os movimentos
sociais, duramente golpeados pela repressão desmedida de anos anteriores e
pela crise do socialismo com o desmantelamento do bloco soviético, estavam
desarticulados, em fase de reorganização e sem apresentar alternativas claras à
ordem capitalista. A ofensiva neoliberal acentuou ainda mais as desigualdades
sociais, a concentração de renda, levando ao aumento do desemprego, da miséria
e a perda de direitos trabalhistas. Além disso, o desmantelamento do bloco
soviético e o fim da Guerra Fria desencadearam uma ofensiva ideológica que
proclamava o fim do socialismo e apontava o modelo de democracia liberal
como único possível. Sob o signo do “Consenso de Washington”, as diretrizes
neoliberais eram também tidas como “único caminho possível”. Especialmente
a partir de meados dos anos 90, os movimentos sociais começaram a se rear-
ticular, insurgindo-se contra o neoliberalismo e reivindicando uma série de
demandas socais, embora sem alguma diretriz ideológica claramente definida.
Nesse contexto, Hugo Chávez foi o primeiro presidente latino-americano a
ser eleito com uma agenda claramente contrária ao neoliberalismo e afinada
com muitas demandas dos novos movimentos sociais.

172
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Em se tratando de contextos diferentes, os programas eleitorais da


Unidade Popular (UP)3 no Chile e do Polo Patriótico4 na Venezuela têm
diversos aspectos diferentes, embora ambos se propunham a revolucionar
seus países pelas vias democráticas. O programa da UP5 mencionava
claramente iniciar uma transição ao socialismo. Segundo a coalizão de
esquerda, o problema central do Chile era a submissão de setores da
burguesia ao capital estrangeiro, enquanto somente um governo de ope-
rários, camponeses, classes médias e setores da pequena e média burguesia
poderiam solucionar os problemas. A UP, por outro lado, não era alinhada
ao modelo predominante do socialismo soviético. Além de se propor a
revolucionar o país pelas vias institucionais, o socialismo defendido era do
tipo democrático. O compromisso era preservar e aprofundar os direitos
democráticos e as conquistas dos trabalhadores. O governo dos trabalhadores
seria pluripartidário, integrando todos os partidos, movimentos e correntes
revolucionárias, além de garantir as liberdades democráticas dos grupos
de oposição, que agissem dentro dos marcos legais. O programa eleitoral
menciona a necessidade de uma nova constituição política, sem detalhar
como se daria o processo. A única referência clara de transformação das
instituições do Estado é a proposta de criação da “Assembleia do Povo”, que
seria o órgão superior de poder, sujeito ao controle popular e à revogação
3 Coalizão eleitoral que lançou a candidatura de Salvador Allende para a presidência nas
eleições de 1970. Era formada principalmente pelos dois principais partidos de esquerda: PS
e PC, além de outros partidos menores, tais como o Partido Radical, o Partido Social De-
mocrata e o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), este último, uma dissidência à
esquerda do Partido Democrata Cristão (PDC). Por fora da UP, o Movimento da Esquerda
Revolucionário (MIR) era uma organização de esquerda, surgida no contexto do impacto
da Revolução Cubana, que não acreditava na via eleitoral, mas deu apoio crítico ao governo
de Allende, pressionando pela aceleração das transformações e pela mobilização popular
com a perspectiva da ruptura institucional para a construção do Estado socialista.
4 Frente eleitoral pela qual Hugo Chávez concorreu à presidência em 1998. Era formada
principalmente pelo partido então recentemente fundado por Chávez, Movimento pela
V República (MVR), partido eleitoral criado a partir da antiga organização clandestina
que Chávez atuara no interior das FFAA, denominada Movimento Bolivariano Revo-
lucionário (MBR). Compunham também o Polo Patriótico, partidos menores, como o
Partido Comunista da Venezuela (PCV), o Pátria Para Todos (PPT) e a maior parte do
Movimento ao Socialismo (MAS).
5 Consultar PROGRAMA BASICO DE GOBIERNO DE LA UNIDAD POPULAR.
Candidatura presidencial de Salvador Allende. Santiago: s/ed., 1969. Disponível em
<http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-7738.html>

173
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

de mandatos. Neste sentido, a UP almejava que os trabalhadores exercessem


efetivamente o poder, construindo-se um novo modelo de Estado. Também
se propunha um novo modelo econômico de transição ao socialismo, em
que o papel de planificação teria um destaque fundamental. Previa-se a
nacionalização de setores estratégicos (a começar pelas minas de cobre e
salitre), além da estatização de diversas grandes empresas com a criação
da “Área de Produção Social” (APS). Mas o próprio programa eleitoral
previa que a maior parte da produção econômica continuaria com empresas
privadas, além da proposta de criar a “Área mista”, com empresas de capital
privado e estatal. Neste aspecto, a via chilena para o socialismo também se
diferenciava tanto do modelo soviético, como do cubano, que promoveram
uma plena estatização da economia.
Já o programa eleitoral de Chávez para as eleições de 19986 não
mencionava a questão do socialismo7. O central no programa do Polo
Patriótico era promover uma “revolução democrática”, que transformasse
profundamente o Estado, com a construção de uma nova república fun-
damentada num verdadeiro projeto nacional. Conquistando o governo
pela vitória eleitoral, o mecanismo crucial das transformações seria a
elaboração de uma nova constituição. Diferente do programa da UP
chilena, a proposta de Chávez dava uma grande ênfase na necessidade
de se convocar uma assembleia constituinte para redigir um novo texto
constitucional que modificasse substancialmente as instituições do Estado.
Enfatizava-se a questão de uma “revolução pacífica”, através da assem-
bleia constituinte. Ao invés de socialismo, defendia-se a construção da
democracia participativa, superando-se o modelo da democracia liberal
vigente no país desde 1958, que estaria esgotado. Esse esgotamento seria
em virtude do controle político das cúpulas dos partidos tradicionais. Ou
seja, diferente do programa de Allende, o de Chávez não mencionava a
questão de classes sociais. Almejava-se uma plena democratização, em que
toda a sociedade teria o controle do processo político. Enfatizava-se, pois,
a conquista do mais amplo consenso possível, buscando-se “equilíbrios”.
Na economia, o programa do Polo Patriótico também propunha mudanças
estruturais, mas não a superação do capitalismo, e sim, do modelo rentista,
6 Ver Chávez (1998).
7 Chávez só passaria a defender o “socialismo do século XXI” em meados de seu governo,
conforme abordaremos mais adiante neste capítulo.

174
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

altamente dependente do petróleo e das grandes empresas estrangeiras.


Propunha-se a dinamização e diversificação da economia através de um
Plano de Desenvolvimento Nacional com a participação do capital privado
nacional e até de investimentos estrangeiros, desde que sintonizados com o
desenvolvimento nacional. Enquanto o programa de Allende se aproximava
do socialismo, ainda que defendendo um modelo distinto do soviético e do
cubano, o programa da primeira eleição de Chávez se fundamentava num
nacional-desenvolvimentismo, semelhante a defendidos no passado pelo
peronismo, cardenismo e varguismo. A novidade era o compromisso com
a democracia participativa, abrindo-se canais de um exercício de poder
mais direto pela população.
Ambas as eleições, de Allende e a primeira de Chávez, deram-se
em vigências de regimes de democracia formais, o que explica, em grande
medida, suas propostas de promoveram revoluções pelas vias democráticas.
No caso do Chile, havia uma longa tradição de democracia e respeito aos
resultados eleitorais, com raríssimas interrupções de governos constitucionais
desde meados do século XIX8. Inicialmente, havia no país uma democracia
bastante restrita, controlada pelos grupos oligárquicos. Ao longo do
século XX, entretanto, as transformações sociais e políticas promoveram
a superação do Estado oligárquico e uma paulatina ampliação dos direitos
democráticos, com o voto secreto, o voto feminino e a coibição das práticas
do “voto à cabresto” nas regiões rurais. A democracia chilena possibilitou
que as esquerdas construíssem seus próprios partidos, especialmente o PC e
o PS, que se tornaram partidos de massas, com uma crescente participação
no parlamento e disputando as eleições presidenciais até chegar à vitória
em 1970. De meados do século XX até a gestão de Allende, houve vários
governos, de diferentes matizes ideológicas, que se sucediam no poder, com
o aval da grande maioria da sociedade e sem interrupções golpistas.

8 Foram raros os casos de intervenções do exército chileno no processo político. No sécu-


lo XX, os poucos movimentos de intervenção armadas foram protagonizados por setores
“progressistas” das FFAA contra o regime de dominação oligárquica, como a tentativa de
golpe liderada por Marmaduke Grove, em 1932, que tentou implantar uma “República
Socialista”. Muitos dos envolvimentos na tentativa golpista frustrada, renunciaram ao
caminho da luta armada e participaram da fundação, no ano seguinte, do PS.

175
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

No caso da Venezuela, havia um regime de democracia formal desde


o Pacto de Punto Fijo9, firmado em 1958 e ratificado pela constituição de
1961. Diferente da maioria dos países da América Latina, não houve ditaduras
no país nas décadas de 1960 e 1970. Entretanto, o regime político sempre
foi uma democracia mais formal do que real, caracterizada pelo domínio
das cúpulas dos principais partidos políticos, a Ação Democrática (AD) e o
Comitê de Organização Política e Eleitoral Independente (COPEI), que se
revezavam no poder, expressando prioritariamente os interesses dos grandes
grupos privados, internos e externos em torno da produção e exportação de
petróleo. Devido a sua alta dependência na exportação do hidrocarboneto,
a Venezuela alternava momentos economicamente favoráveis, como os anos
70, com períodos de crise, como nas décadas de 80 e 90, com grandes baixas
no preço do petróleo. Neste período, o país vivenciou uma aguda crise
econômica, social e política, cujas maiores expressões foram a insurreição
popular, conhecida como Caracazo10, e o crescente descrédito nos partidos
políticos tradicionais e no próprio regime de Punto Fijo. Enquanto Allende
se elegeu com uma proposta de transição ao socialismo, num contexto
de grandes lutas sociais e econômicas, mas num regime democrático
aparentemente sólido, Chávez venceu as eleições também num contexto de
profundas crise econômica e social, mas também de crise política, em que
o próprio regime de democracia formal estava profundamente desgastado.
Na coalizão que elegeu Allende, uma característica era a união de
diversos partidos consolidados, principalmente o PS e o PC. Havia no país
9 Esta denominação é oriunda do fato de ter sido celebrado naquela cidade um grande
acordo entre os principais partidos políticos do país, pondo fim aos períodos de ditadura
e estabelecendo uma democracia constitucional. Assim, enquanto a maior parte da Amé-
rica Latina era assolada por golpes e ditaduras nos anos 60 e 70, na Venezuela ocorriam
eleições periódicas, proporcionando um rodízio de poder entre os dois principais parti-
dos políticos de então: a AD (Ação Democrática), de caráter socialdemocrata e o Copei
(Comitê de Organização Política e Eleitoral Independente), democrata-cristão.
10 Nos dias 27 e 28 de fevereiro daquele ano, houve um expressivo levante popular na
cidade de Caracas contra a situação de profunda crise econômica e social, que ficou co-
nhecido como Caracazo. A rebelião foi desencadeada pela revolta popular contra o então
presidente Carlos Andrés Péres, que recentemente empossado, havia prometido na cam-
panha eleitoral promover o “Estado de bem estar social”, inspirado na socialdemocracia
europeia, mas que decretou um pacote de medidas de caráter neoliberal ao chegar ao go-
verno. A rebelião popular foi severamente reprimida, ocasionando a morte de centenas
de manifestantes. Ver Karl Schurster e Rafael Araujo (2015, p. 15-16).

176
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

uma tradição de partidos políticos fortes e atuantes. A atuação personalista


dos políticos tinha importância, mas não era fundamental. Neste sentido,
Salvador Allende era uma figura carismática, especialmente entre as
populações mais pobres e menos instruídas. Mas o que mais demarcou a
proposta eleitoral e a condução do governo foi o papel dos partidos que
integravam a UP e os movimentos sociais que a apoiavam. Na Venezuela, não
havia tradição de movimentos sociais fortes e nem de grandes partidos de
esquerda. O Polo Patriótico se formou a partir de um partido recém criado
pelos apoiadores de Chávez, o Movimento pela V República (MVR), com
o apoio de outros partidos de esquerda, como PCV, o PPT e o MAS. No
caso da Venezuela, foi fundamental o papel de Chávez como uma marcante
liderança carismática, que teria um papel crucial tanto na vitória eleitoral
como na condução das transformações impulsionadas pelo governo. Neste
sentido, a atuação de Chávez pode se comparar a de outras lideranças
carismáticas do passado em diversos países da América Latina, tais como
Lázaro Cárdenas no México, Getúlio Vargas no Brasil e Juan Domingos
Perón na Argentina.
No Chile, Allende era um político respeitado por praticamente toda
a esquerda, que sempre defendeu o caminho eleitoral para as transformações
do país. Obteve um amplo apoio da maioria das esquerdas, tanto dentro
como fora do Chile. Chávez, em contrapartida, era um militar, que iniciou
sua atuação junto a grupos nacionalistas no interior das FFAA. Em 1992,
tornou-se conhecido devido sua controversa e malfadada tentativa de golpe
de Estado para chegar ao poder. À despeito de sua tentativa golpista, seu
discurso nacionalista e em defesa de transformações sociais, seduziu parcelas
significativas da sociedade, especialmente os mais pobres. Depois de preso e
anistiado, Chávez se aproximou de grupos de esquerda e passou a defender
o caminho eleitoral, buscando constituir uma aliança “cívico-militar”.
Neste sentido, ele sempre foi uma figura controversa, que nunca obteve
apoios amplamente majoritários entre as esquerdas, tanto dentro como
fora da Venezuela. Sua origem militar, seu passado golpista e seu papel
centralizador como forte liderança carismática eram questões criticadas
por parte das esquerdas.
Uma questão comum tanto na experiência chilena quanto na
venezuelana foi a polarização política e social. Na medida em que os

177
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

dois governos promoviam mudanças em benefício dos trabalhadores e


da população mais pobre, irromperam-se ações opositoras das elites, da
burguesia, da oligarquia e da maior parte das classes médias, com apoio do
imperialismo norte-americano. Durante a gestão de Allende, manifestações
de rua contra o governo tornaram-se recorrentes, principalmente, a partir
da chamada “marcha das panelas vazias”, em dezembro de 1971. O foco
central seria protestar contra o desabastecimento, mas as manifestações
logo adquiriram o viés ideológico de oposição contra o rumo socialista do
governo. No caso venezuelano, setores das classes médias e altas tomaram
as ruas em grandes protestos, a partir de meados de 2001, quando Chávez
promulgou uma série de leis de intervenção estatal na economia e promoveu
reformas em benefício das camadas mais baixas da sociedade11. Tanto
no Chile como na Venezuela, as bases sociais de Allende e de Chávez
também se mobilizaram e organizaram marchas de apoio aos governos, em
resposta às ações dos grupos opositores. A polarização levou a uma rígida
divisão da sociedade entre os apoiadores e os opositores dos governos e
das transformações em curso. Amplos setores das sociedades se tornaram
cada vez mais politizados e atuantes, mas divididos em dois segmentos
irreconciliáveis. Típico dos processos revolucionários, a radical divisão
entre apoiadores da revolução e da contrarrevolução esteve claramente
presente nestes casos. Em ambos os países, a maior parte das oposições
apoiaram golpes de Estado. Os opositores a Allende no Chile apoiaram o
golpe militar de 1973, que derrubou o governo constitucional e iniciou a
longa ditadura de Augusto Pinochet. Já na Venezuela, um malfadado golpe
foi posto em curso em 2002, que chegou a destituir Chávez, mas intensas
mobilizações populares e divisões nas FFAA reconduziram o presidente ao
governo apenas dois dias após o golpe. Ainda assim, as ações dos grupos
opositores continuaram, como o paro petrolero no final de 2002 e início de

11 Trata-se de um conjunto de decretos que Chávez promulgou quando a Assembleia


Nacional o concedeu direito de recorrer a “leis habilitantes” (uma espécie de medidas
provisórias) durante um período. Do conjunto de leis, três causaram mais polêmicas: a
Lei das Terras, que possibilitava a reforma agrária em terras consideradas improdutivas;
a Lei da Pesca, que favorecia os pescadores artesanais em detrimento da grande indústria;
e a Lei dos Hidrocarbonetos, que possibilitaria o efetivo controle do Estado no setor do
petróleo.

178
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

200312, a ativação do referendo revogatório de Chávez em 200413, o boicote


a várias eleições e o não reconhecimento das derrotas em pleitos eleitorais
ao longo do governo chavista.
A durabilidade dos governos é uma diferença fundamental. Enquanto
o de Allende durou menos de três anos e foi derrubado pela contrarrevolução,
Chávez conseguiu resistir às pressões opositoras e se manteve na presidência
até dezembro de 2012, quando se afastou devido a um câncer e veio a falecer
em março de 2013, deixando Nicolás Maduro como seu sucessor. São muitos
os fatores que explicam esses caminhos divergentes. Um deles é em torno
de mudanças de estruturas do Estado. O governo Allende manteve intacta
as instituições políticas, assumindo o compromisso, antes de sua posse, de
respeitar a constituição. Ainda que o programa eleitoral da UP mencionasse
mudanças constitucionais, em especial a criação da “Assembleia do Povo”,
não se chegou a tomar iniciativas nesse caminho. Desta forma, embora
a UP tenha conquistado a presidência da república, era minoritária no
Congresso Nacional e enfrentava a hostilidade da Suprema Corte. Isso
levou a um crescente isolamento do governo e a impasses políticos, quando
a polarização se tornou mais radical. A oposição tinha uma maioria simples
no Congresso Nacional para brecar todas as propostas de iniciativa do
executivo, mas não tinha uma maioria absoluta para aprovar um eventual
impeachment de Allende. As direitas acabaram “solucionando” o impasse
recorrendo ao golpe de Estado.
No caso venezuelano, uma das primeiras medidas tomadas por
Chávez foi a convocação de uma assembleia constituinte para transfor-
mar as instituições do Estado e possibilitar que a Revolução Bolivariana
conquistasse o controle de todos os poderes. Com uma maioria eleitoral
12 Paralisação da produção e exportação do petróleo, quando a PDVSA ainda mantinha
autonomia e era controlado por grupos ligados às elites locais e articuladas com o capital
estrangeiro. Somou-se ao movimento, a interrupção de várias empresas privadas, inclu-
sive grandes setores do comércio. A paralisação teve claro intuito de desgastar o governo
de Chávez e forçar sua queda, mas o presidente reforçou o seu apoio junto a maioria dos
trabalhadores e da população mais pobre, levando o paro petrolero ao desgaste e à derrota.
13 A nova constituição venezuelana implementada pelo chavismo permite a revogação
de todos os mandatos eletivos por meio de referendos revogatórios. Em 2004, grupos
opositores conseguiram reunir assinaturas suficientes para ativação de um referendo re-
vogatório do mandato de Chávez, mas este manteve o mandato, pois cerca de 60% dos
eleitores votaram contra sua saída antecipada da presidência.

179
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

e abstenção de parte da oposição, Chávez conquistou uma ampla maioria


na eleição dos constituintes, possibilitando a redação de uma constituição
transformadora. Nas eleições gerais de 2000, já na vigência do novo texto
constitucional, Chávez obteve maioria folgada no parlamento e na maior
parte dos estados e municípios. A maioria parlamentar possibilitou a escolha
de juízes da suprema corte simpáticos ao chavismo. Chávez, como militar,
também se preocupou em obter apoio nas FFAA. Mesmo assim, setores
militares ligados às elites promoveram o já mencionado golpe de 2002.
Depois deste evento, Chávez intensificou a incorporação das instituições
militares ao governo, afastou as lideranças golpistas e posteriormente criou
milícias populares para defender a Revolução Bolivariana. No caso do Chile,
tinha prevalecido uma crença de que as FFAA manteriam sua tradição de
respeito à institucionalidade14. Não houve, por essa razão, a criação de grupos
armados defensores do governo. Assim, a contrarrevolução teve sucesso na
articulação do golpe de Estado, sem enfrentar resistências significativas
entre os apoiadores da UP.
Ambas as revoluções impulsionaram consideráveis transformações
econômicas e sociais. No caso do Chile, uma das mais importantes medidas
econômicas foi a nacionalização do cobre, principal setor das exportações do
país. Em mãos de empresas estrangeiras, principalmente norte-americanas, as
minas foram nacionalizadas no primeiro ano do governo de Allende. Diversas
empresas privadas também foram estatizadas ou se planejou essa medida
no âmbito da APS. No setor bancário, o governo promoveu a compra de
ações em bancos privados para obter o controle estatal dos mesmos. Outro
destaque foi a reforma agrária, que praticamente exterminou os latifúndios

14 Esta aposta no respeito da constitucionalidade por parte das FFAA é apontada, por
muitos, como principal motivo da derrota da experiência da UP. É recorrente a avaliação
de que faltou a Allende uma atenção maior aos preparativos golpistas e, fundamental-
mente, de não ter se preparado para um eventual confronto armado. Em seu texto “‘To-
dos juntos seremos la historia: Venceremos.’ Unidad Popular e Fuerzas Armadas”, Vero-
nica Valdivia (in PINTO, 2005) discorda da tese de que houve negligência do governo da
UP em relação às FFAA. Segundo a autora, o governo teve uma política de estímulo de
incorporação do setor ao projeto de desenvolvimento nacional do governo, promoveu a
valorização do pessoal, com aumentos salariais e estímulos à modernização e democrati-
zação dos setores militares. Entretanto, por diversas questões do conturbado contexto, os
setores golpistas foram se articulando e ganhando força no interior das FFAA, levando a
que a conspiração golpista se tornasse vencedora.

180
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

num período de 18 meses. Embora iniciada no governo anterior de Eduardo


Frei, a reforma agrária pouco tinha avançado e só se concretizou durante o
governo da UP. O governo estimulou a formação de cooperativas agrícolas,
embora concedesse a posse formal da terra a famílias de camponeses que
assim desejassem. O programa econômico lançado no início do mandato de
Allende, de inspiração neokeynesiana, promoveu crescimento econômico via
estímulo ao consumo, redistribuição de renda e reverteu a crise econômica
então vigente. Mas, por outro lado, o aumento do consumo, especialmente
das camadas mais pobres da população, levou a um processo de desabaste-
cimento, que foi agravado pelos boicotes das grandes empresas privadas e
grandes comerciantes. Em suma, podemos dizer que o governo de Allende
expressou os interesses prioritários dos trabalhadores e das camadas mais
pobres do país em detrimento do grande capital interno e externo e das
velhas oligarquias agrárias.
A Revolução Bolivariana também se caracterizou por profun-
das mudanças na distribuição de renda. Desde meados do século XX, a
Venezuela se tornou um país de economia rentista, altamente dependente
da exportação de petróleo ao redor da qual sua economia girava. A maior
parte das riquezas era apropriada por um setor minoritário da população,
conhecido como gente del petroleo15, mesmo que o hidrocarboneto tenha
sido estatizado com a criação da PDVSA nos anos 70. Uma das principais
medidas econômicas do governo Chávez foi assumir o pleno controle do
petróleo, canalizando os recursos para financiar o conjunto de programas
sociais, conhecidos como misiones. Desta forma, a gente del petroleo deixou
de se apropriar da maior parte das riquezas, que foram transferidas, em

15 Conforme Danilo Caruso (2019), a gente del petróleo era formada por grandes executivos
da PDVSA, altos funcionários de outros organismos estatais e empresários do comércio
e distribuição do petróleo e outras atividades econômicas ligadas ao hidrocarboneto. A
maior parte deste segmento, ainda segundo o autor, não se constituía numa burguesia, pois
não era proprietária do petróleo, apenas conduzia a exploração e se apropriava da maior
parte dos recursos, cabendo ao governo apenas o recebimento de royalties do produto.

181
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

boa parte, para a maior parte da população via programas sociais16. Embora
também tenha promovido a nacionalização de muitas empresas, a maior
parte da economia continuou sob controle do setor privado, assim como
no caso do Chile. Chávez também incentivou a reforma agrária e produção
econômica em forma de cooperativas, embora poucos frutos tenham sido
colhidos nesses projetos, num país cujas produções agrárias e industriais
eram pouco significativas e a maior parte dos produtos de consumo eram
importados. Ainda que tenham ocorrido importantes transformações
econômicas e sociais, tanto o Chile como a Venezuela mantiveram-se
capitalistas e, no caso venezuelano, o perfil rentista, altamente dependente
do petróleo, também ficou praticamente inalterado.
Outro aspecto transformador nos dois governos foi a participação
de trabalhadores e da população mais pobre do processo político, com a
construção de instâncias de poder popular. Tradicionalmente excluídos da
política ou se limitando a eleição de representantes nos momentos eleitorais,
setores majoritários da população tiveram a oportunidade de participar
de forma mais direta e cotidiana na política. No caso do Chile, o governo
Allende promoveu diversas medidas, como a participação de operários na
gestão de empresas estatizadas, os impulsos à formação de cooperativas e a
criação das Juntas de Abastecimento e Preços (JAP). Além das iniciativas
promovidas pelo governo, os movimentos sociais também avançaram no
caminho da construção do poder popular em suas ações autônomas, que
Peter Winn (2010) chama de “revolução vinda por baixo”, complementando
a “revolução pelo alto”, promovida pelo governo da UP. Nessa “revolução
por baixo”, destacavam-se as ocupações de terras, terrenos em regiões
urbanas e de fábricas, em que eram criados inúmeros comitês e associações
de trabalhadores. Esse processo se acelerou com a crise de outubro de 1972,
principalmente com a criação dos cordões industriais, instâncias formadas
16 Frisamos que a maior parte das riquezas foi distribuída para a população, mas não a
totalidade. Na Venezuela chavista, continuou a prática de um pequeno grupo privilegia-
do em torno do petróleo viver em condições claramente vantajosas. Esse grupo, formado
em grande parte por detentores de altos cargos na PDVSA, é conhecido como “bolibur-
guesia”, dado os seus vínculos com o governo. Agora, essa questão não descaracteriza as
transformações sociais como revolucionárias, pois a permanência de um pequeno grupo
de privilegiados ocorreu em meio a uma transferência da maior parte dos recursos a par-
celas majoritárias da população, antes excluídas, e que passaram a usufruir de diversos
programas sociais promovidos pelo governo chavista.

182
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

por representantes de operários de diversas empresas num determinado


território. As intensas mobilizações e crescentes politizações das camadas
populares, com destaque a criação de diversas instâncias do poder popular,
foram uma das marcas da experiência da UP no que se refere às transfor-
mações da democracia.
Na Venezuela, o próprio programa eleitoral e a nova constituição
de 1999 priorizavam a “democracia participativa e protagônica”, com
a introdução de diversos mecanismos, como referendos e plebiscitos, a
revogabilidade de mandatos, os cabildos abiertos, assembleias populares,
entre outros. As propostas foram inspiradas em demandas sociais, espe-
cialmente nos movimentos de formação de assembleias populares desde
a insurreição do Caracazo. Mas foi o governo chavista que incentivou e
expandiu a formação de instâncias de poder popular. Inicialmente se des-
tacaram os círculos bolivarianos, logo os Conselhos Locais de Participação
Pública (CLPP) e finalmente os conselhos comunais (CC) e as comunas,
que a partir de meados do governo Chávez, passaram a ser os mecanismos
prioritários da participação popular17. As transformações da democracia
também foram um destaque no seu governo. Mas, diferente do Chile, na
experiência venezuelana os papéis do governo e do próprio Chávez foram
fundamentais na mobilização popular, enquanto no Chile, embora também
houvesse vários estímulos governamentais, as mobilizações autônomas dos
trabalhadores, com apoio de setores dos partidos e de movimentos sociais
foram mais marcantes. Esse predomínio de iniciativas vindas do alto no caso
venezuelano, proporcionaram diversas contradições. Ao mesmo tempo em
que o governo impulsionava a organização e a participação popular, também
buscava as controlar, levando a práticas clientelares e até autoritárias, além

17 Para uma análise mais aprofundada sobre as comunas e os CC, consultar Scheidt
(2017). Neste artigo, analisamos a implantação dos CC e das comunas, seu funciona-
mento e legislação. Refletimos sobre as formas efetivas de participação dos cidadãos
nessas instâncias de poder popular, tendo-se em vista de que, embora elas se instituíram
propagando o objetivo de expressar uma autêntica e autônoma soberania, foram im-
pulsionadas e controladas a partir do governo, de cima para baixo. Apesar dos limites
e atitudes controladoras e centralizadoras por parte do governo, o artigo conclui que o
processo promoveu mudanças profundas na cultura política do país ao proporcionar a
participação política direta e ativa de parcelas da população nas instâncias da democra-
cia participativa.

183
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

de tornar as instâncias do poder popular dependentes do Estado e pouco


autônomas18.
Outras questões comparáveis em ambas as experiências históricas
são as mudanças de programas e estratégias ao longo do processo. O
curto governo de Allende manteve, em geral, o projeto de via chilena ao
socialismo, embora existissem crescentes divergências entre os partidos que
compunham a UP. Ainda que tivessem esboçado um programa de governo
único para as eleições de 1970, o PC e o PS tinham divergências profundas
quanto aos caminhos para o socialismo. Durante o governo, o PC e uma
ala minoritária do PS (que incluía o presidente Allende) mantiveram a
estratégia de transição ao socialismo pelas vias institucionais e democráticas,
sem romper com a constitucionalidade e recusando a luta armada. Já a
maior parte do PS junto com partidos menores, de dentro e de fora da
UP, defendiam que um confronto armado com a contrarrevolução seria
inevitável e era preciso se preparar para tal. Este segmento das esquerdas
também apoiava e incentivava as ações da “revolução vinda de baixo”, com
a perspectiva de fortalecer o poder popular, visando a construção de novas
instituições do Estado que iriam substituir o modelo então vigente. A
partir da crise de outubro de 1972, as divergências nas esquerdas chilenas
se acentuaram. Enquanto a linha legalista propunha negociações com os
democratas cristãos a fim de recompor a governabilidade, os segundos
defendiam se apoiar nos movimentos sociais e nas crescentes instâncias do
poder popular para acelerar as transformações revolucionárias, incluindo

18 Ver Scheidt (2017 e 2019a).

184
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

a ruptura da institucionalidade. Allende, intransigente defensor da via


pacífica e eleitoral, manteve a estratégia do primeiro bloco até o final19.
Já na Venezuela, ocorreram mudanças substanciais ao longo do
governo Chávez, até mesmo por ter este perdurado por um período bem maior
do que o governo de Allende. Conforme vimos, o projeto inicial chavista era
promover uma “revolução democrática”, que se propunha a transformar a
composição do Estado, mas sem romper com o capitalismo. A proposta era
fundamentada num nacional-desenvolvimentismo que acreditava no apoio
de uma burguesia nacional para o projeto de desenvolvimento da nação
de forma soberana. Não houve, no entanto, apoios consideráveis entre a
burguesia e o conjunto das elites do país que, ao contrário, protagonizaram
uma clara e radical oposição ao chavismo desde o início. A partir destes
conflitos sociais, Chávez buscou fortalecer o Estado e intensificar as conexões
com as classes populares, mudando suas propostas econômicas e sociais cada
vez mais à esquerda. Após o golpe de 2002, os conflitos se acirraram e o
projeto chavista se radicalizou, passando a defender o “socialismo do século

19 Apesar de a maior parte das esquerdas terem concorrido numa aliança unificada na
eleição de Allende, havia acirrados debates nos partidos que a compunham. As esquerdas
podem ser divididas em dois grandes grupos, que já eram diferenciados antes mesmo do
governo da UP. O primeiro grupo era o defensor da via pacífica e gradual ao socialismo.
Era composto pelo PC e uma minoria do PS (que incluía o presidente Allende), além de
outras organizações menores. Defendiam o caminho institucional e democrático, bus-
cando, inclusive, a composição de alianças mais amplas em prol da governabilidade e
rejeitavam a luta armada e a ruptura da institucionalidade. O outro grupo era composto
pela maior parte do PS e partidos e organizações menores, tanto dentro como fora da
UP, como o MIR. Estes eram céticos quanto à viabilidade da via pacífica e consideravam
que um confronto armado com as direitas seria inevitável, pois partilhavam da convicção
de que as classes dominantes nunca aceitam ser alijadas do poder pacificamente. Apoia-
vam-se nos movimentos sociais e nas ações autônomas das massas, foram ferrenhos de-
fensores do poder popular e pregavam uma radicalização do governo Allende com pers-
pectivas de acelerar a revolução e promover uma ruptura institucional. Os defensores da
via pacífica e gradual eram amplamente majoritários, mas os partidos e organizações do
segundo grupo foram crescendo em número e influência na medida em que a polarização
se acentuava e os conflitos entre apoiadores e opositores da UP se intensificavam. ver
Peter Winn (2010) e também Julio Pinto (2005).

185
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

XXI” a partir de 200520. Desde então, o chavismo defendeu os conselhos


comunais e as comunas como instâncias privilegiadas de construção do poder
popular, que seriam a base de um Estado comunal, a substituir o Estado
burguês. No programa eleitoral para as eleições de 2006 (CHÁVEZ, 2006),
se defendia a “transição ao socialismo”, contrastando com as propostas da
eleição de 1998. Embora o projeto de Chávez tenha se radicalizado rumo
a um Estado comunal, não houve a ruptura com o Estado representativo
instituído pela constituição de 1999, já que se previa uma transição longa e
paulatina. Continuava-se a eleger periodicamente os membros dos poderes
legislativos e executivos em todos os níveis. No que se refere às transformações
econômicas, as mudanças foram ainda mais limitadas, pois a Venezuela
continuou sendo um país capitalista e com um modelo rentista, altamente
dependente da exportação de petróleo. Embora tenham se organizado várias
formas de produção comunal, essas experiências foram muito pontuais e
não alteraram a macroeconomia do país.
No que se refere à política externa, há muitas semelhanças entre
ambos os governos, que se caracterizaram por profundas modificações em
suas relações internacionais, rompendo-se com o predominante alinhamento
com os EUA. Em plena Guerra Fria, Allende promoveu aproximações com
os países do bloco soviético, tendo como uma de suas primeiras medidas a
normalização das relações com Cuba. A viagem de cerca de um mês de Fidel
Castro ao Chile, no final de 1971, foi uma eloquente demonstração dessa nova
política. O governo da UP defendia a soberania nacional, a não ingerência
externa nos assuntos internos de cada país e a diversificação das relações
internacionais, não se submetendo a pressões estrangeiras. Fazia parte do

20 Pelo menos desde 2005, em sua participação no Fórum Social Mundial em Porto Ale-
gre, Chávez passou a proferir o discurso do “socialismo do século XXI”. Esse novo sistema
de socialismo é ainda bastante impreciso e ambíguo, mesmo em nível teórico. Impreci-
so porque justamente se propõe a ser “inventado” e ambíguo no sentido que admite a
existência da propriedade privada na produção lado a lado com a propriedade pública e
outras modalidades de “propriedade social”. Pode-se até questionar até que ponto pode
ser considerado “socialismo”, já que não se prevê algum pleno rompimento com o siste-
ma capitalista. Os principais aspectos do sistema seriam uma ampliação da democracia,
através de diversos mecanismos de democracia direta e participativa, bem como uma
distribuição social da riqueza pelo Estado, especialmente com programas sociais. Para
mais detalhes sobre o que caracteriza o “socialismo do século XXI” na perspectiva de seus
defensores, consultar Heinz Dietrich (2005).

186
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

seu programa uma política de integração da América Latina, promovendo


aproximações e alianças com os países do subcontinente. Mas o contexto
de Guerra Fria e de alinhamento da maioria dos países da região com os
EUA impossibilitou maiores avanços dessas propostas.
A política externa do governo Chávez igualmente defendia as
soberanias nacionais, as diversificações das relações internacionais e a não
ingerência estrangeira. Suas relações internacionais sempre foram demar-
cadas pelas tensões com os EUA, incluindo aproximações com países que
não se alinhavam a Washington, como Irã, Rússia e China. Assim como no
governo Allende, Chávez se aproximou de Cuba, inclusive estabelecendo
uma séria de intercâmbios, como o fornecimento de petróleo a preços
subsidiados e a incorporação de médicos cubanos em programas sociais,
como a Mision Bairro a dentro. Diferente do Chile, a Venezuela chavista
protagonizou vários avanços na integração da América Latina, tais como a
criação da “Aliança Bolivariana Para os Povos de Nossa América” (ALBA) e
os empenhos na criação da “União das Nações Sul-Americanas” (UNASUL)
e da “Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos” (CELAC).
Contribuiu para o sucesso dessas inciativas o contexto latino-americano
do início dos anos 2000, em que presidentes em coalizões de esquerda e
de centro-esquerda foram eleitos na maioria dos países da região. Estes
governos, em linhas gerais, orientaram-se em políticas externas de defesa
das soberanias nacionais, diversificação das relações internacionais e
avanços nas integrações regionais. Chávez promoveu a intensificação das
relações econômicas e políticas com os países da região, em especial com
os governados de orientações esquerdistas ou de centro-esquerda, como
a Bolívia de Evo Morales, o Equador de Rafael Correa, a Argentina dos
governos Kirchner e o Brasil dos governos de Lula e Dilma.
Ambos os governos enfrentaram hostilidade e ingerências do
imperialismo norte-americano. No caso chileno, o então presidente Richard
Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, fizeram tudo o que estava
ao seu alcance para derrubar o governo de Allende. Tomaram medidas como
sanções econômicas, financiamento de partidos de oposição e apoiaram
os boicotes econômico promovidos por grupos conservadores, bem como
estiveram presentes nas conspirações de golpes de Estado, que finalmente
se concretizou em 1973. Na Venezuela, os EUA também sempre tiveram

187
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

uma tensa relação com o governo de Chávez, tanto no governo de George


Bush como no de Barack Obama. Os norte-americanos estiveram envolvidos
no golpe de 2002. Depois do fracasso dessa iniciativa, passaram a atuar
fortemente junto a ONGs, think tanks e partidos de oposição ao chavismo,
com o claro objetivo de desgastar o governo21. Essas novas modalidades de
ingerências norte-americanas são caracterizadas como “guerras híbridas”22,
aplicadas não apenas contra a Venezuela, mas contra praticamente todos
os países não alinhados a Washington.
As ações do imperialismo norte-americano, somadas às atuações
dos grupos opositores internos, promoveram a queda do governo Allende.
Chávez, ao contrário, continuou no governo venezuelano até sua morte.
Desde 2013, o chavismo ainda se mantém no governo, mas a Revolução
Bolivariana vem enfrentando uma série de revezes, fazendo o país entrar
numa profunda crise econômica, política e social em meio às intensificações
das ações imperialistas dos EUA, o acirramento das lutas internas com
grupos opositores e um isolamento regional, com a ascensão de governos
de direita na maior parte da América Latina23.

21 Essas informações foram comprovadas por inúmeros documentos vazados e disponí-


veis no Wikileaks.
22 Andrew Korybko (2018) designa como “guerras híbridas” um conjunto de medidas de
ingerências e intervencionistas, que os EUA veem aplicando, nas duas últimas décadas,
a governos considerados “hostis”, visando desestabilizá-los e substituí-los por governos
alinhados. As técnicas incluem o uso de mídias sociais e novas tecnologias para disse-
minar discursos contra os governos e estimular manifestações e insurgências populares
para derrubar governos de formas relativamente “pacíficas”. Seriam as táticas que muitos
chamam de “golpe suave”. Segundo o autor, o imperialismo norte-americano continua se
utilizando de formas “tradicionais” de uso de violência para derrubar governos, quando
as técnicas do “golpe suave” não funcionam, ou combinações de ambos os métodos, daí
o termo guerra “híbrida”.
23 Não é objeto deste trabalho analisar o período após o falecimento de Chávez. Para
algumas reflexões sobre a Venezuela durante o governo Maduro e a crise da Revolução
Bolivariana, ver Scheidt (2019b).

188
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

***

Ao longo desse capítulo, buscamos refletir sobre algumas compa-


rações entre os governos de Allende no Chile e de Chávez na Venezuela.
Um dos aspectos comuns entre ambos os processos históricos é que os dois
governos se propuseram a implementar profundas transformações em seus
países, que se colocavam como revolucionárias, através da via democrática,
conquistando o poder através de eleições. A chamada “via chilena para o
socialismo” foi inédita num contexto em que a grande maioria dos teóricos
de esquerda, fundamentados nos processos revolucionários do passado,
acreditavam que uma revolução só seria possível a partir de uma insurreição
popular ou guerra civil. O PC chileno, a partir do contexto particular
do Chile e calcado nas novas orientações do PCURSS depois do seu XX
Congresso, foi o principal artífice da via pacífica e gradual. A vitória de
Allende e o curto período de seu governo suscitou grandes expectativas nas
esquerdas pelo mundo, embora muitos fossem céticos quanto à viabilidade
da proposta da via pacífica. A trágica derrota da Revolução Chilena levou
a inúmeros questionamentos sobre as causas do fracasso, debate no qual se
tornou majoritária a tese de que seria impossível uma revolução pacífica, já
que as classes dominantes e o imperialismo inevitavelmente interromperiam
o processo de forma violenta.
A vitória de Chávez em 1998 e a posterior onda de eleições de
governos de esquerda e centro-esquerda pela América Latina reabriram as
expectativas sobre a viabilidade de transformações sociais profundas pelas
vias democráticas e pacíficas. Chávez na Venezuela e, em certa medida,
Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador reintroduziram o
debate sobre uma possível transição pacífica ao socialismo. Os processos
equatoriano e boliviano já foram derrotados e, embora o chavismo ainda
esteja no poder, a Revolução Bolivariana sofreu inúmeros ataques tanto de
grupos opositores internos quanto externos, em especial do imperialismo
norte-americano. Desde o início do seu governo, Chávez enfrentou dura
oposição das elites e da maior parte das classes médias. Os grupos opositores,
para além da disputa política eleitoral (às vezes boicotadas e quase sempre
não reconhecendo as derrotas), promoveram manifestações de rua, intensa
propaganda contra o governo em diversos meios até golpes ou tentativas de

189
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

golpes de Estado e movimentos de paralisação (como o paro petrolero). Não


há propósitos de negociar com o governo, e sim de o derrubar. Durante toda
a gestão de Chávez, a Venezuela literalmente se dividiu em dois grandes
segmentos que não dialogavam e estavam em permanente confronto, numa
polarização bastante acentuada. A radical oposição interna, assim como
as reações do imperialismo, reacendem a percepção de que os poderosos
nunca aceitam a perda de seus poderes e privilégios, reagindo fortemente
pela derrocada de governos transformadores, inclusive pela via golpista e
articulada com o imperialismo. O presente contexto volta a tornar pertinente
os questionamentos sobre as dificuldades (e quiçá a impossibilidade) de
se realizar um processo revolucionário pelas vias democráticas e pacíficas.
Outra questão que nosso estudo comparativo aponta é a dificuldade
de se implementar transformações sociais em um país num contexto inter-
nacional adverso. Uma das causas da derrota de Allende foi seu isolamento
regional. A maioria dos países da América Latina já eram governados por
governos autoritários de direita (a maior parte, ditaduras), alinhados com
os Estados Unidos. Sem apoio regional e sem a mesma ajuda da URSS que
Cuba tinha contato, o governo Allende ficou isolado, o que repercutiu nega-
tivamente numa época em que o mundo está cada vez mais globalizado. Até
o golpe de 2002 e o paro petrolero, Chávez era ainda um dos poucos governos
de esquerda na América Latina e enfrentava inúmeras dificuldades de levar
a diante suas transformações, estando seu governo ao ponto de cair em
várias ocasiões. Foi somente a partir da eleição de governos de esquerda e de
centro-esquerda na maior parte dos países da região, que as transformações
mais significativas do governo chavista se tornaram viáveis. As mudanças
nas relações internacionais dos países latino-americanos, incluindo as
iniciativas de integração regional, com as consequentes diminuições das ações
imperialistas dos EUA, possibilitaram à Venezuela ampliar seus contatos
internacionais, auxiliando na viabilização das transformações internas.
Nos anos mais recentes, com a onda de governos de direita alinhados com
Washington na América Latina e o acirramento das ações imperialistas dos
EUA contra a Venezuela, a situação ficou extremamente desfavorável para
a Revolução Bolivariana. O isolamento internacional ao qual a Venezuela
foi submetida nos últimos anos é um dos fatores, entre vários outros, que
explicam a gravíssima crise que o país atualmente enfrenta.

190
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Enfim, aprofundar as comparações entre as experiências da UP


no Chile e do governo de Chávez na Venezuela não apenas trará novas
elucidações sobre ambos os processos, como também auxiliará nos debates
atuais sobre as lutas políticas e sociais em curso em várias partes de nossa
América Latina.

Referências
AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiencia chilena. São Pau-
lo: Annablume, 2002.
ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota: Chile, 1970/1973. São
Paulo: Brasiliense, 1979.
BAPTISTA, Mariana Bruce Ganem. Estado e democracia nos tempos de
Hugo Chávez (1998-2013). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.
BITAR, Sérgio. Transição, socialismo e democracia: Chile com Allende.
Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1980.
BLOCH, Marc. Pour une histoire comparée des sociétés européennes. In:
Melanges historiques. Paris: Sevpen, 1963, p. 16-40.
CARDOSO, Ciro Flamarion e PÉREZ BRIGNOLI, Héctor. Os métodos da
história. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
CARUSO, Danilo. A Revolução Bolivariana: avanços, limites e contradi-
ções. In: SCHEIDT, Eduardo; ARAUJO, Rafael; MAIA, Tatyana (orgs.). Es-
tado, democracia e movimentos sociais no mundo contemporâneo. Rio de
Janeiro: Estudos Americanos, 2019, p. 138-173.
CHÁVEZ, Hugo. Líneas generales del Plan de Desarrollo Económico y
Social de la Nación 2001-2007. 2001. Disponível em: <http://www.mppp.gob.
ve/wp-content/uploads/2013/09/Plan-de-la-Nacion-2001-2007.pdf>, acessa-
do em 15 jul. 2019.
_____. La propuesta de Hugo Chávez para transformar a Venezuela:
una revolución democrática. 1998. Disponível em: < https://pt.scribd.com/
doc/192305304/Hugo-Chavez-La-propuesta-de-Hugo-Chavez-para-trans-

191
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

formar-a-Venezuela > , acessado em 15 jul. 2019.


_____. Proyecto Nacional Simon Bolivar. Primer Plan Socialista: desarrol-
lo económico y social de la Nación 2007-2013. 2006. Disponível em <http://
pt.slideshare.net/controldelagestionpublica/proyecto-nacional-simn-boli-
var-2007-2013>, acessado em 15 jul. 2019.
CURCIO, Pasqualina. La mano visible del mercado: la guerra económica
contra Venezuela (2012-2016). Manipulación del tipo de cambio e inflación
inducida. Caracas: 2017. Disponível em: <http://lalenguatv.com.ve/wpcon-
tent/uploads/2017/03/ManoVisibleMercado.pdf.>.Acesso em: 10 ago. 2019.
DIETERICH, Heinz. Hugo Chávez y el socialismo del siglo XXI. Buenos
Aires: Nuestra América, 2005.
GARCES, Joan. Allende y la experiência chilena: las armas de la política.
Santiago: BAT, 1991.
GUERRA, François Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre
las revoluciones hispánicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
GUEVARA, Gustavo (org.). Sobre las revoluciones latinoamericanas del
siglo XX. Buenos Aires: Newen Mapu, 2013.
KORYBKO, Andrew. Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes.
São Paulo: Expressão Popular, 2018.
LANDER, Edgardo. Venezuela: ¿crisis terminal del modelo petrolero ren-
tista? In: Aporrea. Caracas: 2014. Disponível em <http://www.aporrea.org/
actualidad/a197498.html> Acessado em 15 jul. 2019.
LÓPEZ MAYA, Margarita. Hacia el socialismo del siglo XXI: los consejos
comunales, sus cambios conceptuales y las percepciones de participantes en
Caracas. In: CHERENSKY, Isidoro (org.). Ciudadanía y legitimidad demo-
crática en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011, p. 221-262.
MARINGONI, Gilberto. A Revolução Venezuelana. São Paulo: UNESP,
2009.

192
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PAMPLONA, Marco; MÄDER, Maria Elisa (orgs.). Revoluções de inde-


pendências e nacionalismos nas Américas. São Paulo: Paz e Terra, 2007, 4
vol.
PASQUINO, Gianfranco. Revolução. In: BOBIO, Norberto; MATTEUC-
CI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de política, vol. 2.
Brasília: UnB, 2010, p. 1121-1130.
PETRAS, James e VELTMAYER, Henry. Espejismos de la izquierda en
América Latina. México: Lumen México, 2009.
PINTO VALLEJOS, Julio (org.). Cuando hicimos historia: la experiencia de
la Unidad Popular. Santiago: LOM Ediciones, 2005.
PROGRAMA BASICO DE GOBIERNO DE LA UNIDAD POPULAR.
Candidatura presidencial de Salvador Allende. Santiago: s/ed., 1969. Dis-
ponível em <http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-7738.html>
SADER, Eder. Um rumor de botas: a militarização do Estado na América
Latina. São Paulo: Pólis, 1982.
SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SCHEIDT, Eduardo. Da democracia participativa e protagônica ao Esta-
do comunal: as transformações do Estado na Venezuela durante o governo
Chávez (1999-2012). In: SCHEIDT, Eduardo e MAIA, Tatyana (orgs.). Proje-
tos de Estado na América Latina contemporânea: de 1960 até os dias atuais.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2019a, p. 65-100.
_____. A democracia participativa na Venezuela da Era Chávez e a questão
dos conselhos comunais e das comunas. In: Temos Históricos, v. 21, n. 1, 2017,
p. 261-291.
_____. A Revolução Bolivariana e a questão democrática na Venezuela. In:
Cadernos do Tempo Presente, v. 10, n. 2, 2019b, p. 42-57.
SCHURSTER, Karl e ARAUJO, Rafael. A era Chávez e a Venezuela no
tempo presente. Rio de Janeiro: Autografia, 2015.
SMIRNOW, Gabriel. La revolución desarmada: Chile, 1970-1973. México:
Ediciones Era, 1977.

193
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

VILLEGAS, Abelardo. Salvador Allende y la experiencia socialista chilena.


México: UNAM, 1974.
WILPERT, George. La transformación en Venezuela hacia el socialismo del
siglo XXI. Caracas: Monte Ávila Editores, 2009.
WINN, Peter. A Revolução Chilena. São Paulo: UNESP, 2010.

194
INSURREIÇÕES POPULARES NA AMÉRICA
LATINA NO TEMPO PRESENTE: A BOLÍVIA
ENTRE 2000 E 20051
Rafael Araujo2

Introdução
O último trimestre de 2019 foi marcado por um conjunto de rebeliões
populares na América Latina. Ondas de indignação e rebeldia sacudiram as
estruturas políticas de nações como Colômbia, Equador e, especialmente,
Chile. O inócuo crescimento econômico nos últimos seis anos contribuiu
para o desencadeamento dessas insurreições. Segundo dados da Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), entre 2014 e 2019, a
expansão do Produto Interno Bruto (PIB) regional girou em torno dos 0,4%.3
Esse cenário contribuiu para o aumento do desemprego e para a
precarização do mercado de trabalho, cuja informalidade abarca em torno
de 53% (aproximadamente 140 milhões) da sua População Economicamente
Ativa (PEA) no início de 2020.4 A frágil expansão das economias locais
colaborou para o aumento da pobreza. Cerca de 191 milhões de pessoas,
30,8% dos latino-americanos, encontravam-se nessa situação em 2019,
segundo estimativa cepalina. Em 2014, o número girava em torno de 164
milhões de habitantes.5

1 Este capítulo aprofunda algumas análises e reflexões realizadas originalmente no artigo


Neoliberalismo e luta social na América Latina no Tempo Presente: a Bolívia entre 2000 e
2005 que foi submetido à Locus: Revista de História publicada pela Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF).
2 Professor Adjunto de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Doutor em História pelo PPGHC/UFRJ (2013). Pesquisador associado Laboratório
de Estudos da Imigração (LABIMI)/UERJ, ao Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET)
da UFS e ao Grupo de Pesquisa Estudos de História do Tempo Presente da PUC/RS.
3 Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe (2019). Disponível
em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45000-balance-preliminar-economias-ame-
rica-latina-caribe-2019 Acesso: 10 de março de 2020.
4 Informais vivem drama na América Latina. O Globo, 09/04/2020. P. 11.
5 Panorama Social de América Latina, CEPAL, (2019). P. 97.

195
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Esses elementos compuseram um mosaico que estimulou as mo-


bilizações populares do fim de 2019 e, diante dos imprevisíveis efeitos da
pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 (Covid-19), retrações do PIB, elevação
da pobreza, do desemprego e da informalidade no mercado de trabalho já
ocorrem (e deverão se aprofundar ainda mais!) nos países da região . Em
relatórios preliminares sobre esses temas, a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e a CEPAL já projetaram perspectivas sombrias. O número
de desempregados formais pode alcançar a cifra de 38 milhões de indivíduos
e cerca de 20 milhões de cidadãos serão inseridos na condição de pobreza,
segundo estimativas das duas entidades.6
No caso da Bolívia, as tensões políticas do fim de 2019 a atingiram
de uma maneira diferenciada em relação aos vizinhos supracitados. A forte
instabilidade política entre o primeiro turno da eleição presidencial de 20
de outubro e o dia 10 de novembro, ocasião do golpe de Estado contra Evo
Morales, foi surpreendente. Até aqueles tortuosos dias, havia uma tendência de
nova vitória eleitoral do primeiro mandatário indígena da história boliviana.7
Corroboravam para essa expectativa fatores como: a estabilidade
política; o reconhecimento da importância da cultura e dos valores indígenas
para o Estado boliviano; o crescimento econômico de 5% na última década; e
o vitorioso combate à pobreza, que diminuiu de 60% para 33,2%8 entre 2006 e

6 Observatorio de la OIT: El Covid-19 y el mundo del trabajo. Tercera Edición. Disponível


em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/brie-
fingnote/wcms_743154.pdf Acesso 07 de maio de 2020 e América Latina y el Caribe ante la
pandemia del Covid. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45337-ame-
rica-latina-caribe-la-pandemia-covid-19-efectos-economicos-sociales Acesso: 09 de abril
de 2020.
7 Em 10 de novembro de 2019 Evo Morales foi vítima de um golpe de Estado na Bolívia.
Esse trágico evento foi conduzido por grupamentos policiais, Forças Armadas, os Comi-
tês Cívicos de Santa Cruz de La Sierra e Potosí, partidos políticos de oposição, frações da
sociedade civil, destacadamente, grupos abastados da classe média, e sobretudo a Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA), que legitimou as pressões pela sua destituição.
Naquele fatídico dia, coube às Forças Armadas, lideradas pelo general Williams Kaliman,
e ao Legislativo, por meio da segunda vice-presidente do Senado, Jeaniñe Añez, empos-
sada posteriormente presidenta da Bolívia, validarem o golpe.
8 CEPAL (2019) e O que está por trás do sucesso econômico da Bolívia na era Evo Mo-
rales? Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50088340 acesso:
12 de novembro de 2019.

196
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

2019. Esses elementos, até o dia da eleição de 2019, auxiliaram para que o país
atravessasse incólume o período de rebeliões populares daquele ano.
Não será objeto desse artigo avaliar a gestão de Evo Morales e as razões
para a sua forçada renúncia. Deixaremos essa abordagem para outra ocasião.
Todavia, em razão dos recentes acontecimentos da história boliviana, avaliamos
a pertinência da abordagem desses temas em nossas notas introdutórias.
A autointitulada “revolução democrática e cultural” possuía respaldo
popular. As investigações sobre os acontecimentos sucedidos na nação
andino-amazônica entre 2000 e 2019 faz com que defendamos a ocorrência
de uma revolução política e cultural. Existiram modificações substantivas na
estrutura social, nas instituições políticas e na elite dirigente. Além disso, o
reconhecimento da plurinacionalidade pela Carta Magna de 2009 marcou
a história desse processo, pois se incorporaram reivindicações históricas
das entidades indígenas. Embora a dependência econômica, decorrente da
exportação de matérias-primas, tenha se mantido e a estrutura de classes não
tenha se alterado, coadunamos com a definição feita pela gestão Morales e
organizações sociopolíticas que o apoiaram.
Nas páginas que se seguem, refletiremos acerca das razões para a
eleição de Evo Morales, em dezembro de 2005. Refletiremos sobre a história
do nosso vizinho entre 2000 e aquele ano. Almejaremos, com isso, apresentar
algumas motivações para a “revolução democrática e cultural” ocorrida entre
2006 e 2019 naquele país.
A Bolívia entre 2000 e 2005: rebeliões, antineoliberalismo e protago-
nismo do bloco histórico nacional-popular indígena e camponês
O ano 2000 iniciou uma fase política na história boliviana marcada
por levantes populares. O descontentamento com o doutrinário neoliberal
e com o sistema político derivado da redemocratização de 19829 propiciou
contínuas insurreições populares, entre abril daquele ano e dezembro de 2005.

9 A estabilidade política boliviana decorreu da articulação da “democracia por consen-


so”. Ela foi estabelecida pelas principais agremiações e previa articulações políticas com
o objetivo de formação de maioria parlamentar no Congresso. Em nome da governabi-
lidade, as diferenças programáticas entre as agremiações foram amainadas. Além disso,
presenciamos a divisão de cargos na burocracia estatal para a constituição de uma uni-
dade entre os distintos grupos políticos e a corrupção tornou-se uma prática regular em
seguidos governos (PITTARI, 1996).

197
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

“revolução democrática e cultural” liderada entre janeiro de 2006 e novembro


de 2019 por Evo Morales10, foi a consequência direta desse ciclo rebelde.
A Bolívia viveu, a partir de abril do ano 2000, uma crise revolu-
cionária. Esta decorreu da conjugação da crise de representação política
– expressa na perda de legitimidade da democracia, das suas instituições e
dos tradicionais partidos políticos – com os reflexos da crise socioeconômica
alavancada ao final da década de 1990. Esta motivou a repulsa de setores
expressivos da sociedade civil em relação às práticas neoliberais. Portanto,
presumimos que a vitória eleitoral de Evo Morales resultou da crise de
hegemonia dos grupos dominantes11.

10 Ao finalizarmos este ensaio, tivemos a notícia que o parlamento boliviano indicou que
a eleição presidencial deve ocorrer até 02 de agosto de 2020. Segundo enquetes de opi-
nião feitas em março, antes da pandemia causada pela Covid-19 se alastrar pela América
Latina e causar a suspensão do pleito que deveria ocorrer em 03 de maio de 2020, a chapa
do MAS, composta pelos ex-ministros Luis Arce (Economia) e Davi Choquehuanca (Re-
lações Exteriores), candidatos respectivamente à presidente e vice-presidente, liderava
com 33,3% das intenções de voto. O segundo colocado, Carlos Mesa, tinha 18,3% e, a
autoproclamada presidenta, após o golpe de novembro de 2019, Jeanine Añez, possuía
16,5%. Por esse indicativo e pela pujança social boliviana, não refutamos a possibilidade
de continuidade da revolução por meio de outras lideranças políticas, algo que fortalece
nossa avaliação acerca do equívoco de Morales em buscar um quarto mandato presi-
dencial (o terceiro pela Constituição aprovada em 2009), em outubro de 2019. Sobre a
pesquisa de opinião de março de 2020, consultar: Elleciones 2020: el MAS le saca un 15%
de ventaja a Carlos Mesa. Disponível em: https://eldeber.com.bo/169559_encuesta-elec-
ciones-2020-el-mas-le-saca-un-15-de-ventaja-a-carlos-mesa
11 A hegemonia de um grupo social vincula-se a sua capacidade de construção da direção
política, ideológica e moral de uma sociedade e, também, do seu controle militar sobre
ela. A crise de hegemonia deriva da perda da autoridade moral e ideológica das classes
dominantes que, ao verem repudiada a sua concepção de mundo, mantêm a prevalência
na sociedade por meio da coerção militar. Nesse contexto, observamos uma crise revo-
lucionária, que decorre da ruptura entre representantes e representados, e a construção
de uma nova hegemonia pelos grupos subalternos (GRUPPI, 1978, p. 78-80). Como ana-
lisaremos posteriormente, o bloco liderado pelos indígenas e camponeses apresentou a
solução para os problemas socioeconômicos e políticos bolivianos após o ano 2000, por
isso, tornou-se hegemônico politicamente.

198
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

A heterogênea frente política por ele liderada, composta pelo


Movimiento Al Socialismo (MAS)12, diversas entidades sociais (indígenas,
camponesas e operárias), grupos da classe média e intelectuais, como o
vice-presidente Álvaro Garcia Linera, aproveitou-se da deslegitimação do
sistema político e da crise revolucionária ocorrida entre 2000 e 2005. Os
dados aferidos pela Corporação Latinobarômetro ilustram o cenário de
esgarçamento institucional, conforme pode ser observado a seguir.

Percentual de apoio à democracia na Bolívia entre 1998 e 200613

Apoio 1998 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006


Democracia 55 60 54 52 50 45 49 62
Autoritarismo 22 12 17 16 22 19 19 18
Da no mesmo 16 17 17 14 24 19 19 14
Não responderam 6 11 12 17 4 17 13 6

Os paradigmas neoliberais predominaram em seguidos governos


bolivianos entre 1985-2005. Sua implementação iniciou-se no governo
terceiro governo de Victor Paz Estenssoro (1985-1989), com a promulgação
do Decreto Supremo 21.060.14 A já mencionada crise econômica dos anos
1980 levou a esse processo, que foi guiado pelos eixos da estabilização

12 A proposta de criação de um partido político que reunisse as entidades camponesas e


indígenas, além de setores sociais que mantinham relações políticas com essas organiza-
ções, surgiu em 1995, durante o congresso da Confederación Sindical Única de Trabajadores
Campesinos de Bolívia (CSUTCB) denominado Tierra, Territorio e Instrumento Político. No
encontro, os delegados decidiram pela criação da Asamblea por la Soberanía de los Pueblos
(ASP), posteriormente convertida em Instrumento Político para la Soberanía de los Pueblos
(IPSP). A ASP elegeu quatro deputados federais em 1997, entre eles Evo Morales. Em
1998, foi criado o IPSP, que posteriormente agregou o MAS ao seu nome. Assim, para fins
desse artigo, optamos por utilizar esta sigla (PINTO e NAVIA, 2007).
13 A pergunta realizada pela Fundação Latinobarômetro para o seu relatório de 2013, uti-
lizado para a elaboração da tabela, foi a seguinte: Com qual das seguintes frases você está
de acordo? A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Fonte: Informe
2013. P. 5-13. Disponível em: http://www.latinobarometro.org/documentos/LATBD_IN-
FORME_LB_2013.pdf Acesso: 10 de dezembro de 2013.
14 Bolivia: Decreto Supremo Nº 21060, 29 de agosto de 1985. Disponível em: https://
www.lexivox.org/norms/BO-DS-21060.html Acesso: 20 de fevereiro de 2020.

199
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

econômica e do ajuste estrutural proposto pelos novos preceitos adotados


pelos gestores do capital. Com isso, os governos bolivianos entre 1985 e 2005
tiveram como norteadores os seguintes princípios: austeridade fiscal, abertura
externa, liberalização comercial e financeira, desregulação do mercado de
trabalho, privatizações e extração interna de renda para o pagamento da
dívida externa. (SIMARRO E ANTOLÍN, 2013, p. 169).
As medidas de severidade fiscal impactaram imediatamente o
mercado de trabalho boliviano. Verificou-se uma forte deterioração salarial,
que girou em torno de 40% no primeiro mês das medidas do ajuste estrutural,
destruição de postos de trabalho e crescimento da informalidade (SIMARRO
E ANTOLÍN, 2013, p. 169-170).
Ao mesmo tempo, a privatização da estatal Corporación Minera de
Bolívia (Comibol), em 1985, modificou os instrumentos de organização
sindical e transformou a zona rural boliviana. Vinte mil mineiros perderam
seus empregos no primeiro ano de capitalização da antiga estatal e se disper-
saram pelo interior, voltando-se para atividades agrícolas (OSTRIA, 2001).
Duas regiões centralizaram a absorção dos mineiros desempregados:
El Alto e o Chapare Cochabambino. A última foi uma relevante zona
de absorção de mão de obra em decorrência da expansão da produção
cocaleira durante a década de 1980. Já a cidade de El Alto, vizinha a La
Paz, proporcionou, naquele momento, esperança de trabalho formal e/ou
informal, pois era próxima da capital (CONZELMAN, 2006; STEFANONI
e ALTO, 2006).
As demissões dos laboradores da Comibol e as privatizações de
empresas públicas impactaram o sindicalismo boliviano. A Central Obrera
Boliviana (COB) fragilizou-se e perdeu a centralidade tida até a década de
1980 na luta de classes. Ao mesmo tempo, presenciamos o fortalecimento
do sindicalismo camponês, em especial, dos cocaleiros. As organizações do
Chapare assumiram o protagonismo na nova realidade sindical. Como já
afirmamos, a região vivia uma fase de ascensão na produção da erva nos
anos 1980, em virtude da ampliação produtiva e do aumento do consumo
interno15 (URQUIDI, 2007, p. 169).
15 A ingestão de folha de coca é um hábito milenar na Bolívia, que sobreviveu ao próprio
colonialismo espanhol. A erva é utilizada em chás, na indústria têxtil, farmacêutica, entre
outras atividades.

200
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

A ascensão do cultivo da coca no Chapare coincidiu com a inten-


sificação da repressão. Em 1988, o governo Estenssoro promulgou a Ley del
Régimen de la Coca y Sustancias Controladas (Lei 1008).16 Com a medida, há
um alinhamento à política externa norte-americana, que naquela ocasião,
voltou-se para o combate ao tráfico internacional de entorpecentes.
Baseado em dados da década de 1970, o decreto governamental
limitou o cultivo de coca a 12.000 hectares, quantidade supostamente
suficiente para abastecer o mercado nacional. As áreas de cultivo excedentes
ao estabelecido pela legislação seriam erradicadas por meio de duas ações:
desenvolvimento produtivo alternativo e utilização da força militar. A
demanda interna, todavia, voltava-se para uma série de atividades, como
a produção de medicamentos, tecidos ou de chá industrializado, além do
hábito cotidiano de mascar a folha ou ingerir chá proveniente da erva
natural. Por isso, a resistência à erradicação foi contundente, pois os
cocaleiros argumentaram que o consumo interno direcionado a atividades
lícitas era maior do que o considerado pelo governo (CONZELMAN,
2006, p. 62).
Tivemos, ainda, outra pertinente questão. A região de Yungas,
composta por altos vales subtropicais em torno de La Paz, consistia em
um tradicional sítio cocaleiro. Por isso, os cultivos autorizados pela lei
1008 foram praticamente circunscritos àquela região. O Chapare cocha-
bambino17, de relevância produtiva mais recente, foi identificada enquanto
uma área fortemente voltada para o abastecimento do tráfico de cocaína.
Por isso, centralizou parte considerável da repressão governamental,
que, como ressaltamos, esteve alinhada aos paradigmas de segurança
nacional apregoados pelos norte-americanos (CONZELMAN, 2006, P.
62; URQUIDI, 2007, P. 168-170).

16 Reglamento a la Ley 1008 Sobre Régimen de las Coca y Sustancias Controladas DS


Nº 22099 de 28 de Diciembre de 1988. Disponível em: http://www.dgsc.gob.bo/normati-
va/decretos/DS22099-88.html Acesso: 20 de fevereiro de 2020.
17 Na década de 1960, foi estabelecida a abertura de fronteiras agrícolas na Bolívia. O
Chapare foi um dos centros mais importantes a sofrer os impactos daquela política go-
vernamental e se tornou um relevante centro de recepção de camponeses. A região, no-
vata no desenvolvimento da atividade, voltou-se para o cultivo da folha de coca, consoli-
dando-se como um polo produtivo relevante.

201
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Ao mesmo tempo em que as entidades sindicais cocaleiras assu-


miam o protagonismo da luta social, a nova configuração do mundo do
trabalho boliviano, no qual a informalidade predominou em virtude das
privatizações e da não absorção de mão de obra pelas empresas privadas,
possibilitou o enfraquecimento da COB.
Em razão disso, as organizações indígenas, camponesas e as associa-
ções de vizinhos, embriões da Federación de Juntas Vecinales (FEJUVE), como
a de El Alto, que se fortaleceram enquanto agremiações reivindicativas do
atendimento das mais variadas demandas dos núcleos urbanos, assumiram
a liderança das mobilizações sociais transcorridas ao longo da década de
1990 (CABEZAS, 2007, p. 197-198).
Dentre as várias entidades sociais indígeno-camponesas, como a
Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolívia (CSUTCB)
e a Confederación Indígena del Oriente Boliviano (CIDOB), ressaltamos a
Federación Especial de Trabajadores Campesinos del Trópico Cochabambino
(FETCTC). Surgida em 1986, essa organização unificou distintos sindicatos
cocaleiros. Ela conjugou a resistência às políticas de erradicação da produção
de coca; as críticas ao neoliberalismo, assumindo um discurso social que
possibilitou a incorporação das necessidades de variados segmentos sociais
rurais e urbanos; e a defesa da autodeterminação nacional, consubstanciada
na transformação da folha de coca em símbolo da resistência nacional. Por
isso, a FETCTC e seu líder, Evo Morales, conduziram as lutas sócio-políticas
bolivianas entre 1986 e 2005 (URQUIDI, 2007, p. 171-176).
As gestões de Estenssoro, Jaime Paz Zamora (1989-1993), Gonzalo
Sánchez de Lozada (1993-1997) e Hugo Banzer (1997-2001) geraram impactos
socioeconômicos que auxiliam a compreensão do ciclo insurrecional
detonado no ano 2000. Dentre eles, destacamos: baixo crescimento
econômico, concentrado em setores intensivos do capital e não em mão de
obra; ampliação da informalidade no mercado de trabalho, que alcançou
63,4% dos trabalhadores em 2002; frágeis políticas redistributivas de
renda; aumento da pobreza e das desigualdades sociais; e corte nos gastos
públicos para pagamento da dívida externa (SIMARRO E ANTOLÍN,
2013, p. 171; CABEZAS, p. 193).

202
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Percentual de crescimento do PIB, pobreza e desemprego


na Bolívia (1994-2003)

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002


Pobreza 46 --- --- 44 18
63,12 63,47 66,38 63,12 63,33
Variação
4,4 4,7 4,5 4,9 5,4 0,8 2,5 1,7 2,4
do PIB
Desemprego 3,1 3,6 3,8 4,4 4,1 6,1 7,5 8,5 8,7

Fonte: CEPAL, 1999, P. 64; 2000, P. 68 e 2005; P. 66

Em uma sociedade afetada pelas consequências das políticas neoli-


berais, a fagulha explosiva para o início do período de rebeliões populares
supracitado desenrolou-se entre janeiro e abril de 2000, quando ocorreu
a Guerra da Água no já agitado departamento de Cochabamba. Aquele
episódio derivou do descontentamento de setores da sociedade civil com
a privatização da água para o consórcio Águas de Turani.
A reação cidadã à capitalização motivou a constituição da Coordinadora
de Defensa del Agua y de la Vida, ente que reuniu um coletivo social composto
por cocaleiros, operários, professores, estudantes, profissionais liberais,
ambientalistas e outros segmentos civis. A insurreição, todavia, não ficou
circunscrita àquele departamento, pois se nacionalizou. Camponeses e
indígenas fecharam diversas rodovias pelo país, ao mesmo tempo que pro-
fessores e mineiros de outros departamentos sne mobilizaram por questões
salariais e melhores condições de trabalho. Em La Paz, aproveitando-se das
sublevações, sucederam-se motins da polícia por demandas da sua categoria.
Além disso, camponeses aymarás pertencentes à CSUTCB sublevaram-se
e bloquearam ruas e estradas próximas à capital boliviana em apoio aos
sublevados (ANDRADE, 2007, p. 174; VARGAS e CÓRDOVA, 2004, p.
94-95).

18 Após consultarmos os anuários estatísticos disponíveis no site da CEPAL, consta-


tamos que os índices de pobreza disponibilizados entre 1994 e 1997 não se referem ao
percentual de indivíduos, mas sim às residenciais. Pesquisamos também essas informa-
ções no sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) da Bolívia e não as
encontramos. Por isso, utilizamos as referências habitacionais dos únicos anos aferidos
pela CEPAL em nossa tabela.

203
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Entre a Guerra da Água e a eleição presidencial de junho de 2002,


a primeira na qual Evo Morales foi candidato, a Bolívia viveu um forte
ativismo político. O descrédito em relação às instituições, combinado com
a insurgência civil durante aquele evento, ensejaram o desejo de satisfação
das demandas sociais e de descoberta de novas lideranças políticas em
segmentos variados da sociedade.
Por isso, em distintos departamentos foram observadas contínuas
mobilizações organizadas, principalmente, por camponeses, indígenas,
professores, mineiros e setores da classe média. As críticas ao neolibera-
lismo, o imaginário anti-imperialista19 e a postulação de uma Assembleia
Constituinte “refundadora do país” unificaram os heterogênos segmentos
civis e entidades sociais, como CSUTCB, COB e, principalmente, a FETCTC,
presidida por Evo Morales (STEFANONI e ALTO, 2006, P.71-72; VARGAS
E CÓRDOVA, 2004, P. 95-96).
Os levantes das classes subalternas nos primeiros anos do século
XXI contribuíram para o fortalecimento político do MAS e de Morales. Por
isso, ambos lideraram a esquerda boliviana durante o auge da conflagração
social, entre fevereiro de 2003 e junho de 2005.
Um indício que fundamenta essa forma de análise reside na avaliação
dos resultados do escrutínio presidencial de 2002. Naquele ano, Morales
ficou em segundo lugar, angariando 20,94% dos votos. A partir de então, ele
tornou-se um político com expressão nacional e tornou-se a mais destacada
figura pública da esquerda boliviana. A inexistência de segundo turno em
19 O anti-imperialismo consiste em uma modalidade de resistência política e cultural
que é articulada por meio de símbolos, gestos e de um discurso mobilizador. Como des-
tacou Ana Maria Vara (2013), o anti-imperialismo consistiu em um contra discurso arti-
culado nas décadas iniciais do século XX. Vivenciávamos, naquele momento, o primeiro
ciclo de insurreições populares e ações coletivas que marcaram a história latino-america-
na do século XX. Essa forma de reação política e cultural também se destacou em outras
fases, como no ciclo de lutas populares entre as décadas de 1960 e 1970. Ao refletir sobre
a pertinência do anti-imperialismo no ciclo de governos de esquerda das duas primeiras
décadas do século XXI, Luis Wainer (2015) sublinhou que a crise dos paradigmas neoli-
berais possibilitou a apropriação dessa modalidade das consígnas anti-imperialistas. Os
discursos e as ações feitas pelas lideranças políticas e pelas entidades sociais fundamenta-
ram-se em tradições de embates de classe da nossa história, nas críticas ao neoliberalismo
e na defesa da integração latino-americana e caribenha, que encarnou o internacionalis-
mo revolucionário.

204
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

razão de um mecanismo constitucional que estabelecia a decisão do pleito


pelo parlamento, caso um candidato não obtivesse mais de 50% dos votos,
fez com que Gonzalo Sánchez de Lozada, que obteve em torno de 23% dos
votos, fosse o indicado à presidência pela entidade. Por outro lado, o MAS
se engrandeceu, pois elegeu oito senadores e 27 deputados, consolidando-se
como expressiva força política (OEP, 2002).20
Entre fevereiro e outubro de 2003, a gestão de Sánchez de Lozada
foi alvo de um intenso combate por parte de diversos movimentos sociais
e agremiações de esquerda. Duas foram as causas centrais (GOMES, 2004,
p. 25): I - o rechaço à implementação de um pacote de medidas fiscais
recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), no qual se
destacava a taxação de 12,5% dos salários; e II - o repúdio à privatização do
gás natural e sua exportação para os Estados Unidos e México por meio do
porto chileno de Arica, que foi perdido pelos bolivianos na controversa
Guerra do Pacífico (1879-1883).21 Essa última iniciativa foi elaborada pelo
consórcio Pacific LNG, composto pela Repsol YPF, pela British Gas, Enron
e outras transnacionais do ramo, sendo amplamente atacada pelos setores
mobilizados da sociedade civil (CAMARGO, 2006, p. 190-191; GÓMEZ,
2004, p. 24-25).
A “síndrome de Potosí”, uma referência aos séculos de exploração
da prata do Cerro Rico de Potosí pelo Império Espanhol, e o nacionalismo
antichileno, oriundo da perda do acesso ao mar na supracitada guerra,
propiciaram a repulsa popular àquela proposta, que tinha o apoio da gestão
de Sanchéz de Lozada.
Assim, em 20 de setembro de 2003, 500 mil pessoas rebelaram-se
contra o projeto de capitalização, iniciando a Guerra do Gás. As principais
entidades sociais e sindicais, como a COB, a CSUTCB e a FEJUVE, uniram-se
ao MAS com o intuito de conquistar a nacionalização de todas as fontes
de hidrocarbonetos e impedir a sua exportação nos moldes almejados pelo
governo (ANDRADE, 2007).

20 Elecciones Generales 2002. Disponível em: https://atlaselectoral.oep.org.bo/#/sub_


proceso/58/1/1/graficos acesso: 20 de março de 2020.
21 Um pertinente debate sobre a Guerra do Pacífico foi feito por Hosiasson (2011).

205
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Entre aquele dia e a renúncia de Lozada, em 17 de outubro de 2003,


presenciamos intensos protestos advindos da reprovação à privatização do
gás natural. Os acessos a La Paz foram bloqueados e a morte de 60 pessoas,
em razão da repressão policial, isolaram o então presidente. Por isso, ele foi
obrigado a declinar do mandato e acabou fugindo para os Estados Unidos
(GOMEZ, 2004).
O vice-presidente Carlos Mesa assumiu o mandato e o MAS
consolidou-se enquanto principal força política de oposição ao projeto
neoliberal e ao tradicional sistema político boliviano. Na ocasião, o partido
articulou um acordo com o novo mandatário em torno do atendimento
das reivindicações sociais, que foram sintetizadas na Agenda de Outubro.
Ela previu, entre outros, as seguintes diretrizes:
I - convocação de uma Assembleia Constituinte;
II - nacionalização dos hidrocarbonetos;
III - realização de um referendo para que a população decidisse pela
venda ou não de gás natural para os Estados Unidos e o México;
IV- reforma agrária22.

Em julho de 2004, o referendo foi realizado, conforme acordado. As


cinco perguntas da consulta giraram em torno do apoio dos bolivianos à
nacionalização dos hidrocarbonetos, como podemos constatar no seguinte
excerto:
1. Está de acordo com a revogação da Lei de Hidrocarbone-
tos nº 1.689 promulgada por Sánchez de Lozada?
2. Está de acordo com a recuperação da propriedade de to-
dos os hidrocarbonetos pelo Estado Boliviano?
3. Está de acordo com a refundação da Yacimientos Petrolí-
feros Fiscales Bolivianos (YPFB), recuperando a proprieda-
de estatal das empresas petroleiras capitalizadas, de manei-
ra que o Estado possa participar em toda a cadeia produtiva
dos hidrocarbonetos?

22 cf. SUAREZ, 2010

206
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

4. Está de acordo com a política do presidente Carlos Mesa


em utilizar o gás como um recurso estratégico para a con-
quista de uma saída útil e soberana ao Oceano Pacífico?
5. Está de acordo com que a Bolívia exporte gás no marco
de uma política nacional que cubra o consumo de gás de
bolivianos e bolivianas, fomente a industrialização de gás
em território nacional, cobre impostos ou regalias de em-
presas estrangeiras, chegando ao valor de 50% da produção
de gás e de petróleo a favor do país, e destine os recursos da
exportação e industrialização de gás, principalmente para a
educação, a saúde, estradas e o emprego? (OEP, 2004). (Tra-
dução nossa.)23

Nas três primeiras perguntas, mais de 80% dos bolivianos votaram


“sim”; já nas duas últimas, o apoio ocorreu com 60% dos votos. Apesar da
maior parte dos eleitores reivindicarem o intervencionismo estatal no
setor dos hidrocarbonetos, Carlos Mesa não atendeu a essa exigência, pois
vinculava-se aos paradigmas neoliberais, dos quais foi um dos principais
propagandistas.
Dessa forma, ocorreu, mais uma vez, uma forte onda de protestos
entre maio e junho de 2005. O cenário político boliviano assemelhou-se
ao do segundo semestre de 2003. A nacionalização dos hidrocarbonetos e
o pleito de uma Assembleia Constituinte se tornaram bandeiras políticas
centrais propagandeadas pelas entidades sociais e pelo MAS. A intensidade
das manifestações fez com que Mesa também fosse obrigado a renunciar. As
eleições presidenciais foram antecipadas do final de 2006 para dezembro
daquele ano e Eduardo Rodrigues, presidente da Suprema Corte, assumiu
temporariamente o mais alto cargo executivo (ANDRADE, 2007, p. 176-177).
O programa eleitoral do MAS para o pleito de dezembro de 2005
concentrou-se nas demandas surgidas durante o ciclo de protestos, a
saber: nacionalização dos recursos naturais, realização da reforma agrária,
convocação da Assembleia Constituinte, respeito ao cultivo da folha de
coca, às tradições indígenas e defesa da soberania nacional (STEFANONI
E ALTO, 2006).

23 Referéndum Vinculante Sobre La Política Energética Del País 2004. Disponível em: ht-
tps://atlaselectoral.oep.org.bo/#/sub_proceso/74/1/1/graficos Acesso: 20 de março de 2020.

207
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Evo Morales, o primeiro presidente indígena da história boliviana,


foi eleito com 53,7% dos votos.24 No decurso da etapa democrática estabe-
lecida em 1982, nenhum candidato tinha conquistado essa votação. Pela
via eleitoral, o MAS conseguiu reconfigurar o sistema político boliviano e
chegar ao governo.
Simbolicamente, ele assumiu o mandato na Porta do Sol de Tiwanaku,
em 21 de janeiro de 2005, na véspera da posse oficial, Morales comprome-
teu-se com a realização de profundas mudanças sociopolíticas, culturais e
econômicas. Dentre elas, destacamos as seguintes: a valorização da cultura
indígena, a nacionalização dos recursos naturais e de empresas públicas
capitalizadas, o intervencionismo estatal na economia, a reforma agrária
e a realização da Assembleia Constituinte. Essas medidas consistiram
nas principais reivindicações das entidades sociais entre 2000 e 2005 e a
implementação delas foi buscada no período de gestão de Morales, embora
nem todas tenham contemplado plenamente as exigências sociais.
Ressaltamos, ainda, que o ciclo insurgente analisado não pode
ser descolado das suas conexões históricas. Conforme averiguado por
Cabezas (2007) e Lopez (2007), as insurreições e as múltiplas formas de
resistência dos indígenas e camponeses, entre as décadas de 1980 e 2000,
articularam as memórias longa e curta das lutas sociais ocorridas no país.
A primeira vincula-se à construção identitária erigida no decurso da reação
ao colonialismo espanhol. Já a segunda conecta-se às identidades nacionais
e também de classes ensejadas, sobretudo, no século XX. A conjugação
das “duas memórias” impulsionou o agir político de sujeitos sociais que
se basearam em uma cultura política insurrecional e se reconheceram nas
identidades construídas pelas consignas antineoliberal, anti-imperialista,
pró-nacionalização dos recursos naturais e pleiteantes de uma Assembleia
Constituinte que erigisse uma nova nação (CABEZAS, 2007, p. 194-195;
LOPEZ, 2007, p. 292-293).
A posse de Morales em Tiwanaku foi uma maneira figurativa de
iniciar a intitulada “revolução democrática e cultural”. Apesar de nos
apropriarmos da definição usada pelo MAS, não acreditamos que houve
alterações das bases econômicas bolivianas e nem das estruturas de classe
24 Elecciones Generales 2005. Disponível em: https://atlaselectoral.oep.org.bo/#/subproce-
so/19/1/1/graficos Acesso: 20 de março de 2020.

208
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

em sua gestão. Reivindicamos, sim, a ocorrência de uma revolução política


na Bolívia entre 2006 e 2019, com a realização de um projeto de capitalis-
mo andino-amazônico25, conforme defendido por Garcia Linera. Assim,
consideramos que a gestão de Evo Morales se alinhavou à cultura política
nacional-estatista26 latino-americana. Neste sentido, possuiu uma vinculação

25 Como afirmou Stefanoni (2010, p. 21-22), Garcia Linera, mentor intelectual da revolu-
ção, defendeu, em razão das discussões sobre socialismo do século XXI promovidas por
Hugo Chávez, que um projeto pós-neoliberal na Bolívia teria que se limitar à consolida-
ção do capitalismo andino-amazônico. Neste sentido, as formas modernas capitalistas
deveriam ser articuladas com as economias comunitárias e com os microempresários.
Estes deveriam contar com a proteção estatal em virtude do objetivo de promoção da
“modernização pluralista” da economia boliviana.
26 Segundo Daniel Aarão Reis Filho (2014, p. 14-15), a cultura política consiste em repre-
sentações que possuem normas e valores forjadores da identidade de grupos políticos.
Tem códigos e referências difundidas em uma família ou tradição política, contribuindo,
dessa forma, para a constituição de uma visão de mundo. Ao se constituir, ela colabora
para modelar as sociedades nas quais vigora e responde a reivindicações econômicas,
políticas e culturais. Segundo ele, a cultura política nacional-estatista está fortemente
arraigada no Brasil e na América Latina e fundamentou políticas de Estado que foram
desenvolvidas ao longo das últimas décadas por diversos governos da região. O nacional-
-estatismo adquiriu relevância na América Latina entre as décadas de 30 e 50 do século
XX. Os impactos socioeconômicos e políticos da crise de 1929 e de um contexto interna-
cional que fragilizou a capacidade de controle das grandes potências na região, em razão
da tensa e instável conjuntura das relações internacionais que culminou na deflagração
da Segunda Guerra Mundial, possibilitaram essa relevância. Os governos nacional-esta-
tistas, segundo Ansaldi e Giordano (2006) e Williamson (2012), foram caracterizaram-se
pelos seguintes elementos: I - tendência nacionalista, antiliberal e antioligárquica; II -
orientação econômica nacionalista e industrializante; III - composição social policlassis-
ta; IV - discurso nacionalista e anti-imperialista; V - ampliação da participação política
das massas e construção de uma cidadania que reconhecia o trabalhador como o sujeito
histórico; VI - institucionalização do movimento operário; VII - realização de reformas
sociais; VIII - presença de líderes carismáticos; IX - construção de um imaginário social
voltado para o controle social e X - articulação da conciliação de classes.

209
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

econômica mais próxima dos paradigmas da revolução nacionalista de 1952


do que do socialismo do século XXI.27
Apesar disso, inegavelmente, os quase 14 anos de gestão de Morales
alteraram substancialmente a Bolívia. E, justamente por isso, despertou o
ódio nos segmentos mais abastados da sociedade civil. A plurinacionalidade
estatal avalizada pela Constituição de 2009; o desenvolvimento de políticas
públicas destinadas à distribuição de renda e combate sistemático à pobre-
za28; a ocupação de instituições democráticas por indígenas e camponeses,
historicamente excluídos dos espaços de poder; e a divulgação das consígnas
da cosmovisão indígena, que propunham novas relações sociais e um trato
radicalmente distinto com o meio ambiente, como o suma qamaña, sumak

27 Acreditamos que esse evento foi um dos principais da história latino-americana na se-
gunda metade do século XX. Em abril de 1952, os sindicatos operários das minas e das
zonas urbanas iniciaram a revolução em aliança com os setores médios urbanos, indígenas
e camponeses. A plataforma política dos grupos revolucionários fundamentou-se na defesa
da democracia e da soberania nacional, sintetizadas na proposta de nacionalização da mi-
neração. A arena política era disputada, centralmente, por dois partidos: o Partido Obrero
Revolucinario (POR) e o Movimiento Nacionalista Revolucionário (MNR). Este advogava por
medidas reformistas nacionalistas, nos marcos do capitalismo, e aquele possuía orientações
trotkistas, algo singular pela influência no movimento de massas conquistado pelo partido.
O êxito operário em abril derivou na formação da Central Obrera Boliviana (COB) pelos
diversos sindicatos existentes no país. As consignas da revolução começaram a ser efeti-
vadas no primeiro governo de Victor Paz Estenssoro (1952-1956). Reivindicações operárias
e camponesas, como a nacionalização das minas e a realização da reforma agrária, foram
atendidas por esse governo e pelo seu sucessor, Hernán Siles Zuazo (1956-1960), contribuin-
do para a relevância dessa revolução para a história latino-americana (ANDRADE, 2007).
28 Quando Evo Morales assumiu a presidência, aproximadamente 60% da população en-
contrava-se na situação de pobreza. Em 2019, de acordo com o último Panorama Social
da CEPAL, esse índice girava em torno de 33,2% (CEPAL, 2019, P. 100). A distribuição de
renda para as parcelas mais pobres da população foi impulsionada pela criação de diversos
programas sociais, tais como: Renta Dignidad, Renta Solidaria, Bono Juana Azurduy, Bono
Juancito Pinto, Complemento Nutricional “Carmelo” y Subsidio Universal Prenatal “Por la
Vida”. Somados, eles atenderam em torno de 4,8 milhões de pessoas (de um total de 11,3 mi-
lhões), em 2018. Dois destes programas destacaram-se: o Bono Juancito Pinto, que benefi-
ciou naquele ano em torno de 2,2 milhões de crianças e a Renta Dignidad, que contemplou
aproximadamente 1,1 milhão de idosos. Ver: Informe Nacional Bolívia - Vigesimoquinto
aniversario de la Cuarta Conferencia Mundial sobre la Mujer y la aprobación de la De-
claración y Plataforma de Acción de Beijing (1995). Disponível em: https://www.cepal.org/
sites/default/files/informe_beijing25_bolivia_final.pdf Acesso: 03 de março de 2019. P. 19.

210
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

kawsay ou ñande reko, bem-viver nas línguas aymará, quéchua e guaranis


(ALBÓ, 2011, p. 137-141), se mostraram inadmissíveis para a elite boliviana.
Essa elite herdou do passado colonial traços culturais e identitários
que moldaram o seu agir político, a sua relação com os grupos sociais
subalternos e com as instituições estatais durante os quase dois séculos de
independência do país. Patrimonialismo, poder de mando, relações sociais
hierárquicas, discriminação racial, preconceito de gênero, machismo e
violência na relação com os considerados socialmente inferiores consistiram
em alguns desses aspectos que se perpetuaram na república boliviana, assim
como nas nações hispano-americanas e no Brasil, após as emancipações.
No objeto de nosso estudo, até a década de 1950, por exemplo, a exclusão
dos indígenas esteve institucionalizada, pois eles não tinham estatuto
de cidadão, algo que foi reconhecido somente após a revolução de 1952
(CABEZAS, 2007, p. 191-192).
Desse modo, embora possamos tecer críticas à gestão de Morales, não
negamos o simbolismo do seu governo. Julgamos que ocorreram contundentes
transformações políticas, culturais e sociais na nação andino-amazônica,
como refletimos ao longo do nosso ar.

Considerações Finais
Em razão dos acontecimentos ocorridos no último trimestre de
2019, julgamos a importância de examinarmos a recente história boliviana
para compreendermos as causas que viabilizaram a eleição de Evo Morales
em 2005 e a “revolução democrática e cultural”. Apesar das contradições
políticas e econômicas desse processo histórico, anteriormente refletidas,
houve uma série de transformações político-sociais e culturais que, defini-
tivamente, marcaram essa experiência governamental na história boliviana
e latino-americana.
Pela relevância desse processo histórico, optamos pela apreciação
da teoria neoliberal, pela verificação dos seus efeitos na América Latina
e na Bolívia e pelo estudo do ciclo rebelde entre 2000 e 2005, que levou o
primeiro indígena para o mais alto cargo do executivo do politicamente
pujante país andino-amazônico.

211
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Consideramos, a partir de uma análise preliminar, que os tradicionais


partidos políticos, empresários e setores da sociedade civil, sobretudo as
frações mais abastadas da classe média, que historicamente se opuseram a
plurinacionalidade do estado boliviano implementada em 2009 e ao governo
Morales, foram os protagonistas e articuladores da instabilidade política
após o 20 de outubro que desencadeou a ruptura institucional.
O incêndio pelos apoiadores do golpe da Whipala materializa o radical
descontentamento desses grupos com a gestão de Morales e suas bases sociais
indígenas-camponesas. A bandeira, símbolo dos povos indígenas bolivianos,
foi incorporada como emblema nacional pela plurinacional constituição
de 2009. Ao abrasá-las nas ruas, radicais grupos golpistas expressaram não
apenas o histórico racismo contra os autóctones. Um odioso revanchismo
contra o MAS e uma intolerante visão cristã de mundo também foram
aspectos bem evidentes naqueles tortuosos dias.

Referências
ANSALDI, Waldo y GIORDANO, Veronica. História de América Latina.
Madrid, Editora Dastin, 2006.
América Latina y el Caribe ante la pandemia del Covid. Disponível em: ht-
tps://www.cepal.org/es/publicaciones/45337-america-latina-caribe-la-pan-
demia-covid-19-efectos-economicos-sociales Acesso: 09 de abril de 2020.
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São Paulo,
Unesp, 2007.
Añez chama Evo de ‘covarde’ e diz que ‘Bíblia volta ao palácio’ na Bolí-
via. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noti-
cias/2019/11/13/anez-chama-evo-de-covarde-e-diz-que-biblia-volta-ao-pala-
cio-na-bolivia.htm?cmpid=copiaecola Acesso: 13 de novembro de 2019.
Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe (2019).
Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45000-balance-pre-
liminar-economias-america-latina-caribe-2019 Acesso: 10 de março de 2020.

212
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Bolivia: Decreto Supremo Nº 21060, 29 de agosto de 1985. Disponível em:


https://www.lexivox.org/norms/BO-DS-21060.html Acesso: 20 de fevereiro
de 2020.
CABEZAS, Marta. Caracterización del “ciclo rebelde” 2000-2005. IN: LÓ-
PEZ, Jesús Espasandín e TURRIÓN, Pablo Iglesias (orgs). Bolivia en Mo-
vimiento - Acción colectiva y poder político. Madri, El Viejo Topo, 2007.
CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 2007, 10º
Edição.
CHAVES, Daniel. Autonomias: Bolívia no Tempo Presente. Rio de Janeiro,
2010, 1ª Edição.
DOMINGUES, José Maurício, GUIMARÃES, Alice Soares, MOTA, Aurea
e SILVA, Fabricio Pereira da (orgs). A Bolívia no Espelho do Futuro. Belo
Horizonte e Rio de Janeiro, UFMG e IUPERJ, 2009.
CONZELMAN, Caroline S. El movimiento cocalero en los Yungas de Bolí-
via: diferenciación ideológica, económica y política. IN: ROBINS, Nicholas
A (Editor). Conflictos políticos y movimientos sociales en Bolívia. La Paz,
Plural Editores, 2006.
Elecciones Generales 2002. Disponível em: https://atlaselectoral.oep.org.
bo/#/sub_proceso/58/1/1/graficos acesso: 20 de março de 2020.
Elleciones 2020: el MAS le saca un 15% de ventaja a Carlos Mesa. Disponível
em: https://eldeber.com.bo/169559_encuesta-elecciones-2020-el-mas-le-sa-
ca-un-15-de-ventaja-a-carlos-mesa Acesso: 10 de maio de 2020.
GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo,
Edições Loyola, 2008.
HOSIASSON, Laura Janina. Nação e Imaginação na Guerra do Pacífico.
São Paulo, Edusp, 2011.
Informais vivem drama na América Latina. O Globo, 09/04/2020. P. 11.
Informe Corporación LatinoBarómetro, 2018. P. 35. Disponível em: http://
www.latinobarometro.org/lat.jsp Acesso: 10 de dezembro de 2018.

213
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Informe Corporación LatinoBarómetro. P. 5-13. Disponível em: http://


www.latinobarometro.org/documentos/LATBD_INFORME_LB_2013.pdf
Acesso: 10 de dezembro de 2013.
Informe Nacional Bolívia - Vigesimoquinto aniversario de la Cuarta Con-
ferencia Mundial sobre la Mujer y la aprobación de la Declaración y Plata-
forma de Acción de Beijing (1995). Disponível em: https://www.cepal.org/
sites/default/files/informe_beijing25_bolivia_final.pdf Acesso: 03 de março
de 2019. P. 19.
LÓPEZ, Jesús Espasandín. El laberinto de la subalternidad. Colonialidad
del poder, estructuras de exclusión y movimientos indígenas en Bolivia. IN:
IN: LÓPEZ, Jesús Espasandín e TURRIÓN, Pablo Iglesias (orgs). Bolivia
en Movimiento - Acción colectiva y poder político. Madri, El Viejo Topo,
2007.
O que está por trás do sucesso econômico da Bolívia na era Evo Morales?
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50088340
acesso: 12 de novembro d 2019.
Observatorio de la OIT: El Covid-19 y el mundo del trabajo. Tercera Edi-
ción. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgre-
ports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_743154.pdf Acesso 07 de
maio de 2020
OSTRIA, Gustavo Rodríguez. Los Mineros de Bolívia en una perspectiva
histórica. Disponível em: http://convergencia.uaemex.mx/rev24/Rodriguez.
pdf. Acesso 15. Jul. 2007.
Panorama Social de América Latina (2019). P. 97. Disponível em: https://
www.cepal.org/pt-br/publicaciones/45090-panorama-social-america-lati-
na-2019-resumo-executivo Acesso: 15 de março de 2020.
PEREIRA DA SILVA, Fabrício. O Fim da Onda Rosa e o Neogolpismo na
América Latina. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 4, n. 2, 2018,
PP. 165-170.
PINTO, Darwin e NAVIA, Roberto. ...Um tal Evo. Santa Cruz de la Sierra.
Editorial El País, 2007.

214
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PITTARI, Salvador Romero. Bolívia: Democracia, ajuste economico y nue-


va orden internacional. IN: GAITAN, Pilar PEÑARANDA, Ricardo e PI-
ZARRO, Eduardo (Compiladores). Democracia y reestruturacion econo-
mica en América Latina. Universidad Nacional de Colombia, 1996.
STEFANONI, Pablo. Prefácio. In LINERA, Álvaro Garcia. A potência ple-
beia - Ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolí-
via. São Paulo, Boitempo, 2010.
Quem é Luis Fernando Camacho, o ‘Bolsonaro boliviano’ que despontou
em meio à renúncia de Evo. Disponível em: bbc.com/portuguese/interna-
cional-50354666 Acesso: 15 de novembro de 2019.
Referéndum Vinculante Sobre La Política Energética Del País 2004. Dis-
ponível em: https://atlaselectoral.oep.org.bo/#/sub_proceso/74/1/1/graficos
Acesso: 20 de março de 2020.
Reglamento a la Ley 1008 Sobre Régimen de las Coca y Sustancias Contro-
ladas DS Nº 22099 de 28 de Diciembre de 1988. Disponível em: http://www.
dgsc.gob.bo/normativa/decretos/DS22099-88.html Acesso: 20 de fevereiro
de 2020.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cul-
tura política nacional-estatista. IN: REIS FILHO, Daniel Aarão, RIDENTI,
Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil. Rio
de Janeiro, Zahar, 2014, 1ª Edição.
SIMARRO, Ricardo Molero e ANTOLÍN, Maria José Paz. Entre la recu-
peración de la soberanía y la reprodución de los modelos productivo y dis-
tributivo. Las políticas del MAS en Bolívia, 2006-2011. IN: GARCIA, Luís
Buendía e outros. ¿Alternativas al neoliberalismo en América Latina? Ma-
drid, Fondo de Cultura Económica, 2013.
STEFANONI, Pablo e ALTO, Hervé do. Evo Morales de la Coca al Palacio.
Editora Malatesta, La Paz (Bolívia), 1ºEdição, 2006.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Corpo e Negacionismo: a Novi-
lingua do Fascismo na Nova República, Brasil 2013/2019. Locus: Revista de
História, Juiz de Fora, V. 25, nº 2, P. 307-332, Jul/Dez, 2019.

215
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

URQUIDI, Vivian. Movimento Cocaleiro da Bolívia. São Paulo, Editora


Hucitec, 2007.
VARA, Ana Maria. Sangre que se nos va. Naturaleza, literatura y protesta
social en América Latina. Sevilla, CSIC, 2013.
WAINER, Luis. Posneoliberalismo y antiimperialismo en la primera etapa
de proceso chavista. IN: KOZEL, Andrés, GROSSI, Florencia y MORONI,
Delfina (coord). El imaginario antiimperialista en América Latina. Buenos
Aires, Ediciones del Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini/
CLACSO, 2015.
WILLIAMSON, Edwin. História da América Latina. Lisboa, Edições 70,
2016, 2ª Edição.

216
DEMOCRACIA E NEOLIBERALISMO NO MÉXICO
E BRASIL: AS CRISES DO FINAL DO SÉCULO XX1
Ricardo Neves Streich2

Introdução
O presente artigo é parte de pesquisa de doutorado intitulada “Entre
a economia e a política: a história das estratégias de desenvolvimento em
México e Brasil (2000-2013)” realizada no âmbito do Programa de Pós-
graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. A escolha
dos países – tanto no âmbito da pesquisa de doutoramento quanto no
escopo do presente trabalho – se justifica pelo fato de Brasil e México serem,
respectivamente, as duas maiores economias do continente latino-americano.
Ademais, no alvorecer dos anos 2000, os eleitores de ambos os países deram
vitórias nas eleições presidenciais a candidatos dos principais partidos de
oposição da década anterior. As vitórias de Vicente Fox do Partido Acción
Nacional (PAN), no México em 2000, e de Luiz Inácio Lula da Silva do Partido
dos Trabalhadores (PT), no Brasil em 2002, são resultantes da conjuntura
de crises políticas e econômicas que ambos países atravessavam à época.
Como será demonstrado ao longo deste trabalho, estas crises também se
relacionam aos processos de implementação/consolidação do neoliberalismo
na América Latina. Contudo, é imperativo evitar explicações economicistas,
as quais reduzem à dimensão econômica a explicação das vitórias eleitorais
da oposição tratadas aqui.
Desta forma, é interessante observar que, embora possuíssem
discursos diametralmente opostos, Fox e Lula chegaram ao poder sob a
bandeira da “novidade” e da “renovação”, especialmente no que diz respeito
ao papel do Estado no desenvolvimento econômico. Vicente Fox defendia
uma perspectiva de tonalidade mais liberal, no sentido de que a redução
do tamanho do Estado minimizaria a corrupção e, por isto, possibilitaria o
1 Este texto é uma versão expandida e atualizada do artigo “Notas sobre as dinâmicas dos
sistemas de governo de Brasil e México nos anos 1990” apresentada no XXX Simpósio
Nacional de História no âmbito do Simpósio Temático “Estado, democracia e movimen-
tos sociais no mundo contemporâneo”.
2 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo e bolsista FAPESP
(número do processo 2017/17481-2). Email: ricardostreich@protonmail.com

217
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

desenvolvimento econômico e social mexicano. Lula, por sua vez, prospectava


uma posição mais intervencionista, segunda a qual ao Estado caberia o papel
de ativamente estimular o desenvolvimento econômico.
A explicação para o fato de que a “bandeira da novidade” assumiu
conteúdos tão distintos nas duas maiores economias do continente latino-
-americano reside fundamentalmente nas diferenças dos arranjos políticos
que vigoravam nos dois países durante os anos 1990. Por isto, o objetivo do
presente artigo é o de comparar os arranjos dos sistemas políticos vigentes
na década de 1990 em México e Brasil. A comparação reside, então, na
análise na dinâmica entre os poderes Executivos e Legislativo, a partir de
bibliografia especializada sobre o tema, e será operacionalizada em quatro
partes. A primeira, esta breve introdução, na qual está situada o problema;
a segunda, intitulada “A ‘ditadura perfeita’ ou a democracia à mexicana”,
que contempla a discussão sobre o México; a terceira – “Problemas da
fragmentação política no Brasil: o peemedebismo” – na qual se discute o
Brasil; a quarta, e última, denominada “Considerações finais: transições
democráticas, neoliberalismo e a crise da ‘gestão do privilégio’” operacio-
naliza a comparação propriamente dita, com intuito de explicar por que
políticos de matrizes ideológicas tão diferentes foram capazes de colocar
com portadores da “novidade” em seus respectivos contextos.

A “ditadura perfeita” ou a democracia à mexicana 


Em setembro de 1990, o escritor peruano Mario Vargas Llosa – em
um debate televisivo com o intelectual mexicano Octavio Paz – sentenciou
que o sistema político mexicano poderia ser caracterizado como a “ditadura
perfeita”. Vargas Llosa sustentava sua posição dizendo que o “[México]
possui as características de uma ditadura: a permanência, não de um
homem, mas sim de um partido. E de um partido que é imóvel”(EL PAIS,
1990, tradução minha).
A “perfeição” aludida pelo escritor peruano refere-se ao fato de
que o México não experimentou um regime de ditadura militar durante
o século XX. Neste sentido, a centralidade de um partido civil – o Partido
Revolucionario Institucional (PRI) –, e não de um ditador, seria o elemento
característico da “perfeição” desta “ditadura”. Afinal, a adesão (ou aceitação)

218
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

da maioria da população tornava desnecessário o governo pela força tal qual


a maior dos países latino-americanos no século passado3.
O PRI foi fundado em 1929 – com o nome de Partido Nacional
Revolucionario (PNR) – e sofreu as primeiras derrotas em eleições majo-
ritárias apenas em 1989 (nível estadual) e 2000 (nível federal). A força e a
centralidade que o PRI exerceu na arena política mexicana remontam às
origens do partido. O PRI foi organizado como espaço de aglutinação política
das lideranças militares que saíram vitoriosas do processo revolucionário
mexicano, com intuito de “domesticar” as divergências entre os caudilhos
e, assim, evitar novos derramamentos de sangue4.
Na década seguinte, sob a liderança do então presidente da república
Lázaro Cárdenas o Partido Nacional Revolucionario mudou de nome para
Partido de la Revolución Mexicana (PRM). A mudança resulta dos conflitos
entre Cárdenas e a primeira geração do partido, especialmente seu funda-
dor – Plutarco Elías Calles. Com intuito de minimizar a força política de
Calles, Cárdenas incorporou ao partido as confederações dos trabalhadores
urbanos e rurais, o que lhe garantiu o apoio de alas mais tradicionais do
PNR, especialmente os militares e a burocracia. Desta forma, angariou
forças para vencer politicamente os veteranos e, de modo a assinalar a nova
direção, acabou por mudar o nome do partido.
No contexto de crise do liberalismo dos anos 1930, Cárdenas adotou
a estratégia de resgatar as bandeiras revolucionárias, especialmente a
distribuição de terras e a luta anti-imperialista. Sua força política permitiu,
por exemplo, a nacionalização das empresas petrolíferas estadunidenses e

3 Isto não significa dizer que o chamado “terrorismo de Estado” não existiu no México.
Tome-se, por exemplo, o episódio do massacre de Tlalteloco, no qual centenas de estu-
dantes que protestavam contra a realização dos jogos olímpicos na Cidade do México em
1968 foram massacrados pelo exército. Recentemente, a historiografia tem se debruçado
sobre o papel da violência política no domínio priista na segunda metade do século XX.
Veja-se por exemplo o trabalho de Azucena Citlalli Jaso Galván (2016).
4 Para se ter ideia do grau de violência do processo revolucionário mexicano iniciado em
1910, basta dizer que o primeiro presidente que terminou seu mandato sem ser assassina-
do por razões políticas foi Plutarco Elías Calles – justamente o fundador do PNR – em
1928. Para mais detalhes do problema da articulação política entre os caudilhos militar-
mente vitoriosos ver a obra de Marván Laborde (2010).

219
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

medidas polêmicas, tal qual o acolhimento do pedido de asilo político de


Leon Trotsky em 1936 (Cf. MEYER, 2010, p.30-36).
O mundo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial – e note-se
que o México lutou ao lado dos Aliados – não permitia uma retórica de
enfrentamento como a de Cárdenas. Por isso, em 1946 uma vez mais o partido
mudou de nome, agora para o que até hoje vigora: Partido Revolucionario
Institucional (PRI). A formulação da doutrina da “revolução institucional”
– uma contradição em termos – buscava dar continuidade à dinâmica
cardenista no âmbito da política interna ao mesmo tempo em que despia
de sua retórica, muitas vezes próxima ao socialismo. Neste sentido, como
sintetiza Soledad Loaeza:
Desde o início, o PRI foi um apoio muito importante para
o Estado. Primeiro, porque os setores operário e camponês
simbolizavam a continuidade entre o movimento revolucio-
nário de 1910 e os governos que a partir de 1946 prometiam
modernização. Segundo, porque o PRI também era um ca-
nal de comunicação entre os grupos populares e a presidên-
cia da república. Em muito pouco tempo, porém, foi de-
monstrado que o partido era acima de tudo um instrumento
para controlar a participação. Daí que após sua fundação,
reduziram-se os conflitos eleitorais e também diminuíram
consideravelmente as greves industriais e as disputas agrá-
rias. A fundação do PRI e a eleição de Miguel Alemán em
1946 representaram a consolidação do domínio civil sobre a
política. Eles assumiram a tarefa de transformar o país. Suas
armas seriam instituições. O exército foi excluído da luta
política e tornou-se garantidor da continuidade do Estado.
Essa mudança explica em parte a estabilidade da época, bem
como a diferença entre a experiência mexicana e a de outros
países latino-americanos que sofreram golpes de estado e
ditaduras militares nesses mesmos anos (LOAEZA, 2009, p.
204-205, tradução minha).

A fórmula desenvolvida por Cárdenas – e aprimorada pela doutrina


da “revolução institucional” – consistia em incorporar os conflitos sociais
ao Estado. Desta forma, o Estado se tornava o árbitro destas questões,
em uma dinâmica na qual havia alguma participação popular, ainda que
controlada. A contrapartida para o atendimento das demandas era de que

220
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

as centrais de representação populares atuassem para a legitimação do PRI.


Por isso, na fórmula proposta por Lorenzo Meyer (1995, p. 112), Estado e
partido acabavam por se confundir, de modo que o PRI era um “partido
do governo e não no governo”.
O partido de governo pode, então, fazer o México se aproveitar
da chamada “fase de ouro” do capitalismo. Segundo Carlos Tello, entre
1954 e 1970, o PIB per capita cresceu em média 3,4% ao ano em termos
reais (descontada a inflação). Ademais, a estabilidade econômica pode
ser atestado no fato de que entre 1954 e 1976, a taxa de câmbio do país foi
constante (TELLO, 2014, p. 360). O “milagre mexicano” ficou conhecido
como “desarrollo estabilizador”, como o próprio nome indica, havia uma
dialética entre crescimento econômico e estabilidade política, ainda que
o custo do processo fosse o déficit democrático característico do sistema
político mexicano.
Contudo, na virada para os anos 1970 eram perceptíveis os primeiros
indícios da crise do sistema político mexicano. Neste sentido, além de grupos
guerrilheiros que buscavam combater militarmente o regime mexicano, é
emblemático o massacre ocorrido na Praça de Tlalteloco em 1968. Na ocasião,
milhares de estudantes protestavam contra a realização dos jogos olímpicos
na Cidade do México quando foram alvejados, inclusive de helicópteros,
por atiradores do exército5.
A fissura do “desarrollo estabilizador” se completaria na década se-
guinte. Em meados dos anos de 1970, as mudanças no mercado internacional
(especialmente no que diz respeito à oferta de crédito e aos choques do
petróleo) diminuíram o ritmo de crescimento da economia mexicana. A
piora da economia amplificou as demandas por democracia, como se pode
perceber no processo eleitoral de 1976, vencido por José López Portillo.

5 O episódio é indicativo do grau de repressão presente no sistema político capitaneado


pelo PRI. Afinal, os protestos que não estivessem sob controle do partido, estavam sujei-
tos a duras medidas repressivas. Embora oficialmente sejam reconhecidas 44 mortes, os
trabalhos historiográficos e memorialísticos sobre o assunto estimam muitos mais. Vale
apontar, ainda, que esforços governamentais em silenciar os relatos e censurar notícias
sobre o ocorrido ainda hoje dificultam o trabalho dos historiadores que se debruçaram
sobre o assunto. Sobre memórias, e suas disputas, do triste episódio ver o clássico livro de
Elena Poniatowska (1971) e o artigo de Lívia Gonçalves Magalhães (2018).

221
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Portillo havia sido candidato único, já que o tradicional partido


de oposição Partido Acción Nacional (PAN) havia decidido não lançar
candidato. A crise de legitimidade de uma campanha de candidato único
foi aumentada com a estratégia do líder comunista Valentín Campa em se
lançar candidato sem o registro eleitoral. Dessa forma, os quase um milhão
de votos obtidos por Campa foram considerados nulos, o que acabou por
aumentar o desgaste político do sistema priista.
Em 1977, ocorreu a primeira de uma série de reformas eleitorais que
buscavam ampliar a representação da oposição no poder político mexicano,
especialmente no legislativo. Este processo é conhecido por “transição à
democracia” (Cf. MÉNDEZ DE HOYOS, 2006). Como demonstra Irma
Méndez de Hoyos (2003, p. 173), as primeiras reformas eleitorais ocorridas
nos anos 1970 e 1980 consistiam em medidas como a facilidade de obtenção
do registro partidário e a anistia aos perseguidos políticos (comunistas e
grupos que haviam pegado em armas). Estas medidas efetivamente ampliaram
o espaço institucional da oposição. Contudo, com intuito de tutelar o
processo de “transição à democracia”, o PRI realizava um “jogo duplo”. Ao
mesmo tempo em que permitia uma maior participação institucional da
oposição, o PRI aprovava medidas que buscavam diluir o peso do espaço
recém-conquistado pela oposição. Um exemplo deste último tipo de medida
foi a reforma política de 1977 que aumentou o número de deputados na
câmara baixa de 186 para 400. Neste sentido, o aumento do número de
deputados permitiu “acomodar” e dar algum espaço legislativo à oposição
sem que isso significasse a perda do controle e da hegemonia priista.
O desejo de ampliação democrática se acelerou em meados dos anos
1980. Neste sentido, o triste episódio do terremoto que atingiu a Cidade
do México, em setembro de 1985, foi um fator determinante para acelerar
o ritmo da “transição democrática”. A insuficiente resposta do governo no
processo de acolhimento às vítimas do terremoto impulsionou a organização
da sociedade civil e intensificou o desgaste do sistema priista (Cf. LEAL
MARTÍNEZ, 2014, p. 441-469). A construção de uma mobilização da socie-
dade civil por fora do “partido do governo” acarretaria uma cisão à esquerda
no PRI. O neto de Lázaro Cárdenas, Cuauhtémoc Cárdenas, rompeu com o
partido e no pleito de 1988 saiu candidato pela Frente Democrático Nacional.

222
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Pela primeira vez na história, o PRI – na figura de Carlos Salinas


de Gortari – enfrentou um concorrente com reais chances de vitória. O
discurso de Cárdenas buscava apresentar a transparência democrática como
resposta ao contexto de crise política e econômica pelo país. Contudo, as
eleições acabaram sendo fraudadas, conforme atesta o historiador Enrique
Krauze (2013, p. 451):
Quando os primeiros dados chegaram aos escritórios do go-
verno em Bucareli, os resultados a favor de Cárdenas foram
tão alarmantes que o sistema [político mexicano] decidiu
inventar uma falha técnica para ganhar tempo, manipular
as eleições eletronicamente, reverter a tendência e dar a vi-
tória a Salinas. O próprio sistema chamou a falha – com
humor involuntário, com justiça poética – de “a queda do
sistema”. Referiam-se, é claro, ao sistema de computadores,
mas o cidadão comum entendeu que o que havia caído era
o outro, o real, o presidencialismo mexicano.

A “queda do sistema” ainda levaria mais de uma década para se


completar. Contudo, já nos anos 1990 ocorreram novas reformas eleitorais,
com espírito bastante distinto das realizadas na década de 1980:
A reforma de 1994 constituiu o primeiro passo definitivo
no desmantelamento do controle governamental dos ór-
gãos eleitorais. Essa reforma aumentou o grau de cidadania
da mais alta autoridade eleitoral e limitou a intervenção
dos partidos nela. A isto se agregou uma série de medidas e
acordos importantes que permitiram a organização pacífica
das eleições de 1994. Essa reforma foi superada apenas pela
de 1996, que marcou o início da total independência dos
órgãos eleitorais em relação ao Poder Executivo, bem como
a melhoria geral das condições de concorrência (MÉNDEZ
DE HOYO, 2003, p. 151).

A transparência e a competitividade proporcionadas pela indepen-


dência dos órgãos de controle eleitoral podem ser atestadas pelo fato de
que na eleição federal de 1997 pela primeira vez nenhum partido conseguiu
maioria na câmara baixa. A situação inédita acabou por obrigar o presidente
Ernesto Zedillo (eleito em 1994, foi o primeiro presidente do PRI a vencer

223
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

uma eleição com menos da metade dos votos válidos) a fazer um governo
de coalizão.
Por fim, a dominação priista sobre o político mexicano teria sua
derrocada com a vitória de Vicente Fox do Partido Acción Nacional – tradicio-
nal oposição ao PRI. A vitória de Fox e o resultado das eleições legislativas
de 2003 moldaram o arranjo político que vigora no México até os dias
de hoje. Trata-se de um sistema tripartite, em que PRI e PAN convivem
com uma terceira força de esquerda, que oscila entre momentos de menor
representação (como na eleição legislativa de 2009, em que conseguiu apenas
15% dos deputados) ou de maior representação (como a vitória de López
Obrador em 2018).

Problemas da fragmentação política no Brasil:


o “peemedebismo”
Entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado por militares. Em termos
políticos, a ditadura brasileira se esforçou por criar um ambiente de aparente
normalidade institucional, fundamentada na alternância de presidentes
(escolhidos por via indireta) e principalmente no funcionamento do
Congresso Nacional (com limitações nas suas funções) na maior parte do
tempo. Neste sentido, o regime permitiu o funcionamento de dois partidos:
o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – aglutinador da oposição – e
a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – partido da situação.
Já em meados da década de 1970, o regime militar brasileiro expe-
rimentava um descontentamento político. A insatisfação ao regime, em
contexto de forte censura, foi expressa em alguns episódios célebres que
transformaram atos cotidianos – por exemplo, as celebrações religiosas por
conta das mortes de Alexandre Vanucchi Leme (1973) e Vlaidimir Herzog
(1975) e o enterro de Juscelino Kubitischek (1976) – em críticas aos arbítrios,
à tortura e à censura promovidos pelo governo militar. De um ponto de
vista quantitativo, a insatisfação relativa ao regime pôde ser constatada no
crescimento do MDB nas eleições parlamentares de 1974, quando elegeu 335
deputados estaduais, 160 deputados federais e 16 senadores (O ESTADO
DE SÃO PAULO, 1974).

224
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Por estas razões, o General Ernesto Geisel, que ocupou a presidência


da república entre 1974 e 1979, anunciou sua intenção em promover um
processo de abertura – “distensão”, na sua célebre expressão – , conforme
ele mesmo atestou em discurso de agosto de 1974:
Prosseguirá o Governo na missão que lhe cabe de promover
para toda a nação o máximo de desenvolvimento possível
com o mínimo de segurança indispensável. E deseja, mes-
mo, empenhando-se o mais possível para isso, que esta exi-
gência de segurança venha gradativamente a reduzir-se. Er-
ram os que pensam que podem apressar este processo pelo
jogo de pressões manipuladas sobre a opinião pública […].
Tais pressões só servem para provocar contrapressões […]
invertendo-se o processo de lenta, gradativa e segura distensão,
desejado pelo Executivo (O GLOBO, 1974, grifo meu).

O caráter “lento, gradativo e seguro” da “distensão” deve ser com-


preendido como a disposição dos militares em protagonizar o processo de
abertura política, impedindo, desta forma, o estabelecimento de qualquer
tipo de “justiça de transição”. Contudo, o reconhecimento deste caráter
“negociado” da transição democrática não deve ser confundido com qualquer
espécie de passividade da sociedade civil. As medidas de “distensão” – es-
pecialmente a restrição da censura prévia e anistia política – permitiram,
ao mesmo tempo que alimentaram, a atuação da oposição também na
sociedade civil. Destacaram-se neste período a atuação da Igreja Católica,
o movimento estudantil e as greves operárias6.
No alvorecer dos anos 1980, a oposição à ditadura militar era
bastante ampla e contemplava diversas perspectivas ideológicas. Nesse
sentido, embora houvesse um acordo mínimo – a necessidade de eleições
diretas –, o conteúdo dessa democracia ainda não estava em discussão.
Desta forma, é importante salientar que após o fim do bipartidarismo,
em 1979, o sistema político brasileiro, ao contrário dos nossos vizinhos do
Cone Sul, não foi apenas reorganizado, mas reformulado. Afinal, as diversas

6 Um panorama das contradições e ambiguidades que marcaram o regime militar brasi-


leiro pode ser encontrado na obra de Napolitano (2014). Sobre temas específicos ligados
ao caráter “negociado” e as ambiguidades do processo de transição à democracia, pode-
mos citar o papel da imprensa (AQUINO, 1999), os mecanismos e a estrutura da censura
(HEREDIA, 2015), a emergência dos “novos personagens” (SADER, 2001).

225
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

correntes de oposição à ditadura militar agora se encontravam livres para


buscar sua representação política e institucional (Cf. FERREIRA; BATISTA;
STABILE, 2008, p. 433) A aglutinação de perspectivas ideológicas muitas
vezes diametralmente opostas entre si, acarretou diversas contradições.
Neste sentido, como atesta Marcos Napolitano:
Todas as transições de regimes autoritários da história re-
cente da América e da Europa mediterrânea foram marcadas
por uma combinação de incertezas e esperanças. Nas tran-
sições, mesmo aquelas tuteladas pelo regime vigente, como
no Brasil, as regras se afrouxam e o jogo político fica aberto.
São momentos em que se buscam novos limites para os valo-
res democráticos, procurando caminhos para o day after das
ditaduras. Mas é justamente essa busca por uma democracia
renovada por parte dos movimentos sociais e políticos mais
à esquerda, para além dos princípios formais e jurídicos de
igualdade, aliada à imprevisibilidade do processo político,
que faz com que liberais conservadores e moderados nego-
ciem com os autoritários no poder. Mas naquele início de
1979, essa aproximação ainda não estava dada. Ao contrá-
rio, nos dois anos seguintes, tudo pressagiava que o regime
autoritário não aguentaria a pressão de uma sociedade que,
contra sua própria história, parecia aderir em bloco a uma
democracia que combinasse amplo direito ao voto com jus-
tiça social. A oposição crescia, ocupando ruas, circuitos ar-
tístico-culturais, variadas formas associativas e espaços ins-
titucionais. Mas o regime estava longe de ser “derrubado”,
como sonhavam os setores oposicionistas mais contundentes
(NAPOLITANO, 2014, p. 160).

A opção “negociada” acabou por prevalecer – especialmente após


a proposta de emenda constitucional Dante de Oliveira, a qual tinha por
objetivo estabelecer eleições diretas para a presidência da república – e o
Colégio Eleitoral elegeu indiretamente o Tancredo Neves (MDB), em 1985.
Contudo, ele faleceu antes de tomar posse. Assim, o primeiro civil a governar
o país após duas décadas de governos militares foi o vice José Sarney do
Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência da ARENA.
O governo Sarney teve como principais características as polêmicas
tentativas de enfrentar a inflação e a convocação da Assembleia Nacional
Constituinte, afinal o florescer de uma democracia exigia uma nova

226
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Constituição. O processo constituinte foi marcado pelas disputas ideológicas


entre os grupos que outrora estavam aglutinados na luta contra a ditadura
militar. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso diz que:
a euforia saudável euforia de recuperação das liberdades
públicas, a constituinte foi um notável exercício de par-
ticipação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter
democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para to-
dos os setores organizados e grupos de interesse fez com
que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindi-
cações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas,
cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado
e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses
múltiplos e a ausência de um anteprojeto geraram um pro-
duto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de
prevalência do interesse público oscilantes entre extremos.
Um texto que, mais do que analítico, era casuístico, prolixo
e corporativo. [..]. Outra circunstância que merece ser as-
sinalada é a do contexto histórico em que se desenrolaram
os trabalhos constituintes. Após muitos anos de repressão
política, formaram-se inúmeros partidos políticos de ins-
piração comunista, socialista, trabalhista e social-democra-
ta. Mais organizados e aguerridos, os parlamentares dessas
agremiações predominaram amplamente nos trabalhos das
comissões, até a reação, de última hora, das forças de centro
e de direita. Ainda assim, o texto aprovado reservava para
o Estado o papel de protagonista em áreas diversas, com
restrições à iniciativa privada e, sobretudo, ao capital es-
trangeiro, aí incluídos os investimentos de risco. Pois bem:
um ano após a promulgação da Constituição, caiu o muro
de Berlim e começaram a desmoronar os regimes que prati-
cavam o socialismo real. Simultaneamente, a globalização,
com a interconexão entre os mercados e a livre circulação
de capitais, impôs-se como uma realidade inelutável. Pelo
mundo afora, ruíam os pressupostos estatizantes e naciona-
listas que inspiraram parte das disposições da Constituição
brasileira (BARROSO, 2008, p. 66)

O caráter contraditório da nascente democracia brasileira se acen-


tuaria com a vitória de Fernando Collor de Mello (Partido da Reconstrução
Nacional – PRN) nas eleições presidenciais de 1989, as primeiras diretas
ocorridas após o regime militar. Collor foi eleito com um discurso de forte

227
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

tonalidade liberal, que ia de encontro ao espírito da Carta de 1988, conhecida


como “Constituição Cidadã”, em função da garantia dos mais diversos diretos
sociais. A contradição é resultado da dinâmica de articulação dos diversos
setores que lutaram contra a ditadura militar. O “acordo mínimo” sobre a
necessidade de eleições diretas não contemplava o conteúdo da nascente
democracia. Desta forma, nenhum dos grupos protagonistas da oposição à
ditadura era forte o suficiente para construir/impor sua hegemonia7.
Poder-se-ia, então, argumentar que o sistema político brasileiro se
desenvolveu nos sentido de estabelecer uma polarização entre PSDB e PT.
Afinal, os dois partidos ocuparam as duas primeiras posições em todas as
eleições majoritárias nacionais de 1994 a 2014. Contudo, a fragmentação
partidária impediu que as vitórias eleitorais nas eleições majoritárias se
transformassem em hegemonia em termos de representação legislativa.
Para efeitos de registro, o número de partidos com representação
congressual na década de 1990 oscilou entre 20 (1994) e 21 (1998). Nas décadas
posteriores, assistiu-se uma tendência de acentuação da fragmentação, de
modo que em 2018 o número de partidos chegou a 30 (DIAP, 2019, p. 6).
A fragmentação política – se não estimulada, ao menos consentida pela
Constituição de 1988 – do legislativo tem imposto diversos desafios à
democracia brasileira. Nesse sentido, o clássico ensaio de Sérgio Abranches
assim define o arranjo presidencialista que emergiu da Constituição de 1988:
o Brasil é o único país que, além de combinar a proporcio-
nalidade, o multipartidarismo e o “presidencialismo impe-
rial”, organiza o Executivo com base em grandes coalizões.
A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasi-
leira chamarei, à falta de melhor nome, “presidencialismo
de coalizão”, distinguindo-o dos regimes da Áustria e da
Finlândia (e a França gaullista), tecnicamente parlamenta-

7 Ademais, podemos dizer que a “vontade de democracia” foi um dos elementos basilares
do processo constituinte. Afinal, quase nenhuma restrição à fundação, funcionamento
e acesso a recursos públicos foi imposto aos partidos. A primeira lei (artigo 13 da lei
9.096/95) no sentido de condicionar o acesso de um partido a recursos públicos (tempo
de televisão e fundo partidário, por exemplo) – “cláusula de barreira” – foi aprovada
apenas em 1995, com efeitos na eleição de 2006. A referida lei não chegou a ser aplicada,
pois foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2006. Apenas em
2015 (lei 13.165/15) o Congresso brasileiro aprovou a lei de “cláusula de barreira” que se
encontra em vigor.

228
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

res, mas que poderiam ser denominados de “presidencialis-


mo de gabinete” (uma não menos canhestra denominação,
formada por analogia com o termo inglês cabinet govern-
ment). (ABRANCHES, 1988: p. 21-22)

A organização do Executivo com base em grandes coalizões impõe


ao presidente da república diversos desafios. O maior destes desafios é a
manutenção da maioria parlamentar, a qual se tornou condição sine qua
non para o exercício do governo, é o maior deles. Desta forma:
em formações de maior heterogeneidade e conflito, aquela
estratégia é insuficiente ou inviável. Nestes casos, a solução
mais provável é a grande coalizão, que inclui maior número
de parceiros e admite maior diversidade ideológica. Evi-
dentemente, a probabilidade de instabilidade e a comple-
xidade das negociações são muito maiores. Estes contextos,
de mais elevada divisão econômica, social e política, carac-
terizam-se pela presença de forças centrífugas persistentes
e vigorosas, que estimulam a fragmentação e a polarização.
Requerem, portanto, para resolução de conflitos e forma-
ção de “consensos parciais”, mecanismos e procedimentos
institucionais complementares ao arcabouço representati-
vo da liberal-democracia. (ABRANCHES, 1988, p.27)

Na Nova República, a formação de “consensos parciais”, o estabe-


lecimento de “procedimentos institucionais complementares ao arcabouço
representativo da liberal-democracia” e a “maior diversidade ideológica” se
traduziram em uma relativa blindagem do sistema político ante as aspirações
de expansão democrática presentes na sociedade civil. Esta “autonomia”
do sistema político se alimentou discursivamente das “aspirações demo-
cráticas” da sociedade civil e acabou por não estabelecer nenhuma forma
de exigência para a fundação de partidos e o acesso aos recursos públicos.
Paradoxalmente, a liberdade de fundar partidos não se traduziu em um
aumento da participação institucional da sociedade civil, pois acabou por
erigir um sistema político que tem privilegiado os caciques políticos regionais.
Um prenúncio destas questões já podia ser vista no próprio processo
constituinte. A articulação do chamado “centrão”, bloco organizado pelos
setores mais conservadores com objetivo de barrar propostas de cunho
social na Carta. Contudo, não se pode dizer que o “centrão” foi um grupo

229
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

homogêneo, já que a unidade de ação contra os setores progressistas não


se traduziu em uma unidade programática. O arranjo político decorrente
da vitoriosa articulação do “centrão” consiste em negociatas, cujos termos
de troca são fundamentalmente a possibilidade de bloquear e impedir
transformações sociais e políticas de cunho progressista (Cf. FREITAS;
MOURA; MEDEIROS, 2009, p. 4).
Desta forma, o exercício do poder pelo veto se tornou o elemento
mais característico da Nova República. O filósofo político Marcos Nobre
denomina esta cultura política de “peemedebismo”. Vale apontar que a alusão
ao PMDB no conceito de Nobre indica apenas o protagonismo – e não a
exclusividade – do referido partido nesta forma de fazer política. Segundo
o filósofo, o peemedebismo tem cinco características fundamentais:
o governismo (estar sempre no governo, seja qual for ele
e seja qual for o partido a que se pertença); a produção de
supermaiorias legislativas, que se expressam na formação
de um enorme bloco de apoio parlamentar ao governo que,
pelo menos formalmente, deve garantir a “governabilida-
de”; funciona segundo um sistema hierarquizado de vetos e
de contorno de vetos; fazer todo o possível para impedir a
entrada de novos membros, de maneira a tentar preservar
e aumentar o espaço conquistado, mantendo pelo menos a
correlação de forças existente; bloquear oponentes ainda
nos bastidores, evitando em grau máximo o enfrentamen-
to público e aberto (exceto em polarizações artificiais que
possam render mais espaço no governo e/ou dividendo elei-
toral) (NOBRE, 2013, p. 7).

Observe-se que todas elas decorrem do “presidencialismo de coalizão”


e estimulam a continuidade da fragmentação política na representação
congressual. Afinal, o maior estímulo que o sistema oferece a um parlamentar
é integrar o “centrão” e exercer o poder de veto em tudo o que seja contrário
aos seus interesses. Desta forma, as questões fundamentais do debate político
são decididas nos gabinetes, longe da luz pública. Neste sentido, a pouca
participação popular nos processos decisórios do legislativo brasileiro acaba
por abrir espaço para que outros agentes institucionais (notadamente o
judiciário) se envolvam nos rumos das disputas políticas, como atesta Nobre:

230
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Na lógica pemedebista, a grande maioria dos casos de veto


permanece na sombra dos gabinetes. É dessa maneira que a
cultura política pemedebista se constitui em um complexo
sistema de travas à mudança. E a produção de mudanças
depende da capacidade não de enfrentar diretamente os ve-
tos, mas pelo menos de contorná-los. Exemplo de contorno
de vetos foi o reconhecimento da união estável homoafeti-
va para fins tributários por meio de uma resolução de um
órgão do Executivo, a Receita Federal, ocorrido em 2010,
confirmado posteriormente, em maio de 2011, pelo Judiciá-
rio, por julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
(NOBRE, 2013, p. 9)

Nesta passagem é inevitável o paralelo entre a necessidade de


“contornar” os vetos e os “procedimentos institucionais complementares ao
arcabouço representativo da liberal-democracia” apontados por Abranches
(1988, p.27). A atuação política do poder judiciário, o “ativismo judicial”,
fomentada por setores da esquerda e da direita, se tornou um dos principais
elementos de “contorno” ao sistema de vetos do peemedebismo.
Por fim, vale apontar que deriva daí o protagonismo do poder
judiciário no atual arranjo político brasileiro, após a implosão do peeme-
debismo entre as manifestações de junho de 2013 e o impeachment de Dilma
Rousseff, em 2016. A tempestade perfeita – conjugação entre crise econômica
(iniciada em 2015), blindagem do sistema político e protagonismo político
judiciário – acabou por conduzir o Brasil a um quadro de sucessivas crises
políticas (que por sua vez dificultam/impedem a recuperação econômica).
Neste contexto, sequer a vitória eleitoral da extrema-direita em 2018 parece
representar o final da tempestade. Afinal, a própria figura de Jair Bolsonaro
com seu discurso anti-establishment parece ser – parafraseando o velho
Gramsci – o sintoma mórbido dos momentos de crise, nos quais o velho
ainda não morreu e o novo não nasceu.

Considerações finais: neoliberalismo, transições


democráticas e a crise da “gestão do privilégio”
Do ponto de vista econômico, as maiores disputas ocorridas em
México e Brasil neste contexto de expansão/consolidação democrática

231
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

foram justamente sobre as maneiras de controlar a inflação e implementar


o neoliberalismo. Em linhas gerais, o neoliberalismo pode ser definido como
uma doutrina político-econômica8 – cujos pressupostos epistemológicos
defendem a primazia da iniciativa privada ante o caráter economicamente
ineficaz do Estado – que foi traduzida em um programa de ação política
no final dos anos 1970 e começo dos 1980. Este “programa de ação política”,
portanto, não é redutível à condução conservadora da macroeconomia na
medida em que, ao transcender a economia, buscou modificar o papel, o
sentido e o significado do Estado na vida política, econômica e social. David
Harvey assim sintetiza a questão:
O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práti-
cas político-econômicas que propõe que o bem-estar huma-
no pode ser melhor promovido liberando-se as capacidades
empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura
institucional caracterizada por sólidos direitos à proprie-
dade privada, livres mercados e livre comércio. O papel
do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional
apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por
exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. [...]. As
intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados)
devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo
com a teoria o Estado possivelmente não possui informa-
ções suficientes para entender devidamente os sinais do
mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse
vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do
Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio
benefício (HARVEY, 2005, p.12).

Na América Latina, esta concepção de Estado foi imposta pela


aliança entre organismos multilaterais financeiros – o consórcio FMI/Banco
Mundial – e pelo governo dos Estados Unidos como contrapartida à ajuda
financeira aos países atingidos pela crise da dívida pública característica
8 Não cabe aprofundar o aspecto teórico que fundamentou o neoliberalismo, pois
isto escapa aos objetivos do presente trabalho. Ainda assim, é imperativo assinalar a
importância intelectual que o surgimento do monetarismo de Milton Friedman na
década de 1960 para a legitimação da perspectiva neoliberal. Mark Blyth (2017, p. 221)
afirma que “quando combinado com as ideias de expectativas racionais e de mercados
eficientes [...], o monetarismo preparou o caminho para o entendimento moderno da
austeridade, tornando os mercados sempre eficientes e o Estado sempre patológico”.

232
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

dos anos 1980 (cf. PEREIRA, 2010, p. 249). O conjunto de medidas que
funcionava como esta contrapartida ficou conhecido como “Consenso
de Washington” e consistia em uma série de recomendações pautadas na
austeridade, privatizações, desregulamentação e enxugamento do Estado. É
justamente a ênfase na perspectiva de liberalização do Estado – no sentido
de diminui-lo que popularizou o termo “neoliberalismo” (STIGLITZ, 2008).
Outro termo popularizado nesta época foi de “governança”, o
qual apareceu em um livreto publicado em 1992 pelo Banco Mundial. O
conceito é importante, pois permite operacionalizar a nossa definição de
neoliberalismo, na medida em que a “boa governança” é um conceito de
flagrante tom normativo.
Neste livreto, a governança é definida como a maneira pela
qual o poder é exercido no gerenciamento dos recursos
econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento.
Boa governança, para o Banco Mundial, é sinônimo de boa
gestão do desenvolvimento. A experiência do Banco mos-
trou que os programas e projetos financiados podem ser
tecnicamente sólidos, mas falham em fornecer resultados
esperados por razões relacionadas à qualidade das ações
do governo. As reformas legais, por mais urgentes que se-
jam, podem ser inúteis se as novas leis não forem consis-
tentemente aplicadas ou se houver severos atrasos em sua
implementação. Os esforços para desenvolver a produção
privada e incentivar o crescimento liderado pelo mercado
podem falhar, a menos que os investidores encontrem re-
gras e instituições que reduzam a incerteza sobre as futuras
ações governamentais. Reformas vitais nos gastos públicos
podem fracassar se os sistemas contábeis forem tão fra-
cos que as políticas orçamentárias não possam ser imple-
mentadas ou monitoradas, ou se os sistemas de licitação
incentivarem a corrupção e distorcerem as prioridades de
investimento público. A falha em envolver os beneficiários
e outras pessoas afetadas pelo desenho e implementação de
projetos pode prejudicar substancialmente sua sustentabi-
lidade (WORLD BANK, 1992, p.3, tradução minha).

Observe-se como a passagem ilustra as características que David


Harvey (2005, p.12) havia elencado como definidoras do neoliberalismo: a
predominância da iniciativa privada, a política como gestão e a “economia

233
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

pelo gotejamento (trickle-down economics)”. É interessante observar que a


estrutura elaborada pelo Banco Mundial não prevê a política como um espaço
de solução de conflitos, mas sim como a gestão eficiente dos assuntos/recursos
públicos. Trata-se, pois, de uma perspectiva reducionista da sociedade que
analisa a dinâmica social a partir do binômio “mercado x Estado”, sendo
o primeiro portador de todas as virtudes e o segundo de todos os males.
A substituição da “sociedade civil” pelo “mercado” operacionalizada pelo
conceito de “governança” almeja descrever – embora na prática tenha um
forte tom normativo – uma sociedade sem divisões, sem grupos antagônicos,
cujos indivíduos subordinam toda a gama de conflitos e identidades à razão
econômica.
Contudo, o triunfalismo do discurso do Banco Mundial sobre a
“boa governança” não encontrou paralelo nos indicadores econômicos
latino-americanos dos anos 1980 e 1990, como sintetiza Carlos Tello (2014,
p. 627, tradução minha):
Durante a década de oitenta, o PIB médio real por pessoa
na América Latina diminuiu. A liberalização comercial e
financeira e a redução do setor público não apresentaram
os resultados esperados. No entanto, as reformas continua-
ram sendo aplicadas – e aprofundadas – durante a década
seguinte, a dos anos 90, sem apresentar bons resultados:
o PIB real médio por pessoa na América Latina cresceu
apenas 1,5% ao ano, bem abaixo, por exemplo, da taxa de
expansão das economias em desenvolvimento da Ásia. A la-
cuna no nível de renda entre os países desenvolvidos e os da
América Latina cresceu entre 1980 e 2000. A desigualdade
na distribuição de renda também cresceu e a pobreza não
diminuiu: ainda hoje, 50% da população vive em condições
da pobreza. 25% em extrema pobreza.

Este quadro de diminuição do PIB per capita e o aumento da desi-


gualdade é justamente o efeito característico do projeto político-econômico
neoliberal que acaba por tensionar a democracia. Afinal, o Estado, e também
a política, deixam de serem vistos como instâncias provedoras de direitos e
expressão/resolução de conflitos e passam a ser encarados como meros obstáculos
à realização da iniciativa privada. Daí que a função dos políticos seria a de
diminuir o tamanho do Estado e geri-lo de maneira eficiente e racional,

234
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

uma vez que a perspectiva neoliberal resume a ação política do governante


à obtenção de vantagens no nível individual, tal qual a teoria das escolhas
racionais preconiza (STREECK, 2018, p. 96). É por esta incompatibilidade
a priori que o Estado deveria ser diminuído, afinal isto se traduziria em uma
gestão mais racional dos recursos públicos.
Esta mudança de entendimento sobre a política é o fundamento
daquilo que Chantal Mouffe (2018, p.8) define como o “consenso de centro”.
Em linhas gerais, esse conceito busca traduzir a ideia de que os espaços
políticos nacionais começaram a ser operacionalizados em função dos
ditames neoliberais. A maior característica desse fenômeno, experimentado
nos países centrais do capitalismo de maneira intensa desde os anos de
1970, é a adequação da socialdemocracia – justamente a tradição política
europeia que preconizava o espaço político como expressão dos conflitos
democráticos – às teses neoliberais que buscam justamente expulsar o
conflito da política ao reduzir tudo à lógica da eficiência e da gestão.
Este discurso ganhou força na América Latina nas décadas de 1980
e 1990 de maneira concomitante aos processos de expansão/consolidação
das democracias no continente. Comparando México e Brasil, é possível
ressaltar que a verticalidade do processo mexicano foi fundamental para
o estabelecimento de um sistema tripartite de representação eleitoral. O
que houve, nesse sentido, foi a articulação de um novo campo político –
inicialmente o PRD e depois o MORENA9 – alinhado mais à esquerda
que passou a disputar espaço com as tradicionais forças do PRI e PAN. No
quadro brasileiro, a multiplicidade de atores que lutaram contra a ditadura
acabaram por instituir um sistema com representação congressual bastante
fragmentada (oscilando da ordem das duas dezenas de partidos na década
de 1920 para 30 em 2018), o “presidencialismo de coalizão”.
Ademais, vale apontar que a diferença de números de partidos no
congresso – e a subsequente facilidade/dificuldade em estabelecer maiorias
9 O Partido de la Revolución Democrática (PRD) surgiu em 1989 e é o herdeiro direto da
Frente Democrático Nacional que havia lançado Cuauhtémoc Cárdenas à presidência da
República em 1988. Por quase 30 anos, foi o maior partido da esquerda mexicana e esteve
entre as principais forças eleitorais mexicanas (ao lado de PAN e PRI). Contudo, na últi-
ma eleição (2018) os votos da esquerda foram para o MORENA – Movimiento Regeneración
Nacional – fundado em 2014 pelo atual presidente mexicano, e militante histórico do
PRD, Andrés Manuel López Obrador.

235
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

parlamentares – nos dois casos não se traduziu em diferenças significativas


quando pensamos em termos de porosidade democrática. Neste sentido,
podemos dizer que a herança do arranjo político priista encontra fortes
paralelos com a cultura política do exercício do poder pelo veto, característica
do peemedebismo brasileiro.
Priismo e peemedebismo foram os arranjos políticos responsáveis
pela implementação do “consenso de centro” em México e Brasil, respecti-
vamente. Por isso, enquanto Chantall Mouffe ao refletir a partir do centro
do capitalismo defende que a ambição neoliberal de reduzir a política à
gestão acaba por fazer os conflitos políticos se articularem em termos morais
(MOUFFE, 2007, p. 12)10, podemos dizer que na América Latina os desgaste
do “consenso de centro” inicialmente se fez presente em outros termos.
Afinal, as democracias de baixa porosidade em nosso continente não haviam
sequer logrado um Estado de bem-estar para que este fosse “desmontado”.
Por isso, no quadro de aumento da desigualdade e redução do PIB per capita,
as disputas que moldaram as formas democrática latino-americanas e as
promessas neoliberais de um futuro próspero acabaram transformando o
“consenso de centro” na gestão de privilégios – tanto da elite política quanto
da elite econômica.
Apesar do pano de fundo comum – o estabelecimento da gestão
de privilégios – podemos dizer que o neoliberalismo na América Latina foi
muito menos uniforme, se comparado às dinâmicas de Estados Unidos e
Europa, justamente em função da concomitância entre expansão/consoli-
dação democrática e implementação neoliberal. Assim, a radicalização do
ideário neoliberal (por exemplo, o grau de abertura comercial e o número
de privatizações) foi muitas vezes freada pelo fato de que as democracias
também precisavam atender os interesses dos setores populares, até mesmo
para se legitimarem. Neste sentido, Ilán Bizberg observa sobre as relações
entre democracia e neoliberalismo no continente:
A periodicidade das transições econômicas e políticas foi
de importância central. No caso do Brasil e Argentina, a
liberalização da economia ocorreu após a democratização,
o que a tornou menos radical (embora no caso da Argen-
tina tenha sido radicalizada durante o governo peronista
10 Daí a importância da xenofobia para os movimentos atuais da extrema-direita, espe-
cialmente no mundo desenvolvido.

236
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

de Menem com o apoio do movimento operário) e menos


ofensivo contra as organizações de trabalhadores e contra
o regime de bem-estar. Nos casos mexicano e chileno, a
liberalização da economia e, portanto, a flexibilização do
sistema de relações industriais, o enfraquecimento dos sin-
dicatos e o desmantelamento do estado de bem-estar fo-
ram ocorreram sem qualquer resistência da oposição social.
política, pois foram realizadas sob um governo autoritário,
isto é, antes do processo de democratização (BIZBERG,
2015, p.64).

Estas diferenças de ritmos da história de México e Brasil são fundamen-


tais para o ponto que desejamos demonstrar. A implementação precoce do
neoliberalismo mexicano, se comparado ao caso brasileiro, tornou o México
a primeira vítima das crises cambiais dos anos de 1990. Ademais, acabou
por estreitar a dependência em relação aos Estados Unidos, o que naquele
contexto se traduziu em recuperação muito rápida da crise de 1994/1995, já
que a “nova economia” estimulou forte crescimento estadunidense na segunda
metade da década de 1990.
No caso brasileiro, por sua vez, a promulgação de uma Constituição
“cidadã” que versava sobre diversos direitos sociais – como um sistema de saúde
universal, por exemplo – e o forte desempenho do Partido dos Trabalhadores
nas primeiras eleições presidenciais da redemocratização (1989) foram fatores
que funcionaram de freio aos impulsos neoliberais. Por isto, a hegemonia do
ideário neoliberal foi muito mais tardia (metade dos anos de 1990) e menos
voraz no Brasil, se comparado ao México11.
Com tudo isto posto, podemos dizer que as crises que levaram PAN
e PT ao poder consistiram no desgaste dessa hegemonia da gestão do privilégio.
Esta crise hegemônica da gestão do privilégio abriu espaço para a articulação
de demandas que se encontravam sufocadas – e, consequentemente, não
atendidas – pelos arranjos políticos do “consenso de centro” neoliberal que
caracterizaram a política e a economia de México e Brasil dos anos 1980 e 1990.

11 De um ponto de vista sintético, basta dizer que o governo Zedillo foi capaz de im-
plementar a capitalização da previdência já em 1997, enquanto os setores defensores da
medida no Brasil até o momento da redação deste trabalho não foram capazes de fazê-lo.

237
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Analisar as crises pelas quais passavam México e Brasil no alvorecer dos


anos 2000 a partir desta perspectiva (crise hegemônica da gestão do privilégio)
permite compreender como um partido de direita, o PAN mexicano, pôde
responder a uma crise engendrada pelo neoliberalismo. Nesse sentido, em um
contexto de crescimento econômico (entre 1996 e 2000, a economia mexicana
cresceu em média 5%) o partido de oposição logrou estabelecer a crítica ao
corporativismo e à corrupção do arranjo político priista como os principais
termos da eleição presidencial de 2000. Tratou-se, pois, da mobilização de
uma crítica ao privilégio político que se desdobraria em uma crítica ao programa
econômico priista.
No caso brasileiro, por sua vez, os principais elementos do debate
eleitoral de 2002 eram o alto índice de desemprego (cerca de 10%), o baixo
crescimento econômico e a desigualdade social. Os elementos articulados
pelo PT buscavam atacar a crise econômica decorrente do ajuste fiscal do
segundo mandato de FHC. Assim, a crítica ao privilégio econômico se traduziu
em uma crítica à elite política – ainda que o PT não tenha abandonado em
seu governo as práticas do presidencialismo de coalizão – que se beneficiava da
gestão do privilégio.
Em suma, a crítica à hegemonia da gestão do privilégio – ou do “consenso
de centro” neoliberal – não se traduz necessariamente em uma crítica radical
ao neoliberalismo12 e, por isto, não deve ser encarada como um privilégio dos
atores políticos de esquerda. Outro ponto fundamental a ser assinalado é que
as crises político/econômicas vividas por México e Brasil na virada dos anos
2000, são crises na – e não da, como ocorre contemporaneamente – democracia,
por mais que os anseios de transformação estivessem limitados ao voto. O
aprofundamento da democracia era visto, tanto por PAN quanto por PT, como
a solução para as crises vigentes em ambos países no alvorecer dos anos 2000.
Por isso, a comparação entre os contextos de crise experimentados
por México e Brasil no final do século XX exigem que a análise política não
se limite aos programas políticos dos partidos. A comparação aqui proposta
12 É importante frisas que estamos falando do ponto de vista institucional. Do ponto de
vista extra-institucional, há de se citar no caso brasileiro o Movimento de Trabalhadores
Sem-Terra (MST) como maior exemplo de ator da sociedade civil que possui um projeto
político radicalmente anti-neoliberal. No caso do México, o questionamento ao modelo
neoliberal ocorria em sua maior parte por fora do Estado e das vias institucionais, como
indica o exemplo do Ejercito Zapatista de Liberación Nacional (EZLN).

238
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

demonstra como as demandas oriundas das crises políticas e econômicas do


final do século foram articuladas tanto por partidos de esquerda quanto de
direita. Por isto, mais do que identificar e naturalizar certas pautas “à esquerda”
e outras “à direita”, o fundamental é compreender como os diferentes partidos
articularam as demandas para realizar a crítica e propor soluções para as
crises enfrentadas pela gestão do privilégio àquela altura. Enquanto no México
tivemos a articulação discursiva que buscou articular respostas econômicas a
uma crise política, no Brasil o esforço da esquerda correu no sentido de articular
respostas políticas a uma crise econômica.
Por fim, as diferenças de primazia (política, no México, e econômica,
no Brasil) nos discursos da oposição decorrem justamente das diferenças de
ritmo entre a implementação neoliberal e a consolidação democrática em
ambos os países. No México, o PAN aproveitou o mal-estar político decorrente
das práticas patrimonialistas do sistema político mexicano para defender
um programa econômico liberalizante capaz de solucionar os problemas de
corrupção característicos dos governos priistas. Ou seja, tratou-se de uma
articulação discursiva que buscou oferecer respostas econômicas a uma crise
política. No caso Brasileiro, o PT aproveitou o mal-estar econômico para
defender um programa econômico de cunho intervencionista, de modo
que as políticas públicas do Estado deveriam ter papel ativo na redução das
desigualdades e na redução de privilégios sociais, políticos e econômicos das
elites. Ou seja, tratou-se de uma articulação discursiva que buscou oferecer
respostas políticas a uma crise econômica. Vale apontar, então, que nesta chave
analítica reside a explicação para o fato de que os governantes de México
e Brasil no século XXI se encontrem sempre em campos ideologicamente
opostos (no começo dos anos 2000, México à direita e Brasil à esquerda; nas
eleições de 2018, México à esquerda e Brasil à direita)13.

13 Não deixa de ser curioso que Jair Bolsonaro represente, tal qual o PAN na virada do
século, a tentativa de articular uma resposta política a uma crise econômica. Enquanto
no México, a articulação discursiva de Obrador é a tentativa de articular uma resposta
econômica à contínua crise política que assola o país desde as derrotas eleitorais do PRI
no final do século XX.

239
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Referências
ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão:
O Dilema Institucional Brasileiro. Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 31,
n. 1, p. 5-34, 1988.AQUINO, Maria Aparecida. Censura, Imprensa, Estado
Autoritário 1968-1978: o exercício cotidiano da dominação e resistência.
Bauru: EDUSC, 1999.
BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição de 1988: a
reconstrução democrática do Brasil, MPMG Jurídico, ano 3, ed. especial -
20 anos da Constituição Federal, jan./mar. 2008. Disponível em: <https://
aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/730/17.%20
Vinte%20anos%20da%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20de%201988.
pdf?sequence=1> Acesso em: jul. 2019.
BITAR, Sérgio; LOWENTHAL, Abraham F. Transições democráticas:
ensinamentos dos líderes políticos. São Paulo: Contexto, 2019.
BIZBERG, Ilán. Tipos de capitalismo en América Latina In: BIZBERG,
Ilán. (Coord.). Variedades del capitalismo en América Latina: los casos de
México, Brasil, Argentina y Chile. México DF: El Colegio de México, 2015.
BLYTH, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo:
Autonomia Literária, 2017.
DIAP. O novo congresso nacional em números. 2019. Disponível em:
<http://www.diap.org.br/index.php/publicacoes/viewcategory/100-novo-
congresso-nacional-em-numeros-2019-2023> Acesso em: jul. 2019.
EL PAIS. Vargas Llosa: “México es la dictadura perfecta”. 1 set. 1990. Disponível
em: https://elpais.com/diario/1990/09/01/cultura/652140001_850215.html
FERREIRA, Denise Paiva; BATISTA, Carlos Marcos; STABILE, Max. A
evolução do sistema partidário brasileiro: número de partidos e votação
no plano subnacional 1982-2006, Revista Opinião Pública, v. 4, n.2, p. 432-
453, nov. 2008.
FREITAS, Rafael; MOURA, Samuel; MEDEIROS, Danilo. Procurando o
centrão: esquerda e direita na Assembleia Nacional Constituinte (1987-
88). Concurso ANPOCS-Fundação Ford: melhores trabalhos sobre a
Constituição de 1988. Disponível em: <http://neci.fflch.usp.br/sites/neci.
fflch.usp.br/files/freitas-moura-medeiros_2009.pdf> Acesso: jun. 2019.

240
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo:


Edições Loyola, 2005.
HEREDIA, Cecilia Requino. A caneta e a tesoura: dinâmicas e vicissi-
tudes da censura musical no regime militar. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Universidade de São Paulo, 2015.
IGLECIAS, W. T; CARDOSO, E. W.; STREICH, R. N. Estratégias de de-
senvolvimento em questão: O debate sobre o papel do Estado no Brasil,
México e Venezuela (1989-2010). Série Seminarios y Conferencias ILPES-
-CEPAL, v.1, p. 1-30, 2014.
JASO GALVÁN, Azucena Citlalli. Terrorismo de Estado e guerra suja:
discursos e práticas da doutrina de segurança nacional e da contrainsur-
gência no México (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História Social)
– Universidade de São Paulo, 2016.
KRAUZE, Enrique. La presidencia imperial. México DF: Tusquets, 2013.
LEAL MARTÍNEZ, Alejandra. De pueblo a sociedad civil: el discurso
político después del sismo de 1985, Revista Mexicana de Sociología, v. 76,
n. 3, p. 441-469, jul./set. 2014.
MARVÁN LABORDE, Ignacio. La Revolución Mexicana y la organización
política de México: la cuestión del equlibrio de poderes (1908-1932). In:
MARVÁN LABORDE, Ignacio. (Org.). La Revolución Mexicana (1909-
1932). México DF: FCE, 2010.
MÉNDEZ DE HOYOS, Irma. Transición a la democracia en México:
competencia partidista y reformas electorales (1977-2003). México DF:
FLACSO/MEX; FONTAMARA, 2006.
______. Competencia y Competitividad en México (1977-1997), Política y
gobierno, v. X, n. 1, jan./jun. 2003. Disponível em: <http://investigadores.
cide.edu/aparicio/dape/m3/17_DeHoyos_Competitividad.pdf> Acesso em
jul. 2019.
MEYER, Lorenzo. Liberalismo Autoritário: las contradicciones del
sistema político mexicano. México DF: Oceano, 1995.
______. La segunda muerte de la Revolución Mexicana. México DF:
Ediciones Cal y Arena, 2010.

241
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São


Paulo: Contexto, 2014. (edição eletrônica)
MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. México 68: memórias olímpicas, Revista
ECO-Pós, v. 21, n.1, 2018. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.
php/eco_pos/article/view/18482> Acesso em: jul 2019.
MOUFFE, Chantall. En torno a lo político. Buenos Aires: FCE Argentina,
2007.
______. For a left populism. London: Verso, 2018. Edição Eletrônica.
NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática
ao governo Dilma. São Paulo: Cia das Letras, 2013. (edição eletrônica)
LOAEZA, Soledad. La construcción de un país moderno, 1945-2000. In:
FLORESCANO, Enrique. (Org.). Arma la historia: la nación mexicana a
través dos siglos. México DF: Grijalbo, 2009.
O ESTADO DE SÃO PAULO. A oposição está vencendo em 18 estados.
17 nov. 1976. Disponível em: <http://memorialdademocracia.com.br/card/
mdb-impoe-derrota-a-ditadura-nas-urnas> Acesso em: jan. 2020.
O GLOBO. Geisel anuncia distensão gradativa e segura. 30 ago. 1974.
Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/
ernesto-geisel-pai-da-distensao-lenta-gradual-segura-da-ditadura-
militar-20071730> Acesso em: jul. 2019.
PEREIRA, João Márcio Mendes. O banco mundial como ator político
intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
PONIATOWSKA, Elena. La noche de Tlatelolco. Cidade do México: Edi-
ciones Era, 1971.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências,
falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2001.
STIGLITZ, Joseph E. Is there a Post-Washington Consensus consensus?
In: STIGLITZ, Joseph E; SERRA, Narcis. (Ed.). The Washington Con-
sensus reconsidered: towards a new global governance. Oxford: Oxford
University Press, 2008. edição eletrônica.

242
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

STREECK, Wolgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo de-


mocrático. São Paulo: Boitempo, 2018.
TELLO, Carlos. Estado y desarrollo económico: México 1920-2006. Méxi-
co DF: UNAM, 2014.
WORLD BANK. Governance and development. Washington DC:
WOLRD BANK PUBLICATION, 1992.

243
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

244
EMBATES ENTRE A UNIÃO, OS ESTADOS E O
MOVIMENTO NEGRO NA GUERRA À POBREZA
DOS ESTADOS UNIDOS (1964 – 1968)1
Barbara Maria de Albuquerque Mitchell2

A Guerra à Pobreza e o movimento pelos direitos civis


A exclusão dos negros dentro dos Estados Unidos se manteve mesmo
após a abolição da escravidão (1863) e o fim da Guerra de Secessão (1865).
A Reconstrução e a proclamação das 13ª e 14ª Emendas Constitucionais3
sofreram grande oposição dos núcleos mais conservadores dentro da
sociedade e, mesmo entre os apoiadores, o racismo e a crença na inferio-
ridade do negro em relação ao branco permanecia. Como forma de burlar
o processo de integração dos negros, muitos estados4 do Sul começaram a
aprovar os chamados black codes durante a Reconstrução. Em 1868, mesmo
ano da aprovação da 14ª Emenda, parlamentares autorizaram a criação de
escolas específicas para negros pelos estados. Funcionando como estopim,
a segregação das escolas deu margem para o surgimento de inúmeras leis
segregacionistas, também conhecidas como Jim Crow.
O processo de elisão social, econômica e política dos negros foi
mantido após a abolição através de leis e práticas em todo o país, inclusive
o Norte, alavancando a desigualdade entre negros e brancos. Aos negros
foi negado ou dificultado o acesso à educação, habitação, emprego,

1 Este artigo foi publicado, com algumas alterações, na revista Huellas de Estados Unidos
Estudios y Debates desde America Latina com o título de “Repensando o Welfare State:
disputas entre a União, os estados e o movimento negro durante a Guerra à Pobreza
(1964 – 1968)”.
2 Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e Bolsista CNPq. E-mail: barbaram.mitchell@
gmail.com
3 A 13ª emenda foi a responsável por proibir a escravidão e o trabalho forçado, salvo como
punição por crimes, nos EUA e a 14ª emenda declara que todos nascidos ou naturalizados
nos Estados Unidos são cidadãos.
4 Para fins desse artigo, utilizamos “Estado” quando nos referimos ao governo federal e
“estado” quando estamos abordando as entidades federativas norte-americanas.

245
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

participação política e até mesmo o direito de ir e vir, restando a eles


uma posição de subalternidade dentro do corpo social norte-americano.
É importante destacar que, apesar do uso constante, os termos
“movimento negro” e “movimento pelos direitos civis” não representam
uma visão homogênea destes grupos. Cabe observar que diferenças de
pautas, métodos e demandas são características e muitas vezes tornavam a
dinâmica da luta pela igualdade ainda mais complexa (BAUMAN, 2008). A
memória popular e parte de estudos históricos recentes costumam se referir
ao período entre 1954 e 1964 como sinônimo da atuação do movimento
pelos direitos civis. Sendo assim, consideram apenas o momento entre o
caso de Brown v. Board of School e a aprovação da lei pelos direitos civis. Esse
período, chamado por Jacquelyn Hall de “curto civil rights” (HALL,2005),
teria entrado em declínio com a Guerra do Vietnã, os protestos urbanos
iniciados em 1965, as rebeliões estudantis, a radicalização da militância
negra, o crescimento do feminismo e da luta por ações afirmativas. Dessa
maneira, a narrativa que só reconhece a atuação do movimento pelos direitos
civis nesse período de 10 anos, compreende a década de 1970 como um
momento de fortalecimento conservador e o início de uma outra história.
Essa visão simplificadora dos direitos civis, encabeçada pela nova
direita segundo a autora, congelou a imagem de Martin Luther King Jr.
em seu discurso I Have a Dream de 1963, emudecendo-o de maneira a
descartar as suas principais críticas sociais aos Estados Unidos. O pastor
denunciou a questão racial enquanto um problema nacional, não só do
Sul, e os horrores da Guerra do Vietnã, realizando uma associação entre
racismo e o militarismo com o imperialismo norte-americano. Além
disso, teve ativo papel militante na defesa da sindicalização, defendeu
estratégias para reverter a pobreza e a desigualdade que assolavam os
negros, como a poor people’s campaign, e esteve presente em diversas greves
de trabalhadores, sendo assassinado em 1968 durante seu apoio a greve
dos sanitaristas.
A medida que Martin Luther King, um dos nomes mais famosos da
luta pelos direitos civis, foi reconstruído historicamente menos militante
e mais próximo de uma idealização pacífica e quase color blind, há uma
descaracterização dos seus objetivos. O núcleo cristão dos direitos civis
passa por uma reconfiguração que o torna um símbolo perfeito de uma

246
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

narrativa que pretende restringir os direitos civis aos anos de 1950 e 1960,
como se todos os problemas daquele período já tivessem sido resolvidos.
Não só isso, mas as pautas de grupos como o SLCL (Southern Christian
Leadership Conference – A Conferência da Liderança Cristã do Sul) não
são totalmente retomadas, na tentativa de esconder reivindicações mais
radicais. Ao confinar os direitos civis às tensões no Sul e reduzi-los à uma
atuação apenas entre 1950 e 1960, há um silenciamento das pautas que
abordam questões ainda atuais nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os
direitos civis são mantidos enquanto um símbolo de luta, mas do passado.
As raízes da narrativa clássica sobre o movimento pelos direitos
civis têm duas principais origens: as estratégias do movimento e a resposta
da mídia (HALL 2005.p.1239). Ao longo dos protestos, os militantes
utilizavam a linguagem de direitos democráticos, do universalismo cristão,
a questão da não-violência, a ocupação das ruas para expor a segregação
do Sul e a atuação de agentes federais para lutar contra o poder local. Já a
mídia de massa, transformou os protestos em uma das principais histórias
da modernidade, mas de maneira seletiva, usando figuras carismáticas,
geralmente masculinas, e conflitos atraentes para televisão, em especial
com “malignas personagens brancas” que traziam terror para multidões
pacíficas. Levadas diretamente para as televisões americanas, as cenas
dos protestos não tinham raízes históricas, como se surgissem naquele
momento e com um único objetivo, a aprovação da lei. Se, a princípio,
a mídia buscava apoio da população branca, a cobertura começa a se
modificar ao meio dos anos 1960, em especial com o crescimento do black
power e levantes negros no Norte. Com olhares hostis às diversas facetas
do movimento negro, a cobertura televisiva abandonou até mesmo o Sul,
ignorando as demandas crescentes dos sulistas, obscurecendo as conexões
e as similaridades inter-regionais dos problemas e demandas nacionais do
movimento pelos direitos civis e criando uma brecha narrativa entre o
que as pessoas pensam enquanto o movimento e as permanecentes tensões
populares do final dos 1960 e 1970.
Jacquelyn Hall defende a visão de um “longo civil rights movement”
(HALL,2015) para ir além da narrativa clássica e da construída com bases
mais conservadoras. Em primeiro lugar, a autora associa o movimento pelos
direitos civis com questões políticas anteriores aos anos de 1950. Nesse

247
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

sentido, aponta para uma associação entre os seus núcleos com setores
do liberalismo radical de 1930 e do estabelecimento e fragmentação da
ordem do New Deal. Com a Segunda Guerra e os conflitos raciais e sociais
que eclodiram ao seu fim, as pautas do movimento pelos direitos civis
se ampliaram para além do Sul. Outra questão importante é a reação
conservadora, normalmente identificada a partir de 1970 pelos autores.
Hall aponta que, na verdade, o blacklash não surgirá magicamente após o
Civil Rights Act. Desde o seu crescimento, durante a Segunda Guerra, ele já
criava o caminho e as bases que culminaram com a chegada da nova direita
no poder. Paralelamente, a economia aparecia no centro de preocupação
do movimento de maneira interligada a temas de gênero, classe e raça.
Dentro dos próprios sindicatos, as questões já eram presentes, seja em
forma de demandas dos grupos ou na criação de núcleos específicos5.
A pressão dos negros em relação as restrições do New Deal e as
possibilidades dos estados, principalmente no Sul, de os excluírem dos
seus benefícios, foi fundamental para o crescimento do movimento pelos
direitos civis (SITKOFF, 1978) e, em algumas cidades, como Washington
e Detroit, já eram usados piquetes, sit-ins e, ocasionalmente, a violência
(BRINKLEY, 1998, p.98), formas de protestos que se tornaram notórias nos
anos de 1960 na atuação do movimento pelos direitos civis. Entendendo
que o racismo sempre esteve aliado à exploração econômica, civil rights
unionists vão unir em pautas políticas a proteção contra discriminação com
políticas sociais universalistas de welfare e questões de direitos individuais
com os trabalhistas. Para eles, a democratização do mercado de trabalho e
a possibilidade de criar acordos coletivos de salários e empregos vinham
conectados com as demandas por habitação acessível, emancipação
política, igualdade educacional, acesso à saúde e a proteção de suas
vidas. Até a Guerra Fria, as demandas sindicais trabalhistas, incluindo
brancos progressistas e comunistas, confluíam com as do movimento pelos
direitos civis. Contudo, o anticomunismo do pós-guerra e o ataque das
corporações aos sindicatos, desmantelando e ampliando o controle sobre
estes, atrapalhou a continuidade das relações sindicais e do movimento

5 Entre 1940 e 1950 há a formação de inúmeros grupos e sindicatos que ou traziam uma
união de núcleos progressistas ou eram destinados a setores específicos da sociedade. Ro-
bert Korstad chama de Civil Rights Unionism a formação de organizações que associavam
o movimento pelos direitos civis e o dos trabalhadores em uma visão nacional.

248
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

pelos direitos civis. Por outro lado, esse mesmo anticomunismo deu um
argumento importante para a retórica dos civil rights: a forma como os
negros eram tratados dentro do país tirava crédito externo dos Estados
Unidos na qualidade de liderança da liberdade.
Mesmo no Norte, o fim da Segunda Guerra trouxe mecanismos
para a ampliação da separação entre negros e brancos. A suburbanização,
a construção das grandes estradas e toda a infraestrutura que as acompa-
nhou, aumentou a lacuna já existente entre a situação de vida dos negros
e brancos em um ambiente urbano. Os subúrbios foram criados para
moradores brancos, considerando que parte dos negros não tinha condições
financeiras para comprar uma casa nessas regiões e os bancos se negavam
a conceder empréstimos para famílias interessadas em se mudar para
bairros “não adequados” para a sua cor. Toda a rede de serviços necessária
para os moradores dos subúrbios e seus filhos também seguia essa mesma
lógica. Nos bairros negros, também latinos, a prestação de serviços era
com uma qualidade inferior ao das localidades brancas. O combate aos
sindicatos e a precarização dos empregos comumentemente destinados
aos negros, ou seja, que exigiam menor qualificação educacional, também
contribuíram para o agravamento da situação. Essas questões eram muitas
vezes ignoradas pelos liberais democratas que apontavam a desigualdade,
a segregação, o racismo e o preconceito como problemas restritos ao sul
do país e pareciam satisfeitos com os efeitos da ordem do New Deal para
a sociedade.

249
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

A reorganização do Partido Democrata a partir da década de 19306


trouxe um crescente número de votos, mas só a partir das migrações e a
turbulência urbana que passaram a exercer de fato uma influência mais
significativa sobre o Partido, aumentando a cisão entre os núcleos do Norte
e do Sul. Em 1940, as tentativas de implementar mudanças para os negros
através do New Deal e outras políticas, como de maior inclusão ao voto,
eram normalmente bloqueadas pelos dixiecrats e por líderes conservadores
brancos em cidades ao norte.
A turbulência generalizada nas ruas do Sul e, posteriormente, do
Norte, geraram um impasse acerca da condução política do Partido Democrata
em relação às demandas do movimento pelos direitos civis. Fragmentadas
desde 1948 (CLOWARD; PIVEN, 1993), as alianças entre Norte e Sul estavam
paulatinamente se fragilizando. Não só pela questão do movimento pelos
direitos civis, mas a própria disputa interna pelo controle do Partido Democrata
e a pressão de setores mais progressistas entre os liberais democratas pelo
rompimento de relações com os dixiecrats minou pouco a pouco a estabilidade
intrapartidária (ALTERMAN;MATTSON, 2012).

6 A reorganização trazida pelo New Deal estabeleceu uma coalizão de alianças entre o blo-
co do Sul, com suas particularidades, especialmente sobre a questão racial, a segregação
nos EUA e o poder local; e os políticos de outras regiões que apoiavam majoritariamen-
te os projetos encabeçados pela administração Roosevelt, a concentração e poder da
União, bem como leis que promoveriam o fim da segregação e melhorias sociais e eco-
nômicas para a sociedade. A disparidade marcou essa coalizão, mas ainda sem compro-
meter totalmente a capacidade do Partido Democrata de vencer as eleições residenciais e
aprovar inúmeras legislações propostas dentro do New Deal. Por outro lado, a oposição à
integração racial foi notoriamente uma das mais importantes questões e desavença entre
os seus membros, agravada com a cooptação dos votos dos negros pretendida e posta em
prática, de forma tímida, desde a década de 1920 e mais claramente a partir de 1950. Os
democratas não poderiam ser o partido supostamente aliado aos negros e aos segregacio-
nistas por muito tempo. Apesar do sucesso em criar um consenso entre conservadores e
liberais democratas em assuntos de macroeconomia, havia uma inata incompatibilidade
entre os dois lados da balança, tanto a questão racial como outros fatores sociais e ins-
titucionais, que só pôde ser administrada por um determinado espaço de tempo. Sobre:
SELFA, Lance. The Democrats: A Critical History. Chicago: Haymarket Books, 2008. Versão
Kindle.; KYDER, Daniel; KATZNELSON, Ira; GEIGER, Kim. Limiting Liberalism: The
Southern Veto in Congress 1933 – 1950. Political Science Quarterly, Vol. 108, No. 2 (Sum-
mer, 1993), pp. 283-306.; BLACK, Merle. The Transformation of the Southern Democratic Party.
The Journal of. Politics 66 no. 4, 2004: 1001-1017.; WARE, Alan. The Democratic Party
Heads North, 1877–1962. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

250
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

Os anos de 1950 foram a data limite para o Partido Democrata romper


com as ações comedidas de apoio aos direitos civis e demonstrarem um
maior comprometimento. O deslocamento dos padrões de voto, mudança
ativada pelo crescimento do movimento pelos direitos civis, finalmente
forçou uma manifestação entre os democratas (CLOWARD;PIVEN, 1993). A
decisão da Suprema Corte favorável ao fim da segregação racial nas escolas
com Brown v. Board of School, em 1954, o assassinato de Emmett Till, em
agosto7, e o início do boicote de ônibus de Montgomery8, em dezembro,
ambos ocorridos em 1955, adicionaram o combustível necessário para o
alcance nacional das pautas e dos horrores vividos pelo movimento pelos
direitos civis e os negros no país. Como resultado, o apoio oriundo do norte
crescia, enquanto os estados do sul lutavam pela manutenção da ordem.
Politicamente, o Partido Democrata passou por grande tensão nacional, já
que com a deserção do sul e a ausência de esforço de muitos políticos locais
em cooptar o voto negro ou incentivá-lo era preocupante eleitoralmente.
O rompimento com as forças do sul também reduziu o número de cidades
que o Partido Democrata poderia contar para a eleição presidencial, mas
essas mesmas cidades viviam em meio a inúmeros conflitos urbanos.
Como solução prática, Cloward e Piven (CLOWARD;PIVEN, 1993)
demonstram como o welfare foi utilizado em várias partes do mundo como
artifício de controle social ou redução de conflitos sociais. Nesse sentido,
os autores entendem que a renovação das políticas de welfare na década de
1960 tinham como base sim as demandas do crescente movimento pelos
direitos civis, de camadas progressistas e liberais radicais, de intelectuais

7 Emmett Till era um jovem de Chicago que foi brutalmente assassinado por ter, supos-
tamente, assobiado para uma mulher branca, Carolyn Bryant, quando visitava seu tio
em Mississipi. JW Milam e Roy Bryant, irmão e marido de Carolyn, foram inocentados
por um júri branco e alguns anos depois assumiram em uma reportagem a culpa pela
morte do menino sabendo que não poderiam ser condenados por um crime que já havia
sido julgado. Recentemente, Carolyn Bryant confirmou ter inventado a história para seu
marido e irmão.
8 Gerou a criação da Associação de Montgomery em 5 de dezembro por lideranças cris-
tãs negras e líderes comunitários da região. Muitos já participavam da militância negra
através de outros grupos como a NAACP. Em 1957 Martin Luther King, uma das lideran-
ças em questão, se tornou o presidente da recém-criada Southern Christian Leadership
Conference (SCLC). Disponível em: https://prezi.com/yeeghzol9zn5/history-timeline/

251
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

liberais, mas, além disso, pretendiam resolver as tensões e conflitos urbanos


que preocupavam cada vez mais as camadas médias norte-americanas.
Embora o ceticismo negro em relação ao Partido Democrata resistisse,
Kennedy obteve 69% do voto negro nacional e os guetos de várias cidades do
norte representaram parcela fundamental de votos para assegurar a eleição
em estados críticos. Em um período que o país se apresentava como afluente
e próspero, a pobreza cresceu enquanto preocupação. Esse processo estava
tanto relacionado à uma incompatibilidade entre a dita prosperidade e a
permanência do problema no país, quanto à iniciativa de grupos sociais.
As discussões em torno do projeto antipobreza se intencificaram
nos anos 1960. No entanto, o presidente se manteve mais focado na política
externa e não parecia disposto a se comprometer com um programa somente
contra a pobreza. Para ele, se alguma proposta de auxílio nacional fosse
criada, deveria contemplar toda a nação, inclusive as classes médias. Com
o assassinato de JFK e a chegada de Lyndon B. Johnson, seu então vice, à
presidência, a ação antipobreza se tornou o núcleo central da política interna
do país. Criada como parte do projeto de política interna do governo de
LBJ, chamado de Grande Sociedade, a iniciativa tinha como propósito aliar
esforços dos governos federal e estadual com organizações locais e grupos
de base, na organização de associações comunitárias, na criação de uma
grande iniciativa para a luta antipobreza e pelos direitos civis.
A Guerra à Pobreza foi uma ação legislativa que vinha de uma
tradição de welfare existente dentro do próprio Partido, ampliando a lógica
já estabelecida pelo New Deal ao incorporar novas demandas e questões
postas, em especial, pelo movimento pelos direitos civis e setores mais
radicais entre os liberais. Foi uma forma de reatualizar as relações entre
Estado e sociedade a partir da consolidação, mesmo que momentânea, de
uma das culturas políticas em disputa durante os conflitos intrapartidários
entre os anos 1940 e 1960.

A Guerra à Pobreza e as disputas entre a União,


os estados e o movimento negro
Antes mesmo de entender como a Guerra à Pobreza gerou uma
ampla disputa entre os poderes das mais diversas esferas, é importante tratar,

252
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

ainda que de forma simplificada, sobre a dinâmica do Estado nos Estados


Unidos. Dentro do senso comum e de parte da historiografia (NOVAK,
2008: p.752), há uma ideia de que o governo federal norte-americano seria
fraco em relação aos poderes locais, com pequenas exceções históricas ao
longo dos anos. Em oposição à esta simplificação, Gary Gerstle, autor de
“Liberty and Coercion: the paradox of American government”, (GERSTLE,2015)
defende que tanto a União como os estados foram construídos a partir de
visões diferentes de poder e, por isso, as ações de um quanto de outro tem
bases divergentes de influência. Nesse sentido, um governo central mais
fraco não significaria uma maior liberdade aos indivíduos, tendo em vista
que os estados ainda poderiam interferir em suas vidas pessoais. Enquanto
a Bill of Rights tem um papel fundamental no controle do governo central
em relação à individualidade dos cidadãos, os estados experimentam
o crescimento gradual do seu poder de polícia. Esse poder de polícia,
segundo Gerstle, vai ser responsável por regulamentar a vida privada das
pessoas, submetendo-as a um suposto bem comum. Como esse poder de
polícia assumirá características particulares relacionadas a cada região, é
interessante perceber que, muitas das vezes, os estados passarão a legislar
acerca de assuntos morais e pessoais.
Ademais, o autor deixa evidente que o poderio da União e o poderio
dos estados era diferente. Enquanto o governo federal se via tolhido pelas
limitações da Bill of Rights, os estados poderiam interferir diretamente na
vida pessoal dos cidadãos com o uso do seu poder de polícia, independen-
temente de uma maior centralização do governo central ou não. Assim,
Liberty and Coercion apresenta uma visão renovada sobre as disputas de
poder, salientando que não existe apenas uma modalidade desta. Já que a
União e os estados possuem formas diferentes de poder, os seus embates
não podem ser compreendidos somente pela lógica da centralização versus
descentralização, envolvendo também nesses embates localidades dentro
do país e o teor político de leis, medidas e orientações que poderiam ser
mais progressistas ou mais conservadoras. Um dos elementos fulcrais da
tese defendida é a observação do modo com que as crises do século XX
foram importantes para a ampliação do poderio da União e o processo que
transformou o Estado em um leviatã (GERSTLE, 2015: p.7).

253
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

Considerando a dinâmica supracitada, a Grande Depressão, a


condição de guerra praticamente permanente com a Segunda Guerra
Mundial e a Guerra Fria, e os direitos civis representaram um ataque às
estruturas governamentais vigentes até então. Porém, no entendimento
do historiador, a Guerra Fria foi o componente de maior impacto para
a eclosão de um Estado central duradouramente grande e fortalecido,
com base na segurança nacional e o crescimento do complexo-industrial
militar (IDEM, p.8). Curiosamente, mesmo em governos republicanos
declaradamente contrários a um “Estado grande”, Gary Gerstle percebe a
permanência e investimento nesses aparatos de defesa nacional e controle
dos próprios cidadãos pelo governo, ou seja, a questão de um Estado maior
ou menor não consideraria, para os conservadores, a redução das inúmeras
peças da segurança nacional, mas sim das atribuições do governo federal,
por exemplo, em relação ao welfare e intervenção na economia.
Ademais, o estudo do autor sobre a Guerra à Pobreza e seu impacto
para o Estado é de grande valor para este artigo. Dentro da lógica do histo-
riador, em que existe uma ampliação do governo central durante a Guerra
Fria, em especial para a segurança nacional, há também a consideração dos
anos de 1960 como um momento de êxito da União em reduzir o poder
de polícia dos estados. Com um governo federal já centralizado dentro
da lógica da guerra, temas como direitos das minorias e questão racial
vão ser conjuntamente considerados prioridades (GERSTLE,2015: p.273).
Retomando algumas das preocupações do New Deal com questões sociais,
mas com os recursos e legitimidades garantidos pela Guerra Fria, a década
de 1960, especialmente o governo de Lyndon B. Johnson, foi marcada por
transformações no welfare e nas relações de poder. Paralelamente a isso, a
Suprema Corte estabelece a Bill of Rights como regra tanto para a União
como para os estados a partir de suas decisões judiciais. Paulatinamente,
os estados começam a perder sua capacidade de criar regras que tratem
de matrimônio, justiça criminal, sexualidade e educação religiosa que
contradigam a Bill of Rights, causando um impacto grande no poder de
polícia estadual que foi ampliado a partir da Grande Sociedade e o projeto
de completar o trabalho do New Deal no governo Johnson.
Para organizar a luta contra a pobreza, Johnson lançou, em 1964,
o Economic Opportunity Act, base legislativa da nova agência federal Office

254
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

of Economic Opportunity (OEO). O OEO tinha como papel administrar os


vários programas criados para a Guerra à Pobreza e Sargent Shriver foi
nomeado para a direção do Office. Com grande destaque na direção dos
Peace Corps, escreveu artigos, concedeu entrevistas para rádio, televisão e
participou de palestras em várias universidades defendendo a importância
do programa. Assim, a sua inclusão como principal nome na condução da
Guerra à Pobreza possibilita o entendimento de que Johnson pretendia
desenvolver um projeto de grande complexidade, mas que precisava conseguir
vasto apoio populacional.
Contemporaneamente, a estrutura da Guerra à Pobreza foi entendida
por alguns intelectuais como inovadora em relação aos projetos de welfare
que se aplicava até então nos Estados Unidos (CLOWARD;PIVEN, 1993).
Ao invés de criar emendas ao Social Security Act, a criação dos programas
anti-pobreza gerou uma forte pressão nas restrições estaduais de auxílio e
representou outra maneira fulcral da União reduzir o poderio dos estados.
Ao contrário do que aconteceu durante o New Deal, eles não teriam a mesma
facilidade para burlar e alterar os objetivos dos programas de auxílio ou
impedir o atendimento de determinado setor da sociedade, em especial os
negros. Para Frances Piven, a intervenção federal aconteceu em três linhas
principais: através do estabelecimento de novos serviços, tanto públicos
como privados, que ofereceram aos pobres informação sobre o direito
ao welfare e assistência de especialistas que os auxiliaram a conseguir os
benefícios; a iniciação de um litígio para desafiar leis locais e políticas que
tivessem como objetivo excluir determinados setores de usufruírem dos
projetos e o apoio de novas organizações oriundas das comunidades pobres
empenhados em informar aos cidadãos do seu direito à política do welfare;
e em pressionar oficiais do governo em relação às suas próprias demandas
de transformação no sistema. Como evidenciado pela autora e por parte da
historiografia anteriormente citada, a Guerra à Pobreza acabou assumindo
um caráter de oposição ao poder dos governos estaduais.
A pressão popular, a organização do movimento pelos direitos civis
e suas reivindicações por melhorias, transformações sociais e econômicas
através da atuação do governo, são determinantes para entender o Community
Action Program. Se inicialmente foi pensado como uma pequena parte da
Guerra à Pobreza, o CAP ganhou força e se tornou um dos principais projetos

255
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

naquele momento. Ao prometer “participação máxima” das comunidades


locais, inaugurava uma nova maneira de relação entre o governo e as forças
locais em uma lógica de welfare. Em 1964, o Economic Opportunity Act alocou
350 milhões de dólares para o CAP inicialmente9 e Johnson declarou que
pretendia utilizar todos os recursos disponíveis, federais, estaduais, locais,
privados, humanos e materiais, para ajudar essas comunidades a saírem
da pobreza. Grupos ao redor de todo o país foram incentivados a escrever
propostas ao governo federal por fundos para estabelecer as suas próprias
Community Action Agencies e em 1966 já existiam mais de mil delas espalhadas
pelo país (GERSTLE,2015: p.304).
Apesar de cada uma dessas agências carregar características específi-
cas das suas comunidades, esperava-se que mantivessem como guia principal
as recomendações do CAP e estabelecessem suas próprias lideranças a partir
de membros daqueles locais. As observações de Gerstle (GERSTLE,2015)
auxiliam a compreensão de que a cultura da pobreza era uma influência muito
importante naquela época. A partir desta visão, o CAP seria importante
para os pobres adquirirem traços culturais determinantes para saírem dessa
condição. Tal visão era extremamente elitista e preconceituosa, pois partia
do princípio que através do CAP, os pobres perceberiam um caminho para
“superar” costumes enraizados e entendidos como determinantes para a sua
condição de pobreza. Paralelamente, outro setor do governo, especialmente
na figura de Richard Boone e de John Conway, acreditavam no CAP como
uma chance dessas comunidades pobres participarem ativamente da política
e, a partir das suas próprias concepções e organização, encontrarem o
melhor caminho de auxílio para as suas próprias comunidades. A inclusão
e o poder eram assim entendidos como elementos fulcrais no processo de
transformação na vida daquelas pessoas.
É curioso notar como os programas da Guerra à Pobreza tinham
como ênfase o âmbito urbano. Evidentemente que em áreas rurais os
problemas da pobreza, violência, carência e falta de habitações também
existiam. Porém, apesar de não declaradamente, os guetos e o fortalecimento
das comunidades negras e latinas dentro destes foi o elemento fulcral para
entender a diferença de atuação da ação governamental na cidade e no

9 Esse valor chegou a 800 milhões de dólares, quase 40% dos gastos do Economic Oppor-
tunity Act.

256
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

campo. Assim, a Guerra à Pobreza não foi só um projeto de eliminação da


pobreza. O projeto almejou reduzir os conflitos urbanos e penetrar nessas
comunidades. Com o Community Action, as lideranças locais se tornaram um
veículo fundamental para envolver o maior número possível de membros
das comunidades nos programas governamentais.
A estratégia de utilizar os próprios moradores daquelas regiões para
convocar a população vinha no sentido de tornar os projetos federais mais
atrativos a partir do apoio de uma figura respeitada pelos cidadãos. Abre-se
espaço para a disputa de um poder que antes era normalmente desempenhado
por membros aliados aos poderes regionais e municipais, passando-o agora
para as lideranças comunitárias. A nova marca dos programas da Grande
Sociedade era justamente a relação direta entre o governo nacional e os
guetos, gerando insatisfação entre os poderes estaduais e locais que foram
deixados de lado.
Ainda que em disputa, a redução do poder de agência dos estados
com a Guerra à Pobreza teve um grande impacto na relação entre União e
os mesmos. A partir de um projeto do governo central, não só os estados
precisaram respeitar as regras estabelecidas pela União aos programas de
welfare. As autoridades regionais, municipais, da mesma forma, perdem sua
autonomia e até mesmo cargos importantes ou para membros do OEO ou
para lideranças comunitárias a partir do CAP. O governo federal faz uso
dessas mesmas lideranças como parte no seu ataque ao poderio local ao
colocá-los em posições de liderança e atribuir a elas parte da responsabilidade
para administrar e angariar recursos públicos e privados.
No entanto, a mobilização das comunidades pobres contra as
oligarquias locais já acontecia antes do CAP ser posto em prática e era
encabeçada pelo movimento pelos direitos civis, especialmente no Sul
(GERSTLE, 2015: p.395). Já no começo dos anos de 1960, o movimento
pelos direitos civis marchava por inúmeras cidades desafiando o poder dos
xerifes, confrontando governos e promovendo o fim da segregação espacial.
Nesse sentido, o CAP era a institucionalização do que o movimento pelos
direitos civis já fazia no Sul do país. Por outro lado, mesmo com a proposta
do governo em abrir um maior espaço para a participação e inclusão desses
grupos sociais, os conflitos entre eles e os membros do governo ou dessas
oligarquias locais não era incomum. São inúmeros os casos de confronto

257
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

pela administração das suas verbas, inclusive entre líderes da mesma


região, mas que era dividida entre duas minorias como negros e latinos,
por exemplo (BAUMAN, 2008). Para além desses conflitos, o CAP gerou
o desafio do comando do OEO, em especial quando as lideranças locais
e comunidades negras começaram a mostrar sua insatisfação com partes
do projeto e tentaram desenvolver práticas mais autônomas em relação
ao governo federal. As próprias estratégias de administração e cooptação
defendidas pelo OEO foram contrariadas por esses grupos, demonstrando
que existia interesse em participar do CAP, mas com as suas próprias regras
e não as do governo.
Dentro da visão do ataque promovido pela União ao poderio estadual
e municipal, Gary Gerstle defende que o CAP se transformou em uma parte
importante das zonas de embate. Mesmo com os conflitos gerados, ele ainda
teve sucesso em reduzir o poder independente dos estados, municípios e
das oligarquias que os apoiavam. Retornando a sua tese sobre a importância
da Guerra Fria para o fortalecimento da União, ele afirma que a ordem
bipolar também foi responsável pelo financiamento dos programas da
Guerra à Pobreza, ao mesmo tempo em que o movimento pelos direitos
civis contribuiu para transformar a luta contra o poder dos estados em
um imperativo moral. Se o CAP vai servir como parte da estratégia do
governo em reduzir o poderio estatal, ao mesmo tempo irá ser utilizado pelo
movimento negro como espaço para ampliação das reivindicações sociais e
econômicas, de aumento da sua participação política e utilização de verbas
governamentais para transformações e investimento nas suas comunidades.
Ou seja, existiu uma apropriação do programa pelos grupos sociais que
acabou gerando modificações da sua constituição e no seu propósito.
Em “The Rise of the Public Religious Welfare: Black Religion and the
Negotiation of Church/State Boundaries during the War on Poverty” de Omar
M. McRoberts, a religião aparece como um instrumento social na análise de
como a Guerra à Pobreza vai aumentar suas relações com as Igrejas negras
nos anos de 1960. A profunda ligação entre o movimento pelos direitos civis
e o cristianismo não foi deixada de lado pelo OEO ao traçar estratégias para
o CAP e, com a expansão do welfare, as negociações entre Estado e Igreja
também cresceram. McRoberts destaca o papel do Office of Civil Rights na
promoção das atividades religiosas do OEO. O Office of Civil Rights era o

258
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

responsável por fiscalizar o cumprimento de práticas de igualdade racial


e, por isso, tinha contato com vários grupos do movimento pelos direitos
civis, inclusive os religiosos. Tais contatos foram incentivados pelo diretor do
OEO, Sargent Shriver, veterano do Movimento Católico Interracial, defensor
dos ideais promovidos pela justiça social católica e antigo responsável pelos
Peace Corps no governo Kennedy. Shriver via com grande entusiasmo o
aprofundamento nas relações entre o OEO, Igrejas e organizações religiosas.
Nesse sentido, o autor percebe uma aproximação com o public religious
welfare, uma teologia baseada na justiça e promotora de alívio da pobreza e
desigualdade com reformas no governo e corrigindo consequências negativas
do capitalismo baseado no laissez-faire (MCROBERTS, 2015).
A busca por apoio religioso interferiu na construção da linguagem
do CAP e na postura de Shriver e Johnson em relação aos grupos do
CAP que tinham como base as igrejas negras. Segundo McRoberts, houve
uma grande preocupação em separar a União da religião, sendo a religião
privada, do crente individual, encorajada e apreciada como parte do CAP.
Considerando a postura dos liberais acerca da separação entre Igreja e
Estado, não poderia a Guerra à Pobreza abrir margem para uma reação
conservadora nesse sentido. Contudo, a aproximação das igrejas negras com
o OEO não foi tão pacífica quanto o esperado pelos membros do governo.
A militância dentro das Igrejas se fortalecia paulatinamente, sendo muitas
delas associadas ao nacionalismo negro e opostas a presença do OEO. Com
o crescimento da organização negra em oposição ao welfare promovido pelo
governo federal, os membros do CAP buscavam ao máximo fortalecer os
seus laços com aquelas Igrejas e líderes religiosos mais abertos às propostas
institucionais como forma de contrabalançar a expansão do black power.
Quando Martin Luther King adere a discursos mais militantes sobre o
welfare e os Estados Unidos, o segmento não-violento do movimento pelos
direitos civis parecia se afastar cada vez mais do OEO, dificultando as ações
programadas pelo governo.
Para o OEO, a proximidade com igrejas e grupos religiosos, seja
através da criação de CAPs, o apoio às atividades das igrejas ou do uso de
uma linguagem moral com base religiosa na Guerra à Pobreza, pareceu uma
prioridade na tentativa de equilibrar as relações com as comunidades negras
em um momento de ascensão da ideologia negra militante. Por um lado, a

259
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

força das lideranças religiosas nas comunidades poderia ser uma importante
porta de entrada para os programas da Guerra à Pobreza. No entanto, o
crescimento da radicalização do movimento negro, em grande parte como
consequência da atuação dos EUA no Vietnã, era um obstáculo difícil de
ultrapassar. Por outro lado, os líderes religiosos utilizavam do seu poder de
influência naquelas comunidades para barganhar mudanças e ampliação de
seus poderes com o OEO, alterando o funcionamento dos CAPs e se negando
a corroborar com estratégias propostas pela organização, que eram vistas
como inadequadas pelas lideranças. Nesse sentido, a Guerra à Pobreza era
uma maneira de utilizar a experiência de luta e as ideias por trás dos civil
rights para continuar a batalha pela ampliação da liberdade e da democracia
por outras frentes (BAUMAN, 2008: p.7). O valor da influência dos líderes
religiosos para o OEO era utilizado como moeda de barganha para tornar
os projetos da Guerra à Pobreza mais interessantes para esses grupos.
Antes mesmo da Guerra à Pobreza lançar projetos de associação com
grupos religiosos e igrejas que promoviam serviços sociais, as organizações
religiosas desempenhavam importante função no apoio social e econômico
nas regiões mais empobrecidas dos Estados Unidos. Em especial sobre a
comunidade negra, há uma tradição desde a abolição na formação de grupos
de apoio e ajuda a partir de igrejas Cristãs Protestantes. Com o movimento
pelos direitos civis e o seu braço ligado à religião, grupos como a Southern
Christian Leadership Conference (SCLC) dispunham de programas próprios
com o objetivo de promover alívio e auxílio aos mais pobres. Um desses
programas foi a Operation Breadbasket, com funcionamento de 1962 até 1972,
tinha como meta melhorar as condições econômicas das comunidades negras
nos Estados Unidos (BELTRAMINI ,2013).
A Operation Breadbasket foi inicialmente dirigida por Fred C.
Bannette Jr., amigo da família King, e passou por diversas regiões do país
como Atlanta e Chicago. O foco inicial do programa refletia a preocupação
das igrejas negras com justiça e igualdade econômica, por isso o objetivo era
lutar pela dessegregação dos empregos e a criação de novas oportunidades
dentro da comunidade negra, inclusive incentivando o empreendedorismo.
Foi em Chicago, segundo Beltramini Enrico, que o programa alcançou o
ápice do seu sucesso. No ano de 1967, o então estudante Jesse Jackson era
o diretor local do office e se destacou pelo êxito no auxílio do crescimento

260
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

de empreendedores negros e se aliou em outras causas como o Chicago


Freedom Movement liderado por Martin Luther King Jr.. A princípio, a
Operation Breadbasket esteve bastante conectada com as táticas tradicionais
do movimento pelos direitos civis religioso, porém, ao passar dos anos,
houve uma maior radicalização das pautas com a morte de Luther King
e aproximação dos ativistas do black power, que desde o início tinham
contato com o programa por muitas vezes convergirem com o pensamento
dos membros das igrejas sobre a necessidade de melhorar as condições
econômicas dos negros. O afastamento das bases religiosas as substituiu
por uma militância menos ligada na questão da justiça e mais enfática na
urgência de transformação na condição de desigualdade econômica que
os negros viviam. Essa mesma situação foi enfrentada pelo OEO com a
radicalização do movimento negro e do próprio movimento pelos direitos
civis, o que representou para o governo uma dificuldade e um afastamento
entre parte das lideranças negras dos agentes do OEO.

Conclusão
Inserida em um projeto que pretendia ampliar as bases deixadas
pelo New Deal e de reatualizar o welfare state para um novo contexto de
grandes tensões político-sociais e pressão por novos direitos coletivos,
especialmente a questão dos direitos civis, a Guerra à Pobreza aliou políticas
destinadas ao combate da carestia com outras destinadas aos direitos civis
e à inclusão social e econômica dos negros e outras minorias. Em conjunto
com as decisões da Suprema Corte e ao fortalecimento do National Security
State, a Grande Sociedade de Lyndon Johnson foi responsável por um
substancial ataque ao poderio e autonomia dos estados e municípios a partir
do endurecimento do poder da União, ao tornar o repasse de verbas dos
programas sociais atrelados a fiscalização do governo central e também na
substituição de lideranças locais por, ou membros do OEO, ou líderes dos
grupos sociais beneficiados pelos projetos. Naquele momento de enorme
pressão social, os estados e municípios perderam as estruturas básicas que
lhes permitiam excluir deliberadamente minorias raciais dos programas de
benefícios sociais do governo e muitos membros das oligarquias apoiadoras
dessas práticas perderam seus postos de poder para serem substituídos por
líderes de movimentos sociais.

261
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

A Guerra à Pobreza, apesar de nunca se declarar como um projeto de


auxílio aos negros nos Estados Unidos, tinha como preocupação fundamental
a atuação entre este grupo da sociedade. Desde as reflexões sobre o impacto
da pobreza e da desigualdade social, aos problemas urbanos decorrente
dos conflitos nos guetos, o OEO vai admitir estratégias, já utilizadas pelos
movimentos negro e de luta por direitos civis, em seus programas. Isso
representou uma tentativa de institucionalizar medidas e projetos que já
eram conhecidos pelos grupos, como ao exemplo da Operation Breadbasket.
A mobilização de bases religiosas é bastante emblemática no sentido da
administração do OEO compreender quais elementos da cultura afro-a-
mericano poderiam ser inseridas naquele programa, em um diálogo entre
os objetivos do governo e as demandas do movimento negro.
Contudo, fazer uso de meios e signos já existente entre a comunidade
negra não facilitou o processo de disseminação dos programas da Guerra à
Pobreza a partir do contato com as lideranças comunitárias, no sentido de
que, mesmo com o CAP demonstrando apoio aos grupos religiosos e uma
abertura para maior participação direta, houve uma reação muito forte da
comunidade negra em face ao comando dos membros do OEO nos projetos
sociais. Já existia uma familiaridade entre os negros com programas de auxílio
que eram criados dentro das próprias comunidades e com os criados pelo
governo central. Sendo assim, não era interessante participar de projetos
institucionais que tentassem reorganizar a vida comunitária ou pretendessem
“ensinar” para essas lideranças como administrar os recursos e melhorar
a vida daqueles cidadãos. Houve muita desconfiança com as intenções do
Partido Democrata, que demorou a aprovar a lei pelos direitos civis e estava
cada vez mais envolvido na Guerra do Vietnã.
Além disso, a capacidade de transformação dos programas da
Guerra à Pobreza por parte das lideranças comunitárias assustou o governo
central e os membros do OEO, inclusive os intelectuais que auxiliaram na
elaboração e execução do projeto com seus cargos no OEO. Para eles, a
cláusula de máxima participação comunitária não significaria, por exemplo,
a utilização do espaço das agências e mesmo da verba para a organização de
piquetes aos departamentos de bem-estar público ou o boicote ao sistema
escolar. Ao mesmo tempo, a lógica da manutenção do silenciamento do
movimento negro é visível na ideia por trás da Grande Sociedade, que se

262
POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

utiliza de estratégias presentes no movimento pelos direitos civis no combate


à desigualdade, mas não previa que esses mesmos negros tentassem alterar
as estruturas previamente pensadas pelos intelectuais brancos associados ao
governo ou que trabalhavam no OEO. A surpresa dos membros do OEO com
as demandas das lideranças comunitárias e a resistência de comunidades na
cooperação com a Guerra à Pobreza nos moldes inicialmente apresentados
também é interessante, no sentido de tornar evidente o quanto esses
intelectuais se entendiam portadores dos desejos dessas comunidades, mas
sem consulta-los ou coloca-los como parte da liderança da Guerra à Pobreza.
Apenas com o decorrer do programa governamental o Partido Democrata
passou a abrir as portas para lideranças negras comunitárias, que tiveram
sua representação política ampliada.
Ainda assim, os programas da Guerra à Pobreza representaram a
abertura de um espaço para disputas de poder entre as mais variadas esferas
políticas. Enquanto a União atacava diretamente a liberdade dos estados e
municípios na administração das verbas e na criação de regimentos morais
que modificavam as bases dos programas federais, o movimento negro e
as lideranças comunitárias tomavam conta do espaço antes ocupado por
oligarquias sem interesse em auxiliar tais setores. Ademais, as tensões sociais
se refletiram na organização da estrutura dos projetos e na introdução
dos grupos sociais, fazendo com que estas estruturas se alterassem ainda
mais ao longo do tempo. A ampliação da relação entre os democratas e as
lideranças comunitárias também abriu espaço no partido para a entradas
desses representantes na vida política. Aos poucos, o movimento pelos
direitos civis conquistou maior espaço dentro da organização da Guerra à
Pobreza e da estrutura partidária.

Referências
BAUMAN, Robert. Race and the War on Poverty: From Watts to East L.A;
Norman: University of Oklahoma Press, 2008.
BELTRAMINI, Enrico. “SCLC Operation Breadbasket: From Economic
Civil Rights to Black Economic Power”. Fire!!!, Expanding the Narrative:
Exploring New Aspects of the Civil Rights Movement Fifty Years Later,
Vol. 2, No. 2, 2013.

263
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NAS AMÉRICAS:

BILLINGTON, Monroe. “Lyndon B. Johnson and Blacks: The Early Years.” Journal
of Negro History 62, January 1977, 26–42.
GERSTLE, Gary. “A State Both Strong and Weak.” American Historical. Review
115, no. 3 (2010): 778-85.
______________. Liberty and Coercion: The Paradox of American
Government; Princeton: Princeton University Press, 2015.
INMAN, Robert P.; RUBINFELD, Daniel L. “Rethinking Federalism”.
Journal of Economic Perspectives, Vol. 11, Nº4, 1997, pp.43-64.
JOHNSON, Lyndon. State of The Union Address, 8 de janeiro de 1964.
Disponível: http://www.presidency.ucsb.edu/ws/index.php?pid=26787&s-
t=johnson&st1=war+on+poverty (Acesso: 26/08/2015).
LEUCHTENBURG, William E. “The Pertinence of Political History:
Reflections on the Significance of the State in America.” Journal of American
History,73, Dezembro, 1986, 585-600.
MCROBERTS, Omar. “The Rise of the Public Religious Welfare: Black
Religion and the Negotiation of Church/State Boundaries during the War
on Poverty” in SPARROW, James; NOVAK, William; SAWER Stephen
(eds). Boundaries of the State in US History; Chicago. The University of
Chicago Press, 2015.
NOVAK, William J. “The myth of the ‘weak’ American state “.The American
Historical Review. Vol. 113, No. 3,Jun., 2008, pp. 752-772.
PIVEN, Fraces. Regulating the Poor: The Functions of Public Welfare; New
York: Vintage Books, 1993.Versão Kindle.

264
Este livro foi publicado pela editora da
Universidade de Pernambuco em 2021.

As fontes usadas foram a Cormorant e a Segoe UI.

Você também pode gostar