Você está na página 1de 184

Patrimônio, Paisagem e Cidade - 1

Organizadores

Marta Enokibara
Nilson Ghirardello
Rosio Fernández Baca Salcedo

PATRIMÔNIO, PAISAGEM E
CIDADE

1ª Edição

ANAP
Tupã - SP
2016
2

EDITORA
ANAP - Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
Rua Bolívia, nº 88, Jardim América, Cidade de Tupã, São Paulo. CEP 17.605-310.
Contato: (14) 3441-4945
www.editoraanap.org.br
www.amigosdanatureza.org.br
editora@amigosdanatureza.org.br

Revisão Ortográfica: Joselilian Lopes Miralha

Capa e contracapa: Campo de Santana (RJ)


Foto: Marta Enokibara (2016)

Para edição desta obra foi firmada uma parceria entre ANAP – Associação Amigos da
Natureza da Alta Paulista com Programa de Pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo (PPGARQ) da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
FAAC/UNESP- Campus de Bauru.

Ficha Catalográfica

EN59p Patrimônio, paisagem e cidade / Marta Enokibara, Nilson Ghirardello


e Rosio Fernández Baca Salcedo (orgs) – Tupã: ANAP, 2016.

182 p ; il. Color. 14,5 cm

ISBN 978-85-68242-45-2

1. Patrimônio 2. Arquitetura 3. Paisagem 4. Cultura


I. Título.

CDD: 720
CDU: 720/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Arquitetura
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 3

CONSELHO PARECERISTAS “ad hoc”


Profª Drª Alina Gonçalves Santiago - UFSC
Prof. Dr. Eduardo Romero de Oliveira – UNESP – Campus de Rosana
Prof. Dr. Euler Sandeville Júnior - FAU/USP
Prof. Dr. José Aparecido dos Santos - FAI
Prof. Dr. José Geraldo Simões Jr - UPM
Prof. Dr. Josep Muntañola Thornberg - UPC -Barcelona, Espanha
Prof. Dr. Marcelo Zárate - UNL de Santa Fé, Argentina
Profª Drª Margareth de Castro Afeche Pimenta - UFSC
Profª Drª Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci - IAU-USP

CONSELHO PARECERISTAS PERMANENTE


Profª Drª Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE
Prof. Dr. André de Souza Silva - UNISINOS
Profª Drª Angélica Góis Morales – FCA/UNESP
Prof. Dr. Antônio Cezar Leal – FCT/UNESP
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM
Prof. Dr. Antonio Fluminhan Jr. – UNOESTE
Prof. Dr. Arnaldo Yoso Sakamoto – UFMS
Prof. Dr. Daniel Dantas Moreira Gomes – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Daniela de Souza Onça – UDESC
Prof. Dr. Edson Luís Piroli – UNESP – Campus de Ourinhos
Profª Drª Eloisa Carvalho de Araujo - UFF
Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCAR
Profª Drª Flávia Akemi Ikuta – UFMS
Profª Drª Isabel Cristina Moroz Caccia Gouveia– FCT/UNESP
Prof. Dr. João Cândido André da Silva Neto – UEA / CEST
Prof. Dr. Joao Osvaldo Rodrigues Nunes– FCT/UNESP
Prof. Dr. José Carlos Ugeda Júnior – UFMS
Prof. Dr. Junior Ruiz Garcia – UFPR
Profª Drª Jureth Couto Lemos – UFU
Profª Drª Kênia Rezende – UFU
Prof. Dr. Luciano da Fonseca Lins – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Maira Celeiro Caple – Universidade de Havana – Cuba
4

Profª Drª Marcia Eliane Silva Carvalho – UFS


Prof. Dr. Marcos Reigota – Universidade de Sorocaba
Profª Drª Maria Betânia Moreira Amador – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
Profª Drª Natacha Cíntia Regina Aleixo – UEA
Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha – FCT/UNESP
Prof. Dr. Pedro Fernando Cataneo – FCA/UNESP
Prof. Dr. Rafael Montanhini Soares de Oliveira – UTFPR
Profª Drª Regina Célia de Castro Pereira – UEMA
Profª Drª Renata Ribeiro de Araújo – FCT/UNESP
Prof. Dr. Ricardo Augusto Felício – USP
Prof. Dr. Ricardo de Sampaio Dagnino – UNICAMP
Profª Drª Roberta Medeiros de Souza – UFRPE – Campus Garanhuns
Prof. Dr. Roberto Rodrigues de Souza – UFS
Prof. Dr. Rodrigo José Pisani – Unifal
Prof. Dr. Rodrigo Simão Camacho – UFGD
Prof. Dr. Ronaldo Rodrigues Araújo – UFMA
Profª Drª Rosa Maria Barilli Nogueira – UNOESTE
Profª Drª Simone Valaski – UFPR
Profª Drª Silvia Cantoia – UFMT – Campus Cuiabá
Profª Drª Sônia Maria Marchiorato Carneiro – UFPR
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................ 07
Marta Enokibara
Nilson Ghirardello
Rosio Fernández Baca Salcedo

Capítulo 1 ................................................................................... 09

MÉTODO DE ENSINO DO PROJETO ARQUITETÔNICO: UMA


PROPOSTA DIALÓGICA
Paula Valéria Coiado Chamma
Rosio Fernandez Baca Salcedo

Capítulo 2 ................................................................................... 35

HABITAÇÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE DIALÓGICA NA AMBIÊNCIA DO


CENTRO HISTÓRICO
Juliana Cavalini Martins
Rosio Fernández Baca Salcedo

Capítulo 3 ................................................................................... 59

RIOS E FERROVIAS: CONEXÕES E IDENTIDADE ENTRE A CIDADE E


PAISAGEM
Norma Regina Truppel Constantino
Fernanda Moço Foloni
Karla Garcia Biernath

Capítulo 4 ................................................................................... 83

ENTRE A FORMOSURA E O REFRIGÉRIO: A VEGETAÇÃO NOS


JARDINS DO RECIFE NOS ANOS 1920
Aline de Figueirôa Silva
Joelmir Marques da Silva
6

Capítulo 5 ................................................................................... 101

RAÍZES DO PAISAGISMO NO BUTANTAN: O HORTO OSVALDO CRUZ


E A CONTRIBUIÇÃO DE F C HOEHNE
Erika Hingst-Zaher
Luíza Teixeira-Costa

Capítulo 6 ................................................................................... 129

ÁRVORES E ESPAÇOS PÚBLICOS: SOBRE A ENTRADA DO 'VERDE'


NA CIDADE DE SÃO PAULO
Eliane Guaraldo

Capítulo 7 ................................................................................... 155

ARBORIZAÇÃO URBANA COMO PATRIMÔNIO DA CIDADE


Karin Schwabe Meneguetti
Andréia Gonçalves
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 7

APRESENTAÇÃO

Marta Enokibara1
Nilson Ghirardello2
Rosio Fernández Baca Salcedo3

Esta coletânea intitulada “Patrimônio, paisagem e cidade” é


fruto de esforço coletivo de professores do Programa de Pós
Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGARQ), da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), UNESP, Campus de Bauru,
em parceria com a Editora da ANAP, Associação Amigos da Natureza
da Alta Paulista.
Embora, relativamente jovem, o PPGARQ tem crescido tanto
em relação a importância de sua produção cientifica, como pela
demanda, cada vez mais intensa de interessados em suas vagas,
firmando-se rapidamente como um dos bons Programas da
Universidade Pública, no estado de São Paulo.
Os capítulos aqui apresentados são de autoria de conceituados
pesquisadores da UNESP, bem como de docentes ligados a outras
consagradas universidades do país e do exterior, que cobrem, com
seus trabalhos, as áreas de Teoria, História e Projeto, uma das duas
linhas de pesquisa de nosso Programa.
A chamada para este livro ocorreu sob forma de edital,
contemplando os seguintes temas: Patrimônio Arquitetônico e
Urbano; Formações e Expansões Urbanas e Patrimônio Paisagístico e
Difusão Vegetal.

1
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, marta@faac.unesp.br
2
Doutor, Docente do PPGARQ – UNESP, nghir@faac.unesp.br
3
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, rosiofbs@faac.unesp.br
8

Dessa forma, o leitor encontrará artigos que focam a Cidade, a


Paisagem e o Patrimônio. Estes temas possuem como estudo de caso
urbes de portes variados situadas em diversas regiões do país e do
exterior, incluindo, um olhar cuidadoso sobre a cidade pequena e
média, o que também coincide com uma das preocupações do
PPGARQ. Tal olhar reveste-se de especial interesse visto que as
cidades pequenas e médias são parcamente estudadas, permitindo-
se, assim, desmistificar o senso comum que aponta que sua
dimensão enseja grau de complexidade menor nas pesquisas.
Dessa forma, convidamos a todos a terem o prazer de ler os
trabalhos aqui apresentados.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 9

Capítulo 1

MÉTODO DE ENSINO DO PROJETO ARQUITETÔNICO: UMA


PROPOSTA DIALÓGICA

4
Paula Valéria Coiado Chamma
5
Rosio Fernández Baca Salcedo

1 INTRODUÇÃO

Formar um arquiteto e urbanista significa prepará-lo para


resolver os problemas da sociedade com habilidades e competências
de diferentes áreas da ciência. A boa preparação do arquiteto
começa com a observância dos valores éticos, culturais e históricos
que devem prevalecer sobre a lógica capitalista. Todo projeto deve
ser uma resposta crítica e criativa ao contexto e não deve ser
conduzido apenas pelas tendências mercadológicas.
O desenvolvimento das competências necessárias para atuar
em projetos de arquitetura em contextos históricos, vem ganhando
espaço nas escolas de arquitetura em função da relevância histórica,
arquitetônica e cultural das edificações e de sua ambiência. Diante do
abandono, da descaracterização e das práticas projetuais que vêm
atentando contra a identidade e autenticidade do patrimônio
arquitetônico e urbano, torna-se relevante empenhar-se cada vez
mais no ensino de projetos de intervenção em áreas históricas,

4
Doutora, Docente do Curso de Design das Faculdades Integradas de Bauru.
arq.paula.chamma@gmail.com
5
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, rosiofbs@faac.unesp.br
10

levando a salvaguarda do patrimônio e ao atendimento das


necessidades sociais, ambientais e físicas do lugar.
No Brasil, a mínima carga horária prática e o insuficiente
embasamento teórico e filosófico encontrado nos planos de ensino
das disciplinas Técnicas Retrospectivas ou Patrimônio Cultural de
diferentes escolas de arquitetura comprometem o desenvolvimento
das competências e habilidades na formação do aluno. Além disso, a
carência na formação do docente na área patrimonial compromete a
atuação do futuro profissional de arquitetura. Com base nessa
premissa, surge a proposta dialógica de metodologia de ensino de
patrimônio arquitetônico e urbano, baseada na teoria de Mikhail
Bakthin (1997), na dialogia de Muntañola (2000) e na hermenêutica
de Ricoeur (2003).
Os métodos científicos de ensino de patrimônio apoiaram-se,
por muito tempo, apenas nos estudos dos teóricos do restauro. Após
o presente estudo concluiu-se que a fundamentação teórica e
metodológica necessita de conceitos como:
a) ensino de projetos em contextos históricos (conceito de
educação, fundamentos de educação, teorias de
aprendizagem, métodos de ensino, ensino de
arquitetura, ensino de projetos da disciplina Técnicas
Retrospectivas ou Patrimônio Cultural);
b) arquitetura, urbanismo e paisagismo (conceito de
arquitetura e suas subáreas, conceito de cidades
históricas, centros históricos e sítio histórico, conceito de
lugar e sua relação com a identidade, memória e história,
conhecimento de métodos de intervenção em contextos
históricos de cidades consolidadas: teorias de restauro,
cartas patrimoniais, reabilitação e projetos novos);
c) arquitetura dialógica (narratividade de Bakthin, a
hermenêutica de Ricoeur e a topogênesis de Muntañola).

Para uma obra dialógica, é necessário considerar a ética, a


partir do conhecimento do saber fazer aristotélico, ou seja, conhecer
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 11

as leis do lugar, seu uso social, além de respeitar os princípios morais,


a partir do juízo de valores. O correto procedimento profissional
depende de princípios éticos, respeitando, principalmente, os
anseios, desejos e as aspirações da comunidade local.
Além da ética, os conhecimentos estéticos devem estar
presentes na arquitetura dialógica por nortear a beleza a partir dos
parâmetros vivenciados pela comunidade local. A verdadeira beleza
do lugar é aquela que causa surpresa e remete ao imaginário
coletivo. Deve ser um signo, uma referência, ter valor simbólico e,
sobretudo, respeitar as necessidades e aspirações dos usuários.
A dialogia em arquitetura compreende “o pensamento
arquitetônico em Bakhtin, ou seja, a relação estética entre forma e
conteúdo, e nas interações entre a arte, a ciência e a estética”
(SALCEDO et al., p.229).

2 OBJETIVO DO MÉTODO DIALÓGICO

No método proposto, a obra de arquitetura dialógica deve


considerar as dimensões do tempo mental, ou seja, a etapa projetual
(prefiguração), o tempo cosmológico ou construção propriamente
dita (configuração) e o tempo histórico ou tempo de uso
(refiguração). Portanto, o objetivo do método é desenvolver uma
arquitetura dialógica que considere o texto, o contexto, a
fundamentação teórica e metodológica.

3 FUNDAMENTOS DO MÉTODO DIALÓGICO

3.1 O ENSINO DE PROJETOS EM CONTEXTOS HISTÓRICOS

No desenvolvimento de projetos em contextos históricos, há


conceitos fundamentais que devem ser considerados e revistos
constantemente, tanto pelos arquitetos-educadores como pelos
12

arquitetos-aprendizes, em uma relação interpessoal que também


deve ser dialógica, em que ambos ensinam e apreendem. O processo
educacional deve ser o resultado da ação-reflexão contínua, com
interação entre seus autores, independentemente de quem ensina e
quem aprende.
Em educação, para se alcançar os objetivos desejados é
necessário agir metodologicamente.

A metodologia de ensino é o conjunto de procedimentos didáticos,


representados por métodos e técnicas de ensino que visam levar a
bom termo a ação didática, que é alcançar os objetivos do ensino e,
consequentemente, da educação, com o mínimo esforço e máximo
rendimento. (NÉRICE, 1983, p.284).

Portanto, a metodologia sempre aborda um conjunto de


métodos e técnicas que obedecem aos princípios científicos.
A metodologia de ensino de projeto de arquitetura pode
abordar vários métodos para investigar um problema projetual em
situações de aprendizagem. O método dialógico de ensino de
projetos de arquitetura em áreas históricas é baseado em princípios
teóricos e filosóficos que se apoiam em outras áreas da ciência como
psicologia, comunicação e educação (RICOEUR, 2003; BAKTHIN, 1997
PIAGET, 2007; FREIRE, 1988) e também na área de arquitetura
(MUNTAÑOLA, 2000). Esses princípios são aplicados no ensino de
projetos em áreas históricas (restauro, conservação, reabilitação e a
reconstrução de edifícios e conjuntos urbanos).

3.2 ARQUITETURA, URBANISMO E PAISAGISMO

A arquitetura é uma atividade essencialmente artística, de


natureza estética e que atende às necessidades individuais e da
coletividade. O seu principal objetivo é a elaboração de projetos para
serem executados, ou seja, é a materialização de ideias em obras
construídas. A arte e a técnica se aproximam atendendo aos
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 13

procedimentos construtivos, às normas técnicas, ao uso de


máquinas, equipamentos e ferramentas. As evoluções técnicas e dos
materiais de construção influenciam diretamente na Arquitetura. Ao
olhar do arquiteto, para cada novo material ou nova técnica
construtiva, ampliam-se as possibilidades criativas de aplicação
prática.
A intencionalidade do arquiteto transforma construções em
lugares especiais de se viver, transforma paisagens e edificações em
testemunhas do estilo de vida e do cotidiano de uma sociedade em
diferentes épocas.
Os centros históricos estão caracterizados pela especificidade
do lugar em relação aos aspectos físicos, históricos, simbólicos,
sociais e ambientais. As intervenções em áreas históricas necessitam
de um trabalho interdisciplinar, coordenado por arquitetos com
habilidades e competências para desenvolver projetos que ponderem
aspectos históricos, sociais, culturais, políticos, econômicos, físicos,
ambientais e urbanos, além de um aprofundamento teórico, técnico,
metodológico e filosófico.
A elaboração de projeto de patrimônio arquitetônico e urbano
envolve conceitos como: lugar, topofilia, cidades, centros e sítios
históricos, restauração, reabilitação e projetos novos.
O lugar é o espaço vivenciado, é o espaço das memórias e
representa identidades sociais. Segundo Krotz (1994 p. 10) os
contatos culturais nunca se dão no espaço vazio, ou seja, não podem
ser isolados a partir da dinâmica da história universal dos povos que
compreendem.
Na visão de Tuan (1983, p. 6) “o que começa como espaço
indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos
melhor e o dotamos de valor”.
Percebemos os espaços de diferentes formas e o conceito de
lugar apresenta uma variabilidade em função das diferentes áreas da
ciência. Tuan (1983, p.6) define que o lugar está relacionado à
14

segurança e estabilidade, e espaço à liberdade e ao movimento. A


palavra lugar pode ser entendida como espaço ocupado, ponto de
referência, ambiente, espaço que nos dá a sensação de identidade. A
interação do homem com o espaço deve passar pela história do lugar
e pela história de vivências individuais.
Além da identidade, outros fatores qualificam um espaço,
transformando-os em lugar. Esses fatores são a singularidade e o
simbolismo. Com base em Bergamim (2013), é possível entender que,
na arquitetura, o lugar é um espaço qualificado que se torna
percebido pela população por conter significados profundos,
expressos substancialmente através de imagens.
Cada pessoa tem sua própria identidade, com suas
singularidades e um conjunto de características que lhe é peculiar. E
assim, cada pessoa estabelece uma relação específica com o lugar,
em função de sua percepção. Ao se desenvolver projetos de
arquitetura em áreas históricas, a identidade social deve ser
valorizada. O simbólico é aquilo que torna o lugar algo peculiar e que
outros grupos podem não perceber essa peculiaridade por não
estarem inseridos no mesmo contexto social e histórico.
Para Moreira e Hespanhol (1997, p.54) “a identidade, o
sentimento de pertencimento e o acúmulo de tempos e histórias
individuais constituem o lugar”. Segundo os autores, o lugar guarda
em si o seu significado e as dimensões do movimento da história,
apreendidos pela memória através dos sentidos. Há uma
multiplicidade de relações e especificidades da produção espacial
global (MOREIRA e HESPANHOL, 1997).
O espaço torna-se lugar à medida que se estabelece a
identidade e essa se consolida no tempo. Os símbolos e seus
significados qualificam um espaço tornando-o testemunha de um
momento histórico que a memória perpetua.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 15

A arquitetura inscreve no espaço uma forma que aspira à


durabilidade. A história, por seu lado, inscreve no texto um relato
que visa também a uma permanência de sentido. Mesmo tendo em
conta que seu objeto é a mudança das sociedades no tempo, a
narrativa histórica aspira salvar o passado para o presente e registrar
para o futuro um discurso explicativo sobre o tempo. A memória é,
por definição, uma luta contra o esquecimento. Nesta medida,
arquitetura, memória e história poderiam ser definidas como
atividades humanas marcadas pelo enfrentamento com o tempo,
assegurando registros voltados para a durabilidade. (PESAVENTO,
2005, p.15).

Para o estudo do patrimônio, é necessário considerar tanto a


memória individual como a memória coletiva. Ambas podem ser
consolidadas a partir dos laços topofílicos. Segundo Tuan (1980, p.5),
“topofilia é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico”.
O apego ao lugar pode representar o passado e a identidade dos
habitantes levando a consolidação da memória coletiva, que
contribui para a preservação.
O processo de declínio vivenciado nos centros históricos tem
comprometido a memória e a identidade, em face da
descaracterização que sofrem. As áreas centrais urbanas, ainda que
com toda carga histórica que contêm, estão tornando-se cada vez
mais decadentes e abandonadas.
Os centros históricos merecem projetos que dialoguem com
esse lugar. Os projetos de intervenção arquitetônica e urbana, em
áreas históricas, devem representar essa compreensão e ter como
fundamentação teórica a dialogia baseada nas teorias de Ricoeur
(2003), Muntañola (2000) e Bakhtin (1997), bem como nos métodos
de restauração de Giovannoni (2013), Brandi (2013), Boito (2008) e
nas cartas patrimoniais.
O arquiteto, ao receber uma formação acadêmica que tenha
por objetivo o compromisso ético, estético e científico, estará
preparado para lidar com o patrimônio arquitetônico urbano,
valorizando as áreas centrais degradadas.
16

Os centros históricos representam principalmente o traçado


inicial da cidade, são estruturas urbanas e arquitetônicas que
expressam as manifestações políticas, econômicas, sociais, culturais e
tecnológicas, das formações sociais dos diferentes períodos
históricos (SALCEDO, 2007, p.15).
Para Salcedo (2007, p. 23) o centro histórico refere-se
fundamentalmente às categorias: administrativa, histórica, urbana,
arquitetônica, social econômica e ambiental. A categoria urbana
aborda a formação inicial da cidade representada pelo traçado
urbano, pelas edificações e pelos espaços livres e seus mobiliários. O
sítio histórico urbano (SHU) comporta paisagens naturais e
construídas, as vivências passadas e presentes de seus habitantes,
em processo dinâmico de transformação. São, portanto,
testemunhos ambientais em formação.
O estudo das concepções sobre patrimônio arquitetônico e as
metodologias de intervenção transformaram-se ao longo da História.
Contradições conceituais deixaram marcas e perpetuaram-se como
referência do modus operandi em relação à forma de atuar com bens
culturais.
Importantes conceitos foram definidos por Brandi (2013),
Boito (2008) e Giovanonni (2013) tanto em relação às teorias de
restauro das edificações como do espaço urbano. A partir deles,
recomendações transformaram-se em cartas patrimoniais, tendo
como orientação precursora a Carta de Atenas de 1931 (IPHAN,
2004), seguida de cartas patrimoniais, normas, resoluções,
manifestos e declarações recentes, abarcando temáticas diversas
relacionadas ao patrimônio e reunindo a visão de especialistas do
mundo todo.
Muitas áreas centrais urbanas estão tornando-se cada vez mais
decadentes e aprimorar a formação do arquiteto em relação ao
restauro arquitetônico é uma necessidade urgente. Há uma relação
intrínseca entre o desenvolvimento urbano e a descaracterização
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 17

socioespacial e territorial. A reabilitação pode significar uma


renovação. Esse termo tem aderência às intervenções em áreas
centrais, podendo ser um processo de requalificação urbana.

Ao conceito de reabilitação (ou requalificação) atribuiremos uma


ação que preserva, o mais possível, o ambiente construído existente
(pequenas propriedades, fragmentação no parcelamento do solo,
edificações antigas) e dessa forma também os usos e a população
moradora. A reforma necessária procura não descaracterizar o
ambiente construído herdado. Nos edifícios busca-se fazer
“intervenções mínimas” indispensáveis para garantir conforto
ambiental, acessibilidade e segurança estrutural (MARICATO, p.126,
2001).

As transformações pelas quais as áreas centrais vêm sofrendo,


principalmente as cidades de médio e grande porte, têm exigido dos
arquitetos uma postura ética, científica e estética (tríplice natureza
dialógica) apontada por Muntañola (2000).
Os projetos para construções novas, em contextos históricos,
deveriam ser integrados à paisagem edilícia do contexto, respeitando
suas características, seus gabaritos de altura e aspectos formais das
edificações existentes (SALCEDO, 2009, p. 78). Dessa forma, o
arquiteto tem papel atuante na sociedade, sendo o criador de
edificações que se perpetuaram na história ou defensor do
patrimônio arquitetônico.

3.3 ARQUITETURA DIALÓGICA

A Arquitetura é reconhecidamente um ato criativo, feito por e


para pessoas. O arquiteto deve estar atualizado em relação às
inovações, ao bem social e as interações humanas.
Na educação, as inovações também são necessárias. O
arquiteto-educador não pode repetir os mesmos métodos e técnicas
de ensino, sem que haja um processo reflexivo de sua ação
pedagógica. O ensino de projetos é um ato social e dialógico. Assim
sendo, a prática educativa deve ser dialógica e não monológica
18

tirando do professor o papel de monovalente e detentor das


verdades e da tomada de decisões.
O caminho da reflexão na ação é à base do pensamento de
Schön (2000, p.25) que reconhece, no ensino do processo de projeto
nos cursos de Arquitetura e Urbanismo, o processo de reflexão na
ação, uma vez que no ateliê de projetos deve haver a liberdade para
aprender através do fazer.
Para Salcedo et al. (2015, p.230)

A capacidade de se dirigir a alguém ou algo desde outro alguém ou


outro algo é essencial na teoria dialógica do conversar que pressupõe
uma intenção de se dirigir, de comunicar, não individual, se não
social.

Nessa perspectiva, a “voz do aluno” deve ter espaço na


produção do conhecimento, enriquecendo as relações polifônicas.

3.3.1 A narratividade de Ricoeur

Paul Ricœur nasceu em Valence (1913) e faleceu em Paris


(2005). Foi um dos grandes filósofos e pensadores franceses do
período posterior à Segunda Guerra Mundial. Ficou conhecido pelos
seus estudos no campo da linguagem, especificamente da filosofia da
linguagem, através de estudos sobre Freud, Marx e Nietzsche. Suas
reflexões filosóficas acerca da natureza, da narrativa e da abordagem
linguística e poética podem ser constatadas também na arquitetura.
Para Ricoeur (2003, p. 13), a analogia da arquitetura com a
narratividade é organizada em três dimensões sucessivas:
prefiguração, configuração e refiguração; definidas em tempo e
relato com a denominação de mimesis, isto é, representação criativa.
No relato, a primeira fase é a prefiguração, usada na vida
cotidiana, na conversação, antes de se transformar em forma
literária. Já na arquitetura, a prefiguração estaria vinculada à ideia. A
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 19

segunda fase do relato, chamada de configuração, é aquela em que o


ato de narrar se liberta do contexto da vida cotidiana e penetra no
campo da literatura (RICOEUR, 2003, p. 17). Portanto, a narração se
registra mediante a escritura e a técnica narrativa. Na arquitetura, a
configuração é a construção no espaço do projeto arquitetônico, ou
seja, o ato de construir, de configurar o espaço. O ato de configuração
se divide em três etapas:

(...) por una parte, la puesta-en-intriga, que he definido como la


sintesis de lo heterogéneo, por otra parte, la inteligibilidad- el intento
de esclarecer lo inextricable - y finalmente, la confrontación de
vários relatos, colocados ao lado de otros, frente o detrás de ellos, es
decir, la intertextualidad (RICOEUR, 2003, p.20).

A refiguração narrativa é a compreensão de um relato (leitura


e releitura). Na arquitetura, a refiguração é o uso, ou seja, o
confronto dos usuários com o espaço concebido para os edifícios e
para a cidade. Nela a compreensão do espaço é vivenciada (leitura ou
releitura do espaço e da própria vida) a partir de nossa maneira de
habitar.
O uso da obra arquitetônica pode representar fielmente a
intenção do arquiteto, tal qual foi pensado, adequado à sua função.
Mas pode se opor ao proposto e promover sensações diversas em
seus usuários, pois é o momento em que o espaço se refigura, se
desfazendo ou refazendo, dependendo de quem dele faz uso.

3.3.2 A dialogia de Bakthin

Mikahil Mmikhalovich Bakhtin, filósofo e pensador russo,


nasceu em 1895 na cidade de Oriol e faleceu em Moscou no ano de
1975. Foi um dos mais importantes teóricos da linguagem social
humana. O dialogismo defendido por ele foi de grande importância
para as áreas do conhecimento que têm a produção da linguagem
como objeto de estudo. Tornou-se o líder intelectual do Círculo de
20

Bakthin. Consolidou o termo “Cronotopo” que provém dos termos


gregos “Kronos”, cujo significado é tempo e “Topos”, que significa
lugar e se refere às relações que existem entre tempo e espaço nas
obras literárias, mas que também podem ser percebidas na
arquitetura.
O diálogo arquitetônico, ou seja, a relação entre o projeto, a
sua leitura, o seu contexto e o objeto final é caracterizada por Mikhail
Bakhtin (1999), como a Dialogia de uma obra. Portanto, a dialogia
inicia-se pela compreensão do texto arquitetônico, ou seja, o estudo
do projeto, o seu percurso, até a realização da obra; finalizando
assim, com seu uso.
Segundo Zúquete (2000) essa análise só pode ser realizada e
interpretada dialogicamente entendendo o contexto histórico e
interpretando os fatos políticos e sociológicos em que a obra está
inserida.
Bakhtin, com sua teoria aplicada à arquitetura, sugere um
método de projeto fundamentado nas relações cronotópicas que
constituem, identidade, memória e história do lugar e de seus
habitantes.

3.3.3 A topogênesis de Muntañola

O arquiteto espanhol Joseph Montañola Thornberg, nascido


em 1940, é um teórico de arquitetura, catedrático da Universidade
Politécnica de Cataluña.
Para Munañola (2000), o lugar é o elo entre a história e o
sujeito, sem o qual rompe a razão entre a história e o sujeito. O
momento em que o espaço ganha o significado de lugar é quando
nele se estabelecem as relações afetivas, a identidade e a memória.
Muntañola (2006) relaciona corpo e arquitetura em uma
analogia cronotópica e fenomenológica descrita por Bakhtin (1999,
apud MUNTAÑOLA, 2006 e 2007) e teorizada por Ricoeur (2003). Seu
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 21

entendimento de arquitetura passa pela ideia de uma espécie de


amarração física e social do texto arquitetônico. Com ele surge o
termo topogênesis, ou seja, da gênese (origem e formação) do lugar
habitado.
A topogênesis orienta o desenvolvimento da arquitetura
considerando o lugar habitado, com sua a tríplice natureza dialógica
e assim valorizando os aspectos estéticos, científicos e éticos
(MUNTAÑOLA, 2007 p. 9).
A relação entre Arquitetura e Dialogia Social é definida por
Muntañola (2002, p. 37) em três tempos diferentes: o tempo mental
(projeto), tempo cosmológico (construção) e o tempo histórico e
social (apropriação social do lugar), constituindo as três dimensões
fundamentais da arquitetura como um elo entre o corpo humano,
entre o entorno e a história social dos seres humanos. O autor
constrói uma estrutura dialógica da arquitetura considerando as
dimensões estética, ética e científica (tríplice natureza dialógica).
Além disso, estabelece a relação entre lugar e história em três fases:
o projeto (prefiguração), o objeto construído (configuração) e a
história e o uso do objeto já construído (refiguração).
Muntañola (2004, p.23) ressalta a importância da teoria de
Ricoeur a partir da análise do valor prefigurativo do projeto como um
projetar histórias, ou seja, a compreensão de qualquer história como
uma cadeia de projetos; de prefigurações e de inovações, que hoje
não são novos, mais foram em maior ou menor medida.

4 MÉTODO DE ENSINO DIALÓGICO DE PROJETO ARQUITETÔNICO

No método dialógico, o processo de projeto baseia-se:


a) na análise do CONTEXTO, ou seja, na percepção do
espaço, da percepção de cada contexto particular
envolvido no projeto (Quadro 1), no conhecimento
científico, ético e estético necessário para o arquiteto;
22

b) com as informações obtidas no CONTEXTO (abordagem


teórico-filosófica), o TEXTO (projeto) deve surgir como a
melhor resposta ao CONTEXTO;
c) O TEXTO ARQUITETÔNICO se materializa quando as
variáveis projetuais (Quadro 2) são aplicadas;
d) A partir dos exemplos (Quadro 3) de arquitetura dialógica,
o arquiteto-aprendiz compreende todo o projeto dialógico,
ou seja, identifica que a boa arquitetura sempre responde
positivamente ao seu contexto, causando surpresa e
emoção, tal qual um texto poético.

4.1 O CONTEXTO

O contexto é o cenário para a realização do método dialógico.


Assim, cada projeto requer a leitura dos contextos particulares. O
Quadro 1 sintetiza as características de cada contexto que deve ser
observado para uma proposta dialógica.

Quadro 1: Características dos Contextos pelo Método Dialógico

Contextos Características
Físico Leitura do lugar histórico em relação às suas construções (estilo e
características arquitetônicas, possíveis patologias construtivas, o estado de
conservação ou de degradação/abandono), em relação às camadas
históricas que possui e em relação às intersecções sociais que interferem
nas suas características (segregação físico-espacial).
Ambiental Leitura do lugar em relação à localização, área, clima (precipitação
pluviométrica, temperatura, umidade, insolação, radiação), à vegetação
(características e predominâncias), topografia e geomorfologia (relevo,
declividade, áreas suscetíveis à desastres naturais e ambientais), ao solo
(tipo, características, erosão, fertilidade), à hidrografia (recursos hídricos
superficiais e subterrâneos, escoamento, inundações), fauna, arborização e
paisagem urbana, aos recursos naturais e fontes de energia, impactos
gerados pelo uso e ocupação e possíveis implicações em relação às novas
obras de arquitetura, geração e manejo de resíduos.
Histórico Peculiaridades e fatos relevantes relacionados à: lugar, projetos,
construções, conjuntos históricos relacionados à proposta de intervenção,
personalidades importantes ou grupos familiares importantes que
habitaram o lugar, guerras ou desastres naturais envolvendo o lugar.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 23

Contextos Características
Urbano Evolução urbana (origem, relevância histórica, área de influência), lugar-
signo e identidade, morfologia urbana (desenho das quadras, ruas,
edifícios, relação edílícia, tipologias), mobilidade e sistema viário (eixos,
estrutura viária, fluxos, gabaritos, pontos de atração e de conflito, serviços
e meios de transporte, acessibilidade), ideologias políticas que interferem
no espaço urbano, segurança do lugar, Plano Diretor e leis de uso de solo
urbano (taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, interferências
nas definições de gabaritos, legislações, vazios urbanos, parcela pública do
território) equipamentos públicos (localização, proximidade ao lugar de
intervenção, usuários), mobiliário urbano, infraestrutura (abastecimento de
água, fornecimento de energia elétrica, tratamento de esgoto e de
resíduos), presença de grupos sociais antecedentes (indígenas,
colonizadores), relações com as áreas rurais, regionais e área de influência
nacional e internacional.
Econômico Renda per capita do lugar e relação com o PIB (produto interno bruto),
atividades comerciais, industriais, serviços, relações com a economia
agrícola, instituições financeiras, valor agregado à imagem do lugar, ao
marketing positivo e negativo do lugar, à especulação imobiliária,
empregabilidade e a crises econômicas que afetaram ou afetam o lugar.
Político Organização administrativa e relação entre instâncias governamentais,
legislação municipal, aspectos jurídicos do lugar, órgãos municipais e
interferências dos conselhos, planejamento municipal e programas de
governo, conflitos políticos, políticas públicas, canais de comunicação entre
instâncias públicas e privadas, mecanismos de gestão e
favorecimento/impedimentos à gestão participativa.
Social População do lugar (densidade populacional, tendências de crescimento
populacional, descendência, naturalidade, grupos étnicos antecedentes,
reconhecimento do valor dos antecedentes, população predominante),
análise dos grupos sociais (sexo, nível de instrução, estado civil, poder
econômico, trabalho/profissão, tempo de serviço, renda bruta), identidade,
relações de convívio social, ações sociais e organizações sociais.
Cultural Atuação de grupos culturais, personalidade de referência cultural, políticas
de apoio cultural, equipamentos culturais e educacionais antecedentes e
atuais, tradições, costumes, valores, memórias individuais e coletivas,
festas, afetividade, nível de conscientização cultural dos habitantes do
lugar, exploração pública e privada da cultura do lugar, modos de habitar.
Fonte: Elaborada pelos autores.

4.2 O TEXTO COMO RESPOSTA AO CONTEXTO

Para realização da ação projetual pelo método dialógico,


devem ser consideradas as variáveis do Quadro 2, sabendo-se que
uma delas pode prevalecer sobre as demais, tornando-se a tônica do
projeto. No entanto, todas as variáveis (vozes) têm a mesma
importância no projeto dialógico.
24

Quadro 2: Variáveis projetuais pelo Método Dialógico

Contextos Características
Contemporaneidade Buscar o contraste ou relação com a arquitetura tradicionalista e
seus valores atualizados (tradição x atualização).
Densidade Propor um espaço que atenda o maior número de pessoas, sem
afetar os aspectos qualitativos de uso e ocupação do lugar.
Diversidade Sugerir novos modos de uso em função das diversidades sociais.
Estudo Criar diferentes possibilidades de materialização do projeto, de
de viabilidades modo que todas as “vozes” que antecedem o programa de
necessidades possam ser ouvidas.
Hibridação Buscar novos usos, valorizando o antigo através do novo (novo x
velho).
Inovação Propor novas maneiras de fazer, ou seja, novos arranjos em
relação às habituais tipologias, considerando uso de tecnologias,
parâmetros de sustentabilidade e preservação.
Inteligibilidade Demonstrar a interpretação dos contextos, materializando a
identidade do lugar e as forças motoras do projeto.
Intensidade Propor um espaço capaz de atender os usuários plenamente.
Intertextualidade Demonstrar a intencionalidade projetual, com a tomada de
decisões que estabelecem as relações dialógicas entre a
linguagem arquitetônica contemporânea e o contexto,
considerando a tríplice natureza dialógica (ciência + estética +
ética).
Síntese Propor um espaço que demonstre convergências e divergências
do heterogêneo presentes no programa de necessidades, ou seja, as contradições
que geram a dialogia do projeto.
Sustentabilidade Propor um espaço sustentável em relação às proximidades de
serviços, capaz de promover o aproveitamento dos materiais
durante sua construção (materiais de baixo impacto) e após seu
uso.
Fonte: Elaborada pelos autores.

5 ARQUITETURAS DIALÓGICAS COMO RESPOSTA AO CONTEXTO

No método dialógico, os arquitetos-educadores podem


estimular os arquitetos-aprendizes a identificarem as características
de uma obra dialógica a partir da análise de antecedentes projetuais,
como nos exemplos apresentados a seguir (Quadro 3).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 25

Quadro 3: Antecedentes projetuais pelo Método Dialógico

Projeto A: Cidade da Cultura

Fonte: http://www.cidadedacultura.gal/en/content/gaias-centre-museum

Projetada pelo arquiteto Peter Eisenman, localizada em Santiago de Compostela


(Espanha), reuniu o passado e o futuro, por meio de elementos que constituem a
identidade sócio-cultural e física do lugar. Foi inspirado na cidade de Santiago de
Compostela, na cultura galega e na história religiosa dos caminhos, tendo como variável
projetual dialógica mais marcante a hibridação, por valorizar o antigo através do novo.

Projeto B: Igreja de Santa Maria Assunta

Fonte: http://www.archdaily.com/161448/ad-classics-riola-parish-church-alvar-aalto

A igreja de Santa Maria Assunta em Riola, localizada em Grizzana Morandi, Itália, projetada
pelo arquiteto Alvar Aalto, finalizada em 1978. O projeto respeita a paisagem local, tanto
pela forma como pelo material empregado. Notam-se diversas variáveis dialógicas nesse
projeto: a inteligibilidade (a identidade do lugar é a força motora do projeto), a síntese do
heterogêneo (contrastes luz e sombra, retas e curvas, peso e leveza), a intertextualidade
(demonstra a intenção do arquiteto com estética/ética considerando o contexto).
26

Projeto C: Museu Judaico de Berlim

Fonte: http://simplesmenteberlim.com/judisches-museum-berlin-museu-judaico-de-
berlim/

O Museu judaico de Berlim, do arquiteto Daniel Libeskind, representa o elo entre a história
e seus personagens. A obra afeta sensorialmente o usuário. Destacam-se entre as
variáveis: a síntese do heterogêneo (contrastes arquitetônicos) e a hibridação, com a
valorização do antigo através do novo (novo x velho).

Projeto D: Instituto do Mundo Árabe

Fonte: http://marlosbakker.com.br/shop/gallery/wish-you-were-here-instituto-do-mundo-
arabe/?lang=pt

O Instituto do Mundo Árabe, do arquiteto Jean Nouvel, inaugurado em 1987 em Paris,


apresenta elementos característicos da arquitetura ocidental e árabe (muxarabis)
integrando culturas e respeitando a história do lugar. Nesse projeto está presente a síntese
do heterogêneo, com os contrastes de luz e sombra. Destaca-se também a inovação, ou
seja, propor novas maneiras de fazer habituais tipologias, por meio da tecnologia.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 27

Projeto E: Piscina das Marés

Fonte: http://www.matosinhosport.com/gca/?id=440

Foi projetada pelo arquiteto Alvaro Siza, construída em Matosinhos, Portugal. Nessa obra
está presente a intensidade, pois é utilizada por pessoas de todas as faixas etárias, por
cidadãos e turistas. Destaca-se também a inteligibilidade, visto as relações entre sua obra e
a paisagem (relação com as marés, com os rochedos, respeito com o nível entre a praia e
avenida, a harmonia dos materiais utilizados).

Projeto F: Teatro Everyman

Fonte: http://archtendencias.com.br/arquitetura/teatro-everyman-haworth-tompkins/

O Teatro Everyman de Haworth Tompkins, é uma obra-prima do arquiteto Sir Denys


Lasdun. O edifício é marcado pelo tempo, pela história, pelo uso, pelo envolvimento da
comunidade local com a construção. Nele destaca-se a intensidade por atender os usuários
plenamente e fazer com que se sintam parte da construção, estabelecendo relações de
afetividade com o lugar.
28

Projeto G: Cemitério Brion

Fonte: http://italiaperamore.com/arquitetura-carlo-scarpa-tomba-brion/

O Cemitério Brion de San Vito D'Altivole, projetado por Carlo Scarpa criou um ambiente
contemplativo que vai além de um memorial, devido a sua diferenciada implantação,
forma e detalhamento. A proposta projetual é inovadora, já que rompeu com as habituais
tipologia de cemitérios. Destaca-se ainda a intertextualidade por surpreender, emocionar e
levar a reflexão sobre a vida, demonstrando plenamente a intencionalidade do projeto.

Projeto H: Centro Galego da Arte Contemporânea

Fonte: http://porabrantes.blogs.sapo.pt/tag/
centro+galego+de+arte+contempor%C3%A2nea

O Centro Galego de Arte Contemporânea de Ávaro Siza, em Santiago de Compostela se


integra com a vizinhança do convento de São Domingos de Bonaval, onde se encontra
o Panteão de Galegos Ilustres, Museu do Povo Galego e o parque de São Domingos. O
Centro apesenta total harmonia com o seu entorno e preserva a arquitetura tradicional,
destacando-se assim a variáveis dialógicas da diversidade e contemporaneidade.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 29

Projeto I: Praça das Artes

Fonte: http://brasilarquitetura.com/projetos/praca-das-artes

A Praça das Artes, em São Paulo foi projetado por Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz e
Luciana Dornellas com Marcos Cartum. O novo uso do projeto (refiguração) respeita a
situação preexistente, destacando-se assim a hibridação.

Projeto J: Mercado de Santa Caterina

Fonte: http://www.p10designstudio.com/iconic-barcelona-volume-1/

O Mercado Santa Caterina em Barcelona foi projetado por Enric Miralles e Benedetta
Tagliabue, que respeitou o tecido urbano, a estrutura existente e a história local. O projeto
fez uma interferência na cidade, através da hibridação, misturando o existente e o novo,
com a construção da cobertura em mosaico feita em material cerâmico sobre a estrutura
existente, tal qual uma tenda. O mosaico é uma alusão colorida das frutas e dos legumes.
30

Projeto K: Sesc Pompéia

Fonte: http://bedelho.r7.com/conjunto-arquitetonico-do-sesc-pompeia-pode-ser-
tombado-pelo-iphan/

O Sesc Pompéia, projetado por Lina BoBardi em 1977, localizado na cidade de São Paulo,
apresenta relação dialógica entre o antigo e o novo, cumprindo seu papel ético e estético.
O edifício respeitou a identidade do período arquitetônico e histórico em que foi
construído, bem como as relações humanas com o trabalho, assim a ética + estética se
completam. Entre as variáveis dialógicas projetuais, destacam-se a contemporaneidade e
a densidade.

Projeto L: Memorial Steilneset

Fonte: http://www.dezeen.com/2012/01/03/steilneset-memorial-by-peter-zumthor-and-
louise-bourgeois/

O Memorial Steilneset foi projetado por Peter Zomthor em homenagem àqueles que
foram perseguidos nos Julgamentos de Bruxaria do século XVII, localizado na costa do Mar
de Barents em Vardo, na Noruega. O estudo de viabilidades é um ponto marcante do
projeto já que houve a materialização das “vozes” que antecedem um programa de
necessidades conectado ao contexto histórico-cultural.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 31

Projeto M: Pousada Pedra Grande

Fonte: https://arcoweb.com.br/projetodesign/arquitetura/miguel-pereira-e-tagore-
pereira-pousada-imbituba-sc-25-11-2005

Situada na praia do Rosa, litoral catarinense (Imbituba-SC) a Pousada Pedra Grande foi
projetada por Miguel Pereira e Tagore Pereira que respeitaram o contexto ambiental em
sua proposta projetual. Nesse projeto está presente a sustentabilidade, devido à
integração que tem com o ambiente e pela simplicidade das técnicas construtivas como
uma resposta ao contexto.

Fonte: Elaborada pelos autores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No método de ensino dialógico de projetos de arquitetura, o


arquiteto-aprendiz deve ser motivado a ver o lugar como espaço
vivenciado, espaço que manifesta as memórias, as experiências e a
identidade social. Para tanto, deve ler as linhas e entrelinhas, ou seja,
ler o espaço e seu contexto.
A estética, um dos tripés da arquitetura dialógica, compreende
a poética e a retórica. Esse é um método que vê no arquiteto a
oportunidade de torná-lo um poeta, pois o professor vai em conjunto
com seu aluno escrever uma poesia arquitetônica. O professor deve
ser um agente facilitador, oferecendo ao seu aluno a fundamentação
teórica, filosófica e metodológica para capacitá-lo na prática de
projetos de intervenções em áreas urbanas.
32

Assim, esse método só será possível se for pautado em um


processo educacional resultante da ação-reflexão contínua, ou seja,
da interação dialógica entre professores e alunos.
Ao propor esse método, espera-se tornar a materialidade da
arquitetura surpreendente, valorizando a memória, a identidade, a
cultura e a história do lugar.

REFERENCIAL

BAKHTIN,Mikkail.Estéticadacriaçãoverbal.2.ed.SãoPaulo:Martins Fontes,
1997.
BERGAMIM, Juliane Stenzinger. Geografia em questão. Arquitetura e
Geografia: como as diferentes ciências conceituam lugar. Vol. 6, n. 2, pág.
167-180, 2013
BOITO, C. Os restauradores. Tradução de Paulo Mugayar Kühl, Beatriz
Mugayar Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, Coleção Artes & Ofícios, 2008.
BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kühl.
São Paulo: Ateliê Editorial, Coleção Artes & Ofícios, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
GIOVANONNI,G. Textos Escolhidos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (BRASIL).
Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, 343p.
_______. Cartas Patrimoniais. 3º ed. rev. aum. – Rio de Janeiro: IPHAN,
2004, 408p.
_______. IPHAN, 2004. Disponível em
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_299_de_6_de_Jul
ho_de_2004.pdf. Acesso em: em 20 out. 2016.
KROTZ, E.: Alteridad y pregunta antropológica. In: Alteridades Nº 8. Págs. 5-
11. 1994.
MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades. Alternativas para crise urbana.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 33

MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Portaria 1770/MEC, de 21 de


dezembro de 1994.
MOREIRA, Erika Vanessa; HESPANHOL, Rosângela Aparecida de Medeiros. O
lugar como uma construção social. Revista Formação, n⁰14 volume 2 – p.
48‐60, 1997.
MUNTAÑOLA T. J. Topogenesis. Fundamentos de una nueva arquitectura.
Barcelona: UPC, 2000.
_______. Arquitectura, Modernidad y Conocimiento. Revista
Arquitectonics. Mind, Land & Society. Arquitectura y Dialogia, Barcelona:UPC,
n. 2, 2002.
_______. Arquitetura 2000. Projetos, territorios y culturas. Revista
Arquitectonics. Mind, Land & Society, nº 11. Barcelona: UPC, 2004.
_______. Hacia una aproximación dialógica a la arquitectura con-
temporanea. Revista Arquitectonics. Mind, Land & Society. Arquitectura y
Dialogia, Barcelona: UPC, n. 13, p. 63-76, 2006.
_______. Las formas del tiempo. Serie Arquitectura.Badajoz, España: Editora
@becedário, 2007.
NÉRICE, Imídeo Giuseppe. Didática geral dinâmica. Atlas: São Paulo, 1983. 9
ed.
PESAVENTO, Sandra Jatahy (2005). Cadernos do LEPAARQ – Textos de
Antropologia, Arqueologia e Patrimônio. V. II, n°4. Pelotas, RS: Editora da
UFPEL. Ago/Dez 2005.Acesso em 30 de novembro de 2014.Disponível em:
http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/lepaarq/article/viewFile/893/
873.
PIAGET, Jean. Para onde vai a educação?. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2007.
RICOEUR, Paul. Arquitectura y narratividad. Revista Arquitec- tonics. Mind,
Land & Society. Arquitectura y Hermenéutica, Barcelona: UPC, n. 4, p. 9-29,
2003.
SALCEDO, Rosio F. B. A reabilitação das residências nos Centros Históricos da América
Latina. Cusco (Peru) e Ouro Preto (Brasil). São Paulo: Editora UNESP, 2007.

_______. Recomendações para a salvaguarda do patrimônio arquitetônico


e urbano nos centros históricos. In: FONTES, Maria Solange Gurgel de Castro;
CONSTANTINO, Norma Regina Truppel; BITTENCOURT, Luiz Cláudio (Org.).
34

Arquitetura e urbanismo. Novos desafios para o século XXI. Bauru-SP: Canal


6, 2009, 69-82.
SALCEDO, R.F.B.; CHAMMA, P.V.C.; MARTINS, J.C.; PAMPANA,A. .
Arquitetura Dialógica o Contexto do Centro Histórico: o Método. In:
PASCHOARELLI, L.C.; SALCEDO, R.F.B. (Org.).Interação: Panorama da
Pesquisa em Design, Arquitetura e Urbanismo. 1 ed. Bauru: Canal 6, 2015,
v.1, p.227-237.
SCHON, Donald A. Um novo design para o ensino e a aprendizagem. São
Paulo. Artemed Editora S.A.2000
TUAN, Y. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Rio Claro: DIFEL, 1980
_______. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel,
1983.
ZÚQUETE, Ricardo. Ensaios: Uma análise dialógica sobre habitaçãosocial -
Portugal 1950/80. 2000. Tese (doutorado) UPC e Escola Superior Técnica
d´Arquitectura de Barcelona, Barcelona, 2000.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 35

Capítulo 2

HABITAÇÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE DIALÓGICA NA


AMBIÊNCIA DO CENTRO HISTÓRICO

Juliana Cavalini Martins6


Rosio Fernández Baca Salcedo7

INTRODUÇÃO

Os centros históricos e sua ambiência apresentam uma


configuração morfológica específica para cada contexto urbano, uma
memória e uma identidade cultural que devem ser levadas em
consideração na ação projetual.
Para Salcedo (2007, p. 109), os centros históricos representam
o traçado inicial da cidade composto por arquiteturas que expressam
manifestações políticas, econômicas, culturais e sociais que
evoluíram ao longo do tempo e se apresentam como testemunhos de
civilizações passadas. Enquanto que ambiência é “o quadro natural
ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica de
conjuntos históricos, ou a eles se vincula de maneira imediata no
espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (CARTAS
PATRIMONIAIS, 1976, RECOMENDAÇÕES DE NAIRÓBI, p. 3). Nesse
sentido, quando se trata da ambiência do centro histórico, neste
trabalho, faz-se referência ao Bairro San Basílio, em Roma na Itália.

6
Mestre em Arquitetura e Urbanismo, PPGARQ – UNESP, arq.julianacavalini@hotmail.com
7
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, rosiofbs@faac.unesp.br
36

A habitação social é uma demanda da população com baixo


poder aquisitivo, e que, em sua maioria, prefere viver no centro
urbano, próximo do trabalho, ainda que às vezes em péssimas
condições de habitabilidade - muitas vezes em cortiços.
O conceito de habitabilidade, segundo Brandão (2005) vem do
latim habere, do ter e do ter-se no mundo, de tomar posse dele e de
si. “Uma das formas do ser humano constituir sua posse de si e do
mundo é edificando o seu habitat, no qual define e funda seus
hábitos, sua habitualidade, e dá-lhes lugar, ou seja, cria uma morada,
abriga os seus costumes”. A habitabilidade de um espaço cria o bem-
estar quando se conforma um meio através do qual o habitante se
conquista, se identifica, se vê abrigado em seus costumes, seus
hábitos, e encontra no habitat um modo de se ter, de encontrar-se. A
habitabilidade não se limita apenas às condições físicas da unidade
habitacional em si, mas a partir de uma visão ampla e integrada de
suas várias dimensões e componentes, inclui a segurança da posse da
terra, o traçado e a morfologia do assentamento, a infraestrutura, os
serviços públicos e equipamentos comunitários, e as condições de
acesso e mobilidade (MARTINS, 2016).
As condições de habitabilidade, no que se refere à
configuração urbana, de acordo com Brandão (2005), considera-se
como princípio básico a permanência da população nas suas áreas de
origem, buscando manter as características do parcelamento e da
estrutura fundiária, bem como respeitar as estruturas físicas das
edificações existentes, para que se possa, a partir daí, elaborar
projetos de intervenções específicos para essas áreas.
Segundo a Blueprint for Addressing the Global Affordable
Housing Challenge (2014), são 330 milhões de famílias em todo o
mundo que vivem hoje em moradias abaixo do padrão adequado. A
Organização das Nações Unidas (ONU) também reconhece que, sem
empenho dos governos e outros investidores para resolver a
demanda habitacional, a população de baixa renda se encontrará sob
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 37

pobreza urbana extrema, más condições de moradia e de saúde nos


próximos anos.
Um dos fatores apontados como entrave para o acesso à
moradia é a pequena oferta de crédito e de facilidade da população
pobre para comprar uma residência. O Brasil aparece no relatório da
ONU como um dos países onde é mais difícil obter financiamento
para a casa própria, onde o financiamento representa apenas 2% do
PIB, enquanto esse percentual chega a 70,4% na Europa.
Para atender a demanda do déficit habitacional em Roma, a
Prefeitura implementou o Programmi di Recupero Urbano (PRU),
destinado às famílias com renda anual de até vinte mil euros.
Aqui, interessa-nos saber se o PRU atende às necessidades
sociais, econômicas, culturais, urbanas e ambientais dos
beneficiados, pois alguns estudos têm demonstrado a importância
das relações entre o projeto e seu contexto para atingir uma
arquitetura dialógica, capaz de satisfazer plenamente os usuários
(MUNTAÑOLA, 2006; RAPOPORT, 1984; ZARATE, 2015).
Os contextos históricos abrangem desde os centros históricos,
os monumentos históricos, os conjuntos históricos e os centros
urbanos consolidados. Tratando-se de contexto histórico, os projetos
de habitação nesta área devem levar em consideração o próprio
conceito de habitar, os métodos de intervenção, lugar, cultura,
memória, e dialogia.
Parte-se do pressuposto de que não é possível entender uma
obra arquitetônica, sem antes entender o lugar em que esta obra
está inserida. Lugar entendido como ambiente físico, social e
simbólico (ZÁRATE, 2015), interessa as inter-relações entre este algo
ou alguém que habita o lugar e o lugar em si (MUNTAÑOLA, 2001, p.
17). O texto, neste trabalho, refere-se à habitação. Sua essência nos
tempos atuais é viver com satisfação em lugares com arquiteturas e
tecnologias adequadas, confortáveis, seguras, saudáveis e integradas
no seu contexto (SALCEDO, 2011, p. 163). Segundo Rapoport (2003,
38

p. 63) a tipologia da habitação está diretamente condicionada por


sua cultura, portanto, cada unidade de habitação e cada edifício
expressam o modo de vida e características físico-sociais de seus
moradores.
Em se tratando de contexto histórico, qual seria a maneira
adequada para intervir nessa área? Várias são as teorias e os
métodos de restauração que podem ser aplicados para a salvaguarda
do patrimônio (BOITO, 2003; BRANDI, 2004; GIOVANNONI, 2013;
IPHAM, 2004). Além da restauração, a reabilitação é um dos métodos
de intervenção bastante utilizado nos edifícios da região central das
cidades (MARICATO, 2001, p.126), e os projetos novos devem
compreender e interpretar seu contexto para uma integração
harmoniosa no tecido urbano (SALCEDO, 2009, p.78-79).
Para saber se o PRU, através da reabilitação de edifícios na
ambiência do centro histórico de Roma é uma resposta dada ao seu
contexto urbano, recorreremos à dialogia. Muntañola (2000, p. 12)
busca fundamentos de uma dialogia entre texto (arquitetura) e
contexto, onde o contexto é para o texto o lugar da dialogia e
ressalta ainda que, a arquitetura pressupõe uma intenção de se
comunicar, não individual, mas social, sendo a arquitetura dialógica a
resposta sociofísica ao lugar. A comunicação da arquitetura com seu
contexto não é estático, é dinâmico, e transcorre em uma dimensão
cronotópica, assim, uma boa arquitetura, ou seja, uma arquitetura
dialógica é realizada em uma relação cronotópica do texto (objeto
arquitetônico) com o seu contexto (entorno, ambiência), nas
dimensões tempo-espaço ricoeurianas, que são: a prefiguração, a
configuração e a refiguração, articuladas com as três dimensões
dialógicas da vida humana, que são: a estética, a ética e a ciência.
A ciência corresponde às normas, regras, leis que todo
arquiteto deve saber. A estética é o “saber fazer” que, para
Muntañola (2007), significa “fazer bem feito” e a ética explica “como
fazer”, considerando todas as características do entorno, materiais,
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 39

etc. Para o entendimento da ética, na arquitetura dialógica, é preciso


aceitar as diferenças de lugares, de pessoas, de culturas e de valores.
Não há ética em projetos que padronizam os espaços sem considerar
as diferenças e as semelhanças do “eu” e do “outro”. Os lugares
idênticos, daqueles que podem ser construídos em qualquer parte do
planeta, tornam-se sem significados e, portanto, monológicos e não
dialógicos.
De acordo com Ricoeur (2003, p. 13), a prefiguração, estaria
vinculada à ideia, ao projeto arquitetônico, e é na prefiguração que
se compreende o espaço. A configuração é a construção do edifício
no espaço, ou seja, o ato de configurar o espaço. E a refiguração vem
a ser o uso social da obra arquitetônica. Portanto, “a dialogia inicia-se
pela compreensão do texto arquitetônico, ou seja, o estudo do
projeto, o seu percurso, até a realização total da obra; terminando no
seu uso” (SALCEDO, CHAMMA, MARTINS, PAMPANA, 2015, p. 230).
Essa análise só pode ser realizada e interpretada dialogicamente
entendendo o contexto histórico e interpretando os fatos políticos e
sociológicos em que a obra está inserida (ZUQUETE, 2000).
Para saber, se o PRU atende às necessidades sociais,
econômicas, culturais, urbanas e ambientais dos moradores,
utilizaremos o Método da Arquitetura Dialógica, com base na
fundamentação teórica e filosófica de Bakhtin, Ricoeur e Muntañola.

OBJETIVO

Analisar as relações dialógicas do Programmi di Recupero Urbano


(PRU), na ambiência do centro histórico de Roma, através da reabilitação do
Conjunto Residencial San Basilio, destinado à habitação social.

MÉTODO: ARQUITETURA DIALÓGICA

Com base na dialogia de Bakhtin (2003), o método dialógico é


entendido como a relação cronotópica do texto com o seu contexto,
40

nas dimensões tempo-espaço de Paul Ricoeur (2003) e articuladas


nas três dimensões dialógicas da topogênese de Muntañola (2000)
que são: a estética, a ética e a ciência. Tratando-se de projetos de
reabilitação para habitação social, as fases analisadas são:
degradação, reprefiguração (projeto de reabilitação), reconfiguração
(construção da reabilitação) e re-refiguração (uso social e percepção
dos usuários).
No contexto foi abordado o PRU e a viabilidade urbana e
ambiental do Bairro San Basílio, em Roma, Itália. O PRU foi analisado
segundo os seguintes critérios: beneficiários, órgão de
financiamento, valor mensal da prestação da unidade habitacional,
tipologia habitacional, área de atuação, período de atuação e
sustentabilidade. Na viabilidade urbana foram analisados os
seguintes critérios: proximidade da moradia com o serviço, comércio,
transporte público, e na viabilidade ambiental: espaços públicos
livres (ruas, praças, parques e mobiliário urbano). Utilizamos como
parâmetro de avaliação de qualidade as Referências de
Escalonamento Urbano de Pitts (2004) (Tabela 1).

Tabela 1 - Indicadores de equipamentos comunitários e serviços


EQUIPAMENTO
RAIO DE INFLUÊNCIA EQUIPAMENTOS RAIO DE INFLUÊNCIA
S
Escola 300 m Comércio 700 m
Centro de
1.000 m Serviços 2.000 m
saúde
Ponto de
500 m Praças e parques 600 m
Ônibus
Fonte: Pitts (2004)

O texto (habitação social) do Conjunto Residencial San Basilio


foi analisado segundo as fases de: degradação, reprefiguração,
reconfiguração e re-refiguração.
Degradação: estado de conservação dos edifícios.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 41

Reprefiguração: os critérios de análise foram: intenção


projetual, compreensão, interpretação, hibridação, morfologia
edilícia, inovação e preservação.
Reconfiguração: foi analisada a densidade, a relação dos
edifícios com o contexto urbano, materialidade, custos da
construção, tipologia habitacional, área construída por tipologia e
sustentabilidade. A área construída por tipologia de habitação teve
como base a proposta de Ornstein (2003) (Tabela 2).

Tabela 2. Escala de valores área construída por tipologia de habitação


TIPOLOGIA ESCALA DE VALORES
APARTAMENTO ÓTIMO BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO
Conjugado ou com ≥ 55,1 46,0 a 36,0 a 45,0 27,0 a ≤ 26,0
um dormitório 55,0 35,9
Dois dormitórios ≥ 72,1 60,0 a 50,0 a 59,0 37,5 a ≤ 37,4
72,0 49,9
Fonte: Coelho e Pedro (1998, apud Ornstein, 2003), adaptado pelas autoras.

Re-refiguração: os critérios analisados foram: a composição


das famílias, a área construída por habitante, nº de habitantes por
dormitório, grau de satisfação com a moradia, expectativas dos
usuários, viabilidade social, econômica, urbana e ambiental.
Para a análise do número de habitantes por dormitório foi
considerada a proposta de Salcedo (2007, p. 157) (Tabela 3).

Tabela 3. Escala de valores, nº de habitantes por dormitório


ESCALA DE VALORES
ÓTIMO BOM REGULAR RUIM
Nº DE USUÁRIOS Um habitante Dois Três Mais de três
/DORMITÓRIO ou habitantes / habitantes / habitantes /
Casal / dormitório dormitório dormitório
dormitório
Fonte: Salcedo (2007)

A análise da área construída por habitante (m²/habitante) teve


como base o Decreto Ministerial de Obras Públicas da Itália, de 5 de
julho de 1978. Em função da área construída mínima por habitante
42

(14,00m²), foi definida a seguinte escala de valores: ótimo (mais de


25% acima do mínimo estabelecido), bom (igual ou até 25% acima do
mínimo estabelecido), ruim (até 25% abaixo do mínimo estabelecido)
e péssimo (mais de 25% abaixo do mínimo) (Tabela 4).

Tabela 4. Escala de Valores - área construída/habitante

ESCALA DE VALORES
Nº DE ÁREA
ÓTIMO BOM RUIM PÉSSIMO
HABITANTES (m²)
(m²) (m²) (m²) (m²)
1 14,0 ≥ 17,5 14,0 a 17,4 10,5 a ≤ 10,4
2 28,0 ≥ 35,0 28,0 a 34,9 13,9 ≤ 20,9
3 42,0 ≥ 52,5 42,0 a 52,4 21,0 a ≤ 31,4
4 56,0 ≥ 70,0 56,0 a 69,9 27,9
5 ou mais + 10,0 - - 31,5 a ≤ 41,9
41,9
42,0 a
55,9
-
Fonte: Decreto Ministerial de Obras Públicas da Itália, de 5 de julho de 1978.
Organização: das autoras

A viabilidade social analisou o programa de necessidades da


habitação, a viabilidade econômica analisou a relação da renda
familiar mensal com o valor da prestação da unidade habitacional e a
viabilidade ambiental verificou a existência de áreas verdes, praças e
espaços de lazer público no contexto urbano.
Para conhecer as características sociais, econômicas e a
percepção dos moradores sobre suas residências foram aplicados
questionários, em março de 2015. De um total de 112 apartamentos,
foi possível aplicar doze questionários, o que corresponde a 10,71%
do total de apartamentos. Consideramos esta amostra válida para a
pesquisa, pois estamos tratando de uma cultura diferente da cultura
brasileira. A maioria dos moradores não quisera responder os
questionários e não receberam a pesquisadora dentro de seus
apartamentos.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 43

CONTEXTO

O contexto estudado é o Bairro San Basílio, em Roma, na Itália,


onde está localizado o Conjunto Residencial San Basilio.

Bairro San Basílio / Roma

O Bairro de San Basílio, fundado em 1928, está localizado na


ambiência do centro histórico de Roma (Figura 1). Atualmente o
Bairro possui uma população de 27.152 habitantes. É caracterizado
por um traçado urbano de ruas semi-ortogonais com predominância
de edifícios coletivos de quatro a cinco andares, tipologias uniformes,
fachadas voltadas para a rua, posicionadas no alinhamento das
calçadas. Os blocos de edifícios delimitam o perímetro das quadras e
os espaços livres estão voltados para o pátio central. O Bairro abriga
equipamentos coletivos, pontos de ônibus e metrô, serviços de
saúde, educação, esporte, lazer e transporte público.

Figura 1. Mapa do centro histórico de Roma e sua ambiência

Distrito 1: Cidade Medieval e Distrito 5: Bairro de San Basilio


Fonte: Martins (2016)
44

RESULTADOS E DISCUSSÕES

CONTEXTO

O Bairro San Basilio foi analisado segundo sua viabilidade


urbana e ambiental, juntamente com o Programmi di Recupero
Urbano (PRU).

Viabilidade urbana e ambiental

O Bairro San Basílio abriga estabelecimentos para a educação,


saúde, cultura e comércio e está dotado de transporte público (Figura
2) e (Tabela 5).

Figura 2. Viabilidade urbana do Bairro San Basílio

Residencial San Basilio transporte público saúde área verde comércio/serviços

Fonte: Martins (2016)


Patrimônio, Paisagem e Cidade - 45

Tabela 5. Viabilidade urbana do Bairro San Basílio

AMBIÊNCIA DO CENTRO HISTÓRICO DE


CRITÉRIOS DE ANÁLISE ROMA
BAIRRO SAN BASÍLIO
Região servida de transporte público
Região servida de equipamentos urbanos

Região servida de escolas

Região servida de postos de saúde e hospitais

Região servida de comércio

Fonte: organizado pelas autoras

Com relação à viabilidade ambiental, o Bairro San Basílio está


inserido em uma área provida de múltiplos espaços verdes,
considerando também as áreas livres projetadas dentro do
residencial. Tudo isso é possível porque o PRU não intervém apenas
no edifício, mas abrange toda a área envoltória do empreendimento
num projeto de requalificação urbana contemplando áreas verdes,
ruas, sistemas de transporte, equipamentos urbanos, entre outros. É
um projeto completo para que a região possa se autossustentar e
fluir (Figura 3) e (Tabela 6).
46

Figura 3. Viabilidade ambiental do Bairro San Basílio

Fonte: Martins (2016)

Tabela 6. Viabilidade ambiental do Bairro San Basílio

CRITÉRIOS DE ANÁLISE AMBIÊNCIA DO CENTRO HISTÓRICO DE ROMA


BAIRRO SAN BASÍLIO

Região servida de áreas verdes, praças e parques

Fonte: organizado pelas autoras

Programas e projetos públicos de habitação social: Programmi di


Recupero Urbano (PRU), em Roma

O Programmi di Recupero Urbano (PRU) atende uma


população com renda anual de até vinte mil euros (BCB: 16/10/2016,
com um euro equivalente à R$ 3,4986 reais).
A atuação do PRU trata de um saneamento do território, prevê
a recuperação do tecido construtivo, além de intervenções de
requalificação e reabilitação urbana que reorganizam as funções, as
atividades e os equipamentos no contexto urbano da cidade. As
famílias beneficiadas pagam o financiamento empregando, no
máximo, 17% de sua renda mensal. Os beneficiários do PRU não
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 47

intervêm nas diretrizes projetuais, a composição familiar é


considerada na criação das tipologias habitacionais e a
sustentabilidade é exigida no projeto de reabilitação do edifício
(Tabela 7).

Tabela 7. Programmi di Recupero Urbano (PRU) em Roma

INDICADORES PROGRAMMI DI RECUPERO URBANO (PRU)

Beneficiários do programa População com renda anual de até vinte mil euros.
Órgão de financiamento Parceria público/privada
Valor da prestação mensal da
unidade habitacional Até 17% da renda mensal

Tipologia 1 – sala, cozinha, 2 dormitórios, banheiro e


Tipologia habitacional lavanderia.
Tipologia 2 – sala, cozinha, 3 dormitórios, banheiro e
lavanderia.
Área de atuação Intervém em nível arquitetônico e urbano.
Período de atuação Está em atividade atualmente.
O PRU transformou em normativa edilícia a inserção
de materiais térmicos e acústicos além de
equipamentos de captação e reuso de água e energia
solar na reabilitação dos edifícios, ou seja, o
Sustentabilidade
desempenho ambiental é o foco das intervenções,
pois está atrelado à eficiência energética do edifício,
além de promover e preservar as áreas verdes no
entorno.
Fonte: organizado pelas autoras

TEXTO

O Programa PRU foi analisado através do estudo de caso:


Conjunto Residencial San Basílio.
As fases analisadas foram: degradação, reprefiguração,
reconfiguração e re-refiguração.
48

Conjunto Residencial San Basílio

O Conjunto Residencial San Basilio foi construído em 1954,


apresentando características modernistas, composto por sete
edifícios avarandados, dispostos espacialmente em blocos lineares
alternados, classificados como “palazza”, (construção econômico-
popular da tradição romana), característica da década de 50.
Os blocos residenciais de quatro pavimentos, recuados do
alinhamento da rua, eram caracterizados por fachadas planas e uma
composição simétrica de janelas e varandas. Cada bloco de habitação
abrigava dezesseis apartamentos. Cada pavimento abrigava quatro
unidades habitacionais, perfazendo um total de 112 unidades no
residencial. As unidades residenciais apresentavam duas tipologias,
distribuídas de maneira espelhada em cada pavimento. A lavanderia
era coletiva e estava localizada na cobertura do edifício e os acessos
eram realizados por meio de escadas (Figura 4).

Figura 4. Planta original do Edifício San Basilio, década de 50

Fonte: ATER - Roma (2015)


Patrimônio, Paisagem e Cidade - 49

Degradação

Nos anos 70 e 80, devido à falta de manutenção dos edifícios e


ausência de serviços de suporte social público, deu-se início o
processo de degradação do Conjunto Residencial San Basílio.
As janelas de madeira e o telhado dos edifícios se deterioraram
com a ação das chuvas, provocando grandes estragos no interior dos
apartamentos, tais como infiltrações e mofos. As instalações
hidráulica e elétrica, apresentaram problemas pela falta de
manutenção e já não eram suficientes para atender à demanda do
edifício. As áreas livres entre os blocos dos edifícios estavam
abandonadas e eram utilizadas como depósito para entulhos (Figura
5).

Figura 5. Fachada degradada do Edifício San Basilio, antes da intervenção

Fonte: ATER - Roma (2015)

Reprefiguração

Em função da área degradada, da falta de acessibilidade e dos


serviços de lavanderia coletiva dos edifícios, a ATER-Roma constatou
a necessidade de potencializar as necessidades e expectativas sociais
50

dos moradores e desenvolvê-las com tecnologias contemporâneas.


Os gestores do PRU, considerando a história social, a cultura, a
memória e a identidade do Bairro, decidiram manter os edifícios e a
população residente no mesmo local, além de buscar preservar o
máximo possível os aspectos arquitetônicos dos edifícios,
reabilitando-os com a criação de novos usos e formas que
atenderiam às necessidades dos usuários e preservariam as
edificações existentes, através de um processo de hibridação, ou
seja, valorizando o velho através do novo (Figuras 6 e 7) e (Tabela 8).
Figuras 6 e 7. Reprefiguração do Conjunto Residencial San Basílio

Fonte: Martins (2016)

Tabela 8. Reprefiguração do Conjunto Residencial San Basílio

CRITÉRIO CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


Preservar e restaurar as fachadas e o volume do edifício.
Preservar a estrutura existente de lajes, vigas e pilares de blocos de
concreto.
Intencionalidade Inserir elevadores nos blocos de edifícios.
projetual Manter as mesmas tipologias habitacionais, pois o edifício foi
construído com alvenaria estrutural.
Refazer o telhado e inserir platibanda.
Criar uma lavanderia no interior de cada unidade residencial.
A ATER-Roma constatou a necessidade de potencializar as
Compreensão e
necessidades e expectativas sociais dos moradores e desenvolvê-las
interpretação
com tecnologias contemporâneas.
No projeto de reabilitação, ao preservar as fachadas e o volume dos
edifícios e inserir materiais contemporâneos na intervenção, valorizou
Hibridação
o antigo, através do novo.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 51

CRITÉRIO CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


A proposta projetual da forma edificada foi preservar as características
do conjunto dos blocos (tipo “palazza”), inserindo volumes de
Morfologia edilícia
elevadores nos corpos dos edifícios. A varanda seria incorporada à
residência, deixando de ser um elemento de composição da fachada.
Inserção de materiais contemporâneos na fachada, instalação de
Inovação elevadores, equipamentos para coleta e reuso de água e captação de
energia solar.
No projeto de reabilitação dos edifícios, buscou-se preservar a
tipologia do edifício tipo “Palazza” e sua localização original no tecido
urbano, pois esta área possuía um valor simbólico e histórico para
Preservação
seus moradores, o que garantiria o valor cultural e patrimonial do
projeto. Quanto à preservação do edifício, seriam restauradas as
esquadrias, pisos e forros.
Fonte: organizado pelas autoras

Reconfiguração

A reconfiguração do Conjunto Residencial San Basílio está


caracterizada na Tabela 10.

Tabela 10. Reconfiguração do Conjunto Residencial San Basílio

CRITÉRIOS CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


A superfície de área reabilitada, na quadra, equivale a 1.744,02m². A
superfície construída não reabilitada equivale a 271,07m² e a área
livre equivale a 7.349,67m².
Densidade Cada edifício reconfigurado possui área construída original de
1.084,28m², mais 78,40m² equivalente à área do elevador,
perfazendo um total de 1.162,68m² de área construída por edifício,
na quadra.
Relação do edifício Os edifícios mantiveram o gabarito da região em que estão
com o contexto inseridos, garantindo uma composição arquitetônica harmoniosa
urbano com o contexto urbano imediato.
A contemporaneidade da proposta do Residencial foi afirmada
através da inserção dos blocos de elevadores com painéis de vidro
Contemporâneo e
nas fachadas dos edifícios. Aplicação de isolante térmico na
materialidade
cobertura e isolante acústico nas paredes dos apartamentos, a fim
de melhorar a qualidade ambiental da habitação.
Foram empregados 30 mil euros na reabilitação de cada
apartamento do Conjunto Residencial San Basilio, e o valor total do
Custos da construção
projeto de reabilitação, de todos os edifícios, foi de € 3.658.580,67
euros.
Tipologia 112 apartamentos com área construída de 39,30m² e 52,80m².
habitacional
52

CRITÉRIOS CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


Os cômodos das tipologias T1 apresentaram desempenho solar
classificados como ÓTIMO em um dormitório e na cozinha, BOM em
Desempenho térmico dois dormitórios e no banheiro, RUIM na lavanderia e PÉSSIMO na
das unidades sala. Em função das aberturas, que asseguram um fator de luz
habitacionais equivalente a 15% no interior dos cômodos, enquanto o mínimo
estabelecido é 2%; somente a sala foi classificada como RUIM, pois
não possui janela, devido a sua localização no interior da habitação.
Inserção de elevadores, de materiais térmicos e acústicos,
Sustentabilidade equipamentos de captação e reuso de água, energia solar e
preservação das áreas verdes no entorno.
Fonte: organizado pelas autoras

Área construída por tipologia de habitação

A área construída por tipologia de habitação do Conjunto


Residencial San Basílio corresponde a 39,30m² (dois dormitórios) e
52,80m² (três dormitórios) (Figura 8).

Figura 8. Área construída por tipologia de habitação do Conjunto Residencial San Basilio

Fonte: ATER-Roma (2015), adaptado pela autora (2015)


Patrimônio, Paisagem e Cidade - 53

De acordo com Ornstein (2003), para cada unidade de


habitação, com dois dormitórios, deve ser assegurada uma área de
superfície mínima de pelo menos 50m², e para três dormitórios 66m²,
portanto, as tipologias habitacionais estão com medidas abaixo do
padrão especificado.

Re-refiguração

No Conjunto Residencial San Basilio, a maioria (58,3%) são


homens aposentados na faixa etária de 72 a 85 anos; 25% são
mulheres na faixa etária de 35 a 43 anos que trabalham no comércio
de joias e magazines e 16,6% são “do lar”. Com relação à cidade natal
das famílias, (66,6%) dos entrevistados são nascidos em Roma,
(16,6%) na Sicilia, (8,3%) em Nápoles e 8,3% em Florença. Segundo os
entrevistados, no residencial também habitam imigrantes (Tabela
11).

Tabela 11. Re-refiguração do Conjunto Residencial San Basílio em Roma

CRITÉRIOS CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


Características das
A composição familiar apresenta uma media de três membros.
famílias
Varia de 13,10m² a 19,65m² e a área de lazer equivale à
aproximadamente 1/5 da área da superfície do edifício. Segundo
análise, os apartamentos estão caracterizados por 50% ÓTIMOS e
50% RUINS, indicando que as áreas por unidades residenciais são
Área construída por
pequenas, principalmente nos cômodos da sala e cozinha, não
habitante
atendendo com conforto as necessidades das famílias. Para que a
área construída por habitação fosse considerada excelente, a
dimensão habitacional deveria variar de 42m² a 66m².

A maioria (58,3%) das unidades residenciais é classificada como


sendo ÓTIMAS e 41,6% das unidades residenciais são classificadas
como sendo BOAS. Isso ocorre porque a distribuição dos
Nº de habitantes por
apartamentos é realizada em função do número de membros por
dormitório
família, fazendo com que compartilhem, no máximo, um dormitório
para cada dois residentes.

Segundo os entrevistados, a maioria (95%) disse que as residências


Viabilidade social
atendem às necessidades diárias das famílias.
54

CRITÉRIOS CONJUNTO RESIDENCIAL SAN BASÍLIO


De acordo com os entrevistados, as famílias tem renda anual de até
€ 20.000,00 euros. O valor das prestações varia de acordo com a
renda mensal de cada família. Segundo relato da ATER-Roma, alguns
Viabilidade moradores chegam a pagar € 75,00 euros pela prestação. A cada
econômica dois anos realiza-se um Censo para avaliar a renda familiar; se há
mudança, muda-se também o valor das prestações. Este
procedimento torna o programa acessível e viável economicamente
para a população de baixa renda.
Quando perguntados sobre onde fazem suas compras, a resposta foi
a seguinte: “distância de uma a duas quadras”.
Viabilidade urbana Quando perguntados sobre os serviços de saúde que utilizam,
disseram que têm hospital a “duas quadras”.
Quando perguntados sobre a escola que os filhos frequentam, a
resposta foi: “a duas quadras”.
Quando perguntados: O que eles pensam sobre as áreas verdes e
espaços de lazer no entorno do Edifício? Todos os entrevistados
Viabilidade disseram que: “a área verde e o playground, criados entre os blocos
ambiental dos edifícios, são bastante usados pelos residentes, sobretudo, pelas
crianças”. Disseram também que têm a opção de usar outros
parques que estão localizados próximos ao residencial, a uma
distância aproximada de 100 metros.
A maioria das famílias está satisfeita com a residência porque
Grau de satisfação
atende às suas necessidades e podendo assim permanecer no
com a residência
mesmo bairro, onde criaram uma identidade.
Fonte: organizado pelas autoras

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das analises apresentadas, concluímos que o


Programmi di Recupero Urbano (PRU) atende às necessidades
econômicas dos moradores, pois as prestações mensais são
acessíveis com a renda das famílias.
O PRU atende também as necessidades urbanas, pois
reabilitou um edifício na ambiência do centro histórico de Roma, área
servida de equipamentos urbanos, transporte público, serviços e
comércio. Quanto à viabilidade ambiental, esta é favorecida no
projeto, pois o PRU atua através de um plano urbanístico específico
para cada área de intervenção, intervindo em todo o entorno do
edifício num projeto de requalificação urbana, contemplando, além
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 55

do edifício, áreas verdes, ruas, sistemas de transporte e


equipamentos urbanos.
Com relação à área construída por habitante do Conjunto
Residencial San Basílio, 50% das unidades são adequadas para os
apartamentos que abrigam até três pessoas - recomenda-se que a
área construída por apartamento seja compatível com as
necessidades da família.
Quanto à sustentabilidade da intervenção, o PRU prioriza tal
critério, prevendo a inserção de materiais térmicos e acústicos além
de equipamentos de captação e reuso de água e energia solar na
reabilitação dos edifícios, transformando tais elementos construtivos
em normativa edilícia, ou seja, o desempenho ambiental é o foco das
intervenções, pois está atrelado à eficiência energética do edifício.
Após análise do contexto do Bairro San Basílio, do PRU, do
projeto de reabilitação do Conjunto Residencial San Basílio, sua
construção e a percepção dos moradores sobre a habitação e seu
contexto, concluímos que o Conjunto San Basílio é dialógico com seu
contexto.
Os dados registrados acima estruturam as relações dialógicas
entre projeto, construção e uso social e mostram que os programas e
projetos públicos para habitação social em centros históricos e sua
ambiência só podem ser compreendidos e bem sucedidos a partir da
atuação da gestão pública sobre a cidade e sua relação dialógica com
o contexto urbano, social, cultural, econômico e ambiental.
Dessa forma, as áreas das unidades de habitação e suas
tipologias devem ser compatíveis com as necessidades das famílias,
além de exigir que as tipologias de habitação apresentem um, dois e
três dormitórios, e os projetos de arquitetura devem atender a
acessibilidade e a sustentabilidade ambiental (uso de coletores
solares, reciclagem de águas pluviais, uso de matérias termo
acústicos, equipamentos de coleta e reuso de energia renovável,
entre outros).
56

Buscamos construir neste capítulo um diálogo entre a prática e


a investigação. O núcleo dessa sabedoria prática é o que nós,
arquitetos e urbanistas devemos buscar, não apenas as qualidades
físicas dos edifícios e das cidades, mas também atender às
necessidades sociais, econômicas e culturais dos usuários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo


Bezerra. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BLUEPRINT FOR ADDRESSING THE GLOBAL AFFORDABLE HOUSING
CHALLENGE (2014). Disponível em: http://www.mckinsey.com/global-
themes/urbanization/tackling-the-worlds-affordable-housing challenge
BOITO, Camilo. Os restauradores. Tradução Paulo Mugayar Kühl e Beatriz
Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Habitabilidade e Bem Estar. PROJETAR
2005 – II Seminário sobre Ensino e Pesquisa em Projeto de Arquitetura.
2005.
BRANDI, Cesare, 1906-1988. Teoria da restauração. Tradução Beatriz
Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Cotação de moedas.
lhttp://www4.bcb.gov.br/pec/conversao/conversao.asp. Acesso
em16/10/2016.

DECRETO MINISTERIALE (sanità) 5 luglio 1975. Modificazioni alle istruzioni


ministeriali. 20 giugno 1896, relativamente all’altezza minima ed ai requisiti
igienico-sanitari principali dei locali di abitazione.
GIOVANNONI, Gustavo. Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos. Tradução
Renato Campello Cabral, Carlos Roberto M. de Andrade, Beatriz Mugayar
Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (BRASIL).
Cartas Patrimoniais. 3º ed. rev. aum. – Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 57

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
MARTINS, Juliana Cavalini. Habitação social em centros urbanos
consolidados: análise dialógica desde o percurso do projeto ao uso social:
São Paulo (Brasil) e Roma (Itália). Dissertação de Mestrado. UNESP,
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru/SP, 2016.
MUNTAÑOLA, Josep. Topogénesis. Fundamentos de una nueva arquitectura.
Barcelona. Edicions UPC, 2000.
_____. La arquitectura como lugar. Barcelona: Edición UPC, 2001.
_____. Hacia uma aproximación dialógica a la arquitectura contemporânea.
In Revista Arquitectonics, Mind, Land & Society. Arquitectura y dialogia, nº
13. Barcelona: Edición UPC, mayo de 2006.
____. Las formas del tiempo. Serie Arquitectura. Badajoz, España: Editora
@becedario, 2007.
ORNSTEIN, Sheila Walbe; ROMERO, Marcelo de Andrade. Avaliação Pós-
Ocupação: métodos e técnicas aplicados à habitação de interesse social.
(Habitare). Porto Alegre: ANTAC, 2003.
PITTS, Adrian. Planning and Design Strategies for Sustainability and Profit:
Pragmatic sustainable design on building and urban scales. Editora Elsevier.
Linacre House, Jordan Hill, Oxford OX2, 2004. Burlington, MA.
RAPOPORT, Amos. Origens culturais da arquitetura. In: SNYDER, J. C.;
CATANESE, A. Introdução à arquitetura. Rio de Janeiro, Editora Campus,
1984.
_____. Cultura, arquitectura y diseño. Arquitectonics. Mind, land & society.
Vol. 5. Univ. Politèc. de Catalunya, 2003.
RICOEUR, Paul. Arquitectura y narratividad. In: Revista Arquitectonics. Mind,
Land & Society, nº 4. Barcelona:UPC, 2003, p. 9-29.
SALCEDO, Rosío Fernández Baca. A reabilitação da residência nos centros
históricos da América Latina: Cusco (Peru) e Ouro Preto (Brasil). São Paulo:
Editora UNESP, 2007.
____. Qualidade de habitação social nos centros históricos - Habitação de
proteção oficial: cambó 2, giralt el pelliser de ciutat vella, Barcelona
(Espanha). In Anais do PLURIS, 2009.
58

____. Dialogias de la arquitectura entre el tiempo de diseño y el tidmpo de


uso social. Vivienda de protección oficial. Cambó 2, Ciutat Vella, Barcelona
(España). In: Revista Arquitectonics, Mind, Land & Society. Arquitectura y
dialogia, nº 21-22. Barcelona: Edición UPC, febrero de 2011, p. 161-180.
SALCEDO, Rosio Fernández Baca; CHAMMA, Paula Valéria Coiado; MARTINS,
Juliana Cavalini; PAMPANA, Antônio. Arquitetura Dialógica no Contexto do
Centro Histórico: o Método. In: PASCHOARELLI, Luis Carlos; SALCEDO, Rosio
Fernández Baca. Interação: panorama das pesquisas em Design, Arquitetura
e Urbanismo. Bauru-SP, Canal 6, 2015, p. 227-237.
ZARATE, Marcelo. Arquitectura, Fenomenología y Dialogía Social. In: Revista
ARQUITECTONICS. Mind, Land &Society. Arquitectura y Dialogia. Nº 27.
Barcelona: UPC, 2015.
ZÚQUETE, Ricardo. Ensaios: Uma análise dialógica sobre habitação social -
Portugal 1950/80. Tese de doutoramento. UPC Escola Tècnica Superior
d’Arquitectura de Barcelona. 2000.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Fundação de Amparo à pesquisa do estado de São Paulo


(FAPESP), processo nº 2014/00299-9, pelo financiamento integral da
pesquisa que originou este conteúdo.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 59

Capítulo 3

RIOS E FERROVIAS:
CONEXÕES E IDENTIDADE ENTRE A CIDADE E PAISAGEM

Norma Regina Truppel Constantino8


Fernanda Moço Foloni9
Karla Garcia Biernath10

1 INTRODUÇÃO

Quando tratamos do patrimônio ferroviário, é possível


perceber que os caminhos dos trilhos frequentemente coincidem
com cursos d’água. No estado de São Paulo, esse cenário pode ser
observado em duas situações distintas: a primeira consiste em um
modelo mais comum de formações urbanas no Brasil, que se fixavam
na várzea de rios pela facilidade de obtenção de água e alimento, e
em alguns casos, ocupação de aldeias indígenas já estabelecidas na
região. A ferrovia seria implantada posteriormente como um meio de
conexão entre esses povoados. A segunda diz respeito a cidades
criadas a partir da chegada da ferrovia, como por exemplo, Avaí, Lins,
Araçatuba, formadas a partir da Companhia Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil (CEFNOB) no oeste paulista11. A ferrovia passava

8
Professora doutora, PPGARQ UNESP-Bauru, nconst@faac.unesp.br
9
Mestranda, PPGARQ UNESP-Bauru, fe_foloni@hotmail.com
10
Mestranda, PPGARQ UNESP-Bauru, karlabiernath@hotmail.com
11
“Nesse ponto é oportuno fazermos observação a respeito do termo ‘Oeste’ utilizado de forma
genérica em documentos antigos. A falta de precisão por vezes resulta em dificuldades de situar
determinado fato ou acontecimento em áreas que podem estar fisicamente distantes: a Oeste,
Nordeste ou Noroeste do Estado. Consideramos que só depois do reconhecimento do sistema
fluvial do lado ocidental de São Paulo é que as regiões serão designadas conforme os limites dos
60

pelo “sertão” de São Paulo com um caráter exploratório, e nos locais


onde eram necessárias a construção de estações, a possibilidade de
comércio fez com que surgissem novos núcleos urbanos. Em ambos
os casos a existência de rios próximos à ferrovia é uma incidência
frequente, pela maior facilidade de implantação dos trilhos em uma
topografia mais plana, comum em fundos de vale.
O propósito deste capítulo é, primeiramente, detalhar as
conexões existentes entre a implantação da ferrovia, os rios urbanos,
e a expansão das cidades, levantando por meio de bibliografias os
fatores históricos, sociais e econômicos que unem esses três
elementos. A partir disso, será feita uma análise crítica da
importância que tanto os cursos d’agua quanto as estradas de ferro
tiveram no impulso da urbanização; da atuação desses dois
elementos como fatores da identidade da população nas cidades e
das ações humanas sobre esses espaços, que frequentemente
apresentam um contexto de abandono, degradação e poluição, não
só em relação à paisagem urbana como ao próprio meio ambiente.

2 O RIO, A CIDADE E A FERROVIA

Independentemente de seu processo de formação, um dos


requisitos básicos para o desenvolvimento das cidades é o
fornecimento de água. Na América, existem vários exemplos de
colônias que foram fixadas nas proximidades de rios, como
Washington, Boston, Denver, New Jersey, boa parte delas por terem
sido inicialmente aldeias indígenas, que já eram privilegiadas pela
proximidade com a água, que facilitava a defesa, rotas de locomoção
e obtenção de matéria-prima (SPIRN, 1995).

rios, pois estes guardam algum paralelismo. São eles: Tietê, Aguapeí/Feio, Peixe e
Paranapanema, todos tributários do Rio Paraná.” (GHIRARDELLO, 2002, p.69).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 61

Com o tempo, as cidades foram se expandindo, mas muitos


projetos urbanísticos raramente foram pensados para incluir ao
máximo a paisagem natural. Modificaram o relevo, retirando a
cobertura vegetal para a implantação de novos loteamentos,
escavaram morros para a passagem da ferrovia, retificaram os rios
para escoar mais rapidamente as impurezas para fora da cidade. “O
desenho urbano convencional contribui para a deteriorização geral do
meio ambiente [...] e pela falha na hora de reconhecer e atuar sobre
as relações entre as ações humanas e os sistemas naturais”12
(HOUGH, 1995, p.47).
Pode-se dizer que no início da colonização do Brasil, o
povoamento iniciou-se basicamente através do litoral onde as vilas
foram implantadas junto à costa, por uma questão de segurança e
proteção do território recém-descoberto. Ao longo do tempo, as
povoações foram se estendendo pelo interior do país, seguindo os
caminhos dos rios como o Tietê, “via de penetração para o vasto
território brasileiro, também gerou algumas vilas no interior paulista”
(GHIRARDELLO, 2010, p.39), e através dos percursos, que mais tarde
se tornariam estradas, desbravados pelos bandeirantes.
Muitas cidades do interior paulista foram formadas através da
criação dos patrimônios religiosos. Os fazendeiros, por alguma graça
alcançada ou em homenagem ao santo de sua devoção, doavam
terras à Igreja, que instalaria ali uma capela e ficaria responsável pelo
futuro povoado a ser formado nessas terras. Esse tipo de formação
foi bem comum no interior do estado de São Paulo nos últimos
cinquenta anos do século XIX. A partir do século XX criaram-se os
patrimônios laicos que, segundo GHIRARDELLO (2010, p.50), seriam
“pertencentes e aforados por particulares [...] ou por aqueles que

12
Tradução livre de: “el diseño urbano convencional contribuye al deterioro general del
medioambiente global, [...] y por el fallo a la hora de reconocer las relaciones entre las acciones
humanas y los sistemas naturales y actuar sobre ellas”. (HOUGH, 1995, p.47).
62

eram constituídos de terras doadas à comunidade ou à Câmara para


a constituição de um patrimônio”.
Ainda no interior de São Paulo, houve também cidades que
foram implantadas pelas companhias colonizadoras, que loteavam
glebas e vendiam principalmente às famílias dos imigrantes. A ação
das empresas de colonização no território paulista marca a
interrupção desse período de hegemonia dos fazendeiros, pois,
segundo Monbeig (1984, p.241), “vender terras tornou-se [...] fonte
de recursos menos incerta e mais rendosa”. Dentre os núcleos
urbanos que seguem este modelo de formação encontram-se as
cidades de Jales, Santa Fé do Sul, Indiana e Andradina, também
próximas a rios.

2.1 AS CIDADES DE FUNDO DE VALE E SUAS ÁGUAS

A influência dos rios fica clara ao observar como eram


nomeados os muitos povoados que se formavam em suas
proximidades, caso este de Ribeirão Preto, Ribeirão das Araras, Rio
Jaú, Ribeirão Bonito, Rio Bauru, Rio Claro e Rio Preto. Muitos
patrimônios foram formados entre rios e córregos, ou a partir destes,
tamanha importância que a água representava para essas formações
urbanas. As fazendas precisavam ser próximas a algum córrego para
facilitar a irrigação, então era comum em documentos de
propriedade da época que esses elementos naturais fossem citados
como delimitações de território. Quando era feita uma doação de
terras para a formação de um patrimônio religioso, era escolhida a
fração que tivesse algum trecho de água corrente (GHIRARDELLO,
2010, p.87-88). A importância da morfologia do lugar é trazida
também por Lamas (2011, p.70), que, tratando de uma forma geral
sobre a organização formal do território, afirma que esta não é feita
apenas pela ordenação de atividades humanas, e sim, “situa-se
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 63

também nas dimensões e escalas que ultrapassam a área ocupada


por edificações utilizando outros elementos morfológicos”.
O modelo de divisão de glebas demonstra esse tipo de uso da
paisagem natural através do sistema de águas vertentes: a partir dos
limites naturais, geralmente cursos d’água ou separadores de água,
era utilizado um rigor geométrico, preferencialmente em vales,
repartindo as propriedades de forma regular, valorizando as áreas
pela preferência de plantio de café em terras altas. Esse tipo de
divisão é semelhante ao processo de divisão de municípios, sítios e
chácaras, ocorrendo a partir de espigões, córregos, rios, estradas, e
posteriormente, a ferrovia (PUPIM, 2008, p.77-80). A Figura 1 mostra
a fragmentação progressiva do município de Presidente Prudente no
decorrer do século XX, com o traçado perpendicular entre os rios
Paranapanema ao sul e Peixe ao norte, enquanto a Figura 2 é um
exemplo de loteamento rural, que também seguia esse modelo de
águas vertentes para divisão territorial.

Figura 1: A fragmentação progressiva do município de Presidente Prudente

Fonte: ABREU, 1972 apud PUPIM, 2008.


64

Figura 2: Loteamento japonês em Bastos (SP)

Fonte: MONBEIG, 1984.

Em ambos os casos, os limites naturais das divisões das glebas


são os espigões (parte alta) e os cursos d’água (nos fundos de vale).
O oeste de São Paulo só começou a ser desbravado e
documentado quando ocorreram expedições científicas, organizadas
pela Comissão Geográfica e Geológica, ao “sertão” paulista (1905-
1920), nos quais um grupo de exploradores navegava pelo rio
Feio/Aguapeí (1905), rio Peixe (1905) e rios Tietê-Paraná e
Paranapanema (1905-1906) fotografando a natureza intocada pelo
homem branco e as aldeias indígenas, e mapeando o território
paulista. Dentre estes, o Tietê era o mais conhecido por ser via de
acesso aos outros estados e rota de comerciantes desde o período
colonial (MOI, 2005).
Para a formação de um povoado, assim como em sítios e
fazendas, era necessário ter acesso à água, permitir seu usufruto, e
possuir um caminho transitável de acesso. Quando garantida essas
condições, o Patrimônio poderia ser arruado (GHIRARDELLO, 2002,
p.163). Assim como algumas outras cidades do centro-oeste paulista,
Bauru (arruado em 1884) e São José do Rio Preto (arruado em 1879)
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 65

foram formadas no encontro de cursos d’água, possuindo grande


semelhança em seu traçado: uma malha xadrez interrompida
próxima aos córregos (PUPIM, 2008, p.94). A utilização desse traçado
urbano, de simples implantação e que permitia futuras e rápidas
expansões, se tratava de um modelo rápido, previsível e possível de
execução por qualquer agrimensor (GHIRARDELLO, 2010); é ainda
caracterizado como “abstrato e bidimensional, teve que adaptar-se
às diferentes situações geográficas, e sobretudo topográficas, que
foram determinantes para a configuração das cidades” (MOISSET,
2006, p.28). A Figura 3 mostra o traçado reticulado da cidade de
Bauru cessando abruptamente ao encontrar o Ribeirão Bauru e o
Córrego das Flores.

Figura 3: Patrimônio de Bauru entre rios (1884)

Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de GHIRARDELLO, 1992.

É neste período [século XIX] que surgem grandes extensões de


loteamentos que repetem quadriculas até à exaustão, sem
preocupações urbanísticas ou estéticas. As bye laws inglesas alastram
em manchas de azeite, produzindo um tecido habitacional
monótono, de extensas ruas, desprovido de intencionalidade
estética. Os interiores dos quarteirões são densificados, aparecem as
“ilhas” e “vilas” como aproveitamento do solo, para construção de
casas para as classes operárias menos desfavorecidas, A cidade
66

desenvolve-se por extensão de loteamentos e de construções, e não


pela organização do espaço urbano. São também estas urbanizações
e a situação social e sanitária da população que motivaram o
pensamento urbanístico e higienista no século XX. (LAMAS, 2011,
p.208).

No século XX, com a crescente industrialização no Brasil, as


transformações urbanas não só foram aceleradas, como também, a
própria configuração da cidade foi se modificando, aumentando a
ocupação do solo. Esse crescimento e adensamento populacional
foram acompanhados pela proliferação de doenças, devido à
proximidade com o rio de onde a água era consumida, a roupa
lavada, a população pescava e o esgoto humano e industrial
despejado.
Essa ocupação desorganizada em fundos de vale, que se
intensificava com o passar dos anos, agravou o problema de
epidemias e insalubridade, principalmente em épocas de cheias.
Entre meados do século XIX e a década de 1920, os higienistas da
época optaram por uma política de retificação dos rios, para
aumentar a velocidade com que as águas corriam, levando as
impurezas mais rapidamente para longe das pessoas. Essa ação
possibilitava também a ocupação da nova margem do rio, não mais
pantanosa, atraindo o apoio de investidores imobiliários para essa
solução apresentada. Em pouco tempo, com o crescimento do uso de
automóveis, as avenidas foram construídas marginais aos rios e por
cima dos córregos, os quais muitos passaram a correr canalizados sob
os centros urbanos (OSEKI; ESTEVAM, 2006, p.84-85).
A cidade é parte da natureza, mas o fato de não ter sido vista
dessa forma colocou uma contra a outra (SPIRN, 1996, p.21), onde a
primeira tenta dominar a segunda, e a segunda se revolta contra a
primeira, como é o caso da alteração constante da paisagem, como
desmatamento, retificação e canalização dos rios, e as grandes
inundações que acontecem como consequência da ocupação e
permeabilização de suas margens, poluição e ausência de mata ciliar.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 67

Ao projetar, é preciso lembrar-se da importância que o rio teve na


formação da cidade, e que este sempre fará parte de sua identidade,
que assim como a paisagem, é única em cada lugar.

Civilizações e governos ascendem e caem; tradições, valores e


políticas mudam; mas o ambiente natural de cada cidade permanece
uma estrutura duradoura na qual atua a comunidade humana. O
ambiente natural de uma cidade e sua forma urbana, tomados em
conjunto, compreendem um registro da interação entre os processos
naturais e os propósitos humanos através do tempo. Juntos,
contribuem para a identidade única de cada cidade. (SPIRN, 1996,
p.28).

2.2 O PATRIMÔNIO DA CIDADE E SEUS TRILHOS

As ferrovias também foram de grande importância para a


formação dos patrimônios, principalmente no início do século XX.
Estabeleciam uma relação íntima com a produção do café, sendo que
as companhias que mais se desenvolveram economicamente foram
justamente as que transportavam maiores quantidades de café, ou
seja, a ferrovia era responsável não apenas por formar, como
também expandir as plantações. Embora tenha havido exceções nas
zonas Noroeste, Alta Araraquarense, Alta Paulista e Alta Sorocabana,
onde os trilhos antecederam a produção (GHIRARDELLO, 2010).
Assim como hoje os grandes empreendimentos atuam como
agentes modernizadores, tais como complexos empresariais,
aeroportos, rodovias e portos, antigamente esse papel pertencia à
ferrovia, importando costumes, transportando pessoas, escoando a
produção local e conectando territórios e cidades. Ela se destacou
desde fins do séc. XIX até a primeira metade do séc. XX, como
elemento propulsor do desenvolvimento de uma cidade, substituindo
gradualmente essa mesma função desempenhada pelos rios séculos
antes. Foi responsável ainda por trazer novas referências urbanas aos
locais, com a construção de armazéns, escritórios, rotundas (em
68

alguns casos), residências dos ferroviários, as próprias estações,


praças e largos. Também passou a oferecer uma nova dinâmica à vida
na cidade, com a crescente necessidade de profissionais gabaritados,
permitindo o contato com outras culturas através da rápida
circulação de ideias, e formando uma rede de conexões jamais vista
no território brasileiro até então, já que anteriormente, o principal
meio de acesso ao interior do País eram os rios navegáveis.
Langenbuch (2011, p. 49) explica que "até por volta de 1950, os trens
de passageiros e de carga representavam o único meio de transporte
de massa razoável com o qual se contava no oeste paulista".
Com as ferrovias, viu-se uma maximização deste processo de
expansão, alterando drasticamente a configuração das cidades do
interior paulista. “A partir das aglomerações atingidas pela ferrovia,
já no início do século XX, estabelecia-se uma rede de caminhos e
estradas de terra, ligando de maneira capilar propriedades rurais,
distritos, bairros rurais e cidades” (GHIRARDELLO, 2010, p.32). A
seguir, é possível ver na Figura 4, a planta da cidade de Lins formada
a partir da ferrovia, e como o traçado dos trilhos teve impacto
marcante no traçado urbano.
Figura 4: Planta de Lins

Fonte: GHIRARDELLO, 2002.


Patrimônio, Paisagem e Cidade - 69

Dentre todas as companhias ferroviárias do estado de São


Paulo, a CEFNOB foi a única a ser criada para fins de ligação do
território brasileiro e proteção das divisas. Também ficou conhecida
pelo seu caráter exploratório, sendo responsável pela fundação de
diversos povoados e cidades pelas regiões as quais passou. Podemos
citar como exemplo as cidades de Penápolis, Lins, Promissão,
Avanhandava, Avaí, Presidente Alves, Glicério, Birigui e Cafelândia.
A partir do século XX, com o declínio do poder da Igreja, bem
como através da implantação dos ramais ferroviários pelo estado de
São Paulo, gerou de certa forma uma nova lógica urbanizadora, a da
cidade como mercadoria. Os terrenos foram valorizados e lotear as
terras se tornou um bom negócio. Foi nesse cenário que surgiram, no
século XX, as companhias colonizadoras, descritas anteriormente,
que patrocinaram a formação de algumas cidades nas regiões onde a
ocupação foi mais recente, como foi o caso de Andradina formada
pela Moura Andrade & Companhia, Votuporanga, formada pela
Companhia Retalhadora de Terras, Osvaldo Cruz e Flórida Paulista,
ambas formadas pela Companhia de Agricultura, Imigração e
Colonização (CAIC)13. “A CAIC, de 1934 a 1955, realizou o loteamento
de 108 propriedades no Estado de São Paulo e com isso contribuiu
para o surgimento de vários centros urbanos” (CONSTANTINO, 2010,
p. 45).

3 UBANIZAÇÃO, MEIO AMBIENTE E IDENTIDADE

Foi durante o Brasil Colonial que se iniciaram as primeiras


ocupações. Buscavam a presença de água e a facilidade de
comunicações, portanto, os aglomerados urbanos se fixaram
inicialmente próximos a leitos fluviais, vias naturais e caminhos
precários desse período. Muitos “pousos de viajantes”

13
Conforme Constantino (2010).
70

permaneceram e cresceram, ganhando destaque nos relatos de


itinerantes estrangeiros do Brasil Imperial, no século XIX (AZEVEDO,
1956). Já no início do século XX, começaram a ocorrer mudanças na
visão da organização humana nos espaços naturais, substituindo aos
poucos as estruturas sociais e econômicas arcaicas, decorrentes do
surgimento das novas infraestruturas viárias e energéticas
(AB’SABER, 2007, p.35). Esse foi só o começo das transformações que
surgiriam com o avanço da urbanização.

A urbanização explosiva de algumas áreas e a aceleração do processo


industrial, sob níveis altamente polarizadores, acrescentaram e
empilharam problemas para certas áreas metropolitanas e
determinadas faixas industriais preferenciais [...]. Nas áreas mais
críticas, as implicações da era dos transportes motorizados e da
industrialização explosiva puseram em perigo a própria qualidade do
viver para o homem habitante de todas as classes sociais. Com isso,
as paisagens foram modificadas direta ou indiretamente em enormes
extensões das periferias urbanas metropolitanas. Grandes massas de
trabalhadores braçais passaram a disputar os espaços disponíveis ao
seu nicho social, procurando garantir um pouco de chão para um
futuro que se afigurava difícil e incerto. (AB’SABER, 2007, p.25).

A ferrovia, em muitos casos, seguia o traçado dos rios,


implantando os trilhos nos fundos de vale e acompanhando seu
percurso, atuando também como catalisadora de novos
povoamentos e conectoras de regiões territorialmente distantes.

Na cidade de Lins, os trilhos da ferrovia Noroeste acompanharam o


córrego Campestre e a primeira estação, inaugurada em 1908, era
conhecida como Estação Campestre devido à proximidade do
córrego. Penápolis teve seu traçado estabelecido a partir da
esplanada da estação ferroviária e os trilhos foram implantados
paralelamente ao Ribeirão Lajeado. [...] E em Araçatuba a estação foi
inaugurada em 1908, próxima ao córrego Machadinho, porém, com
uma distância suficiente para ser implantado posteriormente o bairro
São Joaquim. (CONSTANTINO, 2016, p.226).

A cidade de Bauru é um exemplo da relação entre a


urbanização dos fundos de vale e a implantação da ferrovia. Tornou-
se um importante entroncamento de 03 ramais ferroviários: Estrada
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 71

de Ferro Sorocabana (vinda de Lençóis, chegando a Bauru em 1905);


Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil (tendo a cidade
de Bauru como Km inicial), expandindo-se em direção ao oeste
paulista14 em 1906); E por último, a Companhia Paulista (vinda de
Pederneiras, chegando a Bauru em 1910).
O complexo ferroviário é um dos patrimônios históricos mais
importantes da cidade de Bauru. Trouxe grande desenvolvimento
urbano, comercial e cultural. Em suas proximidades situa-se uma das
muitas áreas de risco de alagamento da cidade, junto a pelo menos
mais dois pontos onde córregos, ruas e trilhos se conectam (Figura
5)15.

Figura 5: Vista do Viaduto Eufrásio de Toledo sobre o Rio Bauru – Bauru (SP)

Fonte: Google Earth, 2016.

Pela necessidade do progresso e rápida urbanização, medidas


foram tomadas sem grande planejamento, como aquelas para a
construção da linha férrea, pela necessidade de poucas variações de
declividade do solo. Canalizações, desvios de cursos, e escavações de
morros foram feitas, não só para a ferrovia, mas para construção das

14
GHIRARDELLO, N. Primórdios da formação de Bauru (1885-1920). In: FONTES, M. S. G. C.;
GHIRARDELLO, N. (Org.). Olhares sobre Bauru. Bauru, SP: Canal 6, 2008, p.37-38.
15
Dados obtidos por informes da Defesa Civil de Bauru.
72

ruas, bairros, traçados urbanos. Além disso, o traçado quadriculado,


que se interrompe ao encontrar os fundos de vale e as linhas férreas,
resulta em ruas sem saída, vazios urbanos e avanços sobre os cursos
d’água.

E a locomotiva representou, também, uma nova etapa no


desenvolvimento das cidades que alcançou. Tanto pela porta que
abriu – a estação ferroviária – como pelo impacto desta no tecido
urbano pré-existente. Atingindo uma povoação, a estrada de ferro
não dispensava as exigências de trajeto; o seu leito buscava
acompanhar as curvas de nível, impunha igualmente um
determinado terreno para a estação. E se convertia num obstáculo
difícil de transpor, num atrativo para as instalações fabris e para os
grandes armazéns ao longo de seus trilhos, num polo de gravitação a
partir das plataformas de embarque. (MARX, 1980, p.114).

A cidade de Avaré assim como Bauru, possuía os trilhos


correndo próximo a um corpo d’água, o Ribeirão Lajeado, tributário
do Rio Tietê. O povoado foi iniciado por volta de 1861, quando o
Major Vitoriano de Souza Rocha ergue uma capela pelas graças
alcançadas. Em 1862, são doados onze alqueires para a formação do
patrimônio de Rio Novo. Em 1891, a Vila de Rio Novo é elevada à
categoria de cidade com o nome de Avaré16 e em 1896, é inaugurada
a estação da Estrada de Ferro Sorocabana como ponta de linha. Até
então, o povoado ocupava a margem do ribeirão, sendo a estação
construída entre o assentamento e o corpo d’água (Figura 6).

16
Dados obtidos em <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/saopaulo/avare.pdf>.
Acesso em 3 out, 2016.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 73

Figura 6: Mapa da região central de Avaré em junho de 1939


.

Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/a/avare.htm,
acesso em 04 de out, 2016.

Em 1953, a estação foi desativada e transferida, juntamente


com os trilhos para o lado sul da cidade. Atualmente, a estação
encontra-se abandonada (Figuras 7) e os trilhos foram retirados para
a abertura de uma avenida. Quanto ao Ribeirão Lajeado, que nasce
no Horto Florestal da cidade, tem boa parte de seu trecho urbano
canalizado, enquanto a parte que corre a céu aberto é desprovida de
mata ciliar, tem suas margens invadidas por construções e é pouco
valorizado esteticamente (Figura 8), exceto pelo lago represado no
Horto e na Praça Japonesa onde é exibido um lago ornamental
(CONSTANTINO, 2014, p.10).
74

Figura 7: Estação Ferroviária abandonada, Avaré (SP)

Fonte: ALVES, 2011.

Figura 8: Ribeirão Lajeado sob a Rua Maj. Vitóriano, Avaré (SP)

Fonte: Google Earth, 2016.

Existe um Plano Diretor da Estância Turística de Avaré, de


2011, e o município chegou a receber um certificado do Programa
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 75

Município Verde Azul17, mas o mesmo não se repetiu em 2013. Essa


ocupação irregular à margem do ribeirão (Figura 8) e a ausência de
vegetação causam erosão e assoreamento do seu leito. O esgoto nele
despejado é tratado, porém sua eficácia é discutível, em vista da
expansão urbana e problemas de drenagem que causam sobrecarga
de águas pluviais (CONSTANTINO, 2014, p.11).
Os exemplos de Bauru e Avaré não são os únicos do estado a
apresentarem essa relação compostas por rio, cidade e ferrovia,
muitas outras podem ser observadas em São Paulo ao longo das
estradas de ferro Alta Paulista, Sorocabana Noroeste e
Araraquarense. Existem alguns casos onde não há qualquer tipo de
preservação, e outros, que vem investindo – ainda que aos poucos –
em conservação ambiental, tombamento de patrimônio e
fortalecimento da identidade na paisagem urbana.
Nas cidades da linha Noroeste (CEFNOB), devido ao fato das
estações terem sido desativadas, apenas trens de carga circulam
pelos trilhos, o que faz com que estes locais, assim como alguns
córregos urbanos, principalmente os poluídos, se tornem “fundos da
cidade”, abandonados e degradados.
Botucatu, localizado no centro-oeste do estado de São Paulo,
ganhou foro de cidade em 1855 e de comarca dez anos mais tarde.
Localizado no divisor de águas entre as bacias hidrográficas do Rio
Pardo e Rio Tietê, e fixada às margens do Ribeirão Lavapés, foi por
muitos anos conhecida como “boca de sertão”, e era um importante
local de comércio na região, junto a Lençóis Paulista e futuramente
Bauru (povoado fundado em 1856). Em Botucatu, a estação
ferroviária inaugurada em 1934 estava abandonada, mas começou a

17
“A Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo criou em 2007 o programa
Município Verde Azul para avaliar a gestão ambiental em cada um dos 645 municípios paulistas.
Os resultados são expressos por meio do Índice de Avaliação Ambiental (IAA) publicados no
ranking ambiental paulista. Entre as dez diretivas ambientais que regem o Programa destacam-
se: esgoto tratado, lixo mínimo, recuperação de mata ciliar, uso da água e arborização urbana”
(CONSTANTINO, 2014, p.4).
76

ser restaurada em 2012, para tornar-se futuramente sede de um


museu. Por outro lado, o Ribeirão Lavapés que corta a cidade ainda
possui muitos trechos assoreados, degradação da mata ciliar e
invasão da Área de Preservação Permanente (APP). Há alagamentos e
vazios urbanos por conta da topografia, proximidade da ferrovia e
galpões abandonados. (CONSTANTINO, 2014).

Assim como em todo o Brasil, observa-se no Oeste Paulista o descaso


com o qual a ferrovia vem sendo tratada desde meados do século XX,
o que gera, consequentemente, vazios urbanos, áreas degradadas e
sem identidade, que caracterizam lugares em que hoje estão os
trilhos remanescentes. Esses trilhos, que muitas vezes seguem o
percurso dos principais rios urbanos desses municípios, estão
descaracterizados, servindo no máximo para a passagem de trens de
carga e não têm mais o significado de outrora – antes, traziam o
progresso, a expansão econômica e social, traziam prestígio às
cidades; hoje, esses trilhos caracterizam na maioria das vezes lugares
degradados, esquecidos e inseguros, com os quais a população não
se identifica e o Estado ignora. (CONSTANTINO, 2010, p.6).

O geógrafo Aziz Ab’Saber (2007), analisando a ação do homem


sobre a paisagem, retrata a “implicância” que se existia a respeito
dos “sertões” florestados, que a priori dificultavam a vida dos
primeiros colonizadores. Critica o processo de exploração e ocupação
das áreas centrais do território brasileiro, cujas técnicas de
queimadas e desmatamento foram bem aprendidas e utilizadas na
“limpeza” da paisagem.
O autor utiliza dos termos ecologismo e economismo18 para
explicar que o equilíbrio ideal na exploração econômica da natureza
está na compatibilização dos objetivos de crescimento econômico
com um plano de desenvolvimento e proteção dos recursos naturais,
com metas simultaneamente ecológicas e econômicas (AB’SABER,
2007).

18
“O ecologismo manda conservar a natureza, reservando-a à função de paraíso ambiental. O
economismo manda transformar o capital ecológico em consumo, acelerando o esgotamento
de recursos” (AB’SABER, 2007, p.26).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 77

Por fim, Ab’Saber (2007, p.10) deixa claro que as paisagens são
mais que simples espaços territoriais, são heranças pelas quais as
pessoas são responsáveis, ou deveriam ser. Desde órgãos
governamentais administrativos até o simples cidadão, a
responsabilidade é permanente, portanto utilização predatória da
paisagem terrestre precisa ser impedida.
Milton Santos também deixa claro como as transformações
urbanas estão cada vez menos levando o meio ambiente em
consideração, tornando a paisagem cada vez mais artificial e
deteriorando gradualmente a saúde da população.

As mudanças são quantitativas, mas também qualitativas. Se até


mesmo nos inícios dos tempos modernos as cidades ainda contavam
com jardins, isso vai tornando-se mais raro: o meio urbano é cada vez
mais um meio artificial, fabricado com restos da natureza primitiva
crescentemente encobertos pelas obras dos homens [...]. Os
transportes se modernizam, encurtando as distâncias entre as
cidades e dentro delas. E o urbanismo subterrâneo se transforma em
um suporte indispensável às formas de vida e às atividades
econômicas contemporâneas. Tudo isso se dá em um quadro de vida
onde as condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde
física e mental das populações. Deixamos de entreter a natureza
amiga e criamos a natureza hostil. (SANTOS, 1988, p.16)

Tanto o rio como a ferrovia teve um grande impacto não


somente em relação à configuração urbana das cidades, mas também
como elementos formadores da identidade urbana e da expressão
física e cultural destes locais. Ambos os elementos carregam
significados através de lembranças e experiências vivenciadas por
grupos sociais e sedimentadas na memória coletiva. Um dos meios
para entender essa identidade, resultante no modo como os cursos
d’água e a ferrovia são apreciados ou depreciados, é observando
como se inserem, e que influencias exercem, na paisagem urbana.
Para Brandão (2008, p.14), “o conceito de identidade comporta
sempre uma referência de interactividade, em que as relações com o
que é exterior, são constitutivas da identidade”. A própria noção de
78

identidade urbana pode ser transmitida pela comunicação e pela


educação, propiciando a recognição do caráter de um lugar. Brandão
ainda completa que “individualmente, a identidade é percebida pelo
sentimento de pertença, através de uma coerência entre narrativas e
experiência pessoal (individual ou social) do lugar”.
O vínculo que se estabelece entre os rios, a ferrovia e as
cidades tornam-se claro ao analisar como tanto o primeiro como o
segundo são capazes de influenciar o desenvolvimento do terceiro,
produzindo espaços, reconectando ou desconectando lugares,
criando vazios e transformando a natureza. É possível fazer uma
leitura dessas paisagens como uma representação cultural, um
território produzido pelas sociedades na sua história, e mesmo um
complexo sistêmico articulando os elementos naturais e culturais
numa totalidade objetiva (BESSE, 2006). Ainda assim, em toda e
qualquer paisagem, é possível observar as relações de tempo-espaço
e identificar os traços deixados pelo homem.
É importante ainda ressaltar o uso e a apropriação dos espaços
urbanos. Vivemos em cidades que são resultados de fenômenos
sociais, culturais, econômicos e espaciais que ocorreram e continuam
ocorrendo em determinados arcos temporais. Ou seja, essas cidades
são resultados de fragmentos de tempo que continuam a coexistir no
mesmo espaço. A partir dos estudos realizados neste trabalho sobre
a conexão existente entre os rios, as ferrovias e as cidades, podemos
perceber que o tratamento dado a esses elementos é de grande
importância histórica, cultural e ambiental, refletindo na íntima
relação que possuem com a identidade de um local.
Em consideração a relevância desses elementos para a
identidade da população, é importante a preservação dos mesmos,
não como elementos separados, mas como um conjunto histórico,
que não podem estar desconectados de seus significados. Os trilhos,
as estações, os corpos d’água, a malha urbana e a paisagem devem
ser considerados em sua totalidade nos projetos urbanísticos para
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 79

oferecer às pessoas a possiblidade de manterem contato com a


memória do lugar e viverem em um meio urbano com uma qualidade
ambiental melhor e esteticamente agradável.

A paisagem humanizada e o ambiente arquitetónico são patrimónios


colectivos, os cidadãos têm direito a viver em ambientes
esteticamente qualificados. O direito à qualidade da paisagem e da
arquitectura é um direito social e, noutro sentido, fundamento da
intervenção do arquitecto. (LAMAS, 2011, p.68).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para este trabalho foram analisadas diversas situações que


envolvem a ferrovia e os rios urbanos, bem como a intrínseca relação
que há entre eles, responsáveis pela formação de cidades e ligação
de territórios no Brasil.
Apesar da importância que a ferrovia teve para o
desenvolvimento da cidade, ainda é frequente o abandono do
patrimônio ferroviário. Essa situação se assemelha aos maus tratos
que as águas urbanas vêm sofrendo com as mudanças na paisagem
impostas a elas, mesmo sendo estas a razão da escolha do território
para fixação dos primeiros povoados. Essa degradação reflete
diretamente na qualidade de vida na cidade, já que esses três
elementos estão intimamente ligados pela sua história e identidade.
A identidade, por sua vez, pode ser percebida ao ser
“frequentemente invocada nos projectos urbanos, seja no desígnio de
respeitar contextos e continuidades sejam, pelo contrário, no de
facilitar a adesão das populações à inovação, que tais projetos
possam conter” (BRANDÃO, 2008, p.12). Ao buscar a preservação dos
rios e córregos da cidade, assim como seu patrimônio ferroviário, é
mantida a memória do local, permitindo aos habitantes o contato
com sua história, com o meio ambiente e uma qualidade de vida
melhor.
80

É papel preponderante – não só dos arquitetos como também


dos demais profissionais ligados à preservação da memória, do meio
ambiente e da qualificação urbana – promover a proteção do
patrimônio natural e edificado, além da apropriação dos espaços
urbanos, de modo a revitalizar e reutilizar os espaços desocupados,
criando parques lineares que conectem os rios e os trilhos através da
cidade, e principalmente, incentivando a constante conservação e
proteção desses conjuntos existentes, permeando o tempo presente
e tornando-os parte da vida de todos.

5 REFERÊNCIAS

AB’SABER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil:


potencialidades paisagísticas. 4. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
ALVES, Franciele da Silva. A importância da estrada de ferro "Sorocabana"
no surgimento e desenvolvimento do município de Avaré (SP). In: XI
CONGRESSO DE EDUCAÇÃO DO NORTE PIONEIRO Jacarezinho. 2011. Anais
UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná - Centro de Ciências
Humanas e da Educação e Centro de Letras, Comunicação e Artes.
Jacarezinho, 2011. p. 40-48.
AZEVEDO, A. Vilas e cidades do Brasil Colonial (ensaio de geografia
retrospectiva). Terra Livre - AGB: Geografia, espaço e memória, São Paulo, n.
10, p. 23-78, 1994. Disponível em
<http://www.agb.org.br/files/TL_N10.pdf>, acesso em 23 de jan. 2017.
BESSE, J. M. Las cinco puertas del paisaje: ensayo de una cartografía de las
problemáticas paisajeras contemporáneas. In: MADERUELO, J. (Org.).
Paisaje y pensamiento. Madrid: Abada, 2006. p. 145-171.
BRANDÃO, P. A identidade dos lugares e a sua representação colectiva:
bases de orientação para a concepção, qualificação e gestão do espaço
urbano. Política de Cidades - 3. Lisboa: DGOTDU, 2008.
CONSTANTINO, N. R. T. A construção da paisagem de fundos de vale: o caso
de Bauru. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 118 p.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 81

_______. A construção da paisagem de fundos de vale em Bauru. In:


FONTES, M. S. G. C; GHIRARDELLO, N. (org.). Olhares sobre Bauru. Bauru, SP:
Canal 6, 2008. p. 21-32.
_______. A estrutura agrária na formação do tecido urbano das cidades do
oeste paulista. In: BERTONI, A; SALGADO, I. (org.). Da Construção do
Território ao planejamento das cidades: competências técnicas e saberes
profissionais na Europa e nas Américas (1850-1930). São Carlos, SP: Rima
Editora, 2010. p. 35-49.
_______. Rios Urbanos no Oeste Paulista. III Seminário Nacional sobre o
Tratamento de áreas de Preservação Permanente em Meio Urbano e
Restrições Ambientais ao Parcelamento do Solo – APPURBANA 2014.
Disponível em: <http://anpur.org.br/app-urbana-
2014/anais/ARQUIVOS/GT5-147-21-20140515175753.pdf> Acesso em 24 de
setembro de 2016.
_______. Rios urbanos: permanência e visibilidade no oeste paulista. In:
BENINI, S. M; ROSIN, J. A. R. G. (org.). Estudos urbanos: uma abordagem
interdisciplinar da cidade contemporânea. Tupã, SP: ANAP, 2016. P. 223-
240.
GHIRARDELLO. N. Aspectos do direcionamento urbano da cidade de Bauru.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura, Departamento de
Arquitetura e Planejamento, Universidade de São Paulo, São Carlos, 1992.
187 p.
_______. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista. São
Paulo: Editora Unesp, 2002. 240 p.
_______. A formação dos patrimônios religiosos no processo de expansão
urbana paulista (1850-1900). São Paulo: Editora Unesp, 2010. 268 p.
LAMAS, J. M. R. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. 6. Ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2011.
LANGENBUCH, J. R. Ferrovias e cidades no oeste paulista. In: RETTO JR, A. S.;
ENOKIBARA, M.; CONSTANTINO, N. R. T. (Org.) Conhecimento histórico-
ambiental integrado no planejamento territorial e urbano. 1. ed. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2011. p.42-57.
MOI, C. Exploração do olhar: ciência e arte nas fotografias da Comissão
Geográfica e Geológica de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Multimeios)
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Instituto das Artes, São
Paulo, 2005.
82

MOISSET, I. Interaccion Quadricula-Naturaleza. In: NASELLI, C. et al. Forma


Urbana, lecturas y acciones en la ciudad. Córdoba: I+P Editorial, 2006. p.21-
42.
MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984.
392 p.
OSEKI, J. H.; ESTEVAM, A. D. A fluvialidade em rios paulistas. In: COSTA, L. M.
S. A. (Org.) Rios e paisagens urbanas em cidades brasileiras. Rio de Janeiro:
PROURB/UFRJ, 2006. p. 77-94.
PUPIM, R. G. Cidade e território do oeste paulista: mobilidade e
modernidade nos processos de construção e reconfiguração do urbano.
Dissertação (Mestrado) Universidade de São Paulo, Escola de engenharia,
São Carlos, 2008.
SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teórico e
metodológico da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988.
SPIRN, A. W. O jardim de granito. São Paulo: Edusp, 1995, p. 19-52.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 83

Capítulo 4

ENTRE A FORMOSURA E O REFRIGÉRIO:


A VEGETAÇÃO NOS JARDINS DO RECIFE NOS ANOS 1920

Aline de Figueirôa Silva19


Joelmir Marques da Silva20

1 INTRODUÇÃO

A vegetação é um elemento fundamental na noção de jardim,


ao menos no Ocidente, no seu reconhecimento patrimonial como
jardim histórico e monumento vivo, conforme a Carta de Florença
(1981), e, consequentemente, nas diferentes formas de intervenção
que visam à sua conservação.
Mesmo antes da Carta, em um dos primeiros artigos
publicados na Itália sobre conservação de jardins históricos, Desideria
Pasoline dall’Onda (1975, p. 30) sintetiza bem quão complexo é
trabalhar com o elemento vegetal e considera que “a partir da
realidade de hoje, o jardim, no curso dos séculos, sofreu várias
sobreposições e metamorfose vegetal, do que podemos deduzir que
é necessário observá-lo e estudá-lo quase como um palimpsesto

19
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo
(USP) e Mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Unifavip-Devry University,
alinefigueiroa@yahoo.com.br
20
Biólogo, Doutorando em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), Mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE e em Diseño, Planificación y
Conservación de Paisajes y Jardines pela Universidad Autónoma Metropolitana – Unidad
Azcapotzalco, joelmir_marques@hotmail.com
84

vegetal”. Assim, deve-se entender que o jardim histórico constitui um


documento único (AÑÓN-FELIÚ, 1993; HAJÓS, 2001).
Como palimpsesto vegetal, o jardim assume a conotação de
um documento vivo e sua vegetação deve ser lida e interpretada de
modo a assegurar adequadas ações de conservação.
Afirma-se, assim, a pertinência do conhecimento sobre a
vegetação dos jardins, aí incluídos os jardins públicos, do ponto de
vista botânico, ecológico, arquitetônico e urbanístico, isto é, suas
espécies e associações, suas funções na cidade e na estruturação do
espaço urbano.
Neste sentido, no âmbito da história do paisagismo, a análise
da vegetação abrange, como fonte documental, listas de
especificação botânica que acompanham projetos de jardins. No
Brasil, Auguste François Marie Glaziou (1833-1906) e Roberto Burle
Marx (1909-1994), em razão do seu amplo conhecimento botânico,
incluíram listas especificando a vegetação em seus projetos
paisagísticos. Já a partir de 1935, Burle Marx indicava, nas pranchas,
as listas da vegetação que seria utilizada nos projetos de construção
ou reforma dos jardins da capital pernambucana.
No entanto, antes da atuação de Burle Marx no Recife dos
anos 1930, a cidade conheceu dois períodos de criação e difusão de
jardins públicos. O primeiro corresponde às últimas décadas do
século XIX, especificamente a partir de 1872, quando foi inaugurada a
primeira praça ajardinada da cidade, a Praça da República, então
denominada de Jardim do Campo das Princesas (SILVA, 2010). O
segundo recua aos anos 1920, por ocasião das administrações do
prefeito Antônio de Góis Cavalcanti (1922-1925) e do governador
Sérgio Loreto (1922-1926).
Na década de 1920, foram criados ou reformados vários jardins
públicos, incluindo praças ajardinadas nas décadas anteriores – Praça
da República (c. 1925) e Praça Maciel Pinheiro (c. 1925) – e outras, à
época também denominadas de parques – Praça ou Parque do
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 85

Paissandu (25/05/1924), atual Praça Chora Menino, Parque do Derby


(18/10/1924), Praça ou Parque Sérgio Loreto (19/10/1924), Praça ou
Parque do Entroncamento (19/10/1925), Praça ou Parque Oswaldo
Cruz, Parque Amorim e Largo da Paz entre 1924 e 1925 (Silva, 2010;
Silva, 2016)21.
Contudo, as pesquisas histórico-documentais realizadas até
então sobre os jardins desse período não identificaram listas de
especificação das espécies vegetais, fontes quiçá inexistentes, seja
pelo conhecimento especializado necessário a esse detalhamento,
seja pelas dificuldades de conservação dos acervos documentais e
arquivos públicos brasileiros, de modo geral.
À ausência de tais listas ou manuais de horticultura que
tenham circulado e influenciado o cultivo de jardins na capital
pernambucana nas primeiras décadas do século XX, o presente texto
propõe uma metodologia de identificação vegetal, articulando
referências e procedimentos de distintos campos de conhecimento22.
Inicia pela explicitação de tal metodologia e, posteriormente, analisa
a disposição da vegetação nos jardins públicos do Recife dos anos
1920, associada a funções urbanas na perspectiva do
aformoseamento e da higienização da cidade.

2 IDENTIFICAÇÃO BOTÂNICA: A VEGETAÇÃO NA COMPOSIÇÃO DOS


JARDINS

A vegetação utilizada nos jardins do Recife foi identificada a


partir da análise da morfologia externa dos espécimes vista na
iconografia histórica (fotos e cartões postais) mediante a técnica de
fotointerpretação embasada na dendrologia, cotejada com registros

21
As datas entre parêntesis referem-se à inauguração dos jardins públicos.
22
Este texto apresenta resultados da tese de doutorado em Arquitetura e Urbanismo intitulada
Entre a implantação e a aclimatação: o cultivo de jardins públicos no Brasil nos séculos XIX e XX,
apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP),
2016. Baseia-se, especificamente, no Capítulo 3.1 (Os Jardins Públicos na Remodelação Urbana:
a vegetação, p. 161-202), no qual trabalharam ambos os autores deste artigo.
86

documentais escritos e observações in loco. Para a classificação


taxonômica das espécies utilizou-se o Angiosperm Phylogeny Group
(APG III)23.
Quando não se dispunha de imagens históricas, mas de fontes
documentais escritas e/ou registros historiográficos, procurou-se
verificar, atualmente, a existência de indivíduos antigos de tais
espécies in loco. É o caso, por exemplo, dos fícus (Ficus benjamina)
do Parque do Derby, mencionados no Diário de Pernambuco
(18/10/1924, p. 7) do dia em que foi inaugurado, mas, curiosamente,
não retratado nas fotos antigas do logradouro e hoje lá existentes,
em grande quantidade e já em processo de senescência (Figura 1).
Por sua vez, a Praça do Paissandu exemplifica a situação
inversa, pois era retratada no Guia da cidade do Recife (1935)
exibindo fícus de grande porte (provavelmente lá introduzidos em
1924, ano em que a praça foi ajardinada), apesar da indisponibilidade
de documentos escritos sobre seu plantio e da inexistência de
indivíduos senescentes em campo atualmente.
O cruzamento entre a iconografia histórica e as observações in
loco pôde ser operacionalizado com menor dificuldade e maior
confiabilidade na identificação das árvores e palmeiras, em
detrimento das plantas herbáceas e arbustivas, sobretudo aquelas
presentes em vasos e canteiros, por terem porte mais reduzido e
serem facilmente substituídas ao longo do tempo.
Elemento significativo na composição dos jardins, juntamente
com coretos, pavilhões, fontes e esculturas, ou associando-se
diretamente a lagos e pérgulas, jarros e colunas, a vegetação era um
atributo essencial para o usufruto desses espaços pela população.
Cultivadas em diferentes estratos – herbáceas (aquáticas,
terrestres compondo canteiros, gramados, trepadeiras e vasos);

23
O APG III é considerado o mais moderno sistema de classificação taxonômica das plantas com
flores por estar embasado na filogenia molecular. Pode ser consultado online em
http://www.tropicos.org/Home.aspx
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 87

arbustivas; arbóreas; e palmeiras – as plantas eram um recurso de


amenidade climática e remodelação da fisionomia da cidade,
trazendo benefícios diretos ao bem-estar da população e à estética e
à higiene urbana.

Figura 1: Praça do Derby, destaque para o conjunto de fícus (Ficus benjamina).

Fonte: Foto de Joelmir Marques da Silva, 2015.

3 FORMOSURA E REFRIGÉRIO: AS FUNÇÕES ESTÉTICA E HIGIÊNICA DA


VEGETAÇÃO

Os jardins públicos eram propalados nos periódicos da época,


como a Revista de Pernambuco24, por suas funções estética e

24
A Revista de Pernambuco era um periódico editado pela máquina administrativa do estado
nos anos 1920 e cujo número inaugural foi publicado em julho de 1924 durante a gestão do
governador Sérgio Loreto (1922-1926). Criada como veículo de divulgação da administração de
88

higiênica, profundamente relacionadas à vegetação neles


introduzida, destacando-se o estrato arbóreo. Tais funções
expressavam-se por meio de palavras como aformoseamento,
embelezamento, beleza, ornamentação, higiene, saúde, sombra,
conforto, alegria, graça e encanto.
O plantio de vegetação arbórea, frequentemente referida
como arborização, estendia-se a outros logradouros da cidade, a
exemplo das vias públicas, somando-se ao verde dos jardins. Nestes,
foi feito um plantio maciço de árvores de grande e médio porte e
rápido crescimento, capazes de garantir boa provisão de sombra em
curto período, além de seu efeito decorativo.

Figura 2: Praça Maciel Pinheiro, à esquerda, dois fícus (Ficus benjamina) e, à direita, um
jambeiro (Syzygium malaccense). Ao fundo, a Igreja Matriz da Boa Vista.

Fonte: Revista de Pernambuco, n. 13, julho de 1926 (SILVA, 2010, p. 126).

Pernambuco, a revista publicava fartas descrições e diversas fotografias ilustrativas das ações
promovidas pelo governo, destacando-se aquelas de cunho urbanístico.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 89

Entre as espécies identificadas, a mais comum era o fícus,


presente no Parque do Derby, na Praça Chora Menino e na Praça
Sérgio Loreto. Na Praça Maciel Pinheiro, plantaram-se o fícus e o
jambeiro (Syzygium malaccense) (Figura 2), ao passo que a
mangueira (Mangifera indica) criava maciços no Parque do
Entroncamento. Numa reportagem do Diario de Pernambuco sobre a
Exposição Geral de Pernambuco de 1924, em cujo âmbito foi
inaugurado o Parque do Derby, lê-se:

O ajardinamento do parque mereceu cuidados solicitos. Abrange


todo o comprimento do predio do quartel e prolonga-se até a
entrada da ponte sobre o canal. É constituido de grandes canteiros
de variadas e caprichosas formas plantados com gramma fina, entre
os quaes ficam collocados elegantes caramanchões. Foram
disseminados por todo o parque numerosos exemplares de figos
benjamin, accacias e outras arvores ornamentaes (DIARIO
PERNAMBUCO, 18/10/1924, p. 7; grifos nossos).

Figura 3: Parque do Derby, da esquerda para a direita, um flamboyant (Delonix regia), um


renque de palmeiras-imperiais (Roystonea oleracea) e outro de olho-de-pombo (Adenanthera
pavonina). Ao fundo, o Quartel da Força Pública Estadual.

Fonte: Acervo do Museu da Cidade do Recife (SILVA, 2010, p. 103).


90

Já em 1928, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, destacava a


chegada do engenheiro agrônomo, arquiteto e jardineiro Hermann
Jukus Palli para orientar o serviço de arborização do Recife, o qual, ao
visitar os jardins da cidade, destacou a existência de acácias e
palmeiras-imperiais (Roystonea oleracea) no Parque do Derby (Figura
3) e mangueiras no Parque do Entroncamento.
Embora não se disponha de nenhuma informação que
comprove a atuação desse técnico, a notícia mencionava espécies
vegetais que já haviam sido plantadas nos jardins públicos do Recife
naquela década, coincidindo com a verificação in loco hoje.

O Dr. Costa Maia, Prefeito desta capital acaba de contratar o


engenheiro agronomo e jardineiro architecto Hermann Jukus Palli
para reformar os jardins da cidade e orientar a arborisação num
sentido mais brasileiro e mais intelligente. O engenheiro Hermann
chegou a bordo do “Zeelandia”, já visitou os nossos parques e jardins
e já prompto (sic) para iniciar os trabalhos. (...) Recebeu optima
impressão do parque do Derby e de seus renques, accacias, e
palmeiras imperiaes, julgando tambem feliz o aproveitamento da
mangueira rosa no parque Entroncamento (JORNAL DO BRASIL,
07/11/1928, p. 20; grifos nossos).

As mangueiras do Parque do Entroncamento, mencionadas


pelo referido profissional e ainda hoje lá existentes, foram captadas
pelo olhar privilegiado e pela escrita virtuosa do cronista Mario Sette
(1886-1950), em Maxambombas e Maracatus (1981 [1935])25.

Largo do Entroncamento. Um paraizo de mangueiras. Talvez a praça


mais linda do Recife de agora. Pernambucana da gema com as suas
mangueiras tão nossas, e tão belas, tão acolhedoras. Imaginemos a
de dantes. A de 1911, por exemplo. Um capinzal riscado de veredas e
ao centro a feiosa e suja estação do Entroncamento. (...) De dia, uma
tristeza. De noite, um ermo. Um rapido traço de vida apenas quando
passavam as maxambombas da Fletcher. (...) Depois, os sapos
tomavam conta do largo, á vontade (SETTE, 1981 [1935], p. 226-227;
grifos nossos).

25
A palavra “maxambomba” é uma corruptela da expressão inglesa machine pump (bomba
mecânica) e significa uma pequena locomotiva a vapor composta por três vagões de
passageiros que realizava o serviço de transporte coletivo no Recife a partir de 1867, operado
pela companhia inglesa Brazilian Street Railway Company Limited (BARBOSA, 2011).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 91

As alamedas arborizadas do Parque do Entroncamento foram


consideradas artisticas e graciosas em uma reportagem publicada
pela Revista de Pernambuco em edição de 1925.

Está certamente fadado a deixar a mais agradavel impressão o bello


Parque do Entroncamento, cujos trabalhos de construcção e
embellezamento apresentam já de agora um avançamento bastante
apreciavel. (...) Em seguida, foi iniciada a construção de artisticas e
graciosas alamedas que convergem para um nucleo central, em
forma de circulo (...). Ha disseminados por entre a bem distribuida
arborisação do Parque, artisticos bancos em cimento armado e
sobrias columnas supportando lindos jarrões destinados a conter
plantas decorativas (Parque do Entroncamento in Revista de
Pernambuco, n. 14, agosto de 1925; grifos nossos).

Proveniente da Índia, a mangueira consta, atualmente, na Lista


de Espécies da Flora do Brasil (Reflora), dada sua extensiva
distribuição no país, decerto por isso considerada tão nossa pelo
escritor Mario Sette (Silva, 2016). Por possuir uma copa do tipo
globosa e folhagem densa, a mangueira configura-se até hoje como
uma boa solução à amenização da temperatura, contribuindo com o
conforto dos usuários. Por outro lado, seu caráter ornamental se
expressa na plasticidade de suas folhas, que mudam de cores (do
vermelho, quando jovens, ao verde escuro, quando velhas), mas que
se mesclam em alguns momentos.
Algumas espécies arbóreas parecem ter sido mais valorizadas
por seus atributos morfológicos e ornamentais, como copas, troncos,
folhagens e colorações, à semelhança de esculturas naturais expostas
à contemplação e diretamente associadas à remodelação estética da
cidade. É o caso do flamboyant (Delonix regia), presente no Largo da
Paz e no Parque do Derby (Figura 3).
Espécie de grande esgalhamento, porém sem densidade foliar,
tornando-se permeável aos raios solares, o flamboyant possui flores
de um vermelho intenso, quebrando o verde-escuro do fícus, da
mangueira e do eucalipto, presentes na arborização da cidade.
92

Figura 4: Parque Amorim, maciço vegetal formado por eucaliptos (Eucalyptus sp.).

Fonte: Cartão postal pertencente ao acervo de Aline de Figueirôa Silva (Silva, 2016, p. 180).

O eucalipto (Eucalyptus sp.) teria sido introduzido no Parque


do Derby para auxiliar a drenagem do terreno. No Parque Amorim
(Figura 4), formava um maciço, provavelmente constituindo a
principal, se não única, espécie de grande porte lá cultivada.
Este maciço de eucaliptos era, possivelmente, um elemento
importante na visitação ao jardim, em cujo centro existia um aquário
com um peixe-boi, refletindo a folhagem da vegetação e constituindo
um espaço lúdico apreciado por usuários locais e visitantes
(ANDRADE, 1978; COUCEIRO, 2012; SILVA, 2016).

Um dos grandes melhoramentos com que o governo do Dr. Sergio


Loreto dotou a cidade do Recife, foi o bello Parque do Derby. (...). É
constituido por grandes grammados e farta arborização. Os grupos
vegetaes, espalhados aqui e acolá, dão, em conjuncto, um aspecto
aproximado do natural. Distribuidos convenientemente em toda a
grande extensão existem bancos, jarros e duas elegantes estatuetas
postas de um lado e outro á entrada do parque, destacando-se em
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 93

meio de tudo isto duas pergolas, uma vasca, e um lago artificial. (...).
O lago, de fórma irregular, envolve uma pequena ilha também
irregular, feita com blocos naturaes, e apresenta dois pequenos
rochedos sobre os quaes existe uma vegetação apropriada. Arvores
e flores estão ainda plantadas na ilha, a que se tem accesso por uma
ponte rustica. (...) Nos dois canteiros juntos ao canal, na descida da
ponte, foram plantados dois grandes tufos de eucalyptos, que fazem
a drenagem do terreno (Parque do Derby in Almanach de
Pernambuco para o anno de 1929, p. 245-247; grifos nossos).

Uma matéria intitulada As arvores, publicada na Revista de


Pernambuco em agosto de 1924, ressalta os atributos da arborização
para o aformoseamento e o refrigério da cidade como benefícios
diretos à população. Os efeitos das árvores “sobre as condições
climáticas locais, na intenção de modificá-las e torná-las mais
aprazíveis” foram enfatizados ao se aproximar o Recife de uma
estepe, isto é, uma formação plana e árida presente em regiões
desérticas, desprovida de plantação (Silva, 2016, p. 171). Mas
também, por indicar o papel das árvores para atenuar a inclemência
da soalheira, ou seja, a hora de calor mais intenso sob exposição ao
sol numa cidade de clima tropical como o Recife (SILVA, 2016).

Felizmente a nossa cultura actual, encaminhada pelas providencias


de carater administrativo tem feito com que a população do Recife,
prese e respeite as arvores que nos dão encanto e poesia. Hoje a
nossa linda capital não tem mais aquelle aspecto da cidade edificada
sobre steppes. Apresenta-se alegre nas suas tonalidades verdes,
attenuando a inclemencia das solheiras (sic) tropicaes (As arvores in
Revista de Pernambuco, n. 2, agosto de 1924; grifos nossos).

Por sua vez, a palmeira-imperial, já utilizada nos jardins da


cidade, foi introduzida no Parque do Derby e no Parque do
Entroncamento. Cultivada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro,
difundiu-se pelo país e “tornou-se símbolo de identificação com a
nobreza do Império”, atravessou os séculos XIX e XX e “até os dias
atuais está associada a enunciados como monumental, imponente,
nobre, majestosa, aristocrática e solene” (SILVA, 2016, p. 193).
94

Já aclimatada no Brasil e muito utilizada no tratamento


paisagístico de espaços públicos e privados desde o século XIX, esta
espécie respondia ao caráter cívico do Parque do Derby, cenário de
eventos e comemorações, evoluções e paradas militares e escolares,
guarnecido ao fundo pelo Quartel da Força Pública (Figura 3). No
Parque do Entroncamento, as palmeiras-imperiais “circundavam a
fonte central, realçando o efeito monumental e poder iluminativo da
peça” (SILVA, 2016, p. 192).
Espécies como hera (Ficus pumila), rosa (Rosa sp.), bambu
(Bambusa sp.) e gravatá (Bromelia balansae) foram, segundo a
Revista de Pernambuco, em edição de 1924, introduzidas nas praças
do Paissandu e Sérgio Loreto, cujo plantio não se pôde verificar na
iconografia histórica.

A nova praça do Payssandú, situada no começo da rua do mesmo


nome, é mais um logradouro publico construido pelo dr. Antonio de
Góes, a cuja operosidade deve a nossa capital grande numero de
serviços, não só de utilidade publica, como tambem de
aformoseamento e conforto para a população urbana. (...) O
aformoseamento no interior do refugio conta de ajardinamento
distribuido em canteiros habilmente dispostos formando bem
talhado arruamento e de farta arborização, que com suas arvores
quer propriamente de arborização quer de ornamentação está
destinada a dar sombra e alegria a tão aprazivel recanto da cidade.
Os canteiros, que são limitados por meio-fios de alvenaria, contém
tambem plantas proprias de jardins, como roseiras, bambús e outras
(...). Para completar e dar maior graça ao logradouro, foram
collocadas seis jardineiras assentadas em elegante bases de concreto
(Praça do Paysandú in Revista de Pernambuco, n. 1, julho de 1924;
grifos nossos).

Assim, a velha campina se está transformando no futuro Parque


Sergio Loreto, destinado a servir brevemente de magnifico
logradouro aos habitantes da freguezia de S. José. Com isto atende o
sr. prefeito, com a possivel solicitude ao embelezamento da cidade
(...). No espaçoso triangulo que margina a avenida Lima Castro já
estão em franco andamento os serviços de construcção de um
grande lago, no qual se verá uma ilha ostentando ruinas de velhos
edificios em que sobe a héra e vegetam plantas caracteristicas:
gravatás, palmeiras, bambús, etc. As margens do lago ficarão em
talude, serão grammadas, com a sua arborisação apropriada e bem
distribuida (...). Um artistico pavilhão de forma ellyptica destinado ás
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 95

tocatas musicaes, será levantado em cimento armado, centralizando


a disposição dos canteiros, jardineiras, jarros e bancos de moderno
feitio (Um novo parque in Revista de Pernambuco, n. 1, julho de
1924; grifos nossos).

Entre as plantas herbáceas utilizadas nos jardins desse período


estavam as trepadeiras nas pérgulas, “construções em alvenaria e
cimento armado, desprovidas de teto e com tipologia construtiva
clássica em base-corpo-coroamento” (Silva, 2016, p. 185). Segundo
Patrick Taylor e Jane Fearnley-Whittingstall (in Taylor, 2006), as
plantas trepadeiras podem constituir ricos recursos paisagísticos:
provisão de sombras, aspersão de aromas e valorização da beleza das
flores, frutos e folhagens.

Figura 5: Praça Oswaldo Cruz, ao fundo, a pérgula em cimento armado para plantas trepadeiras
e, em último plano, à esquerda, indivíduos de fícus (Ficus benjamina). Vê-se ainda o busto do
médico sanitarista Oswaldo Cruz no meio de um canteiro de cana-da-índia (Canna indica).

Fonte: Foto de Alexandre Berzin pertencente ao acervo da Fundação Joaquim Nabuco (SILVA,
2016, p. 188).
96

Os parques do Derby e Oswaldo Cruz (Figura 5) continham


pérgulas em cimento armado encimadas por travejamento de
madeira nas quais espécies trepadeiras podiam se enramar,
“compondo cenários naturalísticos pela irregularidade das formas
vegetais associadas a construções de feição greco-romana” (SILVA,
2016, p. 185-186). Ainda na Praça ou Parque do Paissandu, seriam
plantadas trepadeiras na coberta do coreto ou pavilhão musical.

Uma das pergolas, em forma de cruz de Malta, mede 9 metros no


sentido dos raios. Compõe-se de 12 columnas doricas, de 3 metros
de altura, sem pedestaes e com canneluras, e supporta um
entalhamento dorico com triplyphos. A coberta consta de simples
caibros sarrafeados e moldurados nas pontas, que se destinam a
receber vegetação adequada. A outra é um semicirculo de 7 metros
de raio, proporcionada na ordem corynthia. Compõe-se de 6 pares de
columnas geminadas, supportando cada grupo um entablamento
ôco, servindo de jardineira. É fechada inferiormente por uma
balaustrada corynthia, e superiormente por caibros sarrafeados e
moldurados, com o mesmo fim da primeira (Parque do Derby in
Almanach de Pernambuco para o anno de 1929, p. 245-246; grifos
nossos).

No centro do refugio foi construido um bello pavilhão octogenal (sic)


de cimento armado, tendo duas escadinhas de granito que lhe dão
acesso; a coberta é suspensa por oito columnas que, em breve,
estarão cobertas de verde trepadeira há pouco plantada (Praça do
Paysandú in Revista de Pernambuco, n. 1, julho de 1924; grifos
nossos).

Desse modo, em razão da vegetação, as pérgulas podiam


converter-se em recantos sombreados e perfumados, propícios à
permanência e à contemplação, embora não se disponha de dados
que permitam a identificação das espécies utilizadas nos jardins do
Recife àquela época.

4 CONCLUSÕES

Mesmo tratando de um recorte específico, o Recife nos anos


1920, este relato descortina uma razoável diversidade vegetal
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 97

introduzida nos jardins públicos da cidade, tanto por seu caráter


ornamental, quanto higiênico.
Embora exóticas em sua maioria, as espécies plantadas num
conjunto de nove jardins revelam ligação com o meio local,
considerando especialmente a necessidade de amenidade climática
frente à predominância de dias quentes ao longo do ano no Recife.
O clima aparece, então, como uma variável importante na
seleção das espécies vegetais, em que se evidencia a propagação do
fícus, embora este esteja muito associado à difusão do gosto pelos
jardins estrangeiros.
Ressalta-se, ainda, a metodologia proposta para identificação
das espécies botânicas e seu caráter interdisciplinar com vistas aos
estudos de história do paisagismo e conservação do patrimônio
paisagístico.
Entende-se, por fim, que essa metodologia pode ser aplicada a
outros contextos, por um lado, ampliando a tipologia de fontes
documentais utilizadas no reconhecimento das espécies vegetais
introduzidas em jardins públicos e, por outro, possibilitando estudos
comparativos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Gilberto Osório de. Pequena História da Praça da República. In:


Um Tempo do Recife. Recife: Arquivo Público Estadual, 1978. p. 179-208.
AÑÓN-FELIÚ, Carmen. El jardín histórico: notas para una metodología previa
al proyecto de recuperación. In: ICOMOS. Jardins et Sites Historiques.
Madrid: Ediciones Doce Calles, ICOMOS/UNESCO, 1993. p. 312-325.
AS ARVORES. In: Revista de Pernambuco, anno 1, n. 2, agosto de 1924.
BARBOSA, Virgínia. Transporte urbano do Recife. Pesquisa Escolar, Fundação
Joaquim Nabuco. Disponível em:
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar. Acesso em: 10 out. 2016.
98

CARTA de Florença, 1981. In: CURY, Isabelle (Org.). Cartas Patrimoniais. 3


ed. rev. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.
COUCEIRO, Sylvia. Entre festas, passeios e esportes: o Recife no circuito das
diversões nos anos 1920. In: BARROS, Natália; REZENDE, Antonio Paulo;
SILVA, Jaílson Pereira da (Org.). Os anos 1920: histórias de um tempo. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2012. p. 83-114.
DALL’ONDA, Desideria Pasoline. Restauto del verde storico nella
pianificazione del território, Italia Nostra, n. 128, p. 30-33, 1975.
DIARIO de Pernambuco. A Exposição: será hoje solennemente inaugurado o
grande certamen do Derby, expoente precioso do progresso de Pernambuco,
18/10/1924, p. 7.
GUIA DA CIDADE DO RECIFE-Guide de la ville de Recife-A guide of the city of
Recife. Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1935.
HAJÓS, Géza. Jardines históricos y paisajes culturales: conexiones y límites.
Teorías y experiencias en Austria. Revista ICOMOS/UNESCO, 2001, p. 1-9.
JORNAL do Brasil. O embellesamento dos jardins de Recife, 07/11/1928, p.
20.
PARQUE DO DERBY. In: Almanach de Pernambuco para o anno de 1929,
Recife, Off. Graph. Jornal do Commercio, 31º anno, p. 244-247, 1928.
PARQUE DO ENTRONCAMENTO. In: Revista de Pernambuco, Recife,
Repartição de Publicações Officiaes do Estado de Pernambuco, anno 2, n.
14, agosto de 1925.
PRAÇA DO PAYSANDÚ. In: Revista de Pernambuco, Recife, Repartição de
Publicações Officiaes do Estado de Pernambuco, anno 1, n. 1, julho de 1924.
REVISTA DE PERNAMBUCO, Recife, Repartição de Publicações Officiaes do
Estado de Pernambuco, anno 2, n. 13, julho de 1925.
SETTE, Mario. Maxambombas e Maracatus. 4. ed. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 1981.
SILVA, Aline de Figueirôa. Entre a implantação e a aclimatação: o cultivo de
jardins públicos no Brasil nos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em
Arquitetura e Urbanismo). São Paulo, USP, 2016.
SILVA, Aline de Figueirôa. Jardins do Recife: uma história do paisagismo no
Brasil (1872-1937). Recife: Cepe, 2010.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 99

TAYLOR, Patrick (Ed.). The Oxford Companion to the Garden. Oxford, New
York: Oxford University Press, 2006.
UM NOVO PARQUE. In: Revista de Pernambuco, Recife, Repartição de
Publicações Officiaes do Estado de Pernambuco, anno 1, n. 1, julho de 1924.

Sites

http://reflora.jbrj.gov.br/jabot/listaBrasil/ConsultaPublicaUC/ResultadoDaC
onsultaNovaConsulta.do.

http://www.tropicos.org/Home.aspx
100
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 101

Capítulo 5

RAÍZES DO PAISAGISMO NO BUTANTAN: O HORTO OSVALDO CRUZ


E A CONTRIBUIÇÃO DE F C HOEHNE

Erika Hingst-Zaher26
Luíza Teixeira-Costa27

1 INTRODUÇÃO

Antes da implantação do Jardim Botânico de São Paulo, da


criação dos bairros-jardim pela Companhia City e antes mesmo da
região do bairro do Butantã se fundir à mancha urbana da capital
paulista, foi criado no Instituto Butantan, o Horto Oswaldo Cruz
(HOC). Com o objetivo inicial de cultivar plantas medicinais e tóxicas,
o Horto desempenhou - e ainda hoje desempenha - múltiplas funções
ao longo de seus quase 100 anos de história, sempre aliando a
pesquisa científica ao diálogo com o público.
Embora a história deste horto botânico já tenha sido contada
anteriormente, é válido o esforço de analisá-la sob uma nova
perspectiva, focando-se nas personagens principais dessa história: as
espécies vegetais originalmente cultivadas no HOC. Partindo desta
perspectiva, este capítulo aborda aspectos do paisagismo da capital
paulista relacionados à vegetação original do Horto, destacando a
importância do trabalho de seu diretor, Frederico Carlos Hoehne,

26
Doutora em Ciências Biológicas (Genética). Pesquisadora no Instituto Butantan.
E-mail: erika.zaher@butantan.gov.br
27
Mestra em Botânica. Doutoranda no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
E-mail: luiza.teixeirac@ib.usp.br
102

especialmente no que diz respeito ao cultivo e estudo de espécies


vegetais e sua utilização na construção do espaço público no início do
século XX.

2 CONTEXTO HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DO HORTO OSWALDO CRUZ

O paisagismo no Brasil data inicialmente de meados do século


XVII, durante o período da dominação Holandesa em Pernambuco,
quando foi criado primeiro jardim botânico do Brasil (PAIVA, 2004).
Posteriormente, intensificou-se ao atingir os espaços públicos do Rio
de Janeiro, entre eles o Passeio Público, concluído em 1783 (SILVA,
2010), tendo sido influenciado pelo “jardim romântico francês”
(GALLERANI, 2004). Nesse contexto, os jardins e hortos botânicos
instituídos no País a partir do final do século XVII tiveram grande
relevância por serem locais de cultivo e aclimatação de diversas
espécies vegetais, incluindo aquelas com potencial uso paisagístico
(VEIGA et al., 2003).
Dentro da lógica utilitarista das ciências naturais vigente na
Europa a partir da segunda metade do século XVIII, diversos jardins e
hortos botânicos foram criados, tanto nas metrópoles quanto nas
colônias de países como França e Portugal (SANJAD, 2010). Essa
lógica ressaltava a relação entre os estudos possibilitados pelo
estabelecimento de coleções botânicas e sua aplicação na agricultura
e exploração de outros recursos naturais, como plantas medicinais e
especiarias (BEDIAGA, 2007). No caso do Brasil, os exemplos mais
marcantes na ainda escassa literatura sobre o tema incluem a criação
do Jardim Botânico do Grão-Pará em 1789 (SANJAD, 2001) e a criação
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1808 (SOUZA 2009) que,
juntamente a espaços semelhantes criados em outras cidades,
fizerem parte da rede luso-brasileira de jardins botânicos (SANJAD,
2010).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 103

Na cidade de São Paulo, a intenção de se criar um Jardim


Botânico destinado ao cultivo e estudo das “plantas úteis” surgiu
desde a fundação da cidade de São Paulo no século XVI. Entretanto,
“somente após dois séculos é que essa intenção começou a ganhar
forma” (ROCHA; CAVALHEIRO, 2011). O primeiro Jardim Botânico de
São Paulo foi criado a partir de ordem régia em 1799, no local do
atual Parque da Luz (Idem), e apenas em 1938 foi oficializado em sua
atual localização, no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga
(HOEHNE et al., 1941). Até a implantação definitiva de um Jardim
Botânico em São Paulo, ocorreram diversas tentativas frustradas e
mudanças de local (ROCHA; CAVALHEIRO, 2011). Devido à boa
reputação da qual já gozava naquela época no ramo da ciência, tanto
em âmbito nacional quanto internacional (HOEHNE, 1925a), o
Instituto Butantan foi escolhido para fazer parte desta história,
abrigando um horto botânico a partir de 1917 (OLIVEIRA et al., 2005).
Originalmente proposto durante uma reunião da Sociedade
Botânica da França (NEIVA, 1918), o Horto Oswaldo Cruz (HOC) foi
criado com o objetivo de cultivar plantas medicinais e tóxicas que
deveriam ser pesquisadas quanto às suas propriedades químicas e
fisiológicas (HOEHNE, 1925a). Para tal, além da área de cultivo foi
criado também um laboratório químico para a pesquisa e eventual
produção de insumos biológicos de origem vegetal (OLIVEIRA et al.,
2005). Foi instituída também a Seção de Botânica do Estado de São
Paulo, que além do Horto era composta por um herbário e pela
Estação Biológica do Alto da Serra, localizada na região de
Paranapiacaba, na Serra do Mar (HOEHNE, 1925a).
Para chefiar o Horto Oswaldo Cruz, assim como a Seção de
Botânica, foi contratado o botânico autodidata Frederico Carlos
Hoehne, que na época se ocupava como jardineiro chefe no Museu
Nacional do Rio de Janeiro (TEIXEIRA, 1962). Embora não possuísse
instrução formal no campo da Botânica, Hoehne recebeu título de
doutor honoris causa da Universidade de Goettingen (Alemanha)
104

devido ao seu notório saber e contribuição para esta área da ciência


(TEIXEIRA, 1962). A despeito do trabalho e dedicação de Hoehne, o
Horto Oswaldo Cruz (HOC) e a Seção de Botânica tiveram curta
duração no Instituto Butantan como áreas dedicadas à pesquisa
botânica (INSTITUTO BUTANTAN, 1922). Tendo sido oficialmente
inaugurada em 1918 (NEIVA 1918), a Seção de Botânica foi
transferida ao Museu Paulista juntamente com todo seu pessoal já
em meados de 1922 (INSTITUTO BUTANTAN, 1922). Embora tenha se
mantido aberto e funcional por mais alguns anos, posteriormente o
HOC foi desanexado da Seção de Botânica e passou à alçada do
Instituto Butantan, recebendo novos direcionamentos (OLIVEIRA et
al., 2005).
Pelo breve histórico acima relatado, a criação do Horto
Oswaldo Cruz não parece estar relacionada a questões de paisagismo
e difusão vegetal, e sim à pesquisa de plantas medicinais. Entretanto,
nota-se que este propósito remonta à origem dos jardins botânicos
no mundo, criados para o cultivo e estudo de plantas com potencial
medicinal (BEDIAGA, 2007). Ainda, de acordo com a definição
moderna de jardins botânicos, cunhada pelo Conselho Nacional de
Meio Ambiente (BRASIL, 3 de agosto de 2000), o Horto Oswaldo Cruz
enquadra-se, de fato, como um jardim botânico. Este
enquadramento já lhe confere relevância na arquitetura paisagística,
assim como na arborização urbana, tendo em vista que o contato do
público com recintos botânicos historicamente contribuiu para o
surgimento de uma demanda popular pela presença de árvores em
espaços públicos das cidades (SEGAWA 1996).
Além disso, a escolha das espécies vegetais originalmente
cultivadas na área incluiu espécies de importância paisagística e
histórica para a cidade de São Paulo. É interessante notar que o
trabalho realizado por Hoehne à frente do Horto e da Seção de
Botânica envolveu também a comunicação com o público, difundindo
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 105

temas relacionados ao cultivo de plantas em diferentes ambientes e


buscando informações sobre seus usos.

3 O INVENTÁRIO DAS ESPÉCIES VEGETAIS DO HORTO OSWALDO


CRUZ

Como relatado por Hoehne (1925a), a área na qual foi


construído o Horto Oswaldo Cruz correspondia, antes de sua
construção, a uma região de várzea na qual havia apenas um capinzal
e uma pequena plantação de mandioca. Segundo o autor, a única
remanescente da vegetação original seria um exemplar de figueira
(Ficus pohliana, Moraceae), destacado por este em diferentes partes
de sua obra, que se apresentava carregado de variadas espécies de
epífitas (HOEHNE, 1925a, pg. 49). Embora a diversidade de epífitas
tenha decrescido localmente, juntamente com a redução da área
delimitada inicialmente como HOC, ainda hoje é possível localizar
descendentes da figueira mencionada por Hoehne, levando a crer
que sua manutenção na área se devesse ao seu valor paisagístico,
representado pelo porte e pela profusão de orquídeas e bromélias
epífitas em seus troncos.
Em torno desta árvore, diversas outras espécies botânicas
foram plantadas, de modo que ainda durante a preparação do
terreno para a inauguração do Horto, 1694 espécimes foram
semeados (INSTITUTO BUTANTAN, 1917). De acordo com
documentos produzidos por Hoehne durante a gestão do HOC, as
sementes e mudas plantadas na área foram obtidas inicialmente
junto aos agricultores que já prestavam serviços ao Butantan e
“diversos amigos do Instituto” (INSTITUTO BUTANTAN, 1917). Além
disso, de forma a divulgar a existência e o propósito do recém-criado
Horto, seu diretor também estendia ao público geral o pedido de
mudas e sementes de plantas tóxicas e medicinais (HOEHNE, 1918),
notadamente na revista de comunicação rural “Chácaras e Quintaes”,
106

editada pelo Conde de Barbiellini e considerada a precursora das


revistas atuais de agropecuária (ANTUNIASSI; MOURA, 2005). Além
da comunicação estabelecida com o público através de meios de
divulgação científica e educação (FIORAVANTI, 2011), em troca do
material enviado, Hoehne oferecia ao público serviços de
identificação de plantas, estabelecendo e fortalecendo, desde os
primórdios da história do HOC, a prática de ciência cidadã já
promovida no Instituto Butantan (IBu) por Vital Brazil (TEIXEIRA et al.
2015), que deu origem à forte relação entre o IBu e o público,
existente até os dias atuais.
Uma vez reunido um número de plantas e sementes suficiente
para o início do projeto, Hoehne menciona que o plantio fora feito

De accordo com os processos e methodos mais modernos da


esthética, arranjamos o plano de modo a fazer predominar as linhas
curvas. Como modelo para o conjuncto escolhemos o Jardim
Botanico de Dahlem, em Berlin (...). (HOEHNE, 1925ª)

As Figuras 1 e 2 abaixo ressaltam o predomínio de linhas


curvas mencionadas no trecho acima ilustrando, em planta baixa e
em vista aérea, a ampla área originalmente ocupada pelo Horto
Oswaldo Cruz.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 107

Figura 1: planta baixa da área original do Horto Oswaldo Cruz.

Fonte: HOEHNE, 1925a

Figura 2: vista aérea do Horto Oswaldo Cruz.

Fonte: HOEHNE, 1925a

A partir do relato de Hoehne notam-se ainda dois importantes


pontos: o valor do aspecto estético e a influência europeia nesta fase
do paisagismo. O primeiro ponto pode representar uma relação com
o público visitante do Instituto Butantan. Embora o Horto ainda não
108

fosse aberto à visitação, uma análise das fotos da época revela o HOC
como um espaço aberto, sem muros, que poderia ser contemplada
pelos visitantes sem a necessidade de entrada no espaço de cultivo
das plantas. Assim, uma estética agradável, oferecendo sensação de
bem estar, contribuiria para despertar o interesse do público
(DEMATTÊ 1999). De fato, a importância que Hoehne conferia à
vegetação transcendia o aspecto utilitarista, relacionando-se também
à apreciação estética da natureza (FRANCO; DRUMMOND, 2002). O
valor estético das plantas e de ambientes naturais de modo geral era
inclusive utilizado por Hoehne ao abordar os temas de proteção e
conservação (FRANCO; DRUMMOND, 2007).
Embora Hoehne tenha seguido a inspiração alemã para a
criação do HOC, o paisagismo na cidade de São Paulo sofreu
influência predominantemente francesa (SANTOS; TEIXEIRA, 2001),
desde aspectos relacionados ao formato de praças e canteiros, até a
escolha das espécies vegetais utilizadas (DOURADO, 2011). Além da
preocupação inicial de embelezar as ruas da cidade em crescimento,
o paisagismo em São Paulo também esteve ligado à preocupação
com a qualidade de vida da população, guiada por influência do
pensamento higienista do início do século XIX (ANDRADE, 2004;
VIGNOLA JR., 2005), que considerava a arborização urbana como
capaz de afastar os miasmas – odores fétidos que poderiam levar ao
surgimento de doenças como a malária (SEGAWA, 1996; HALLIDAY,
2001). Essas ideias marcaram o início da arborização urbana também
em outras capitais do País (SANTOS; TEIXEIRA, 2001). Todavia, o
pensamento de valorização da flora e da cultura nacionais esteve
sempre presente nos trabalhos de Hoehne, podendo ser considerado
pioneiro para a época (FRANCO; DRUMMOND, 2005). Esta
valorização refletiu-se na escolha das espécies originalmente
cultivadas no HOC.
A lista de espécies cultivadas no Horto foi publicada
originalmente em 1918, nos Relatórios Anuais do Instituto Butantan,
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 109

contendo também as espécies presentes no herbário da Seção de


Botânica. No ano seguinte esta listagem, aqui apresentada em anexo,
ganha uma publicação em separado, intitulada “Catálogo do Herbário
e das espécies cultivadas no Horto Oswaldo Cruz” (HOEHNE, 1919).
Embora dê maior ênfase ao material de coleção, o Catálogo,
documento em torno do qual foi desenvolvida a pesquisa aqui
reportada, representa a primeira fonte oficial de informação quanto
às espécies vegetais selecionadas para serem cultivadas e estudadas
na área do HOC. A lista destas espécies é apresentada ao final desde
capítulo (Quadro 1).
A análise quantitativa dessa listagem reporta um total de 164
espécies plantadas na área, sendo evidente a predominância de
nativas – 80% das espécies. Infelizmente não são mencionadas
informações quanto ao número de indivíduos de cada uma das
espécies cultivadas. Quanto aos hábitos da vegetação selecionada,
uma análise da lista feita por Hoehne revela a presença de: 53
arbóreas (32%), 15 arbustivas (10%), 37 epifíticas (22%), 50
herbáceas (30%) e 09 lianescentes (6%). Embora não tenham sido
publicadas atualizações posteriores da lista original de espécies,
outros documentos produzidos por Hoehne sobre o HOC evidenciam
que diversas outras espécies foram acrescentadas posteriormente à
área. Dentre as espécies nativas originariamente comuns na região
dos campos do Butantã (JOLY, 1950), destacam-se exemplares de
Myrtaceae, acrescentados posteriormente ao cultivo no HOC
(HOEHNE, 1925a). Atualmente, exemplares nativos e exóticos da
família correspondem a cerca de 5% da arborização viária do bairro
Butantã (LIMNIOS, 2006).
Outras espécies nativas de grande relevância para a
arborização urbana e para o paisagismo que fazem parte da listagem
de espécies do HOC merecem destaque, como Caesalpinia ferrea
(pau-ferro, Fabaceae) e Caesalpinia pluviosa (sibipiruna, Fabaceae),
muito comuns até hoje nas ruas da capital paulista, e em especial no
110

bairro Butantã, por influência da Companhia City, responsável pelo


projeto urbanístico e paisagístico no bairro (LIMNIOS, 2006). Esta
companhia foi a primeira no Brasil a aplicar a ideia de bairros-jardim
na urbanização, o que contribuiu para a posterior consolidação da
relevância de espaços livres urbanos, especialmente os parques e
jardins (MACEDO, 2007). No caso do bairro do Butantã a urbanização
começou a ser planejada entre 1913 e 1914 como um bairro de
operários (D'ELBOUX, 2015). A partir de 1918 iniciaram-se as obras
da Cia. City no bairro (CIA CITY DE DESENVOLVIMENTO, 1980), que na
época ainda não fazia parte do perímetro urbano da cidade
(D'ELBOUX, 2015).
Prosseguindo a análise das espécies listadas no Catálogo do
HOC (HOEHNE, 1919) apontamos algumas das espécies originalmente
cultivadas no local e relacionadas ao paisagismo e arborização das
vias públicas. Destacamos a presença de Miconia candolleana
(vassourinha, Melastomataceae), espécie comum na vegetação
original presente nas baixadas do Butantã (JOLY, 1950), cultivada no
HOC por seu uso medicinal (BOSCOLO; VALLE 2008) e indicada para
arborização urbana (HOEHNE, 1944). É interessante notar que,
mesmo com o alto percentual de espécies nativas da região Sudeste
cultivadas no HOC, as espécies arbóreas anteriormente citadas – pau-
ferro, sibipiruna e vassourinha – são as únicas que, segundo Joly
(1950), eram originalmente encontradas naquela localidade.
Entretanto, o trabalho de Joly não teve como objetivo esgotar as
possibilidades de espécies vegetais comuns na região, especialmente
tendo em vista que, quando da publicação referida, a urbanização já
havia “explodido” no bairro do Butantã (ALMEIDA, 1975).
Constam ainda no Catálogo as seguintes espécies: Rollinia
emarginata (araticum-mirim, Anonaceae), Grevillea robusta (grevilha,
Proteaceae), Cassia multijuga (canafístula, Fabacaeae),
Handroanthus umbellatus (ipê-do-brejo, Bignoniaceae) e Cybistax
antisyphilitica (ipê-verde, Bignoniaceae), todas estas listadas por
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 111

Hoehne, já em 1925, como úteis para a arborização urbana, e até


hoje recomendadas para este mesmo fim pelo “Manual Técnico de
Arborização Urbana de São Paulo” (SÃO PAULO, 2015), doravante
mencionado como “Manual” (2015).
Dentre as 53 árvores listadas no Catálogo (HOEHNE, 1919), 11
espécies são atualmente indicadas pelo “Manual” (2015), e seis
também foram indicadas por Hoehne em sua publicação sobre
arborização urbana datada de 1944. Apenas uma das árvores
indicadas por Hoehne nesta mesma publicação, e cultivada no HOC
devido a seu uso medicinal (HOEHNE, 1925a; 1939) é hoje
considerada inadequada para o plantio em vias urbanas. Trata-se da
espécie Melia azedarach (cinamomo, Meliaceae), apontada no
“Manual” (2015) da capital paulista como imprópria para o plantio
em área urbana por ser exótica e altamente invasora. De fato, pode-
se notar que atualmente diversos exemplares de cinamomo
encontram-se dispersos pela área do HOC, resultando em forte
competição com as espécies nativas que recolonizaram a região.
Outras duas espécies de grande importância para a arborização
e para a história da cidade de São Paulo, a Tipuana tipu (tipuana,
Fabaceae) e o Jacaranda mimosifolia (jacarandá-mimoso,
Bignoniaceae) foram também cultivadas no Horto por suas
conhecidas propriedades medicinais (RIBEIRO, 2010; ARRUDA et al.
2012). Estas duas espécies arbóreas são as mais comuns na cidade de
São Paulo (CARDIM, 2008), e embora exóticas, originárias da
Argentina, imagina-se que seu uso tenha sido difundido na cidade de
São Paulo por conta do trabalho do paisagista francês Charles Thays,
responsável pela arborização da cidade de Buenos Aires, que
influenciou muitas outras cidades da América do Sul (DOURADO,
2011). Até hoje ambas as espécies são amplamente utilizadas para a
arborização urbana, sendo inclusive indicadas no “Manual” (2015).
Em contraponto ao propósito original do HOC – o cultivo e
estudo de plantas de interesse medicinal e tóxico – é importante
112

notar que 37% das plantas originalmente cultivadas na área,


totalizando 60 espécies, não se enquadram nessa classificação,
estando ausentes do abrangente compilado intitulado “Plantas e
substâncias vegetais tóxicas e medicinais” (HOEHNE, 1939). As
mesmas espécies também não fazem parte do rol de plantas
tradicionalmente comestíveis, como Solanum gilo (jiló, Solanaceae) e
Triticum sativum (trigo, Poaceae), e tampouco são de uso
convencional para na produção de tecidos, como Linum
usitatissimum (linho, Linaceae) e Indigofera anil (anileira, Fabaceae).
Entretanto, a maioria dessas 60 espécies apresenta grande potencial
paisagístico, sendo até hoje utilizadas com este fim. Exemplos
incluem Bactris setosa (palmeira-tucum, Arecaceae), Bougainvillea
spectabilis (primavera, Nyctaginaceae) e diversas espécies de epífitas,
dentre as quais merecem destaque aquelas da família Orchidaceae.
Convém esclarecer que o destaque dado às orquídeas no HOC
se deve ao grande número de trabalhos de autoria do próprio
Hoehne sobre espécies pertencentes a este grupo. É importante
lembrar que Hoehne era um botânico autodidata, cujo interesse pela
botânica foi despertado aos 8 anos de idade, justamente por ter
ganho de seu pai uma orquídea (OLIVEIRA et al., 2005). Durante sua
carreira, Hoehne descreveu um total de 717 espécies vegetais, dentre
as quais 405 eram orquídeas28. Além das descrições das espécies, o
autor publicou ainda a “Iconografia das Orchidaceae do Brasil”
(HOEHNE, 1949), obra ricamente ilustrada e ainda hoje considerada
como referência no assunto. O Catálogo do HOC (HOEHNE, 1919)
lista 28 espécies de orquídeas cultivadas ao ar livre no horto. Cerca
de 120 espécies adicionais, provenientes principalmente de São
Paulo e Minas Gerais, eram cultivadas na estufa do HOC (HOEHNE,

28
Dados obtidos através do portal Tropicos, administrado pelo Missouri Botanical Garden,
disponíveis em http://www.tropicos.org (acessado em 26 de agosto de 2014).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 113

1925a) juntamente com diversas outras epífitas e também espécies


provenientes de lugares de clima mais quente (HOEHNE, 1925a).
Levantam-se assim alguns questionamentos a respeito da
escolha das espécies originalmente plantadas na área do Horto
Oswaldo Cruz. Nota-se que uma parte das espécies foi de fato
cultivada devido a seu potencial uso medicinal e/ou por conta de
suas propriedades tóxicas. Entretanto, observa-se também a
presença de plantas utilizadas para alimentação, incluindo alguns
temperos e especiarias, outras usadas na produção e tingimento de
tecidos, e ainda aquelas de importância no paisagismo. De modo
geral, pode-se afirmar que, embora o intuito original fosse
relacionado a aplicações médicas e farmacêuticas, como ressaltado
pela carta da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo
solicitando ao governo do estado o desenvolvimento do projeto de
criação do HOC (HOEHNE, 1925a), o Horto Oswaldo Cruz foi, na
prática, uma área de cultivo das chamadas “plantas úteis”.
Embora careça de uma definição formal na literatura, o termo
pode ser entendido como fazendo referência a plantas de interesse
comercial, o que inclui, sem restringir, todos os usos mencionados –
medicinal, farmacêutico, tóxico, alimentício, de vestuário e
paisagístico. Embora algumas publicações nacionais não considerem
com “plantas úteis” aquelas espécies empregadas no
paisagismo/arborização (MORS; RIZZINI, 1966), publicações mais
abrangentes, como a imponente obra em seis volumes denominada
“Dicionário das Plantas Úteis do Brasil e das Exóticas Cultivadas”
(CORRÊA, 1926 – 1978) incluem, de fato, plantas utilizadas para fins
paisagísticos. Deste modo, ressaltamos o alinhamento entre os
trabalhos de referência contemporâneos e a concepção de Hoehne
em relação à inclusão de espécies com potencial paisagístico dentro
da coleção viva de “plantas úteis” cultivadas na área do Horto
Oswaldo Cruz.
114

4 O LEGADO DO HORTO OSWALDO CRUZ E DE FREDERICO HOEHNE

Hoehne é considerado por diversos autores como um dos


primeiros conservacionistas brasileiros (FRANCO; DRUMMOND,
2005; MOLINA; NORDER, 2014), merecendo este título não apenas
por sua contribuição ao conhecimento da flora, mas principalmente
pela atuação em defesa da manutenção das florestas, por defender o
uso de espécies nativas no paisagismo e por divulgar suas ideias em
meios de comunicação de massa, (FRANCO; DRUMMOND, 2005;
FIORAVANTI, 2011).
No período que passou como jardineiro-chefe no Museu
Nacional, travou amizade com o zoólogo Alípio de Miranda Ribeiro
(1874-1939) que, em 1908, indicou o nome de Hoehne como
botânico para integrar a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas
de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMA), sendo responsável pela
coleta, armazenamento e identificação do material vegetal durante
as expedições (DA SILVA, 2014; MOLINA; NORDER, 2014). Durante
quatro anos Hoehne percorreu o Brasil nas grandes expedições da
Comissão Rondon, coletando material que posteriormente
organizaria nos herbários da Seção de Botânica, e que serviria como
base para a publicação dos quatro volumes de sua obra “História
Natural: Botânica”. Participou ainda de uma parte da expedição
Roosevelt-Rondon (1913-1914) (MOLINA; NORDER, 2014).
Após o encerramento das atividades do Horto Oswaldo Cruz no
ramo da pesquisa Botânica, Hoehne seguiu à frente da Seção de
Botânica quando esta foi anexada ao Museu Paulista (TEIXEIRA, 1988)
e, posteriormente, ao Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal
(HOEHNE, 1940). Esta trajetória culminou com o convite feito a
Hoehne para que implantasse um Jardim Botânico na área do Parque
Estadual das Fontes do Ipiranga, que passou a ser administrado pelo
então criado Departamento de Botânica do Estado (ROCHA;
CAVALHEIRO, 2011).
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 115

Estando à frente dos espaços para cultivo e manutenção de


coleções de plantas e seu estudo, Hoehne contribuiu com a difusão
de conhecimentos de botânica através da promoção de cursos para o
público no Jardim Botânico (FIORAVANTI, 2011). Além do contato
direto com o público através dos cursos ministrados, Hoehne
também difundiu a ciência botânica por meio de diversas publicações
em revistas como Braziléia, Chácaras e Quintais e Revista Nacional.
Publicou ainda artigos em jornais e boletins de agricultura sobre
temas como defesa da natureza, reflorestamento, flora nativa, ensino
de biologia, instituições científicas e orquidáceas (DA SILVA, 2014).
Destaca-se ainda a série de livros infantis “Dramas e Histórias da
Natureza”, com dois volumes; “Aventuras do Casaquinha Verde”
(HOEHNE, 1925b) e “O Jequitibá Rei” (HOEHNE, 1930); além do livro
intitulado “Iconografia das orchidáceas do Brasil” (HOEHNE, 1949),
que apresenta um capítulo no qual o autor convida o leitor a uma
“excursão mental pelo País”. De modo semelhante em cada uma
destas publicações, o autor descreve em detalhes a flora e a fauna
nacionais, mostrando sua preocupação em relação às formas pelas
quais é possível despertar o gosto e o amor pela natureza, concluindo
que a divulgação do conhecimento é a principal forma de atingir este
objetivo, não apenas nas escolas, mas também em museus de
história natural, hortos botânicos e jardins zoológicos (HOEHNE,
1925a; 1925b).
Com a saída de Hoehne e a desvinculação da Seção de
Botânica, a finalidade original do Horto Oswaldo Cruz – cultivo de
espécies vegetais de interesse médico – foi mantida por mais alguns
anos, porém sem grande sucesso (OLIVEIRA et al., 2005). Novos usos
foram posteriormente atribuídos à área, até que uma restauração
promovida em 1992 teve como objetivo abrir o HOC para visitação do
público, transformando-o num local para realização de atividades
voltas à temática de educação ambiental (OLIVEIRA et al., 2005).
Atualmente o HOC funciona como um anexo do Museu Biológico do
116

Instituto Butantan, oferecendo a grupos agendados atividades


educativas sobre educação ambiental e animais peçonhentos. A área
abriga também a sede do Observatório de Aves do Instituto
Butantan, responsável pelo desenvolvimento de pesquisas científicas
relacionadas à fauna e à flora locais e ao monitoramento de longo
prazo.

5 CONCLUSÕES

De acordo com o exposto neste capitulo, conclui-se que


originalmente, o Horto Oswaldo Cruz, mais do que uma área de
cultivo para plantas de interesse medicinal e tóxico, incluía um amplo
espectro de espécies vegetais de interesse econômico – as chamadas
“plantas úteis”. Embora o HOC tenha apresentado influência
europeia em seu traçado, as plantas presentes originalmente na área
eram majoritariamente nativas. Esta observação ressalta a
valorização da flora e da cultura nacional promovida por Frederico C.
Hoehne, que esteve à frente do HOC durante o curto período em que
este exerceu seu objetivo inicial de cultivo de espécies vegetais. O
valor estético do HOC de modo geral, além do valor paisagístico
individual das plantas, também foi algo relevante durante a criação
da área, de modo a propiciar uma sensação agradável ao público
visitante do Instituto Butantan e instigar questões relacionadas à
arborização urbana e à preservação de ambientes naturais.
Atualmente o HOC funciona como um anexo do Museu Biológico do
Instituto Butantan, realizando pesquisa e divulgação científica
conjuntamente, mantendo vivos os ideais de sua criação.

REFERENCIAL

ALMEIDA, E.E.R. Organização espacial do setor metropolitano ocidental de


São Paulo. 1974. 199p. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 117

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.


1974.
ANDRADE, R. A construção da paisagem urbana no Brasil: processos e
práticas da arborização. In: TERRA, G.C. Arborização: ensaios
historiográficos. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2004, p. 73-129.
ANTUNIASSI, M.H.R.; MOURA, M.I.G.L. A “Revista Chácaras e Quintaes” e a
comunicação rural. Cadernos CERU, São Paulo, v. 16, p. 183-192, 2005.
ARRUDA, A.L.A.; SOUZA, D.G.; VIEIRA, C.J.B.; OLIVEIRA, R.F.; PAVAN, F.R.;
FUJIMURA, C.Q.L.;
RESENDE, U.M.; CASTILHO, R.O. 2012. Análise fitoquímica e atividade
antimicobacteriana de extratos metanólicos de Jacaranda cuspidifolia Mart.
(Bignoniaceae). Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.14, n.2, p.276-281, 2012.
BEDIAGA, B. Conciliar o útil ao agradável e fazer ciência: Jardim Botânico do
Rio de Janeiro – 1808 a 1860. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v.14, n.4, p.1131-1157, 2007.
BOSCOLO, O.H.; VALLE, L.S. Plantas de uso medicinal em Quissamã, Rio de
Janeiro, Brasil. Iheringia, Sér. Bot., Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 263-277, 2008.
BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Conselho Nacional do Meio
Ambiente. Resolução Conama 266/2000. Regulamenta a criação de jardins
botânicos, de 03 de agosto de 2000.
CARDIM, R. 2008. Quais são as 10 árvores mais comuns na cidade de São
Paulo? Disponível em https://arvoresdesaopaulo.wordpress.com. Acessado
em 27 set. 2016.
COMPANHIA CITY. História da Companhia City. São Paulo, 1980.
CORRÊA, M.P. Dicionário de plantas úteis do Brasil e das exóticas cultivadas.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1926 -1978.
D’ELBOUX, R.M.M. Joseph-Antoine Bouvard no Brasil: os melhoramentos de
São Paulo e a criação da Companhia City: ações interligadas. 2015. 792 p.
Tese – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
São Paulo. 2015.
DEMATTÊ, M.E.S.P. Princípios de paisagismo. 2 ed. Jaboticabal, SP: Funep,
1999. 101 p.
DOURADO, G.M. Belle Époque dos Jardins. São Paulo: Senac, 2011. 252 p.
118

FIORAVANTI, C. Observador das cidades. Revista FAPESP, Memória. São


Paulo, n. 187, p. 08-09, 2011.
FRANCO, J.L.A.; DRUMMOND, J.A. Frederico Carlos Hoehne: viagem à
Araucarilândia. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, n. 11-12, p. 11-
21, 2002.
FRANCO, J.L.A.; DRUMMOND, J.A. Frederico Carlos Hoehne: a atualidade de
um pioneiro no campo da proteção à natureza no Brasil. Ambiente &
Sociedade, Campinas, vol. 08, n. 1, p. 1-26, 2005.
FRANCO, J.L.A.; DRUMMOND, J.A. Frederico Carlos Hoehne: Viagens e
Orquídeas. História Revista, Goiânia, vol. 12, n. 2, p. 317-351, 2007.
GALLERANI, M.A.C. O ideário iluminista no Passeio Público de Mestre
Valentim. Paisagem Ambiente: ensaios, São Paulo, n. 18, p. 121-134, 2004.
HALLIDAY, S. Death and miasma in Victorian London: an obstinate belief.
British Medical Journal, Londes, vol. 323, p. 1466 – 1471, 2011.
HOEHNE, F.C.; KUHLMANN, M.; HANDRO, O. O Jardim Botânico de São
Paulo. São Paulo: Departamento de Botânica do Estado. Secretaria da
Agricultura e Comércio de São Paulo, 1941, 656p.
HOEHNE, F.C. O Horto Oswaldo Cruz pede aos leitores da Ch. E Qu. plantas
vivas tóxicas ou medicinais. Chácaras e Quintaes, São Paulo, v. 17, n. 6., p.
470-471, 1918.
HOEHNE, F.C. Catálogo do Herbário e das espécies cultivadas no Horto
“Oswaldo Cruz”. São Paulo: Typ. Do Diário Oficial de São Paulo, 1919. 48p.
HOEHNE, F.C. As aventuras do Casaquinha Verde. São Paulo: Livraria
Liberdade, 1925b. Vol. I, p. 99. Série Dramas e Histórias da Natureza.
HOEHNE, F.C. Album da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas
dependências. São Paulo: Imprensa Methodista Editora, 1925a. 200p.
HOEHNE, F.C. O Jequitibá Rei. São Paulo: Livraria Liberdade, 1930. Vol. II, p.
99. Série Dramas e Histórias da Natureza.
HOEHNE, F.C. Plantas e Substâncias Vegetais Tóxicas e Medicinais. São
Paulo: Departamento de Botânica do Estado. Secretaria da Agricultura e
Comércio de São Paulo, 1939. 355 p.
HOEHNE, F.C. Arborização Urbana. Departamento de Botânica do Estado.
Secretaria da Agricultura e Comércio de São Paulo, 1944. 215 p.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 119

JOLY, A.B. Estudo Fitogeográfico dos Campos de Butantan. Boletim da


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São
Paulo, v. 8, 1950.
LIMNIOS, G. Repertório botânico de acompanhamento viário do bairro da
City Butantã - São Paulo/SP. 2006. 111 p. Dissertação (Mestrado em
Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo. 2006.
MACEDO, S.S. O sistema público de espaços livres e o parque urbano
contemporâneo brasileiro. In: PEREIRA, T.S.; DA COSTA, M.L.M.N.; JACKSON,
P.W. Recuperando o verde para as cidades: a experiência dos jardins
botânicos brasileiros. São Paulo: BGCI, 2007, p. 208.
MOLINA, A.A.; NORDER, L.A.C. A contribuição de F. C. Hoehne (1882 – 1959)
para o pensamento agroambiental brasileiro. Revista Brasileira de História
da Ciência. Rio de Janeiro, v. 7, n. 1., p. 70-80. 2014.
MORS, W.B.; RIZZINI, C.T. Useful Plants of Brazil. San Francisco: Holden-Day
Inc, 1966. 166 p.
NEIVA, A. 1918. Discurso na inauguração do Horto Oswaldo Cruz. In:
COARACY, V. O perigo japonês. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1942. p.
141-141.
OLIVEIRA, A.D.; MENDONÇA, R.S.; PUORTO, G. Horto Oswaldo Cruz:
histórico e projetos futuros. Cad. hist. ciênc., São Paulo, v.1 n. 1., p. 82-90,
2005.
PAIVA, P.D.O. Paisagismo I - Histórico, Definições e Caracterizações. 2004.
127 p. Monografia (Especialização) - Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” a
Distância: Plantas Ornamentais e Paisagismo. Universidade Federal de
Lavras, Lavras. 2004.
INSTITUTO BUTANTAN. Seção de Botânica. Horto Oswaldo Cruz. Relatório
anual. São Paulo, 1917. Relatório Datilografado.
INSTITUTO BUTANTAN. Instituto de Medicamentos Officiaes. Relatório
anual. São Paulo, 1922. Relatório Datilografado.
RIBEIRO, G.D. Algumas espécies de plantas reunidas por famílias e suas
propriedades. Porto Velho: Embrapa Rondônia, 2010. 177 p.
ROCHA, Y.T.; CAVALHEIRO, F. Aspectos históricos do Jardim Botânico de São
Paulo. Revista Brasileira de Botânica, São Paulo, v.24, n.4 (suplemento), p.
577-586, 2011.
120

SANJAD, N.R. Nos jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do
Grão Pará, 1796-1873. 2001. 211 p. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP). 2001.
SANJAD, N.R. Os Jardins Botânicos luso-brasileiros. Cienc. Cult., São Paulo,
v.62, n.1, p. 20-22., 2010.
SANTOS NRZ; TEIXEIRA, IF. Arborização de Vias Públicas: Ambiente x
Vegetação. Santa Catarina: Instituto Souza Cruz, 2001. 135 p.
SÃO PAULO. Manual Técnico de Arborização Urbana. São Paulo, 2015.
Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/public
acoes_svma/index.php?p=3789
SEGAWA, H. Ao amor do público: os jardins no Brasil. São Paulo: Studio
Nobel: FAPESP, 1996, p. 256.
SILVA, A.F. Jardins do Recife: uma história do paisagismo no Brasil (1872 –
1937). Recife: Editora Cepe, 2010. 243 p.
SILVA, V.M. Educando homens para educar plantas: orquidofilia e ciência no
Brasil (1937-1949). 2013. 217 p. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte. 2013.
SOUZA, M.P.C. O papel educativo dos jardins botânicos: análise das ações
educativas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 2009. 154 p. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2009.
TEIXEIRA, A.R. Frederico Carlos Hoehne. Arquivos de Botânica do Estado de
S. Paulo, São Paulo, vol. 3, p. 221-222, 1962.
TEIXEIRA, A.R. Resenha histórica do Instituto de Botânica de São Paulo.
Ciência e Cultura, São Paulo, vol. 40, p. 1045-1054, 1988.
TEIXEIRA, L.A.; TEIXEIRA-COSTA, L.; HINGST-ZAHER, E. Vital Brazil: um
pioneiro na prática da ciência cidadã. Cadernos de História da Ciência, São
Paulo, v. 10, n. 1., p. 33 -55, 2015.
VEIGA, R.F.A.; COSTA A.A.; BENATTI JR., R.; MURATA, I.M.; PIRES, E.G.;
ROMA, R.P.C.R. Os jardins botânicos brasileiros. O Agronômico, Campinas, v.
55, n. 1, p. 56-60, 2003.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 121

VIGNOLA Jr., R.A. Arborização de vias públicas e a paisagem urbana: caso da


cidade de São Paulo. Dissertação (Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005.

ANEXO

Apresentamos aqui a lista das espécies originalmente cultivadas na


área do Horto Oswaldo Cruz. Os nomes científicos foram atualizados
levando em conta alterações taxonômicas e sistemáticas. Os nomes
populares apresentados são aqueles que constam na publicação
original, corrigidos apenas em relação às mudanças ortográficas
vigentes.

Quadro 1: Espécies originalmente cultivadas na área do Horto Oswaldo Cruz

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
chenopodium ou
Amaranthaceae Chenopodium ambrosioides
erva-de-santa-maria
chenopodium ou
Amaranthaceae Chenopodium hircinum
erva-de-santa-maria
Amaranthaceae Chenopodium multifidum chenopodium
aroeira-branca ou
Anacardiaceae Lithraea molleoides
aroeira-brava
aroeira-vermelha ou
Anacardiaceae Schinus terebinthifolius
aroeira-pimenta
Anonaceae Rollinia emarginata araticum-mirim
Apiaceae Coriandrum sativum coentro
Apocynaceae Araujia sericifera paina de seda
Apocynaceae Echites peltatus paina de penas
Apocynaceae Laseguea erecta -
Apocynaceae Oxypetalum appendiculatum cipó de leite
Apocynaceae Oxypetalum guilleminianum cipó de leite
Arecaceae Bactris setosa tucum
Arecaceae Cocos weddelliana palmeira de Petrópolis
122

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Arystolochiaceae Aristolochia brasiliensis papo-de-peru
Arystolochiaceae Aristolochia rumicifolia jarrinha
Asteraceae Acanthospermum brasilum carrapicho-rasteiro
Asteraceae Acanthospermum hispidum carrapicho-rasteiro
Asteraceae Baccharis genistelloides carqueja
Asteraceae Calea pinnatifida jasmim do mato
Asteraceae Epaltes brasiliensis planta de santa Lucia
Asteraceae Eupatorium dendroides chilca
Asteraceae Helianthus annuus girassol
Asteraceae Moquinia paniculata cambar branco
Asteraceae Piptocarpha axillaris vassoura-preta
Asteraceae Senecio brasiliensis erva-lanceta
Asteraceae Tagetes minuta cravinho de defunto
Asteraceae Trixis divaricata erva de mulher
ipê-verde ou
Bignoniaceae Cybistax antisyphilitica
caroba de flor verde
ipê do brejo ou
Bignoniaceae Handroanthus umbellatus
ipê-amarelo
Bignoniaceae Jacaranda caroba carobinha do campo
caroba da mata ou
Bignoniaceae Jacaranda semiserrata
jacarandá-branco
Bignoniaceae Stenolobium stans ipê de jardim
Bignoniaceae Tabebuia roseoalba ipê-branco
ipê-tabaco ou
Bignoniaceae Zeyheria tuberculosa
ipê-felpudo
Brassicaceae Brassica nigra mostarda-preta
Brassicaceae Coronopus didymus menstruço
Bromeliaceae Aechmea nudicaulis gravatá do campo
Bromeliaceae Billbegia ensifolia gravatá da flor verde
Bromeliaceae Dyckia coccinea gravatá
Bromeliaceae Tillandsia langsdorfii -
Bromeliaceae Tillandsia pulchella cravina-pão
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 123

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Bromeliaceae Tillandsia usneoides barba de velho
Cardiopteridaceae Villaresia dichotoma congonheira
Celastraceae Maytenus alaternoides espinheira-santa
Celastraceae Maytenus evonymoides carvalho
tapicuru ou
Celastraceae Salacia campestris
bacupari do campo
chá-de-soldado ou
Chloranthaceae Hedyosmum brasiliense
chá-de-bugre
Clethraceae Clethra brasiliensis guaperé
cangalheira ou
Cunoniaceae Belangera tomentosa
guarapere
Curcubitaceae Cayaponia pilosa fruta-de-gentio
Curcubitaceae Wilbrandia hibiscoides quiabo de cipó
Cyatheaceae Alsophila atrovirens Samambaiaçu
Erythroxylaceae Erythroxylum testaceum Fruta-de-tucano
Escalloniaceae Escallonia chlorophylla -
Euphorbiaceae Croton floribundus capixingui
Euphorbiaceae Hura crepitans assacú
Euphorbiaceae Joannesia princeps andauassú
Euphorbiaceae Ricinus communis mamona
Euphorbiaceae Sapium biglandulosum leiteira
Fabaceae Abrus precatorius ervilha do rosário
Fabaceae Andira anthelminthica Angelim amargoso
Fabaceae Canavalia ensiformis feijão de porco
Fabaceae Canavalia gladiata feijão-bravo
Fabaceae Canavalia picta -
Fabaceae Cassia bicapsularis canudo-de-pito
Fabaceae Cassia hoffmannseggii folha de padre
Fabaceae Cassia multijuga canafístula
Fabaceae Cassia occidentalis fedegoso
Fabaceae Cassia speciosa pau-fava ou fedegoso
Fabaceae Cassia splendida fedegoso
124

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Fabaceae Erythrina falcata suinã ou mulungu
Fabaceae Erythrina reticulata mulungu
Fabaceae Indigofera anil indigofera ou anileira
ingá-ferradura ou
Fabaceae Inga sessilis
ingazeiro
Fabaceae Piptadenia colubrina angico-branco
Fabaceae Piptadenia communis pau-jacaré
Fabaceae Rhynchosia phaseoloides favinha-brava
Fabaceae Schizolobium excelsum guapuruvú
Fabaceae Tipuana tipu tipuana
Gesneraceae Condonanthe devosiana -
Gesneraceae Hypocyrta macrocalyx -
Lamiaceae Mentha piperita hortelã-pimenta
Lamiaceae Mentha pulegium poejo
Lentibulariaceae Utricularia lundii -
Lentibulariaceae Utricularia reniformis -
Linaceae Linum usitatissimum linho
Lythraceae Diplusodon virgatus -
Lythraceae Lafoensia pacari dedaleira-amarela
Malpighiaceae Banisteria parviflora -
Malvaceae Bombax endecaphyllum imbirussú
Malvaceae Bombax insigne castanha-do-maranhão
Malvaceae Luehea divaricata açoita-cavalo
malva-crespa ou
Malvaceae Malva parviflora
malvavisco
Malvaceae Malva sylvestris malva de caspa
Marantaceae Calathea lindbergii caeté
Martyniaceae Proboscidea lutea cornos-do-diabo
Melastomataceae Miconia candolleana vassourinha
cinamomo ou
Meliaceae Melia azedarach
santa-Bárbara
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 125

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Moraceae Ficus pohliana figueira-branca
três-marias ou
Nyctaginaceae Bougainvillea spectabilis
primavera
Orchidaceae Barbosella crassifolia orquídea
Orchidaceae Bifrenaria harrisoniae orquídea
Orchidaceae Campylocentrum micranthum orquídea
Orchidaceae Catasetum atratum orquídea
Orchidaceae Catasetum cernuum orquídea
Orchidaceae Cattleya forbesii orquídea
Orchidaceae Cattleya loddigesii orquídea
Orchidaceae Colax jugosus orquídea
Orchidaceae Dichaea pendula orquídea
Orchidaceae Epidendrum elongatum orquídea
Orchidaceae Epidendrum inversum orquídea
Orchidaceae Epidendrum paulense orquídea
Orchidaceae Epidendrum variegatum orquídea
Orchidaceae Gomesa polymorpha orquídea
Orchidaceae Grobya amherstiae orquídea
Orchidaceae Isabelia virginalis orquídea
Orchidaceae Oncidium crispum orquídea
Orchidaceae Oncidium flexuosum orquídea
Orchidaceae Oncidium longipes orquídea
Orchidaceae Oncidium pumilum orquídea
Orchidaceae Oncidium uliginosum orquídea
Orchidaceae Pleorothallis leptotifolia orquídea
Orchidaceae Pleorothallis sonderiana orquídea
Orchidaceae Rodriguezia decora orquídea
Orchidaceae Scuticaria hadwenii orquídea
Orchidaceae Zygopetalum mackaii orquídea
Orchidaceae Zygopetalum sellowii orquídea
126

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Papaveraceae Papaver somniferum papoula
Phytolaccaceae Phytolacca thyrsiflora erva-dos-cachos
Poaceae Triticum sativum trigo
Primulaceae Rapanea umbellata prímula
Proteaceae Grevillea robusta grevilha
Pteridaceae Adiantum cuneatum avenca-miúda
Pteridaceae Adiantum subcordatum avenca-grande
Pteridaceae Adiantum trapeziforme avenca-paulista
Pteridaceae Blechnum brasiliense aamambaia
Pteridaceae Lindsaya botrichioides avenca
Pteridaceae Polypodium crassifolium feto
Pteridaceae Polypodium lepidopteris feto
Pteridaceae Polypodium repens feto
Ranunculaceae Anemone sellowii ranunculus
Rhamnaceae Rhamnus polymorpha canjica
Rubiaceae Cinchona officinalis quina-vermelha
Rubiaceae Posoqueria latifolia laranja de macaco
Rubiaceae Richardsonia brasiliensis poaia-branca
Rubiaceae Tocoyena formosa guamurú
Rutaceae Esenbeckia grandiflora guaxupita
Rutaceae Metrodorea nigra chupa-ferro
Rutaceae Pilocarpus pennatifolius jaborandi-graúdo
Salicaceae Casearia sylvestris guaçatonga
Sapindaceae Alophyllus edulis chal-chal
Solanaceae Atropa belladonna beladona
Solanaceae Cestrum corymbosum coerana-amarela
Solanaceae Datura stramonium figueirinha do inferno
Solanaceae Nicotiana tabacum fumo ou tabaco
Solanaceae Solanum auriculatum fumo-bravo
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 127

Espécie
Família
Nome científico Nome popular
Solanaceae Solanum gilo jiló
Solanaceae Solanum juciri juqueri
Violaceae Viola gracillima violeta branca do campo
Vochysiaceae Qualea grandiflora pau-terra
Winteraceae Drimys winteri casca-d'anta
Fonte: Hoehne, 1919
128
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 129

Capítulo 6

ÁRVORES E ESPAÇOS PÚBLICOS: SOBRE A ENTRADA DO


'VERDE' NA CIDADE DE SÃO PAULO

Eliane Guaraldo29

1 INTRODUÇÃO

Em boa parte de seu período de maior expressão econômica, a


história da cidade de São Paulo pode ser contada pelos seus espaços
abertos e públicos. A apropriação da terra, a sua conversão em
mercadoria e a sua transformação em espaço digno de abrigo e
residência de grupos sociais com hábitos refinados é uma das faces
do processo de modernização e dignificação do espaço urbano,
tarefa iniciada e levada a cabo em pouco menos de 50 anos, desde
que a cidade alcançou o posto de principal centro financeiro e
comercial da economia brasileira baseada na agroexportação do café.
A completa transformação de seu espaço antes dominado por
feições rurais e acanhado conjunto urbano em uma réplica
intencional- porque moldada nos mesmos padrões estéticos- das
grandes capitais europeias do terceiro quartel do século XIX, implicou
em radical mudança de uso de seu solo, início de um extenso
programa de investimentos, na montagem de um sistema de
financiamento público e na constituição de um meio profissional
vigoroso e capaz de assimilar a demanda por obras frequentes,

29
Arquiteta e urbanista, Dr. em Estruturas Ambientais Urbanas FAUUSP, Prof. Adjunto IV da
Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia, UFMS. email:
eliane.guaraldo@ufms.br
130

sobrepostas e substituídas umas às outras em curtos espaços de


tempo.
O foco deste capítulo remete ao âmbito e recorte do período
situado entre fins do décimo nono e três primeiras décadas do
vigésimo século. Na estrutura político-administrativa do estado
corresponde aos governos respondentes à alternância entre
lideranças paulistas e mineiras da Primeira República (a chamada
política do “café com leite”); na estrutura político-administrativa da
cidade, às intendências e prefeituras.
Este estudo se debruça sobre as linguagens utilizadas para
expressar a paisagem almejada para a cidade de São Paulo, em seu
intuito de protagonismo econômico para o país e em outra escala, de
não menos destaque, seu protagonismo arquitetônico urbanístico
para o seu estado mais rico: São Paulo. Na busca de identificar qual
ou quais linguagens foram usadas nos espaços livres e que motivos
conduziram à sua escolha, emerge outro aspecto: o do repertório.
O repertório se mostrou capaz de explicar a lógica dos
discursos que permearam as principais decisões de desenho a ponto
de, até mesmo relegar a segundo plano, no processo de criação e de
projeto dos espaços abertos públicos, aquilo que poderia ser
nomeado como a linguagem desse desenho.
Tomando emprestado da terminologia linguística, entendemos
como linguagem os códigos estéticos utilizados para o desenho do
espaço; a ordem de valores (estéticos) subjacentes às combinações e
arranjos de elementos, redefinindo a sua função pela posição que
assumem no conjunto espacial, ou seja, uma sintaxe projetual.
Repertório, por sua vez, remete aos elementos utilizados no
projeto, em seu significado intrínseco e em seus atributos de
elemento. Escolhas de desenho centradas em repertório não
descartam questões de linguagem: carregam implícitos, valores e
códigos culturais, porém a importância do elemento é maior que a
importância do conjunto ou arranjo (sintaxe). Entendemos que esta
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 131

discussão será central na passagem da arquitetura e do urbanismo


para o pensamento do moderno, e o período em estudo contribuiu
para encorpar esta tensão, mas no âmbito de nosso trabalho está
situada já nas bordas de seu recorte temporal.
Estamos tratando o repertório como um elemento por si só
qualificador do espaço urbano e definindo-o com referência,
sobretudo ao elemento vegetal, que caracteriza com primazia a
configuração dos espaços abertos neste momento. A arborização e o
ajardinamento foram, entre as práticas dos poderes públicos
municipais do período, as que receberam maior atenção e
investimento. O jardim representa higiene e civilização; assim,
ajardinar e arborizar assume um sentido de requalificar espaços e
dotá-los de significado, dentro de uma noção de “cidade salubre” e
de paisagem urbana como obra de arte.

2 RUA E PRAÇA COMO JARDIM

Entre as intensas transformações motivadas pelo


enriquecimento econômico de São Paulo gerado pelo café e depois
pela indústria, a cidade se coloca como principal beneficiária dessa
pujança e seu espaço físico se torna objeto de programas de
modernização. Dotar a cidade de confortos, sanear e ordenar seus
espaços passa a ser uma preocupação constante do poder público
municipal. Conjugar essas ações ao crescimento explosivo da cidade
no período torna-se um desafio sempre presente no âmbito das
discussões que permearam a chegada e a circulação de um
pensamento urbanístico em São Paulo.
Enquanto o governo estadual dotava a cidade de programas de
saneamento e de infraestrutura e novos edifícios públicos, o
município, num ímpeto de proporções muito semelhantes, voltou-se
claramente à rua e ao jardim. E assim como se propôs a retificar e a
alinhar, preparar ruas para os trilhos dos bondes, iluminar e calçar,
132

também se dedicou ao “aformoseamento” e “embelezamento” dos


espaços abertos públicos, considerados como equipamentos
sanitários da cidade.
Este estudo sobre o repertório vegetal foi conduzido pela
observação e pelo mapeamento dos serviços de arborização e
ajardinamento dos logradouros públicos que receberam tratamento
com plantas. O estudo conduziu à divisão do recorte temporal em
quatro fases claramente identificadas: o período das Intendências, o
período 1899 a 1911, o período 1912 a 1918 e o período 1919 a
1927.
No primeiro, são flagrados os primeiros serviços de arborização
coincidindo com a atuação profícua de João Theodoro, quando os
lucros do café começam a ser revertidos e aplicados na cidade:
saneamento de várzeas, abertura de comunicações entre ruas,
retificações, e no “aformoseamento” da cidade. Também as
comunicações com o Rio de Janeiro permitiram a chegada de plantas
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as novidades das mais
recentes pesquisas da Horticultura no mundo. As arborizações eram
pontuais e ficavam sob-responsabilidade de particulares, sob
concessão da presidência da província. Havia as novidades trazidas
via Rio de Janeiro por horticultores bem relacionados com as
sociedades botânicas e hortícolas inglesas e francesas, como
Frederico de Albuquerque, que foi um propagador de grande
variedade de flores e folhagens que São Paulo nunca tinha visto
antes, e que agora povoavam os jardins das residências mais
abastadas.
Proclamada a República, foi criada a Inspetoria Geral dos
Jardins da capital, que no início contratou particulares para executar
os serviços de arborização na cidade.
As palavras que poderiam melhor indicar esse período são:
sanear, alinhar e embelezar. A arborização é uma forma de
regularizar e delinear o espaço aberto, a separação entre calçada e
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 133

rua, com a figura do engenheiro, representando a racionalidade


técnica comandando a obra de modernização da cidade.
O repertório vegetal é predominantemente de espécies
exóticas. As espécies mais utilizadas eram: magnólia, plátano,
grevília, eucalipto, andassu, cedro nacional e ‘pinhão’ (Araucária
brasiliensis).
Empossado em 1899, o primeiro prefeito da capital, Antonio
Prado, criou a Diretoria de Obras Públicas, chefiada pelo engenheiro
Victor da Silva Freire, e a Administração dos Jardins pelo agrônomo
austríaco Andrea Etzel.
A Administração dos Jardins foi criada para responder à
arborização e ao ajardinamento no mesmo ritmo da implantação das
infraestruturas urbanas. A evolução do serviço de bonde, de
iluminação, de água e de esgoto caminharam pari passu com a
arborização urbana. Havia viveiros de cultivo para estudo junto da
Escola Politécnica, que funcionava onde hoje se encontra a Casa da
Memória (Departamento do Patrimônio Histórico do Município-
DPH), e também no Jardim da Luz e no bairro da Água Branca. (Fig.
01)
Com essa estrutura a municipalidade deu suporte ao
ajardinamento e à arborização pública da cidade até 1928, quando
foi criado o viveiro Manequinho Lopes, no Ibirapuera. Atendia aos
logradouros públicos e ainda doava a particulares, hospitais,
mosteiros, clubes, fábricas e também outras cidades.
As primeiras providências foram equipar o antigo Jardim da Luz
e transformá-lo num lugar elegante de uso pelas elites paulistanas. O
número de espécies, de 06 cresceu para 36, entre as mais constantes.
90% delas era constituído de plantas exóticas: Araucária excelsa,
ciprestes, tuias, pinus, palmeira fênix, tamareira das canárias,
palmeira latânia, areca bambu e pândano. E entre as arbustivas,
estavam hibiscos, agaves e dracenas.
134

É interessante notar, desta palheta, a ocorrência frequente de


variedades de coníferas e de palmeiras, que agrupadas nos espaços,
atendiam à opção pela estética do pitoresco. Os modelos eram
claramente a Paris reformulada por Haussmann e seu sistema de
espaços livres, difundidos amplamente pela obra “Les Promenades
de Paris” e seguidos por Etzel em São Paulo e Carlos Thays em
Buenos Aires. É muito grande a semelhança da Praça Buenos Aires,
criada em São Paulo em 1911, no bairro aristocrático de Higienópolis,
por Etzel, com as “Barrancas de Belgrano”, em Buenos Aires, de
1892, por Thays.
Os anos de 1912 a 1918 foram para São Paulo períodos de
imensa transformação, com a execução de um plano ambicioso de
reformulação, sobretudo das áreas centrais, visando desafogar as
suas antigas e estreitas ruas para dar espaço aos veículos e sanear as
várzeas que eram obstáculo à expansão urbana, com isso criando um
sistema de áreas ajardinadas. A presença do arquiteto Antoine
Bouvard, de passagem para Buenos Aires, contribuiu para a formação
de um clima propício a discussões e debates sobre os
“Melhoramentos de São Paulo” e colocou em circulação os primeiros
pensamentos urbanísticos.
Muito se realizou, entre abertura e alargamento de ruas,
construção de pontes, edifícios públicos, criação de praças e de
espaços ajardinados. A cidade ganhou o Teatro Municipal, o inicio da
catedral da Sé, os viadutos S. Efigênia e Boa Vista, a Avenida São
João, a nova Rua Líbero Badaró, a igreja de S. Bento. E também o
Vale do Anhangabaú, o saneamento da várzea do Carmo, a Praça
Buenos Aires, o Trianon e o Parque do Anhangabaú. A arte urbana
começou a ocupar os espaços urbanos pela atuação de numerosos
artistas escultores.
Foi um momento de muitas obras e muitas ideias. Pode-se
dizer sem risco de exagero, que foi o início da formação de um meio
profissional amadurecido, pela chegada de muitas e variadas ideias
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 135

sobre ambiente urbano, sobre urbanismo e sobre paisagem, cuja


discussão saía dos meios profissionais e também envolvia alguns
círculos sociais. O intercâmbio se arrefeceria quando do advento da
Primeira Guerra Mundial.
O repertório vegetal do período ganhou a palmeira imperial,
(Roystonea oleracea) vinda do Rio de Janeiro, e sua aparição nos
espaços públicos coincide com a finalização do teatro Municipal e
com a integração dele ao vale do Anhangabaú, já ajardinado
(VACHEROT, 1908, 1925). Palmeira imperial e teatro foi uma
associação que se repetiu, além do Teatro Municipal, no Teatro
Público do Lago da Concórdia, no bairro do Brás.
Outras espécies que compõem o repertório do período
parecem estar associadas ao relativo isolamento provocado pela
Primeira Guerra, o advento do pan-americanismo e também a
influência da Argentina. O jacarandá mimoso e a tipuana são
contribuições desse período. O primeiro, natural do sul do país e
norte da Argentina e o segundo oriundo da Argentina.
A tipú (Tipuana tipu), tornada urbana, é um resultado das
pesquisas da flora sul-americana de Charles Thays na Argentina, que
a aclimatou das regiões frias de Salta, Tucuman e Jujuy e a espalhou
pelas ruas e avenidas de Buenos Aires, como uma marca do
urbanismo portenho. De fato esta espécie foi a única contribuição de
repertório não originada das pesquisas do governo paulista. Já
quanto ao jacarandá mimoso, não há documentos que atestem a
autoria de sua introdução, mas o fato é que o encontramos na
avenida S. Luís, habitada pela família Souza Queiroz, e nos novos
bairros da City, empresa de capital inglês que trouxe o conceito de
subúrbio jardim para a cidade de São Paulo. Há uma associação entre
a espécie e a introdução da estética neocolonial, que na arquitetura
edificada terá maior expressão a partir da década de 20.
O período seguinte, 1919 a 1927, testemunhou uma
transformação nos repertórios paulistanos; o evento que marcou o
136

período foram as comemorações do Quarto Centenário da


Independência. Além disso, foi reformulado o Parque Trianon e foi
também executado o ajardinamento do Parque d. Pedro II. O
acompanhamento da trajetória de ambos, somado ao mapeamento
da produção e da aplicação de elementos vegetais pela
Administração dos Parques, Jardins e Cemitérios, dá indícios claros de
uma verdadeira mudança de atitude em relação aos repertórios nos
espaços urbanos na cidade de São Paulo. (Fig. 2)
O que hoje o paulistano conhece como “Parque do Trianon”
era chamado originalmente de Parque Villon e foi reservado desde a
abertura do loteamento do sítio do Caaguassu, que criou a Avenida
Paulista, inaugurada em 1891. Um ano mais tarde foi aberto com um
pavilhão restaurante e uma residência para Paul Villon, o paisagista
francês discípulo e continuador da obra de Glaziou no Rio, que atuou
na gestão do prefeito Pereira Passos. A estada de Paul Villon em São
Paulo foi anterior à ida em definitivo para o Rio, e tem-se noticia por
relatos escritos, de que o local possuía um pavilhão e muitos jardins
adornados de flores.
Em 1911, após recomendação de Bouvard, ele foi adquirido
pela municipalidade, da família do conde Francisco Matarazzo para
compor o “sistema de passeios interiores” da capital (termo
encontrado no relatório de Bouvard). Foi então contratado para o
projeto o arquiteto paisagista Barry Parker, arquiteto da Companhia
City of Improvements e autor das primeiras cidades jardins
europeias, entre elas Lechtworth, próxima de Londres.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 137

Figura 01 - Evolução dos serviços de arborização pública em três períodos:


1893-1907, 1908-1915 e 1916-1925

Fonte: GUARALDO, 1996

O projeto de Parker contrastava com uma proposta anterior


feita pelo escritório do arquiteto campineiro Ramos de Azevedo, de
construir uma casa de espetáculos no centro do extenso terreno e
converter o espaço em um bem ornamentado jardim à moda
europeia. Ao invés disso, Parker propôs uma intervenção que se
resumia ao clareamento de uma faixa de mata para reforçar as linhas
de visada e uma colunata paralela à avenida para integrar o bosque
ao belvedere. Não se tratava de postura pouco ousada, mas de uma
opção consciente pela “floresta primittiva em sua glória natural”, nas
palavras do próprio Parker. O conjunto “Bosques da Paulista” e
“Trianon” foi concluído em 1919 e aparece citado no Livro de Ouro
do Estado de São Paulo como “um dos passeios favoritos dos
paulistas”. (Fig. 03)
Neste projeto merece destaque o emprego de 44 espécies
diferentes de plantas, metade das quais de origem brasileira. E
destas pelo menos metade original das matas do estado de São
Paulo. Uma porcentagem inédita em São Paulo. No mesmo ano, uma
reforma da arborização da Avenida Paulista a dotou de 373
exemplares de ipês. Sem dúvida o que se pretendia era criar uma
nova identidade para São Paulo, baseada no repertório nativo e
paulista.
138

Com os festejos do Quarto Centenário, novo surto de obras


agitou a cidade de São Paulo; o Largo da Memória (no local da antiga
Pirâmide do Piques, conservada e emoldurada por jardim e escadaria
artística pelo arquiteto Victor Dubugras), a praça Verdi, no vale do
Anhangabaú, o largo de S. Paulo, a praça Marechal Deodoro, o largo
da Água Branca, o entorno do monumento a Carlos Gomes, no jardim
do Teatro Municipal e finalmente o Parque d. Pedro II com a avenida
d. Pedro I fazendo a sua ligação com o Museu Paulista.(Fig.03)
O número de obras foi expressivo até 1922, mas depois disso
veio perdendo ritmo até o final do período. Na mesma proporção em
que as obras públicas decresciam, aumentava o serviço de
fornecimento a particulares, entre os quais os clubes. Assim pode-se
inferir que havia homogeneidade de repertórios entre os âmbitos
público e privado.
Das 99 espécies vegetais identificadas no período, apenas 15 já
estavam presentes desde a fase anterior. Todo o restante foi
contribuição do período.
Sobre a participação por procedência, passou-se de 11% de
espécies nacionais do inicio do século, para 45%.
Das 44 espécies brasileiras utilizadas em logradouros públicos
entre 1919 e 1927, apenas 04 delas vieram do período anterior; o
restante foi uma contribuição específica do último período deste
estudo.
Entre elas destacaram-se, nas ruas, pela frequência: o alecrim
de campinas (Holocalix glasiovii), o jacarandá mimoso (Jacaranda
mimosofoliae introduzida no período anterior), a quaresmeira
(Tibouchina sp). O período assistiu a uma verdadeira mudança de
valores, no sentido de trocar o exótico pelo nativo, o jardim pela
mata e a planta paulista sobre todas asdemais procedências. No
Parque Dom Pedro II, nos relatórios das obras de plantio,
constatamos palmeirinhas de Petrópolis e jerivás sobrepujando as
exóticas latânias e palmeiras rabo-de-peixe; biris, cristas-de-galo,
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 139

sálvias, samambaias, ganhando de rosas e buxinhos. Nas ruas, o


plátano foi banido de cena e a quaresmeira tomou seu lugar.

Figura 02 - Projeto definitivo de Barry Parker 1918, para o Parque Trianon

Fonte: SÃO PAULO (CIDADE), 1919

Mais tarde, quando da abertura do Jardim Botânico de São


Paulo no Parque do Estado, junto às nascentes do córrego Ipiranga e
da formação do parque Ibirapuera em comemoração ao 4.o
centenário da cidade de São Paulo, além da abertura do Parque
Estadual do Jaraguá, essas mudanças estavam plenamente
incorporadas e assumidas como postura no trato do chão público da
cidade de São Paulo. Uma mudança no modo de olhar nossa
paisagem urbana conduzida pelo repertório.

3 PITORESCO E ESTÉTICA NATURALISTA

O jardim beneficiou-se da estética iluminista do pitoresco com


significações precisas à medida que esta deu novo sentido à noção de
140

“natureza”, relacionando- a com a natureza humana. Para o homem


do século dezesseis e dezessete, a palavra “natureza” remete ao
firmamento, mas para o do século dezenove, a ideia que lhe vem à
mente é a de “paisagem” (HOLANDA, 1996).

Figura 03 - Parque d. Pedro, projeto original de F Cochet. O traçado e o


programa funcional foram apenas parcialmente implantados

Fonte: SIURB, PMSP

O pitoresco expressa-se imediatamente na jardinagem, uma


arte que opera diretamente sobre a natureza enquanto a vê numa
relação de simpatia, como ambiente propício para o
desenvolvimento do sentido social do homem - em oposição ao
conceito do sublime, para o qual se insinua certo sentido de solidão,
de pequenez do indivíduo diante das forças da natureza.
Tendo nascido a partir do gosto dos pintores, o jardim
pitoresco, mais tarde chamado de “jardim paisagista” é aquele que se
pode comparar aos padrões de paisagem das telas de Salvator Rosa,
Nicolas Poussin e Claude Lorrain, e isso significa que está
estreitamente relacionado com a arte da pintura e com os seus
padrões. O jardim é criado para reproduzir as cenas, não as da
natureza, mas as da pintura, e isso pressupõem tanto profissionais
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 141

conhecedores desses padrões, como também usuários treinados para


reconhecê-las como paisagem. Na base da formação do padrão
estético do pitoresco está um amplo repertório natural observado
pelos viajantes naturalistas que desvendaram paisagens
desconhecidas, exóticas aos olhos dos europeus e que também
deram suporte à tarefa de delimitar territórios, firmar unidades
territoriais e formar a identidade europeia.
A “art of landscape” (arte da paisagem) é a versão de
paisagismo como ficou conhecida pela tradição inglesa, de gosto pela
terra inculta e pela ideia do “improvement”, palavra que se traduz
como “melhoramento”, (HUNT, 1992). É sintomático que este
vocábulo tenha estado muito presente em todo século XIX para
designar reformas e intervenções urbanas nas capitais da Europa,
tanto quanto brasileiras até pelo menos a metade do século seguinte.
Um exemplo brasileiro na cidade de São Paulo é o próprio nome da
companhia urbanizadora que trouxe o conceito de subúrbio jardim
para São Paulo: a Companhia City of Improvements. A cidade e seus
espaços são claramente tratados como expressões visuais da
paisagem.
Mesclada à tradição do jardim pitoresco, há a tradição oriental
que chegou via jesuítas e missionários em suas repetidas viagens à
China, que agrega à informalidade e espontaneidade dos
agenciamentos ingleses um sentido cosmogônico, uma noção de
ordem transcendental e um olhar visionário, de encantamento e de
novidade. Este universalismo está expresso claramente nos termos
que encontramos nos tratados europeus de composição de jardins
do século XIX: jardins de “todos os tempos e todos os lugares”,
“microcosmo”, “universo em miniatura”. O jardim assim passa a se
colocar como um imenso registro, um verdadeiro inventário da
cultura e do conhecimento humano.
A vegetação é empregada no jardim de acordo com os padrões
da pintura: por massas, criando manchas mais claras ou mais escuras,
142

pelas nuances, pela oposição entre luz e sombra e pela variação


cromática, em oposição ao rigorismo geométrico e à perspectiva
clássica.
Tanto para a pintura quanto para a jardinagem, que se
influenciam mutuamente, o verdadeiro sentido está no caráter
investigativo da natureza: o objetivo é descobrir a essência sob a
aparência. A observação conduz à descoberta do tipo. Segundo as
palavras de Argan, evidentemente, na natureza jamais
encontraremos uma árvore idêntica ao seu tipo, mas isso depende
das circunstancias ocasionais que a impediram de realizá-lo. O
verdadeiro tipo da faia ou do choupo não se encontra na natureza
livre, mas no jardim. A jardinagem, enfim, nada mais é do que a arte
de colocar cada planta em condições de realizar seu próprio tipo ou
arquétipo (ARGAN, 1992).
Os parques e jardins públicos foram influenciados pela ideia
de coleção ou espaço de demonstração de plantas, função precípua
dos jardins botânicos, fundindo o conceito de entretenimento ao de
conhecimento que emana da observação direta, dentro de uma
noção ao mesmo tempo celebrativa e instrutiva de que “a natureza
educa”.
Ao mesmo tempo, merece destaque, no continente americano,
e no contexto de uma urbanização acelerada que se verifica desde o
décimo oitavo até o vigésimo século, a atribuição dada ao espaço
ajardinado dos parques urbanos como “oportunidade fascinante em
termos de educação e desenvolvimento, não se considerando haver
método mais adequado para se melhorar a saúde tanto física quanto
moral das classes trabalhadoras” (PONTE, 1991).

4 A NATUREZA MUSEALIZADA NAS COLEÇÕES

A ação da e na paisagem, através da arte dos jardins colocou-


se muito fortemente, na América, a serviço de certo espírito
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 143

civilizador; não por acaso, foi na América, mais precisamente nos


Estados Unidos, que em 1900 se falou pela primeira vez em
“Arquitetura da Paisagem”, como profissão, numa visão da paisagem
como suporte do espaço do homem, inevitavelmente urbano, e ao
mesmo tempo como herança a se proteger e preservar.
Os museus são os espaços institucionais especialmente
concebidos para a tarefa de mobilizar o mundo, classificar e ordenar
(SCHAER, 1993). Diante da ampliação de seus limites com a expansão
das colônias, eles atuaram como formadores de referências culturais
e participaram da formação da identidade europeia (LAISSUS, 1996).
Com a sua expansão por todos os continentes no século dezenove,
realizou-se um intenso intercâmbio de informação que endossou a
ideia de que o grau de civilização de um país ou província seria
medido pela presença de museus públicos.
Uma particularidade do caso brasileiro foi o fato de que foram
os museus de história natural do século dezenove que deram origem
à tarefa de musealizar e institucionalizar a história oficial do país nas
primeiras décadas do século vinte.
O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, criado com a vinda da
família Real, mantinha em sua coleção objetos que refletiam o
mundo europeu civilizado, diferente do que os naturalistas europeus
esperavam encontrar aqui, e só quando Ladislau Neto assumiu a
diretoria, no período que se chamou de “idade de ouro” da
instituição, entre 1866 e 1893, foi que recebeu vultosas contribuições
do repertório local: madeiras, resinas, gomas, óleos, frutos e
sementes, e entre elas, coleções do botânico João Barbosa
Rodrigues, vindas da Amazônia, as do herbário de Auguste Glaziou, as
de Kuhlmann e as de Frederico Hoehne vindas de Mato Grosso e
Amazonas, às quais se seguiram, mais tarde, novas doações pelas
instituições paulistas.
O Jardim Botânico do Rio de Janeiro espelhou este mesmo
perfil, e mesmo quando em 1890 recebeu grande contribuição da
144

flora nativa brasileira, sob a direção de Barbosa Rodrigues, a


participação do repertório exótico ainda era muito expressiva e
reforçada por constantes permutas com o Jardim Botânico de Kew,
na Inglaterra.
Os espaços públicos ajardinados do Rio de Janeiro desse
período, cuja extensão e qualidade se devem à atuação de Auguste
Glaziou, são recheados de exemplos de repertórios nativos e
exóticos, pois o “jardineiro do imperador Pedro II”, ao mesmo tempo
em que trazia espécies de suas viagens pelo interior do Brasil,
aclimatava e empregava também as europeias.
O Museu Nacional foi desde a sua criação um museu
metropolitano de caráter enciclopédico e universal, moldado nos
padrões do Museu de História Natural de Paris. E assim, de certa
forma, o Jardim Botânico do Rio e, em maior ou menor grau, seus
espaços públicos ajardinados, refletiam esta concepção enciclopédica
e universal. Algo diferente ocorreu em São Paulo, com o Museu
Paulista, e com outros surgidos após a proclamação da República: os
museus passam a ser criados no âmbito dos estados e com
orientação voltada às ciências naturais.
A origem da coleção do Museu Paulista foi uma coleção
particular, o “gabinete de curiosidades” do Major Sertório, que era
aberto à visitação pública e ao qual veio a se juntar o acervo de outro
colecionador conhecido como Pessanha; a coleção foi comprada por
Francisco de Paula Mayrink e oferecida ao governo Estado em 1890 e
funcionava em um edifício no Largo Municipal (hoje Praça João
Mendes), dois anos mais tarde foi para uma casa no largo do Palácio
(hoje Pátio do Colégio) e dali para a sede da Comissão Geográfica e
Geológica, na chácara de d. Veridiana Prado, na Rua da Consolação.
Um ano mais tarde já estava no local que ocupa até hoje, no Ipiranga.
O edifício, projetado pelo arquiteto Tomaso Gaudenzio Bezzi, que
fora originalmente concebido para abrigar uma escola, recebeu as
coleções do Museu Paulista, em 1905, um jardim frontal suntuoso
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 145

projetado pelo arquiteto paisagista Arsène Puttemans e um horto


botânico nos fundos. Herbário e jardim botânico viriam somente
mais tarde.
É importante destacar que estavam entre as finalidades do
horto, que se desejava um embrião de um futuro jardim botânico, e
que nunca chegou a ser concretizado no local:

1.o expor typos seleccionados da flora de S. Paulo; 2.o formar um


ponto para pesquisas scientificas; 3.o cultivar as plantas indígenas
úteis e deccorativas; 4.o criar um meio esthetico e alegre, em que o
estudo se tornasse atrahente e agradável e não insípido e enfadonho.
(IHERING, 1925 apud LOPES, 1997).

A Comissão Geográfica e Geológica foi protagonista de um


imenso trabalho de inventariar a flora paulista. De 1886 a 1905, 16
boletins foram publicados, com parte expressiva dedicada
exclusivamente à seção botânica. Ensaios e relatórios técnicos
inéditos, oriundos das várias excursões, entre os quais destacamos,
pela curiosidade, o “Ensayo para uma synonimia dos nomes das
plantas indígenas do Estado de São Paulo”, publicada em 1895, no
boletim no 10, ou o “Ensaio para uma distribuição dos Vegetaes nos
diversos grupos florísticos do Estado de São Paulo”, no Boletim no 11,
publicado em 1898 e esgotado no mesmo ano.
Utilizando como ponto de partida as sete províncias botânicas
do bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius, em sua “Flora
Brasiliensis”, que só haveria de ser publicada em 1906, Löfgren
propõe uma classificação florística paulista mais abrangente e
adaptada aos nomes locais. Assim, às dryades (serras e regiões
cobertas de matas virgens das faixas litorâneas) associou matas
virgens, capoeirão, roçada, capoeira, cultivado, carrascal e campo
sujo. Às oréades (regiões montano-campestres intertropicais)
associou a catanduva, cerradão ou caapão, cerrado nhundu, caatinga
ou campo cerrado e o campo limpo.
146

Figura 04 - Demonstração da flora paulista por Loefgren, adaptada do estudo sobre as


províncias botânicas de Martius

Fonte: SÃO PAULO (ESTADO), 1898

Mas o que merece destaque é a intenção declarada por


Loefgren, desde o início, de

[...] obter um pedaço de terreno onde pudéssemos começar não só


algumas experiências puramente scientificas sobre a phisiologia
vegetal, como mais talvez para testar algumas transplantações de
vegetaes neste gênero. Desejávamos provar que as mattas e campos
paulistas abrigam plantas ornamentaes tão ricas e tão bellas que
grande parte das introduzidas ficcarão por elas destronadas.
(LÖFGREN, 1899).

Foi assim que se iniciou um extenso programa de pesquisa de


espécies arbóreas que aos poucos substituiu as exóticas tão
amplamente empregadas antes.
O Horto Botânico foi inaugurado em 1897 na Cantareira,
levando consigo as coleções, as pesquisas e os ideais da Comissão
Geográfica e Geológica, até pelo menos 1917, quando a pesquisa
propriamente botânica cessou e o Horto passou a centrar-se no
serviço florestal.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 147

Outra coleção que merece citação é a da Escola Politécnica,


com seu curso de Engenheiros Agrícolas, que existia desde 1900,
sediado junto à atual Praça Coronel Fernando Prestes. Seu espaço de
experimentação incluía uma área de 30 mil metros quadrados, junto
aos viveiros municipais do Jardim da Luz, com coleções de plantas
para pesquisa e um arboreto composto de 70 espécies nacionais, que
depois passaram a compor os jardins dos parques da ESALQ, quando,
com a extinção do curso de Engenheiros Agrícolas na Politécnica, a
escola em Piracicaba incorporou o curso de engenheiros agrônomos.

5 FLORESTAS PAULISTAS NOS ESPAÇOS URBANOS

O primeiro objetivo da instalação do Horto na reserva da


Cantareira, após a encampação dos serviços de água de uma
companhia inglesa para Repartição de Águas e Esgotos do Estado, era
garantir a captação da água para abastecimento do município, e para
isso desapropriou um antigo engenho – da Pedra Branca – para criar
o Horto Botânico. Mas quando a Comissão Geográfica e Geológica o
instalou, já estavam plenamente identificados objetivos de promover
estudos das “riquezas florísticas do estado”, e de “replantação de
áreas devastadas do estado, ensaiando essências de reflorestamento
para aplicação como abrigo de lavouras, modificação de climas
alterados ou substituição de antigas matas destruídas”. (SÃO PAULO,
Estado, 1897).
A partir de 1898, o Horto, desligado da Comissão Geográfica e
Geológica e agora subordinado a recém-criada Diretoria de
Agricultura, desenvolveu suas atividades de forma intensa formando
sementeiras a partir dos jardins botânicos de vários países do mundo,
pesquisas sobre conservação e aproveitamento das florestas,
coleções vivas de espécies nacionais e exóticas, revisões no herbário,
restauração da coleção de madeiras, ensaios de germinação e
estudos de silvicultura, atento à “reconstituição tão necessária das
148

mattas que vão desapparecendo” (S. PAULO, Secretaria da


Agricultura, 1909). Neste mesmo ano o Horto assumiu o perfil de
instituição de pesquisa florestal e se preparou para fornecer mudas
para todo o estado. Dois anos mais tarde passava a se chamar Horto
Florestal, doando sua coleção botânica para o Museu Paulista. O
diretor era Edmundo Navarro de Andrade, pesquisador e introdutor
do eucalipto desde 1904 no horto particular em Jundiaí. Com isso, o
Estado passou a ser o grande divulgador do gênero Eucalyptus.
A conservação das florestas e o reflorestamento foram
preocupações crescentes no estado de São Paulo, à medida que se
constatava um consumo crescente de lenha principalmente pela
estrada de ferro. Esta preocupação motivou a criação dos distritos
florestais e dos hortos em diferentes regiões do Estado.
O desenvolvimento das coleções e em seguida dos hortos foi
desde o início um dos objetivos do trabalho de inventariar a flora do
estado e isto é claramente identificado nos documentos oficiais e nos
artigos de divulgação dos profissionais, especialmente Loefgren, com
artigos como “Hygiene e Embellezamento das cidades”, publicado no
Diário Popular em 1895.
O governo do estado assumiu o papel de distribuidor de
sementes e mudas de plantas para fazendas e propriedades
particulares e, além disso, para dezenas de câmaras municipais na
capital e no interior do Estado.
O serviço de distribuição de mudas, no que compete às
espécies arbóreas, passou a voltar-se com ênfase às florestais do
estado. É interessante notar que as espécies nativas, referidas por
Löfgren como “indígenas” eram as nativas do estado de São Paulo,
enquanto todas as demais eram chamadas de “exóticas”.
Ainda que houvesse espécies não brasileiras entre as
distribuídas, a ênfase era nas locais, e quando, por força da I Guerra
Mundial, os intercâmbios internacionais se enfraqueceram, a imensa
pesquisa do estado se expressou. Por necessidade ou por escolha, a
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 149

divulgação do repertório nativo (exceção feita ao eucalipto) colocou-


se em pauta de prioridade.
As distribuições de mudas no período 1899 a 1930 com
destinos urbanos sinalizam a entrada de repertório paulista nos
espaços públicos de São Paulo e de suas cidades do interior.
O Instituto Agronômico de Campinas, fundado como Imperial
Estação Agronômica em 1887 (havendo registros também em 1888)
foi também disseminador de repertórios vegetais para todo o Estado
à medida que alimentou, ao lado dos experimentos de variedades
hortícolas, a pesquisa florestal. Mesmo que a distribuição de mudas
houvesse sido iniciada antes, essa dimensão recebeu ênfase a partir
de 1907, quando a instituição de Campinas se juntou ao Horto
Florestal na tarefa de fomento da arborização e do serviço florestal.
A Escola Agrícola de Piracicaba, já mencionada anteriormente,
a partir de sua reformulação em 1905 para atender a um perfil de
instituição de ensino e pesquisa científica, adotou o modelo de
organização das universidades norte-americanas e de lá trouxe
cientistas de grande produção acadêmica, de forma que, já em 1925,
a escola gozava de renome internacional.
No horto e parque da Escola eram realizados experimentos de
propagação, que inauguraram, por exemplo, o ipê branco, o carvalho
nacional, a suinã e a acácia longifólia nos espaços urbanos.
Coleções secas nas vitrines dos museus; coleções vivas nos
hortos e jardins botânicos: ambas são expressões musealizadas da
natureza e da paisagem por meio de sua flora.

6 FLORESTA E CAMPO CIVILIZADOS NOS REPERTÓRIOS VEGETAIS


URBANOS

Debruçando-se sobre o estudo científico da flora do Estado em


suas formações e distribuição geográfica, os cientistas
disponibilizaram um conhecimento fundamental sobre a paisagem
150

paulista que seriam aproveitados pelas ações condutoras da


ocupação e do aproveitamento do solo paulistano.
Enquanto identificava, catalogava e sistematizava o
conhecimento sobre o mundo vegetal, um olhar de artista também
operava, descortinando paisagens, descobrindo valores novos que
seriam apropriados e aplicados em outros contextos: a rua, a praça, o
parque.
Após serem “civilizadas” pela pesquisa, as plantas seguiam
uma trajetória que incluía fazendas e alcançavam as cidades. Estas
passaram a exibir um novo repertório vegetal nos seus espaços.
Se reconhecer, identificar, classificar a natureza era objetivo
dos cientistas, a mobilização e a ordenação do mundo transcendeu
os limites da curiosidade investigativa no momento em que, dos
espaços fechados dos hortos e herbários, ela alcançou a rua. Eleita a
cidade como laboratório, praças, ruas e jardins públicos também se
tornaram espaços de observação experimental.
Esta afirmação é comprovada pelo exame das distribuições
feitas pelo estado à cidade de São Paulo e a dezenas de outros
municípios paulistas. As espécies brasileiras aparecem a partir de
1911 com primazia no Estado, e a partir de 1919 na cidade de São
Paulo, o ano em que o parque Trianon recebeu reforma. Em seguida,
marco da presença maciça das espécies nativas, veio o Parque d.
Pedro II.
Com pujança a vegetação paulista apareceu no estado e na
cidade. Contribuição que representa para a nossa paisagem urbana
uma verdadeira mudança de atitude. Os novos repertórios evocam
novas informações, novas dimensões simbólicas para parques,
jardins e espaços paulistanos.
A consciência crescente da riqueza florística e seu papel
cultural também se colocaram a serviço do nativismo e do
nacionalismo que moviam o meio artístico nesse momento. Aliou-se
às ideias emergentes sobre a defesa das nossas raízes culturais,
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 151

alimentando o pensamento que conduziu ao conceito de proteção do


patrimônio artístico e cultural brasileiro, por Mário de Andrade. A
visão conservacionista das paisagens vegetais nos legou a valorização
da nossa própria paisagem e deu dimensão à sua representação no
espaço urbano.

Figura 05 - Estilização da quaresmeira para placa decorativa, idealizado por F. C. Hoehne e


desenhado por G. Münch . Faz parte de uma série de 6 motivos parietais com espécies
paulistas, para serem executados em barro nas dimensões 100 x 60 cm

Fonte: HOEHNE,1936

7 CONCLUSÃO. O REPERTÓRIO E SUAS LINGUAGENS

Os repertórios vegetais da paisagem urbana, nativos ou não,


foram alimentados desde o início da República pelas instituições
ligadas ao estudo da flora em vários fins: botânico, agronômico,
agrícola, florestal, medicinal. Essa é uma particularidade paulista,
que decorre do contexto dentro do qual São Paulo se inicia na
pesquisa em Ciências Naturais. É o momento em que as abordagens
investigativas no mundo em geral e no Brasil em particular, saem dos
museus e vão para as instituições especializadas e laboratórios. Por
essa razão, por exemplo, não veio do Museu Paulista as principais
152

contribuições de pesquisa sobre o nosso patrimônio vegetal, ao


contrário do Rio de Janeiro, onde o Museu Nacional foi um
verdadeiro aglutinador de cientistas e pesquisas em todos os campos
das Ciências Naturais.
É possível afirmar, contudo, que o Museu Paulista, em sua
missão como museu histórico, de valorizar o nacional protagonizado
por São Paulo, fazia parte do mesmo ímpeto que promovia a flora
nativa nos espaços urbanos.
O plátano e o alfeneiro, espécies que reportam às cidades
europeias, perderam para os jacarandás e quaresmeiras. Isto
aconteceu em geral para todos os novos serviços de arborização
urbana e em especial na remodelação do Parque Trianon, em 1919,
na implantação do novo parque D. Pedro II, em 1922, e ainda na
substituição paulatina de plantas da Praça da República, uma praça
desenhada no início do século vinte aos moldes das parisienses, que
a planta de 1919 denuncia já conter repertórios nativos.

Figura 06 - Planta da Praça da República levantada pelo botânico Alfred Usteri em 1919, que
demonstra a existência de expressivo número de espécies paulistas, não constantes do projeto
original.

Fonte: USTERI,1919

Também digno de nota é o fato de que as contínuas doações


de mudas de espécies nativas coligidas pelas instituições de pesquisa
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 153

e de fomento chegaram às cidades do interior do estado de São


Paulo como repertórios dos seus novos espaços públicos.
Com isso, podemos dizer que, se houve um moderno no
Paisagismo em São Paulo, capital e interior, ele começou a firmar-se
a partir de meados da década de 10 do século XX e se deu sem
dúvida, conduzido pelo repertório vegetal.

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo. Clássico e Romântico, Pitoresco e Sublime. In: Arte


Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
GUARALDO, Eliane. Repertório e Identidade: Espaços Públicos em São Paulo
1890-1930. S. Paulo: FAUUSP, Tese de Doutoramento, 2002.
GUARALDO, Eliane. São Paulo, Paisagem e Paisagismo na Primeira
República. S. Paulo, FAUUSP, Dissertação de Mestrado, 1996.
HOEHNE, Frederico c. As plantas ornamentaes da flora brasílica e seu papel
como factores de salubridade pública, da esthetica urbana e das artes
decorativas nacionaes. S. Paulo: Secretaria da Agricultura, 1936.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. S. Paulo: Companhia das
Letras, 1995. 26.a Ed.
HUNT, John Dixon. Gardens and the Picturesque. Studies in the History of
Landscape Architecture. Cambridge, MIT, 1992.
LAISSUS, Yves. Le museum national d’histoire naturelle. Paris: Découvertes
Gallimard, Mémoire des lieux. 1996.
LÖFGREN, Alberto. Ensaio para uma distribuição dos vegetaes nos diversos
grupos florísticos do estado de São Paulo. Boletim da Commissão
o
Geographica e Geologica. N. 11. S. Paulo: Typographia a vapor de Vanorden
& Cia, 1899. 2ª ed.
LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a Pesquisa Científica: os Museus
e as Ciências Naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. S. Paulo: EDUSP, 1988.
154

MOSSER, Monique, org. Le jardin, art et lieu de mémoire. Besançon: Editions


de l’Imprimeur. 1995.
PONTE, Alessandra. Public Parks in Great Britain and the United States; from
a “spirit of place” to a “Spirit of Civilization”. In: MOSSER, Monique e
TEYSSOT, Georges. The History of Garden Design. The Western tradition
from the Renaissance to the present Day. Londres: Thames & Hudson,/MIT,
1991. 7.a ed.
Revista do Museu Paulista. Coleção de 1907 a 1919.
SÃO PAULO (Cidade). Relatório apresentado à Câmara Municipal, coleção de
1894 a 1928.
SÃO PAULO (ESTADO). Boletim da Commissão Geographica e Geologica do
Estado de S. Paulo. Coleção de 1983 a 1895.
SÃO PAULO (ESTADO). Relatórios da Secretaria de Agricultura, Comércio e
Obras Públicas. Coleção de 1891 a 1931.
SCHAER, Roland. L’Invention des Musées. Paris: Gallimard, 1993.
VACHEROT, Jules. Les Parcs et Jardins au commencement du XXème Siècle.
Paris: Octave Doin, Librairie Agricole, 1908 e 1925.
USTERI, A. Guia do Jardim da Luz e da Praça da República. S. Paulo:
Melhoramentos, 1919.
Imagem cedida pela SIURB, PMSP.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 155

Capítulo 7

ARBORIZAÇÃO URBANA COMO PATRIMÔNIO DA CIDADE

Karin Schwabe Meneguetti30


Andréia Gonçalves31

A presença de arborização no ambiente urbano promove uma


infinidade de benefícios. O verde urbano possibilita a
sustentabilidade da vida humana, é um indicativo da qualidade
estética da cidade e reflete a biodiversidade dos ecossistemas
urbanos. No entanto, a falta de planejamento para a implantação e
manutenção da arborização urbana acaba por prejudicar seus
aspectos benéficos. Quando mal implantada, a arborização pode
causar conflitos com as demais infraestruturas urbanas e, quando
isso ocorre, na maioria das vezes quem sai perdendo é a árvore que é
removida sem qualquer critério.
A cidade de Maringá é amplamente conhecida pela sua vasta
arborização urbana e pelo seu traçado viário baseado nos conceitos
de cidade jardim. Ruas e avenidas largas e bem arborizadas são as
principais características da paisagem urbana. Porém, esta mesma
arborização que confere tantos elogios à cidade está envelhecendo e
foi tomada, ao longo dos anos, por retiradas, plantios e podas
irregulares, e o resultado é a perda da unidade no conjunto arbóreo
formado pelas vias públicas.
Percebe-se a inexistência de um plano de rearborização. Sobre
isso, Meneguetti et al (2010, p. 9) discorrem que “em alguns casos, o

30
Professora Doutora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Estadual de
Maringá, ksmeneguetti@uem.br
31
Professora Mestre, Centro Universitário de Maringá, andreiagoncalves_arq@hotmail.com
156

próprio morador escolhe e procede ao plantio de alguma espécie, de


seu gosto particular, sem que o conjunto da proposta de arborização
da cidade seja sequer lembrado”. A respeito disso, Cesare Brandi
(2004), afirma que é justamente essa inserção de elementos distintos
dos existentes o fato mais grave na preservação de um bem, pois
estes elementos passam a atuar como um corpo estranho no
conjunto da paisagem.
Segundo Meneguetti et al. (2010), o reconhecimento da
arborização urbana como um bem cultural, representativo da
memória e da identidade da cidade, é fato importante para sua
preservação. A percepção da qualidade estética da arborização
urbana é fundamental na definição das diretrizes de sua preservação,
assim como sua historicidade, as transformações, adaptações,
remoções e adições pelas quais o projeto paisagístico passou ao
longo dos anos.
Desta forma, este texto aborda os benefícios da arborização
referentes à qualidade estética que esta proporciona na paisagem da
cidade, assim como sua função enquanto formadora da imagem e
identidade urbana. Entende a arborização viária do plano urbanístico
inicial da cidade de Maringá como patrimônio histórico, estético e
paisagístico da cidade, buscando fomentar a preservação de seu
conjunto.

1 BENEFÍCIOS DA ARBORIZAÇÃO NO ESPAÇO URBANO

A introdução de áreas verdes e a arborização do ambiente


urbano – no Brasil a partir do século XVII (PAIVA, 2008) -
proporcionou maior qualidade na paisagem, garantindo às cidades
benefícios diversos. Dentre estes benefícios podemos destacar:
- Benefícios estéticos. A vegetação urbana é um elemento de
“decoração natural”, uma alternativa para combater a uniformização
do espaço urbano, seu empobrecimento estético e qualitativo.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 157

Quebra a monotonia da paisagem através das diferentes formas e


texturas decorrentes de suas mudanças estacionais; promove a
valorização visual e ornamental do espaço urbano e a caracterização
e sinalização de espaços, constituindo-se em um elemento de
interação entre as atividades humanas e o meio ambiente. Ela pode
ser um elemento de grande importância na composição de espaços
externos, pois os maciços arbóreos são instrumentos no desenho da
paisagem que podem favorecer a estruturação de vias e a criação de
espaços de identidade e referência, valorizando áreas degradadas da
cidade.
- Benefícios de identidade urbana. A vegetação urbana pode
adquirir valor sentimental, cultural ou histórico. Constitui-se de
elementos identificáveis na estrutura urbana que caracterizam a
imagem da cidade e possuem individualidade própria.
- Benefícios na estrutura ecológica da paisagem. As ruas
arborizadas funcionam como corredores verdes que interligam as
demais estruturas vegetais existentes. Segundo Pellegrino et al.
(2006), além das ruas verdes proporcionarem um ambiente
agradável, elas podem agregar estruturas para infiltração de águas
pluviais, diminuindo o aporte de águas nos cursos hídricos.
O planejamento que considera os elementos naturais, dentre
eles a arborização urbana, faz-se importante frente ao
empobrecimento da paisagem urbana. É importante a conectividade
das estruturas verdes para que os processos naturais possam
acontecer dentro do ambiente urbano de forma mais adequada e as
árvores de acompanhamento viário podem ser os elementos de
conexão.
Ahern (2004) afirma que a conectividade é a principal
característica dos sistemas de paisagens e manter a conectividade
em uma paisagem significa garantir que seus processos e funções
particulares ocorram. Nesse sentido, a sequência de copas das
árvores pode ser considerada como espaço conector ligando outros
158

elementos da paisagem. Esse elemento verde conector (arborização


de acompanhamento viário) faz parte da estrutura ecológica da
cidade (MENEGUETTI, 2007).
O conceito de “contínuo natural” apoia-se nos princípios da
continuidade, promovida pela circulação e movimentos dos
elementos naturais (água, ar, solo, vegetação e fauna); da
elasticidade, onde os elementos se adaptam a várias situações
distintas; e da intensificação, com a otimização das funções físicas e
biológicas, contrabalanceando o empobrecimento no sistema
ecológico causado por meio da artificialização dos demais sistemas
no ambiente urbano (CABRAL, 1980; ALVES, 2010). Assim, a
arborização de vias constituindo corredores de conexão nesta
estrutura é indispensável.

2 PAISAGEM URBANA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

A origem do termo patrimônio está ligada às estruturas


familiares: patrimônio é “bem de herança transmitido dos pais aos
filhos” (CHOAY, 2006). É o legado que recebemos do passado,
vivemos no presente e transmitimos às futuras gerações. O
patrimônio cultural e natural é o ponto de referência e a identidade
de um povo (UNESCO, 2013).
O patrimônio cultural pode ser entendido como o elemento ao
qual a sociedade atribui um valor especial, seja ele estético, artístico,
histórico, social, entre outros, que constitua um patrimônio cultural
de caráter essencial às próximas gerações (BRAGA, 2003). Assim, um
bem pode ser considerado patrimônio de uma população não apenas
pelo seu valor estético, mas pela sua representatividade histórica.
No Brasil, a primeira legislação referente à proteção do
patrimônio cultural surgiu apenas na década de 1930, a partir da
promulgação do decreto-lei nº 25 de 1937, que organizou o
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 159

patrimônio histórico e artístico brasileiro, e de uma lei que criou o


conselho consultivo sobre o patrimônio. Esta legislação estabelece
que o patrimônio artístico nacional seja formado pelo conjunto de
bens móveis e imóveis, cuja conservação seja de interesse público,
por sua ligação com fatos históricos ou por apresentarem valor
arqueológico, etnográfico, bibliográfico, ou artístico considerado
excepcional. Da mesma forma, “os monumentos naturais, os sítios e
as paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável
com que foram dotados pela natureza ou agenciados pela indústria
humana” também são considerados patrimônio nacional (DELPHIM,
2004, p. 2).
No entanto, é só com a Constituição Federal de 1988 que o
interesse pelo patrimônio natural e cultural é estabelecido de forma
mais ampla. O patrimônio cultural é definido de forma bastante
abrangente:

Constituem o patrimônio cultural brasileiro, os bens, de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Podemos perceber o entendimento dos conjuntos urbanos de


valor histórico e paisagístico como parte importante do patrimônio
nacional.
No que se refere à cidade de Maringá, a Lei Municipal
Complementar nº 904 de 2011 descreve o patrimônio cultural de
Maringá, sendo este formado “pelos bens móveis, imóveis e culturais
de natureza imaterial”, sendo a preservação destes de interesse
público, devido à “vinculação a fatos memoráveis da história de
Maringá”. A lei ressalta a importância de conservação dos conjuntos
160

urbanos e sítios de valor histórico, podendo uma paisagem natural de


valor cultural ser musealizada (MARINGÁ, 2011).
De acordo com o que prevê a Constituição brasileira - os bens
tombados em âmbito nacional vão desde bens móveis, conjuntos
urbanos, jardins históricos ou edificações isoladas até as paisagens,
naturais ou culturais – algumas paisagens urbanas foram tombadas
como patrimônio cultural. As paisagens tombadas adquiriram este
direito não pela presença de um bem cultural isolado, mas pela
unidade do conjunto urbano existente, que forma a paisagem
cultural, digna de preservação.
Como exemplos de preservação do patrimônio por meio da
preservação de paisagens urbanas de significativo valor cultural
podem destacar o tombamento do Jardim da Saúde, Jardins América,
Europa, Paulista e Paulistano, todos na cidade de São Paulo, e da Rua
XV de Novembro, na cidade de Curitiba.
No caso do Jardim da Saúde, o tombamento foi motivado pelos
valores urbanísticos, históricos, ambientais e paisagísticos de
elementos construtivos da paisagem urbana. Dentre os elementos
valorados para o tombamento está o traçado urbano, pelas suas
dimensões e adequação geométrica; a vegetação das áreas
ajardinadas públicas e privadas, principalmente as de porte arbóreo e
as áreas permeáveis presentes nos lotes e nos logradouros públicos.
A arborização é um elemento de grande importância dentro
deste conjunto urbano para formação da paisagem da área. Desta
forma, as diretrizes para preservação dos elementos tombados
preveem, no caso da arborização, que toda árvore retirada no fim de
seu ciclo vital, deve ser substituída por um exemplar de mesma
espécie (SÃO PAULO, 2002).
Processo de tombamento semelhante ao do Jardim da Saúde
ocorreu nos Jardins América, Europa, Paulista e Paulistano. Neste
caso, os elementos destacados para tombo foram o atual traçado
urbano representado pelos logradouros; as atuais linhas
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 161

demarcatórias dos lotes, também históricas, sendo o baixo


adensamento populacional delas decorrente tão importante quanto
o traçado urbano; e a vegetação, especialmente a arbórea, que passa
a ser considerada como bem aderente (SÃO PAULO, 2004).
No caso da Rua XV (Rua das Flores), a paisagem não foi
tombada devido à presença de edifícios ou elementos arquitetônicos
isolados, mas sim pela unidade do conjunto de elementos formador
da paisagem urbana, constituído, como diz Benévolo (2004, p.141),
“de artefatos heterogêneos e ligados entre si”, que se introduziram
ao longo do tempo no imaginário da população, sem que nos dias
atuais, seja possível falar dos costumes, hábitos e cultura de Curitiba,
sem citar a Rua XV de Novembro.
Diante desses exemplos, podemos afirmar que o patrimônio
cultural representa a identidade das cidades e de sua população, sua
história, seus costumes e tradições. Assim, importantes são as
discussões acerca dos bens culturais da cidade, entre eles a
arborização urbana, a fim da manutenção de sua memória.

3 MARINGÁ: TRAÇADO URBANO E ARBORIZAÇÃO

A cidade de Maringá nasceu de um empreendimento comercial


que teve características únicas, a colonização do Norte do Paraná
pela Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), mais tarde
chamada de Companhia Melhoramento Norte do Paraná (CMNP).
O projeto da cidade de Maringá foi encomendado ao
engenheiro Jorge de Macedo Vieira pela CMNP, responsável pela
colonização da região a partir de 1944. Seguindo a prática projetual
da Companhia, o engenheiro urbanista desenvolveu o projeto urbano
a partir de um rigoroso levantamento planialtimétrico da área - ainda
protegida por sua densa cobertura florestal - o que garantiu a
qualidade da implantação e a individualidade da forma urbana. Era a
prática do escritório técnico da Companhia adaptar o padrão de um
162

traçado urbano, normalmente regular e geométrico, às circunstâncias


geográficas do sítio escolhido para se implantar uma nova cidade
(REGO e MENEGUETTI, 2006).
No desenho da cidade, o engenheiro se utilizou de soluções do
tipo garden city, influenciado por seu convívio profissional com Barry
Parker durante o desenvolvimento dos bairros-jardins da Cia City32
em São Paulo.
Os conceitos formais da cidade-jardim de Ebenezer Howard
materializados por Raymond Unwin e Barry Parker nas primeiras
cidades-jardim britânicas e, principalmente publicados por Unwin em
seu livro “Town Planning in Practice” em 1909 (REGO e MENEGUETTI,
2008), podem ser vistos no projeto de Jorge de Macedo Viera para
Maringá na organicidade do traçado e adequação do espaço urbano à
paisagem local, assim como a presença de parques e amplos espaços
públicos. Assim sendo, a paisagem construída através do projeto de
Vieira respeitou todas as particularidades e potencialidades que o
cenário natural lhe oferecia (REGO, 2001).

As curvas de nível foram determinantes para o desenho da cidade,


uma vez que foi a partir delas, da pendente do terreno e da
configuração topográfica, que se definiu a forma urbana alongada e o
traçado orgânico como diretrizes para as principais vias. [ ]
garantindo o “caráter artístico” do desenho urbano e forjando a
individualização do desenho da cidade a partir das características
naturais (REGO, 2001, p. 1573).

A proposta inicial de Maringá partiu de três condicionantes


principais: a linha férrea no sentido leste-oeste, que conectava
Maringá aos demais loteamentos da Companhia, e dois pequenos
vales ao sul, que foram preservados, transformando-se em parques
urbanos, mantendo também preservadas as duas nascentes
existentes (Figura 1). Entre os dois vales, em uma área praticamente
32
The City of S. Paulo Improvements & Freebold Land Co. Ltda. Empresa de urbanização
fundada por ingleses, estabeleceu-se no Brasil em 1917, ficando conhecida pela atuação no
planejamento de bairros com o conceito de "cidade jardim".
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 163

plana, foi localizado o centro da cidade, em um traçado retilíneo


derivado do posicionamento da linha férrea, e estruturado por duas
principais praças (a da estação da estrada de ferro e a central) ligadas
por um eixo principal, monumental. Esta área figurava “como o
elemento principal do plano”, e cumpria com os pressupostos de
Unwin.

Figura 1 - Projeto de Maringá, traçado de Jorge


de Macedo Vieira

Fonte: RECCO, 2005.

Em contraste com a malha ortogonal central, cada um dos


bairros do plano original é distinto pelo traçado mais sinuoso das
vias, seguindo as pendentes do terreno; delimitado por elementos
bem definidos – avenida, bosque, via férrea –; e organizado em torno
de pontos de interesse, geralmente estabelecidos a partir de
convergências de vias importantes ou de sua posição central dentro
do bairro. “É esta a individualidade defendida por Unwin (1984,
p.22) como uma das características mais positivas da forma urbana”
(REGO e MENEGUETTI, 2008, p. 48).
Ao falar do projeto concebido para Maringá, Vieira confessa
sua intenção:
164

[...] pretendi projetar uma cidade moderna, uma cidade em que o


traçado das ruas não obedecia ao xadrez [...] consegui um processo
melhor que é o de acompanhar o terreno o mais possível, e a cidade
já pré-traçada, num zoneamento estudado, com seus parques, seus
lugares de lazer e seus verdes tão caracterizados (MARINGÁ, 1972).

É notável a hierarquia entre as vias principais e secundárias,


diferenciadas pela largura, pela eventual presença do canteiro central
e pela variedade de espécies empregada na arborização urbana. Na
área do projeto original, ainda hoje cada rua ou avenida pode ser
identificada pela sua espécie arbórea.

Figura 2 – Foto aérea parcial de Maringá

Foto: Meneguetti, 2009

A arborização urbana da cidade de Maringá foi uma


preocupação posterior ao projeto da cidade, mas, de acordo com
Meneguetti (2009), encontrou neste, condições ideais para
implantação das espécies na largura das vias, calçadas e canteiros
centrais. Com o tempo, a vegetação criou uma cobertura para a via
pública e melhorou as condições do clima urbano. Com calçadas
largas e densas e rica vegetação urbana, a rua também é lugar de
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 165

passeio e, dada esta característica, parte fundamental do sistema de


espaços livres.

3.1 O PLANO DE ARBORIZAÇÃO

A empresa loteadora, ciente das condições adversas do clima


local uma vez livre de sua floresta original, adotou a farta arborização
das vias como diferencial de conforto urbano e imagem da cidade
(MENEGUETTI et al., 2009), já que o sucesso do empreendimento
comercial da Companhia dependia da criação de uma imagem
sedutora de cidade (REGO, 2001). Assim, a arborização urbana e o
ajardinamento poderiam refletir de forma efetiva a ocupação da área
desbravada recentemente e certificariam “o controle sobre o
ambiente hostil e o zelo pela obra urbana em andamento”
(MENEGUETTI et al., 2010, p. 5).
Para a efetivação da arborização da cidade, a Companhia
contratou, em 1949, Luiz Teixeira Mendes, engenheiro florestal
formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz em
Piracicaba, que foi professor de botânica e silvicultura nesta mesma
instituição. Dentre seus trabalhos estava a participação na
implantação, em 1905, do Parque da ESALQ, e a chefia do Serviço
Florestal de São Paulo, órgão vinculado à Secretaria da Agricultura
(RECCO, 2005).
Seu primeiro trabalho em Maringá foi a criação do Horto
Florestal em uma área de 37 hectares de mata nativa original para a
produção de mudas e o apoio ao plantio e cuidados com as árvores
recém-plantadas.
Luiz Teixeira Mendes criou um plano completo de arborização
para Maringá, com a especificação de espécies para cada logradouro
em fichas. Apesar da coerência do conjunto e da forte relação com o
projeto urbano, o que denotaria a elaboração do plano em forma de
166

mapa, não há registros gráficos deste plano, apenas as fichas


preservadas nos arquivos da CMNP.
Esta arborização priorizava por espécies de grande porte e
rápido crescimento visando amenizar o clima quente e dar
continuidade à vegetação existente no entorno da cidade.
Esse conjunto de espécies que formou a arborização urbana de
Maringá teve origens diversas. A grevílea robusta, presente em
avenidas e parques, foi trazida da sede do Serviço Florestal de São
Paulo, as sementes e mudas de flamboyants, sibipirunas, tipuanas,
pau-ferro e tantas outras espécies, abundantes atualmente por toda
a cidade, vieram de Campinas; exemplares de palmeiras e também
das tamareiras, hoje símbolo das principais avenidas centrais da
cidade, vieram da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
(RECCO, 2005); já as espécies nativas utilizadas no plano paisagístico,
dentre elas ipê roxo e a sibipiruna (MENEGUETTI et al., 2009), tinham
suas sementes colhidas na mata e suas mudas eram produzidas no
Horto Florestal33.
A diversidade de espécies foi aliada à conformação, largura e
hierarquia das vias, o que conferiu individualidade a cada uma,
opondo-se à ideia de uniformização da cidade. As florações
subsequentes em diferentes partes da cidade durante a maior parte
do ano reforçam o princípio estético do projeto e promovem a
qualidade de vida na área urbana (REGO, 2001; MENEGUETTI, 2003;
MENEGUETTI et al., 2010).
Em 1954, por motivos de saúde, Luiz Teixeira Mendes afastou-
se da tarefa de arborizar a cidade, deixando como sucessor o
engenheiro agrônomo Annibal Bianchinni da Rocha. O processo de
arborização de Maringá, iniciado ainda em 1949, esteve por vários
anos sob os cuidados da CMNP. À medida que a prefeitura da cidade

33
As informações do plano e da sua implantação foram relatadas por Annibal Bianchinni da
Rocha e outros funcionários da CMNP, e estão publicadas em Recco (2005), bem como em
entrevistas à Divisão de Patrimônio da Prefeitura do Município de Maringá.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 167

se estruturou, esta passou a assumir as responsabilidades com a


arborização da cidade, com a criação do Departamento de Parques e
Jardins (DE ANGELIS et al., 2007).

3.2 VALORES PATRIMONIAIS DA ARBORIZAÇÃO

A paisagem urbana de Maringá, derivada do projeto urbano


inicial de Jorge Macedo Vieira e do projeto paisagístico de
arborização, é responsável pela identidade urbana, e sua unicidade
dá-se “pela consonância com as circunstâncias topográficas e
reforçadas pela arborização urbana, distinta dos demais projetos de
arborização urbana encontrados nas cidades brasileiras”. Esta
paisagem não é reproduzível, pois alia a concepção projetual aos
fatos geográficos (MENEGUETTI et al., 2010, p. 7).
As qualidades artísticas da arborização urbana de Maringá não
estão somente nas qualidades individuais de cada espécie, mas sim
na integridade do conjunto. Sendo assim, para entendimento da
arborização como patrimônio deve-se compreender que a
singularidade deste bem reside na integridade do conjunto da
cobertura vegetal (MENEGUETTI et al., 2010). Pois, de acordo com
Lynch (1999), é a continuidade, dada pela repetição de intervalos
rítmicos, pela similaridade, analogia e harmonia, que facilita a
percepção da paisagem e atribui à mesma uma identidade única.
O caráter estético da arborização urbana de Maringá está
atestado na sua intenção artística e em sua relação com o desenho
da cidade. Entre outros estabelecimentos da forma urbana, no texto
de Unwin pode ser encontrada a defesa da vegetação urbana como
‘decoração natural’, de modo a rebater a uniformização do espaço
urbano e, consequentemente, seu empobrecimento estético e
qualitativo. Assim a paisagem da cidade ganharia “variedade e
encanto” (UNWIN, 1984, p.203). Este aspecto pode ainda contribuir
168

para a legibilidade urbana, interferindo positivamente na avaliação


da imagem da cidade (LYNCH, 1999).
As avenidas e ruas distinguem-se pela sua conformação –
largura da via, dos passeios e presença de canteiro central – e
também pela identidade visual que lhes é conferida pela arborização,
como pode ser observado na Figura 3, que simula a arborização
inicial da área central da cidade (Zona Central), com destaque a
algumas avenidas, cujas imagens seguem adiante.

Figura 3 – Projeto de arborização inicial da Zona Central

Fonte: Gonçalves, 2014. Modificado pelas autoras.

A Avenida Getúlio Vargas, o bulevar que une os principais


eventos urbanos do centro da cidade, por exemplo, com palmeiras
imperiais no canteiro central e exuberantes tipuanas nas laterais
(Figura 4); ou a Avenida Tiradentes, com flamboyants nos canteiros
centrais e paus-ferro nas laterais; a Avenida Brasil, com maravilhosos
ipês-roxos no canteiro central e aldragos nos passeios (Figura 5); a
Avenida Rio Branco, com paus-ferro no canteiro central, se
sobrepondo às sibipirunas do passeio (Figura 6); a Avenida Duque de
Caxias, com tamareiras e jacarandás mimosos (Figura 7); a Avenida
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 169

São Paulo, com flamboyants e sibipirunas; e ainda a Avenida Paraná,


com palmeiras imperiais e alecrins e ipês-amarelos.

Figura 4 – Avenida Getúlio Vargas Figura 5 – Avenida Brasil

Foto: Meneguetti, 2011 Foto: Meneguetti, 2010

Figura 6 – Avenida Rio Branco Figura 7 – Avenida Duque de Caxias

Foto: Meneguetti, 2013 Foto: Meneguetti, 2009

As ruas residenciais, cobertas pelas árvores, formando


verdadeiros túneis verdes (Figuras 8 e 9) mais frequentemente com
sibipirunas ou tipuanas, constituem um cenário mais pitoresco para
os bairros residenciais. Deste modo, a diversidade das espécies
170

empregadas forma um conjunto único, de espacialidade variada e


característica.

Figura 8 – Tipuanas em túnel verde na Rua Figura 9 – Sibipirunas formando túnel verde na
Floriano Peixoto Rua Fagundes Varela

Foto: Gonçalves, 2013. Foto: Gonçalves, 2013.

Meneguetti et al. (2010, p.7) ressalvam que “o projeto


paisagístico constitui-se como um unicum, ou seja, como uma
concepção projetual que não é reproduzível à vontade, seja pelas
diferenças topográficas, climáticas, ambientais ou arquitetônicas que
diferenciam Maringá das demais cidades”. Esta figuratividade única é
a principal particularidade que justifica a consideração da arborização
como patrimônio cultural. Além do mais,

[...] as qualidades artísticas da arborização urbana de Maringá estão


além das qualidades unitárias das espécies arbóreas. A sua
singularidade reside na integridade do conjunto da cobertura vegetal:
nas espécies que formam as alamedas e nas alamedas que criam
eixos espacialmente diferenciados e hierarquicamente distintos.
(p.7).

Destaca-se, portanto, que a obra é o conjunto de elementos


interdependentes, e não uma soma de indivíduos isolados. Esses
elementos são percebidos em relação uns aos outros, por
complementaridade. Ou seja, os indivíduos justapostos conformam
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 171

as alamedas, conjugando seu porte, forma, cor e textura de modo a


criar uma ambientação diferenciada em cada eixo viário. A
combinação das vias caracteriza o bairro, e este soma-se aos demais
para produzir a imagem da cidade, como pode ser visto na Figura 2.
Atualmente, a arborização urbana configura-se como um dos
bens mais significativos da memória e da identidade dos
maringaenses. No entanto, a sucessão de acidentes com as árvores
maltratadas e submetidas a podas mutilantes justifica a remoção sem
replantio e a desconfiguração deste bem, em prejuízo do conforto
ambiental e, principalmente, da imagem da cidade e da paisagem
resultante desta.

4 PLANO DE RECOMPOSIÇÃO DA PAISAGEM URBANA

A recomposição da paisagem urbana de Maringá parte do


pressuposto que a arborização, enquanto bem vivo, deve ser
manejada continuamente, de modo a garantir que a unicidade não se
perca. O projeto de arborização inicial elaborado pelo engenheiro
Luiz Teixeira Mendes deve ser mantido em sua essência, nas
qualidades estéticas, mesmo que seja necessária a alteração dos
elementos que o compõem para que sejam corrigidos eventuais
conflitos com demais infraestruturas.
Para tanto, o projeto de arborização foi espacializado por meio
da simulação no plano inicial da cidade. Em seguida, foi avaliada a
condição atual em que a arborização se encontra, os principais
conflitos e pontos onde a arborização se encontra bem preservada.
Por fim, foi proposto um projeto de rearborização para as vias,
primando pela manutenção da qualidade da paisagem, suas
características estéticas e históricas.
172

4.1 SIMULAÇÃO DO PROJETO DE ARBORIZAÇÃO INICIAL

A simulação do projeto de arborização inicial consistiu na


representação por meio do mapeamento da arborização
predominante nas vias, com o intuito de simular como foi previsto o
projeto de arborização do engenheiro florestal Luiz Teixeira Mendes
e identificar quais espécies foram efetivamente plantadas.
A partir da análise do inventário realizado por Sampaio
(2006) e diante do levantamento realizado em campo, pode-se
identificar 19 espécies arbóreas predominantes na área do Plano
Inicial de Maringá. São elas: sibipiruna (Caesalpinia peltophoroides),
tipuana (Tipuana tipu), ipê roxo (Tabebuia avellanedae), ipê amarelo
(Tabebuia chrysotricha), flamboyant (Delonix regia), palmeira
imperial (Roystonea spp), alecrim (Holocalyx balansae), pau-ferro
(Caesalpinia ferrea var. leiostachya), jacarandá mimoso (Jacaranda
mimosaefolia), bisnagueira (Spathodea campanulata), tamareira
(Phoenix dactylifera), ligustro (Ligustrum lucidum), extremosa/resedá
(Lagerstroemia indica), aroeira salsa (Schinus molle), grevílea
(Grevilea robusta), figueira branca (Ficus guaranitica), quaresmeira
(Tibouchina granulosa), peroba (Aspidosperma polyneuron) e pata-
de-vaca (Bauhinia forficata).
Além das espécies plantadas, a frequência e forma de
distribuição ao longo das vias foram registradas, com base no
levantamento in loco.

4.2 CONDIÇÃO ATUAL DA ARBORIZAÇÃO

A condição atual da arborização foi observada por meio de


levantamento in loco em todas as vias do plano inicial da cidade.
Destacou-se neste levantamento a presença de lacunas, ou seja, as
falhas na arborização e trechos onde há inserção de espécies
diferentes das implantadas no projeto de Teixeira Mendes, assim
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 173

como os trechos onde a arborização se encontra em bom estado de


conservação.
A retirada de árvores (lacunas) e a inserção de novas espécies
sem prévio planejamento é o principal problema da arborização.
Essas lacunas prejudicam a integridade do conjunto arbóreo, pois
entende-se que as qualidades artísticas da arborização urbana não
estão somente nas qualidades individuais de cada exemplar, mas sim
na integridade do conjunto arbóreo. Desta forma, as inserções de
novas espécies sem prévio planejamento são prejudiciais ao
entendimento do conjunto (Figuras 10 e 11). Segundo Brandi (2004)
é justamente essa inserção de elementos distintos dos existentes o
fato mais grave, pois segundo o autor estes passam a atuar como um
elemento estranho no conjunto da paisagem, não somando a ele,
mas sim se contrapondo. A lacuna, neste caso, se coloca como figura
em relação ao conjunto arbóreo que se torna o fundo para este
elemento estranho na paisagem.

[...] uma lacuna, naquilo que concerne à obra de arte, é uma


interrupção no tecido figurativo. Mas contrariamente aquilo que se
acredita, o mais grave, em relação à obra de arte, não é tanto aquilo
que falta, quanto o que se insere de modo indevido. A lacuna, com
efeito, terá uma forma e uma cor, não relacionadas com a
figuratividade da imagem representada. Insere-se, em outras
palavras, como corpo estranho (BRANDI, 2004, p. 48 e 49).

Figura 10 – Lacunas na Rua Men de Sá Figura 11 – Lacuna na Rua Katsuzo Fujiwara

Foto: Gonçalves, 2013. Foto: Gonçalves, 2013.


174

Figura 12 – Retirada sistêmica da Figura 13 – Inserções na Rua Eleoteria Cordeiro


arborização na Rua Marechal Deodoro

Foto: Gonçalves, 2013. Foto: Gonçalves, 2013.

É recorrente a retirada sem substituição (Figura 12) e a


inserção de espécies diversas da arborização original, como manacá
da serra, murta, várias espécies de palmeiras, aroeira salsa, ou
arbustos, e, principalmente, o oiti (Figura 13).
Outro conflito muito frequente se encontra na relação do
calçamento do passeio público com as árvores. O canteiro permeável
ao redor da árvore não é suficiente, o piso acaba sendo danificado
pelas raízes das árvores e estas sendo prejudicadas pela falta de
nutrientes proveniente da pouca contribuição das áreas permeáveis.
Este fato altera a condição da árvore conduzindo à queda de galhos
ou do próprio indivíduo, e justifica a retirada, muitas vezes sem
substituição.
Em alguns trechos de vias a arborização se apresenta ainda de
forma íntegra. As árvores resistem à falta de áreas permeáveis e aos
conflitos com as demais infraestruturas presentes no espaço das vias
e promovem um grande espetáculo.
Este cenário somente é possível por meio do conjunto arbóreo,
ou seja, apenas uma árvore, ou uma centena delas de forma isoladas,
não produzem o mesmo impacto visual na paisagem.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 175

Os túneis verdes ainda podem ser encontrados em várias vias,


como visto nas figuras 8 e 9. Esta sobreposição das copas amplas
proporciona uma paisagem de grande beleza e melhoram as
condições de conforto térmico na cidade pelo intenso sombreamento
das árvores.
Diante deste cenário, as propostas de intervenção no projeto
de arborização de Maringá devem ser feitas com muito cuidado a fim
de manter a qualidade estética da paisagem existente, suas
características e sua forte identidade com a população, consideradas
aqui seu patrimônio. As alterações das espécies contidas no projeto
de arborização inicial somente são aceitáveis se conseguirem unir as
qualidades estéticas oriundas da arborização de vias às soluções para
a incompatibilidade de parte desta arborização com as demais
formas de infraestrutura urbana e edificações.

4.3 PROJETO DE REARBORIZAÇÃO

A proposta de rearborização derivada das premissas expostas


neste trabalho foi publicada em Gonçalves (2014), e seus argumentos
principais são apresentados aqui. O conceito básico do projeto é o
resgate e fortalecimento da paisagem criada pelo projeto de
arborização inicial de Luiz Teixeira Mendes, preservando assim parte
fundamental do patrimônio paisagístico de Maringá.
O mapeamento do projeto inicial expôs a intenção projetual e
caracterizou o que fazia parte desse projeto, apartando daquilo que
foi inserido posteriormente. A manutenção das espécies das
primeiras árvores é fortemente recomendável para preservar os
aspectos históricos.
Os canteiros centrais das avenidas são os elementos mais
significativos para a identidade da arborização, e devem ser
manejados de modo que se mantenham as espécies e sua
176

distribuição de modo a conservar os corredores floridos que lhe são


característicos.
Ao longo das demais vias, no entanto, algumas espécies
provaram-se incompatíveis com o meio em que se inseriam,
principalmente após a transformação dos tipos edilícios com o
desenvolvimento da cidade. Neste caso, o projeto de rearborização
conta com a especificação de novas espécies que possam ser
plantadas em substituição aos exemplares originais que necessitem
ser retirados, por motivos de doença ou envelhecimento natural.
Além do porte adequado ao espaço destinado ao seu plantio e
adequação às demais formas de infraestrutura urbana como fiação
elétrica, redes de saneamento básico, pavimentação dos passeios e
edificações, as espécies escolhidas devem manter a qualidade
estética do conjunto. Assim, as espécies escolhidas para rearborizar
as vias cuja proposta inicial apresentou conflitos têm por objetivo
manter o perfil arbóreo e continuar proporcionando os admirados
túneis verdes que promovem indescritível qualidade estética à
paisagem, fazem parte da identidade e do imaginário do cidadão
maringaense, além de proporcionarem grande sombreamento que
alivia as altas temperaturas registradas na cidade.
O excesso de indivíduos de uma mesma espécie, característica
do projeto inicial pela necessidade do rápido desenvolvimento das
árvores para a amenização do clima, pode ser corrigido pela
substituição das espécies de algumas vias dentro dos princípios
estéticos originais. Neste sentido, a substituição de espécies pode
aumentar a diversidade do conjunto sem prejudicar a unidade da
paisagem, que é determinada principalmente pela arquitetura das
árvores, ou seja, a espécie é substituída, mas a unidade do conjunto é
preservada.
A proposta deste projeto de rearborização é que a unidade se
dê por vias, ou seja, cada via irá conter uma única espécie em toda a
sua extensão, o que formará o conjunto arbóreo do bairro e
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 177

consequentemente manterá a unicidade do plano inicial da cidade. A


espécie escolhida deve ser plantada em ambos os lados da via como
originalmente, pois concluiu-se através do levantamento que a fiação
elétrica não tem relação direta com a quantidade de lacunas na
arborização, e que as árvores, de maneira geral, têm se adaptado
bem às podas necessárias à passagem da fiação adotada em Maringá,
do tipo compacta.
Vale ressaltar que as espécies não devem ser substituídas por
outras quaisquer, ou terem sua distribuição e espacialização
alteradas, pois isso afetaria diretamente a qualidade do projeto e da
paisagem.
Entende-se também que a paisagem formada pela arborização,
dada principalmente pelo seu porte e formato das copas, faz parte da
imagem dos bairros e da cidade; desta forma, esta é uma
característica importante a ser respeitada quando da proposta de
substituição de espécies a fim de preservar o caráter histórico.

5 CONCLUSÃO

A cidade de Maringá tem particularidades que configuram um


bem cultural único e significativo: o desenho da cidade e a
arborização urbana. Nesse sentido, o reconhecimento da arborização
urbana de Maringá como um bem cultural, representativo da
memória e da identidade da cidade, instiga a discussão sobre a
necessidade premente de preservação.
Por se caracterizar como um bem vivo entende-se que os
encaminhamentos para a sua conservação devem incluir,
necessariamente, as particularidades artísticas, históricas e culturais,
além das questões técnicas e fitossanitárias. A percepção da
qualidade estética dessa obra é um aspecto fundamental a ser
considerado na definição das diretrizes de sua preservação, assim
como a sua historicidade, que registra os aspectos relacionados à sua
178

trajetória no tempo, ou seja, o estudo das transformações,


adaptações, remoções e adições pelas quais a obra – o projeto
paisagístico - passou ao longo dos anos.
Desta forma, para a preservação deste bem, busca-se resgatar
a figuratividade proposta pelo projeto de Luiz Teixeira Mendes, assim
como a paisagem construída por ele. Tendo em vista que não existe
projeto da arborização inicial da cidade, o primeiro passo foi a
simulação do projeto, espacializando as fichas de plantio e os
levantamentos do existente, para entender as intenções
compositivas do autor. Somente então se pode avaliá-lo e verificar a
viabilidade do resgate histórico.
Ao longo do levantamento foi possível constatar que a imagem
da arborização para a cidade não se desdobra na responsabilidade
pelo manejo desta arborização, pelo contrário, as árvores são
tratadas como indivíduos e não como parte do conjunto, figuram em
segundo plano frente às infraestruturas, à pavimentação e ao gosto
particular, pelo desconhecimento da comunidade e descaso público.
Apesar da singularidade de seu projeto urbano e de seu
histórico de planejamento, Maringá demonstra o desconhecimento
das suas qualidades urbanas e vem perdendo rapidamente os
elementos que a tornam única. É visível o descaso público,
principalmente em relação à gestão e preservação do conjunto
arbóreo. “Afinal, seu maior patrimônio é um elemento bastante
vulnerável, e comumente não respeitado”. “Talvez essa
particularidade do projeto de arborização, de ser um ‘bem vivo’,
contribua para a dificuldade de lidar com a sua salvaguarda”
(MENEGUETTI et al., 2010, p. 10).
Como contribuição a este debate, propõe-se a preservação da
arborização através de um plano de manutenção das espécies-chave
do projeto inicial somada à substituição e ampliação do número de
espécies arbóreas, respeitando os aspectos formais e a composição
estética inicialmente projetada.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 179

No entanto, primordial é o reconhecimento da obra como um


dos bens mais significativos da memória e da identidade dos
maringaenses. O processo de tombamento do conjunto arbóreo e a
aprovação de legislação aliada a uma gestão eficiente deve englobar
o conhecimento através de educação ambiental e patrimonial. A
partir do momento que se identificar com seu patrimônio, parte de
suas memórias, a comunidade será a principal defensora de seus
bens.

REFERENCIAL

AHERN, J. Greenways in the USA: theory, trends and prospects. In:


Jongman, Rob H. G. e Pungetti, Gloria (editors). Ecological Networks and
Greenways: Concept, Design, Implementation. Cambridge, UK: Cambridge
University Press. 2004.
ALVES. T. M. A estrutura ecológica urbana no modelo da rede estruturante
da cidade. Madri: Bubok Publishing S.L., 2010.
BRAGA, Marcia. Conservação e restauro: arquitetura brasileira. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 2003.
BRANDI, C. (1906-1988). Teoria da Restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2004.
BRASIL. Decreto Lei n. 25. Organiza a proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional. 1937.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
CABRAL, F. C. O ʺ Continuum Naturaleʺ e a Conservação da Natureza. In
Conservação da Natureza. Serviço de Estudos do Ambiente. Lisboa, pp. 35-
55, 1980.
CHOAY, F. (1925). A alegoria do patrimônio. 4ª edição. São Paulo: UNESP,
2006.
DE ANGELIS, B. L. D.; SAMPAIO, A. C. F.; TUDINI, O. G.; ASSUNCÃO, M. G. T.;
DE ANGELIS NETO, G. Avaliação das árvores de vias públicas da zona central
180

de Maringá, Estado do Paraná: estimativa de produção de resíduos e


destinação final. Acta Scientiarum Agronomy, v. 29, p. 133-140, 2007.
DELPHIM, C. F. de M. O Patrimônio Natural no Brasil. Rio de Janeiro:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2004.
GONÇALVES, A. Arborização urbana: estudo e preservação do patrimônio
verde de Maringá – Paraná. Dissertação (Mestrado em Engenharia Urbana)
Universidade Estadual de Maringá. Maringá. 2014.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio
Cultural. 2013. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br
LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1999.
MARINGÁ. Gerência do Patrimônio Histórico do Município de Maringá.
Entrevista de Jorge de Macedo Vieira, 1972.
MARINGÁ. Lei n. 904/2011. Constitui o inventário do patrimônio cultural de
Maringá. 2011.
MENEGUETTI, K. S. Maringá: o desenho urbano, a imagem da cidade e a
qualidade de vida. In: Moro, Dalton Áureo. Maringá Espaço e Tempo. Ensaio
de Geografia Urbana. Maringá: Programa de Pós-Graduação em Geografia –
UEM. 2003.
MENEGUETTI, K. S. De cidade-jardim a cidade sustentável: Potencialidades
para uma estrutura ecológica urbana em Maringá - Pr. Tese (Doutorado em
Paisagem e Ambiente) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP. São
Paulo. 2007.
MENEGUETTI, K. S. Cidade jardim, cidade sustentável: a estrutura ecológica
urbana e a cidade de Maringá. Maringá: EdUEM, 2009.
MENEGUETTI, K. S.; REGO, R. L.; BELOTO, G. E. Maringá – a paisagem urbana
e o sistema de espaços livres. Paisagem Ambiente: ensaios - n. 26 - São
Paulo - p. 29 – 50. 2009.
MENEGUETTI, K. S.; REGO, R.; SILVEIRA, A. M. da; BELOTO, G. E. A cidade, as
árvores e a paisagem cultural. In: 1 Colóquio ibero-americano Paisagem
cultural, patrimônio e projeto: desafios e perspectivas, 2010, Belo Horizonte
- MG. 1 Colóquio Ibero-Americano Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto -
Anais. Belo Horizonte - MG: Instituto de Estudos do Desenvolvimento
Sustentável; Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável.
2010.
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 181

PAIVA, P. D. de O. Paisagismo conceitos e aplicações. Lavras: Editora UFLA,


2008.
PELLEGRINO, P. R. M.; GUEDES, P. P.; PIRILLO, F. C.; FERNANDES, S. A. A
Paisagem da Borda: uma estratégia para a condução das águas, da
biodiversidade e das pessoas. In: Costa, Lucia M. S. A. (org.). Rios e
Paisagens Urbanas em Cidades Brasileiras. Rio de janeiro. Viana & Mosley
Editora/Editora PROURB. 2006.
RECCO, R. À sombra dos Ipês da minha terra. Londrina, PR: Midiograf, 2005.
REGO, R. L. O desenho urbano de Maringá e a idéia de cidade-jardim. Acta
Scientiarum, Maringá, v. 23, n. 6, p. 1569-1577. 2001.
REGO, R. L.; MENEGUETTI, K. S. A forma urbana das cidades de médio porte
e dos patrimônios fundados pela Companhia Melhoramentos Norte do
Paraná. Acta Scientiarum, Maringá, v. 28, n. 1, p. 93-103. 2006.
REGO, R. L.; MENEGUETTI, K. S. O território e a paisagem: a formação da
rede de cidades no norte do Paraná e a construção da forma urbana.
Paisagem Ambiente: ensaios - n. 25 - São Paulo - p. 37 – 53. 2008.
SAMPAIO, A. C. F. Análise da arborização de vias públicas das principais
zonas do Plano piloto de Maringá-PR. Dissertação (Mestrado em Geografia),
Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2006.
SÃO PAULO. Resolução nº. 16/2002 de 28 de ago. Tombamento do Jardim
da Saúde. São Paulo, SP. Diário Oficial do Município de São Paulo, São Paulo,
SP, 2002.
SÃO PAULO. Resolução nº. 07/2004. São Paulo, 2004.
UNESCO. O Patrimônio: legado do passado ao futuro. 2013. disponível em:
www.unesco.org_new_pt_brasilia_culture_world-heritage_he acesso em
20/12/2013
UNWIN, R. La practica del urbanismo. Una introducción al arte de proyectar
ciudades e barrios. Barcelona: GG. 1984.
182
Patrimônio, Paisagem e Cidade - 183

Você também pode gostar