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Patrimônios na Cidade Contemporânea - 1

Organizadores

Rosio Fernández Baca Salcedo


Nilson Ghirardello
Marta Enokibara

Patrimônios na Cidade
Contemporânea

1ª Edição

ANAP
Tupã - SP
2016
2

EDITORA
ANAP - Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
Rua Bolívia, nº 88, Jardim América, Cidade de Tupã, São Paulo. CEP 17.605-310.
Contato: (14) 3441-4945
www.editoraanap.org.br
www.amigosdanatureza.org.br
editora@amigosdanatureza.org.br

Revisão Ortográfica: Joselilian Lopes Miralha

Autoria da foto da Capa e contracapa: Paulo C. Fraga Burgo

Para edição desta obra foi firmada uma parceria entre ANAP – Associação Amigos da
Natureza da Alta Paulista com Programa de Pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo (PPGARQ) da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
FAAC/UNESP- Campus de Bauru.

Ficha Catalográfica

SA161p Patrimônios na Cidade Contemporânea / Rosio Fernández Baca


Salcedo, Nilson Ghirardello e Marta Enokibara (orgs) – Tupã:
ANAP, 2016.

176 p ; il. Color. 14,5 cm

ISBN 978-85-68242-42-1

1. Patrimônio 2. Arquitetura 3. Paisagem 4. Cultura


I. Título.

CDD: 720
CDU: 720/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Arquitetura
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 3

CONSELHO PARECERISTAS “ad hoc”


Profª Drª Alina Gonçalves Santiago - UFSC
Prof. Dr. Eduardo Romero de Oliveira – UNESP – Campus de Rosana
Prof. Dr. Euler Sandeville Júnior - FAU/USP
Prof. Dr. José Aparecido dos Santos - FAI
Prof. Dr. José Geraldo Simões Jr - UPM
Prof. Dr. Josep Muntañola Thornberg - UPC -Barcelona, Espanha
Prof. Dr. Marcelo Zárate - UNL de Santa Fé, Argentina
Profª Drª Margareth de Castro Afeche Pimenta - UFSC
Profª Drª Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci - IAU-USP

CONSELHO PARECERISTAS PERMANENTE


Profª Drª Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE
Prof. Dr. André de Souza Silva - UNISINOS
Profª Drª Angélica Góis Morales – FCA/UNESP
Prof. Dr. Antônio Cezar Leal – FCT/UNESP
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM
Prof. Dr. Antonio Fluminhan Jr. – UNOESTE
Prof. Dr. Arnaldo Yoso Sakamoto – UFMS
Prof. Dr. Daniel Dantas Moreira Gomes – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Daniela de Souza Onça – UDESC
Prof. Dr. Edson Luís Piroli – UNESP – Campus de Ourinhos
Profª Drª Eloisa Carvalho de Araujo - UFF
Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCAR
Profª Drª Flávia Akemi Ikuta – UFMS
Profª Drª Isabel Cristina Moroz Caccia Gouveia– FCT/UNESP
Prof. Dr. João Cândido André da Silva Neto – UEA / CEST
Prof. Dr. Joao Osvaldo Rodrigues Nunes– FCT/UNESP
Prof. Dr. José Carlos Ugeda Júnior – UFMS
Prof. Dr. Junior Ruiz Garcia – UFPR
Profª Drª Jureth Couto Lemos – UFU
Profª Drª Kênia Rezende – UFU
4

Prof. Dr. Luciano da Fonseca Lins – UPE – Campus de Garanhuns


Profª Drª Maira Celeiro Caple – Universidade de Havana – Cuba
Profª Drª Marcia Eliane Silva Carvalho – UFS
Prof. Dr. Marcos Reigota – Universidade de Sorocaba
Profª Drª Maria Betânia Moreira Amador – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
Profª Drª Natacha Cíntia Regina Aleixo – UEA
Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha – FCT/UNESP
Prof. Dr. Pedro Fernando Cataneo – FCA/UNESP
Prof. Dr. Rafael Montanhini Soares de Oliveira – UTFPR
Profª Drª Regina Célia de Castro Pereira – UEMA
Profª Drª Renata Ribeiro de Araújo – FCT/UNESP
Prof. Dr. Ricardo Augusto Felício – USP
Prof. Dr. Ricardo de Sampaio Dagnino – UNICAMP
Profª Drª Roberta Medeiros de Souza – UFRPE – Campus Garanhuns
Prof. Dr. Roberto Rodrigues de Souza – UFS
Prof. Dr. Rodrigo José Pisani – Unifal
Prof. Dr. Rodrigo Simão Camacho – UFGD
Prof. Dr. Ronaldo Rodrigues Araújo – UFMA
Profª Drª Rosa Maria Barilli Nogueira – UNOESTE
Profª Drª Simone Valaski – UFPR
Profª Drª Silvia Cantoia – UFMT – Campus Cuiabá
Profª Drª Sônia Maria Marchiorato Carneiro – UFPR
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................ 07
Rosio Fernández Baca Salcedo
Nilson Ghirardello
Marta Enokibara

Capítulo 1 ................................................................................... 09

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO DA VANGUARDA


RUSSA: RKM_SAVE URBAN HERITAGE. O PROGRAMA EUROPEU
CIUDADCOMO INTERFACE ENTRE UNIVERSIDADE, CIDADE E
PREFEITURA
Elio Trusiani

Capítulo 2 ................................................................................... 33

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO LEGADO PELO IPESP DURANTE O


PLANO DE AÇÃO DE CARVALHO PINTO (1959 – 1963) NA ALTA
PAULISTA
André Augusto de Almeida Alves
Hélio Hirao

Capítulo 3 ................................................................................... 57

DIRETRIZES PARA REQUALIFICAÇÃO URBANA A PARTIR DA GÊNESE


DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL FERROVIÁRIO DA EFNOB
Ellen Beatriz Santos Fonseca de Castro
Rosio Fernández Baca Salcedo

Capítulo 4 ................................................................................... 83

RETROFIT EM PATRIMÔNIOS FERROVIÁRIOS EDIFICADOS: O CASO


DE PIRAJUÍ-SP
Nilson Ghirardello
Fernanda Fabri
6

Capítulo 5 ................................................................................... 105

O CONJUNTO HISTÓRICO E ARQUITETÔNICO DA FEPASA


(FERROVIAS PAULISTAS S/A), NO MUNICÍPIO DE REGENTE FEIJÓ:
PRESERVAÇÃO E GESTÃO DO PATRIMÔNIO
Neide Barrocá Faccio
Cristina Maria Perissinotto Baron
Larissa Figueiredo Daves

Capítulo 6 ................................................................................... 133

ORDENS SUPERIORES? SOBRE OS PROCESSOS DE TOMBAMENTO


DO CONDEPHAAT PARA BENS DO GOVERNO FEDERAL (1969 –
1984)
Ewerton Henrique de Moraes
Eduardo Romero de Oliveira

Capítulo 7 ................................................................................... 151

JARDINS HISTÓRICOS E SUA DIMENSÃO AMBIENTAL: PROPOSTA


DE CONSTRUÇÃO DE UMA METODOLOGIA
Inês El-Jaick Andrade
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 7

APRESENTAÇÃO

Rosio Fernández Baca Salcedo1


Nilson Ghirardello2
Marta Enokibara3

Esta coletânea intitulada “Patrimônios na cidade


contemporânea” é fruto de esforço coletivo de professores do
Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGARQ),
da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), UNESP,
Campus de Bauru, em parceria com a Editora da ANAP, Associação
Amigos da Natureza da Alta Paulista.
Embora, relativamente jovem, o PPGARQ tem crescido tanto
em relação à importância de sua produção científica, como pela
demanda, cada vez mais intensa de interessados em suas vagas,
firmando-se rapidamente como um dos bons Programas da
Universidade Pública, no estado de São Paulo.
Os capítulos aqui apresentados são de autoria de conceituados
pesquisadores da UNESP, bem como de docentes ligados a outras
consagradas universidades do país e estrangeiras, que de alguma
maneira cobrem com seus trabalhos, encaminhados depois de
chamada por edital, as áreas de Teoria, História e Projeto, uma das
duas linhas de pesquisa de nosso Programa. Dessa forma, o leitor
encontrará artigos que focam a Cidade e o Patrimônio Arquitetônico
e Urbano. Tais temas possuem como estudo de caso urbes de portes

1
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, rosiofbs@faac.unesp.br
2
Doutor, Docente do PPGARQ – UNESP, nghir@faac.unesp.br
3
2
Doutora,Docente
Doutor, Docentedo
doPPGARQ
PPGARQ––UNESP,
UNESP,nghir@faac.unesp.br
marta@faac.unesp.br
3
Doutora, Docente do PPGARQ – UNESP, marta@faac.unesp.br
8

variados situadas em diversas regiões do país e da Europa. Uma das


características e preocupações de nosso Programa de Pós Graduação
é o olhar cuidadoso sobre a cidade pequena e média, fazendo-o se
distinguir de outros Programas, cujo foco é a metrópole. Tal olhar
reveste-se de especial interesse visto que as cidades pequenas e
médias são parcamente estudadas, permitindo-se, também,
desmistificar o senso comum que aponta que sua dimensão enseja
grau de complexidade menor nas pesquisas.
Dessa forma, convidamos a todos a terem o prazer de ler os
trabalhos aqui apresentados.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 9

Capítulo 1

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO DA VANGUARDA


RUSSA: RKM_SAVE URBAN HERITAGE. O PROGRAMA
EUROPEU CIUDAD4 COMO INTERFACE ENTRE UNIVERSIDADE,
CIDADE E PREFEITURA

Elio Trusiani5

INTRODUÇÃO

As novas economias de Mercado e os acelerados


investimentos imobiliários estão transformando o tecido urbano de
Kiev e Moscou. Este processo inclui edifícios ícones dos movimentos
do Avant-garde e Construtivismo soviéticos os quais, na ausência de
regulamentos adequados para a sua proteção, quando não são
destruídos ou abandonados, são objetos de recuperações
descuidadas. RKM_Save Urban Heritage6 opera neste cenário,
promovendo uma forte campanha para o reconhecimento do
patrimônio avant-garde e desenvolvendo um intenso
reconhecimento público e uma nova compreensão da importância

4
O presente texto é o resultado de textos, de Elio Trusiani, jà publicados, no livro Lucio
Carbonara (ed.), RKM Save Urban Heritage, Gangemi, Roma, 2012 e da apresentaçao na
Conferência Internacional do DOCOMOMO: “The survival of Modern. From Coffee Cup to Plan”,
Helsinki, 7-10 de agosto de 2012.
5
Prof. Doutor Elio Trusiani, coordenador técnico do projeto, desde seu início, torna-se o
responsável científico de 01.12.2011 até o seu final (2013); Lucio Carbonara foi o responsável
científico do início do projeto até 30.11.2011.
6
no seguinte link pode ser encontrar os nomens de todos os partecipantes e os materiais de
projetos: www.rkm_saveurbanheritage.eu
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global/local deste patrimônio e a necessidade de assegurar sua


conservação e valorização. As atividades propostas pela RKM são:
uma base de dados analítico descritiva sobre o patrimônio avant-
garde, projetos-piloto, visitas guiadas com aplicativos de internet,
workshops técnicos e acadêmicos. RKM opera em múltiplas frentes:
pesquisa, ampliação do reconhecimento, comunicação/divulgação,
planejamento espacial e promoção artística.

OBJETIVOS, CONTEÚDOS E SÍNTESES DAS ATIVIDADES


DESENVOLVIDAS

A finalidade do projeto RKM_Save Urban Heritage é o de


promover a salvaguarda, a recuperação, a valorização e a promoção
do patrimônio arquitetônico da avant-garde russa e do
construtivismo, a partir de ações de sensibilização da população local
e da opinião pública em geral, sobre a importância deste patrimônio
e do tecido urbano limítrofe. Atualmente, ambos se encontram em
perigo, comprometidos pelo descuido ou sujeitos a transformações
urbanísticas problemáticas que ocorrem em Moscou e Kiev.

Figura 01 - Capa Publicação RKM


Patrimônios na Cidade Contemporânea - 11

RKM_Save Urban Heritage preocupa-se com este tema, com


um empenho que envolve desde instituições, empreendedores e
cidadãos até as propostas de tutela e de valorização dos edifícios
e/ou partes da cidade orientadas para novas destinações e
interpretações; tudo isto sempre com respeito ao valor histórico e
simbólico deste patrimônio, que constitui um dos pilares da cultura
arquitetônica contemporânea. Neste sentido, RKM iniciou um
processo em condições de criar um conhecimento novo sobre as
potencialidades não expressas desse patrimônio, revelando o papel
efetivo de ponta-de-lança para a economia local.
No âmbito da cooperação – constituída pela municipalidade de
Kiev e Moscou, da Sapienza Università di Roma/Departamento DATA,
da Universidade Mghakis de Moscou, da Universidade Nacional de
Arquitetura e Construção de Kiev, com a associação da Fundação
Shukov Tower e Docomomo Internacional - a Municipalidade de
Roma, na qualidade de líder, guiou as atividades para a transferência
de práticas exemplares e de metodologias consolidadas no âmbito da
tutela e valorização do patrimônio histórico e da renovação urbana
de qualidade. Esta transferência de know how articula-se em quatro
contribuições específicas: científica (banco de dados), participativa
(workshops técnicos e acadêmicos, conferências, visitas guiadas),
projetuais (projetos piloto, itinerários turísticos, sinalização
informativa) e experimental (aplicativos de internet).
A base de dados para a catalogação dos edifícios adotou o
conjunto de meta-dados Dublin Core como base de uma ficha
multifinalitária. Este sistema, constituído de elementos descrito-
semânticos padronizados foi configurado para permitir a
identificação de modo inequívoco do objeto arquitetônico de acordo
com suas principais informações que o caracterizam, como: nome
original, autor(es) do projeto, ano de realização, endereço, descrição
histórico-tipológica (edifício e área urbana de entorno), mapeamento
sobre aerofotografia online (GoogleMap), link com a imagem em
12

formato digital e, finalmente, a bibliografia internacional de


referência. Para a ficha principal do objeto arquitetônico foram
organizadas as conexões com as fichas de documentos secundárias,
capazes de receber todo o tipo de material (gráfico, cartográfico,
fotográfico, textual, bibliográfico, de áudio, de vídeo) relacionado.

Figura 02 - Kiev_FIRST SOVIET DOCTORS’ HOUSING COOPERATIVE 1931-1939

A realização de workshops técnicos teve um papel relevante


uma vez que era parte integrante das atividades de sensibilização nos
problemas de tutela e valorização das arquiteturas, além de
momento criativo de encontro, confronto e diálogo intercultural
entre as partes. Os workshops foram organizados com a finalidade de
oferecer um panorama internacional dos projetos de
valorização/requalificação urbanas que, apesar de apoiados sobre
pesquisas e estudos de exequibilidade das ações específicas de reuso
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 13

das estruturas imobiliárias, da avaliação de custo/benefício no


âmbito urbano, da atividade de marketing do território e do turismo
para a revitalização da cidade, atuaram na constante atuação
conjunta entre administradores locais e cidadãos. Tanto em Moscou
quanto em Kiev, os workshops contaram com a participação de
empreendedores, cidadãos, administradores locais, estudantes,
expoentes do mundo acadêmico e jornalistas que garantiram uma
cobertura eficaz na mídia por meio de artigos, entrevistas e matérias
televisivas. O êxito dos workshops foi sintetizado na escolha
acordada dos percursos ilustrativos dos dois Guide Tour, das áreas
para os projetos piloto e na coleta dos elementos úteis para o
desenvolvimento do aplicativo de internet.
Os projetos piloto representam a primeira fase da proposta
projetual de RKM. Trata-se de duas hipóteses para a recuperação dos
centros históricos de Kiev e de Moscou. O projeto piloto para a área
de Santo Sofia em Kiev propõe estratégias de requalificação urbana e
identifica percursos turísticos onde a arquitetura construtivista torna-
se marco da paisagem urbana e histórica. Além disso, avançam-se
hipóteses de reutilização dos espaços internos dos pátios residenciais
de uma amostra de quarteirão nessa área. No caso de Moscou, o
projeto piloto propõe um esquema de estatégias de requalificação da
área de Shabolovskaya, limítrofe ao centro histórico, caracterizada
por uma forte concentração de permanências construtivistas,
monumentais (Shukov Tower, Parque Gorky, etc.) e residenciais. O
plano identifica objetivos, intervenções e ações que vão do restauro
a renovação urbana, dando respostas às instâncias de
tutela/valorização do patrimônio cultural e, ao mesmo tempo, às
questões emergentes de reconexão urbana entre as partes da cidade.
Propõe-se um processo programático e um percurso cultural no qual
o reconhecimento dos valores do patrimônio histórico-cultural sobre
a avant-garde russa e o construtivismo é promovido também como
âncora qualitativa e econômica para um projeto de cidade.
14

Neste cenário multiescalar, insere-se o projeto da sinalização


informativa das obras, respondendo à exigência de uma comunicação
correta das características histórico-artísticas dos bens
arquitetônicos, sobretudo quando se trata como neste caso, de obras
que pertencem a um período histórico ainda muito recente para que
possa entrar automaticamente num sistema de tutela e salvaguarda
codificado pelas instituições locais, apesar de que seu valor cultural
seja universalmente reconhecido.

Figura 03 - Kiev_REGIONAL MILITIA RESIDENTIAL BUILDING 1932-1934 PAVEL SAVICH


Patrimônios na Cidade Contemporânea - 15

Sempre sob uma ótica de sensibilização e salvaguarda do


patrimônio arquitetônico, RKM propõe uma série de intervenções in
loco, sendo que uma das principais é a definição de um sistema
integrado de percursos turísticos que evidenciam alguns dos edifícios
construtivistas mais importantes ainda existentes. Nove itinerários
em Moscou e quatro em Kiev, alguns mesclados nas propostas de
recuperação urbana e identificados a partir de um apurado
mapeamento do território, são evidenciados por uma sinalização
dedicada, que define um sistema de navegação urbana de leitura
simples permitindo aos usuários a construção do seu próprio
percurso turístico. A cada etapa do itinerário corresponde uma
sinalização de comunicação que identifica os edifícios construtivistas
e os outros monumentos de valor histórico-artístico, definindo suas
características principais. A sinalização contém indicações gerais
sobre o autor do edifício, desenhos e gráficos relacionados, uma
breve descrição do edifício, as dimensões e o tempo necessário para
alcançar a etapa sucessiva. Os mapas gerais dos itinerários são
inseridos em alguns pontos estratégicos tais como estações do
metrô, repartições públicas, locais de encontro. Deste modo, o
usuário tem à disposição um traçado infográfico que o guia através
da exploração da cidade e da sua arquitetura. Do plano ao projeto,
do projeto à utilização da internet de modo experimental: esta é uma
passagem inovativa que RKM propõe, conjugando patrimônio
cultural e inovação instrumental, por meio de aplicativos de internet
dos itinerários turísticos com as informações histórico-culturais
relacionadas.
Do ponto de vista acadêmico, o projeto forneceu bolsas de
estudos, e cobriu os gastos com a viagem dos estudantes que
participaram nos três workshops de projeto urbanístico e paisagístico
organizados em Roma, Kiev e Moscou, com a participação de
estudantes italianos, ucranianos e russos. No interior das temáticas
16

de projeto, enfim, foram disponibilizadas três bolsas de estudo de


quatro meses cada um, pelos Programas Internacionais da Sapienza
para trabalhos de conclusão de curso realizados no exterior. Assim,
foi criada uma sinergia interessante entre entes e canais de
financiamento diversos para valorizar o trabalho comum entre
municipalidades, profissionais, professores, pesquisadores e
estudantes. A operação integrada deu ótimos resultados, com a
elaboração de três trabalhos de conclusão de curso, no âmbito do
Laboratório Experimental de Trabalhos de Conclusão RKM, na área
de Shabolovskaya em Moscou: o plano estratégico (Chiara Amati,
Curso de Láurea em Planejamento do Território, da Cidade e do
Ambiente), o plano para a requalificação paisagística do Parque
Gorky (Ermelinda Cosenza, Curso de Láurea em Arquitetura da
Paisagem), e a proposta de reuso do pavilhão Zulthovsky (Michele
Alessandrini, Curso de Láurea em Arquitetura).
Como produto institucional, o projeto RKM assinou um acordo
geral, um protocolo executivo e um protocolo aditivo entre a
Sapienza/D.A.T.A. e a Universidade KNUCA de Kiev para as atividades
de pesquisa e estudo entre docentes, pesquisadores e estudantes das
duas universidades, assim como havia sido feito no passado para o
Programa “Monkunstruct” (IBBP - Support to EU-Russia Cultural
Cooperation Initiative), no final do qual foi concluído o acordo
bilateral com o Instituto de Arquitetura de Moscou (Marhi).
Os resultados do projeto foram apresentados na Conferência
Internacional do DOCOMOMO: “The survival of Modern. From Coffee
Cup to Plan”, que ocorreu entre 07 e 10 de agosto de 2012 em
Espoo/Helsinki; a publicação final do projeto, Lucio Carbonara (ed.),
RKM Save Urban Heritage, Gangemi, Roma, 2012, recolhe as
atividades desenvolvidas, os resultados obtidos e as contribuições de
todos os envolvidos.
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RKM_SAVE URBAN HERITAGE: A OPORTUNIDADE DE TROCA DE


KNOW HOW. OS PROJETOS PILOTO

Em 2008, a municipalidade de Roma aprovou seu Plano


Diretor, um marco na história do planejamento urbano romano e
uma reflexão conceitual e metodológica de importância considerável.
A abordagem metodológica, com referência particular à história e
ações para a sua proteção, onde a atualização e reforço é o
elemento-chave na troca de conhecimento entre a experiência de
Roma e os projetos piloto de Kiev e de Moscou como parte do
projeto RKM_Save Urban Heritage. Neste sentido, é particularmente
importante focar na superação do antigo conceito de centro
“histórico”, ligado à parte mais antiga do centro da cidade, e a
utilização do conceito de “cidade histórica” que é um dos elementos
chave no plano de Roma, de tal modo que se torna um slogan
popular: do centro histórico à cidade histórica.
A transição do conceito de centro histórico para cidade
histórica significou a ultrapassagem de um conceito fechado e nos
chamar a atenção sobre o enorme desenvolvimento potencial do
patrimônio o qual, apenas com este plano foi considerado em sua
complexidade. Considera que as diferenças de valores que
caracterizam partes diferentes da cidade, consegue descrever,
preservar e, ao mesmo tempo, sugerir novas e estratégicas relações
programáticas entre setores, tanto no interior quanto entre a cidade
histórica e a cidade de formação mais recente, provavelmente para
consolidar e transformar. Isto supera o modo de tratamento unitário
para setores inteiros, faz a leitura desses tecidos, considera a
necessidade de tentar mudar, ou voltar para a cidade histórica na
difícil tarefa de ajustar o valor, redirecionar estratégias de
desenvolvimento, construir as condições para o projeto, dando-lhe
um papel fundamental no cenário das ações de projeto fornecidas.
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No Plano de Roma, conservação e transformação são


conduzidas de duas formas: primeiramente, de acordo com uma
abordagem regulatória e, depois, de forma programática. A primeira
é restrita a tecidos urbanos homogêneos enquanto que a segunda é
direcionada para áreas urbanas estratégicas, para ativar dinâmicas
também transformativas. A história tem lugar no tecido urbano
histórico e em espaços abertos, ao contrário do que anteriormente
acontecia com o uso do zoneamento classificados como zona A. Isto
mostra modos diferentes de agregação e de conformação
morfológica, arquitetura e construção de edifícios e de espaços
abertos, a evolução/modificação urbana e arquitetônica da cidade
nas suas diferentes modalidades expressivas. As áreas de
planejamento estratégico, no entanto, representam a espinha dorsal
do plano e sintetizam os resultados a pesquisa instrumental capaz de
definir uma estrutura de fatos urbanos consistentes de diferentes
categorias e padrões analíticos ligados por relações estruturantes em
referência ao “sistema dual” de valores e funções.
Ao lado da política de proteção e preservação, o Plano de
Roma identifica uma forte inovação em relação à regeneração
urbana em termos de mudanças e de transformações, reconhecendo
o sistema de diferenças, o valor da história e a história da cidade, o
primeiro recurso para um desenho urbano sustentável, natural e do
ambiente físico. Portanto, a proteção e a preservação não são mais
consideradas apenas como uma limitação ou gatilho, mas como um
estímulo para novas entradas nos processos de consolidação urbana
e ajustes na cidade de acordo com o processo em andamento que se
move do centro para a cidade existente até o território histórico. Um
processo programático e um caminho cultural, onde o
reconhecimento dos valores do patrimônio é tomado como ponto de
partida para o desenho de cidades, a cultura histórica e
contemporânea e o patrimônio histórico são considerados, além dos
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 19

seus valores próprios, como uma oportunidade, como uma


“qualidade e pêndulo econômico” para o projeto da cidade
contemporânea.
A tentativa de utilizar a experiência romana no interior do
projeto piloto responde, de um lado, à finalidade do próprio
programa e, de outro, à curiosidade/vontade acadêmica,
compartilhada com os colegas estrangeiros, de dar início um
raciocínio comum em termos metodológicos e instrumentais como
potenciais temas futuros de pesquisa conjunta, sobretudo no âmbito
de programas voltados especificamente às estruturas acadêmicas.
Sob esta ótica foram conduzidas experiências metodológicas e
projetuais das duas áreas de estudo. Como escreve Silvia D’Astoli na
publicação final do programa: “Os Âmbitos dos Programas
Estratégicos para a área no entorno do Complexo de Santa Sofia
identifica os elementos que lhe são estruturais, indicando o
perímetro da assim denominada ‘High City’ e o perímetro do
‘Complexo de Santa Sofia’”. Edifícios de valor histórico, de valor
arquitetônico, edifícios da avant-garde são indicados. Após, uma
estrutura de Objetivos e Esquemas de Desenho é definida,
identificando duas polaridades, definidas como núcleos importantes
tanto do ponto de vista como das importantes funções de identidade
e valor como atrações potenciais. Também neste contexto, destaca-
se o potencial de atratividade, mesmo para o turismo, foram
definidos dois tipos de rotas: primária e secundária, que conectam
outras arquiteturas da avant-garde a outros “elementos de recursos”
que estão presentes na área e seus entornos. Ações estratégicas são
então definidas tais como reciclagem e redefinição das margens, o
aprimoramento das áreas de pedestres, particularmente relevantes
para o projeto piloto, a reestruturação de alguns pontos estratégicos
como a ponte de pedestres, algumas margens, entre outras. Foram
também identificados pontos de vista e nós existentes a serem
explorados, mas também os que precisam de um projeto, já que se
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encontram no âmbito de toda a área. Também é mostrado que áreas


verdes devem ser integradas em uma visão global mais ampla do
plano estratégico com papel central para as artes, entretenimento,
cultura (...)
Assim como para Kiev, o projeto piloto para a área de
Serphukovskaya-Usachevka em Moscou, no entorno da Fundação
Shukhov Tower, procura identificar circuitos não apenas com
propósitos turísticos, no interior de uma área com características
significativas do ponto de vista da identidade histórica dos lugares de
Moscou, como o Monastério Novodevichiy e o Monastério Donskoy,
além do Parque Gorky, só para nomear alguns. (...) É uma área
estratégica, rica em pré-existências de considerável valor, algumas
das quais são bastante ignoradas como o Complexo Residencial
‘Khavsko-Shabolovsky’ (1927-1930). (...) Como observado para o
projeto piloto de Kiev, a abrangência dos Âmbitos de Planejamento
Estratégico contem um tema particularmente interessante sobre o
sistema de caminhos para a descoberta e desenvolvimento da
arquitetura construtivista. De fato, nesta área está presente uma
grande concentração de assentamentos residenciais e edifícios
isolados. A chave para uma conexão melhor entre áreas diversas e as
diferentes funções tem sido identificar alguns caminhos específicos,
criando uma espécie de ‘corredor’, uma ‘rede’ de rotas preferenciais
sobre o movimento de pedestres, tocando os elementos estruturais
identificados nesta área.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 21

Figura 04 - Kiev_REGIONAL MILITIA RESIDENTIAL BUILDING 1932-1934 PAVEL SAVICH

A EXPERIMENTAÇÃO ACADÊMICA

O papel da Sapienza Universidade de Roma. A participação da


Sapienza Universidade de Roma no projeto RKM_Save Urban
Heritage inicia com o ex-Departamento de Planejamento Territorial e
Urbanístico (D.P.T.U.) já há alguns anos unificado com o ex-
Departamento I.T.A.C.A., no Departamento de Planejamento, Design,
22

Tecnologia da Arquitetura (P.D.T.A.). Este esclarecimento é


necessário já que é exatamente com o DPTU que é iniciada a
aventura no projetar na Europa e com a colaboração das estruturas
acadêmicas russas no âmbito do Projeto Moskonscruct. Uma vez que
RKM_Save Urban Heritage é a continuação e aprofundamento desse
projeto, foi possível reforçar as relações institucionais existentes,
ampliando a colaboração a novas instituições russas e ucranianas,
fornecendo a oportunidade de dar início profícuas colaborações
bilaterais posteriores, como os novos parceiros envolvidos.
O tema da tutela e salvaguarda do patrimônio cultural sempre
foi um dos temas de pesquisa privilegiado pelo Departamento, além
dos percursos pessoais dos docentes e especialistas externos
envolvidos no grupo de pesquisa. A possibilidade de enfrentar estes
temas em realidades diversas, tanto acadêmicas quanto
administrativas, representou a motivação inicial e a questão de
pesquisa que motivou atuar na parceria internacional.
O papel desempenhado pelo grupo de docentes do
D.A.T.A./Universidade Sapienza articulou-se em diversas atividades:
coordenação geral do grupo de pesquisa, formado por pesquisadores
e professores internos ao D.A.T.A. e por consultores externos que
forneceram sua contribuição setorial, que se refere informação
específica; apoio científico ao projeto sob a forma de supervisão geral
de algumas fases projetuais; uma intensa atividade didática e de
formação com os alunos dos diversos cursos de graduação que
ocorrem na faculdade de arquitetura; pesquisa e implementação de
recursos humanos e econômicos; atividade técnico-administrativa e
de gestão do projeto e da parceria italiana.
Foi exatamente o aspecto didático-formativo o que
representou um momento importante para a Sapienza, cujas
atividades principais foram resumidamente: a) organização de um
workshop de projeto urbanístico e paisagístico, dedicado à seleção
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 23

dos alunos italianos que deveriam fazer as viagens de estudo a Kiev e


Moscou; b) participação com os alunos do curso de graduação de
Arquitetura da Paisagem nos workshops internacionais de projeto em
Kiev e Moscou; c) implementação dos recursos do projeto, graças a
quatro bolsas de estudo disponibilizadas pelo Setor Internacional da
Sapienza/IX Ripartizione, para o desenvolvimento de trabalhos finais
de graduação no exterior: os trabalhos foram desenvolvidos nas
áreas piloto do projeto RKM_Save Urban Heritage, contribuindo
deste modo ao leque de opções propositivas do projeto, além de
possibilitar uma sinergia entre estudantes, universidades,
profissionais e agentes locais, na medida do possível, para uma
convivência compartilhada; c) envolvimento dos alunos do curso de
graduação em Arquitetura da Paisagem nas atividades de pesquisa
sobre o tema da recuperação dos pátios residenciais e sua relativa
proposta de redesenho e de refuncionalização dos espaços abertos,
na esteira de solicitações fornecidas pelos colegas ucranianos
durante os levantamentos.
Por fim, é necessário sublinhar de que modo RKM constituiu
um momento interessante de troca cultural entre agentes e
instituições diferentes, além de oportunidade de reforço da vocação
internacional da universidade romana, muito embora, no âmbito de
projetos não especificamente dedicados ao mundo acadêmico e, por
isto mesmo, talvez, às vezes, distantes de alguns critérios de pesquisa
objetivos e científicos básicos.
24

Figura 05 - Moscou_SHABOLOVKA RAIDO RADIOTOWER 1919-1922


VLADIMIR SHUKHOV

O workshop como instrumento didático: jovens ideias para o


patrimônio de vanguarda. A atividade didático-formativa dos
workshops de projeto foi articulada em três momentos
fundamentais, dois de caráter internacional (Kiev e Moscou) e um
nacional (Roma), os quais tiveram a participação dos alunos das
universidades envolvidas nos seus diversos currículos de formação
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 25

sobre a arquitetura da paisagem. Foram exatamente as habilidades


diferentes entre os alunos que forneceram os pressupostos para os
momentos de confronto, debate e discussão, no interior de cada
grupo, seja em termos de abordagem metodológica sobre a temática
objeto de projeto, seja em termos de escolhas projetuais propostas.
A riqueza das ideias que resultou desses momentos de diálogo e,
porque não, enfrentamento, encontrou nas soluções finais propostas
uma integração interessante e uma notável capacidade expressiva e
força comunicativa de conjunto, apesar de pontos de partida quase
sempre bastante distantes. Neste sentido, a experiência é
seguramente de registro como uma nota positiva do projeto, do qual
o workshop, tomado como papel de instrumento da prática de
projeto, sai certamente reforçado como momento didático de grande
relevância para os futuros arquitetos e paisagistas.
O trabalho produzido permitiu aos estudantes, primeiramente,
aproximar-se do estudo da arquitetura de vanguarda, reforçar o
conhecimento pelas viagens de estudo e de dar início a um processo
de sensibilização sobre o papel que o mesmo teve no âmbito da
história da arquitetura do século XX. Ao mesmo tempo, o
experimento de campo permitiu a oportunidade de comparar as
relações entre as arquiteturas e as cidades sob a ótica das três
vertentes projetuais de tutela, valorização e transformação.
Resumidamente, as atividades desenvolvidas foram as seguintes:
 Workshop internacional de projeto urbanístico e
paisagístico “A recuperação do espaço aberto nas
periferias historicas de Roma: Trullo e Tufello” (Faculdade
de Arquitetura/Sapienza Universidade de Roma,
setembro/outubro 2010);
 Workshop internacional de projeto urbanístico e
paisagístico “Renovação urbana dos espaços abertos do
centro histórico de Kiev” (Universidade KNUCA, Kiev,
março de 2011);
26

 Workshop internacional de projeto urbanístico e


paisagístico “Renovação urbana e novas paisagens para o
Parque Gorky em Moscou” (Club Rusakova, Moscou, abril
de 2011).

Os workshops internacionais foram desenvolvidos,


substancialmente, num período de quatro ou cinco dias e
envolveram professores, pesquisadores, doutores de pesquisa e
doutorandos que desenvolveram a função de tutores à distância,
agindo como maestros voltados à tecitura dos fios de uma tela de
trabalho que não levava em consideração apenas “o projeto”, mas,
antes mesmo deste, um trabalho voltado à compreensão, onde as
abordagens metodológicas eram distantes e exatamente por isto,
ricas de sugestões e potencialidades, nem sempre explícitas aos
alunos. Aqui ocorreu, em parte, o encontro entre professores e
alunos e a riqueza do workshop permitiu a oportunidade de se
confrontar métodos e instrumentos de ensino. Um momento de
reflexão e de confronto comum que, frente à experiência madura
nestes últimos anos dos professores da Sapienza Universidade, é
importante sublinhar: trata-se de colocar em campo as duas palavras
chave de flexibilidade e integração, entorno das quais se constrói o
projeto em que as diferenças das diversas escolas tornam-se riquezas
para o projeto e as únicas abordagens consolidadas e que deveriam
abrir espaço para abertura crítica e ao diálogo com as múltiplas
contribuições disciplinares dos envolvidos.
Como comentado anteriormente, além dos resultados obtidos
nos projetos, que de algum modo são influenciados pela breve
duração do trabalho de projeto e em parte pelas dificuldades
linguísticas, ressalta-se, enfim, como mérito da experiência realizada,
a capacidade de síntese adquirida e demonstrada por parte dos
alunos, além da experiência das relativas exposições. A apresentação
dos trabalhos de projeto restituiu um saber contar o próprio projeto,
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 27

o seu significado explícito e implícito, não apenas utilizando com


grande familiaridade os instrumentos de representação gráfica e da
comunicação, mas, sobretudo, um saber contar com notável
capacidade crítica os elementos estruturais, os caráteres materiais e
imateriais, a riqueza dos lugares de projeto propondo ideias de
projeto estimulantes e inovadoras, superando a margem de
liberdade que a experiência acadêmica permite.

Figura 06 - Moscou_ZUEV COMMUNAL WORKERS’ UNION CLUB 1927-1929 ILYA GOLOSOV


28

A experimentação didática: síntese entre pesquisa e


europrojeto. O projeto piloto em Moscou possibilitou, no âmbito da
duração temporal do projeto, embora com modalidades e tempos
diferentes das outras atividades, experimentar e aplicar a
transferência de know-how italiano, por meio da experiência
acadêmica na elaboração de alguns trabalhos de conclusão de curso
de graduação.
São três projetos de natureza diferentes e que respondem aos
diversos percursos de estudo dos cursos de graduação aos quais os
alunos pertencem, mas que, no seu conjunto, integram-se
perfeitamente num projeto unitário de requalificação urbana.
Enfrentam, em termos analíticos e de projeto, três escalas do projeto
urbanístico: urbanística, paisagística e arquitetônica. Os trabalhos de
conclusão, embora com temas e abrangências setoriais, adotam um
percurso metodológico de análise e de projeto comum, no qual se
abrem percursos específicos de estudo que demonstram o trabalho
de pesquisa bibliográfica sobre a arquitetura, de vanguarda ou não,
desenvolvido no campo limitado do período de duração da bolsa de
estudo.
Chiara Amati desenvolveu o tema da recuperação urbana da
área. Trata-se de um projeto de requalificação baseado
essencialmente nas seguintes palavras chave: tutela/recuperação;
conexão e integração. A recuperação urbanística da área é feita pela
definição de um percurso metodológico claro no qual as fases de
conhecimento, da avaliação crítica e do projeto trazem a
identificação das estratégias e das prioridades das intervenções para
os âmbitos identificados: ações que respondem pontualmente à
questão de tutela, recuperação, projeto e transformação que vêm da
fase do diagnóstico. Exatamente neste trabalho pode-se encontrar a
tentativa de transferência do assim chamado know-how italiano no
campo da recuperação urbana, sobretudo em termos de processo e
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 29

programação. É aqui que o trabalho procura adaptar a experiência


romana dos âmbitos estratégicos de programação e dos programas
complexos na realidade de estudo a partir de estratégias e objetivos
voltados à realidade local, sem perder de vista a estrutura
organizacional e claramente não legislativa da experiência romana.
Ermelinda Cosenza enfrentou o tema do projeto paisagístico
do Parque Gorky, confrontando-se com a memória histórica do
parque: uma memória material e imaterial que guiam
inevitavelmente as fases de conhecimento e do projeto. O
reconhecimento de “partes de parque” dos diferentes valores e das
estruturas física e natural diversas, juntamente com uma leitura das
múltiplas relações de interações com a cidade circundante
caracterizam as escolhas de projeto de acordo princípios precisos.
Trata-se de intervenções de conexão entre interior e exterior com a
cidade, a redefinição de uma centralidade/limite entre as duas almas
do parque, morfológica e formalmente diversas: a histórica, que
deriva da memória geométrica do desenho de Melnikov e aquela
caracterizada por uma implantação predominantemente
naturalística. O projeto trabalha com as palavras chave de
salvaguarda, valorização e transformação, introduzindo alguns
conceitos da Convenção Europeia da Paisagem na realidade
moscovita e abrindo, neste sentido, a discussão em direção a campos
disciplinares mais amplos nos quais se baseiam as operações de
projeto paisagístico.
Michele Alessandrini ocupou-se, enfim, do reprojeto do
pavilhão Zoltovsky do arquiteto Vlaslov, atualmente em estado de
“ruína estrutural”, em função do que restou. A intervenção do
projeto, apesar de possuir uma ótica de salvaguarda e recuperação
da estrutura existente, é voltada à criação de espaços museológicos
de caráter permanente e temporários. De fato, o projeto buscou
quase que exclusivamente a reorganização dos espaços de exposição
procurando estabelecer um diálogo contínuo entre o pavilhão e o
30

Parque Gorky, do interior do qual surge. Tratou de repensar uma


centralidade arquitetônica-funcional do mesmo parque. A ligação
exterior/interior entre o edifício e as suas áreas de abrangência, além
da própria relação com o parque e a fruição recíproca parecem
reconduzir, também neste caso, às palavras chave da intervenção na
escala urbana (conexão, integração), oriundas, porém, da escala do
projeto de arquitetura.

Figura 06 – Moscou_ZIL AVTOZAVODA PALACE OF CULTURE 1931-1937


A. VESNIN, B. VESNIN, L. VESNIN

BREVE REFLEXÃO: ALÉM DO PROGRAMA/PROJETO, QUAL O PAPEL


PARA O PROFESSOR/ARQUITETO/URBANISTA?

Frente ao exposto acima, é necessário evidenciar como surge


um novo papel para a figura do professor
universitário/arquiteto/urbanista, ou seja, um papel que se insira nas
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 31

inovações das práticas entre novas demandas sociais e experiências


internacionais. Delineia-se sempre mais um papel multi-escalar, no
interior do europrojeto, que se articula entorno dos quatro “Ps”:
processualidade, participação, programação e projeto. No caso do
projeto Europeu Cidade “RomaKievMoscou_Save Urban Heritage”
este papel se torna um fio vermelho de conexão, não apenas entre
passado e futuro, mas entre as diversas ações e os diversos atores
em jogo. Uma figura que se move entre diferentes instituições e
saberes, entre ações de sensibilização e participação com atores,
locais ou não, entre atividade didática intercultural e atividade
propositiva-projetual. Ações e medidas diversas que privilegiam
substancialmente a dimensão de processo, mas que, em alguns
casos, recuperam e valorizam a competência técnica e projetual das
disciplinas arquitetônica e urbanística.
No interior deste cenário delineia-se uma figura cultural que
assume um papel múltiplo que serpenteia entre a coxia e o palco: co-
idealizador do projeto, co-promotor da proposta, referência científica
para o percurso metodológico adotado, maestro das ações de
formação e, enfim, ator não protagonista pelas participações
pontuais de caráter projetual. As atividades desenvolvidas no interior
do objetivo fundamental de transferência de know-how abrem uma
reflexão e algumas perspectivas de trabalho sobre as quais se devem
dar atenção pelas inovações didático-pedagógicas e disciplinares:
estas perspectivas exaltam, sempre mais, o papel de diretor de um
processo, abrem e reforçam o cenário didático-formativo aos
instrumentos da ponte de aprendizado e do aprendizado direto nos
locais de pesquisa e projeto – impondo tempos rápidos para o
conhecimento e ainda mais rápidos para a capacidade de síntese
multidisciplinar – recuperam a dimensão técnica e projetual como
êxito de escolhas compartilhadas com o saber teórico e técnico local,
derivados da aplicação dos instrumentos didáticos e profissionais
tratados acima.
32

BIBLIOGRAFIA

Carbonara Lucio (ed.), RKM Save Urban Heritage, Gangemi, Roma, 2012.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 33

Capítulo 2

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO LEGADO PELO IPESP


DURANTE O PLANO DE AÇÃO DE CARVALHO PINTO
(1959 – 1963) NA ALTA PAULISTA

André Augusto de Almeida Alves7


Hélio Hirao8

O período que se estende da metade da década de 1950 até os


primeiros anos da década de 1960 é marcado por iniciativas
emblemáticas de planejamento estatal, que vão desde o amplamente
conhecido Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956 - 1961), até
uma série de iniciativas estaduais, de que se destaca o Plano de Ação
promovido pelo governador de São Paulo, Carlos Alberto Alves de
Carvalho Pinto (1959 - 1963).
Tais planos coincidem com o auge da arquitetura moderna
brasileira. Enquanto a construção de Brasília constitui meta-síntese
do Plano de Metas; o Plano de Ação e sua arquitetura marcam o
território, as cidades e os espaços públicos do estado. A atuação de
profissionais de arquitetura e urbanismo na Equipe Técnica do Plano
de Ação, em repartições públicas como a DOP e o Setor de Projetos
da Secretaria de Agricultura, e em escritórios privados de projetos,
resulta numa produção massiva de planos, projetos e obras
emblemáticas deste momento histórico.

7
Doutor, Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de
Maringá, aaaalves@uem.br
8
Doutor, Professor do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da
Universidade Estadual Paulista- Presidente Prudente, hirao@fct.unesp.br
34

O presente capítulo se debruça sobre o patrimônio


arquitetônico legado pelo Ipesp durante o governo de Carvalho Pinto
na região da Alta Paulista, aqui considerada enquanto a faixa de
terras localizada entre os rios do Peixe e Aguapeí, a partir de
Piratininga, cidade planejada inicialmente pela Cia. Paulista de
Estradas de Ferro para ser o grande entreposto comercial de seu
tronco oeste. Apresenta um breve quadro do Plano de Ação, que
valoriza sua inserção no conjunto de iniciativas governamentais de
Carvalho Pinto e assim permite considerar mais amplamente seu
conteúdo e sentido político; a seguir, fornece um levantamento deste
acervo arquitetônico, em que se identificam os agentes envolvidos
em sua produção e se define a localização de cada exemplar no
território. Os dados apresentados são preliminarmente analisados
no que concerne aspectos atinentes à sua arquitetura, a partir de
casos selecionados. Considera-se que o levantamento de tal
patrimônio edificado, assim contextualizado, seja relevante para sua
valoração e preservação pelas comunidades locais, assim como pelos
usuários dos prédios elencados.

PLANEJAMENTO ESTATAL E O PLANO E AÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS


E REALIZAÇÕES FÍSICAS

Carvalho Pinto e seu Plano de Ação enfrentam os desafios de


um estado em processo de transformação, cuja população urbana
ultrapassa a população rural e cujas participações do setor industrial
e do setor primário no PIB do estado invertem-se no período que vai
do fim da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1950
(Alves, 2016). Um curto intervalo de tempo em que sua capital
cresce vertiginosamente e se consolida como o maior centro
industrial do país, ao mesmo tempo em que a fronteira agrícola
ultrapassa os limites do estado. Emblemática desta outra face do
processo de modernização paulista, ligada ao avanço das frentes de
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 35

colonização e das redes de infraestrutura, à urbanização do território


e sua incorporação ao processo produtivo, é a chegada do ramal
oeste da Cia. Paulista de Estradas de Ferro às margens do rio Paraná,
em princípios da década de 1960.
Diante de quadro político, social e econômico de tal
complexidade, o Plano de Ação, considerado no conjunto de
iniciativas do governo Carvalho Pinto, é capaz de revelar o seu
verdadeiro conteúdo e sentido político.
Carvalho Pinto elege-se governador pela coligação liderada
pela UDN – União Democrática Nacional – e PDC – Partido Democrata
Cristão. Sucede Jânio Quadros, de quem havia sido secretário de
finanças tanto na prefeitura quanto no governo de São Paulo.
Distanciando-se da aliança entre PSD –Partido Social Democrático – e
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro –, dominante no cenário nacional
e que culmina com Juscelino Kubitschek, o governo de Carvalho Pinto
e sua atividade de planejamento permitem ver as nuances do projeto
desenvolvimentista então vigente.
As posições políticas e de governo de Carvalho Pinto são
visíveis na adoção de instrumentos inovadores de gestão financeira e
no tratamento conferido às questões social, agrária e do capital
estrangeiro.
O próprio plano busca equilibrar-se em posição intermediária,
diante do intenso embate ideológico sobre o planejamento estatal.
Justapõe a necessidade de intervenção econômica estatal às virtudes
da livre iniciativa, sempre preconizando o avanço da última (São
Paulo (Estado), 1959). As análises conjunturais apresentadas no
plano e nas Mensagens à Assembleia Legislativa (São Paulo (Estado),
1960, 1961, 1962) não mencionam certas medidas econômicas do
governo federal que promovem a rápida industrialização do estado
de São Paulo durante a vigência do Plano de Metas, mas que se
contrapõem aos interesses das elites agrária e industrial local, e
elogiam as que as beneficiam diretamente.
36

Técnicas de planejamento associam-se a instrumentos


inovadores de gestão pública orçamentária para a época, como o
orçamento plurianual, dissociação de contas de custeio e de
investimento, o mecanismo de créditos adicionais. A lei 5444 de
17/11/1959, que “dispõe sobre as medidas financeiras relacionadas
ao Plano de Ação”, também cria diferentes fundos para a produção
de infraestrutura física para a educação, ensino superior e pesquisa,
financiamento industrial e expansão agropecuária. Também autoriza
a subscrição de ações de companhias hidroelétricas e outras, ligadas
ao armazenamento e abastecimento.
O Plano de Ação possui caráter desenvolvimentista, concepção
norteada por realizações físicas, e distribui os investimentos em três
setores, assim subdivididos: infraestrutura (42%) – energia, ferrovias,
rodovias, aeroportos, portos e navegação e pontes municipais –,
expansão agrícola e industrial (27%) – fundos destinados à
agropecuária e indústria, além da constituição de uma rede de
experimentação e fomento agropecuário e abastecimento – e
melhoria das condições do homem (31%) – educação, cultura e
pesquisa, justiça e segurança pública, saúde pública e sistemas de
água e esgoto (São Paulo, 1959: 44).
O setor agrário é onipresente na gama de iniciativas
governamentais, bem como nos três setores do Plano de Ação. Suas
demandas são atendidas em diferentes frentes, desde fundos de
financiamento, investimentos em instituições de pesquisa existentes
e criação de novos, infraestrutura para o escoamento e
armazenamento da produção, além da constituição de toda uma
rede de fomento e assistência técnica agropecuária, por meio da
construção de prédios para chefias de extensão agrícola, diretorias
regionais agrícolas e casas de lavoura na maioria dos municípios
paulistas.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 37

Tais prédios, assim como muitos outros destinados à educação,


saúde e segurança e justiça, são produzidos pelo Ipesp – Instituto de
Previdência do Estado de São Paulo. Nesta modalidade de
investimento de seus recursos previdenciários, o instituto recebia os
terrenos em doação de prefeituras, proprietários ou entidades, e os
prédios construídos deveriam ser locados pelas secretarias de estado.
Os processos do acervo da CGI/Ipesp não possuem registro de
pagamento de alugueres ao instituto, sendo que os contratos de
locação contêm assinatura apenas do presidente do Ipesp.
Levantamentos apontam para 1377 registros referentes a
prédios no acervo da CGI Ipesp – Comissão de Gestão de Imóveis do
Ipesp –, dos quais 1155 exemplares são efetivamente construídos.
139 destes processos, compreendendo 118 prédios construídos –
cerca de 10% do total – referem-se a municípios localizados na região
da Alta Paulista.
Alguns prédios mais antigos, construídos na gestão de Jânio
Quadros, chegaram a ser vendidos à Fazenda Estadual. A grande
maioria pertence ainda ao Ipesp.

O ACERVO ARQUITETÔNICO PRODUZIDO PELO IPESP NA ALTA


PAULISTA SOB O PLANO DE AÇÃO

Do total de processos e prédios construídos pelo Ipesp na


região da Alta Paulista, 51 processos, correspondentes a 44 prédios
efetivamente construídos, são datados de 1957, quando o Ipesp
inicia sua atuação na produção de prédios públicos, a janeiro de
1959, último mês da gestão de Jânio Quadros. Outros 88 processos,
referentes a 74 prédios construídos, são abertos durante os quatro
anos do governo de Carvalho Pinto.
Os prédios produzidos pelo Ipesp durante a gestão de Jânio
Quadros obedecem a projetos padronizados elaborados pela DOP –
Diretoria de Obras Públicas da Secretaria de Viação e Obras Públicas.
38

A maioria deles são grupos escolares Tipo A e ginásios Tipo Socorro,


além de alguns fóruns, em geral do Tipo A; em um segundo
momento, tem-se a abertura de processos destinados à construção
de delegacias e cadeias, em geral do tipo A, e alguns postos de saúde,
sobretudo a partir de meados de 1958.
Os últimos processos abertos na gestão de Jânio Quadros
tramitam durante o início da gestão de Carvalho Pinto. A partir de
setembro de 1959, o Ipesp passa a contratar projetos de edificações
junto a escritórios privados de arquitetura (Alves, 2009). Dois
prédios cujos processos são abertos na gestão de Quadros são
executados segundo esta nova orientação, sendo por isso incluído no
presente trabalho. São eles, o posto de saúde de Vera Cruz, de José
Luiz Fleury de Oliveira, e o Colégio Estadual e Escola Normal de
Pompéia, do escritório de Plínio Croce e Roberto Aflalo.
Tendo em vista o interesse para a preservação de tal
patrimônio arquitetônico moderno, o quadro 01 lista a totalidade dos
prédios efetivamente construídos na região da Alta Paulista pelo
Ipesp durante a gestão de Carvalho Pinto. Ele inclui ainda dados de
autoria dos projetos, conforme ordens de serviço emitidas pelo
Ipesp, ou do projeto padronizado utilizado, conforme definido no
processo. Os executores das obras são registrados conforme
contrato firmado com o Ipesp e, em caso de subcontratação,
conforme ofício do contratado – a prefeitura local – ao instituto,
informando a empresa ou profissional subcontratado. Quando os
dados contidos nos processos – mapas, endereços, levantamentos
topográficos, memoriais descritivos – mostram-se suficientemente
atualizados e precisos –, e existem mapas e imagens de satélite de
resolução suficiente em softwares como Google Maps e Google
Earth, torna-se possível definir a localização dos prédios, que é
registrada na forma de coordenadas geográficas, ainda no quadro 01.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 39
40
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 41
42

A ARQUITETURA MODERNA DOS PRÉDIOS PÚBLICOS DO IPESP NA


ALTA PAULISTA

Apesar de existirem exemplares de arquitetura pública


moderna anteriores em São Paulo, a experiência do Ipesp deve ser
considerada pioneira pela escala de sua produção, e por ser a
primeira vez em que se tem uma produção massiva de prédios
públicos de desenho moderno, projetados por escritórios privados,
espalhados pelo território do estado.
Tal produção ganha relevo na época, e recebe precoce
tratamento historiográfico em “Sobre escolas” (1970), em que
Vilanova Artigas retraça os caminhos da arquitetura escolar pública
paulista desde as iniciativas republicanas. Nele, o autor situa a
arquitetura escolar promovida pelo Ipesp no ápice de um processo
de construção da nacionalidade, num quadro em que a arquitetura
escolar reflete “[...] as passagens mais empolgantes de nossa cultura
artística; [...] tudo condicionado a um projeto nacional de
desenvolvimento” (Artigas, 1970). Antes disso, como membro da
direção do IAB/SP – Departamento de São Paulo do Instituto de
Arquitetos do Brasil –, Artigas efetuara gestões em favor da
contratação de arquitetos da iniciativa privada pelo Ipesp (IABSP,
1959), de modo a transmitir a contribuição da arquitetura brasileira à
modernização nacional. Este discurso é por ele retomado por
ocasião da anistia (1979) (FAUUSP. GRÊMIO, 1998), e reverbera ainda
após a redemocratização, como no depoimento de Sanovicz (1987).

ESCOLAS

Tais intenções encontram expressão mais acabada nos


pioneiros ginásios de Itanhaém (1959) e Guarulhos (1960), de Artigas
e Cascaldi. Este setor da arquitetura paulista possui materialização
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 43

rarefeita na produção do instituto na Alta Paulista, sendo possível


perceber suas características apenas parcialmente em projetos como
o de Jerônimo Bonilha para o Grupo Escolar de Monte Castelo (1960),
ou o de Ubirajara Gilioli para o Grupo Escolar de Gália (1960). Tais
características, como a clareza e concisão dos volumes, a
permeabilidade e integração dos espaços e seu caráter coletivo, o
arrojo das soluções estruturais e construtivas modernas, encontram-
se no projeto não executado de Julio Katinsky e Abrahão Sanovicz
para o Colégio e Escola Normal Hilmar Machado de Oliveira (1961),
em Garça.
Em vez disso, a Alta Paulista é palco de desenvolvimento de
uma arquitetura que reside na origem da experiência do Ipesp com
os arquitetos da iniciativa privada.
As primeiras contratações, entre setembro e outubro de 1959,
abrangem arquitetos de diferentes gerações e escolas, portadores de
diferentes orientações ideológicas e referências arquitetônicas, que
ocupam diferentes nichos de mercado. Entre outros, tem-se a
presença, além de Artigas, dos arquitetos reunidos em torno da loja
Branco & Preto – Plínio Croce, Roberto Aflalo, Salvador Candia, Jacob
Ruchti, Galiano Ciampaglia, Carlos Millan. Seus projetos
caracterizam-se por um aporte específico da relação entre
modernidade e tradição, alheio às elaborações teóricas de Lúcio
Costa sobre a arquitetura colonial e moderna brasileira, mais
interessada na pesquisa e aplicação de materiais e técnicas
construtivas vigentes nas realidades locais que conformam o
ambiente social mais amplo do estado e do país (Alves, 2009). O
tratamento tectônico de detalhes em tijolos e madeira típicos da
arquitetura rural, aplicado em prédios de menor porte em pequenos
assentamentos urbanos, alia-se à adoção de soluções estruturais e
construtivas modernas, em obras de porte maior localizadas em
polos regionais como Pompéia, Marília e Adamantina.
44

O Colégio Estadual e Escola Normal de Pompéia, cujo processo


foi aberto pelo Ipesp nos últimos dias da gestão de Jânio Quadros e
foi inicialmente orçado conforme o “Tipo Marília” é o primeiro
projeto de maior porte contratado pelo instituto junto à iniciativa
privada, no caso, junto ao conceituado escritório de Plínio Croce e
Roberto Aflalo.

Figura 01 - Colégio Estadual e Escola Normal de Pompéia

Fonte: do autor.

O partido adotado pelos arquitetos resolve elegantemente o


projeto deste que é um dos maiores prédios produzido pelo IPESP, no
que concerne à sua escala e seus condicionantes, assim como às
opções estruturais e construtivas. Os acessos da escola de aplicação
e do colégio situam-se em pavimentos distintos, correspondentes às
cotas das extremidades do terreno de esquina, o que confere
dinamismo a uma composição clara de volumes funcionais. A
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 45

escadaria de acesso, o pilotis e a empena que contém a inscrição


“Cultura e Liberdade” conferem monumentalidade ao acesso
principal.
O projeto de Salvador Candia para Instituto de Educação
Monsenhor Bicudo, em Marília, constitui o primeiro do gênero,
construído pelo Ipesp. O caráter moderno do edifício gera troca de
correspondências sobre soluções técnicas entre os intervenientes, e
mesmo alterações que parecem terem sido efetuadas sem o
conhecimento do arquiteto, como a substituição da laje em caixão
perdido por vigamento aparente. Situado no então prolongamento
de uma das mais importantes avenidas da cidade, o prédio sofre, na
época, as consequências da necessidade de extensão das redes de
água e energia elétrica.

Figura 02 - Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, Marília

Fonte: do autor
46

Este é um dos maiores, senão o maior prédio construído pelo


IPESP. A escola de aplicação é provida com dependências
administrativas para além daquelas normalmente previstas para um
grupo escolar de oito salas. O partido apresenta paralelos com o do
Colégio e Escola Normal de Pompéia: as cotas de nível dos primeiros
pavimentos são definidas a partir das extremidades do terreno,
gerando uma diferença de altura correspondente a um pé-direito
entre o ginásio de esportes e o térreo. Blocos são ortogonalmente
dispostos e o pilotis do prédio mais alto é destinado ao galpão. As
coberturas são sempre apoiadas em tesouras de madeira. Croce e
Aflalo dão continuidade aos pilares ao longo das platibandas; Candia
adota solução diferente, rebaixando a platibanda e deixando
aparecer à inclinação da cobertura em sua parte mais alta.

FÓRUNS

Além do Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, Salvador


Candia projeta na região da Alta Paulista o Fórum de Adamantina.
Sua cobertura em abóbadas de concreto armado, associada ao uso
de elementos vazados nas fachadas, entre outros atributos, fazem
deste prédio um dos mais significativos dentre a série de fóruns
projetados por arquitetos modernos paulistas para o Ipesp, que
substituem os projetos padronizados utilizados, por exemplo, em
Dracena e Lucélia, durante a gestão de Jânio Quadros. Incluem-se
nesse conjunto, na região da Alta Paulista, o Fórum de Duartina, em
que Oswaldo Correa Gonçalves alia a simetria rigorosa sugerida pelo
programa a uma disposição organizada em torno de pátios
ajardinados de proporções equilibradas; e o Fórum de Oswaldo Cruz,
cuja autoria ainda é ignorada. Estes exemplares se juntam a outros,
bem conhecidos no âmbito da historiografia da arquitetura moderna
paulista, como os de Amparo, de Oswaldo Bratke, Itapira, de Joaquim
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 47

Guedes, Avaré, de Paulo Mendes da Rocha, Araras, de Fábio


Penteado, e Promissão, de Vilanova Artigas.

Figuras 03 e 04 - Fórum de Duartina

Fonte: do autor

UNIDADES SANITÁRIAS

Menos conhecidos que os prédios escolares e fóruns são os


prédios destinados aos serviços de saúde produzidos pelo Ipesp.
Como ocorrem com os primeiros, estes últimos substituem a
reprodução de projetos padronizados até então utilizados pelo
instituto. Neste processo, os programas de necessidades se
modernizam, tornam-se mais complexos e maiores. Isso é
especialmente notável na área da saúde: abandonam-se conceitos
como os de posto de saúde e posto de puericultura, até então
vigentes, em favor do conceito de unidade sanitária, que centraliza e
integra num mesmo local, diferentes serviços de saúde – tuberculose,
tracoma, entre outros – até então isolados e dispersos.
A modernização dos espaços destinados aos serviços de saúde,
tema relevante na trajetória da arquitetura moderna paulista – vide a
produção de Rino Levi durante o período democrático, desde sua
vitória no concurso para a Maternidade da USP (1947) até os projetos
na Venezuela – encontra na produção em tela um episódio
significativo, ainda que pouco explorado. Apesar de abranger prédios
48

de pequeno porte, é perceptível o interesse pela então nascente


especialidade da arquitetura hospitalar, com a atuação de pioneiros
como Jarbas Karman, visando à elevação dos padrões técnicos e
espaciais destes espaços.

Figuras 05 - Unidade Sanitária de Herculândia

Fonte: do autor

CASAS DE LAVOURA, DIRETORIAS REGIONAIS E CHEFIAS DE


EXTENSÃO AGRÍCOLA

Finalmente, ao lado dos projetos elaborados pelos arquitetos


atuantes na iniciativa privada, tem-se a intensa produção de um
escritório público de arquitetura, o Setor de Projetos da Secretaria de
Agricultura do Estado de São Paulo, chefiado pelo arquiteto Bernardo
Castello Branco.
A Secretaria de Agricultura já possuía longa tradição de
produção de edifícios públicos. Isso é especialmente notável se
considerado o fato de que, em sua origem, após a Proclamação da
República, a pasta englobava também os assuntos relativos ao
comércio e obras públicas.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 49

O Setor de Projetos insere-se nesta trajetória, elaborando,


durante os quatro anos de gestão de Carvalho Pinto, os projetos das
casas de lavoura, diretorias regionais agrícolas e chefias de extensão
agrícola, cujas obras são executadas pelo Ipesp em curto espaço de
tempo, visando abrigar uma rede de fomento e assistência técnica
agropecuária, inexistente até então. Dentre as mais de 300 casas de
lavoura distribuídas em grande parte dos municípios paulistas,
muitas são construídas segundo projetos padronizados elaborados
pelo Setor de Projetos, numerados de 01 a 04. O projeto de casa de
lavoura n° 01 é de longe o mais utilizado em todo o estado, e é
também denominado “Pompéia”, o que aponta para a hipótese deste
projeto ter sido elaborado inicialmente para esta cidade, ou ter sido
nela pela primeira vez construído.

Figura 06 - Casa de lavoura de Duartina, adaptação do Projeto n° 01 (Pompéia)

Fonte: do autor

A elaboração de projetos padronizados de casas de lavoura


pelo Setor de Projetos da Secretaria de Agricultura torna-se uma
necessidade diante da grande quantidade de prédios a ser construída
em tão curto intervalo de tempo. Na medida das possibilidades de
50

seus quadros técnicos, a repartição elaborava projetos de casas de


lavoura específicos para alguns sítios, provavelmente quando se
julgava que o formato, dimensões ou relevo do lote fizesse com que a
adaptação dos projetos não fosse recomendável. As casas de lavoura
de Flórida Paulista, Pacaembu, Piratininga, Oswaldo Cruz, Garça e
Lucélia são construídas com projetos para elas exclusivamente
elaborados.
A região da Alta Paulista recebe duas diretorias regionais
agrícolas, uma em Tupã e outra em Marília. O prédio desta última é
atualmente ocupado pelo quartel do Corpo de Bombeiros, e não
consta na tabela pelo fato de que não foi encontrado processo a ele
referente no acervo da CGI/Ipesp. Tais prédios, assim como os
outros projetados pelo Setor de Projetos da Secretaria de Agricultura
para diretorias regionais agrícolas e chefias de extensão agrícola,
despertam interesse pela sua elegância, advinda de suas estruturas
de concreto armado habilmente moduladas e pré-dimensionadas,
esquadrias bem desenhadas e saguões de pé-direito duplo,
destinados a exposições sobre a produção agropecuária.

O DESÍGNIO DA ARQUITETURA MODERNA PAULISTA E SUA


PRESERVAÇÃO NO INTERIOR DO ESTADO

A obra pública modernista paulista inseriu-se nas cidades da


Alta Paulista com a concretização do Plano de Ação do governo
Carvalho Pinto através de sua arquitetura, demarcando os espaços
públicos, lugares, e territórios ao criar fortes identidades locais.
Na forma arquitetônica construída um conteúdo de
transformações da proposta modernista paulista, a renovação dos
espaços arquitetônicos através da aplicação prática de estratégias
projetuais como a continuidade espacial e visual dos espaços público-
privados, a valorização dos espaços coletivos, a clareza e concisão
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 51

dos volumes, a permeabilidade e integração dos espaços e seu


caráter coletivo e o arrojo das soluções estruturais e construtivas,
foram característicos dos seguidores de Vilanova Artigas. Assim como
se verifica, nas obras de Plínio Croce, Roberto Aflalo e Carlos Milan,
entre outros, a evidência do rigor, da racionalidade, da austeridade,
do aproveitamento do potencial da utilização de materiais e técnicas
construtivas adequadas às condicionantes climáticas e topográficas
dos locais e da sua clareza estrutural. Tais arquiteturas
empreenderam alterações na paisagem das cidades; ao contrastar
com o entorno, conferiram ao edifício uma sutil monumentalidade ao
identificar o lugar com uma escala agradável à percepção das
pessoas, por meio de suas harmoniosas proporções.
Na arquitetura escolar, a integração espacial e visual do espaço
público com o privado incorpora ações da vida cotidiana, gerando
equipamentos públicos abertos ao uso da comunidade. Esta
arquitetura era vista também como agente do processo de ensino-
aprendizagem, dessa forma, os espaços da escola foram usados e
apropriados como espaços da cidade. Constituiu-se na materialização
dos princípios de escola-classe e escola-parque elaborados por Anísio
Teixeira e incorporados no desígnio modernista paulista.
No decorrer dos anos, as relações de uso e apropriações
socioespaciais modificaram a rigidez do desígnio das propostas
projetuais dos arquitetos modernistas paulistas. Assim, se por um
lado as obras continham o desígnio modernizante, por outro a
sociedade vivenciava um modo de vida por demais conservador, de
modo a se verificar um pensamento conservador de aparência
modernista (Hirao, 2008) redefinindo as obras principalmente nas
relações público-privadas dos espaços.
Do mesmo modo, as necessidades recentes de se adequar
estes prédios às normas de acessibilidade universal interfiram e
comprometeram, na maioria das vezes, os espaços concebidos
dentro das estratégias projetuais modernistas anteriormente
52

referidas. As rampas propostas ocuparam grandes volumes


obstruindo continuidades espaciais, prejudicando as qualidades e
apropriações socioespaciais dos pátios internos ao se constituírem
em obstáculos, prejudicando as circulações ocasionais e os locais do
encontro e permanência mais reservados da edificação.
Outros elementos de bloqueio visual, como muros e gradis
visando proporcionar segurança às pessoas e ao patrimônio, foram
construídos nos alinhamentos e divisas dos lotes, comprometendo a
relação de continuidade do espaço público com o privado. O mesmo
ocorreu com a posterior implantação de quadras esportivas que não
respeitaram as estratégias projetuais modernistas.
Mesmo com todas as interferências sofridas, as obras
modernistas paulistas na Alta Paulista materializam o processo
histórico e cultural de um determinado período dessas cidades.
Alguns prédios estão descaracterizados, outros ainda preservados,
principalmente os que mantêm os usos originais. Mesmo que estes
tenham evoluído e se transformado ao longo do tempo, ainda
conservam, em suas formas construídas, conteúdos formais que
denunciam os desígnios modernistas e constituem-se em elementos
importantes da identidade dessas localidades.
Este estudo se encaminha, assim, para o reconhecimento do
valor artístico de algumas delas, ou mesmo, do valor sociocultural da
maioria das obras modernistas construídas na região e desta forma,
objetiva conquistar o apoio da comunidade e dos agentes públicos e
privados visando realizar esforços em busca do estabelecimento de
mecanismos e criação de instrumentos que viabilizem sua
manutenção, preservação ou restauro.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Plano de Ação, assim como o conjunto de iniciativas políticas


do governo Carvalho Pinto e a atuação do Ipesp, marca o território,
as cidades e os espaços públicos do estado de são Paulo. No interior
do estado, tais marcas revelam outra face da modernização paulista e
brasileira, intimamente ligada à incorporação do território ao
processo produtivo, sua urbanização e infraestruturação. Os
arquitetos modernos paulistas atuam nesse processo em diferentes
frentes, no setor público e na iniciativa privada, em equipes de
planejamento, escritórios públicos e privados de projetos. Juntam-se
a eles, nesta produção, demais profissionais e empresas de
engenharia e construção, além de uma vasta gama de agentes
políticos, econômicos e sociais. O vasto acervo de prédios públicos do
Ipesp, produto da interação destes agentes, revela múltiplas facetas
desta modernização, constituindo significativo patrimônio
arquitetônico moderno de São Paulo e da comunidade da região da
Alta Paulista.
Estes importantes registros materiais do processo histórico e
cultural dessas localidades enfrentam dificuldades para se
adequarem aos usos e apropriações da cidade contemporânea,
devido às mudanças proporcionadas pela crescente utilização das
ferramentas digitais informacionais, bem como pela tendência de
padronização de comportamentos proporcionada pelo processo de
globalização em curso.
As preocupações com a preservação e manutenção deste
patrimônio edificado ganham importância crescente por fazer parte
de um plano que modificou a paisagem das cidades de um estado
inteiro no mesmo período de tempo e contribuiu para a difusão do
pensamento arquitetônico modernista até em pequenas cidades,
impactando o cotidiano das pessoas nas diversas regiões. Sua
implantação sofreu adequações regionais tanto no aspecto técnico-
54

construtivo como nas apropriações socioespaciais redefinindo, esses


espaços modernistas.
A salvaguarda deste patrimônio está ameaçada, corre o risco
de desaparecimento, principalmente se considerarmos as
dificuldades de adequações ao uso contemporâneo. Deste modo, as
propostas de intervenções sobre este patrimônio precisam ser
criteriosas, e analisadas caso a caso, com subtrações, adições e
sobreposições, pautadas nas questões do restauro como as da
distinguibilidade, reversibilidade, mínima intervenção, preservação
do caráter e da atmosfera modernista entre outros, visando valorizar
esses registros materiais, importantes identidades locais que
caracterizam, identificam e demarcam a paisagem dessas cidades da
Alta Paulista.
Assim, este estudo, ao identificar e reconhecer esse patrimônio
arquitetônico modernista contribui para subsidiar os processos de
proteção como tombamento pelos Conselhos de Defesa de
Patrimônio Arquitetônico Estadual e Municipal, declaração de tutela
antecipada do bem pelos Ministérios Públicos e, também, para
estruturar atividades de educação patrimonial.

REFERÊNCIAS

ALVES, André Augusto deAlmeida. Arquitetura moderna e tradição construtiva: a


difusão da modernidade às cidades do interior paulista através das obras iniciais
promovidas pelo Ipesp com projetos de arquitetos modernos paulistas, 1959 - 1960.
In: Seminário Docomomo Brasil, 8, 2009, Rio de Janeiro. Anais ... Rio de Janeiro:
Klam, 2009. p. 1-20.
ALVES, André Augusto de Almeida. Planning the territory of São Paulo state, Brazil, in
the Democratic Period: Carvalho Pinto’s Action Plan (1959 - 1963). In: International
Planning History Society Conference, 17, 2016, Delft. International Planning History
Society Proceedings, 17th IPHS Conference, History-urbanism-Resilience. Delft: Tu
Delft Open, 2016. p. 161-171. DOI: http://dx.doi.org/10.7480/iphs.2016.4.1289
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Sobre escolas... Acrópole, São Paulo, n. 377, p. 10-3,
set. 1970.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 55

HIRAO, Helio. Arquitetura moderna paulista, imaginário social urbano, uso e


apropriação socioespacial. 2008. 225 f. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade
de Ciências e Tecnologia Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2008.
INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL. DEPARTAMENTO DE SÃO PAULO. Ata da Assembleia Geral
realizada a 08/09/1959. São Paulo: s.ed., 1959.
SANOVICZ, Abrahão. Depoimento. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 17, p. 55-6,
abr./ mai. 1988.
SAO PAULO (ESTADO). GOVERNO DO ESTADO. Mensagem apresentada pelo governador
Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
em 14 de março de 1959. São Paulo: Imprensa Oficial, 1959.
SAO PAULO (ESTADO). GOVERNO DO ESTADO.Mensagem apresentada pelo governador
Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
em 14 de março de 1960. São Paulo: Imprensa Oficial, 1960.
SAO PAULO (ESTADO). GOVERNO DO ESTADO.Mensagem apresentada pelo governador
Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
em 14 de março de 1961. São Paulo: Imprensa Oficial, 1961.
SAO PAULO (ESTADO). GOVERNO DO ESTADO.Mensagem apresentada pelo governador
Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
em 14 de março de 1962. São Paulo: Imprensa Oficial, 1962.
SAO PAULO (ESTADO). GOVERNO DO ESTADO.
Plano de ação 1959 – 1963: administração
estadual e desenvolvimento econômico-social. São Paulo: Imprensa Oficial, 1959.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO. GRÊMIO.
Anistia na
FAUUSP: a reintegração dos professores cassados pelo AI-5. São Paulo: FAUUSP,
1998.
56
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 57

Capítulo 3

DIRETRIZES PARA REQUALIFICAÇÃO URBANA A PARTIR DA


GÊNESE DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL
FERROVIÁRIO DA EFNOB

Ellen Beatriz Santos Fonseca de Castro9


Rosio Fernández Baca Salcedo10

1 INTRODUÇÃO

Os pátios industriais de diversas cidades no Brasil estão


intimamente relacionados à existência de linhas férreas que cortaram
o país e que foram por muito tempo a melhor maneira de
escoamento de produção agrícola sentido portos, para exportação
desses produtos, e, também, mais eficiente modo de transporte de
passageiros. Seus vestígios são hoje a expressão materializada das
diversas manifestações econômicas, sociais, culturais de um povo
que ocorreu em determinado período histórico, e que atribuiu valor
histórico, artístico, memorial e simbólico a tudo que produziu.
Uma expressão materializada que nos resta através do
patrimônio industrial, que é justamente compreendido como

os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico,


tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios
englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de
tratamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de
produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e
todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde

9
Mestre em Arquitetura e Urbanismo, PPGARQ – UNESP, ellenbiacastro@gmail.com
10
Doutora, Docente, PPGARQ – UNESP, rosiofbs@faac.unesp.br
58

se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria,


tais como habitações, locais de culto ou de educação (TICCIH, 2003,
p. 3).

Essas estruturas ganharam notoriedade depois de 1960,


quando diversos exemplares da arquitetura da industrialização foram
destruídos, e eles continuam sob “constante ameaça pela sua
obsolescência funcional, pelo crescimento das cidades e pela pressão
especulativa imobiliária” (KÜHL, 2011, p. 38). Trata-se de uma
arquitetura peculiar, tanto quanto as próprias relações sociais,
originadas e consolidadas em torno da atividade produtiva.
Um “monumento coletivo” composto por um grupo de
artefatos que englobam uma variada gama de tipologias e escalas.
Em Bauru, cidade do interior paulista, a EFNOB – Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil – foi instalada em 1905, visando essencialmente à
ocupação do oeste paulista e carregou a produção de café atrás de si.
Perpassou pelas diversas áreas de vivência, demonstrando sua
representatividade de empresa/indústria junto aos funcionários e
população da cidade. Esteve, e continua presente, no imaginário
enquanto função trabalho, por ter sido a empresa que mais
empregou funcionários durante décadas, mas também se relacionou
com a moradia, transporte, lazer, saúde e educação.
Deixou um grande e variado legado: o complexo da EFNOB é
hoje considerado o melhor e mais completo exemplar existente no
Brasil (vide figura 01). Atualmente em processo de tombamento, o
complexo está sob concessão da operadora ferroviária América
Latina Logística (ALL) desde 1996, e encontra-se em completo estado
de abandono.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 59

Figura 01 - Foto área do complexo EFNOB em meio ao contexto urbano.

Fonte: Instituto Soma (2011).

O CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,


Artístico e Arqueológico do Estado de São Paulo) apresentou recente
proposta de inclusão da ambiência do patrimônio, delimitando um
perímetro de tombamento que incorpora os edifícios já tombados
pelo mesmo conselho11 (de âmbito estadual) desde 2000. Tal
instrumento de proteção e tutela, todavia, já tem demonstrado ser
incapaz de garantir a preservação de qualquer área urbana.
As áreas urbanas industriais de outrora, desativadas ou
subutilizadas, estão localizadas em regiões estratégicas das cidades, e
apesar de sua dificuldade de posse e intervenção, seu evidente
potencial fundiário e econômico para desenvolvimento de grandes
projetos urbanos, desperta interesse tanto no setor privado quando
aos gestores públicos, que vislumbram nessas extensas áreas um
conjunto de vantagens para exploração de novos empreendimentos.

11
O Processo nº 30.367/92, que está em andamento no CONDEPHAAT, já tem parecer favorável
do colegiado do conselho emitido, estando pendente apenas a homologação, expedição de
resolução pelo Secretário de Cultura do Estado e posterior inscrição dos bens tombados em
livro próprio, para que produza todos os seus regulares efeitos.
60

Para que projetos a serem desenvolvidos considerem os


valores documentais, formais, memoriais e simbólicos de interesse
para a coletividade, o segredo está em identificar o código genético
da EFNOB. Dessa forma é possível assegurar a transmissão destes
valores para as gerações futuras, incorporando a noção de herança
patrimonial igual ou superior ao existente, referenciando a
preservação de recursos naturais e sustentabilidade.
Segundo Rapoport (2009, p. 18), não se pode admitir que
qualquer intervenção seja necessariamente para melhor. Se os
aspectos sociais, culturais e físicos não forem considerados em
conjunto, certamente não o será. Essa grande variedade de lugares e
comportamentos variam de acordo com a cultura, específica e
inerente a seu próprio lugar.
Não é que a cidade deva estar avessa à modernidade e avanços
tecnológicos, tampouco que uma intervenção moderna não caiba no
local, mas sim que o local deve receber uma intervenção como
nenhuma outra, específica e adequada à sua cultura e história. A
intervenção a ser realizada não caberá em nenhum outro lugar senão
ao qual está projetada.
Nosso objetivo é demonstrar que esse projeto só é possível
após conhecer a estrutura identitária local, compreender as regras
produtoras e reprodutoras da cidade, ou seja, seu código genético
territorial. Além disso, para a realização de alguma intervenção em
paisagem histórica pertencente a esse patrimônio territorial, é
preciso interpretar no projeto os aspectos tangíveis (físico,
construído e natural) e os aspectos intangíveis (representações
sociais, imaginário, simbolismos, valorações).
Para isso, primeiramente, uma abordagem teórica e breve
histórico da importância da ferrovia na evolução urbana e no
processo histórico, social e cultural das cidades do interior do país;
bem como análise da ideologia aportada, as políticas públicas que
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 61

possibilitaram sua criação, as que foram responsáveis por sua


gradativa substituição. Depois, a CEFNOB na sua relação com a
cidade de Bauru, sob análise sociofísica e tempo-espacial.
Finalmente, serão definidas diretrizes para a salvaguarda e
valorização do patrimônio da CEFNOB, e sua reintegração ao
contexto urbano.
Segundo Ruskin (2013, p. 83) a preservação dos edifícios dos
tempos passados não é uma questão de simpatia. A verdade é que
não temos o direito de tocá-los, porque não nos pertence, mas sim
em parte, àqueles que os construíram, e em parte, às próximas
gerações. “Milhões, no futuro, podem lamentar ou serem
prejudicados pela destruição de edifícios que nós dispensamos
levianamente, em nome de nossa presente conveniência” (RUSKIN,
2013, p. 83).
A necessidade de preservar um patrimônio de tal escala nos
remete à abordagem urbanística. Coloca-nos face à novos desafios,
enfrentamentos, uma nova agenda, surgida nesse século, e que é
resultado de nossas novas e urgente necessidades. Em prática,
recorremos a um urbanismo inovador,

[...] no qual profissão, investigação e educação se unem em uma


mesma ‘arquigenética’ a serviço da sociedade. Como ocorre com os
hospitais no campo da medicina, que é a união entre a educação, a
prática profissional capaz de curar e a investigação paralela dos
laboratórios, este novo urbanismo de nos curar das patologias
produzidas pelo mau urbanismo, com um pé em cada um desses
âmbitos e com fidelidade a saúde integral de seus habitantes (Josep
Muntañola, in ZÁRATE, 2015, prólogo, tradução das autoras)

Um urbanismo necessariamente dialógico. Uma perspectiva


que não permite afastar a arquitetura de seu contexto geográfico e
histórico no qual se desenvolve, já que a interação das dimensões do
próprio lugar constrói tramas narrativas, regularidades estruturais,
62

padrões, e são articulados pelos cronotopos do território (tempo-


espaço e sentido de lugar).
A leitura dos cronotopos é que possibilita o entendimento do
processo de territorialização – produção de qualidade ambiental, de
habitação, valorização de identidade territorial e urbana, de
pertencimento, de produções típicas em paisagens típicas, de
crescimento e consolidação de sociedades locais. Um novo
urbanismo que, aliás, articula os cronotopos da territorialização
como estratégia interpretativa da identidade, a fim de reconhecer e
atuar sobre a identidade genética do lugar. Um urbanismo ao qual
Zárate (2010, p. 34-35) denomina urbanismo ambiental
hermenêutico.
O estado configurativo ou estruturação apresentados pelos
vestígios multidimensionais e patrimoniais, representará certo
momento cronotrópico do lugar, ou seja, uma articulação única entre
os atores sociais, práxis sociais, cenários, significações, e tempo
dentre de um determinado contexto cultural. O cronotopo
representa um modo possível de acessar esse código genético do
lugar. Código genético esse, que nos permitem relacionar diretrizes
de intervenção pautadas no atendimento de demandas da
população, anseios, perspectivas de quem vivenciou o edifício, bem
como na necessidade e capacidade dos edifícios de receberem a
intervenção.

2 ATIVIDADES E PERSONAGENS DA EFNOB NO CENÁRIO URBANO

A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB) nasceu pautada


num país recém-republicano, que tinha intenção de romper com as
tradições arcaicas herdadas do Império, e vivenciava uma série de
transformações “que visavam desenvolver as potencialidades
econômicas do Brasil, com o objetivo de tornar o país uma fronteira
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 63

aberta ao capitalismo internacional” (MARQUES, 2014, p. 20).


Carregava consigo a simbologia latente de progresso.
Representava a nova lógica integradora que redimensiona o
espaço e o tempo das relações interpessoais, alterando a dimensão
de tempo e distâncias, possibilitando o alcance de novos lugares. Os
novos fluxos modificam a paisagem, marcando novas direções e
rumos através desses novos percursos. Aliado aos aspectos políticos,
econômicos, sociais e culturais, atuou de modo diferenciado nos
lugares, proporcionando especificidades de formação e evolução
urbanas (MARTINES, 2013, p. 59).
No estado de São Paulo, onde a cafeicultura se desenvolveu
intensamente, as “ferrovias do café” se lançavam incessantemente
em busca de maior produção para exportação. O empreendimento
ferroviário é frequentemente relacionado ao fator econômico da
região. E de fato, em um primeiro momento a ferrovia foi quem
possibilitou a interiorização da lavoura cafeeira e o transporte do
produto até o porto para exportação.
Diversos dos motivos políticos visando a ocupação e
integração desses vastos territórios a sudoeste do Brasil havia
também os anseios sobre a construção de uma ferrovia que ligasse o
sul de Mato Grosso ao litoral brasileiro por motivos econômicos e de
desenvolvimento – favorecendo deslocamento de pessoas e o
transporte de produção, principalmente a cafeeira (MARQUES, 2014,
p. 18).
E, somado aos motivos econômicos (cafeeiro), havia ainda um
motivo geopolítico, que visava o fim da dependência da via fluvial do
rio Paraguai e da bacia do Prata à Bolívia, Paraguai e sul do Mato
Grosso. Desde os conflitos entre Brasil e Paraguai, ficou claro o quão
era vulnerável que uma região tão extensa como o Mato Grosso só
pudesse ser acessada por via fluvial, sem uma via interna rápida que
o ligasse ao restante do país (MARQUES, 2014, p. 18). A EFNOB,
entretanto, é pioneira no sentido que fomenta o surgimento de
64

novas cidades, e abrindo territórios no interior do estado, acaba


levando atrás de si a produção cafeeira (MARTINES, 2013, p. 52).
Entre todas essas motivações peculiares, a característica
fundamental da Noroeste, portanto, “seria a de preceder às cidades e
às lavouras de café, provocando rápida povoação” (GHIRARDELLO,
1992, p. 82), e o Engenheiro Lafon ressalta, em relatório de 1907, que
“é bem de assinalar-se [...] a influência que tem o tráfego desta
estrada de ferro sobre o rápido desenvolvimento da zona por ela
atravessada, que era por assim dizer desabitada” (in MATOS, 1990, p.
131).
O interesse econômico nessa região pode até ser diferente das
demais ferrovias que iam à busca da produção cafeeira, mas, era
sempre em virtude dos interesses econômicos e políticos que o solo
urbano se transformava. Nesse caso particular, o “interesse dos
proprietários rurais permanecia na valorização de suas terras, na
garantia de espaço rural para ação coronelista e na possibilidade de
parcelamento rural das terras apossadas para venda” (MARTINES,
2013, p. 56).
No início da implantação das linhas, os terminais e os pátios de
manutenção eram pequenos e construídos de maneira precária.
Depois de consolidado o meio de transporte, nas reformas e
ampliações já havia uma maior preocupação com a hierarquização
destes locais em ‘classes’.
A NOB chegou com as mais modernas práticas administrativas
relacionadas à produção industrial. “A noroeste parece ter, desde o
início, contado com a organização em classes, mas a precariedade da
construção das primeiras estações também levou à sua substituição
poucos anos após inauguração da linha” (FINGER, 2013, p. 349).
Embora fosse um país agrícola, a ferrovia era a etapa
essencialmente industrializada da agro exportação, responsável por
transportar uma grande quantidade de carga, com notável economia
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 65

de tempo (se comparado ao transporte com mulas) e consequente


acréscimo de rendimento. Pelos princípios tayloristas, que trata a
organização como uma máquina, a ferrovia é considerada uma
indústria.
Dentre os principais conceitos de funcionamento: as tarefas ou
a tecnologia é que são enfatizadas ao invés do grupo de pessoas; é
inspirada em sistemas de engenharia; possui autoridade centralizada,
especialização e competência técnica; e, uma acentuada divisão do
trabalho. Além disso, administra plena confiança nas regras e nos
regulamentos, com clara separação entre linha e staff.
Resumidamente, a administração científica constitui uma
combinação global entre: ciência, harmonia, cooperação, rendimento
máximo e desenvolvimento de cada homem.
Tal política criou o organograma e fluxograma, onde as
atividades são altamente organizadas. “O organograma dividiu as
atividades do trabalho, hierarquizando-as. O fluxograma, por sua vez,
definiu a direção pela qual caminhariam as informações, sempre
linear e ascendente/descendente” (AMARAL et al., 2015, p. 143).
A hierarquização estava presente, inclusive, nos espaços
construídos, e estava plenamente coerente com as propostas da
indústria, desde sua concepção e idealização, de seus primeiros
planos e projetos, imbricada em seu funcionamento. Essa
“departamentalização das atividades do trabalho, bem como a sua
hierarquização, [foi que] deu corpo aos escritórios da EFNOB:
desenho do mobiliário, layout dos escritórios, projeto e construção
do edifício-sede – espaços tipicamente tayloristas” (AMARAL; et al.,
2015, p. 142).
O organograma da estrutura administrativa da CEFNOB
expressava a divisão dos trabalhos e representava também os
escalões hierárquicos de comando. Uma estrutura na qual a
comunicação acontecia em um só sentido, operário – supervisor –
66

diretor – superintendente, sendo que não poderia ocorrer nenhuma


forma de comunicação fora desse contexto.
A figura 02 ilustra a hierarquia evidente na forma de
comunicação existente à época, essa comunicação de sentido único,
quando olhar para o fotógrafo só era permitido ao ocupante do cargo
mais alto, o Superintendente Engenheiro Arlindo Luz da NOB.

Figura 02 - Membros do Conselho da NOB, 192?

Fonte: Acervo do Museu Ferroviário, 2016.

Nos espaços construídos, podemos claramente observar que


as oficinas se localizavam do outro lado do Rio Bauru, mais próximo
às Vilas que se formaram, distante do centro e da Estação, onde
estavam trabalhando os operários. Eram os cargos mais distantes,
hierarquicamente falando, de Chefes, Diretores e Superintendente, e,
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 67

ficavam igualmente, o mais distante possível – em termos de


‘distância física’, da estação e funcionários administrativos. Figura 03.

Figura 03 - Mapa. Edifícios da EFNOB em Bauru.

Fonte: Autoras, 2016 – sobre foto aérea 2013 (PMB).

O resultado dessa concepção administrativa se reflete até


mesmo na localização das edificações e as tipologias das casas das
vilas ferroviárias, que também correspondem à hierarquia de
trabalho na organização da estrutura administrativa da Companhia. A
separação entre os que mandam dos que obedecem era, portanto,
além de administrativa, física: os trilhos do pátio funcionavam como
delimitador entre os funcionários administrativos e operários.
Apesar desse modelo administrativo que chegava, a verdade
era que Bauru não possuía meios de receber e abrigar toda a
população em busca de nova oportunidade. No ano de 1905,
desembarcaram em Bauru aproximadamente 3 mil operários para
iniciar a construção da ferrovia, o que gerou um substancial
crescimento da população local – vejam bem, uma cidade de até
68

então 600 habitantes, passou “para 8.000 almas, em três anos, e já


em 1940 contava com 32.785 habitantes” (AZEVEDO, 1950, p. 93).
A rápida povoação e expansão urbana, com a formação de
novos bairros são significativas, e o aumento da população
juntamente com o aporte de infraestrutura realizado pela própria
companhia, torna a cidade viável. Dentre os aportes realizados,
afetou sensivelmente a forma de viver/morar com a construção de
moradias/vilas ferroviárias, atuou também no lazer com a formação
do clube de futebol Noroeste e construção de seu estádio, na saúde
contribuiu com a construção de três hospitais, na educação de
formação técnica para funcionários; na ferrovia: oficinas, estação,
edifícios administrativos, etc.
Outra transformação considerável realizada pela presença da
EFNOB foi a expansão do comércio e serviços sentido oeste,
modificando a Rua Araújo Leite, antiga estrada que ligava Bauru a
Agudos, que era tida como polo comercial. Nesse momento de
expansão, provimento de infraestrutura básica, e construção da nova
estação ferroviária – novo portal de entrada da cidade desenvolvem-
se em seu lugar, as Ruas Primeiro de Agosto, Batista de Carvalho e
Avenida Rodrigues Alves. Figura 04.
Bauru crescia e se desenvolvia [...]. Durante a década de 1920,
as rodovias construídas no estado de São Paulo e no Brasil não eram
algo que justificasse uma ameaça ao transporte ferroviário. Até que,
com todas as dificuldades como greves, déficit operacional, as
grandes mudanças ocorridas no cenário político e econômico com o
fim da I Guerra Mundial, a falta de manutenção de infraestrutura,
nos trens que rareavam, na própria dificuldade de operação da rede,
Juscelino Kubitscheck (1956-1961) dá clara prioridade e consolida a
indústria automobilística em uma gradativa substituição aos serviços
das ferrovias, processo que ficou conhecido por “opção rodoviarista”.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 69

Figura 04 – Mapa. Alteração do eixo comercial da cidade de Bauru.

Fonte: Autoras, 2016.

A partir da década de 50, o Estado Brasileiro já não investia


tanto em ferrovias quanto no início do século, o que contribuiu ainda
mais para a decadência do transporte ferroviário no país. Em março
de 1957 foi criada a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima
(RFFSA), com intenção de melhor gerenciar as linhas, o que
funcionou razoavelmente bem, até que as verbas foram deixando de
ser repassadas. No fim da década de 80, o valor chegou a ser 19% do
que era repassado no início da mesma década.
Impossibilitada de gerar recursos suficientes para cobertura
dos próprios serviços prestados, em 1992 o Governo Federal iniciou
Programa Nacional de Desestatização, que foi concluído entre 1996 e
1998. Basicamente, foram ações voltadas à concessão de serviços
públicos de transporte de carga à iniciativa privada, baseada na Lei nº
8.987/1995, conhecida como Lei das Concessões. Levada à licitação
na modalidade leilão, o primeiro ramal foi da S-R10 (antiga NOB).
Após 25 anos sem uso, o complexo da EFNOB em Bauru mostra
seus sinais de decadência, ao qual o centro da cidade, antigo, vivo e
70

badalado comércio, vem se unindo nos últimos tempos. É como se a


degradação da EFNOB estivesse se expandindo pouco a pouco pela
cidade, iniciando pelas áreas confrontantes ao complexo.
O centro urbano, com infraestrutura completa privilegiada,
acaba sendo subutilizado e visto como locais de perigo. Existe uma
carência de política de habitação social para requalificação das áreas
centrais no mundo como um todo, mas particularmente em Bauru,
vários edifícios comerciais estão com muitos de seus pavimentos
fechados, sem utilização.
Apesar de todo o trabalho realizado, das discussões em âmbito
internacional, recomendações, etc., que resultaram em leis,
instrumentos urbanísticos, direito de acesso da população para que
inclusive, o processo seja validado [...] apesar de tudo, o que temos é
uma gestão desinteressada, onde os empreendedores formatam
processos e “expedem” suas próprias diretrizes, de acordo com seus
interesses.
A superação de vícios de sistema como a especulação
imobiliária está muito longe de acontecer, ao menos no Brasil. Um
povo que não aprendeu a conhecer e valorizar sua própria cultura,
conselhos sujeitos à influência de interesses privados o tempo todo,
e, órgãos de tutela lentos e ineficazes – apesar de todo aparato
legislativo em vigência.
Em Bauru, os trilhos deixaram uma herança: à medida que a
cidade cresceu e se desenvolveu as margens desse grande pátio
industrial, foi-se constituindo um verdadeiro contorno de
infraestrutura, onde as pessoas transitam e se locomovem de
diversas formas, exceto permeando essas áreas, que se configuraram
como barreiras urbanas nos deslocamentos diários.
Os bairros que expandiram por entre os trilhos, previamente
constituídos, resultaram em uma malha urbana extremamente
fragmentada. O que cotidiano e facilmente superável – o ir e vir entre
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 71

os bairros, uma vez que a ferrovia era conectada com a cidade de tal
forma que não se tornava barreira física – hoje se soma à presença de
rodovias e fundos de vale/rios, e acaba por caracterizar a
desfragmentação territorial, ou, a intransponabilidade entre os
diversos bairros da cidade, como mostra o traçado preto e os rios na
figura 05.
Um crescimento heterogêneo, de usos diversos, como resposta
a políticas nacionais de incentivo a determinados tipos de transporte,
habitação e ao crescimento periférico, são marcas de um urbanismo
insustentável que foi amplamente aplicado no século passado.
Conforme os bairros foram crescendo, foram sendo criados os pontos
possíveis de travessia sobre os trilhos, mas que não são suficientes
para atender demanda da população.

Figura 05 - Mapa. Principais barreiras físicas: rodovias, ferrovias e bacias hidrográficas.

Fonte: Autoras, 2016.


72

A falta de calçadas e trechos de boa caminhabilidade é um


desestímulo ao caminhar ou pedalar, restringe a liberdade, e as
pessoas que precisam atravessar os bairros, se não tem como fazê-lo
em seu veículo próprio – e a maioria da população não tem – acabam
reféns de um sistema de transporte que também está limitado às
transposições férreas, junto com os carros, sem nenhuma concessão
de preferencial.

[A] premissa fundamental do urbanismo ambiental hermenêutico


parte de conceituar a cidade como um complexo sistema de lugares
gerado pela cultura que se manifesta como articulação inseparável
entre ambiente construído, ambiente social, intimamente vinculados
ao ambiente simbólico (ZÁRATE, 2015, p. 162).

No sentido de registrar o essencial de buscas, incertezas,


necessidades, impressões e expectativas, houve ainda uma
sistematização de registros orais diversos, mesclados com a
memória, a identidade, na busca de interpretar o mais corretamente
possível, o código genético da cidade de Bauru.
Foi surpreendente encontrar dentre a população da cidade,
um percentual muito alto de pessoas (98,02% dos entrevistados) que
defendem a conservação do patrimônio ferroviário, essencialmente
pela preservação da história, memória e identidade da cidade. Fato é
que a Noroeste do Brasil “se entrelaçou de tal forma à comunidade,
que falar em Bauru e Noroeste quase significava o mesmo”
(GHIRARDELLO, 1992, p. 163), e isso só serviu para confirmar que a
identidade da cidade está claramente atrelada à ferrovia.
A pesquisa, realizada no dia 17 de agosto de 2016 a partir de
questionários aplicados na área central de Bauru, e disponibilizados
no formato web, entre os dias 16 e 19 de agosto de 2016, totalizou
151 pessoas entrevistadas. O questionário consta de 2 partes. A
primeira, uma breve caracterização dos entrevistados com relação a
nome, idade e ocupação, e, tempo de residência em Bauru.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 73

A segunda parte se constitui de 3 questões abertas referente à


percepção que o entrevistado tem em relação ao patrimônio do
complexo ferroviário de Bauru, são elas: ‘Quando escuta a palavra
FERROVIA, o que vem à cabeça? ’, ‘Considera importante a
conservação do patrimônio ferroviário? Justifique sua resposta’, e,
‘O que acha que poderia ser feito com o pátio ferroviário, quais são
suas expectativas com relação àquela área central? ’.
A maior concentração etária (32,12%) está entre 31 e 45 anos,
e dentre todos os entrevistados, quase um terço nasceu em Bauru, e,
66,88% moram a mais de 20 anos na cidade. A palavra “trem”
apareceu em 49% das respostas ao ser mencionada a palavra
“FERROVIA”; “decadência” (23,17%) e “afetividade” (25,16%)
também estiveram dentre as mais citadas.
Com relação à questão “O que acha que poderia ser feito com
o pátio ferroviário, quais são suas expectativas com relação àquela
área central?”, 57% das respostas estavam relacionadas ao uso
cultural, enquanto que transporte surgiu em 44%. Ainda com
percentuais representativos, revitalização (28%), comércio (27%), fins
ambientais com 11%, educacionais e projetos sociais – cada um com
7%, e serviços públicos, apareceu em 6% das respostas.

3 GÊNESE E SALVAGUARDA DA EFNOB

Os trilhos e a área do pátio ferroviário, ao mesmo tempo em


que foram responsáveis pela existência e desenvolvimento urbano da
cidade de Bauru, são também, hoje, pela decadência da região
central. Estamos falando de um patrimônio de escala urbana que se
deteriora mais a cada dia que passa. Algumas diretrizes, de maneira
geral, visam à requalificação desse complexo industrial ferroviário,
considerando sua reintegração ao contexto urbano.
Bauru possui atributos que devem ser valorizados na busca de
melhores soluções para intervenção, como os usos mistos, e,
74

principalmente, o grande eixo demarcado pela ferrovia e sua


infraestrutura, que devem ser considerados integrados ao meio
ambiente. Deve, como indivíduo, e a partir de sua existência,
reinventar-se, transformar-se em uma cidade sustentável,
entendendo esse território da orla ferroviária como uma
oportunidade única de se reconstruir como uma cidade linear, e de
ter seus espaços reabilitados, regenerados.
A ideia seria criar uma estratégia de intervenção urbana que,
com um programa factível, possa lançar cenários possíveis para a
reurbanização deste imenso território disponível, que é o complexo
ferroviário e os vazios urbanos adjacentes, solucionando, dentre
várias necessidades, identidades, valores simbólicos e expectativas, a
reinterpretação do código genético da EFNOB, cuja principal função
foi a da mobilidade urbana. É visível que a área do complexo
possibilita a construção de uma cidade facilitadora de
deslocamentos.
Essa estratégia deve garantir o “uso coletivo, para toda a
cidade, dos elementos estruturadores centrais: o sistema de
mobilidade a partir do leito ferroviário e o eixo ambiental de águas e
verdes, ou seja, o rio e suas várzeas” (LEITE, 2012, p. 208)
Considerando que o projeto de um possível urbanismo
ambiental só pode ser sustentado por um diálogo interdisciplinar e
social contextualizado (ZÁRATE, 2015, p. 36), utilizamos as quatro
matrizes superpostas e complementares, propostas por Leite (2012,
p. 201-202) – adequadamente formatadas segundo novo objeto –
para organizar algumas diretrizes, e são elas: infraestruturas, fluxos,
eixo verde e bordas urbanas. A estas diretrizes, que visam atender
prioritariamente a dimensão sociofísica da intervenção, adicionamos
o que consideramos necessário para suprir a dimensão
sociosimbólica de uma proposta dialógica. Quadro 01.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 75

De todas as leituras e diretrizes possíveis, consideramos


primordial que seja dado manutenção no uso dos eixos constituídos
pela linha férrea ao longo do desenvolvimento da cidade. Primeiro,
em virtude de preservar memória e identidade de um povo, e de uma
cidade que cresceu ao redor dos trilhos (conservação de seu código
genético), segundo, pela identificação do potencial estratégico de
transporte de pessoas e cargas, como um novo ideal de proposta para
a mobilidade urbana, até hoje não incorporada ao planejamento
urbano, e, terceiro, pela necessária interpretação da gênese da
EFNOB.
Quadro 01 – Ordenamento das propostas

CIDADE SUSTENTÁVEL. ALTERNATIVA. AMBIENTAL. SAUDÁVEL. EQUÂNIME.


Orla ferroviária: oportunidade única de se re-construir como uma cidade linear

DIMENSÃO FÍSICA DIMENSÃO SOCIAL DIMENSÃO SIMBÓLICA

Infraestrutura Fluxos Educação Patrimonial


Eixo verde Bordas urbanas Gestão compartilhada
Gabaritos/volumes/materiais Necessidades/expectativas Identidade/memória
Fonte: Autoras, 2016.

Com a reativação do transporte ferroviário urbano, abrem-se


novas possibilidades de integração e vivência da cidade, que remete
muito mais ao tempo em que foi plenamente vivida, do que hoje,
com o complexo abandonado, tido muito mais como barreira física
do que patrimônio.
Com a combinação de variados sistemas de transporte, haverá
uma otimização de fluxos urbanos, que aumentará a qualidade do
serviço. Atualmente, não há qualidade e agilidade nos deslocamentos
realizados, e é desejável que a infraestrutura existente seja uma
nova possibilidade de modal de transporte coletivo urbano. Isso
ainda tornaria possível uma série de conexões urbanas, facilitando os
76

deslocamentos de pedestres e ciclistas por percursos menores e


exclusivos. Figura 06.

Figura 06 - Mapa. Proposta de áreas verdes livres incorporadas aos trilhos


e vazios urbanos da cidade de Bauru, com calçadas e ciclovias

Fonte: Autoras, 2016.

A salvaguarda do patrimônio existente – edifícios históricos


que são verdadeiros testemunhos históricos – com usos/programas
atuais compatíveis, devem funcionar como suporte/estrutura de
apoio a essa infraestrutura de transporte, bem como estrutura de
atendimento ao público. É relevante que os projetos de reabilitação
com usos compatíveis para essa salvaguarda do patrimônio
ferroviário compreendam a interpretação, intertextualidade,
hibridação e contemporaneidade (SALCEDO; et al., 2015, p. 234).
Importante ressaltar que a população se manifestou
enormemente a favor de equipamentos culturais, gastronomia e
comércio, que revitalizassem a região, aliado ao transporte reativado,
desejo mais citado nas respostas à pesquisa realizada. Devido à
capacidade de locomoção dos trens, os trilhos geralmente se
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 77

localizavam nas áreas margens de rios, onde o desnível é mínimo e


facilmente transposto. Consideramos esse, o ‘presente’ que a
ferrovia deixou para nossas cidades: a possibilidade de recuperar as
margens desmatadas dos rios, com a formação de parques ao longo
dos trilhos que atravessam toda a cidade, oferecendo ainda, trajetos
com desnível médio de 2%, muito confortável para pedestres e
ciclistas.
O pátio ferroviário como conector entre diversos parques
lineares é a possibilidade de agregar qualidade ambiental à
restauração e reabilitação dos edifícios, e das novas propostas que
surgirão para ocupar os vazios urbanos adjacentes. Como um grande
eixo verde costurando os bairros, com espaços de recreação e
cultura que proporcionem possibilidade de locomoção pela cidade,
através infraestrutura verde, ciclovias, calçadas e pistas de
caminhada, que são justamente a forma de construir a mobilidade
urbana sustentável nas cidades.
As bordas urbanas deverão ser ocupadas, mas devem ser
totalmente permeáveis, para possibilitar todas as conexões urbanas
possíveis (figura 07). Isso porque, segundo Gehl (2015, p. 232), um
dos princípios a serem observados para tornar a cidade mais
convidativa, é que a vida no interior das edificações e a vida nos
espaços públicos devem funcionar conjuntamente.
Além da permeabilidade, essa ocupação das bordas urbanas
deve prever usos compatíveis e complementares à habitação, e, a
construção de tipologias variadas e flexíveis que implementem
habitação coletiva de interesse social, de uso misto, e em densidade
compatível às edificações patrimoniais, respeitando suas
características, gabaritos de altura, volumetrias, materiais, aspectos
formais, entre outros, para lograr a harmonia com o lugar (SALCEDO,
2009, p. 78-79). Um reagrupamento das atividades, com o propósito
de garantir menores distâncias nos deslocamentos.
78

Figura 07 - Trilhos (VLT) e permeabilidade de fluxo de pedestres em Düsseldorf, Alemanha

Fonte: Acervo das autoras, 2016.

O vazio urbano, junto a toda infraestrutura urbana e área de


parques, VIABILIZA a regeneração urbana. Existe espaço para novas
construções habitacionais, edificações de uso misto, além da área de
APP e conservação dos fundos de vale. O patrimônio edificado
reabilitado para dar suporte a essa nova estrutura, ainda garante
presença de massa crítica de pessoas e eventos, devolvendo as
pessoas ao lugar de direito: a cidade.
No intuito de dar permanência à estrutura identitária local,
temos que intervir com critério na paisagem histórica. O aspecto
ambiental e social do patrimônio é tão intrínseco à vida de todos na
cidade, que sua preservação, e consequentemente a preservação da
memória coletiva, é uma responsabilidade de todos.
Por fim, e não menos importante, uma gestão compartilhada,
que incentive a participação desse cidadão. O reconhecimento do
valor do patrimônio, balizando todas as ações e projetos relacionados
à cultura, memória, educação e planejamento urbano, que vierem a
ser propostos para Bauru.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 79

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A EFNOB foi peculiar desde sua motivação, uma vez que


precedeu às cidades e às lavouras de café, e provocou rápida
povoação no interior oeste paulista. Devido à sua importante posição
estratégica, trouxe consigo todo o aparato industrial necessário para
sua autonomia e funcionamento.
Imprimiu personalidade, um código genético - único e
exclusivo à Bauru. O eixo definidor utilizado como transporte de
pessoas, e toda a história de formação da companhia, proveu de
significado o nascimento da cidade. A EFNOB foi muito além das
expectativas. Aportou investimentos em forma de infraestrutura
física e sociosimbólica de tal maneira, que Bauru, em virtude de sua
falta de condições e carências, não foi capaz de lidar
adequadamente.
Quando da degradação, momento em que EFNOB já não
possuía mais meios de gerir o patrimônio e cessaram os
investimentos, a cidade, que também dependia economicamente do
funcionamento da companhia, ficou desprovida de condições de
permuta, e dá as costas ao complexo ferroviário. O que ainda ocorre,
e pior, a estrutura abandonada, sem nada a oferecer, é ignorada pelo
poder público que, apesar de ter interesse em suas extensas áreas,
não possui recursos humanos e financeiros para assumir sua gestão.
Mas estamos na hora de inverter essa lógica, de assumir a
importante função desempenhada pela EFNOB na cidade, e dar
permanência ao seu significado e patrimônio. Fazer com que os
problemas – o pátio degradado e abandonado, e, os vazios urbanos...
– façam parte da solução.
Desvendado o código genético, torna-se possível a proposição
de algumas diretrizes urbanas sustentáveis para reintegração do
complexo à cidade, articulando as potencialidades socioeconômicas,
simbólicas, de identidade e memória. Resgatamos anseios e
80

necessidades da população, em seus diversos grupos sociais, e,


sobrepusemos pressupostos urbanísticos de integração entre meio
ambiente e equipamentos essenciais, que na escala humana,
viabilizam estratégias de intervenções sustentáveis. A isso,
incorporamos princípios fundamentais do restauro contemporâneo,
que como ato de cultura, respeita o patrimônio tal como ele é;
inclusive suas diversas estratificações.
Partimos de um processo de apreensão da realidade orientada
pela manifestação concreta e contextualizada da forma histórica e
tempo-espacial da degradação do complexo da EFNOB, e, buscamos
todas as maneiras para articular as correspondências entre os
ambientes sociofísico-simbólicos desde o início dos levantamentos,
às propostas de diretrizes urbanísticas.
Por toda essa dinâmica, defendemos que as propostas são
capazes de fundamentar um futuro projeto de intervenção, provendo
qualidade, sem romper com a significação do complexo. Possibilita à
população, gestores e iniciativa privada dar a merecida devolutiva, e
investir no resgate desse patrimônio. Bauru possui uma dívida com os
trilhos, com os atores que a construíram e vivenciaram, bem como
com os que deram sua vida ali.
As estratégias propostas estão, portanto, fundamentadas na
interpretação contemporânea do código genético da EFNOB de
preservar o uso potencial de transporte de pessoas e que dá
manutenção ao significado de sua atuação na história da cidade, das
reais necessidades e expectativas/anseios da população, das
condições físicas urbanas, e dão permanência e salvaguarda da
estrutura física da EFNOB, com a proposta de usos contemporâneos
compatíveis.
Nas últimas décadas, o planejamento urbano tem proposto
intervenções que visam equilíbrio e sustentabilidade nas cidades.
Reciclar áreas industriais degradadas faz parte de uma promissora
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 81

linha de política pública, já que “[...] o renascimento urbano desses


territórios e a reciclagem desses territórios e patrimônios industriais
é mais sustentável do que a construção de parques industriais novos
em áreas verdes, fora da cidade consolidada” (LEITE, 2012, p. 143).

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82

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Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Bauru- SP, 2016.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 83

Capítulo 4

RETROFIT EM PATRIMÔNIOS FERROVIÁRIOS EDIFICADOS:


O CASO DE PIRAJUÍ-SP12

Nilson Ghirardello13
Fernanda Fabri14

1 INTRODUÇÃO

Ao mesmo tempo que avança o que, convencionalmente,


chamamos de pós-modernidade, avança também o interesse pelo
estudo de como os lugares, dentro dos centros urbanos, vêm sendo
produzidos nesses novos tempos em que os recursos naturais
encontram-se cada vez mais escassos.
Nesse cenário, indagamos, até que ponto e de que forma a
arquitetura contribui na busca por uma sociedade sustentável?
Entende-se como desenvolvimento sustentável, aquele capaz de
atender às necessidades das atuais gerações sem comprometer os
direitos das futuras gerações. As questões ambientais e escassez de
recursos energéticos fazem parte desse discurso; é na forma como
arquitetos e engenheiros se inter-relacionam com esses temas que se
dá a contribuição da arquitetura na sustentabilidade.

12
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no IV Congresso Internacional em
Patrimônio e Desenvolvimento Sustentável - PYDES, realizado em Franca-SP, em dezembro de
2015.
13
Doutor, docente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação – Unesp Bauru. E-mail: nghir@faac.unesp.br.
14
Graduada, discente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Unesp Bauru. E-mail:
fabri.fernanda@gmail.com.
84

Quando o conceito de sustentabilidade foi apresentado ao mundo,


há quinze anos, o eixo central dos projetos era a redução no uso de
energia, com a ética ambiental atritando com o orçamento. Ganhos
financeiros com conceitos ambientais crescem de importância e os
benefícios ambientais como a redução da emissão de Carbono e
melhoria da qualidade do ar vêm em segundo plano, o eixo principal
continua sendo o fator econômico. (SOUZA 2014, p. 4).

Assim, dentro da construção civil, discute-se desde o uso de técnicas


que gerem menos impacto ambiental, até a (re)construção de áreas,
como nas requalificações em patrimônios históricos degradados. É
nesse último caso que um novo olhar nos estudos de produção de
lugar se faz particularmente interessante, por não necessitar que
novos recursos naturais e humanos sejam consumidos para a
produção de novos espaços nos centros urbanos.
Abordaremos neste artigo a escassez de recursos energéticos e
sua relação com a Arquitetura, através da apresentação e analise de
opções sustentáveis para atender parte da demanda por novas
edificações. Trataremos aqui da técnica de retrofit, que será
apresentada com maior profundidade no texto, de edificações
degradadas, especificamente aquelas consideradas patrimônios
culturais que, até então, eram sinônimo de perda de valor de
mercado pelo impedimento de alterações em sua forma e estrutura,
e que serão analisadas, através da atribuição de novos usos que não
danifiquem sua composição, como potenciais redutores dos impactos
causados por novas construções.
O termo Patrimônio é conceituado por Choay (2001, p. 13)
como:

[...] um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se


ampliou a dimensões planetárias, constituído de uma diversidade de
objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-
primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de
todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos (CHOAY, 2001, p.
13).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 85

No entanto, por essas edificações apresentarem certas


peculiaridades, em função de seu valor cultural, a intervenção nessas
áreas, para que possam assumir novas funções, devem seguir certas
diretrizes projetuais que se diferem de adequações realizadas em
prédios comuns.
A Carta de Atenas, que data de 1931, apresenta as primeiras
recomendações, em nível internacional, para a preservação do
Patrimônio Cultural. Já o conceito de monumento histórico foi
definido na Carta de Veneza em 1964, compreendendo não só a
edificação isolada como também o sítio urbano ou rural que
represente um acontecimento histórico de determinado povo.
Esse documento, referência no que diz respeito às noções de
conservação e restauro, foi fundamental para a elaboração de todas
os outros estudos da área de preservação que se seguiram. Em
Quito, no ano de 1967, os centros históricos e a questão ligada à
habitação foram tratadas levando em consideração certa valorização
econômica dos monumentos. Esta mesma relação também foi
abordada em 1974 na Carta de São Domingos, em que se
recomendava que as políticas habitacionais deveriam levar em conta
questões ligadas aos Centros Históricos.
Visto isso, a atribuição de novas funções nessas áreas deve
seguir certas premissas que, no entanto, não impedem que,
juntamente ao valor cultural, seja agregado a edificação um
representativo valor econômico.

Todavia, “[...] não se trata apenas de intervir apoiado no setor


turístico, por exemplo, buscando-se só com essa atividade um
retorno para a sustentabilidade e viabilidade. É imperativo atuar em
todas as potencialidades que esses patrimônios edificados oferecem,
seus potenciais econômicos, sociais, culturais, inclusive com a
participação da comunidade” (COSTA, 2006, p. 39).

Neste trabalho, trataremos da Estação ferroviária de Pirajuí,


pertencente a antiga Estrada de Ferro Noroeste Brasil que, por se
86

tratar de Patrimônio Industrial Ferroviário assume, além das


considerações mencionadas, uma série de outras peculiaridades
referentes a legislação vigente no pais para este tipo de
empreendimento.
O município, assim como tantos outros do oeste paulista, tem
seu desenvolvimento, urbano e cultural, intimamente ligado a EFNOB
pois...

A formação de cidades era de interesse da ferrovia, bem como dos


latifundiários da Zona Noroeste. O empenho da Companhia de
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil estaria na transformação rápida
de estações em núcleos urbanos, gerando não só polos de
escoamento para uma futura produção agrícola, particularmente
cafeeira, mas também movimentados centros de embarque e
desembarque de passageiros (GHIRARDELLO, 2002, p. 15).

Todavia, em consequência do declínio do transporte


ferroviário, o prédio da estação que representa a memória mais
importante do crescimento da cidade, encontra-se gravemente
deteriorado e sem uso.
Acreditamos que, em casos como este, o reuso de prédios com
valor cultural assume dois papeis de suma importância. Se de um
lado torna-se possível a criação de novos espaços com menor
consumo de recursos naturais e financeiros, de outro, viabiliza-se a
salvaguarda de um bem patrimonial que, sem essa intervenção,
estaria fadado ao esquecimento.

2 RETROFIT E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA FERROVIÁRIA, UM


CAMINHO POSSÍVEL

O termo Retrofit é utilizado, principalmente, na engenharia


mecânica, para descrever o processo de modernização de algum
equipamento considerado obsoleto ou fora do padrão. Na
arquitetura, é determinado pela renovação e atualização de edifícios,
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 87

com o objetivo de aumentar a vida útil do imóvel, através da


incorporação de novas tecnologias e materiais de qualidade, de
modo a reconquistar a valorização da unidade. De acordo com
Berezovsky (2014), Retrofit é a adaptação tecnológica dos sistemas
elétricos, hidráulicos, fachada e principais equipamentos instalados
nas áreas comuns dos edifícios, tais como elevadores, iluminação e
mobiliário, entre outros.
No que se refere ao tema desse trabalho, a aplicabilidade do
Retrofit com o objetivo de preservação da memória, justifica-se ao
conceder a possibilidade de novos usos para quaisquer edificações do
acervo edificado ferroviário, visto que, o restauro, como técnica que
reconstitui fielmente a edificação e limita a utilização da mesma, é,
por vezes, demasiada onerosa e de difícil aplicação. Assim...

A arte do retrofit está ligado ao conceito de preservação da memória


e da história. Não se trata simplesmente de uma reconstrução, pois
isto implicaria uma simples restauração. O que se busca aqui é um
renascimento. Em uma tradução literal, poderíamos dizer que é “pôr
o antigo em boa forma”, mantendo suas características originais. Em
países onde a legislação não permite que o acervo arquitetônico seja
substituído, abriu-se espaço para esta solução que preserva o
patrimônio histórico ao mesmo tempo em que permite sua utilização
adequada. (CORREIA, B. S.; SILVA, M. C.; SPINAL, W. P, 2014, p. 87) 15

Um exemplo bastante significativo para ilustrar o retrofit, é o


Edifício da Estação da Estrada de Ferro Sorocabana, mais tarde
chamada de Estação Júlio Prestes, com 25 mil metros quadrados,
desenhados por Christian Stockler das Neves e concluída em 1938
(figura 1).

15 Traduzido pelos autores. Texto original: “El arte del retrofit está ligado al concepto de
preservación de la memoria y de la historia. No se trata simplemente de una reconstrucción,
pues esto implicaría en una sencilla restauración. Lo que se busca aquí es más bien un
renacimiento. En una traducción literal se podría decir que es “poner lo antiguo en buena
forma”, manteniendo las características originales. En países donde la rígida legislación no ha
permitido que el rico acervo arquitectónico fuese sustituido, fue abierto espacio para una
solución que preserva el patrimonio histórico al mismo tiempo en que permite una adecuada
utilización.”
88

Figura 1 - Estação Júlio Prestes (1938)

Fonte: Acervo online do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Segundo Zein e Marco (2001), a retração do café ocorrida na


década de 1960, causada, principalmente pelo esgotamento das
terras paulistas, mudanças climáticas e crises políticas, acarretaram o
abrandamento do ritmo das ferrovias. Este edifício, em particular, foi
afetado pelas consequências destes e de outros fatos, como a
degradação da região central de São Paulo, levando-o ao
esquecimento e, mais tarde, o abandono quase total.
Na década de 1990, no entanto, a situação começou a mudar.
Através de acordos entre a Prefeitura e entidades financeiras, como o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e associações, como
a Associação Viva Centro, foi possível realizar o programa de
revitalização tão esperado para valorizar a cultura paulista. Com a
revitalização do centro histórico de São Paulo, e a possibilidade de
transformação da antiga estação Júlio Prestes em complexo cultural,
o prédio foi todo requalificado, retomando, assim, o seu brilho
original e sua importância no contexto urbano. Este passou a abrigar
a Secretaria Estadual da Cultura e a Orquestra Sinfônica. Para isso, foi
construído no interior do edifício antigo a Sala São Paulo (figura 2),
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 89

inaugurada em 1999, que conta com um aparato imenso de inovação


tecnológica no que se refere ao controle térmico e acústico de seu
ambiente. Ademais, uma parte do edifício continua até hoje a ser
utilizado para transportes pela Companhia Paulista de Trens
Metropolitana (CPTM).

Nelson Dupré foi o arquiteto responsável pelo retrofit, preservando a


arquitetura de Stockler, mas acrescentando componentes da
arquitetura contemporânea. Segundo Dupré em um trabalho de
reabilitação como esse, você deve lidar com alguns elementos que
são contra o existente, sem sair do contexto, e sem ser confundida
com uma época passada; é necessário que se possa distinguir os
elementos anteriores das novas inserções. (WISNIK, G.; FIX, M.; LEITE,
J. G. P.; ARANTES, J.; ANDRADE, P. P, 2001, p. 202).

O projeto arquitetônico, de acordo com Zein e Marco (2001),


desde a sua elaboração até a conclusão da obra, consumiu R$ 44
milhões, envolvendo uma equipe de 18 arquitetos, que trabalharam
durante 27 meses. Até então, o Brasil não tinha uma única sala de
concertos em todo seu território. A Sala São Paulo, além de ser a
primeira, apresenta características inéditas. “O forro é
completamente móvel, oferecendo alternativas acústicas como em
nenhuma outra sala no mundo”, confirma o arquiteto Nelson Dupré.
A variação do forro, quando suspenso em seu ponto máximo,
permite também enxergar a sala com toda a arquitetura original
recomposta.
90

Figura 2 - Sala São Paulo

Fonte: Pagina do site Galeria da Arquitetura16.

As portas da edificação são abertas tanto para artistas como


para àqueles que queiram disfrutar da beleza, e significação
simbólica preservadas no prédio. Este resultado nos leva à hipótese
de que o retrofit foi uma ação política e social sustentável. Passemos
agora a analisar a aplicação dessa técnica no objeto de estudo
proposto por esse trabalho.

2 A EFNOB E A CIDADE DE PIRAJUÍ

A EFNOB foi construída na primeira e segunda décadas do


século XX, tendo seu quilometro zero em Bauru, na região central do
estado de São Paulo e chegando até a divisa com a Bolívia, em
Corumbá, no estado do Mato Grosso do Sul. Bauru tornou-se sede de
entroncamento ferroviário entre três companhias ferroviárias
brasileiras: a EFNOB, a Estrada de Ferro Sorocabana e com a
Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Desde 2006, a antiga

16 Disponível em: http://www.galeriadaarquitetura.com.br/projeto/dupre-arquitetura-


coordenacao_/sala-sao-paulo/1357
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 91

EFNOB que já fora repassada a malha da também extinta RFFSA,


passou a pertencer à América Latina Logística - ALL (CHAMMA, 2014).
Muitas cidades foram contempladas com os trilhos da
Estação de Ferro Noroeste do Brasil e entre elas, está Pirajuí que,
segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) possui população igual 22.704 habitantes e território com
824.196 km², está localizado na zona fisiográfica de Bauru/SP. A sede
municipal dista 365 Km em linha da capital do Estado de São Paulo. A
região que abrange o município foi caracterizada por Andrade (1945,
p. 81) como “riquíssima, povoada de padrões vegetais de terra de
primeira qualidade, que estava fadada a ser um centro de riqueza e
prosperidade no Estado de São Paulo”; chegando ao posto de maior
município produtor de café do mundo durante certa época.
Pirajuí recebeu os trilhos da EFNOB em função da sua
produção cafeeira. Sua linha foi aberta posteriormente a criação do
traçado inicial da ferrovia, apenas em 8 de setembro de 1948, foi
iniciando, então, a construção da nova Estação Ferroviária de Pirajuí
em março de 1949, com inauguração no ano seguinte. Após sua
construção, juntamente às construções das residências de
trabalhadores locais da Noroeste, situadas próximas à Estação; deu-
se início ao povoamento desta região da cidade, pois, “[...]a
Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, à exceção do ponto
de partida em Bauru, quilômetro zero, criava suas estações no meio
da mata, longe de qualquer povoado” (GHIRARDELLO, 2002, p. 48).
No ano de 1957, a Noroeste passou a fazer parte da então
extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e parou de transportar
passageiros em meados da década de 90, época de grande declínio
do transporte ferroviário causada pela concorrência com o
transporte rodoviário (figura 3).
92

Figura 3 - Estação Ferroviária de Pirajuí (1970)

Fonte: Pagina do site Estações Ferroviárias.17

Não tendo sido reparados, nem corrigidos os seus erros


básicos, não tiveram as ferrovias brasileiras condições para resistir à
concorrência das rodovias (MATOS, 1990, p. 141). Sendo assim, o
edifício, em 1997, já apresentava sinais de degradação. Em 1996, a
linha da RFFSA, Rede Ferroviária Federal S.A., foi concedida à Ferrovia
Novoeste S.A. Em 1998 um acidente com vagões da Novoeste,
destruiu a gare da Estação e desde então os prédios sofreram rápida
degradação, com pichações, saques e vandalismo.

17
Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/p/pirajui.htm. Acesso em 14 jul
2015.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 93

2.1 ANÁLISE DA SITUAÇÃO ATUAL DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE


PIRAJUÍ

Os prédios da Estação não possuem uso algum atualmente e,


apesar de tombados, configuram uma área de risco na cidade, onde
moradores de rua costumam se abrigar. No interior do hall de
entrada, partes do forro de madeira já caíram ou estão pendurados,
em estado de deterioração. As paredes, manchadas e descascadas,
foram alvo de pichação. As esquadrias que restaram, estão
completamente danificadas. Além disso, a edificação está sendo
tomada pela vegetação, agravando ainda mais o aspecto de total
abandono (figura 4).
As instalações elétricas, batentes, portas e parte das telhas
foram saqueadas. No entanto, mesmo expostas ao tempo, as
paredes ainda não apresentam rachaduras. Apesar de se fazer
necessário uma avaliação mais profunda no que se refere aos
elementos estruturais do prédio, a olho nu, o que se percebe é que a
edificação permanece vigorosa, passível a revitalização imediata. Há
apenas uma via de acesso ao prédio, denominada Rua 3, que
também dá acesso ao antigo prédio da CEAGESP, que confronta com
a fachada frontal da estação. Atualmente a área abriga a empresa
Ultra Display, que realiza a montagem de prateleiras para
supermercados, mercearias, etc. Ademais, um novo loteamento foi
realizado nas imediações da estação e os lotes já se encontram à
venda.
94

Figura 4 - Estação Ferroviária de Pirajuí Atualmente

Fonte: Elaborado pelos autores (2015)

Figura 5 - Planta Baixa da Estação Ferroviária de Pirajuí

Fonte: Elaborado pelos autores (2014).

Na imagem acima, podemos observar a disposição dos prédios,


configurada pelo depósito à esquerda, os banheiros,
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 95

caracteristicamente edificados a certa distância da Estação e, por fim,


o prédio principal.

Figura 4 – Casas dos antigos funcionários da EFNOB em Pirajuí

Fonte: Elaborado pelos autores (2014).

Por último, localizadas há 50m do prédio principal da Estação,


as casas dos antigos operários da EFNOB (figura 4), compostas por
seis unidades geminadas, portanto, doze moradias, encontram-se
invadidas. Todavia, esse uso, apesar de irregular, garantiu uma
preservação mais eficiente nessa parte do complexo ferroviário da
cidade. As fachadas mantêm as características originais, com
esquadrias, pintura e aparência geral em bom estado de
conservação.

3 INDICATIVOS PARA DESTINAÇÃO DOS PRÉDIOS PERTENCENTES A


ANTIGA RFFSA

Como já foi mencionado, apesar das indicações de intervenção


em áreas históricas contidas nas cartas patrimoniais e outros
documentos da área, a atribuição de novos usos em Estações
96

Ferroviárias no país requer que observemos outros aspectos legais,


que discorreremos a seguir.
A incorporação dos imóveis não-operacionais da extinta RFFSA
constitui imposição legal presente na Medida Provisória nº 353, de
22 de janeiro de 2007, posteriormente convertida na Lei nº
11.483/2007, de 31 de maio de 2007, que trata sobre as diretrizes e
procedimentos para concessão e uso dos bens patrimoniais
pertencentes as redes ferroviárias.
Conforme a referida lei, compõem-se por priorização de
incorporação os imóveis com destinação provisória efetuada ou em
curso; aderência às prioridades da Administração Pública Federal e às
metas estratégicas da SPU (Secretaria de Planejamento Urbano), em
especial habitação de interesse social (envolvendo regularização
fundiária e provisão habitacional) e as ações de apoio ao Plano de
Aceleração do Crescimento – PAC.
Quanto a posse desses bens, a lei estabelece as
possibilidades de destinação através de alienação mediante leilão ou
concorrência pública para integralização do Fundo Contingente ou
àqueles cuja ocupação seja comprovadamente anterior a 6 de abril
de 2005; a alienação direta (venda, permuta ou doação), aos estados,
ao Distrito Federal, aos municípios, a Fundos de Investimentos
Imobiliários ou a entidades públicas, desde que destinados
necessariamente a: c) programas de regularização fundiária e
provisão habitacional de interesse social; d) programas de
reabilitação de áreas urbanas; e) sistemas de circulação e transporte;
ou f) funcionamento de órgãos públicos; por fim, venda direta aos
beneficiários de programas de regularização fundiária e provisão
habitacional de interesse social (Inciso II do art. 14 da Lei nº
11.483/2007) ou aos ocupantes de baixa renda dos imóveis não-
operacionais residenciais cuja ocupação seja comprovadamente
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 97

anterior a 6 de abril de 2005, nos termos do art. 12 da mesma


legislação.
Constitui também possibilidade de destinação dos imóveis da
extinta RFFSA, mais especificamente daqueles declarados como de
valor histórico, artístico e cultural, cujo o objeto de estudo desse
trabalho se enquadra, a destinação para fins de preservação e
difusão da Memória Ferroviária, mediante:
I- a construção, formação, organização, manutenção,
ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras
organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;
II- a conservação e restauração de prédios, monumentos,
logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta RFFSA. A
destinação dos imóveis com declarado valor histórico, artístico e
cultural deverá ser definida com a interveniência obrigatória do
IPHAN, ao qual compete, nos termos do art. 9º da Lei nº
11.483/2007, receber e administrar tais bens, assim como zelar pela
sua guarda e manutenção.
Nesses casos, certas diretrizes, como o respeito à vocação de
cada imóvel, garantindo o cumprimento de sua função
socioambiental, bem como a observância às diretrizes gerais da
política urbana estabelecidas no Plano Diretor do município no qual
localiza-se o imóvel, deverão ser observadas. Além disso, a
reutilização deve seguir critérios de racionalidade do uso dos imóveis
destinados à Administração Pública Federal, evitando destinações
que resultem na sua subutilização ou utilização inadequada.

4 NOVOS USOS PARA A ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE PIRAJUÍ

Visto isto, e com os conhecimentos adquiridos através dos


levantamentos do prédio da Estação Ferroviária de Pirajuí, nos foi
possível eleger alguns usos que, através do retrofit dos prédios
ferroviários, se enquadram a área. Como mencionado, a legislação da
98

preferência a usos habitacionais, culturais e educacionais para os


prédios pertencentes a antiga RFFSA e, nesse caso, todos são
aplicáveis.
O primeiro, que corresponde ao uso habitacional, já vem sendo
aplicado, de maneira irregular, nas casas dos antigos funcionários da
EFNOB, localizadas há 50m do prédio principal da Estação. Tombadas
pelo município, carecem de regularização para que os atuais
moradores tenham acesso a infraestrutura urbana, como coleta de
esgoto e conexão com rede de água tratada, e acompanhamento
para que as fachadas sejam mantidas em sua composição original, ou
seja, atualização de todo o sistema hidráulico e elétrico das
edificações, preservando a arquitetura original.
Já o uso cultural, aplica-se ao prédio principal, que possui as
características mais representativas no que se refere ao valor cultural
da área. Visto que a cidade não possui nenhum centro para a
salvaguarda de sua memória, o uso através de um museu da história
do município e sua relação com a ferrovia e a produção cafeeira,
seria o mais recomendado. Além disso, a destinação para atividades
culturais como exposições de artistas locais, também seriam
apropriadas à área. Esta proposta condiz com o que o prevê o
capítulo IV, referente ao Patrimônio Cultural e Histórico e as
Atividades Culturais, do plano diretor desse município, em seu artigo
19, incisos de I à IV, que seguem:

Artigo 19. Constituem ações para a defesa, preservação e


conservação do Patrimônio Cultural e Histórico de Pirajuí:
I. Implantar o PROGRAMA ESCOLA DE CULTURA, para descobrir e
desenvolver multiplicadores das mais diversas atividades culturais;
II. Fazer o Censo Cultural para saber quem e quais as práticas
culturais existentes no município; Projetar espaços em locais
estratégicos para o desenvolvimento das ações culturais; Articular
parcerias com organizações governamentais ou não governamentais;
III. A formulação de Política Pública de INTEGRAÇÃO SETORIAL E
SOCIAL, estruturando e integrando as atividades desenvolvidas pelos
setores da Ação Social; Educação; Cultura, Esporte, FSS (Fundo Social
de Solidariedade), Lazer, Meio Ambiente e Saúde; Assim como,
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 99

oportunizar a interação através de parcerias com diversos setores e


cidadãos do município;
IV. Desenvolver o PROGRAMA PARQUE TEMÁTICO DO CAFÉ na
antiga estação da estrada de ferro da NOB. (PIRAJUÍ, 2007, p. 13).

Para tanto, além da reconstituição de toda a parte estrutural,


assim como os sistemas hidráulicos e elétricos, há de se fazer um
controle acústico e ambiental dos ambientes, de modo a dar o
suporte necessário as atividades aqui propostas. Ademais,
recomenda-se que a fachada receba um tratamento contemporâneo
de iluminação que, como consequência, valorizem os traços
vitorianos do prédio original e agreguem maior beleza e
representatividade para o novo significado que a edificação passará a
assumir.
Por fim, vimos que o complexo ferroviário confronta com o
antigo prédio da CEAGESP, que já se encontra em posse do município
e possui, atualmente, um uso industrial que não condiz com as
propostas de requalificação mencionadas nesse trabalho.
Acreditamos que o uso educacional faria maior justiça a
potencialidade de valor social que este prédio possui e, para tanto,
esta área pode ser adaptada e abrigar um centro educacional de
ensino superior e/ou técnico, outra grande carência do município,
que conta com aproximadamente 500 estudantes obrigados a viajar
todos os dias para cidades vizinhas, outros tantos que deixam o
município para poder e estudar e, ainda, aqueles que por conta dos
custos, não podem arcar com nenhuma das duas opções, e são
fadados a interromper os estudos.
Nesse prédio, o aparato tecnológico necessário ao novo uso
proposto, não possuí as mesmas restrições que os pertencentes ao
complexo ferroviário inaugurado na década de 60, pois, não
reconhecemos valor patrimonial na edificação, podendo esta ter sua
fachada alterada e seu entorno adaptado ao novo fluxo de veículos e
pessoas.
100

Já o antigo armazém da estação, além de servir a esses usos,


também condiz com a destinação para biblioteca, auditório ou, até
mesmo, restaurante com uso noturno a exemplo da intervenção na
antiga estação de Torredeita, Portugal, pertencente a Linha Douro,
onde fica situado atualmente o restaurante que é também wine bar,
e outrora foi um armazém abandonado da Rede Ferroviária Nacional
- REFER. Criado por vontade de dois empreendedores, existe há sete
anos e enquadra-se numa zona que hoje se apresenta renovada.
Nesse cenário, é possível concluir que toda uma área que hoje
se encontra degradada, através de uma intervenção contemporânea
que valorize a memória dos prédios existentes, diversamente a
reconstrução, tem potencial para se tornar um centro cultural,
fornecendo infraestrutura de lazer e educação a bairros carentes e
distantes da área central, assim como, ser uma área que promova o
intercâmbio cultural entre as diversas classes sociais da cidade
fazendo deste, novamente, um ponto de encontro e, sobretudo, um
lugar de suma importância para os munícipes, que os remeta a
memória da formação da cidade de modo a fortalecer a identidade
cultural que os compete, bem como, um espaço viabilizador do
desenvolvimento social da população.
Além disso, é importante ressaltar que para tal, o município
não teria a necessidade de construir nenhuma edificação, visto que
todos os usos citados se aplicam as edificações já existentes e que
demandam unicamente de requalificação e adaptação às propostas
mencionadas, dispensando gastos demasiados com materiais e mão
de obra. É nesse momento que a preservação do patrimônio
edificado se justifica, também, como potencial fomentador da
sustentabilidade no meio urbano, que de acordo com Roger-Machert
citado por Magalhães (2006) é alcançado quando se obtêm gerência
cautelosa da demanda dos recursos naturais, com a maximização da
circularidade e eficiência do uso das edificações nas cidades.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 101

Ademais, configura-se também com a definição de Schussel (2004)


que afirma que a sustentabilidade urbana deve ter um caráter
pluridimensional, favorecendo o acesso, estabelecendo a união entre
as pessoas e o meio ambiente natural e, por fim, promovendo a
manutenção do patrimônio histórico e cultural.

5 CONCLUSÃO

A demanda crescente por recursos naturais nos obriga a


repensar nossas atividades, e encontrar novas maneiras de produzir,
consumir e habitar. No que se refere a este último, percebemos que
o cenário atual das grandes cidades para a construção de novos
edifícios é de poucos terrenos livres. Uma das soluções para as
demandas do mercado é a renovação de edifícios, onde estes
ganham uma nova vida e podem atingir altos padrões tecnológicos e
de qualidade (SOUZA, 2014). Neste trabalho, analisamos essa pratica,
por intermédio do retrofit, em edifícios que além de estarem sem
uso, possuem reconhecido valor cultural, através de estudo realizado
na Estação Ferroviária de Pirajuí. Vimos aqui, que a atribuição de
novos usos em prédios históricos é uma alternativa viável, embora
mais complexa, para a produção de novos lugares nos centros
urbanos de maneira sustentável, com baixo consumo de recursos.
Além disso, pudemos compreender que as estações
ferroviárias são referências históricas para a formação de várias
cidades, um bem patrimonial valioso, todavia, muitas delas
encontram-se extremamente deterioradas, e, infelizmente, outras
tantas já foram demolidas. Em contrapartida, há bons exemplos de
recuperação de estações, demonstrando que quando há o interesse
da comunidade e do poder público, caminhos são encontrados, como
no caso das Estações de Bananal e Barretos, por exemplo,
atualmente revitalizadas e servindo a atividades culturais nos
municípios.
102

Dentro das peculiaridades que ora se fazem necessárias para


que o que se propõe aqui seja possível, destacamos a importância de
propostas de intervenção contemporâneas, voltadas para
maximização de atividades culturais dentro da cidade, promovidas ou
não pelo setor público, e a salvaguarda da memória atribuída a este
bem, através da preservação de seus aspectos mais representativos.
Em suma, este estudo provou que há possibilidade do reuso do
patrimônio edificado, mesmo que industrial, em prol ao
desenvolvimento das cidades de maneira sustentável, tornando essa
discussão um início para a produção de novos estudos que viabilizem
intervenções e a salvaguarda do patrimônio ferroviário.

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Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP/Universidade de São Paulo,
2001, v.9, p. 192-209.
ZEIN, R. V.; MARCO, A. D. Sala São Paulo de concertos. Revitalização da estação Júlio
Prestes: o projeto arquitetônico. São Paulo, Alter Market, 2001.
104
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 105

Capítulo 5

O CONJUNTO HISTÓRICO E ARQUITETÔNICO DA FEPASA


(FERROVIAS PAULISTAS S/A), NO MUNICÍPIO DE REGENTE
FEIJÓ: PRESERVAÇÃO E GESTÃO DO PATRIMÔNIO

Neide Barrocá Faccio18


Cristina Maria Perissinotto Baron19
Larissa Figueiredo Daves20

1 INTRODUÇÃO

O Município de Regente Feijó, localizado no Oeste do Estado


de São Paulo (Figura 01), teve, na ferrovia – desde a instalação da
Estação Memória, em 1919 – um importante ponto de partida para a
sua consolidação, ganhando relevância por ser um meio para
transporte de mercadorias e atração de moradores, tanto para o
plantio do café quanto para trabalhar na manutenção da própria
linha férrea. O conjunto ferroviário desse município está localizado
na Avenida Regente Feijó, s/nº, no Centro da Cidade.

18
Livre Docente, Arqueóloga e Docente da Universidade Estadual Paulista – Campus de
Presidente Prudente, nfaccio@terra.com.br
19
Doutora, Arquiteta Urbanista e Docente da Universidade Estadual Paulista – Campus de
Presidente Prudente, crisbaron@fct.unesp.br
20
Geógrafa e mestranda do curso de Pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual
Paulista – Campus de Presidente Prudente, larissadaves_@hotmail.com.br
106

Figura 01 - Localização do Município de Regente Feijó no Estado de São Paulo.

Fonte: Região Administrativa de Presidente Prudente (2016).


Elaboração: Cipriano (2016).

No entorno da ferrovia, estão localizados a estação ferroviária,


quatro casas de antigos ferroviários, dois galpões e a Praça dos
Pioneiros de Regente Feijó (Figura 02). Esse conjunto arquitetônico e
histórico, típico das ferrovias construídas no Oeste Paulista no século
XX, revela um estilo eclético e constitui um dos poucos elementos
originais que podem contar a História desse Município. Por conjunto
histórico e arquitetônico entendem-se todos os elementos
construídos, desde as edificações como os espaços livres – que
compreendem, nesse caso, a estação ferroviária, os galpões, as casas,
a praça, os terrenos, o leito ferroviário, as ruas e calçadas, além do
próprio mobiliário urbano. Por patrimônio histórico, entende-se todo
agrupamento de construções e de espaços, que constituam um
assentamento humano, cuja coesão e valor são reconhecidos do
ponto de vista histórico e arquitetônico (IPHAN, 1976).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 107

Figura 02 - Localização das casas dos operários da ferrovia, galpões e


Praça dos Pioneiros na malha urbana de Regente Feijó.

Fonte: as autoras (2016).

Na Figura 02, verifica-se que, no entorno da Estação Ferroviária


de Memória, foi organizada toda a malha urbana do Município de
Regente Feijó. Contudo, parte do conjunto histórico e arquitetônico
da ferrovia foi parcialmente descaracterizado, quando a Rua Vicente
Perini tomou o espaço dos quintais das casas dos ferroviários,
comprometendo o acesso às unidades habitacionais (Figuras 03 e
04).
108

Figuras 03 e 04 - Rua Vicente Perini e desnível em relação às unidades habitacionais.

Fonte: as autoras (2016).

No Brasil, a construção de vilas operárias e núcleos residenciais


ligados a fábricas e a atividades agroindustriais provocaram
profundas alterações nas relações de produção – pelo número
relevante de trabalhadores deslocados de outras atividades – na
organização do território e no padrão de urbanização – ao implantar
atividades produtivas, estender redes de infraestrutura e deslocar
contingentes populacionais para localidades que redefinem o mapa
urbano e produtivo do país – na organização da moradia e do espaço
urbano – ao introduzir e/ou propagar novos modelos de habitat e
novas formas arquitetônicas e urbanas. (CORREA, 2010, p.9).

Em junho de 2016, a Prefeitura Municipal de Regente Feijó


iniciou um processo de retirada das famílias dos antigos ferroviários
das casas do conjunto, a fim de demolir aquelas construções.
Moradores locais solicitaram ao Departamento de Planejamento,
Urbanismo e Ambiente da FCT/UNESP auxílio para garantir a
preservação das casas dos antigos ferroviários, por entender que elas
são importantes para a memória da cidade.
A preservação das casas dos ferroviários do Município de
Regente Feijó não é tarefa fácil. Foi aplicado um questionário junto a
152 moradores de Regente Feijó, escolhidos de forma aleatória, para
aferir a importância desses bens, sendo as edificações da ferrovia,
incluindo as casas dos antigos ferroviários, apontadas como
patrimônio a ser preservado por 92% dos entrevistados.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 109

Verificada a importância dos bens para a comunidade de


Regente Feijó, reuniram-se informações técnicas com vistas a
garantir a proteção das casas dos ferroviários, da estação ferroviária,
dos galpões, da praça, dos terrenos, do leito ferroviário, das ruas e
calçadas, por meio do instituto jurídico do tombamento. Na última
década, os “bens singelos, paradas, estações, equipamentos e casa
de operários, desprovidas de Arquitetura que justificasse seu
reconhecimento, passam a ser valorados” (FIGUEIREDO, 2014, 209).
Dessa forma, bens ferroviários não inscritos na Lista do Patrimônio
Cultural Ferroviário pela Portaria n0 407/2010 (IPHAN, 2010), podem
ser valorados, como foi o caso das “Casas de Turma” na cidade de
Maracajá, SC, para as quais a Prefeitura reivindicou do IPHAN sua
valoração e comprometeu-se a restaurá-las para que fossem
utilizadas como centro cultural (CAVALCANTE, 2012).
O Oeste Paulista possui poucos bens tombados pelo Conselho
de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
– CONDEPHAAT, sendo o conjunto histórico e arquitetônico
ferroviário do Município de Regente Feijó reconhecido pela
população local como patrimônio a ser preservado, por fazer parte
da sua história.
O objetivo deste texto é evidenciar a importância do conjunto
arquitetônico e histórico ferroviário para o Município de Regente
Feijó e região, por meio de um resgate histórico de sua instalação,
bem como da inventariança dos elementos que compõem essa área.
O patrimônio ferroviário do Município de Regente Feijó é importante
por inserir-se no complexo ferroviário construído no Brasil, no final
do século XIX e início do século XX (PREFEITURA MUNICIPAL DE
REGENTE FEIJÓ, 2016); preservá-lo significa preservar a História
Social e a História do Trabalho. Finaliza-se este estudo com uma
pequena reflexão sobre a gestão do patrimônio ferroviário.
110

2 A COMPANHIA SOROCABANA E O CONTEXTO HISTÓRICO DA


FUNDAÇÃO DE REGENTE FEIJÓ

A Companhia Sorocabana foi fundada com o intuito de


transportar, por trilhos, o cimento fabricado em Iperó (Sorocaba, SP)
para outras regiões do Estado de São Paulo. Com a expansão cafeeira
rumo a oeste, a ferrovia foi ampliada para articular e ligar redes de
diversos setores econômicos no Estado. Em 1892, a Companhia
Sorocabana juntou-se à Companhia Ituana, formando a Companhia
Sorocabana e Ituana. Em decorrência de uma crise financeira no final
do século XIX, a Companhia sofreu uma liquidação forçada, sendo seu
acervo e suas concessões arrematados pelo Governo Federal
(MARQUES, 2009).
Segundo a Prefeitura Municipal de Regente Feijó (2011), no dia
19 de janeiro de 1919 foi inaugurada, ainda que de forma
improvisada, a Estação de Trem de Memória. Os operários que
trabalhavam nos trilhos garantiram a consolidação dessa área, eles
mesmos morando em pequenas casas próximas à estação.
A Figura 05 apresenta a Estação de Trem Memória (atual
Município de Regente Feijó), em 1926. Essa estação foi demolida e
deu lugar, em 1960, a uma nova construção, com uma plataforma em
estrutura de concreto (Figuras 06 e 07).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 111

Figura 05 - Estação de Trem Memória, no Município de Regente Feijó, em 1926.

Fonte: Estações ferroviárias (2016).

Figuras 06 e 07 - Estação de Trem do Município de Regente Feijó, construída em 1960

Fonte: Estações ferroviárias (2016).

Após três anos da inauguração da Estação de Memória,


instalou-se, em suas proximidades, um pouso de peões e de gado. O
Capitão Francisco Whitacker, administrador da Companhia de Viação
São Paulo-Mato Grosso, separou dez alqueires, a fim de ali instalar os
primeiros moradores. Os pioneiros, guiados pelos trens, chegavam à
região. Os trens faziam a publicidade e traziam os novos imigrantes,
enquanto outros vinham em carros de boi, lombos de equinos ou
mesmo a pé (PREFEITURA MUNICIPAL DE REGENTE FEIJÓ, 2016).
112

Em 19 de dezembro de 1925, o Governo do Estado assinou o


Decreto número 2.077, que instituiu o Distrito de Paz de Memória
(PREFEITURA MUNICIPAL DE REGENTE FEIJÓ, 2016). No final de 1933,
o nome do povoado foi mudado, passando a ser Regente Feijó, sendo
inaugurado seu Jardim Público. O Distrito de Regente Feijó, então
parte do Município de Presidente Prudente, foi elevado a município
pelo Decreto número 7.262, em 28 de junho de 1935.
Ressalta-se que o nome “Memória” foi inspirado no Ribeirão
Memória, localizado nas terras do primeiro povoado originado no
percurso da Estrada Boiadeira, aberta na virada do Século XIX-XX.
Cumpre ainda ressaltar que a Estrada Boiadeira, por sua vez, foi
aberta sobre um Peabiru, caminho que os índios Guarani abriram e
que foi utilizado para a vinda das bandeiras – que, no século XVI,
praticamente exterminaram os índios dessa etnia no Oeste Paulista
(FACCIO; LUZ, 2016).
Diante do contexto histórico da ocupação do interior do Estado
de São Paulo, as estações ferroviárias foram relevantes para a
constituição de pequenos municípios, como no caso da emancipação
do vilarejo denominado “Memória”, tornado Município de Regente
Feijó. O sítio urbano desse município apresenta a topografia elevada,
principalmente na região central, pois a estação ferroviária foi
instalada entre os grandes divisores de água, os espigões. O conjunto
de edifícios ligados à ferrovia foi construído com novas técnicas,
destacando-se no cenário das construções de madeira do entorno.

3 O CONJUNTO FERROVIÁRIO DE REGENTE FEIJÓ, SP

A Estrada de Ferro Sorocabana é um exemplo irrefutável da


importância desse transporte para o desbravamento do Estado de
São Paulo. Tamanha foi a centralidade desse modal de transportes
para o desenvolvimento paulista no século XX, que Monbeig (1984)
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 113

escreve: “no Estado de São Paulo existem autênticas regiões


ferroviárias”.
A ferrovia foi responsável, também, pela construção de um
patrimônio arquitetônico que dá origem à formação de cidades. No
entanto, a ausência de registros desses patrimônios, sobretudo na
região da Alta Sorocabana (região Oeste de São Paulo), dificulta sua
preservação, sendo necessária uma primeira ação de
reconhecimento desses conjuntos para garantir a sua salvaguarda.
Em Regente Feijó, o poder público municipal tem ocupado algumas
dessas edificações, promovendo sua reutilização e refuncionalização
dos espaços, assim como realizando obras de intervenção sem
qualquer avaliação da importância do patrimônio para a comunidade.
Isso, em boa medida, descaracterizou parte daquelas estruturas.
Percebe-se a reincorporação dos edifícios ligados à ferrovia no tecido
urbano, de forma parcial, sem, no entanto, o interesse pelo conjunto.
Com o fim da utilização comercial da linha férrea na antiga
região da Alta Sorocabana, tanto para transporte de passageiros
como de carga, alguns dos seus edifícios foram destruídos. Muitos,
porém, foram descaracterizados, degradados ou, simplesmente,
abandonados. Contudo, essas construções constituem testemunhos
significativos da Arquitetura Ferroviária do Estado de São Paulo.
Mesmo sendo, na sua maioria, obras modestas – como é o caso do
conjunto de Regente Feijó –, são de interesse de preservação, como
afirma a Carta de Veneza. Tais obras, com o passar do tempo,
constituíram importantes componentes para a formação da memória
ferroviária, bem como da própria memória das cidades por onde a
ferrovia passou.
Em entrevista junto aos moradores do Município de Regente
Feijó, nota-se que o conjunto histórico e arquitetônico da ferrovia
guarda lembranças do início da história local. Uma das moradoras
relatou que, em torno dos trilhos, foram sendo construídas as
residências e instalados os serviços. Regente Feijó nasceu a partir da
114

ferrovia. Dizer que a ferrovia são os trilhos, a estação e os galpões –


excluindo-se as casas dos operários – é não conhecer a nossa
história. As casas ainda preservam muitas das características originais
e fazem parte do cenário da ferrovia, diz ela.
Por ser a ferrovia o principal meio de transporte – e por dar
origem aos núcleos urbanos destas cidades – constituiu um marco
referencial, tendo sido construídas, próximas às estações, praças,
edificações públicas e privadas e indústrias, por meio das quais se
formou um conjunto arquitetônico e urbanístico significativo para as
gerações que deram origem ao lugar e o vivenciaram, definindo,
inclusive, suas identidades (FAINSTEIN, 2001). As marcas desse
momento inicial de urbanização ainda permanecem naquele espaço,
como registro dos primeiros tempos das cidades, configurando um
significativo patrimônio urbano, ferroviário e industrial.
Em Regente Feijó não foi diferente: o conjunto urbano foi
formado pela estação ferroviária, galpões, casas e praça. Embora o
conjunto inicial tenha sido construído em 1919, a atual estação é de
1960 e esse conjunto possui Arquitetura Convencional. Embora
sejam apenas quatro unidades habitacionais, há uma hierarquia nas
suas tipologias, com duas casas isoladas e duas geminadas. A Figura
08 apresenta a localização do complexo ferroviário na região central
de Regente Feijó.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 115

Figura 08 - Localização do complexo ferroviário.

Fonte: Corrêa; Garcia; Rodrigues e Falavigna (2014).

Analisando a localização das edificações do complexo


ferroviário de Regente Feijó, nota-se a sua disposição linear e
proximidade. Com a desocupação das residências, um novo uso deve
ser buscado, supostamente atendendo aos interesses da população
local e integrando a praça, a estação, os galpões e as residências.
A seguir, cada elemento desse conjunto é inventariado.

3.1 A PRAÇA DOS PIONEIROS

A Praça dos Pioneiros (Figuras 09 e 10), também faz parte do


conjunto arquitetônico histórico, pois é do mesmo período da
fundação do município. Caracteriza-se, então, como uma expressão
cultural contínua, pois, como é próprio da construção do espaço e
das características arquitetônicas, representa um símbolo concreto,
que remete aos primeiros habitantes do início do núcleo urbano.
116

Figuras -9 e 10 - Praça dos Pioneiros de Regente Feijó.

Fonte: as autoras (2016).

3.2 GALPÕES

Os dois galpões do antigo Complexo Ferroviário de Regente


Feijó tinham como função principal o depósito de mercadorias, as
quais seriam transportadas pela própria Estrada de Ferro Sorocaba
(Figuras 11 e 12).

Figuras 11 e 12 - Galpões ferroviários.

Fonte: Corrêa; Garcia; Rodrigues e Falavigna (2014).

Os períodos mais importantes da história desses galpões estão


relacionados: à inauguração da Estação Ferroviária em 1919; à
construção, em 1960, de um novo edifício da Estação; ao seu
abandono, em 2000 e a uma última reforma, em 2001. Em relação ao
seu uso atual, um deles funciona como um atelier de costura, no qual
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 117

são oferecidos cursos para a população durante a semana. O outro


comporta um depósito para material reciclável, utilizado pela
população para a fabricação de enfeites de Natal. A Figura 13
apresenta a planta dos dois galpões do patrimônio ferroviário de
Regente Feijó.

Figura 13 - Planta dos galpões do patrimônio ferroviário de Regente Feijó.

Fonte: Corrêa; Garcia; Rodrigues e Falavigna (2014).

3.3 AS CASAS DOS TRABALHADORES DA FERROVIA

De maneira geral, o número de moradias construídas pelas


ferrovias em São Paulo estava estritamente relacionado à extensão
das linhas férreas. Por concentrarem as mercadorias produzidas na
região, as cidades que eram ponto final das ferrovias ofereciam um
grande acúmulo de tarefas. Além da produção com destino a Santos,
os armazéns dessas cidades recebiam os produtos importados que
chegavam e eram distribuídos para toda a região. Essas cidades,
portanto, concentravam expressivo número de casas construídas
pelas companhias ferroviárias. Fatores como esses, podem, muitas
vezes, explicar o maior crescimento de certas cidades, por possuírem
uma gama maior de atividades, e o abandono de outras, que eram
dependentes demais da ferrovia.
118

Sobre as moradias, registram-se relatos da E. F. Sorocabana


que demonstram a preocupação da companhia no investimento em
habitação para seus funcionários:

Parece-nos de imprescindível necessidade atacar com intensidade o


concerto e mesmo reforma geral da maioria dos edifícios da Estrada.
Com verbas sempre exíguas, que tem tido esta Divisão, e dentro das
quaes nos cingimos estrictamente, têm sido relegados para melhor
época taes concertos. Urge, também, no interesse não só dos
empregados como principalmente da própria Estrada, cuidar da
moradia do seu pessoal, o que trará com o conforto melhor que se
lhe der, maior fixação em seus postos e maior disposição para o
trabalho. Há na Sorocabana necessidade de abrigar talvez 15% dos
empregados que, por força de suas occupações, fazem jus à moradia
por conta da própria Estrada. (RELATÓRIO ESTRADA DE FERRO
SOROCABANA, 1935, p. 205 apud MORAIS, 2002, p. 101 - 102).

Com um total de 2.704 casas e 45 apartamentos, a Estrada de


Ferro Sorocabana foi a companhia ferroviária paulista que construiu
maior número absoluto de casas espalhadas por toda a extensão da
ferrovia, destacando-se pela diversidade dos núcleos construídos.
Alguns fatores podem explicar o fato de a Sorocabana ter realizado o
maior investimento habitacional, quando comparada com as outras
companhias paulistas. O primeiro deles, sem dúvida, foi o fato de a
Companhia possuir a maior extensão de linhas e o maior número de
funcionários (MORAIS, 2002).
O conjunto de moradias que servia de apoio ao funcionamento
da ferrovia em Regente Feijó é formado por unidades unifamiliares
distribuídas em frente à estação, sendo duas unidades geminadas e
duas unidades isoladas no lote. As casas foram construídas em frente
à estação ferroviária e não ao lado dos trilhos, situação encontrada
em outras cidades. As casas que ainda não foram demolidas são
utilizadas como habitação e mantêm suas características principais.
Infelizmente, é o próprio poder público municipal que está à frente
do processo de demolição dessas moradias, não as reconhecendo
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 119

como parte do conjunto histórico existente. As casas foram


numeradas de 1 a 4, da direita para a esquerda (Figura 14).

Figura 14 - Foto panorâmica das quatro casas.

Fonte: Corrêa; Garcia; Rodrigues e Falavigna (2014).

As tipologias apresentam cinco ambientes (uma sala, dois


quartos, uma cozinha e um banheiro externo), com
aproximadamente 62 m² de área construída. A tipologia encontra-se
sobre um porão elevado a 60 cm do solo; o chão dos quartos e da
sala é feito em ripas paralelas de madeira e a cozinha possui um
contrapiso de concreto. O forro é de madeira trançada, formando
uma espécie de grade. Todas as janelas são do tipo balcão,
confeccionadas em madeira. A cobertura é em telhas de cerâmica
vermelha sobre estrutura de madeira. As paredes são de alvenaria de
tijolos aparentes. As casas não possuem um terreno delimitado, uma
garagem, ou uma área de serviço, sendo, então, improvisados
espaços ao seu redor. O projeto original é apresentado na Figura 15.
120

Figura 15 - Cobertura e módulo original da casa.

Fonte: Moretti; Santos; Ribeira e Louzada (2014).

Casa 1

Essa casa (Figuras de 16 a 19) localiza-se na esquina entre a


Avenida Regente Feijó e a Rua Vicente Perini. Em meados de 2016,
nela residia a senhora Rosane Antunes de Oliveira, filha de um antigo
ferroviário. Apresenta o módulo original, porém com algumas
expansões feitas posteriormente.

Figura 16 - Planta da casa 1 com expansões.

Fonte: Moretti; Santos; Ribeira e Louzada (2014).


Patrimônios na Cidade Contemporânea - 121

Figuras 17 e 18 - Casa 1 localizada na esquina da rua Vincente Perini, com a Avenida Regente
Feijó. Conjunto Arquitetônico que compõe o Conjunto Ferroviário de Regente Feijó.

Fonte: as autoras (2016).

Figura 19 - Placa de identificação da Casa 1, retirada em função do processo de demolição.

Fonte: as autoras (2016).

Dessa casa ainda resta a fachada, com as características


originais preservadas, o que possibilita um novo uso. Os tijolos da
parte demolida ainda estão, em parte, na área e podem ser
aproveitados em um projeto de revitalização dessa mesma área.

Casa 2

Localiza-se ao lado da Casa 1, já na Rua Vicente Perini.


Apresenta o módulo original e está muito bem conservada (Figuras
20 a 23). Em 16/06/2016, nela residia o Senhor Celso de Souza Dias,
também ex-ferroviário.
122

Figuras 20 e 21 - Lado esquerdo da Casa 2, localizada na Rua Vincenti Perini (Figura 20).
Vista frontal da Casa 1 (Figura 21).

Fonte: as autoras (2016).

Figuras 22 e 23 - Casa 2, localizada na Rua Vincenti Perini, vistas gerais.

Fonte: as autoras (2016).

Casa 3

Esta casa é geminada (Figuras de 24 a 28). Preservava, até


início de 2016, o módulo original e uma expansão. Em conversa com
o antigo morador, este afirmou ter trabalhado efetivamente na
ferrovia. O morador deixou a residência em 2016, após processo
movido pelo poder público municipal. Residia ali com a sua esposa e
diz ter criado quatro filhos naquela casa, que teve que abandonar.
Depois que os filhos saíram de casa, ele aproveitou um dos quartos
para fazer um banheiro maior.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 123

Figura 24 - Planta da Casa 3, com expansões.

Fonte: Moretti; Santos; Ribeira e Louzada (2014).

Figuras 25, 26, 27 e 28: Fachadas preservadas das casas geminadas denominadas 3 (Casa da
esquerda) e 4 (Casa da direita). Da casa 3 resta apenas a fachada. Da casa 4, a demolição
encontra-se em estágio avançado (aproximadamente 50% das estruturas).

Fonte: as autoras (2016).

Casa 4

Essa habitação, conforme pode ser visto na Figura 29, é


geminada com a Casa 3 e é a única que possui a aparência mais
próxima da original. Apresenta, contudo má conservação.
124

Figura 29 - Planta da habitação 4 com expansão.

Fonte: Moretti; Santos; Ribeira e Louzada (2014).

A numeração do patrimônio ferroviário também pode ser vista


na fachada dessa habitação (Figuras 30 e 31). A ex-moradora
entrevistada nos disse que a casa pertencia ao pai dela, que
trabalhou na ferrovia.

Figuras 30 e 31 - Numeração do patrimônio ferroviário e residência antes da demolição.

Fonte: Moretti; Santos; Ribeira e Louzada (2014).

As casas geminadas estão em processo de demolição e foi


possível identificar três tipos de tijolos da Companhia Estrada de
Ferro Sorocabana, demonstrando que todo o material construtivo foi
trazido para o Município de Regente Feijó, por meio do sistema
ferroviário (Figuras de 32 a 37).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 125

Figuras 32, 33 e 34 - Fundo da casa geminada, 4 e fachada em processo de demolição,


lado direito, 16/06/2016.

Fonte: as autoras (2016).

O material construtivo já foi levado, em parte, pelo antigo morador


com autorização da Prefeitura Municipal de Regente Feijó, SP.

Figuras 35, 36 e 37: tipos de tijolos encontrados na demolição com a inscrição da


Estrada de Ferro Sorocabana.

Fonte: as autoras (2016).

4 O PATRIMÔNIO URBANO E SUA PRESERVAÇÃO

Segundo Nascimento e Scifoni (2010), a proteção da paisagem


frente às transformações presentes no local deve compatibilizar-se
com formas de desenvolvimento social e econômico para garantir
sua preservação e valorização cultural.
No Brasil, desde a edição do Decreto Federal nº 25, de 1937, a
paisagem cultural é considerada um novo mecanismo de proteção do
patrimônio (Portaria nº 127, de 30/04/2009). O campo abordado
pelo patrimônio cultural busca evidenciar o interesse público e,
sendo assim, deveria ser compartilhado com os cidadãos. Nesse
sentido, tal campo revela uma atividade complexa, que exige uma
crítica rigorosa, demandando, além da capacidade de suas
126

preferências pessoais, englobar os significados, valores, consciência e


aspirações que fazem de nós seres humanos constituintes de um
bem cultural (MENESES, 2012).
A reflexão acerca do conceito de patrimônio urbano ressalta
que a sua preservação deve manter o respeito às preexistências e o
reconhecimento dos valores urbanos e sociais do espaço. Com isso, é
estabelecida a preservação dos sítios urbanos, sempre com o apoio
dos cidadãos, para manter a identidade de cada lugar.
Os bens do patrimônio ferroviário em análise são passíveis de
reconhecimento por simbolizar a formação e emancipação de
Regente Feijó a partir da chegada da linha férrea, além do
sentimento de vivência e pertencimento dos moradores da cidade.
A Praça dos Pioneiros representa o local de encontro dos
primeiros habitantes que passaram por essa área. Nos dias atuais, o
conjunto arquitetônico exerce outras funções, destacando-se, dentre
elas, os projetos sociais que têm lugar nos galpões.
Muller (2006) aborda que a preservação de patrimônio
industrial é indicada pelo significado cultural de valor estético e/ou
histórico em conjunção com valores simbólicos, afetivos e
emocionais. Como exemplo disso, temos o valor afetivo e simbólico
dos moradores, associado a determinadas atividades como
transporte, comércio e sociabilidade e à vinculação com o passado,
na história e cultura da comunidade regentense.
A paisagem cultural do conjunto arquitetônico e histórico da
Estação Ferroviária de Regente Feijó reúne várias dimensões do
patrimônio cultural. Dentre elas, destacam-se as edificações da
própria estação e dos galpões; as casas dos antigos funcionários da
ferrovia que apresentam, inclusive, número de patrimônio da
FEPASA; os trilhos de trem que percorrem todo o sítio urbano de
Regente Feijó nas áreas de espigões – outrora habitados pelos índios
Kaingang (FACCIO; LUZ, 2016); e a Praça dos Pioneiros, que foi
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 127

construída em homenagem aos primeiros colonos que chegaram ao


vilarejo por meio da Estrada Boiadeira e da ferrovia. Nessa praça,
próxima às primeiras edificações, destaca-se o coreto, com
arquitetura modernista. Este é um conjunto de obras modestas, mas
que adquiriram importância e valor cultural com o tempo.
Os moradores do Município conhecem quais são os bens de
importância histórica e cultural da cidade. Apesar desse
reconhecimento, não existem muitas informações documentadas a
respeito da formação do município e de sua configuração urbana.
Portanto, é de extrema importância que os bens – móveis ou imóveis
– da cidade sejam preservados, garantindo maior valorização, pela
população e pelo Poder Público.
Segundo Muller (2006), o patrimônio ferroviário apresenta
uma arquitetura, fruto da industrialização, com preservação ruim,
ameaçada, sendo o processo do tombamento uma das formas de
garantir a preservação desses bens.
O tombamento de bens edificados no âmbito do Município
pode ser importante quando o poder local apoia a preservação do
patrimônio. Contudo, quando esse apoio não é efetivo, o
tombamento pode ser anulado pelo Prefeito, a qualquer tempo.
Dessa forma, o tombamento pelo CONDEPHAAT e IPHAN são os
procedimentos que garantem proteção mais efetiva aos bens.
O programa de intervenção para ferrovias e preservação do
patrimônio cultural ferroviário tem como objetivo estabelecer
diretrizes básicas para o planejamento e execução do programa de
preservação, como a valorização e revitalização do patrimônio
ferroviário enquanto bem arqueológico histórico:

[...] considerando o caráter transversal que rege a investigação


arqueológica contemporânea, as ações de preservação do patrimônio
ferroviário focarão além das expressões materiais da cultura dadas
por objetos, fragmentos de trilhos, linhas, percurso ferroviário,
estações ou ruínas de edificações de apoio, arquivos documentos
históricos, iconografia, plantas, projetos, ferroviários, autores de
128

projetos ferroviários, dentre outros. Há de se ter em conta os


patrimônios materiais, imateriais e outros tipos de patrimônio como
as paisagens culturais, as paisagens biopolíticas em sua forma, função
e mudanças, que podem ser componente auxiliar no entendimento
do processo de industrialização do Brasil. (BASTOS; SOUZA, p. 226,
2010).

A gestão do patrimônio ferroviário está contemplada na


Portaria IPHAN 230 - de 17 de dezembro de 2002 (BASTOS; SOUZA,
2010). De acordo com essa portaria, a preservação do patrimônio
deve ser apropriada por todos que têm direito a ele.
Segundo Kühl (2008), a preservação de um bem patrimonial é
um processo seletivo, seja por meio de escolhas conscienciosas e
legitimadas por meio dos instrumentos oferecidos pelas
humanidades, seja pela ausência de ação proposicional de tutela, que
resulta na destruição ou sobrevivência aleatória dos bens, que será,
assim, ditada, em geral, por questões econômicas.
A autora ainda aborda que tal processo deveria ser resultado
de um programa amplo sobre tutela de bens culturais (e também
naturais) como um todo e fruto de ações conscientes da sociedade,
sendo que os critérios variarão com o tempo e um dado presente
histórico em relação a esses bens e o modo como se operou essa
seleção. Disso decorre a necessidade de agir de modo embasado nos
instrumentos cognitivos que um dado presente histórico possui
(KÜHL, 2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conjunto histórico e arquitetônico, que compreende as


edificações remanescentes da ferrovia e a Praça dos Pioneiros,
constitui um bem reconhecido na historiografia e pela população de
Regente Feijó, do Oeste Paulista e do Estado de São Paulo. Contudo,
a Prefeitura de Regente Feijó, sem consulta prévia à população,
decidiu demolir as casas dos ferroviários, ação que foi interrompida
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 129

em 2016 pelo protocolo de um processo de tombamento da área


junto ao CONDEPHAAT.
A ação baseou-se na Norma de Quito (1967), que recomenda a
conservação e utilização de sítios de interesse histórico. A construção
da Rua Vicente Perini, no quintal das casas dos ferroviários, foi o
início da descaracterização da paisagem local. O processo de
tombamento, levado a cabo mais recentemente, visa à identificação
e ao registro oficial dos bens em tela, a fim de assegurá-los pela lei,
garantindo a sua preservação, para que possam, eventualmente,
cumprir uma função social.
Para tanto, sabe-se que não basta o ato oficial do
tombamento. É necessário conciliá-lo com uma política de
preservação do patrimônio público.
O protocolo do processo de tombamento, realizado por
moradores locais com apoio da universidade, foi um primeiro passo
para a salvaguarda e gestão desse conjunto histórico e arquitetônico.
A valorização do patrimônio histórico e arquitetônico ferroviário de
Regente Feijó, no entanto, depende do reconhecimento da
população, do poder público local e de uma política de educação
patrimonial que se inicie já no Ensino Fundamental. Dessa forma, os
preceitos da Norma de Quito e do Conselho da Europa terão efetiva
vigência em Regente Feijó.

REFERÊNCIAS

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Superintendência do IPHAN em São Paulo. 3 ed., 2010.
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132
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 133

Capítulo 6

ORDENS SUPERIORES? SOBRE OS PROCESSOS DE


TOMBAMENTO DO CONDEPHAAT PARA BENS DO GOVERNO
FEDERAL (1969 – 1984)21 22

Ewerton Henrique de Moraes23


24
Eduardo Romero de Oliveira

Os conflitos entre interesses públicos e privados são um tema


recorrente nas discussões sobre patrimônio cultural. Diferente do
que indicaria o senso comum, as disputas ocasionadas pelo
tombamento não estão restritas ao proprietário privado, aparecem
também quando da proteção de bens da administração pública. Este
capítulo problematiza as ações do Conselho de Defesa do Patrimônio
Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) em bens de
propriedade do Governo Federal entre 1969 e 1984. A amostra
investigada é composta pelos bens ferroviários protegidos em nível
estadual durante o período indicado pelo recorte. Os processos de
tombamento foram a principal fonte de pesquisa. Entre os
resultados, identificamos que na prática ocorreu uma limitação das
ações do CONDEPHAAT em bens federais.

21
Processo 2014/04139-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
22
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de
responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
23
Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Professor Substituto da Universidade Estadual Paulista
(UNESP). ewertonhenrique_adm@yahoo.com.br
24
Doutor em Filosofia, Professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
eduardo@rosana.unesp.br
134

1. INTRODUÇÃO

Temos claro que a escolha e efetivação da proteção oficial de


um bem cultural não ocorrem de forma aleatória. O tombamento é o
resultado final de um processo administrativo que indica os méritos
da proteção, e, como parte de suas atribuições, impõe limite ao
exercício da propriedade em benefício de interesses coletivos de
preservação (RABELLO, 2009; MIRANDA, 2006). Desta forma, o
patrimônio está sujeito a disputas simbólicas e econômicas (FONSECA
1997; RODRIGUES, 1996).
A proteção culmina também em alteração do valor imobiliário
dos bens. Esse fato, considerada a ausência de uma compensação
financeira, faz com que em muitos casos o tombamento seja
percebido como uma punição (RODRIGUES, 1996). Para autora, este
tipo de proteção contém uma supremacia do interesse público sobre
o privado, contudo, alerta que nem sempre isso se reverte em
benefício do primeiro, sendo, dessa forma, contraditório. Rodrigues
(1996) menciona como exemplo a pretensão do Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
(CONDEPHAAT) em preservar casarões da Avenida Paulista em São
Paulo em 1982, o que resultou na destruição da maior parte daqueles
imóveis, ação promovida pelos proprietários.
Fica clara a existência de um conflito de interesses entre o
interesse público e o particular, representados pelo tombamento e
exercício integral da propriedade, respectivamente. Contudo, não é
possível afirmar que as divergências estão restritas ao proprietário
particular. A experiência desta pesquisa comprovou que, por vezes, o
conflito aparece também entre diferentes esferas e ou empresas
públicas (MORAES, 2016).
Este capítulo apresenta uma análise atenta à posição e postura
dos proprietários, neste caso, a Coordenadoria das Empresas
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 135

Incorporadas ao Patrimônio Nacional (CEIPN) e a Rede Ferroviária


Federal (RFFSA). Assim, a proposta é compreender como se deu a
relação entre o CONDEPHAAT e estas empresas entre 1969 e 1984.
Em outras palavras, qual a postura das empresas públicas federais
nos casos de tombamento pelo órgão estadual paulista?

2. MATERIAIS E MÉTODOS

Este capítulo é parte dos resultados da dissertação Os Bens


Ferroviários nos Tombamentos do Estado de São Paulo (1969 – 1984)
(MORAES, 2016). O conteúdo está baseado em uma pesquisa
exploratória, desenvolvida na forma de estudo de caso.
Para atingir o objetivo trabalhamos com os processos de
tombamento de bens ferroviários concluídos entre 1969 e 1984. O
recorte está definido entre a abertura do processo da Estação
Ferroviária de Bananal e a decisão de tombamento da Estrada de
Ferro Perus Pirapora, período investigado na dissertação. A amostra
selecionada é compatível e representativa para compreensão das
ações do órgão de defesa estadual. Todos os processos abrangidos
são de propriedade ou geridos pela administração pública, sendo a
maior parte da esfera federal.
Foram consultados 20 processos de tombamento estaduais.
Este material está disponível para consulta, mediante solicitação, no
Centro de Documentação do CONDEPHAAT (CEDOC), localizado na
cidade de São Paulo. Nesta nova reflexão a quantidade de
documentos efetivamente utilizados foi menor, sendo um caso
principal e outros cinco complementares. O Acervo da Estrada de
Ferro Perus Pirapora foi escolhido como objeto de estudo. A seleção
teve como critérios a propriedade do bem e o nosso domínio sobre o
caso, bem cultural investigado em outras oportunidades. Juntam-se a
este os documentos das estações ferroviárias de Bananal, Cachoeira
136

Paulista, Guaratinguetá, Luz e Brás. As estações tem em comum o


fato de terem pertencido à Rede Ferroviária Federal (RFFSA).
A relevância do processo enquanto fonte está na importância
das informações que concentra, sendo entendido por nós como um
registro oficial das práticas de preservação. Em função da natureza
conflitante dos interesses na proteção de bens imóveis e do peso dos
monumentos no patrimônio nacional, os processos de tombamento
constituem espaços de expressão desses confrontos, “[...] onde se
podem captar as várias vozes envolvidas na questão da preservação e
sua influência na condução dos processos” (FONSECA, 1997, p.181).
A presença dos processos e a relevância dos resultados
alcançados por outros trabalhos também foram consideradas
(OLIVEIRA, 2010; PRATA, 2009; FONSECA, 1997; RODRIGUES, 1994).
Tais leituras nos auxiliaram também na construção do instrumento
de coleta. A Ficha para Coleta de Dados foi elaborada para registrar
os diferentes argumentos apresentados pelos diferentes agentes
envolvidos no processo. Ela conta com campos específicos para o
registro individual das justificativas do solicitante para abertura,
corpo técnico e decisão do Conselho, divisão baseada na hipótese de
existência de percepções distintas – comprovada ao final da
dissertação (MORAES, 2016). Este instrumento foi adaptado a partir
de outras propostas desenvolvidas no Laboratório de Patrimônio
Cultural da UNESP, como exemplo o próprio artigo de Oliveira (2010).
Consideramos também a legislação estadual específica que
orienta as ações do CONDEPHAAT. Destacamos a Lei n°10.247 de 22
de Outubro de 1968, que dispõe sobre a competência, organização e
funcionamento do órgão de defesa (SÃO PAULO, 1968).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 137

3. RESULTADOS

3.1 PROPRIEDADE E TEMPO DE TRAMITAÇÃO DOS PROCESSOS

Além dos processos abrangidos pelos critérios de seleção,


temporal e propriedade do Governo Federal, cabe informar que
todos os bens ferroviários estudados pelo CONDEPHAAT estavam em
poder da administração pública. A única exceção poderia ter sido o
Acervo da Estrada de Ferro Perus Pirapora, que anterior ao processo
era uma ferrovia particular. Contudo, em função de uma ação de
confisco – não relacionada ao tombamento – estava sob a
administração federal (Tabela 01).

Tabela 01 – Propriedade dos Ferroviários Tombados (1969-1984)


Tabela 1 - A Propriedade dos Bens Ferroviários Tombados (1969 - 1984)

Bem Tombado Ano de Abertura Número do Processo Proprietário Instituição

Estação Ferroviária de Bananal 1969 15465/69 Governo Federal (União) Pública


Horto e Museu Edmundo Navarro de
1974 00428/74 FEPASA Pública
Andrade
Estação Ferroviária de Santa Rita do
1974 00467/74 Prefeitura Municipal Pública
Passa Quatro
Estação da Luz 1976 20097/76 RFFSA Pública

Estação Ferroviária de Cachoeira Paulista 1977 20316/77 RFFSA Pública

Estação Ferroviária de Campinas 1978 20682/78 FEPASA Pública

Estação do Brás 1978 20699/78 RFFSA Pública


Acervo da Estrada de Ferro Perus
1980 21273/80 Governo Federal (CEIPN) Pública
Pirapora
Estação Barracão 1980 21364/80 FEPASA Pública

Estação Ferroviária de Guaratinguetá 1982 22090/82 RFFSA Pública

Fonte: Elaborado
Fonte: Elaborado pelo autorpelo autor
com base com base
em CONDEPHAAT em CONDEPHAAT (2015)
(2015).

O processo do acervo da Estrada de Ferro Perus Pirapora é o


mais longo entre os casos em estudo e o segundo quando
consideramos todos os concluídos entre 1969 e 1984. Foram 2.240
dias, aproximadamente sete anos, entre a abertura e a publicação da
Resolução de Tombamento (Figura 01).
138

Figura 01 - Duração dos Processos de Tombamento de Bens Ferroviários (1969 - 1984)

Fonte: Elaborado pelo autor, com base nos processos citados.

No caso da EFPP, o prolongamento das discussões possui


relação direta com a propriedade. Mário Savelli, Conselheiro Relator
do Processo, em parecer de 08 de abril de 1985, afirma que múltiplas
ocorrências contribuíram para a lenta tramitação, a primeira delas o
fato de o acervo ter estado sob o controle da Coordenadoria das
Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional (CEIPN) (PROCESSO
CONDEPHAAT 21273/80, 1980).

3.2 O POSICIONAMENTO DA CEIPN

Em 1980, por motivo de confisco, o Acervo da Estrada de Ferro


Perus Pirapora foi administrado por uma empresa pública federal. A
CEIPN, órgão federal extinto, era subordinada ao Ministério da
Fazenda, sendo considerado órgão central de direção superior de
atividades específicas, conforme o Decreto Federal n° 76.085, de 06
de agosto de 1975 (BRASIL, 1975). Conforme o artigo 17 do mesmo
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 139

documento compete ao órgão: supervisionar, coordenar, orientar e


fiscalizar as empresas incorporadas ao Patrimônio Nacional e outros
bens que lhe venham a ser jurisdicionados, visando o seguimento,
unificação ou alienação desses bens.
O posicionamento desse órgão foi manifestado em junho do
mesmo ano, apresentado como um questionamento sobre a
abertura do processo de tombamento (PROCESSO CONDEPHAAT
21273/80, 1980). A CEIPN informa a situação jurídica do bem e
afirma que essa, sobretudo pelo fato de ser um bem federal,
inviabiliza o registro de tombamento pelo CONDEPHAAT. Conforme
declarado no documento, no entendimento dessa Coordenadoria, a
EFPP estava fora da alçada do conselho estadual, sendo uma
competência do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN). Concluem solicitando que o órgão de defesa reexamine a
decisão e determine o arquivamento do processo ou encaminhe para
o SPHAN, órgão que apontam como competente para o caso
(PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980).

3.3 O CONDEPHAAT E A COMPETÊNCIA LEGAL PARA TOMBAR

O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,


Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) foi criado pelo Governo paulista
em 1967 através da Constituição do Estado de São Paulo (SÃO
PAULO, 1967). Contudo, o início de seu funcionamento é posterior a
esta data. Coube a Lei n° 10.247 de 22 de outubro de 1968 organizá-
lo (SÃO PAULO, 1968).
O primeiro texto a dispor sobre o tombamento de bens em São
Paulo foi o Decreto-lei n°149 de 15 de agosto de 1969 (SÃO PAULO,
1969). Entre outras considerações, afirmava que a ação do
CONDEPHAAT abrangia dos bens “encontrados em seu território”,
cuja proteção se justifique por seus interesses estéticos ou históricos.
Não mencionava qualquer restrição relacionada à propriedade.
140

Tampouco a orientação que substitui o Decreto-Lei aponta tais


limitações. A Lei n°13.426 de 16 de março de 1979 (SÃO PAULO,
1979) foi responsável pela criação da Secretaria de Estado da Cultura.
Por curiosidade, ainda hoje é através dela que estão baseados os
procedimentos do processo de tombamento.
Por outro lado, as dúvidas sobre a competência ou poder do
CONDEPHAAT para determinar a proteção de bens federais
aparecem já no primeiro tombamento abrangido pelo recorte, a
Estação Ferroviária de Bananal (PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69,
1969). Tombada em 1974, a estação foi o 49° bem cultural
reconhecido pelo órgão e, possivelmente, o primeiro edifício da
administração federal analisado (CONDEPHAAT, 2015).25

3.3.1 Estação Ferroviária de Bananal

Em 1969, praticamente simultâneo a abertura do processo, a


Comissão Jurídica (C.J.) chama atenção de que o processo não
esclarece se o bem é uma propriedade da RFFSA, sugerindo que o
mesmo fosse encaminhado órgão de defesa federal em caso
afirmativo (PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69, 1969). Tal
questionamento demandou que o processo retornasse ao
Conselheiro Vinício Stein, representante do Serviço de Museus
Históricos (SMH) e também propositor da proteção (RODRIGUES,
1994; PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69, 1969). Seu argumento é
contrário às considerações anteriores:

A circunstância de pertencer à rede ferroviária federal já define, a


nosso ver, a situação do imóvel, que deve integrar o patrimônio da
União. Contrariamente ao que informa o doutor advogado do SAJ em
sua cota de fls., o fato de tal imóvel pertencer ao Governo Federal
não exclui do tombamento estadual, pois o tombamento nada tem a

25
A confirmação desta informação depende do levantamento de propriedade dos bens
anteriores. Contudo, os esforços demandados e a pouca relevância da informação não
justificam a tarefa.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 141

ver com a propriedade do bem tombado; em da mesma forma, o


tombamento federal não impede igual procedimento do Estado
(PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69, 1969, p. 09).

Considerando o parecer da C.J., a então presidente do


CONDEPHAAT, Lucia Falkenberg, aponta que o assunto deva ser
tratado em nível de cúpula, encaminhando ao Governador do Estado
através do Secretário de Cultura, Esportes e Turismo (PROCESSO
CONDEPHAAT 15465/69, 1969).
Em 23 de novembro de 1970 o Governador determina que seja
acatada a recomendação do Serviço de Assistência Jurídica, parecer
anterior a este e que indicou o encaminhamento ao 4° Distrito do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional com sede em São Paulo
(PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69, 1969). O processo permaneceu
sem andamentos até setembro de 1973, com parecer favorável do
Conselheiro Luis Saia, representante da própria Secretaria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) no CONDEPHAAT.
A mesma questão aparece e influência os processos da Estação
Luz (PROCESSO CONDEPHAAT 20097/76, 1976) e Acervo da Estrada
de Ferro Perus Pirapora (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980).

4. DISCUSSÃO

4.1. ENTRE A LEGALIDADE E A LEGITIMIDADE: O ÓRGÃO ESTADUAL E


A PROTEÇÃO DE BENS DE PROPRIEDADE FEDERAL

Se por um lado não identificamos na legislação qualquer


restrição para a atuação do CONDEPHAAT, a análise dos processos
demonstrou que na prática as ações foram limitadas quando se
tratou da proteção de bens de propriedade federal.
A solicitação de paralisação encaminhada pela CEIPN ao
CONDEPHAAT não possui uma resposta anexa ao processo, contudo,
ela foi efetivada (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980). A prova
142

pode ser identificada em um despacho datado de 09 de julho de


1980: “Encontra-se o presente processo aguardando, nesta
Presidência, por determinação do senhor Secretário” (PROCESSO
CONDEPHAAT 21273/80, 1980, p.76 verso). Não há registros de
andamento até o inicio de 1981, data posterior a conclusão da venda
dos bens.
A Coordenadoria destacou cinco argumentos para demonstrar
a inviabilidade do tombamento estadual: ferrovia ligada apenas ao
transporte industrial; Patrimônio da União, confiscado pelo Governo
através do decreto 74.728, de 18/10/1974; bens em processo de
alienação em fase final; bem pertencente ao Governo Federal e assim
fora das competências do CONDEPHAAT; e, a abertura do processo
acarretará problemas à Administração Federal para conclusão do
processo de alienação (PROCESSO CONDEPHAAT 21273/80, 1980).
Especificamente sobre a competência do órgão estadual,
afirmam:

[...] se o contrário entender [ou seja, seguir com a proposta de


proteção], seja sustada qualquer resolução ou efeito dela resultante,
e encaminhada a matéria para pronunciamento e decisão da
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN que,
pela legislação específica, é o órgão competente na área federal para
o tombamento de bem pertencente à União (PROCESSO
CONDEPHAAT 21.273/80, 1980, p. 73).

As alegações são similares ao que vimos anteriormente no caso


de Bananal e estão presentes também nas discussões sobre o
tombamento da Estação da Luz (PROCESSO CONDEPHAAT 20097/76,
1976). Em todos os casos há uma desconstrução da competência do
CONDEPHAAT e menção ao órgão federal como o representante legal
e legítimo. No exemplo da Estação Luz a argumentação dos
advogados da RFFSA tem um tópico específico para esta questão: “Da
Incompetência do CONDEPHAAT para Tombar bens da R.F.F.S/A”
(PROCESSO CONDEPHAAT 20097/76, 1976).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 143

As contestações da RFFSA parecem estar relacionadas às


necessidades operacionais do sistema ferroviário. Não por menos os
embates são maiores nas estações localizadas na capital São Paulo.
Não há manifestações para os casos de Cachoeira Paulista
(PROCESSO CONDEPHAAT 20316/77, 1977) e Guaratinguetá
(PROCESSO CONDEPHAAT 22090/82, 1982).
O caso da Estação Brás reforça a existência de uma hierarquia
entre as esferas também na proteção do patrimônio. A RFFSA
executou demolições em meio ao andamento do processo e sem
consultar o CONDEPHAAT, destruindo áreas posteriormente
indicadas pelo corpo técnico como de pouco relevância (PROCESSO
CONDEPHAAT 20699/78, 1978). O parecer de Carlos Lemos indica
ainda que os vestígios da estação Brás da SPR seriam preservados,
contudo, talvez com mutilação de um ou dois gomos da cobertura da
plataforma, devido à necessidade de escadas rolantes no local. O que
queremos destacar é a inversão das prioridades – contrária à
legislação – onde as condições da proteção podem ter sido
determinadas pelo projeto.

4.2 QUESTIONAMENTOS SOBRE OS MÉRITOS DO TOMBAMENTO

Ao longo da análise, ficou clara a presença de interesses


econômicos; contudo, ainda que tenha menos ênfase, as
considerações do proprietário foram iniciadas com um
questionamento pertinente ao interesse de preservação:

A Estrada de Ferro Perus Pirapora S.A, com a extensão total de 32,5


km é utilizada unicamente para o transporte de calcário para a
fabricação de cimento, e faz a ligação entre a jazida desse minero em
Cajamar e a fábrica da Cia. Brasileira de Cimento Portland Perus, de
uso e finalidade estritamente industrial e da qual depende
basicamente a fábrica de cimento [...]”. (PROCESSO CONDEPHAAT
21273/80, 1980, p. 71, grifo nosso).
144

O trecho destacado nos parece questionar a possibilidade


desse bem possuir características que justificassem sua proteção. De
fato, a proteção de bens industriais não era algo comum naquele
momento, sendo a consolidação do conceito de patrimônio industrial
também posterior (RODRIGUES, 2010; FONSECA, 1997). Contudo, a
justificativa nos parece mais uma estratégia para invalidar os méritos
do tombamento.
Para melhor exemplificar esta discussão será necessário
recorrer a um exemplo não abrangido pelo recorte: a Estação
Ferroviária de Rio Claro (PROCESSO CONDEPHAAT 22295/82, 1982).
Em 1987, após a decisão pela proteção, a Câmara Municipal de Rio
Claro apresentou manifestação contrária à proteção. Nesse exemplo,
o questionamento não trata da jurisdição do órgão, mas sim de sua
boa fé e competência técnica:

Ouvido o Plenário seja oficiado ao senhor Dr. André Franco Montoro,


Ilustre Governador do Estado de São Paulo, protestando contra a
intromissão indevida do Senhor Modesto Carvalhosa, Presidente do
Condephaat e do Senhor Jorge da Cunha Lima, Secretário da Cultura
do Estado de São Paulo, que, orientados por um grupo de alegres e
desocupados agrediram atrevidamente a propriedade de grande
parte da população rioclarense alegando o tombamento da estação
da FEPASA local, exagerando na fixação da chamada área de
proteção ambiental. [...] É de pasmar tamanha incapacidade [após
apresentar a abrangência da área envoltória] o que vem a comprovar
a falta de habilitação e inexistência curricular do Senhor Jorge da
Cunha Lima para ocupar o importante cargo de Secretário da Cultura
do Estado de São Paulo. (PROCESSO CONDEPHAAT 22295/82, 1982,
p. 243).

Elaborado a partir das manifestações de diferentes


vereadores daquele município, os argumentos posicionam a ação
como contrária ao progresso e desenvolvimento da cidade, sendo
ainda um desrespeito à autonomia municipal (PROCESSO
CONDEPHAAT 22295/82, 1982). Os questionamentos da Câmara
tocam ainda no valor dos objetos; para o grupo, não há qualquer
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 145

valor histórico ou arquitetônico nos barracões e trilhos abrangidos


pela área envoltória.
Ao longo deste tópico, vimos que a contestação ao
tombamento e o posicionamento contrário por parte dos
proprietários foram fatos recorrentes. Não há dúvidas também que,
em parte dos casos, o tombamento foi interpretado pela FEPASA,
pela RFFSA e demais proprietários como uma ação danosa aos
interesses econômicos. Situação percebida também em exemplos
além dos bens ferroviários, como colocado por Rodrigues (1996),
referente aos casarões da Avenida Paulista, em São Paulo.
No caso da EFPP, ficou claro que as disputas superam os
valores simbólicos e representações, o foco estava na propriedade. O
embate entre CONDEPHAAT e os proprietários seguiu mesmo após a
efetivação da decisão do tombamento (PROCESSO CONDEPHAAT
21273/80, 1980).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A limitação da propriedade e a percepção da ação enquanto


um prejuízo pelos proprietários são assuntos já debatidos pela
bibliografia específica. Contudo, este capítulo contribui para a
questão central ao demonstrar a existência e exemplificar conflitos
também entre as esferas da administração pública, neste caso, entre
o CONDEPHAAT e as empresas da União.
Em primeiro lugar, não identificamos na legislação qualquer
definição que limite a ação do órgão de proteção estadual no
reconhecimento de bens federais. Este resultado é reforçado pelos
argumentos apresentados pelo Conselheiro Vinicio Stein em suas
considerações sobre a Estação de Bananal: “[...] o fato de tal imóvel
pertencer ao Governo Federal não exclui do tombamento estadual,
pois o tombamento nada tem a ver com a propriedade do bem
tombado.” (PROCESSO CONDEPHAAT 15465/69, 1969, p. 9).
146

Por outro lado, em todos os exemplos de embate, as empresas


federais afirmam que a proteção não é da alçada do CONDEPHAAT,
sendo o atual IPHAN, o órgão competente. No caso da Estação Luz
(PROCESSO CONDEPHAAT 20097/76, 1976, p. 93), chama a atenção o
título da argumentação “Da incompetência do CONDEPHAAT para
tombar bens da R.F.F.S/A.”. O texto constrói e defende uma lógica de
hierarquia entre as instituições, alegando que apenas o órgão federal
está apto para julgar tais proteções. O mesmo pode ser percebido no
Acervo da Estrada de Ferro Perus Pirapora (PROCESSO CONDEPHAAT
21273/80, 1980).
Embasada pela legislação ou não, confirmamos que a atuação
do CONDEPHAAT em bens federais foi limitada no período
investigado (1969 – 1984). Mesmo que em todos os casos a decisão
de tombamento tenha sido efetivada ao final, esta restrição trouxe
consequências para o patrimônio. No caso da Estação Brás, a RFFSA
executou demolições em meio ao andamento do processo e sem
consultar o CONDEPHAAT, destruindo áreas posteriormente
indicadas pelo corpo técnico como de pouco relevância (PROCESSO
CONDEPHAAT 20699/78, 1978). O parecer de Carlos Lemos indica
ainda que os vestígios da estação Brás da SPR seriam preservados,
contudo, talvez com mutilação de um ou dois gomos da cobertura da
plataforma, devido à necessidade de escadas rolantes no local. O que
queremos destacar é a inversão das prioridades – contrária à
legislação – onde a proteção foi determinada pelo projeto.
Em menos ocasiões, foram questionados também os méritos
do tombamento. A E.F. Perus Pirapora é um exemplo brando, uma
vez que a CEIPN apenas menciona o fato de ser uma ferrovia
industrial, considerando-a, assim, sem relevância. Já outro caso
incluído, a Estação de Rio Claro, os argumentos da Prefeitura
Municipal de Rio Claro questionam a legalidade e legitimidade da
ação. A contestação da Câmara Municipal ofende os profissionais e
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 147

questiona suas capacidades de julgar (PROCESSO CONDEPHAAT


22295/82). Mesmo que não tenha surtido qualquer efeito, trata-se
de um exemplo de conflito com a esfera municipal.
Assim sendo, compreendemos que na prática a relação do
CONDEPHAAT com as empresas da administração pública federal foi
marcada pela falta de reconhecimento de sua competência. Este
resultado corrobora ainda para a percepção de que o patrimônio é
um campo de disputas e que a questão está além dos valores
estéticos históricos (MORAES, 2016; FONSECA, 1997; RODRIGUES,
1994).

REFERENCIAL

FONSECA, M. C. L. O Patrimônio em Processo: trajetória de política federal de


preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Minc – IPHAN, 1997

MIRANDA, M. P. DE S. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del


Rey, 2006.

MORAES, E. H. Os bens ferroviários nos tombamentos do Estado de São Paulo (1969


– 1984). 2016. 191 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Bauru, 2016. Disponível em:
<http://repositorio.unesp.br/handle/11449/135887>. Acesso em: 01 ago. 2016.

OLIVEIRA, E. R. Patrimônio Ferroviário do Estado de São Paulo: as condições de


preservação e uso dos bens culturais. Projeto História (PUCSP), v. 40, p. 179 – 2003,
2010.

PRATA, J.M. Patrimônio Cultural e Cidade: práticas de preservação em São Paulo,


2009. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São
Paulo, 2009.

RABELLO, S. O Estado na Preservação de Bens Culturais: o tombamento. Rio de


Janeiro: IPHAN, 2009.

RODRIGUES, M. De quem é o patrimônio? Um olhar sobre a prática preservacionista


em São Paulo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 24. p. 196 –
203. 1996.
148

__________. Alegorias do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo 1969 -


1987. Tese (Doutorado). Departamento de História do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Campinas, 1994.

Legislação

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Decreto nº 76085, de 06 de agosto de


1975. Dispõe sobre a Estrutura Básica do Ministério da Fazenda e dá outras
providências. Decreto Nº 76.085, de 6 de Agosto de 1975. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-76085-6-agosto-
1975-424653-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 30 nov. 2015.

BRASIL. Decreto nº 74728, de 18 de outubro de 1974. Altera os Decretos nº 72.523,


de 25 de julho de 1973 e 72.562, de 31 de julho de 1973, que confiscam bens da
Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus e da Estrada de Ferro Perus-
Pirapora S. A., e dá outras providências.. Decreto N°74728 de 18/10/1974. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D74728.htm>.
Acesso em: 30 nov. 2015.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do


Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Lista de Bens Tombados
(em ordem cronológica dos tombamentos). 2014. Disponível em:
<http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/SEC/Condephaat/Bens Tombados/até
dez.14_CRONOLÓGICA.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2015.

SÃO PAULO (Estado). Constituição (1967). Constituição do Estado de São Paulo. São
Paulo, Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/leis/constituicoes/constituicoes-
anteriores/constituicao-estadual-1967/>. Acesso em: 30 nov. 2015.

SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 13426, de 16 de março de 1979. Cria a Secretaria de


Estado da Cultura. Decreto N° 13.426, de 16/03/1979. São Paulo, SP, Disponível em:
<http://www.al.sp.gov.br/norma/?id=53222>. Acesso em: 30 nov. 2015.

SÃO PAULO (Estado). Lei nº 10247, de 22 de outubro de 1968. Dispõe sobre a


competência, organização e o funcionamento do Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, criado pelo Artigo 128 da
Constituição Estadual e dá outras providências. São Paulo, SP, Disponível em:
<http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1968/lei-10247-
22.10.1968.html>. Acesso em: 08 jan. 2015.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 149

Processos de Tombamento

SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do


Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
22295/82. Estação Ferroviária de Rio Claro. São Paulo: CONDEPHAAT, 1982.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
22090/82. Estação Ferroviária de Guaratinguetá. São Paulo: CONDEPHAAT, 1982
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
21273/80. Acervo da Estrada de Ferro Perus Pirapora. São Paulo: CONDEPHAAT,
1980.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
20699/78. Estação Ferroviária do Brás (São Paulo). São Paulo: CONDEPHAAT, 1978.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
20316/77. Estação Ferroviária de Cachoeira Paulista. São Paulo: CONDEPHAAT, 1977.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
20097/76. Estação Ferroviária da Luz (São Paulo). São Paulo: CONDEPHAAT, 1976.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. Processo CONDEPHAAT
15465/69. Estação Ferroviária de Bananal. São Paulo: CONDEPHAAT, 1969.
150
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 151

Capítulo 7

JARDINS HISTÓRICOS E SUA DIMENSÃO AMBIENTAL:


PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DE UMA METODOLOGIA

Inês El-Jaick Andrade26

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo integra parte da tese de doutorado27 da autora


defendida no programa de pós-graduação em arquitetura e
urbanismo da Universidade de São Paulo no ano de 2009. Têm como
objetivo discutir como que as intervenções no entorno dos jardins de
interesse histórico podem causar impactos negativos no meio físico,
no meio estético, no meio psicológico e no meio climático, os quais
podem prejudicar e comprometer a preservação. Reflete sobre a
necessidade de estabelecer diretrizes claras nos instrumentos de
gestão do entorno a serem aplicados no cotidiano pelos órgãos
competentes do patrimônio histórico.
Diante dos crescentes problemas ambientais torna-se
importante debater e buscar novas perspectivas para o planejamento
da vegetação urbana nas cidades - o patrimônio verde público

26
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo/Universidade de São Paulo, arquiteta do Departamento de Patrimônio Histórico e
docente do Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das
Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. Email: ijaick@gmail.com
27
Tese aprovada em 2009 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, sob orientação do Professor Dr. Murillo Marx, intitulada “Dimensão Ambiental da
paisagem cultural: o impacto do entorno urbano nos jardins de interesse histórico”.
152

urbano - para assegurar a preservação do patrimônio e a melhoria da


qualidade de vida.
Assim, é fundamental que os jardins de valor patrimonial sejam
objeto de uma investigação que fomente estudos e avalie a sua
interface paisagística - dimensão ambiental28. A conservação da
integridade estética e física do jardim é fundamental para a sua
correta leitura histórica, isto é, do reconhecimento do bem como
munido de significação cultural. Desta maneira, equaciona-se a
concepção vigente de entorno com a determinação dos impactos
causados pela urbanização nesse “ecossistema urbano” que
interferem na salvaguarda deste monumento vivo de valor
patrimonial.

2 MONITORAMENTO E CONSERVAÇÃO PREVENTIVA: PRINCÍPIOS


APLICADOS NA CONSERVAÇÃO URBANA

Ao longo do desenvolvimento da disciplina da preservação dos


monumentos históricos e artísticos edificados, a área envoltória do
bem protegido já desempenhou importância distinta e recebeu
diferentes denominações. O reconhecimento da relevância da área
envoltória dos bens patrimoniais ainda é muito recente no Brasil, no
que tange a compreensão de sua influência e sua gestão. Isto se
deve, a princípio, ao contexto cultural de implantação da nossa
legislação cultural de 1937. Os primeiros tombamentos federais do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não foram

28 O conceito de dimensão ambiental é utilizado por Rosa Kliass (1995) para justificar a
importância de contemplar no planejamento urbano os estudos das variantes urbanas, sociais e
bio-geoclimáticas que interferem com a qualidade do ambiente. Neste sentido, o conceito está
baseado no reconhecimento do caráter ecológico do ambiente urbano (ecossistema). O termo
“dimensão” também é utilizado por José Castillo Ruiz (1997) para se referir à influência do
entorno - isto é, sua abrangência, sob o bem protegido. Nesta tese, sua aplicação concentra-se
nos reflexos dessas variantes do ambiente urbano do entorno sobre o substrato físico dos bens
patrimoniais, especificamente os jardins de interesse histórico.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 153

acompanhados por definição ou delimitação de poligonais de


entorno, pois prevaleceu a expressão atribuída a Lúcio Costa de que a
área de vizinhança seria “até onde as vistas alcancem”.
Existem poucos exemplares de bens que incorporaram esse
dispositivo, salvo o caso de cidades históricas, mas na prática, a sua
delimitação por poligonais baseadas unicamente pela
regulamentação de materiais, volumetria de telhados, ritmo de
fachadas e gabaritos verificou-se ineficiente. É preciso reconhecer
que os contextos social e espacial contribuem para formar uma
identidade arquitetônica e urbanística particular para cada sítio, isto
é, a sua ambiência peculiar.
A fim de não comprometer a preservação do valor patrimonial,
é necessário o estabelecimento de diretrizes claras nos instrumentos
de gestão do entorno a serem aplicados no cotidiano pelos órgãos
competentes do patrimônio histórico. Assim, propõe-se uma
metodologia de definição e atuação na área envoltória de jardins que
considere os impactos sobre a dimensão ambiental do bem
patrimonial – sua legibilidade e sua ambiência. Para auxiliar na
metodologia de investigação dos impactos, o estudo sustenta a
importância do papel do inventário científico aliado à conservação
preventiva. A diretriz da conservação preventiva permite a aplicação
de uma conservação programada para planejar o monitoramento e
antecipar danos.
O inventário é um método de pesquisa que - por ter como base
a sistematicidade, a análise comparativa e níveis de detalhamento
distintos - não se restringe a uma simples função de registro ou
classificação. É uma ferramenta útil para analisar o bem sob os
aspectos históricos, estéticos, artísticos, formais e técnicos. Quando
feito com exatidão, permite uma leitura mais detalhada do bem e de
suas transformações. Defende-se que esta documentação permite
construir um quadro geral do estado de conservação e preservação
do bem, e, portanto, deve ser realizada como prática rotineira que
154

antecede e sucede qualquer intervenção no patrimônio histórico. E,


convém destacar que a tarefa de preservar bens tombados envolve a
gestão da cidade, no que tange a construção de uma política da
paisagem urbana e a garantia da qualidade de vida para seus
cidadãos. Portando, deve ser encarada enquanto um dever do poder
público municipal, mas que não isenta os demais órgãos de tutela
(federal, estadual e municipal) da sua responsabilidade em trabalhar
em conjunto, em uma gestão compartilhada, para a preservação
desse patrimônio coletivo.

3. O PAPEL DO ENTORNO E OS CAMINHOS TOMADOS PARA A SUA


NORMATIZAÇÃO

No Brasil, até meados do século XX, para se referir às áreas


envoltórias dos bens tombados federais o termo aplicado era
“vizinhança”. A aplicação do termo foi incorporada oficialmente no
Artigo 18 do Decreto-lei nº25, de 30/11/37, que tratava de garantir a
visibilidade ao bem tombado na área de sua vizinhança29.
Assim, o conceito de vizinhança, então restrito às visadas do
bem protegido e as vias lindeiras e quarteirões vizinhos, seguia o
conceito de “ambiente” calcado nos preceitos da “restauração
científica”, expostos na Carta de Atenas de 1931, e que influenciaram
legislações europeias específicas para a tutela de bens de interesse
artístico e histórico. A manutenção da visibilidade do bem é um
atributo eleito como essencial para salvaguardar seu valor histórico e
artístico.

29
“Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e artístico Nacional, não se
poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a
visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra
ou retirar o objeto, impondo-o neste caso multa de cinquenta por cento do valor do mesmo
objeto” (Decreto-Lei nº25, Art.18, 1937).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 155

Ao longo do tempo, o conceito de vizinhança foi substituído


pelo uso da expressão “entorno”. No Brasil, este foi cunhado pelos
técnicos do IPHAN ao longo da década de 1970 e consolidado na
década de 1980. Foi oficialmente empregado pelo Governo Federal
na Portaria nº5 de 24 de junho de 198130. Juntamente a mudança de
termo técnico foi incluído, além da visibilidade, outro atributo: a
preservação da ambiência dos bens tombados. Os documentos
normativos internacionais31 foram essenciais nessa construção da
identidade do entorno. Atualmente, as instituições culturais das
diferentes esferas de poder utilizam o novo termo e seus atributos,
no entanto, poucas utilizam instrumentos normatizados de
delimitação de poligonais de entorno de bens patrimoniais. No geral,
a legislação cultural concentra-se na punição, ao invés de definir e
delimitar o papel do entorno na preservação de bens patrimoniais.

3.1 IMPORTÂNCIA DO ENTORNO PARA JARDINS HISTÓRICOS

A opção pelo objeto de estudo, o jardim histórico deu-se por


este se destacar entre as demais categorias do patrimônio ambiental
urbano, por apresentar laços em comum com o patrimônio natural e
por sua estreita ligação com a qualidade de vida na cidade. Assim, a
degradação dos espaços verdes urbanos representa não só perdas à
qualidade ambiental da malha urbana (microclima), mas também
lacunas em nosso passado histórico e o comprometimento de nossa
herança patrimonial.
Dentro da história da ideologia da preservação, a definição de
diretrizes distintas para a conservação e restauração de jardins data
do final da década de 1970. A Carta de Florença (1981, Art.3)
identifica que o jardim de interesse histórico é um "monumento

30
Esta portaria dispõe sobre a Cidade Imperial de Petrópolis.
31
Carta de Veneza de 1964, Manifesto de Amsterdã de 1975, Recomendações de Nairobi
de1976, Carta de Burra de 1980 e Declaração de Xi-an de 2005.
156

vivo", logo composto de um material perecível e renovável. É notório


que, ao se projetar com a vegetação, trabalha-se em "cumplicidade
direta com seres vivos que crescem e se desenvolvem com o correr
do tempo, criando e recriando espaços a cada nova estação"
(MACEDO, 1982, p. 17). Assim, o jardim está essencialmente
mudando harmoniosamente, tanto em relação ao seu tempo quanto
ao seu espaço (mudanças no seu entorno). Mesmo os elementos
mais constantes, como o seu solo (e subsolo) e hidrografia, também
passam por mudanças graduais relacionadas ao ciclo de evolução.
A conservação da integridade estética e física do jardim é
fundamental para a sua correta leitura histórica, isto é, do
reconhecimento do bem como munido de significação cultural. As
intrusões visuais no exterior do jardim reduzem a fruição do jardim;
no entanto, o comprometimento maior é a vista cênica do interior
para o exterior do jardim. A depredação não se resume, portanto, a
perda de área ou da substância do bem, mas também à sua
descontextualização - uma vez que a sua relação com o entorno é
ignorada. O esvaziamento do contexto repercute diretamente nas
qualidades de legibilidade32 e da ambiência33 do monumento. Assim,
o entorno deve garantir a proteção física (ambiência) e a significação
(legibilidade) do bem tombado.

32
A legibilidade (“legibility”) é um conceito desenvolvido por Kevin Lynch (1999) que significa
clareza. É um atributo visual calcado na visibilidade num sentido mais profundo. A sua aplicação
é proposta em substituição a “visibilidade”.
33
Já a ambiência se refere ao espaço preparado para criar um meio físico, estético ou
psicológico próprio para o exercício de atividades humanas, isto é o ambiente. É um conceito
utilizado pela disciplina da preservação de bens culturais para indicar a integridade do
ambiente em que o monumento está inserido.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 157

Figura 01 - Ambiência histórica desconsiderada

Fonte: Fotomontagem em anúncio publicitário, 2008

3.2 VISIBILIDADE E AMBIÊNCIA

O método de investigação do impacto e de suas causas


restringe-se aos levantamentos histórico, morfológico e de
percepção sensorial (solo e relevo, ventos e clima, vegetação e fauna,
luz, som e água) aliados à identificação de patologias que
comprometessem a identidade e integridade do jardim de interesse
histórico. A medição e a utilização de indicadores quantitativos foram
descartadas, pois não existem ainda estudos voltados para a
investigação de indicadores de impacto relacionados às pré-
existências (ROMERO, 2001), sendo necessário produzi-los34.
O estudo da cognição e da percepção do espaço tem uma
longa tradição em psicologia, sendo introduzido nos estudos do
ambiente urbano arquitetônico por Kevin Lynch (1999) e por Gordon

34
Convém destacar que embora a método proposto indique a necessidade de utilizar
indicadores de impacto para a medição para as variáveis bióticas, estes indicadores de
urbanismo bioclimático nacional ainda são poucos e não são específicos para aplicar no bem
patrimonial.
158

Cullen (1983) na década de 1960. A teoria de Cullen35 sobre a “arte


do relacionamento” do ambiente urbano defende que cada
fragmento no meio construído pode apresentar intrinsecamente
características visuais que exercem papel fundamental para a
construção da identidade do “local” (ou imagem mental) do sítio
urbano. Os elementos que concorrem para a criação de um ambiente
vão “[...] desde os edifícios aos anúncios e ao tráfego, passando pelas
árvores, pela água, por toda a natureza, enfim, e entretecendo esses
elementos de maneira a despertarem emoção ou interesse”
(CULLEN, 1983:10). Sem um estudo aprofundado dessas
características visuais esse potencial certamente pode ser
despercebido e, portanto, destruído por intervenções urbanas. Essa
investigação do relacionamento entre os elementos do ambiente
contribuirá para a definição da “ambiência atual” e na definição das
ações de manutenção ou de intervenção para a construção da
“ambiência que se quer perpetuar”.
O conceito de legilibilidade, proposto em substituição ao usual
conceito de “visibilidade”, abrange o atributo da qualidade visual,
isto é, a facilidade com que as partes podem ser reconhecidas e
organizadas em um padrão coerente (LYNCH, 1999). Esse atributo
pode ser facilmente interpretado como o conceito de conservação da
integridade do bem patrimonial em seu contexto do cenário urbano.
A partir de um enquadramento visual favorável (visibilidade) e
contextualizado (sinalização e acessibilidade) do bem patrimonial
será possível uma leitura espacial do sítio, isto é, uma avaliação do
estado de preservação do bem dentro de seu ambiente urbano.
A proposta de substituição do termo está calcada na usual
aplicação de “visibilidade”. Esta tende a ser simplificada e não
abarcar o seu objetivo último – o acesso ao testemunho do

35
A teoria da arte do relacionamento de Cullen já inspirou inúmeros planos de conservação
urbana e guias de desenho (DEL RIO, 2003), e é aplicada, atualmente, nos estudos e planos de
preservação histórica de conjuntos urbanísticos no país pelo IPHAN.
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 159

monumento. O conteúdo da “visibilidade” já foi discutido no Decreto


nº25/1937, e estavam muito vinculados à poluição visual causada por
letreiros, banners, painéis, luminosos, ou mesmo cores vibrantes
incompatíveis com o contexto da vizinhança. No passado, a fim de
garantir a integridade do bem patrimonial, os monumentos eram
“liberados” na malha urbana por meio de espaços livres. Atualmente,
a relação visual entre o bem e o entorno fundamenta-se na
identificação de valores significativos do bem para assim definir as
exigências de visibilidade e fruição da leitura do bem. Por essa razão,
propõem-se alterar a terminologia para assim abarcar não só a
questão da intrusão visual, mas também os parâmetros de
integridade do bem tombado em seu sítio.

4 METODOLOGIA PROPOSTA PARA O MONITORAMENTO DO


ENTORNO DE JARDINS HISTÓRICOS

4.1 IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DA DIMENSÃO AMBIENTAL

O objetivo da primeira etapa é analisar os atributos do jardim


de interesse histórico, que corresponde uma análise geral do
desenvolvimento histórico da zona onde se localiza o bem, a sua
significação cultural (marco histórico da cidade e da memória da
população) e a importância do traçado urbano referido tanto à
integração do bem patrimonial com a paisagem, como à
conformação de perspectivas estéticas (marcos e silhuetas). Para tal
é necessário investigar os componentes básicos da dimensão
ambiental do jardim de interesse histórico.
Compreende-se que os componentes básicos da dimensão
ambiental do patrimônio são a legibilidade e a ambiência. Para
identificá-las é preciso que sejam realizados levantamentos
históricos, coleta de material iconográfico e material cartográfico
(plantas cadastrais, levantamento aerofotogramétrico e mapas), o
160

levantamento da legislação da área (uso do solo e restrições), a


identificação dos grupos da sociedade civil (significação cultural do
jardim para os grupos-atores sociais) que atuam na área e o estudo
da documentação fotográfica atual. Ainda entre os levantamentos
para o estudo dos entornos dos jardins de interesse histórico é
defendida a realização de inventários que utilizem como instrumento
conceitual a análise visual do ambiente urbano do sítio do bem
patrimonial.

4.2 CRITÉRIOS PARA A DELIMITAÇÃO DO ENTORNO

Na segunda etapa, deve ser realizado um inventário, partindo


do estudo meio físico em que o jardim de interesse histórico está
inserido, com base em três variáveis: bióticas, paisagísticas e
socioeconômicas. As variantes bióticas são o clima, a geologia, a
geomorfologia, o solo e subsolo, o ciclo hídrico, a vegetação, a fauna,
os recursos paisagísticos e o ruído. As variáveis socioeconômicas são
o uso e o aproveitamento do território, bem como do serviço de
infraestrutura, acessibilidade, saneamento, qualidade do ar e sistema
viário. Já as variáveis paisagísticas estão ligadas ao aspecto
qualitativo do lugar, isto é, ao reconhecimento do valor patrimonial
de determinado bem cultural. A seguir, deve-se realizar um estudo
das componentes do jardim, utilizando os mesmos dados de
investigação. O objetivo é cruzar os dados para registrar em um
conjunto de fichas sínteses-analíticas os sintomas e diagnosticar o
nível de vulnerabilidade que o jardim está sujeito. Assim se poderão
propor prognósticos fundamentados na realidade (terceira etapa).
A metodologia apresentada para a atuação no entorno tem
como proposição a realização de um dossiê36 que busca a

36
Este dossiê apresenta algumas diretrizes similares com os estudos conduzidos pelo IPHAN
(IPHAN, 2007).
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 161

identificação, a delimitação do entorno e o estabelecimento de


medidas de prevenção e controle das alterações que interferem na
dimensão ambiental do bem tombado. Por isso, deve ser uma
medida rotineira o monitoramento do entorno. A estrutura deste
método de avaliação proposto está fundamentada na perspectiva
integradora do planejamento da paisagem, na qual o entorno faz
parte do ecossistema do bem tombado.
Como ponto de partida teórico é proposto a utilização
convencional de 500 metros como um entorno imediato, não como
um espaço de tutela, mas enquanto espaço de estudo. Para a
delimitação do entorno é essencial que sejam estudadas as cargas
positivas e negativas impostas ao bem tombado, através do
inventário das patologias urbanas identificadas nos jardins de
interesse histórico. Ressalta-se a importância de demarcar uma
poligonal de entorno no momento da inscrição do bem patrimonial
no tombo, para que, em curto prazo, seja ratificado seu perímetro
correto baseado nesses estudos propostos pela metodologia. Aliado
a isso, deve-se optar por uma revisão desta no momento de uma
nova intervenção na área de entorno.
Para inventariar as condições do espaço circundante ao bem
patrimonial é necessário realizar observações diretas,
preferencialmente apoiadas por indicadores de impacto, buscando
coletar dados do estado de conservação e preservação do jardim. A
existência de impactos negativos é evidenciada pela
descaracterização dos traços tipológicos do bem patrimonial, seja na
alteração de sua estrutura ou em seus componentes. Geralmente, os
impactos são resultantes da implementação no entorno de
empreendimentos que sobrecarregam as condições atuais em três
variáveis: (1) os bióticos: através do impacto da impermeabilização
excessiva do terreno (solo e subsolo), do gabarito elevado (sombra
projetada), do aumento da temperatura e umidade (clima), da
alteração no lençol freático (água), do aumento da poluição
162

atmosférica (ar), do aumento da poluição sonora (ruído), da redução


de iluminação (vegetação) e da migração da fauna local; (2) os
paisagísticos: através do impacto na ordenação física, estética e
sensorial da paisagem urbana; e (3) os econômicos e sociais: através
da sobrecarga ou subutilização dos equipamentos públicos.
Não basta identificar os impactos, mas é importante identificar
os agentes causadores de degradação e contaminação. Aliado a isso,
deve-se realizar uma avaliação de sua magnitude, pois esta que
indicará se o impacto é muito significativo ou se pode ser desprezado
por sua pequena importância. O que caracteriza o impacto não é
qualquer alteração nas propriedades do ambiente, mas as alterações
que provoquem desequilíbrio das relações constitutivas do ambiente
e que excedam a capacidade de absorção do ambiente.

4.2.1 Variáveis bióticas

Para a análise das variáveis bióticas, a paisagem urbana pode


ser dividida em seis componentes, são eles: o vento e clima; a
vegetação; a água; o relevo e subsolo; o som; e a luz. Entre as
patologias relacionadas diretamente ao vento e ao clima, que
indicam alteração na estrutura térmica espacial urbana, estão: as
alterações de temperatura, a alteração de sentido e intensidade dos
ventos e aumento das precipitações locais. Algumas das patologias
mais usuais do impacto no relevo e no subsolo dos jardins são: o
aumento da acidez do solo alterando sua fertilidade e a mudança na
capacidade de drenagem das águas fluviais no terreno. Essas
alterações podem ser causadas pelo corte e aterro de terrenos, pelos
desmontes de morros, pela poluição e contaminação de solo por
resíduos tóxicos, pela redução das áreas permeáveis do entorno
imediato e pelo movimento de massa causada por vibrações
excessivas ocasionadas por veículos em vias de circulação nas
imediações, bem como por rotas de avião e pela carga vertical
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 163

excessiva exercida pelas fundações de edificações do entorno no sítio


do jardim. Entre as patologias relacionadas à água estão o aumento
das inundações, o assoreamento dos lagos e o apodrecimento das
raízes dos indivíduos vegetais. Podem ser consequência de obras de
infraestrutura urbana de retificação ou canalização de cursos de
água, de construção no subsolo das imediações que rebaixa e polui o
lençol freático ou mesmo pela poluição dos cursos de água e dos
lençóis freáticos por esgotos e efluentes sem tratamento.
Entre as variáveis bióticas, o estudo de nível de ruído é muito
importante, embora sua aplicação não seja usual ou contínua. O
ruído é uma constante no recinto urbano público, tanto no emitido
por seu interior quando no propagado por seu exterior. Em espaços
livres verdes a redução da propagação do ruído de fundo depende da
capacidade de absorção sonora dos materiais, da quantidade e
disposição da vegetação e da topografia.
A massa vegetal funciona como barreira acústica, diminuindo a
sua intensidade, por consequência da absorção do som pelas folhas.
O som propagado tem a tendência de "[...] devolver as ondas sonoras
até a terra e na direção de seu fluxo inicial" (ROMERO, 2001:60).
Dessa forma, a capacidade de filtragem da vegetação aumenta
quanto maior for o número de folhas de cobertura por unidade de
terra, seguindo a ordem de suficiência: árvores, arbustos e grama. A
vegetação diminui a intensidade do som quando este se encontra em
sua trajetória, mas embora seja um bom absorvente é um mal
isolante. É necessária, assim, uma grande massa de árvores para
obter um isolamento. Embora as árvores ao longo das ruas não
reduzam o nível de ruído, estas reduzem o tempo de permanência do
ruído na rua. O monitoramento do impacto do ruído urbano causado
pelo trânsito de veículos, juntamente aos estudos de poluentes
suspensos no ar, pode contribuir na implantação de uma política de
mobilidade urbana sustentável, isto é, na reestruturação do sistema
viário local.
164

O estudo de sombras também merece destaque, pois os


planos diretores já preveem sua aplicação em situações similares. A
quantidade de luz, a luminância, não é tão importante nos espaços
públicos quanto a sua qualidade. Porém quando a luz provém de
diferentes partes, o espaço torna-se confuso. A luz desempenha uma
importância essencial na formação dos dados sensoriais do recinto
urbano: "a iluminação, seja natural ou artificial, possui um papel
destacado na materialização do espaço construído, pois está
contribuindo à criação de um espaço visual, ela cria as cenas urbanas,
destacando ou anulando determinados elementos" (ROMERO,
1996:178). A informação visual percebida é tanto da luz como da
ausência de luz. A altura e idade das plantas, a época do ano, o tipo
de folhagens das espécies arbóreas, a disposição da cobertura
vegetal, bem como a área de abóbada celeste visível são as variáveis
que modificam a iluminância sob o recinto urbano (MASCARÓ, 1996;
ROMERO, 2001). A sombra tem um papel decisivo na percepção do
recinto urbano, que dá ritmo (sombras que diferem de tamanhos),
ênfase (sombras destacando elementos) ou contraste (sombras com
múltiplas tonalidades).
Na cidade do Rio de Janeiro, o Decreto nº 20.504 de 13 de
setembro de 2001 regulamenta a Lei Complementar 47 de 01 de
dezembro de 2000 quanto aos critérios de análise e limites máximos
permitidos para sombreamento de edificações nas praias municipais.
Com o decreto fica condicionada a aprovação de empreendimento à
análise de estudo de sombras pela Secretaria Municipal de Meio
Ambiente (SMAC). Embora esta lei seja restrita às praias, a simulação
das áreas de sombreamento é importante para identificar o nível de
bloqueio da iluminação solar também do jardim. Neste estudo de
sombras, o decreto em seu 3º artigo estabelece que a documentação
apresentada deva conter gráfico de projeção da edificação na faixa
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 165

de areia da praia no equinócio de primavera37 (23/setembro) e no


solstício de verão (22/dezembro) nos horários de 6, 7, 8, 9, 10, 15,
16, 17, 18 e 19 h. O decreto também observa que não será levado
em consideração o sombreamento das edificações quando estas
estiverem incluídas nas áreas de sombra de quaisquer acidentes
topográficos ou de edificações regularizadas pelo município. Esse
estudo de sombras pode ser usado para identificar as causas de
patologias no jardim, mas também para avaliar a introdução de
alterações de gabarito da área e seu impacto nos jardins.

4.2.2 Variáveis paisagísticas

O processo de urbanização também causa violações na


paisagem – as variáveis paisagísticas - de duas categorias: as
violações visuais e as funcionais. Nas variantes paisagísticas visuais
estão presentes elementos visuais intrusivos no bem patrimonial,
como placas comerciais, muros, árvores que prejudicam a sua
fruição. Em estágio avançado, o impacto da intrusão visual pode ser
percebido na silhueta urbana. Por isso, é necessário conservar as
vistas panorâmicas do jardim.
No entanto, nem sempre é fácil prever a intrusão visual, pois,
além de restrita a poucos casos, os estudos de eixos visuais estão
fundamentados apenas em estudos de gabarito (elevações) e visões
seriais. Os estudos de eixos visuais recentes, de conjuntos históricos
como Ouro Preto (MG), têm utilizado os recursos de
geoprocessamento para a gestão do patrimônio urbanístico e
arquitetônico (MOURA, 2002). Esses estudos, que seguem princípios
da teoria da percepção e cognição espacial, utilizam recursos
topográficos e digitais para gerar um modelo digital de elevação da
área de estudo. Partindo da escolha de pontos significativos da

37
Essa mesma mediação pode ser substituída em outono (21/março) ou no solstício de inverno
(22/ junho) nos horários de 7, 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 17 horas.
166

configuração urbana e de maior alcance visual, que contextualizam o


bem protegido, são traçados eixos, analisados e sintetizados os eixos
com valores cênicos. O recurso permite obter informações de duas
naturezas: para o planejamento urbano e para a gestão do
patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico. Assim, os órgãos
municipais, juntamente aos órgãos culturais, podem planejar o uso e
a ocupação do solo e julgar solicitações de novas construções na
área, prevendo de quais pontos da cidade a nova construção será
visível. E no caso desta representar um obstáculo visual, a construção
deve ser negada por ambos os órgãos.
Ainda influenciando as variáveis paisagísticas, as violações
funcionais estão relacionadas à ordenação urbana e à sinalização
(programação visual) no entorno do jardim de interesse histórico. A
desorientação através de uma ineficiente sinalização ou pelo pouco
conteúdo perceptivo – ligações com o entorno e o jardim obscuras
ou desintegradas - pode refletir negativamente para a identidade
morfológica e a atribuição de importância para a imagem urbana do
jardim protegido.
Devem ser observadas nessas violações as exigências ao jardim
derivadas das relações de leitura histórica ou cultural da população
usuária, isto é, a qualificação do espaço verde. A aplicação da
iluminação também repercute nesta variável, pois pode servir para a
valorização e estímulo da percepção do patrimônio por meio de
iluminação noturna, priorizando a distinção de formas, cores,
volumes e texturas do jardim, ou, em excesso, causar danos ao
desenvolvimento da fauna e flora do jardim.

4.2.3 Variáveis econômicas

Finalmente, entre as variáveis socioeconômicas, são comuns


casos onde o entorno apresenta problemas como degradação social e
urbana. Alguns dos perigos que comprometem a preservação do
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 167

jardim relacionam-se ao uso inadequado em edificações no entorno


que podem causar explosões e incêndios (estabelecimentos
mecânicos, químicos e industriais) ou contaminadores atmosféricos.
A proximidade de vias de fluxo intenso também é comprometedora,
já que podem ocorrer choques mecânicos e poluição atmosférica na
fronteira do jardim. Também, entre as exigências crescentes do
espaço citadino, a área destinada ao estacionamento de veículos é
uma questão de difícil solução.
Na identificação dos agentes causadores de degradação e
contaminação no entorno de jardins a proibição generalizada das
atividades de um determinado espaço não resolve ou garante a
preservação do bem, pois não é possível quantificar rapidamente as
interferências da atmosfera e do subsolo.
Convém observar que, para o estudo dos componentes do
jardim de interesse histórico, o terreno deve ser dividido em quadras,
de acordo com a dimensão do jardim e das suas características
visualmente perceptíveis. A separação por quadrantes facilitará a
realização das medições. Outra precaução, a ser observada, é a
proximidade com a “superfície de fronteira” (ROMERO, 2001) do
jardim, isto é, o espaço que forma o limite do jardim. Quanto maior
for a área do jardim, as medições na superfície de fronteira serão
muito distintas das do interior do jardim.
Por esta razão é necessário o monitoramento das alterações
sofridas no entorno para buscar se antecipar (medida preventiva) aos
consequentes danos ao bem (medida curativa). O princípio da
reavaliação e ajuste periódico, presente na metodologia do Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA, 2002), é incorporado na
metodologia proposta como uma medida preventiva muito
importante.
A terceira etapa, os critérios para atuar no entorno, deverão
ser fundamentados na análise do inventário do jardim – diagnóstico
das causas das patologias identificadas - poder-se-á indicar o grau de
168

comprometimento à integridade do jardim (vulnerabilidade),


inclusive o perigo imediato, o eminente ou o potencial. De acordo
com a intensidade do impacto, também deve ser avaliada a
necessidade de atuar - prognósticos - através de instrumentos
paisagísticos e urbanísticos, aliados às gestões municipais e aos
órgãos ambientais. A atuação preventiva deve ser realizada, mesmo
que não seja identificado comprometimento significativo do jardim,
através de monitoramento do entorno. As ações definidas nesta
etapa não partem de pressupostos apenas de restrições, mas
também de disposições destinadas a proteger a situação ambiental
adequada e melhorar o ambiente urbano.
Uma vez identificada a alta vulnerabilidade do jardim de
interesse histórico é preciso buscar soluções adequadas para evitar o
aprofundamento de seus impactos. O instrumento legal do
“entorno”, como aplicado em legislação cultural, não é suficiente
para proteger os referenciais necessários à compreensão do
monumento e sítios tombados. É fundamental que esses estudos
sejam incorporados aos planos diretores municipais, de maneira a
controlar os elementos que podem interromper a perspectiva do
bem protegido, a estabelecer uma normatização das condições
volumétricas, materiais ou formas dos edifícios novos nas imediações
do bem. De acordo com a condição tutelar específica do jardim,
devem ser realizados estudos para intervenções urbanísticas ou
paisagísticas. “Gradual deterioration in the gardens and their settings
could be avoided if an affective legislation to control urban growth
around the gardens were in place” (MUGHAL, 2006, p. 2).
Deve-se respeitar - através de instrumentos reguladores
urbanos, como de gabarito, afastamentos e proporção - a
ambientação original de cada jardim, sejam eles mais antigos ou
exemplares implantados no meio urbano já adensado da metade do
século XX. O reconhecimento da relação histórica entre o entorno e o
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 169

bem é ilustrado pelas medidas que reforçam a continuidade histórica


e estilística do bem, através de vinculação, que não impliquem em
novas arquiteturas que se relacionem só visualmente, mas de
maneira a garantir a liberdade compositiva ampla. Os instrumentos
urbanísticos usuais, como o da limitação de gabaritos e o eventual
uso do solo, são importantes; no entanto, a atribuição do jardim de
interesse histórico como lugar agradável e inconfundível pode ser
reforçada através de intervenções paisagísticas.
Cumprindo um papel psicológico e paisagístico, a implantação
de novos espaços verdes nas imediações do bem tombado – zonas de
amortecimento - constitui um componente importante na
preservação de jardins: absorvendo impactos de variantes bióticas e
variantes socioeconômicas. Essa zona de amortecimento deve, de
preferência, ser arborizada, já que a massa arbórea contribui para
reduzir os efeitos negativos dos ambientes urbanizados.
Também devem ser estudadas ações para aumentar a
legibilidade do elemento protegido, através do estabelecimento da
informação e integração visual do bem na paisagem circundante. No
entanto, o objetivo dos eixos visuais no entorno não é de criar novas
vistas, mas de manter o respeito à “participação visual“ (RUIZ, 1997)
do bem protegido no seu entorno, ou seja, em sua paisagem
circundante. Para isso é importante escolher os pontos visuais
consolidados historicamente, proibir a colocação de qualquer
elemento que possa interferir com a visão direta do bem, substituir
cabeamento aéreo por subterrâneo, introduzir mobiliário urbano
vinculado ao monumento, desenvolver suporte informativo
necessário para a adequada sinalização para a visitação e o
conhecimento sobre o bem protegido.
O monitoramento da área de entorno, tendo como meta a
manutenção dos atributos do ambiente e de ser referência para a
compreensão do bem tombado, pressupõe parâmetros de proteção
apropriados ao valor de entorno adequado ao valor patrimonial.
170

Figuras 02 - Modelo de Ficha de Inventário

Fonte: ANDRADE, 2009


Patrimônios na Cidade Contemporânea - 171

Figuras 03 - Modelo de Ficha de Inventário

Fonte: ANDRADE, 2009


172

Figuras 04 - Modelo de Ficha de Inventário

Fonte: ANDRADE, 2009


Patrimônios na Cidade Contemporânea - 173

4 CONCLUSÃO

É a compreensão da dimensão ambiental (ambiência e


legibilidade) do jardim, aliada à delimitação física do entorno e do
monitoramento das mudanças do entorno, que cumprem papel
crucial para a preservação do patrimônio verde público urbano. O
monitoramento, as intervenções e as ações no entorno têm o
objetivo de antecipar ou reduzir o impacto negativo da urbanização
sobre os jardins de interesse histórico.
O entorno imediato construído, em ambientes urbanos,
influencia sensivelmente tanto na leitura histórica do bem como no
desempenho climático e desenvolvimento da flora e fauna do recinto
urbano. Uma vez que seu substrato é moldado e composto
essencialmente por material vivo, é claramente sensível às ações
desfiguradoras e destruidoras. A identificação e a delimitação de
zonas de amortecimento (o “entorno”), ao seu redor, são ações
essenciais para contribuir na absorção e amenizar o impacto da
apropriação. Apesar disso, estas ações ainda ocorrem ao acaso,
sendo que esta ferramenta de preservação não faz parte das medidas
de preservação preventiva dos planejadores e especialistas do
patrimônio.
Assim, outras instituições de corpo técnico diversificado
(topógrafos, geofísicos, arqueólogos, engenheiros de trânsito,
biólogos, entre outras especialidades) relacionadas à gestão urbana e
ambiental devem contribuir para a construção de indicadores, para a
avaliação de variáveis de impacto e para o monitoramento dos
jardins de interesse histórico.
174

REFERENCIAL

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176
Patrimônios na Cidade Contemporânea - 177

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