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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ

PÓS-GRADUAÇÃO EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO E RESTAURO- PARC

MEMÓRIA, HISTÓRIA E PATRIMÔNIO

O Monumento aos Xetá: Umuarama-PR

PRISCILA FONSECA DA SILVA

JANEIRO DE 2024
1. APRESENTAÇÃO: O MONUMENTO AOS XETÁ
O Monumento aos Xetá está localizado no município de Umuarama, região noroeste do
Estado do Paraná, na entrada do Bosque dos Xetá, popularmente conhecido como
“Bosque do Índio”, localizado na região central do município. O monumento é composto
por uma estátua de aproximadamente 8 metros de altura, confeccionada em concreto
armado. Conta ainda com um painel em pedra, com a aplicação de relevos em metal
demonstrando cenas do cotidiano indígena e uma pequena cascata, tendo abaixo um
pequeno espelho d’água, atualmente desativado. Foi construída em 1990 por meio de
encomenda feita ao artista plástico Rubens Utrabo pela Prefeitura Municipal de
Umuarama (REVISTA W, 2016). Originalmente contava com uma sala adjacente,
chamada Sala Aré, destinada tanto à educação ambiental, como também à exposição de
peças da cultura Xetá. Após anos sem uso, a sala se deteriorou e foi destruída na
intervenção feita em 2022, restando somente a estrutura de telhado, com pequenos
espaços construídos que sugerem ser sanitários.

Figura 1- Região Metropolitana de Umuarama, Figura 2- Bosque dos Xetá. Umuarama-PR. Fonte:
território de ocupação tradicional dos Herarekã Xetá. Google Maps.
Fonte: Wikipédia

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Figura 3- Monumento aos Xetá. Fonte: https://colunaitalo.com.br/manchete/3518/bosque-do-indio-ganha-nova-
sala-are

Figura 4- Painel com relevos em metal. Fonte: https://colunaitalo.com.br/manchete/3518/bosque-do-indio-ganha-


nova-sala-are

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Figura 5: Monumento aos Xetá antes da intervenção. Sala Aré ao fundo. Fonte: https://adema-
ong.blogspot.com/p/parque-xeta-mata-atlantica.html

Figura 6: Monumento aos Xetá após a intervenção. Destruição da sala Aré. Fonte:
https://www.ilhafm.com.br/umuarama/bosque-dos-xeta-construcao-da-nova-sala-are-esta-proxima-da-conclusao/

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2. O CONTEXTO
A região da Serra dos Dourados, onde Umuarama se insere atualmente, era
originalmente ocupada pelos indivíduos da etnia Herarekã Xetá até a década de 1940
(FIOCRUZ, 2013). Na década de 1950 teve início a venda e o loteamento das terras dessa
região pela Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná, através da campanha
governista denominada “Marcha para o Oeste”. Essa empreitada fez com que a
população Xetá sofresse um processo de extermínio massivo, restando poucos
integrantes desta etnia vivos.

No início da década de 1990, o Município de Umuarama ergueu o “Monumento aos


Xetá”, que fica na entrada do bosque que também leva o nome da etnia. A criação do
monumento na entrada do Bosque dos Xetá vem em um momento de aparente abertura
ao diálogo com os povos indígenas no Brasil. Após a promulgação da Constituição em
1988 e as promessas de cumprimento do Estatuto do Índio (1973), o começo da década
de 1990 foi marcado por diversas tratativas no sentido demarcação dos territórios
tradicionais e inserção destes povos nas pautas governistas.

Nesse sentido, o vislumbre de um monumento em homenagem ao povo que 50 anos


antes era o único ocupante daquelas terras, prometia ser um início de reinserção dessa
população naquele meio, além de aparentemente ser uma tentativa de reparação
histórica em relação ao genocídio de centenas de indígenas. Entretanto, a imagem do
estereótipo do indígena, empunhando arco e flexa, tão genérica quanto poderia ser,
evoca quais memórias da etnia Xetá?

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3. DOS VESTÍGIOS À MEMÓRIA: NARRATIVAS CONSTRUÍDAS
De acordo com Choay (2011) “o termo ‘monumento’ [...] deriva do substantivo latino
monumentum, fruto do verbo monere: ‘advertir’, ‘lembrar à memória’”. Ainda, a autora
faz lembrar que “o monumento caracteriza-se [...] por sua função identificatória” sendo
este um artefato intencional das comunidades (p. 12-13).

O Monumento aos Xetá se situa em uma linha tênue entre o lembrar e o esquecer por
sua qualidade genérica, que ignora qualquer traço característico da etnia Herarekã Xetá,
como adornos e grafismos ou qualquer outro elemento que rememore a cultura Xetá.

Figura 7: Quadro do artista plástico Silvio Rocha. Exposição “Fragmentos de Xetá”. 2010. Fonte:
https://conexaoplaneta.com.br/blog/rituais-de-passagem-e-cerimonias-cinicas/

Muito se discute sobre o esvaziamento de significados dos diversos patrimônios, desde


edifícios à monumentos históricos, mas há de se ter em conta a questão da criação de
monumentos vazios, os quais tangenciam o real significado rememorativo sem o devido
aprofundamento no que se pretende celebrar. Os movimentos homogeneizantes globais
que achatam as culturas têm papel determinante no processo de criação de
monumentos de aparente ausência de significados, criando uma espécie de “patrimônio
genérico”. O que a alegoria feita por Utrabo faz “lembrar à memória”? Qual seria sua
“função identificatória” para possuir a denominação “monumento”?

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O elemento alegórico criado por Rubens Utrabo representa um personagem folclórico,
o estereótipo do “índio”. Essa categorização perpassa não só a imagem posta na figura
representada, como também no método escolhido para a representação: o concreto. Tal
escolha evoca uma dialética implícita entre a civilização colonizadora e a sociedade dos
povos originários, no qual aquele prima pela exploração, controle e manipulação do solo,
enquanto este subsiste da terra em confluência com sua dinâmica. O ato de “concretar”
alguma coisa, como o solo, carrega consigo a ideia de dominação, tendo como valor
simbólico a conquista. O homem dominando a natureza. Uma sociedade dominando a
outra.

Figura 8: Rubens Utrabo e o Monumento aos Xetá. Fonte: Revista W

A alegoria do índio, posta como guardiã do bosque, emula a figura folclórica de protetor
da floresta, colocando a floresta em um mesmo patamar de entidade descolada da
sociedade colonizadora. Antônio Bispo dos Santos (2023) faz a leitura deste fenômeno
através da religião. Ao afirmar que o deus do cristianismo eurocêntrico expropriou a
humanidade de sua terra, enquanto elemento de vida e do sagrado, em função de Adão
e Eva, o homem passa a sintetizar a natureza:

Nesse momento, esse deus da Bíblia do colonialista [...]


desterritorializou um povo. Se ele amaldiçoou a terra para aquele
povo, este povo não poderia nem tocar naquela terra. [...] Se ele
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disse que aquele povo tinha que comer com a fadiga do suor do
seu rosto, nesse momento ele criou o trabalho como ação de
sintetização da natureza. Ao mesmo tempo ele criou também
uma doença que eu chamo de cosmofobia. O medo do cosmo, o
medo de deus. (SANTOS, 2023, p. 11)

Ao colocar a imagem atribuída aos Xetá como figura genérica, destituída de


características singulares que o identifique enquanto representante de um povo, o
colonialista o sintetiza e o re-conquista, em uma batalha pela hegemonia cultural e
ocupação espacial, sobrepondo sua cultura e reafirmando sua dominação. Nega a
natureza e qualquer parte que a componha, inclusive os povos que dela e nela confluem.

O Monumento aos Xetá poderia ser lido como um antimonumento1, em memória da


etnia massacrada? Infelizmente os indivíduos sobreviventes não possuem espaço no
tecido urbano do município de Umuarama. A municipalidade não faz qualquer
referência a sociedade Herarekã Xetá na história de Umuarama, sendo uma questão mal
resolvida para a sociedade umuaramense. Se apropriaram do nome da etnia para
nomear reserva, logradouro e praça no município, mas não citam a presença dos Xetá
enquanto sociedade ocupante do território, muito menos o processo de extermínio de
grande parte de seus indivíduos na década de 1950. No endereço eletrônico do
município é possível encontrar frases como: “A história de Umuarama se inicia na
Inglaterra” ou “Os primeiros habitantes foram aventureiros atraídos pela nova região a
ser explorada” (PREFEITURA DE UMUARAMA). O próprio nome do município evoca a

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O antimonumento desenvolve-se, portanto, com a psicanálise, em uma era de catástrofes e de teorização
do trauma. Ele corresponde a um desejo de recordar de modo ativo o passado (doloroso), mas leva em
conta também as dificuldades do “trabalho de luto”. Mais ainda, o antimonumento, que normalmente
nasce do desejo de lembrar situações-limite, leva em si um duplo mandamento: ele quer recordar, mas
sabe que é impossível uma memória total do fato e quanto é dolorosa essa recordação. Essa consciência
do ser precário da recordação se manifesta na precariedade tanto dos antimonumentos como dos
testemunhos dessas catástrofes. Estamos falando de obras que trazem em si um misto de memória e de
esquecimento, de trabalho de recordação e resistência. São obras esburacadas, mas sem vergonha de
revelar seus limites que implicam uma nova arte da memória, um novo entrelaçamento entre palavras e
imagens na era pós-heroica. (SILVA, 2016, p. 51)

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língua utilizada pelos Xetá, que significaria “lugar alto, ensolarado, onde os amigos se
encontram”.

Usam seu nome, se apropriam de seu idioma, negam sua existência. De acordo com o
historiador Murilo Rebecchi (2017), os atuais habitantes da região não tem
conhecimento sobre a sociedade Herarekã Xetá, se referindo a eles somente como os
“índios” que habitavam aquele território antigamente. A tentativa de inserção da cultura
Xetá, através da exposição na Sala Aré, fracassou pela falta de políticas de incentivo e
pela ausência de manutenção estrutura física, que estava precária. A sala foi substituída
por um vazio. Manteve-se o volume, removeu-se o conteúdo. Movimento significativo,
demonstrando a intenção de esvaziamento de qualquer vestígio cultural Xetá.

Figura 9: Obra do artista plástico Silvio Rocha. Exposição "Fragmentos de Xetá". 2010. Fonte:
https://conexaoplaneta.com.br/blog/rituais-de-passagem-e-cerimonias-cinicas/

Dessa forma, é possível perceber um processo de coisificação dos indígenas e


mercantilização de sua imagem coisificada, sendo o monumento em questão um

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pastiche homogêneo que poderia representar qualquer uma das mais de 300 etnias
existentes hoje no Brasil. A municipalidade afirma que o Monumento aos Xetá se
configura como um dos principais pontos turísticos de Umuarama.

4. REVISITANDO A HISTÓRIA, RESSIGNIFICANDO O EXISTENTE


A questão sobre memória, identidade e os símbolos presentes no meio urbano abarca
dimensões controversas quando se volta o olhar para o Monumento aos Xetá. É patente
o orgulho que a população em geral tem pela estátua posta na entrada do “bosque do
índio”. Entretanto, há um descolamento entre o símbolo e seu representante, uma etnia
que é completamente ignorada no município. A alegoria do índio, de fato, não
representa a etnia Xetá ou qualquer outra etnia. Há o processo de sobreposição cultural,
transformação do indivíduo em produto cristalizado no tempo e em uma forma que
jamais existiu. Com a figura idealizada por Utrabo, é possível ver apenas um personagem
fictício, um adorno da cidade, uma figura folclórica que coincidentemente (ou não) leva
o nome dos Xetá. Não há qualquer memória sobre a etnia a ser guardada.

Os Xetá, que hoje vivem espalhados por diversas reservas e lutam para ter seu território
demarcado, têm sua cultura ameaçada pela extinção, através do apagamento de seus
saberes, tais como suas formas de organização social e principalmente de seu idioma. A
alegoria com o nome dos Xetá, no território historicamente ocupado por seus indivíduos,
poderia e pode induzir ao observador a intuir que aquela é uma representação deste
povo indígena. Uma contradição entre a lembrança de que os Xetá existiram como
ocupação naquele espaço, mas um apagamento de quem foram enquanto povo.

Entretanto, através da crítica, é possível perceber o Monumento aos Xetá como um


ponto na história e o ressignificar através de uma leitura contemporânea que visa
reumanizar essa população, trazendo profundidade de conteúdo por meio de políticas
públicas de promoção cultural. A criação de vínculos interinstitucionais poderia fazer o
movimento de dar vida e sentido à presença Xetá na região de Umuarama. Parcerias com
instituições como a Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA), que
trabalha em conjunto com a Associação dos Indígenas da Etnia Xetá (AIEX) para a
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manutenção de sua cultura através de estudos de historiografia, antropologia e
catalogação dos modos de vida Xetá. Outra instituição importante é o Museu Paranaense
(MUPA) que possui um rico acervo sobre a etnia, com imagens antigas e artefatos
utilizados por esse povo. A reativação da Sala Aré, com real propósito de educação
patrimonial, amparada pelas diretrizes dispostas nas carta sobre patrimônio imaterial e
autenticidade (IPHAN, 1997) (UNESCO; ICCROM; ICOMOS, 1994) poderia ser um ponto
de partida para dar real sentido ao monumento, aprofundando a população da região
na cultura Xetá.

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5. BIBLIOGRAFIA
BRASIL, O. D. A. N. Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeros
com mais sobreposição em terras indígenas. [S.l.]. 2023.

CHOAY, F. O Patrimônio em Questão: Antologia para um combate. Belo Horizote: Fino


Traço, 2011.

FIOCRUZ. PR- Povo da etnia Xetá lutando para não desaparecer. Mapa de Conflitos:
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