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Universidade Presbiteriana Mackenzie

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Cidade, Arquitetura e uso público do espaço

Prof. Drª. Maria Isabel Villac

Eliel Baia

SESC Pompéia: Diálogos ressonantes entre Lina Bardi e o Construtivismo russo

Resumo

Com a ideia central de estabelecer relações entre projetos de arquitetura, este


ensaio investiga a obra dos edifícios Narkomtiazhprom (1930) projeto idealizado pelo
arquiteto russo Ivan Ilich Léonidov (1902-1959) e SESC Fábrica da Pompéia (1977) projeto da
arquiteta ítalo-​brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), O ensaio se propõe a levantar uma
discussão através de apontamentos sobre as ressonâncias do Construtivismo Russo na obra
de Lina Bardi, a partir de levantamento de fontes que remontam aos anos 20, até
publicações recentes acerca da obra de Lina.

O ensaio investiga parte da obra dos arquitetos, de forma que se torna possível
considerar aproximações formais entre projetos, e relações entre formas e conceitos, dos
quais o principal foco do estudo são suas aproximações enquanto condensadores sociais. O
método aplicado, desde o início da pesquisa é híbrido, se considerar a busca por material
gráfico e documentação em arquivos e acervos.
O ensaio pretende demonstrar a proximidade do projeto do SESC Pompéia com o
Construtivismo russo, amparado pela teoria da racionalidade das formas, pelas propostas de
ensino dos Vkhutemas e das Oficinas de Criatividade, além da ideia de condensador social
que contorna tanto as ações de Lina Bo Bardi como dos arquitetos da vanguarda soviética.

Para tanto, adota-se como metodologia de pesquisa a análise formal de edifícios, ou


seja, suas estéticas, materialidades, geometrias, implantações, além de apurada pesquisa
sobre seus usos e ocupações, suas relações sociais, sobrepondo dados textuais e
iconográficos.

Palavras-chave: SESC Pompéia, Lina Bo Bardi, Leonidov, Construtivismo russo

O construtivismo russo, visto como arquitetura soviética de vanguarda, embora


sendo um dos momentos mais fascinantes da arquitetura do século XX, ainda sim, é objeto
de incompreensão por parte dos arquitetos. No início da década de 20, em meio a
construção de um ideário de estado voltado para as necessidades sociais do povo, o papel
do arquiteto salta em uma busca de soluções e novos tipos de arquitetura, formas de
condensar a vida social dos trabalhadores.
Praticar a arquitetura, nesse momento, passou a levar em conta principalmente a
relação das atividades humanas na história do espaço. Logo se parte em uma busca para
entender os ambientes através das atividades humanas e suas potencialidades, e com isso,
as adensando, buscando uma convergência das possibilidades a serem exploradas no
ambiente a ser projetado, com o intuito de potencializar a vida social dos trabalhadores e
moradores.
Quando tratamos do pensamento construtivista, a arquitetura, em sua linha de
frente, se voltava para a construção de uma sociedade plural, que repartisse as
potencialidades dos ambientes e que o acesso a diversos serviços, antes voltados para
determinadas classes, fossem de amplo acesso a qualquer morador. Desse modo, cada novo
projeto se incumbiu de ser uma perspectiva de algo melhor, uma imagem do futuro, uma
representação do sucesso de um ideal. Um novo modo de vida, coletivo e planejado,
baseado na articulação de diversas camadas da sociedade
A arquitetura se abriu para valores não tradicionais, largando mão de padrões pré
industriais em função de uma concepção funcional, voltando se para as necessidades da
sociedade, ao contrário do que se considerava uma arquitetura rebuscada e elitista, presa a
adornos clássicos emulando o passado. a sociedade buscava sua expansão, uma
modernização, as crianças precisavam de novas escolas e uma vida consistente com os
padrões buscados para formar essa nova sociedade, onde já não havia mais espaço para
releituras da arquitetura clássica.

Em meados dos anos 1970, Lina é convidada a repaginar os galpões da antiga fábrica
de tambores da Pompéia, na Zona Oeste de São Paulo. Impressionada com a estrutura
existente, teve como partido o restauro da estrutura ali encontrada, defendendo sua
sobrevida veementemente. Além dos galpões da década de 1930 que receberam as
intervenções, o conjunto ainda conta com as novas torres para abrigar o programa
esportivo, nos fundos do lote, por onde passava um córrego a céu aberto, hoje encanado e
coberto por um deck de madeira, batizado de “rua da praia”.

O projeto é organizado pelo eixo longitudinal da rua interna, sugerindo uma


circulação principal que passa pelos galpões, restaurante, teatro, oficinas até desembocar
nas torres de concreto, no final do terreno, faceado com a Avenida Pompéia.

O SESC Fábrica da Pompéia tornou-se um importante equipamento cultural,


esportivo e de lazer para a cidade, uma verdadeira experiência comunitária, espaço
democrático e acolhedor, tal como Lina imaginou e desenhou em inúmeros croquis,
amplamente conhecidos.

O complexo fabril perde seu caráter de espaço laboral à medida em que Lina
remodela sua arquitetura e repensa seu uso, sugerindo, assim, um lugar para o ócio, para o
descanso, para atividades não ligadas ao trabalho. Nasce a Cidadela da Liberdade.

No limite, o olhar atento de Lina para questões sociais é o principal ponto de contato
do SESC com os construtivistas russos que, no início da década de 1920, lutaram pela
construção de um ideário de estado voltado para as necessidades sociais dos trabalhadores,
em uma incessante busca por soluções e novas tipologias arquitetônicas.
O pensamento construtivista, e aqui destaca-se a arquitetura, vai apontar para a
construção de uma sociedade plural, de amplo acesso aos mais diversos serviços, antes
restritos à determinadas classes. Desse modo, os projetos ligados à vanguarda russa vão
propor um novo modo de vida, mais coletivo e planejado, articulando diversos atores da
sociedade.

A partir do recorte do tema, o cruzamento entre o projeto do SESC Fábrica da


Pompéia e os construtivistas russos, em um primeiro momento, tentou-se fazer conexões
formais.

É possível notar certas aproximações plásticas entre os blocos esportivos do SESC e


alguns edifícios projetados e/ ou construídos pela vanguarda russa. O amplo uso do
concreto armado, de técnicas e materiais industriais, pré-fabricados, se faz presente nos
objetos analisados. A busca por formas com inclinações cubistas e abstratas nos parece um
ponto de atenção.

Neste sentido, a torre e o cilindro aparecem com alguma frequência na pesquisa e a


comparação entre o SESC de Lina e o Edifício do Comissariado do Povo para a Indústria
Pesada em Moscou, de Leonidov, é inevitável, ainda que em escalas muito distintas. O
cilindro construído para abrigar um reservatório de água potável, que chega a 80 metros de
altura, ao passo que o cilindro proposto por leonidov, chegava a 275 metros, mas com
função indefinida, o projeto concebido para concorrer como proposta de concurso do
edifício do Comissariado do Povo para a indústria pesada em Moscou, não chegou a ser
detalhado, se foi, seus registros foram perdidos, como tantos outros, mas sua intenção de
abrigar um edifício misto com escritórios, moradias, escolas, e unidades para a prática de
atividades esportivas.

Em ambas as propostas os edifícios se ligam por passarelas entre os volumes, se


considerarmos a importância que percursos possuem sobre um espectro fenomenológico, e
que seu projeto é de fundamental importância para o projeto absorver a comunidade, tão
logo o percurso determina a experimentação do edifício por varias faces, não são meras
formas de acesso ou facilitador de distâncias, condições muito notórias no sesc, seus
percursos marcam a condição do usuário, não como um mero transeunte, mas como um
espectador que transpassa por diversos momentos e experimenta inúmeras visões do
projeto.

[Montagem 1: SESC Pompéia e Edifício do Comissariado do Povo para a Indústria Pesada


em Moscou]

Na sequência, comparou-se os Vkhutemas (Ateliês Superiores de Arte e Técnica),


uma experiência pedagógica radical, fruto da ampla reforma no ensino da Rússia
pós-revolução, e as Oficinas de Criatividade do SESC Pompéia, iniciadas em 1982.

Em formato de tabela, os autores listaram as disciplinas ministradas em ambas as


iniciativas de ensino, evidenciando a sobreposição de algumas práticas como cerâmica e
artes gráficas, além da análise da infraestrutura dos ateliês. Também buscou-se
contextualizar as escolas, diferenciando-se, assim, o SESC, que tem por finalidade a
aproximação dos usuários às artes manuais, em formato de cursos livres e os Vkhutemas,
que tinham por pretensão a criação de mão de obra para a modernização da URSS, eram
jovens artistas e arquitetos oriundos da classe proletária, treinados para desenvolver uma
nova cultura artística capaz de integrar a produção industrial e o desenvolvimento
econômico do país (LIMA, JALLAGEAS, 2020).
O terceiro aspecto analisado na pesquisa foi o condensador social, muito presente na
proposta do SESC e dos construtivistas. Pode-se dizer que a faísca inicial foi o edifício
Narkomfin, projetado por Ginzburg, em 1932, oriundo de ideias socialistas e revolucionárias,
tratando-se de um instrumento que propõe uma aproximação entre os diferentes entes da
sociedade.

A experiência de Ginzburg em modificar o formato da habitação convencional,


sublinhando a coletividade, visando alterar o comportamento das famílias, surge como
proposta de uma vida mais compartilhada entre os usuários, portanto, aglutinadora. “Uma
arquitetura em dialética positiva com o cotidiano”. (TAFURI, 1994, p.15 apud VILLAC et al.,
2018).

Ginzburg ao projetar o edifício Narkomfin (1932) surge com a ideia de condensador


social, oriundo de ideias socialistas, logo construtivistas, o condensador social e um
instrumento de aproximação da sociedade. Quando se propõe a modificar a ideia de
habitação convencional, sua proposta de habitação coletiva para marcar o futuro de uma
sociedade, visava alterar o comportamento das famílias, propondo experiências
compartilhadas no dia a dia. construído em 1932, em Moscou, projeto de Moisei Ginzburg e
Milinis/OSA, do ano de 1928, o edifício Narkomfin inaugura um novo período para a
arquitetura habitacional.
Segundo Maria Isabel Villac, a atuação de Ginzburg está definida por Tafuri (1994,
p.15) como a de um defensor de “uma arquitetura em dialética positiva com o cotidiano”. O
que não impede que o crítico italiano afirme que

Os ‘condensadores sociais’ — os círculos de trabalhadores ou


clubes, os experimentos das casas coletivas, as novas
tipologias de serviços urbanos — recuperam, no nível das
imagens, o fim da alienação do trabalho que, como já se
comprovou, na indústria não se pode realizar (TAFURI, 1994,
p.28,) Nessa mesma linha de raciocínio, Kopp (1974)5 e
Frampton (1993)6 compreendem, na URSS dos anos 1920, a
inexistência de uma infraestrutura indispensável à realização
dos serviços coletivos — base da vida cotidiana —, o grau de
adaptabilidade do proletariado e, finalmente, a censura e o
controle estatal de Stálin como razões que eclipsaram a
arquitetura construtivista. Os condensadores sociais
fracassaram também, e mais notadamente, nos edifícios
habitacionais, pela imposição desses por espaços comuns e
coletivos para atividades que tendem a se organizar na vida
privada. Esse entendimento linear das possibilidades da vida
em sociedade obstrui uma renovação cultural nas formas
coletivas de viver, uma vez que os novos programas
arquitetônicos são pensados a partir de uma premissa teórica
de sociedade. (VILLAC, 2018.pag 104)

Leonidov que se associa a Ginzburg no início dos anos 30, momento onde ele passa
pela experiência de viver em uma unidade habitacional projetada por Ginzburg, tem a
oportunidade de se aproximar da proposta condensadora, apropriando-se do tema no
projeto Narkomtiazhprom. Não construído, o projeto propõe um grande vão aberto para a
cidade no térreo do edifício e destaca-se pelo programa amplo, de caráter misto, com
apartamentos unifamiliares, área de lazer, trabalho e estudo, aglutinando uma certa ideia de
cidade para trabalhadores.
“Pedimos ao arquiteto soviético que, como artista, e
empregando toda a sua sensibilidade intelectual, capte
e amplifique, antes que a massa cega de seu próprio
crescimento, as mínimas vibrações da energia em
desenvolvimento e lhes dê forma no edifício” (El
LISSIZTKY, 1970, p.16)

Sabemos hoje que tais ideias morreram com os grandes expurgos de Stalin nos anos
30, e como dito no artigo de Maria Isabel Villac, o condensador social fracassou em suas
ideias mais básicas, mas aqui nos importa as ligações entre Lina e Leonidov, e suas
experimentações e sucessos através do condensador social, e com a proximidade de
Leonidov com Ginzburg, podemos considerar que possuía conhecimento sobre as ideias de
condensador social.
Em determinados projetos de arquitetos
brasileiros, os “condensadores sociais” escapam da
moda das culturas consumíveis, dos ditames dos meios
massivos de comunicação e dos espaços tornados
“mercadoria”. Em obras notáveis, como o Serviço Social
do Comércio (Sesc) Fábrica Pompéia (1977-1982)13, de
Lina Bo Bardi, e o Centro Cultural São Paulo (1982)14,
de Eurico Prado Lopes e Luiz Benedito Castro Telles, o
espaço social não se encaixa nas prescrições de
comportamento e de modos de percepção “adequados
a cada situação”. Contudo, ele está aberto à
espontaneidade da experiência que os espaços e a ação
de apropriação propõem.
Em uma cidade dura como São Paulo, os
condensadores sociais — compreendidos como
indutores de relações sociais humanas consideradas
como de fundamental importância cultural —
promovem a convivência e a simultaneidade de
atividades, distinguindo, assim, a cultura cidadã em
amplo espectro. Inspirados pela multifuncionalidade e
pela presença dos clubes comunais soviéticos, e tendo
como substrato a cultura do homem comum e uma
interpretação antropológica de um “jeito social”
brasileiro, esses condensadores contemporâneos
propõem um entendimento amplo do significado de
cultura e, embora não tratem de edifícios
habitacionais, promovem o “habitar coletivo” nos
espaços públicos. (VILLAC, 2018. pag 105)

Na mesma direção, é evidente que Lina tem o ideário do condensador social como
bússola em sua ação, não fazendo qualquer tipo de distinção entre os usuários do SESC,
propondo um espaço plural, diversificado em sua abordagem programática, aberto à cidade,
absolutamente pautado na coletividade. “Aqui fizemos uma pequena experiência socialista”,
disse Lina repetidas vezes (SANTOS, 1996).

No Congresso Brasileiro de Arquitetos, realizado em


1991, em São Paulo, Lina Bo Bardi dirá, em seu
depoimento, que quando chegou ao Brasil quis se
ocupar das correntes culturais do povo brasileiro. Para
ela, “usar a palavra cultural é importante” porque, no
Brasil, “existe uma pureza de expressão que pode ser
muito pobre também, com meios que são geralmente
os mais simples […] num certo sentido […] fascinantes
porque são primitivos”. Para o arquiteto, a pureza da
expressão cultural revela “um gosto puro, importante”
(BARDI, 1995, p.55 apud VILLAC et al., 2018)

Considerações finais

As especulações aqui apresentadas não são conclusivas e, de forma alguma, existe a


pretensão de esgotar o tema com esta análise. Fica claro, assim, que esta pesquisa
embrionária, fruto da disciplina Cidade, Arquitetura e uso público do espaço, deve ser
encarada com um primeiro passo dado em direção ao tema.

A pesquisa se propôs a cruzar o projeto do SESC Pompéia com elementos caros aos
construtivistas, notabilizando três pilares de sustentação: a forma, a educação e o
condensador social. A contribuição das aulas teóricas e as orientações foram fundamentais
para este resultado parcial do estudo.
Referências bibliográficas

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Architectural Design. 1991.


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SANTOS, Cecília Rodrigues dos. SESC Fábrica da Pompéia. Lisboa: Editorial Blau,
1996.

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VILLAC, Maria Isabel. Condensador social: uma questão para a vida pública
contemporânea. São Paulo: Revista Oculum, Janeiro-Abril, 2018.

Lista de imagens

Montagem 1:

[SESC Poméia]

https://vejasp.abril.com.br/atracao/sesc-pompeia-30-anos/

[Narkomtiazhprom]

https://thecharnelhouse.org/2013/02/16/ivan-leonidov/ivan-leonidov-narkomtiazhp
rom-project-1934-1-2/

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