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Quando a Exageração na Propaganda é Crime

1. A par dos mitômanos(1), que não conhecem outra linguagem


senão a da mentira, estão aqueles que não trepidam em exagerar,
a qualquer respeito, as qualidades e atributos de suas coisas.
Teor de proceder é esse que, as mais das vezes, ninguém toma
ao sério, por sabê-lo fruto de fantasia desordenada, ingênua hipérbole
ou mera bazófia.
É da condição humana, com efeito, isto de exagerarem as
pessoas as notas positivas de tudo o que possuem: tanto lhes agrada
ter e cobiçar o melhor ou o mais raro de uma ordem ou classe!
Não foi, portanto, matéria para estranheza haver certo
comerciante, num rasgo de orgulho e vaidade, mandado afixar à porta
de seu estabelecimento (de carnes e embutidos), cartaz em que
anunciava, à guisa de publicidade, a venda das “melhores linguiças
do mundo”(2). (Os fregueses simplesmente adquiriam o produto, que
decerto presumiam superior à craveira mediana, mas nenhuma
importância ligavam à existência do termo de comparação, por onde
pudessem aferir as excelências da mercadoria!).
As patranhas que, nas Aventuras do Barão de Münchhausen, os
garotos de primeira instrução liam outrora, fascinados, parecem
havê-los acompanhado pela vida fora!…

2. Há casos, porém, em que essa a que pudéramos denominar


malícia verbal da propaganda cede o lugar à sanção penal, visto se trata de
crime(3).
É desse número a hipótese que versou o Tribunal de Alçada
Criminal do Estado de São Paulo, no acórdão a seguir reproduzido:
2

PODER JUDICIÁRIO

T RIBUNAL DE ALÇADA C RIMINAL

D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.206.637/1


Comarca: Guarujá
Apelante: KCO
Apelado: Ministério Público

Voto nº 2291
Relator

– Pratica estelionato (art. 171, “caput”, do Cód.


Penal) o sujeito que vende linhas telefônicas e
recebe do comprador de boa fé o preço total
da transação, mas não lhas transfere sob o
argumento de não as haver disponíveis. É
manifesto o dolo (“animus laedendi”) de quem
assim procede, pois dá à venda o que não
tem.
– Incorre nas penas do art. 67 da Lei nº
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor),
por delito de propaganda enganosa, aquele
que, no intento de vender produtos e prestar
serviços, apregoa-lhes, para conciliar clientela,
atributos que não possuem ou não
respondem à verdade.
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1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara


Criminal da Comarca de Guarujá, condenando-a à pena de 2 anos de
reclusão, no regime aberto, além de 25 dias-multa, por infração do
art. 171, “caput”, combinado com o art. 29, do Código Penal, e 2 anos
de detenção, no regime aberto, por infração dos arts. 67 e 69 da Lei
nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), interpôs recurso para este
Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, KCO.

Nas razões de apelação, afirma que a prova acusatória, frágil e


insegura, era inidônea para justificar o decreto condenatório.

Requer, destarte, o provimento de seu recurso para ser


absolvida, por insuficiência de provas (fl. 364).

A douta Promotoria de Justiça, reexaminando a matéria dos


autos, propugnou a confirmação da r. sentença apelada (fls. 368/369).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido e criterioso


parecer do Dr. José Albino Zorthea, opina pelo provimento parcial do
recurso, a fim de absolver a ré pelo crime do art. 69 do Código do
Consumidor (fls. 378/380).

É o relatório.

2. O Ministério Público ofereceu denúncia contra a ré porque, no


dia 23 de março de 1996, na Avenida Emílio Carlos, na cidade de
Guarujá, obrando em concurso e com unidade de intuitos com MAS,
obteve para si vantagem ilícita, em prejuízo de Valdemar Perez Dantas,
induzindo-o e mantendo em erro, mediante o artifício de vender linha
de telefone inexistente.

Consta dos autos que a vítima, atraída pela publicidade,


comprou à empresa (…) uma linha telefônica, mediante o pagamento
de sinal e mais 4 parcelas.
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A quantia de R$ 1.800,00, referente ao pagamento da entrada,


foi entregue aos réus no momento da celebração do contrato; as mais
parcelas, posteriormente.

A linha telefônica, entretanto, essa não foi jamais instalada.

Apurou-se ainda que os réus promoveram publicidade enganosa e


abusiva, uma vez prometiam a instalação de linhas telefônicas, sem
condições de cumpri-lo.

Instaurada a persecução criminal, tramitou o processo na forma


da lei; ao final, foram condenados pela r. sentença de fls. 343/347.

Inconformada com a decisão condenatória, a ré manifestou


recurso para esta colenda Corte de Justiça, na expectativa de ser
absolvida.

3. A solução do litígio não podia ser outra que a consubstanciada


na r. sentença recorrida, pois indiscutivelmente o conjunto probatório
evidenciou a responsabilidade criminal da ré.

A vítima, inquirida em Juízo, narrou ter comprado à empresa


(…) um telefone em 4 prestações; pagou a importância total de
R$ 3.080,00, mas nunca o recebeu.

A prova literal de suas alegações acha-se entranhada nos autos


(fls. 10/12).

Pelo mesmo teor o depoimento da testemunha Gilberto Dantas


Lima. Confirmou as palavras da vítima e garantiu que, a despeito de
haver pago integralmente o preço da linha telefônica, a empresa da ré
não procedeu à instalação de seu telefone; tampouco lhe devolveu o
dinheiro expendido para a sua aquisição (fl. 72).

A prova oral obtida na fase de instrução do processo revelou, à


saciedade, que a ré, proprietária de empresa que anunciava a venda e
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pronta entrega de linhas telefônicas, induziu em erro a vítima,


causando-lhe vultoso prejuízo econômico.

Foi criminoso, portanto, o seu procedimento, definido e punido


pelo art. 171 do Código Penal.

A alegação de que se tratava de matéria que devia ser desatada


na esfera cível mostra-se de todo improcedente. É o caso dos autos
exemplo de ilícito penal, porquanto a ré, ao prometer a venda das
linhas telefônicas, sem as possuísse, atuara maliciosamente, com o
dolo de obter lucro mediante fraude.

Que operações comerciais desse quilate configuram estelionato


bem o persuadem arestos infinitos de todos os Tribunais do País. Por
me não demasiar, faço menção deste apenas:

“Pratica o crime de estelionato o agente que autoriza a celebração de


contrato com a vítima, de venda de linha telefônica, como se já estivesse
com ela à sua disposição, quando, na verdade, já sabia que, por ser ela
inexistente, não tinha condições de transferi-la para o nome da vítima.
Evidente, portanto, o escopo de lucro ilícito e não mero negócio frustrado
por problemas financeiros surgidos após a sua concretização” (Rev. Tribs.,
vol. 736, p. 648; rel. Mesquita de Paula).

Comprovada, além de toda a dúvida sensata, a imputação


atribuída à ré, era força julgar procedente a denúncia.

À derradeira, importa ressaltar que a ré não se empenhou em


restituir o dano à vítima, com que patenteou sua insigne má-fé.

4. Outro tanto, o delito de propaganda enganosa (art. 67 da Lei nº


8.078/90), ficou suficientemente caracterizado, visto que, a pôr fé
inteira nas palavras da sentença, “as cópias dos panfletos da empresa da
ré noticiavam credibilidade total para sua segurança final” (fl. 345).

Mais mentiroso, conforme áspero epigrama, só elogio de


epitáfio (“transeat”)!
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Não só amplificados, os termos que a ré empregou para


qualificar seus serviços eram também mentirosos e armavam ao
intuito de ilaquear a boa fé das pessoas.

O pregão que fazia de sua atividade era, portanto, de caráter


enganoso.

Vem aqui a talho de foice a lição do provecto e reputado jurista


Paulo José da Costa Jr.:

“Ao fazer ou promover a publicidade, que sabe ser enganosa ou abusiva, o


agente se conduz iluminado pelo dolo genérico, consistente na vontade de
realizar a conduta, consciente dos efeitos que dela irão desencadear-se, em
detrimento do consumidor, da paz pública, do meio ambiente” (Crimes
contra o Consumidor, 1999, p. 44).

Que o comerciante, com o propósito de conciliar o interesse da


clientela, exalte as qualidades de seus produtos ou serviços, bem está;
que o faça, porém, por meio de mentira e engodo, não se admite e a
própria lei o reprime severamente (art. 67 do Código de Defesa do
Consumidor).

A infração do art. 69 do Código de Defesa do Consumidor (“deixar de


organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade”), como
o ressaltou, com raro aviso, o parecer da douta Procuradoria-Geral de
Justiça, não depara no processado elementos probatórios que a
configurem; pelo que, é força absolver a ré desta acusação, o que faço
com fundamento no art. 386, nº VI, do Código de Processo Penal.

5. A pena fixada à ré pelo estelionato (2 anos de reclusão), não sofre


modificação alguma: acima do mínimo legal, por amor das inúmeras
vítimas que, com dolo intenso, lesou, e pelas graves repercussões
sociais do fato na urbe de Guarujá.

Pelo que respeita à pena privativa de liberdade estipulada à ré,


por infração do art. 67 do Código de Defesa do Consumidor (propaganda
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enganosa), é força reduzi-la a 6 meses de detenção, metade do máximo


legal cominado ao tipo. Não será de bom exemplo exasperar ao
extremo, sem causa que o justifique, a pena prevista para os crimes.
“Virtus in medio”!

Ao demais, da data do fato — 23.3.96 (fl. 2) — até à data do


recebimento da denúncia pelo ven. acórdão de fls. 381/388 — 30.4.98
— decorreu lapso de tempo superior a 2 anos.

Destarte, fixada em 6 meses, a pena de detenção acha-se


prescrita, ao módulo do art. 109, nº VI, do Código Penal.

Assim, quanto ao crime do art. 67 do Código de Defesa do


Consumidor, cumpre julgar extinta a punibilidade da ré, pela prescrição
da pretensão punitiva estatal.

Em suma: provejo parcialmente o recurso para absolver a ré


quanto à infração do art. 69 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor) e reduzir-lhe a 6 meses de detenção a pena referente ao art.
67 do mencionado estatuto legal; no tocante a este delito, julgo-lhe
extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal
(art. 107, nº IV, 1a. fig., e 109, nº VI, do Cód. Penal), mantida no mais a
r. sentença de Primeiro Grau, máxime a condenação por estelionato e
o regime prisional.

6. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para os fins que


constarão no acórdão.

São Paulo, 14 de julho de 2000


Carlos Biasotti
Relator
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Notas:

(1) Já entrou em provérbio a notória vocação dos pescadores para a


mentira: dizia um deles que era tão grande o peixe que pescara,
que somente a sua fotografia pesou 2 kg. Nos ranchos em que
se acomodam, é também frequente dar-se com esta inscrição:
Aqui se reúnem pescadores e outros mentirosos!

(2) (3) Lei nº 8.078/90 (Código de


Defesa do Consumidor):
Art. 66. Fazer afirmação falsa ou
enganosa, ou omitir
informação relevante sobre
a natureza, característica,
qualidade, quantidade,
segurança, desempenho,
durabilidade, preço ou
garantia de produtos ou
serviços:
Pena – detenção de 3 (três) meses a
1 (um) ano e multa.
Art. 67. Fazer ou promover
publicidade que sabe ou
deveria saber ser enganosa
ou abusiva.
Pena – detenção de 3 (três) meses a
1 (um) ano e multa.

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