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AS CONCEPÇÕES DE CIÊNCIA, CRISE E RUPTURA

Deivison Moacir Cezar de Campos

A discussão da Comunicação como ciência passa pela configuração do que se


constitui uma ciência e das possibilidades da área constituir-se como tal. Japiassu (1981,
p.54) problematiza a definição, alertando que “o conceito de ciência é uma construção
histórica, não podendo ser elaborado aprioristicamente, sem levar em conta a pluralidade
das ciências, suas reorganizações e sua inserção no contexto sócio-ideológico”. Kuhn
(2001) também vai defender a idéia da ciência como uma construção sócio-histórica.
Popper (1992) defende que o conhecimento científico só pode ser validado por
alguma realidade. Propõe como grande desafio buscar um problema concreto. Para o
autor, “para compreender um problema morto temos que haver lutado, pelo menos uma
vez na vida, com um problema vivo” (p.171). A reflexão tem como pressuposto o que o
autor denomina “terceiro mundo”, o campo científico, não planejado historicamente, mas
desencadeado pela institucionalização.
Gortari propõe uma definição de ciência abrangente a partir da perspectiva
dialética. Diz que “Por ciência entendemos a explicação objetiva e racional do universo”
(1956, p.11). O autor parte do pressuposto de que existe um mundo objetivo que deve ser
explicado, esclarecendo seus nexos internos e vínculos externos, a partir da formulação
de métodos de pesquisa científica sem desvincular a teoria do vivido. O autor vai concluir
que “Todas as ciências se ocupam, portanto, de encontrar explicação objetiva e racional
para as diversas manifestações do universo existente.” (GORTARI, 1956, p.11)
A tarefa da ciência proposta pelos neo-positivistas, segunda Haller (1990, p.25),
“consiste em nada mais do que ajustar pensamentos a fatos e na adaptação de
pensamentos uns aos outros”. Essa proposição vai de encontro à proposta histórica de
Bachelard (1973) para quem

o espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um


alargamento dos quadros de conhecimento. Julga o seu passado
histórico, condenando-o. A sua estrutura é a consciência dos seus erros
históricos. Cientificamente, considera-se o verdadeiro como retificação
histórica de um longo erro, considera-se a experiência como retificação
de uma ilusão comum e inicial. Toda vida intelectual da ciência se joga
dialeticamente nesta diferencial do conhecimento, na fronteira do
desconhecido (p. 125).
A dicotomia apresentada nas proposições está no centro das discussões da ciência
contemporânea. A proposição austríaca está ligada aos princípios positivistas que
buscaram nas ciências da natureza parâmetros epistemológicos e metodológicos a serem
aplicados nas ciências sociais e humanas. Segundo Haller, a “tese da unidade
metodológica de todas as ciências foi defendida em seu inteiro rigor, especificamente
porque se acreditava que seria possível criar uma linguagem unificada na qual todas as
linguagens cientificas restantes podiam ser traduzidas” (1990, p.27).
As necessárias referências ao positivismo demonstram sua atualidade, apesar de
muitas das ciências ter decretado sua inviabilidade e limitação reflexiva. Gotari (1956,
p.16) propõe que o paradigma foi útil no momento de organização das ciências modernas,
possibilitando uma acumulação de conhecimento através da experimentação. O processo
se utiliza do observável ao desarticulá-lo “de seu contexto histórico e natural, para
investigá-lo em separado, considerando a estrutura singular de cada um e suas relações
parciais de causalidade.” Japiassu (1981, p.7) vai dizer que para os positivistas “só existe
na natureza a ordem que o ser racional for capaz de dar-lhe.”
Boaventura (ver) também refere o paradigma positivista. A revolução científica
havia iniciado no século XV no domínio das ciências naturais, com Copérnico, e foi
levada às ciências sociais no XIX. Essa foi uma “ruptura fundante que possibilita uma e
só uma forma de conhecimento verdadeiro” (p.3). Para o autor, nesta perspectiva,
“Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações
sistemáticas entre o que se separou.” O controle das condições iniciais e a determinação
das regularidades visam “prever o comportamento futuro dos fenômenos.” (p.5).
As regularidades previstas pelo paradigma positivista vão estabelecer o que Pierce
(1877) denominou de crenças. Os seguidores, segundo o autor, não se atrevem a conhecer
a verdade e, por isso, procuram evitá-la, pois “uma clara consciência lógica tem um
preço” (PIERCE, 1877, p.20). Por outro lado, Boaventura vai dizer que “a ordem e a
estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real” (1986,
p.5).
A idéia de estabilidade, desencadeada num primeiro momentos pelo paradigma
positivista, possibilita a estruturação do que Kuhn (2001) vai denominar de ciência
normal. Essa significa “a pesquisa baseada em uma ou mais realizações científicas
passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma
comunidade específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior”
(p.29). A ciência normal encontra nos manuais e na institucionalização a sua forma de ser
expandida, pois “para serem influentes e efetivas, as idéias filosóficas, como as de outras
disciplinas, precisam de institucionalização” (HALLER, 1990, p.18).
Os manuais são os depositórios da ciência normal. Segundo Kuhn (2001, p.29),
“livros expõe o corpo da teoria aceita, ilustram muitas (ou todas) as suas aplicações bem
sucedidas e comparam essas aplicações com observações e experiências exemplares”.
Esses exemplos referem-se aos resultados de muitos erros corrigidos que acabam por não
ser apresentados.
Bachelard (1973, p.207) vai dizer que o pensamento científico se fortalece a partir
de uma história recorrente que parte se justifica no presente e busca no passado a
descrição dos progressos. Para ele, nos livros aparece “sob forma de preâmbulo histórico.
Mas é geralmente muito curta. Esquece muitos intermediários. Não prepara
suficientemente a formação pedagógica dos diferentes limiares diferenciais da cultura.”
(BACHELARD, 1973, p.207). Japiassu (1981) alerta, no entanto, que

não devemos subestimar o valor da chamada ‘ciência ensinada’ que, por


sua simplificação e seu formalismo, permite ao aluno economizar
longos e sinuosos trajetos que a ciência teve que percorrer para se
formar creio ser frutosamente que os alunos e mestres possam
representar-se a ciência, não como um somatório de resultados
definitivos e objetivos, dotados de não se sabe que verdade intemporal,
mas naquilo que efetivamente ela é, ou seja, uma pesquisa conduzindo
tanto ao erro quanto a verdade, jamais se tomando como um saber
acabado, pois tem necessidade de superar obstáculos sempre
renascentes (p.5).

No entanto, o autor observa que a universidade tem se pautado pelo saber-fazer,


formando mão-de-obra técnica especializada. Nesse sentido, “a Universidade não forma,
mas conforma os indivíduos a um saber dominado e/ou absorvido pelo processo sócio-
econômico-político.” (JAPIASSU, 1981, p.69). Ensinada desta maneira, a ciência acaba
perdendo seu “caráter libertário ou emancipatório” (p.79), servindo como esfera de
controle social. O princípio emancipatório da ciência havia sido apontado por Pierce
(1877) quando sugere um método de estabelecer opiniões

deixem os homens conversando juntos e observando os assuntos


de diferentes luzes, desenvolver gradualmente crenças de
harmonia com as causas naturais. Esse método assemelha-se
àquele pelo qual concepções de arte foram trazidas à maturidade
(p.14).
A relação entre a arte e a ciência no ensino universitário também está presente nas
reflexões da Comissão Gulbenkian. Para Wallerstein (et.al, 1996), mesmo em meio às
pressões sócio-políticas, apontadas por Japiassu (1981), “as universidades passaram a ser
o espaço privilegiado de permanente tensão entre artes (humanidades) e ciência, dois
modos de conhecimento agora definidos como sendo bastante diferentes ou até
antagônicos.” (p.22).
A separação das formas de conhecimento e, ao mesmo tempo, o modelo de
institucionalização das pesquisas levou a especialização do conhecimento e
consequentemente das pesquisas. Boaventura (1986, p.17) defende que neste modelo o
“saber científico faz do cientista um ignorante especializado”. Por outro lado, a
especialização possibilita à ciência normal um aprofundamento das pesquisas
estruturadas em torno e a partir de paradigmas. Kuhn vai dizer que o “Estudo dos
paradigmas [...] é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade
científica” (2001, p.30).
A instrumentação do estudante, além do conhecimento de um paradigma do
presente a partir de sua historicidade, também está ligada ao desenvolvimento de
processos ligados ao que Popper (1992, p.106) vai denominar de terceiro mundo.
Enquanto o primeiro [dos estados físicos] e o segundo [das disposições
comportamentaispara a ação] estão relacionados a vivência e ao senso comum, o terceiro
constitui-se no “mundo dos conteúdos de pensamento objetivo, especialmente, dos
pensamentos científicos e poéticos e das obras de arte.” Tal perspectiva tem sido
desenvolvida num processo de profissionalização da produção do conhecimento.
Os profissionais deverão buscar no primeiro mundo problemas que, observados a
partir da perspectiva dos paradigmas, produzirão teorias – partindo do principio de Popper
(1992) deve ser validado pela realidade. Uma teoria para se tornar um paradigma, diz
Kuhn (2001, p.38), deve “parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de
fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada.”
Estrutura-se, portanto, a partir de uma “classe de fatos que o paradigma mostrou ser
reveladora da natureza das coisas” (p.46).
Os paradigmas são restritivos por constituírem limites que irão balizar as
pesquisas da ciência normal. Essas buscarão de alguma forma “aperfeiçoar ou encontrar
novas áreas nas quais a concordância possa ser demonstrada coloca um desafio constante
à habilidade e à imaginação do observador e experimentador” (KUHN, 2001, p.47). Desta
maneira, mesmo não respondendo a todos os questionamentos em sua estruturação, o
paradigma constrói a perspectiva a partir do qual os pesquisadores irão observar os
fenômenos relativos aos seus problemas.
O avanço do conhecimento científico, portanto, ocorre, dentro da ciência normal,
pelo “trabalho empírico empreendido para articular a teoria do paradigma, resolvendo
algumas ambiguidades residuais e permitindo a solução de problemas para os quais ela
anteriormente só tinha chamado atenção” (KUHN, 2001, p.48). Nesse processo, muitas
vezes sobressaem-se questões que não conseguem ser respondidas pelo paradigma
vigente e desta maneira inicia-se, segundo Kuhn (2001), um período de crise do
paradigma. A comunidade científica então entrará numa disputa por hegemonia de
paradigma.
Os questionamentos à ordem científica hegemônica (BOAVENTURA, 1986)
surgirão dentro das pesquisas regulares da ciência normal (KUHN, 2001). Os
questionamentos surgem a partir de estruturas de conhecimento que se modificam a partir
de diferentes concepções de mundo, ligadas aos processos históricos. Japiassu (1981, p.5)
vai dizer que

epistemologicamente estudada, a história das ciências tem o grande


mérito de poder mostrar que as pesquisas e as descobertas científicas
encontram-se vinculadas a uma concepção do mundo historicamente
determinada; em seguida e em sentido inverso, que as revoluções
científicas jamais aparecem a não ser consecutivamente a rupturas com
essas visões de mundo.

As estruturas de conhecimento, estando ligadas a historicidades, constroem-se


processualmente. Quando uma crise se manifesta, o paradigma já não atende as
necessidades de conhecimento e o problema já é de conhecimento da comunidade
científica da especialidade, provocando uma disputa por hegemonia entre as diferentes
perspectivas. Segundo Kuhn (2001, p.89), “a consciência prévia da anomalia, a emergência
gradual e simultânea de um reconhecimento tanto no plano conceitual quanto no plano da
observação e a consequente mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos”.
Pierce (1877) vai dizer que as crenças guiam os desejos e as ações da sociedade e
das comunidades científicas. Por isso, a dúvida nessas certezas gera “desconforto e
insatisfação”, fazendo com que se busque um novo estado de crença (p.7). Neste sentido,
Kuhn (2001, p.109) vai propor que “Tal como os artistas, os cientistas criadores precisam,
em determinadas ocasiões, ser capazes de viver num mundo desordenado.”
A existência de paradigmas concorrentes faz com os momentos de dúvida, sejam
mais de compartilhamento de crenças. Conforme Kuhn (2001, p.108), “uma teoria
cientifica após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando
existe uma alternativa disponível para substituí-la.” Rejeitar um paradigma sem ter uma
substituição seria “rejeitar a própria ciência”.
O processo de transição não é cumulativo, mas uma reconstrução da área de estudo
a partir de novos princípios, alterando generalizações teóricas, métodos e aplicações
(KUHN, 2001, p.116). As transformações, no entanto, são relativas a áreas de
conhecimento diretamente ligadas ao paradigma, pois a especialização faz com que os
questionamentos e transformações no interior de uma área de conhecimento acabem por
não afetar as outras áreas.
Pierce (1877, p.11) acredita que, neste momento do processo de crise, a questão
colocada é “como fixar a crença, não meramente a nível individual, mas na comunidade.”
Também afirma que independente da crença ser verdadeira ou falsa produz satisfação,
pois as questões envolvidas fazem parte da área de conhecimento. A necessidade de um
consenso, segundo Bachelard (1973, p.115), “é m ais do que um facto, é um sinal de
estrutura.” Quando em crise, necessita-se de um novo consenso para que a ciência normal
retome sua estabilidade. Enquanto isso não acontece, o período é de revolução.
Apesar da instabilidade, nestes períodos, a ciência sai fortalecida, pois

a ciência não se destrói, [...] nenhuma crise interna pode deter seu
progresso, que o seu poder de integração permite-lhe aproveitar aquilo
que a contradiz. Uma modificação nas bases da ciência produz uma
expansão no seu cimo. Quanto mais se escava a ciência, mais ela se
eleva (BACHELARD, 1971, p.139).

Boaventura afirma que passamos por uma profunda crise que classifica como
“irreversível.” Segundo o autor, passamos por “um período de revolução científica que
se iniciou com Einstein e a mecânica quântica” e só se pode “especular acerca do
paradigma que emergirá” (ver, p.8). A crise tem repercussão direta sobre as perspectivas
epistemológicas.

EPISTEMOLOGIAS
A crise que marca a ciência hoje está ligada, conforme Boaventura (ver, p.2), a
um movimento em que “perdemos a confiança epistemológica; [...] daí a ambigüidade e
complexidade do tempo cientifico presente.” Kuhn avalia que a perspectiva epistemologia
ocidental, na qual a experiência dos sentidos é fixa e neutra, e as teorias interpretação humana de
dados já duram três séculos. No entanto, não atende mais as demandas da pesquisa atualmente.
Desta maneira, ela continua vigente. Para o autor, “na ausência de uma alternativa já desdobrada,
considero impossível abandonar inteiramente essa perspectiva. Toda via ela já não funciona
efetivamente” (2001, p.161).
Japiassu (1981) segue a proposição de Kuhn ao reafirmar que “somente o saber
positivo ou científico, enquanto não se puser a si mesmo em questão e enquanto não
conseguir reconstruir-se sobre novas bases, está longe de reconstituir todo o saber
científico.” (p.6). Para o autor, “Não compete ao epistemólogo estudar o passado de uma
ciência atual. Ele está mais interessado em estudar uma ciência atual em seu passado”
(p.4).
Neste cenário, “A universidade não pode continuar a pôr-se a margem num mundo
em que, uma vez excluída a certeza, a função do intelectual está necessariamente em vias
de mudança e a idéia de cientista neutro é fortemente posta em causa.” (WALLERSTEIN,
VER, p.114). Bachelard (1973, p. 206) vai falar da necessidade constante de “formar e
reformar a dialética da história ultrapassada e da história sancionada pela ciência
atualmente ativa”. As pesquisas institucionalizadas, tendo na universidade uma esfera de
legitimação, possuem um importante papel a cumprir nesse sentido.
Bachelard (1973) diz que no ensino científico apreende-se o fato, deixando em
segundo plano as razões, provocando o “empirismo da memória”. Propõe então uma
revolução epistemológica “para evidenciar o racionalismo (a ordem das razões) e situar
em posição subalterna o empirismo (a ordem dos fatos) pode parecer simples paradoxo”
(p.35).
A idéia de revolução, ou pelo menos de transformação, perpassa a reflexão de
Norris (2007, p.21) que propõe uma pesquisa mais ligada aos princípios de Aristóteles,
buscando uma concepção ética do conhecimento. Uma abordagem que “enalteça as
vitudes epistêmicas e se disponha a repensar a relação entre o que conhece e o que é
conhecido em termos que permitem evitar os áridos dualismos que têm até aqui
constantemente perturbado o debate” (NORRIS, 2007, 21).
A epistemologia constitui-se, para Bachelard (JAPIASSU, 1981), numa reflexão
sobre questões de teoria, método e conclusões. “ É a esses três níveis da démarche
científica que, inicialmente, refere-se a epistemologia. Daí pode ser conceituada como a
teoria crítica dos princípios, dos métodos e das conclusões. Porque o conhecimento real
é uma luz que sempre projeta sombras em algum lugar” (p.3). Propõe-se também a
“elaborar uma reflexão crítica permitindo-nos descobrir e analisar os problemas tais como
eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou desaparecem, na prática efetiva dos
cientistas.” (p.96).
Bachelard (1973) verifica que, na epistemologia contemporânea, diferentes
abordagens experimentais são solidárias às organizações teóricas e propõe que “O
racionalismo integral só poderá ser um domínio das diferentes axiomáticas de base. E
designará o racionalismo como uma atividade dialética, dado que as axiomáticas diversas
se articulam entre si dialéticamente.” Tal postura epistemológica aproxima-se da proposta
de Einstein (JAPIASSU, 1981, p.29), convidando a valorizar os aspectos subjetivos, pois
a “lógica da descoberta é tão importante quanto a lógica da prova”.
Os aspectos subjetivos estão aqui colocados no sentido do terceiro mundo. Popper
(1992) vai dizer que “A interpretação, enquanto objeto do terceiro mundo, será sempre
uma teoria [...]e, como tal, está ligada a outras teorias e com outros objetos do terceiro
mundo” (p.155).A consolidação de uma confiança epistemológica num novo consenso,
ou paradigma, gera uma alteração no contexto, pois “[...] não é apenas nem tanto uma
melhor observação dos fatos como sobretudo uma nova visão de mundo e da vida, os
protagonistas do novo paradigma conduzem uma luta apaixonada contra todas as formas
de dogmatismo e de autoridade” (BOAVENTURA, ver, p.3).
Os problemas da epistemologia - da verdade, do conhecimento e da garantia
evidencial - estão “ligados ao comum interesse humano de obter juízos informados e
ponderados em toda uma variedade de áreas de investigação” (NORRIS, 2007, 13). No
entanto, principalmente a categoria de verdade não dever ser considerada o objetivo de
uma pesquisa e nem mesmo está refletida no paradigma utilizado. Conforme Japiassu
(1981, p.), cientistas e filósofos estão convencidos de que “no término das suas
investigações, não é a verdade que irão encontrar, mas tão somente verdades descobertas
após um penoso e longo processo de produção histórica.” (JAPIASSU, 1981, p.29).
A consciência da produção de verdades descobertas torna-se fundamental para a
profissionalização, pois “em nenhuma outra comunidade profissional o trabalho criador
individual é endereçado a outros membros da profissão (e por ele avaliados) de uma
maneira tão exclusiva” (KUHN, 2001, p.206). Mesmo analisando os processo de crise e
revolução científica, o autor vai defender que essa produção de conhecimento científico
é um produto europeu, gerado nos últimos séculos, pois “apenas as civilizações que
descendem da Grécia helênica possuíram algo mais do que uma ciência rudimentar”
(p.210). A análise, neste caso, restringe-se somente as modificações internas da ciência
normal, desconsiderando a sua própria perspectiva da ciência como uma construção
sócio-histórica.
Essa questão está colocada no centro da crise de paradigma científico na ciência
como um todo e nas discussões sobre as especializações das ciências sociais
(WALLERSTEIN, 1996). Contrariando Kuhn, Engelbert Mveng vai dizer que “O
Ocidente, hoje, concorda quando afirmamos que a via para a verdade passa por inúmeros
caminhos que não o da lógica aristotélica e tomista ou o da dialética hegeliana. Há que
descolonizar as próprias ciências sociais e humanas” (1978 apud WALLERSTEIN, 1996,
p.85).
Pierce (1877, p.17) diz que “a investigação científica tem tido os mais
maravilhosos triunfos na forma de estabelecer opinião.” Esse princípio guarda a questão
ideológica, presente na querela referida acima, demonstrando que a presente crise e
consequente disputa por hegemonia não se restringe a uma questão paradigmática.
Estende-se até mesmo a discussão sobre o que é fazer ciência. A disputa se dá por “que
aqueles que detêm o poder social têm uma tendência natural para considerar universal a
situação vigente, uma vez que ela os beneficia” (WALLERSTEIN, 1996, p.86). Desta
forma, “o modelo de epistemologia nomotécnica que gradualmente se fora tornando
dominante nas ciências sociais no período posterior a 1945” (p.91), ainda se mantém
como paradigma, mas tem sido colocado permanentemente em dúvida. No relatório da
comissão sobre as ciências sociais, por exemplo, está indicado que

às exigências postas por essa realidade sempre viva que é a


multiplicidade de culturas, é algo que vai depender da capacidade
imaginativa das nossas respostas organizativas e de uma certa tolerância
relativamente á experimentação intelectual nas ciências sociais
(WALLERSTEIN, 1996, p.128)

A proposição visa estabelecer novas teorias que possam atingir o status de


paradigma a fim de atender as demandas que hoje não alcançam os problemas colocados.
Kuhn (2001) vai propor uma alternativa a partir de evolução como um plano a realizar,
devendo “substituir a evolução-a-partir-do-que-sabemos pela evolução-em-direção-ao-que-
queremos-saber, diversos problemas aflitivos poderão desaparecer nesse processo” (p.214).
Boaventura (ano) diz ainda não vislumbrar claramente um novo paradigma, mas defende
que “uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela
ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico, tem de
ser também um paradigma social” (p.13). O sociólogo, ao contrario da visão etnocêntrica
de Kuhn, entende que a tensão com o vivido demonstra que outras perspectivas são
necessárias. Afirma inclusive ter entendido que sua produção, construída a partir das
categorias “revolução e emancipação”, não explica totalmente as realidades do que ele
chamada de sul, tendo aprendido isso com quilombolas e índios da América do Sul
(2010).
Bachelard (1973) propõe uma concepção a partir do que denomina “racionalismo
integral ou integrante”, instituído a posteriori a partir da análise sócio-histórica dos tipos
de relação estabelecida por determinados fenômenos, diferenciando consensos de ciência
dos altamente especializados. Segundo o autor, “deve ser, portanto, um racionalismo
dialético que decide qual a estrutura em que o pensamento se deve integrar para informar
uma experiência” (p.116). Desta maneira, configura-se a proposição defendida por
Bachelard de que a história da ciência “é ao mesmo tempo uma história de especializações
do saber e uma história da integração, numa cultura geral, das culturas especializadas”
(p.137).
A discussão e proposições dos autores demonstram a “consciência previa”, de que
fala Kuhn (2001), indicando um momento de transição. Essas modificações têm
impactado na prática científica, demandando reflexões sobre, principalmente a questão
do problema, do método e das teorias e, consequentemente, epistemológica, quebrando a
lógica vertical de produção e reflexão científica.
A especialização tem sido a marca da ciência na constituição de uma
problemática. Para Bachelard (1973, p.130), a investigação “Toma como ponto de partida
real um problema, mesmo que esse problema seja mal posto. O eu científico é então
programa de experiências, ao passo que o eu-não-científico é já problemática
constituída.” A proposta colocada, portanto, é a de se trabalhar com um “objeto a
conhecer, a partir de uma problematização. Bachelard (1973) vai dizer ainda que a
problemática deve anteceder toda investigação, pois se fundamenta numa dúvida
“especificada pelo objeto a conhecer” (p.135). Diz também não acreditar “na eficácia
dúvida em si, da dúvida que não se aplica a um objeto” (Bachelard, 135).
A perspectiva de Bachelard corrobora com as proposições de Popper (1992) que
também propõe a pesquisa como um programa ligado a objetos do “terceiro mundo”.
Popper (1992, p.171) vai dizer que pensa “que a ciência parte do problema”. Também
defende ser necessário que se trabalhe a partir de um problema vivo, a partir da tentativa
e de possíveis fracassos, pois se aprende “a resolver um problema tentando resolvê-lo e
fracassando e, quando houvermos fracassado cem vezes, podemos nos converter em
expert desse problema particular” (p.171). Kuhn (2001, p.184) vai concordar com a
importância de se estabelecer problemas de pesquisa, no entanto alerta que, ao mesmo
tempo que são operativos, “provocam crise”.
A posição do objeto científico também é destacada por Bachelard (1973). Diz que
esse

reclama uma solidariedade entre método e experiência. É necessário,


pois, conhecer o método para conhecer, para captar o projeto para
conhecer, isto é, no reino do conhecimento metodologicamente
valorizado, o objeto suscetível de transformar o método de conhecer
(p.135)

O autor alerta que a verdade primeira não se constitui numa verdade fundamental
de objetividade que está ligada. Desta maneira, torna-se necessário um rompimento com
o conhecimento imediato, gerado pela evidência primária que será contraposta pela
verificação crítica.

Tem de começar por criticar tudo: a sensação, o senso comum, até a


prática mais constante e a própria etimologia, pois o verbo, que é feito
que é feito para cantar e seduzir, raramente vai ao encontro do
pensamento. Em vez de se deslumbrar, o pensamento científico deve
ironizar. Sem essa vigilância desconfiada, nunca alcançaremos uma
atitude verdadeiramente objetiva (BACHELARD, 1973, p.129).

O método deve ser portanto uma estratégia para se chegar a uma verdade
descoberta, constitui-se numa “astúcia de aquisição” (p.136). Critica a utilização de
métodos que apresentam excessiva eficária e por isso “acaba por passar da categoria de
método de descoberta para método de ensino.” (p.136), por acreditar que este método só
possui um passado. Por outro lado, o desenvolvimento de um método particular “se for
verdadeiramente fecundo determina expansões tais na cultura que é possível espantarmo-
nos com as habituais homilias contra a especialização” (BACHELARD, 1973, p.137).
Nessa perspectiva, acentua-se o valor dos métodos múltiplos que pela recombinação vão
produzir algo novo. Diz também que toda crise profunda no método utilizado “é
imediatamente uma consciência da reorganização do método” (p.138).
Gortari (1956) vai defender o procedimento dialético que “estabelece a análise
explicativa e concreta dos processos e, as vezes, leva a descoberta de sua existência e
define em sua integridade, o procedimento metodológico que permite conhece-lo.” (p.27).
Para ele, o observador deve ter consciência de que intervêm no processo, sendo a pesquisa
a “observação provocada dentro de condições controladas pelo investigador” (p.36). Por
isso, deve-se nos resultados procurar reduzir os erros de observação, considerando as
intervenções no desenvolvimento do processo, independendo das hipóteses (p.36).
Considera também que a pesquisa é “a fonte do conhecimento científico” (p.37) e a
atividade prática é o único critério objetivo desse conhecimento.
A proposição do problema como dinamizador de uma pesquisa e esta estar ligada
a objetos da realidade vai de encontro com os princípios da ciência moderna positivista
que propunha uma proeminência das idéias sobre as coisas. Boaventura (1986, p.4) diz
que nessa perspectiva são “as idéias que presidem à observação e à experimentação são
as idéias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais
profundo e rigoroso da natureza. Essas idéias são as idéias matemáticas.” Reforçando a
importância do problema Popper (1992, 172) defende que “o primeiro passo vital para
entender uma teoria é compreender a situação problemática a partir da qual esta surge.”
Gortari (1956) diz que a investigação científica deve corresponder ao “movimento
da natureza e da vida social”, partindo de hipóteses que são “resultado de experiência
anterior”. A partir da experimentação, portanto, uma hipótese pode ser rechaçada,
abrindo espaço para outras hipóteses, modificada ou então confirmada, quando
transforma-se em teoria, desta forma “a teoria científica não é outra coisa que a hipótese
comprovada experimentalmente” (p.29). A investigação, segundo ele, vai seguir alguns
postulados [paradigmas, na concepção de Kuhn], balizando-se por hipóteses particulares
dentro da ciência normal. Quando estes não se mostram eficientes para responder a um
objeto problematizado, abre-se espaço para novos paradigmas que “vê coisas novas nos
mesmos pontos já examinados” (KUHN, 2001, p.145).

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gastón. A epistemologia. Lisboa: Edições 70, 1973.

ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. 6ª Ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

GORTARI, Eli de. Introducción a La lógica dialética. México: Fondo de Cultura


Econômica, 1956.
HALLER, Rudolf. Wittengstein e a filosofia austríaca: questões. São Paulo: Edusp,
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JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. Rio de janeiro: Imago, 1981.

KHUN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6. Ed. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2001.

NORRIS, Cristopher. Epistemologia. 2007

PIERCE, Charles S. A fixação da crença. Popular Science Monthly 12 (November


1877). Disponível em <http://www.bocc.uff.br/pag/peirce-charles-fixacao-crenca.pdf>.

POPPER, Karl R. Conocimiento objetivo. 4ª Ed. Madri: Ed. Tecnos, 1992.

SANTOS, Boaventura de Souza . 1986.

_____________________. 2010.

WALLERSTEIN, Immanuel et.al. Para abrir as ciências sociais. 1996

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