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Revista de Ciência Veterinária e Saúde Pública


Rev. Ciên. Vet. Saúde Públ., v.6, n. 1, p. 138-148, 2019

FISIOLOGIA DA DOR VISCERAL: OS ANTICOLINÉRGICOS PODEM SER


ÚTEIS?

(Visceral pain physiology: can anticolinergics be useful?)

FONTANELA, Marco Aurélio Camargo1; BORGES, Ana Luisa Custódio2;TAFFAREL,


Marilda Onghero3*

1. Mestrando em Produção Sustentável e Saúde Animal - Universidade Estadual de Maringá


2. Graduanda em Medicina Veterinária – Universidade Estadual de Maringá
3. Universidade Estadual de Maringá - Departamento de Medicina Veterinária
*Autor para correspondência: mtafarel@yahoo.com.br
Artigo enviado em: 28/02/2018, aceito para publicação em 07/11/2018
DOI: http://dx.doi.org/10.4025/revcivet.v6i1.41894

RESUMO

Conhecer os aspectos anatômicos da dor, assim como os seus mecanismos básicos é fundamental para o
entendimento da manifestação do quadro doloroso. A inervação visceral é mediada principalmente por fibras C,
de condução lenta que possuem a Substância P como principal neurotransmissor. No entanto a inervação
sensitiva das membranas parietais é mediada pelas fibras A-δ, de condução rápida que possuem o glutamato
como principal neurotransmissor. Os tecidos lesionados liberam vários mediadores inflamatórios que possuem
capacidade de ativar as terminações nervosas dessas fibras, além de levar a outras alterações locais que geram
dor, como é o caso de espasmos da musculatura lisa. A escopolamina pode ser classificada como antagonista
colinérgico muscarínico, também denominada antiespasmótico. Dessa forma, este trabalho teve por objetivo
realizar levantamento bibliográfico sobre o uso da escopolamina como adjuvante analgésica em cães em
procedimentos com dor visceral, especialmente para ovariosalpingohisterectomia. Apesar de haverem estudos
limitados sobre o uso para este fim, a escopolamina pode ser útil para o controle álgico no pós-operatório de
ovariosalpingohisterectomia, reduzindo o espasmo visceral. No entanto se fazem necessários mais estudos sobre
o correto uso desse fármaco em animais e o real benefício analgésico.

Palavras-chave: Analgésico; Escopolamina; Ovariosalpingohisterectomia.

ABSTRACT

Knowing the anatomical aspects of pain, as well as its basic mechanisms is fundamental for understanding the
manifestation of pain. Visceral innervation is mediated primarily by slow-conducting C-fibers that have
Substance P as the major neurotransmitter. However, the sensory innervation of the parietal membranes is
mediated by the fast-conducting A-δ fibers that have glutamate as the main neurotransmitter. Injured tissues
release several inflammatory mediators that have the ability to activate the nerve endings of these fibers, in
addition to leading to other local changes that generate pain, as in the case of smooth muscle spasms.
Scopolamine can be classified as muscarinic cholinergic antagonist, also called antispasmotic. Thus, this study
aimed to perform a bibliographic survey on the use of scopolamine as an adjuvant analgesic in dogs in
procedures with visceral pain, especially for ovariohysterectomy. Although there are limited studies on its use
for this purpose, scopolamine may be useful for postoperative ovarian allopurinol control, reducing visceral
spasm. However, further studies are needed on the correct use of this drug in animals and the real analgesic
benefit.

Key-words:analgesic; Scopolamine; Ovariosalpingohisterectomy.

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Fisiologia da dor visceral: os anticolinérgicos podem ser úteis

INTRODUÇÃO atividade parassimpática nos receptores


muscarínicos, reduzindo ou bloqueando a
A dor é considerada como sendo o ação da acetilcolina. São agentes também
quinto sinal vital, juntamente com a função chamados de espasmolíticos ou
cardíaca, respiratória, térmica e pressão antiespasmóticos porque reduzem os
arterial (FREITAS et al., 2009; LUNA, espasmos, principalmente no trato
2006; HELLEBREKERS, 2002). Sendo gastrintestinal (VITAL e ACCO, 2017;
assim, conhecer os aspectos anatômicos da OLIVEIRA, 2008). A escopolamina
dor, assim como os seus mecanismos compete com a acetilcolina, produzindo
básicos, é fundamental para o um efeito antagonista de todos os
entendimento da manifestação do quadro receptores muscarínicos dos nervos
doloroso (FERNANDES e GOMES, colinérgicos pós-glanglionares do sistema
2011). parassimpático e também nos receptores
Contudo, o desenvolvimento de centrais da acetilcolina (VITAL e ACCO,
estratégias racionais e efetivas para o 2017; BROWN et al, 2012; ROACH et al.,
tratamento antiálgico requer conhecimento 2001; CITTADINI et al., 1998), já suas
básico sobre fisiologia, vias nervosas conjugações definem a capacidade de
envolvidas na resposta ao estímulo atravessar as barreiras do organismo e
nociceptivo, resposta do sistema nervoso assim produzir os efeitos (RANG et al.,
diante de repetidos estímulos, e 2011).
consequências sistêmicas da dor, como por A técnica de
exemplo, de catabolismo proteico, perda de ovariosalpingohisterectomia (OSH)
apetite, oligodipsia, hiperalgesias e convencional possui capacidade de ativar
alterações de comportamento que levam a tanto a via da dor visceral, quanto da dor
uma diminuição na qualidade de vida do somática. Devido diversos fatores como,
paciente. Dessa maneira é possível a inervação local, manipulação visceral
seleção de agentes farmacológicos e durante o procedimento (leva a liberações
técnicas capazes de promover um de mediadores inflamatórios), isquemia por
tratamento adequado (ANDRADE et al., ligaduras, entre outras (KÖNIG e
2008). LIEBICH, 2012; HEDLUND, 2008) o que
Os antagonistas colinérgicos são é melhor discutido no decorrer do texto.
fármacos que agem seletivamente na

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Fisiologia da dor visceral: os anticolinérgicos podem ser úteis
Este trabalho teve por objetivo De acordo com diâmetro,
realizar levantamento bibliográfico sobre a mielinização e velocidade de condução
fisiologia da dor visceral, e o possível uso elétrica das fibras sensitivas, estas se
da escopolamina como adjuvante dividem em três grupos principais: Aβ, Aδ
analgésica, especialmente para e C (FERNANDES e GOMES, 2011). Os
procedimentos de OSH. receptores específicos para a dor estão
localizados nas terminações de fibras
FISIOLOGIA DA DOR VISCERAL nervosas Aδ e C (ROCHA et al., 2007). A
velocidade de condução dessas fibras é de
Fisiologicamente a dor é deflagrada 14 a 17 ms-1nas fibras Aδ, enquanto que na
por estímulos intensos e potencialmente fibra C é de 1,4 a 1,5 ms-1. Geralmente as
lesivos que ativam os nociceptores e vísceras têm receptores sensoriais
desencadeiam reação inflamatória com exclusivos para dor (ANDRADE et al.,
liberação de mediadores químicos 2008).
(substâncias algogênicas), bradicinina, A inervação visceral é mediada
serotonina, histamina, íons potássio, principalmente por fibras C, tendo
acetilcolina, interleucina-1, óxido nítrico e proporção de 1:8 a 1:10, enquanto na pele
enzimas proteolíticas. Além disso, as a proporção é de 1:2. Sendo assim as
prostaglandinas e a substância P aumentam vísceras tendem a transmitir o tipo crônico-
a sensibilidade das terminações nervosas, persistente de dor (SOBRINHO, 2000). Já
mas não as excitam diretamente nas superfícies parietais há extensa
(FERNANDES e GOMES, 2011; inervação somática, originada dos nervos
ANDRADE et al., 2008). Estas culminam espinhais periféricos, portanto a dor da
em alterações vasculares e imunológicas parede parietal geralmente é aguda.
inflamatórias, ativação dos nociceptores ou Mantendo-se o caráter somático de, por
redução do seu limiar de excitabilidade, exemplo, uma incisão é extremamente
tornando-os assim mais sensíveis aos dolorosa, mas também somado a isso
estímulos (OLIVEIRA, 2001). Atualmente estímulos químicos, como a inflamação, e
é proposto que a substância P seja o bacterianos também realizam ativação
principal neurotransmissor central nociceptiva da porção parietal do peritônio
envolvido na dor relacionada com as fibras (HALL e GUYTON, 2011; SOBRINHO,
do Tipo C, devido à sua liberação mais 2000).
lenta, o que caracteriza dor crônica (HALL Danos viscerais focalizados
e GUYTON, 2011). raramente causam dor grave e,

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inversamente proporcional a isso, qualquer paleoespinotalâmica, que possui
estímulo difuso dessas terminações localização pobre e conduz a dor visceral
nervosas causa dor grave (HALL e de forma lenta por várias sinapses
GUYTON, 2011). Já é consenso na (ANDRADE et al., 2008).
literatura que compressão, isquemia, A via paleoespinotalâmica pode ser
inflamação, espasmos ou dilatação são subdividida quanto à sua transmissão em
estímulos normalmente difusos. Já via visceral verdadeira – que age por meio
queimaduras, pinçamentos ou incisão são dos feixes nervosos autônomos simpáticos
considerados estímulos pontuais e assim e em que se relatam as sensações em
não resultam em processo álgico visceral superfícies corporais geralmente longe do
(ANDRADE et al., 2008). órgão afetado – e via parietal, que conduz
Os estímulos nociceptivos viscerais diretamente para os nervos espinhais locais
podem causar forte dilatação ou contração e a sensação se localiza sobre a lesão.
de um órgão e também resultam em Essas duas vias muitas vezes são ativadas
liberação de mediadores químicos simultaneamente. Por exemplo,
resultantes de inflamação, isquemia e inicialmente a dor de um órgão lesionado
manipulação do órgão (KLEIN e não cirurgicamente é transmitida pela via
CUNNINGHAM, 2013). Os espasmos de dor visceral verdadeira e essa dor,
causam dor pela estimulação mecânica dos persistente e espasmótica, induz liberação
nociceptores ou também pela diminuição de mediadores inflamatórios sobre a
do fluxo sanguíneo em combinação com o superfície parietal, ocasionando a ativação
aumento da necessidade metabólica do da via parietal, que culmina em dor pontual
tecido. Essa dor ocorre em forma de e aguda, já cirurgicamente a dor via
cólicas intermitentes. Supõe-se que a dor parietal é inicialmente ativada, no entanto
resultante de isquemia seja devida a ocorre mais tardiamente ativação da
estímulos químicos de mediadores visceral verdadeira devido ao
inflamatórios nos nociceptores (HALL e procedimento (HALL e GUYTON, 2011).
GUYTON, 2011). Após a percepção da dor pelo
Na medula espinhal há basicamente cérebro, são transmitidas informações pela
duas vias ascendentes para condução da via descendente, relacionada com as fibras
dor até o cérebro, que constituem a via C, que induzem liberação de opióides
espinotalâmica; a) a via neoespinotalâmica, endógenos a fim de modular a liberação de
que conduz dor somática, bem localizada, substancia P, diminuindo a estimulação
por meio de poucas sinapses, e b) a via álgica. Também existe evidência da

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participação da serotonina, noradrenalina, nenhum efeito sobre o SNC, uma vez que
ácido gama-aminobutírico (GABA) e não atravessa a barreira hematoencefálica
acetilcolina neste processo (ANDRADE et (JAKUBÍK et al., 2017; RANG et al.,
al., 2008). 2011). É uma amônia quaternária derivada
No sistema nervoso central (SNC), de um alcalóide produzido pelas plantas da
mais especificamente na medula, os família Solanaceae, com ação
receptores muscarínicos realizam uma anticolinérgica (PEREIRA et al., 2012). A
alteração no eixo noradrenérgico- escopolamina, quando não apresentada na
colinérgico aumentando as concentrações forma comercial tem suas ações e efeitos
de acetilcolina nesses sítios para diminuir a mais pronunciados no sistema nervoso
hiperalgesia (MCKUNE et al., 2017). O central e após sua administração pode
uso de agonistas colinérgicos ou de ocorrer sedação. Ela apresenta também o
anticolinesterásicos é capaz de realizar efeito de bloquear a memória recente
também a modulação da dor nesses (WONDERLIN, 2004).
pacientes (BREIVIK, 2017: JONES e Assim como a atropina, sua
DUNLOP, 2007). Também existem fórmula se difere pela presença de um
evidências que o uso de escopolamina átomo de oxigênio a mais, localizado entre
impede o desenvolvimento da memória os carbonos seis e sete da molécula
recente, dentre elas a memória relacionada (VITAL e ACCO, 2017, BROWN et al.,
à dor (ORTEGA-LAGASPI et al., 2002). 2012). Os antagonistas muscarínicos
No entanto não existe literatura sobre o competem com a acetilcolina e suas
possível desenvolvimento de hiperalgesia estruturas químicas geralmente contêm
com o uso de anticolinérgicos. grupos éster e grupos básicos na mesma
proporção que os encontrados no
FARMACOLOGIA DA neurotransmissor, porém apresentam grupo
ESCOPOLAMINA aromático no lugar do grupo acetil (RANG
et al., 2011).
A escopolamina, também Muitos dos efeitos desses fármacos
conhecida como hioscina, possui são praticamente os mesmos, no entanto, a
apresentações moleculares diferentes sedação causada pela escopolamina era
(RANG et al., 2011). Na conjugação utilizada como coadjuvante em medicações
brometo de N-butilescopolamida (forma pré-anestésicas (conjugação hidrobrometo
comercial), ou brometo de de escopolamina). Todavia em pacientes
metilescopolamina possui pouco ou quase com dor intensa, doses normais ou baixas

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Fisiologia da dor visceral: os anticolinérgicos podem ser úteis
podem causar excitação, agitação, escopolamina e o acontecimento desses
alucinações e delírios (VITAL e ACCO, eventos.
2017, BROWN et al, 2012; RANG et al.,
2011). DOR NA
O sistema nervoso parassimpático OVARIOSALPINGOHISTERECTOMIA

participa ativamente da regulação de


algumas funções do organismo (KLEIN e A técnica de OSH convencional possui

CUNNINGHAM, 2013). Os principais capacidade de ativar tanto a via da dor


efeitos adversos apresentados pelos visceral quanto da dor somática. O caráter

anticolinérgicos se dão pelo bloqueio somático da dor neste procedimento se

dessas funções. É observada boca refere a tração do ligamento suspensório e

ressecada, taquicardia, distúrbios oculares do pedículo ou mesovário, seguido de


como visão turva, e hipomotilidade pinçamento do mesmo proximal ao ovário,

gastrointestinal. Não é indicado o uso de além de ligaduras com fio cirúrgico

anticolinérgicos em pacientes que (HEDLUND, 2008). Faz-se necessário

apresentem quadro de glaucoma, obstrução notar que o mesovário é uma prega


gastrintestinal e do trato urinário (VITAL peritoneal dupla, parte cranial do

E ACCO, 2017; BROWN et al., 2012). ligamento largo que fixa o ovário à região

Algo importante a se considerar dorsolateral da parede abdominal, e por ele

com o uso terapêutico dos antagonistas vasos sanguíneos e nervos alcançam os


muscarínicos é o fato de que as funções ovários. A raiz do mesovário é inervada

fisiológicas dos diferentes órgãos variam pelos nervos ventrais originados da

de acordo com sua sensibilidade ao segunda e terceira vértebras lombares, e

bloqueio dos receptores. Em doses baixas por esse motivo sua tração é reconhecida
esses medicamentos reduzem as secreções pelo SNC como dor somática. Contudo,
brônquicas, salivares e sudoríparas; em esta mesma região recebe inervação

doses mais altas as pupilas dilatam, a lente simpática, proveniente dos gânglios

acomoda-se e os efeitos vagais no coração mesentérico caudal e pélvico, e


são bloqueados. Somente em doses mais parassimpática, proveniente da porção
altas ocorre controle parassimpático na abdominal do nervo vago e dos nervos

bexiga e no trato gastrointestinal (BROWN pélvicos, com origem sacral, e constituem

et al., 2012), no entanto não existe na um dos componentes viscerais da dor neste
literatura consenso em relação ao uso de procedimento (KÖNIG E LIEBICH, 2012;
BUDRAS et al, 2012). Assim, a dor no

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trans e pós-cirúrgico de cadelas submetidas tratamento da dor visceral em humanos
à OSH é devida a vários fatores, incluindo (SAS e GRINEVICH, 2012). No entanto
instrumentação na cérvix, distensão uterina GANEM et al. (2005) demonstraram que
e peritoneal. Além disso, manipulação e escopolamina e a dipirona associadas ao
distensão das vísceras podem liberar cetoprofeno não foram eficientes na
prostaglandinas locais que intensificam a prevenção da dor pós-operatória de
transdução no pós-operatório, e nesse pacientes submetidas à laqueadura por
momento a dor é reconhecida pelo SNC laparoscopia pela técnica de pinçamento
como sendo somática e visceral (JAIN et das tubas uterinas com anéis. Porém, para
al., 2016). oclusão das tubas uterinas com diatermia a
analgesia foi satisfatória. Também no
USO ANALGÉSICO DA homem, observou-se que o uso de
ESCOPOLAMINA escopolamina após prostatectomia foi
capaz de diminuir apenas a dor referida
Antes do desenvolvimento de como contrações, além de reduzir o
anestésicos gerais inalatórios não irritantes consumo de opioides no pós-operatório.
para as vias aéreas, os anticolinérgicos Contudo, sua administração não foi
eram utilizados para redução das secreções suficiente para controlar a dor considerada
traqueobrônquicas. A escopolamina aguda, nem do desconforto abdominal
possuía também função sedativa e (GREENSTEIN et al., 1992). Ainda nesta
reversora de quadros de bradicardia. espécie, a escopolamina se mostrou um
Assim, com o desenvolvimento de bom adjuvante analgésico ao tramadol para
fármacos menos irritantes e mais seguros, a o controle pós-operatório da dor em
escopolamina caiu em desuso; contudo cesarianas, prolongando em uma hora o
ainda é a primeira escolha na linha contra período de conforto álgico, sem aumentar
náusea e êmese associados com a cinetose os riscos de efeitos adversos (ALPHONSE
(VITAL e ACCO, 2017; RANG et al., e VARGHESE, 2017).
2011). Não há consenso na literatura
Quando se tratando de controle consultada em relação as doses de
analgésico, em equinos a escopolamina escopolamina recomendadas para cães.
mostrou-se superior ao butorfanol no Andrade (2017) e Viana (2014)
controle da dor visceral devido à síndrome recomendam a dose de 0,3-1,5 mg por
cólica (BOATWRIGHT et al.,1996). O uso animal, enquanto que Spinosa (2017)
desse fármaco se demonstrou eficaz para o recomenda a dose de 0,03 mg/kg em cães.

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Já Tytgat (2007) relata que a partir da dose controle da dor pós-operatória de OSH
de 12,3 µg/kg a motilidade é reduzida em pela técnica cirúrgica convencional, desde
cães, e na dose de 50 mg/kg é totalmente que sejam planejadas avaliações contínuas
cessada. Também existem relatos em do paciente e terapia de intervenção
animais que o uso prévio de morfina reduz analgésica sempre que necessário. A autora
a dose de escopolamina para iniciar o também conclui que a associação
efeito, contudo, o uso prévio da proporciona analgesia adequada em
escopolamina aumenta a dose necessária cadelas submetidas à OSH videoassistida
da morfina (LI et al., 2010), possivelmente em técnica com dois portais (OLIVEIRA,
pela alteração colinérgica realizada nas 2013).
vias descendentes da dor.
O efeito antiespamótico da CONCLUSÕES
escopolamina citado por Oliveira (2008) e
Vital e Acco (2017) pode ser efetivo para A escopolamina pode ser útil como
certo controle analgésico pós-OSH, uma adjuvante para analgesia pós-operatória em
vez que segundo Hall e Guyton (2011) os cadelas submetidas OSH, contudo para
espasmos viscerais podem causar dor comprovar seu real efeito são necessários
grave, possivelmente pela estimulação mais ensaios farmacocinéticos e
mecânica dos nociceptores ou t farmacodinâmicos para definir a dosagem
ambém pela diminuição do fluxo correta em cães, além dos possíveis riscos.
sanguíneo. A apresentação encontrada Os estudos sobre o assunto são escassos e
comercialmente não possui dose capaz de existe a necessidade de realização de mais
atingir o SNC (RANG et al., 2011). Assim, pesquisas para definição sobre o real
não são observadas hiperalgesia, que benefício analgésico desse fármaco para
poderia ocorrer pelo bloqueio dos uso em Medicina Veterinária.
receptores muscarínicos medulares, ou
sedação causadas pela formula
hidrobrometo de escopolamida (MCKUNE REFERÊNCIAS
et al., 2017).
Nesta revisão de literatura, o único ALPHONSE, S.C.; VARGHESE, A.P.,
estudo sobre o uso da escopolamina em Efficacy Of Hyoscine Butyl Bromide
cadelas após OSH indica a associação de Suppository For Postoperative Pain Relief.
brometo de N-butilescopolamida e Journal of Evidence Based Medicine and
dipirona como uma alternativa para o Health care, v. 55, n. 4, 2017.

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