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Archives of Veterinary Science, v. 13, n.1, p.

1-12, 2008
Printed in Brazil ISSN 1517-784X

PATOFISIOLOGIA DA DOR

(Pathophysiology of pain)

KLAUMANN, P. R.1; WOUK, A. F. P. F.2; SILLAS, T.1


1
Curso de Pós-graduação em Ciências Veterinárias – UFPR
2
Departamento de Medicina Veterinária – UFPR

RESUMO – A dor pode ser definida como uma ex- INTRODUÇÃO


periência sensorial e emocional desagradável, as-
sociada a uma lesão real ou potencial. A dor fisioló- A dor foi conceituada pela primeira vez em 1986,
gica é um reflexo protetor do organismo, para evitar pela Associação Internacional para o Estudo da
uma injúria ou dano tecidual. Frente à lesão tecidu- Dor, como uma experiência sensorial e emocional
al a dor patológica providenciará condições para a desagradável que está associada a lesões reais
cicatrização. Uma vez instalada a injúria pode se in- ou potenciais. O termo nocicepção está relacio-
troduzir o conceito de dor patológica que, segundo nado com o reconhecimento de sinais dolorosos
sua origem, pode ser classificada como nociceptiva pelo sistema nervoso, que formulam informações
(somática ou visceral) ou neuropática. A dor pode relacionadas à lesão. Baseado nestes conceitos, o
também ser classificada segundo determinação termo dor seria melhor aplicado a seres humanos
temporal em dor aguda ou crônica. A nocicepção do que aos animais, pelo fato deste termo envolver
é o componente fisiológico da dor e compreende um componente emocional. Mesmo assim tornou-se
os processos de transdução, transmissão e modu- uma convenção o uso do termo “dor” para pacientes
lação do estímulo nociceptivo. Uma vez instalado humanos e animais (HELLEBREKERS, 2002). LUNA
o estímulo nociceptivo, diversas alterações neuro- (2006) considera a dor como sendo o quinto sinal
endócrinas acontecem, promovendo um estado de vital, juntamente com a função cardiorespiratória e
hiperexcitabilidade do sistema nervoso central e a térmica.
periférico. O objetivo da presente revisão é abordar A exposição da pele ou qualquer outro órgão a
a fisiopatologia do processo doloroso, bem como estímulos potencialmente nocivos induz à sensação
suas aplicações na terapêutica analgésica. desagradável, informando o indivíduo sobre o perigo
Palavras-Chaves: dor, patofisiologia, anagesia, real ou potencial para sua integridade física. Portan-
cão. to, a informação processada pode ser diferenciada
como dor fisiológica ou dor patológica (FANTONI e
ABSTRACT – Pain can be defined as an MASTROCINQUE, 2002; ALMEIDA et al., 2006).
uncomfortable sensorial and emotional experience, A dor fisiológica é aquela que induz respostas
associated with real or potential tissue damage. protetoras, como o reflexo de retirada (ou reação
Physiologic pain is a protective reflex that prevents de fuga), com intuito de interromper a exposição
tissue damage. If injury or tissue damage occurs, ao estímulo nocivo. Este sinal é típico da dor aguda
pathologic pain is recognized to provide healing produzida por estímulos intensos na superfície da pele.
conditions. Based in the origin of pathologic pain, a A dor visceral e a dor somática profunda são causadas
classification of nociceptive, including somatic and por estímulos inevitáveis e apresentam respostas
visceral pain, and neuropathic pain is recognized. adaptativas específicas, geralmente são subagudas e
Pain could also be classified as acute or chronic. podem vir acompanhadas de respostas autonômicas
Nociception is the phisiologic component of pain and ou comportamentais específicas (FANTONI e
includes de concepts of trasnduction, transmission MASTROCINQUE, 2002; HELLEBREKERS, 2002).
and modulation of nociceptive stimuli. If nociceptive Embora a inatividade temporária e o compor-
stimuli is determined, several neuroendocrine tamento protetor como resposta à dor subaguda
responses occur, and a hiperexcitability state of possam trazer benefícios, a dor persistente pode
the periferic and central nervous system is already levar a um estado de depressão semelhante ao de-
installed. This article reviews the pathophysiologic sencadeado por estímulos estressantes inevitáveis,
pathways and their applications to pain treatment. não podendo ser considerada como uma resposta
Key words: pain, pathophysiology, dog, analgesia. adaptativa. Estados dolorosos prolongados estimulam
2 KLAUMANN, P. R. et al.

persistentemente os aferentes nociceptivos induzindo Os dois sistemas de modulação nociceptiva mais


alterações que aumentam os efeitos deletérios da importantes são mediados por receptores NMDA
dor crônica, introduzindo então o conceito de dor (N-Metil-D-Aspartato) e opióides, distribuídos por
patológica. Enquanto a dor aguda é um sintoma de toda extensão do sistema nervoso central. Entre os
alguma doença, a dor crônica é uma doença propria- três principais subtipos de receptores opióides, os
mente dita, sendo nociva e independente ao estímulo receptores µ e δ podem inibir ou potencializar even-
que a gerou (FANTONI e MASTROCINQUE, 2002; tos mediados pelos receptores NMDA, enquanto
HELLEBREKERS, 2002). o receptor κ antagoniza a atividade mediada por
A dor persistente pode ser subdividida segundo receptores NMDA. (RIEDEL e NEECK, 2001).
sua origem em nociceptiva e neuropática. A dor noci- Segundo PISERA (2005) o primeiro processo
ceptiva resulta da ativação direta de nociceptores da da nocicepção é a decodificação de sensações
pele e outros tecidos em resposta a uma lesão teci- mecânica, térmica e química em impulsos elétricos
dual, acompanhada de inflamação. A dor neuropática por terminais nervosos especializados denominados
ou neurogênica origina-se devido a lesões de nervos nociceptores. Os nociceptores são terminações
periféricos ou do sistema nervoso central (FANTONI e nervosas livres dos neurônios de primeira ordem,
MASTROCINQUE, 2002; ALMEIDA et al., 2006). cuja função é preservar a homeostasia tecidual,
É importante a descrição de algumas definições assinalando uma injúria potencial ou real. Os neu-
correlacionadas à dor e suas formas de percepção: rônios de primeira ordem são classificados em três
grandes grupos, segundo seu diâmetro, seu grau de
● Nociceptor: receptor periférico que responde mielinização e sua velocidade de condução:
a estímulos nocivos.
● Limiar à dor: a menor intensidade de estímulo 1. Fibras A : são fibras de diâmetro grande
que permite ao indivíduo perceber a dor. (maior que 10 µm), mielinizadas e de condução
● Alodinia: dor que surge como resultado de rápida, responsáveis por sensações inócuas
estimulação não-nociva sobre a pele normal. (FIGURA 1).
● Hiperalgesia: aumento da resposta dolorosa 2. Fibras A : são de diâmetro intermediário (2 a 6
produzida por um estímulo nocivo. µm), mielinizadas. Sua velocidade de condução
● Hiperalgesia primária: hiperalgesia na região é intermediária, modulando a primeira fase da
da lesão tecidual. dor: mais aguda ou semelhante à pontada.
● Hiperalgesia secundária: hiperalgesia na re- 3. Fibras C: são fibras de diâmetro pequeno (0,4
gião que circunda a lesão tecidual. a 1,2 µm), não mielinizadas e de velocidade de
● Analgesia: redução ou anulação da dor. condução lenta, responsáveis pela segunda dor
● Hiperestesia: sensibilidade aumentada à es- ou dor difusa, queimação persistente.
timulação. 4. Na ausência de dano tecidual ou nervoso
● Neuralgia ou nevralgia: dor localizada eu uma as fibras Aβ somente transmitem informação
região inervada por nervo específico ou grupo referente a estímulos inócuos, como tato, vi-
de nervos (MUIR III et al., 2001; FANTONI e bração e pressão. Normalmente, a informação
MASTROCINQUE, 2002). nociceptiva é transmitida por fibras do tipo C e
Aδ localizadas na pele, vísceras, vasos san-
Dor Fisiológica – Nocicepção guíneos, peritôneo, pleura, periósteo, tendão,
fáscia, cápsula articular e fibras do músculo
O componente fisiológico da dor é chamado noci-
esquelético; sua distribuição dependendo da
cepção, que consiste dos processos de transdução,
transmissão e modulação de sinais neurais gerados espécie e localização anatômica, podendo
em resposta a um estímulo nocivo externo. De forma aparecer a cada 2 a 10 mm (MESSLINGER,
simplificada, pode ser considerado como uma cadeia 1997; LAMONT e TRANQUILLI, 2000; MUIR III
de três-neurônios, com o neurônio de primeira ordem et al., 2001). As fibras Aδ são responsáveis pela
originado na periferia e projetando-se para a medula primeira fase da dor, rápida e forte, do tipo pi-
espinhal, o neurônio de segunda ordem ascende
cada ou ferroada e são sensíveis a estímulos
pela medula espinhal e o neurônio de terceira ordem
projeta-se para o córtex cerebral (MESSLINGER, mecânicos intensos (mecanorreceptores de alto
1997; TRANQUILLI, 2004). limiar). As fibras C produzem uma segunda fase

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Patofisiologia da dor

de dor mais difusa e persistente e formam, na As fibras aferentes nociceptivas terminam no corno
periferia, receptores de alto limiar para estímu- dorsal da medula, que pode ser dividida em seis lâminas.
los térmicos e/ou mecânicos. Existem também Os neurônios nociceptivos do corno dorsal estão locali-
zados nas lâminas mais superficiais: a lâmina marginal
fibras do tipo C polimodais que respondem a
(lâmina I) e a substância gelatinosa (lâmina II). A maioria
estímulos mecânicos, térmicos e químicos. desses neurônios recebem conexões diretas de fibras
Os campos receptivos destes neurônios Aδ e C. Muitos dos neurônios da lâmina I respondem
oscilam entre 2 e 10 mm (BESSON, 1997; exclusivamente a estímulos nociceptivos e projetam-se
TRANQUILLI, 2004; PISERA, 2005). para centros superiores. Alguns neurônios dessa lâmina,
denominados neurônios de faixa dinâmica ampla (WDR),
FORSS N. et al. (2005) relatam que os impul- respondem de maneira gradativa a estimulação mecâni-
sos nociceptivos mediados pelas fibras A e C são ca nociva e inócua. A substância gelatinosa (lâmina II) é
processados numa mesma área no córtex cerebral formada quase que exclusivamente por interneurônios,
porém em diferentes janelas de tempo. tanto inibitórios quanto excitatórios (TRANQUILLI, 2004;
PISERA, 2005; DREWES, 2006).

FIGURA 1 – FIBRAS AFERENTES RESPONSÁVEIS PELAS INFORMAÇÕES NOCICEPTIVAS.

As lâminas III e IV possuem neurônios que se co- zado com o avanço da idade. Sua excitabilidade não
nectam diretamente com terminais centrais de fibras pode ser aumentada pelo processo inflamatório.
Aβ, que respondem predominantemente a estímulos As fibras aferentes (FIGURA 2) de primeira ordem
inócuos. A lâmina V possui neurônios WDR que se formam conexões diretas ou indiretas com uma das
projetam ao tronco encefálico e certas regiões do três populações de neurônios do corno dorsal da
tálamo. Recebem contatos monossinápticos de fi- medula: 1) interneurônios, subdivididos em excitató-
bras A e A , também recebem informações de fibras rios e inibitórios; 2) neurônios proprioespinhais que
C. Os neurônios da lâmina VI estão conectados de extendem-se por múltiplos segmentos espinhais e
forma monossináptica com aferentes A de músculos estão envolvidos com a atividade reflexa; 3) neurô-
e articulações e respondem a estímulos inócuos. nios de projeção (WDR) que participam na transmis-
Finalmente os neurônios das lâminas VII e VIII do são rostral através da medula espinhal até centros
corno ventral podem responder a estímulos nocicep- supraespinhais como o mesencéfalo e córtex. Os três
tivos, mesmo que de forma mais complexa, através componentes são interativos e são essenciais para
de conexões polissinápticas (PISERA, 2005). o processamento da informação nociceptiva, o que
Segundo KITAGAWA et al. (2005) os neurônios facilita a geração de uma resposta à dor apropriada
nociceptivos em indivíduos idosos exibem hiperex- e organizada (MILLAN, 1999; LAMONT e TRAN-
citabilidade, sugerindo que o sistema nociceptivo do QUILLI, 2000; DREWES, 2006).
corno dorsal da medula espinhal torna-se sensibili-

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4 KLAUMANN, P. R. et al.

FIGURA 2 – VIA AFERENTE DE TRANSMISSÃO DA INFORMAÇÃO NOCICEPTIVA

Particular atenção é dada aos interneurônios excitatórios ou inibitórios e neuropetídeos que


opioidérgicos, que expressam encefalinas e dinorfi- são produzidos, armazenados e liberados tanto
na. Esses peptídeos inibem pré-sinapticamente a nas terminações dos nervos aferentes como nos
liberação de glutamato, substância P e o peptídeo neurônios do corno dorsal. Os principais aminoácidos
relacionado com o gene da calcitonina, a partir de excitatórios são o glutamato e o aspartato porém, em
aferentes nociceptivos primários interagindo com fibras aferentes do tipo C também encontra-se uma
receptores µ (OP3), δ (OP2) e κ(OP1) (PISERA, variedade de neuropeptídeos como a substância
2005; DREWES, 2006). P, neurotensina, peptídeo intestinal vasoativo,
A comunicação da informação nociceptiva peptídeo relacionado com o gene da calcitonina
entre neurônios ocorre por mediadores químicos e colecistocinina (LAMONT e TRANQUILLI, 2000;
(neurotransmissores) que são: aminoácidos RYGH et al., 2005).

FIGURA 3 – ESQUEMA DE SENSIBILIZAÇÃO DE NEURÔNIOS PERIFÉRICOS, APÓS INJÚRIA TECIDUAL.

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Patofisiologia da dor

Em comparação com as fibras aferentes 5. Trato espinohipotalâmico. Compreende axô-


primárias e a medula espinhal, pouco se sabe no nios provenientes das lâminas I, V e VIII, que
que diz respeito a neurotransmissores e receptores projetam-se diretamente no hipotálamo. Essas
envolvidos em neurônios nociceptivos ou em vias
conexões participam nas respostas neuroen-
modulatórias para estes neurônios a nível talâmico
e cortical. Acredita-se que o glutamato e o aspartato dócrinas e autonômicas induzidas pela dor
constituam o principal mediador excitatório envolvido (LAMONT e TRANQUILLI, 2000; PISERA,
na transmissão e processamento no sistema 2005).
talamocortical. Os aminoácidos inibitórios (GABA e
glicina), as monoaminas (norepinefrina, serotonina Este complexo sistema de vias diretas e indire-
e dopamina), acetilcolina e histamina também estão tas de transmissão das informações nociceptivas
relacionadas com a excitabilidade talamocortical inervam o tálamo, o mesencéfalo, o sistema límbico
(LAMONT e TRANQUILLI, 2000). É interessante e a formação reticular. Estes centros nervosos são
destacar que o córtex cerebral expressa COX-2, o responsáveis pela localização da dor, sua intensi-
que sugere um provável papel das prostaglandinas dade, bem como os aspectos afetivos e cognitivos
na modulação da informação nociceptiva nesta (PISERA, 2005).
estrutura. Também foi demonstrada a expressão de PLONER et al. (2006) observaram que a velo-
citocinas no córtex cerebral (PISERA, 2005; RYGH cidade de condução da informação dolorosa tanto
et al., 2005). na periferia quanto na medula espinhal é mais lenta
A informação sobre o dano tecidual é conduzida que a transmissão da informação tátil. Entretanto o
por neurônios de projeção através de cinco vias processamento cerebral da dor é substancialmente
ascendentes principais (FIGURA 3): mais rápido do que o processamento da informação
tátil, compensando a condução lenta da periferia e da
1. Trato espinotalâmico. Composto por neurônios medula espinhal. A conseqüência é um curto período
nociceptivos específicos e axônios de neurô- de latência estímulo-resposta, gerando resposta
comportamental protetora imediata.
nios WDR das lâminas I e V – VII da medula
A região anatômica mais importante para o
espinhal. Esses neurônios projetam-se no sistema de analgesia endógeno é a substância cin-
sentido contralateral até o tálamo. zenta periaquedutal do mesencéfalo, considerada
2. Trato espinorreticular. Compreende axônios por alguns com sendo uma extensão caudal do
de neurônios das lâminas VII e VIII que termi- sistema límbico dentro do mesencéfalo (LAMONT e
nam na formação reticular (bulbar e pontina), TRANQUILLI, 2000). Este bloqueio é produzido pela
estimulação de vias descendentes que inibem os
para logo ascender até o tálamo. Muitos dos
neurônios nociceptivos na medula espinhal, através
axônios do trato espinorreticular ascendem de conexões excitatórias com neurônios serotoninér-
sem cruzar a linha média. gicos e neurônios noradrenérgicos, que por sua vez
3. Trato espinomesencefálico. É formado por descem até o corno dorsal da medula onde realizam
axônios de neurônios de projeção das lâmi- conexões inibitórias com neurônios das lâminas I, II
nas I e IV que se projetam contralateralmente e V (PISERA, 2005).
Essas projeções descendentes originadas no
até a formação reticular mesencefálica e a
tronco encefálico podem inibir a descarga de neurô-
substância cinzenta periaquedutal até os nios nociceptivos de projeção, atuando diretamente
núcleos parabraquiais da formação reticular. sobre eles, por inibição de interneurônios excitatórios
Os neurônios parabraquiais projetam-se até ou por estimulação de interneurônios inibitórios.
a amigdala, um dos principais componentes Além disso, estabelecem sinapse com terminais
do sistema límbico, o que sugere que o trato de aferentes primários reduzindo a liberação de
glutamato, aspartato e peptídeo relacionado com o
espinomesencefálico contribui com os compo-
gene da calcitonina. Além de sua ação medular, os
nentes afetivos da dor. peptídeos opióides participam da ativação dos siste-
4. Trato espinocervical. Origina-se principalmen- mas de inibição descendentes. A substância cinzenta
te nas Lâminas III e IV. Sua fibras fazem uma periaquedutal contém uma grande quantidade de
conexão sináptica no núcleo cervical lateral e receptores µ(OP3). Os peptídeos opióides inibem
no primeiro e segundo segmentos cervicais, a descarga dos neurônios GABAérgicos inibitórios,
ativando as vias descendentes. (PISERA, 2005;
para logo chegar ao tálamo através do trato
DREWES, 2006).
cervicotalâmico.

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Dor patológica é um fenômeno que acontece perifericamente por


redução do limiar de ativação dos nociceptores; bem
A dor fisiológica descrita até aqui, como uma como centralmente, pela responsividade aumentada
entidade isolada é um evento raro. Na maioria das da medula espinhal aos estímulos sensoriais. (LA-
vezes o estímulo nocivo não é transitório e pode MONT e TRANQUILLI, 2000; SCHAIBLE 2006).
estar associado com inflamação e injúria nervosa Sob circunstâncias fisiológicas normais, estímulos
significativa. Sob tais circunstâncias, alterações dinâ- mecânicos, térmicos e químicos ativam nociceptores
micas no processamento da informação nociva são associados com fibras Aδ e C para avisar sobre um
evidentes nos sistemas nervoso periférico e central. estímulo nocivo. Cada estímulo está associado com
Este tipo de dor é chamado dor patológica e envolve certo grau de inflamação que inicia uma cascata
desconforto e sensibilidade anormal na sintomatolo- de sensibilização periférica com eventos celulares
gia clínica do paciente. A dor patológica pode surgir e subcelulares. Células lesadas e fibras aferentes
de diferentes tecidos e pode ser classificada com primárias liberam uma série de mediadores químicos,
dor inflamatória (envolvendo estruturas somáticas incluindo substância P, neurocinina A e peptídeo rela-
ou viscerais) ou neuropática (envolvendo lesões cionado com o gene da calcitonina, que têm efeitos
do sistema nervoso). É importante a caracterização diretos sobre a excitabilidade de fibras sensoriais e
temporal da dor, fazendo distinção entre dor aguda simpáticas. Estes mediadores também promovem
(ocorrência recente) ou dor crônica (longa duração) vasodilatação com extravasamento de proteínas
(LAMONT e TRANQUILLI, 2000; JI e WOOLF, 2001; plasmáticas e o recrutamento de células inflama-
SCHAIBLE, 2006). tórias. Mastócitos, macrófagos, linfócitos e plaque-
A dor aguda tipicamente surge do trauma de te- tas contribuem para a formação de um ambiente
cidos moles ou inflamação e está relacionada com complexo, composto por mediadores inflamatórios,
um processo adaptativo biológico para facilitar o como íons hidrogênio, norepinefrina, bradicinina, his-
reparo tecidual e cicatricial. A hipersensibilidade na tamina, íons potássio, citocinas, serotonina, fator de
área da injúria (hiperalgesia primária), bem como crescimento neural, óxido nítrico e produtos das vias
nos tecidos adjacentes (hiperalgesia secundária) da ciclo-oxigenase e lipo-oxigenase do metabolismo
contribuem para que o processo cicatricial ocorra do ácido araquidônico. Parece que estas moléculas
sem interferências (LAMONT e TRANQUILLI, 2000; agem melhor sinergicamente do que isoladamente,
JI e WOOLF, 2001; MUIR III et al., 2001). gerando o que se chama “sopa sensibilizadora” que
A dor crônica persiste além do período esperado efetivamente desencadeia a resposta para ativação
de uma doença ou injúria e tem sido arbitrariamente das fibras Aδ e C. Enquanto alterações no limiar
definida como aquela com duração maior que 3 a de transdução aferente caracterizada pela sensi-
6 meses. Pode manifestar-se espontaneamente bilização periférica são responsáveis pela zona de
ou ser provocada por vários estímulos externos. hiperalgesia primária na região da injúria tecidual,
A resposta é tipicamente exagerada em duração, elas não explicam os aspectos comportamentais
amplitude, ou ambas. A dor crônica além de sim- da dor, clinicamente. Entretanto, a identificação de
plesmente manifestar-se por um longo período de uma subpopulação de terminais nervosos aferentes
tempo, implica numa síndrome debilitante que possui chamados nociceptores silenciosos tem contribuído
um significante impacto sobre a qualidade de vida para entendermos o fenômeno de sensibilização
do paciente e caracteriza-se por uma resposta pobre periférica. Estes nociceptores pertencem a uma
às terapias analgésicas convencionais (LAMONT e classe de fibras C polimodais, amielínicas que de-
TRANQUILLI, 2000; JI e WOOLF, 2001). monstram pequena ou nenhuma atividade até que
O sistema nociceptivo é capaz de sofrer altera- seja submetida à estimulação extrema; entretanto,
ções nos mecanismos de percepção e condução eles são excessivamente sensibilizados pelos
dos impulsos, denominados neuroplasticidade. efeitos da inflamação local e podem disparar vigo-
A neuroplasticidade pode aumentar a magnitude rosamente sob tais condições (GARRY et al., 2004;
da percepção da dor e pode contribuir para o de- LAMONT e TRANQUILLI, 2000; MUIR III et. al., 2001;
senvolvimento de síndromes dolorosas crônicas SCHAIBLE 2006; SCHAIBLE 2007).
(PETERSEN-FELIX e CURATOLO, 2002). Associada à hiperalgesia primária (no local da
injúria) e secundária (nos tecidos ao redor da injúria),
Dor inflamatória ou nociceptiva observa-se também alodinia (sensibilidade a estímu-
los inócuos). Tal condição é agora reconhecida como
A hipersensibilidade é a principal característica da resultado de alterações dinâmicas na excitabilidade
dor patológica e resulta de alterações drásticas na dos neurônios do corno dorsal (sensibilização cen-
função do sistema nervoso. Este conjunto de altera- tral), que modifica suas propriedades nos campos
ções denominadas plasticidade do sistema nervoso, receptivos. O primeiro estágio está relacionado à

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Patofisiologia da dor

duração dos potenciais de ação sinápticos lentos distensão da musculatura lisa. O trato gastrintestinal
gerados por fibras Aδ e C. Os potenciais sinápticos possui receptores químicos e mecânicos de adap-
podem durar mais de 20 segundos e resulta na soma tação lenta e rápida que são classificados em dois
de potenciais de baixa freqüência repetidos em noci- grupos: o grupo de receptores de alto limiar para
ceptores estimulados, gerando uma despolarização estímulos mecânicos leves, e o grupo de baixo limiar
progressiva e de longa duração (LTP – long term po- para estímulos mecânicos que responde a estímu-
tentioation) nos neurônios do corno dorsal. Somente los agressivos e não agressivos. O primeiro grupo
alguns segundos de estímulo de fibras C podem ge- é encontrado no esôfago, sistema biliar, intestino
rar vários minutos de despolarização pós-sináptica. delgado e cólon e o segundo, apenas, no esôfago
Também observa-se um tipo de potenciação a curto e cólon. A relação entre a intensidade do estímulo
prazo em neurônios espinhais após estimulação de e a atividade nervosa é somente evocada após a
fibras C. Este evento, chamado “Wind-up”, é media- estimulação nociva. (LAMONT e TRANQUILLI, 2000;
do por receptores NMDA (N-metil-D-aspartato), que KRAYCHETE e GUIMARÃES, 2003). A dor visceral é
ligam-se ao glutamato; e receptores da taquicinina, profunda e dolorosa, mal localizada e, freqüentemen-
que ligam-se à substância P e à neurocinina A. A te relacionada a um ponto cutâneo. O mecanismo
ativação de receptores NMDA resulta em influxo de da dor referida não está totalmente esclarecido, mas
cálcio e ativação da proteína cinase C, que modifica pode ser relacionado a ponto de convergência de
estruturalmente o canal de NMDA, aumentando sua impulso sensorial cutâneo e visceral em células do
sensibilidade ao glutamato (LAMONT e TANQUILLI, trato espinotalâmico na medula espinhal. (GOMES
2000; GARRY et al., 2004; SCHAIBLE 2006). et al., 2002)
As fibras Aβ que antes respondiam apenas à
sensações inócuas, são agora recrutadas gerando Dor neuropática
dor como resultado do processamento central alte-
rado no corno dorsal da medula espinhal (LAMONT A dor neuropática ou neurogênica é produzida
e TANQUILLI, 2000; GARRY et al., 2004; SCHAIBLE pelo dano ao tecido nervoso. Caracteriza-se pela
2006). aparição de hiperalgesia, dor espontânea, pareste-
Os neurônios aferentes sofrem também altera- sia e alodinia mecânica e por frio (PISERA, 2005;
ções fenotípicas importantes, em conseqüência da SCHAIBLE, 2006).
exposição a neurotrofinas como o fator de crescimen- A lesão de nervos periféricos induz descargas
to neural (NGF), liberado por células de Schwann, rápidas e intensas por períodos mais ou menos
macrófagos, fibroblastos e queratinócitos, aumen- prolongados, na ausência de estímulos. Estes es-
tando a expressão de substância P, glutamato, óxido tímulos parecem produzir a ativação de receptores
nítrico e peptídeo relacionado ao gene da calcitonina NMDA, originando o fenômeno de “wind up” nos
(PISERA, 2005). neurônios do corno dorsal da medula. Logo de-
pois a indução de processos inflamatórios faz com
Dor visceral que certos mecanismos desencadeantes da dor
neurogênica sejam comuns ao da dor nociceptiva.
Os mecanismos neurais que envolvem a geração As extremidades do nervo lesionado “aderem-se”
da dor inflamatória e da dor visceral, por muito tempo logo após o trauma, podendo formar uma estrutura
foram tidos como iguais, porém existem diferenças de crescimento irregular denominada neuroma,
relevantes. As vísceras raramente são expostas a que pode dar origem a descargas espontâneas
estímulos externos mas são alvos comuns de diver- e hipersensibilidade a estímulos mecânicos. São
sas doenças. O conceito de aferentes nociceptivos produzidos padrões anormais de comunicação
ativados por um estímulo direto sobre o tecido é interneuronal na periferia, nas quais um neurônio
difícil de transferir para os tipos de dor visceral. A modifica a atividade de neurônios adjacentes.
sensibilidade do tecido visceral a estímulos térmicos, Logo após a lesão, as fibras simpáticas (que nor-
químicos e mecânicos difere significativamente. As malmente não afetam a sinalização dos terminais
vísceras parecem mais sensíveis à distensão de sensoriais) respondem a estímulos, tanto na peri-
órgãos cavitários de parede muscular, sem dano te- feria como nos gânglios da raiz dorsal, a agonistas
cidual, isquemia, e inflamação. A área sobre a qual o α (norepinefrina), em particular os neurônios Aβ.
estímulo acontece pode ser uma determinante crucial Os neurônios aferentes lesados também sofrem
no desenvolvimento dos tipos de dor. Os receptores alterações fenotípicas, observando-se maior ex-
mecânicos ou mecanorreceptores existentes na pressão de peptídeos pró-nociceptivos, como a co-
musculatura lisa de todas as vísceras ocas são do lecistoquinina (TJOLSEN e HOLE, 1993; LAMONT
tipo Aδ e C, e respondem a estímulos mecânicos e TRANQUILLI, 2000; JI e STRICHARTZ, 2004;
leves, tensão aplicada ao peritônio, contração e SCHAIBLE, 2006).

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8 KLAUMANN, P. R. et al.

Segundo PITCHER e HENRY (2005) em conse- mensional produzida por padrões característicos ou
quência das alterações fenotípicas que acontecem neuroassinaturas, geneticamente predeterminadas,
durante a neuropatia periférica, os aferentes mielini- que podem ser desencadeadas independentemente
zados sintetizam e liberam substância P que ligam- do estímulo nociceptivo ou modificadas por estímulos
se a receptors NK-1. O resultado é a expressão de nociceptivos ao longo da vida do indivíduo. Esta hipó-
neurônios nocicpetivos espinhais que respondem de tese poderia explicar o aparecimento da dor fantasma
forma exagerada a estímulos inócuos. e outras em que a percepção da intensidade da dor
Uma importante seqüela da injúria nervosa e é incompatível com a complexidade da patologia
outras doenças do sistema nervoso como ataques (MELZACK, 1993; THURMON et al., 1996).
virais, é a apoptose de neurônios na periferia e no
sistema nervoso central. A apoptose parece induzir Resposta sistêmica à dor e injúria
sensibilização e perda do sistema inibitório, causando
um processo irreversível (ZIMMERMANN, 2001). O sistema nervoso é o principal alvo da informação
nociceptiva e fornece o veículo pelo qual o organismo
Teoria do controle do gatilho ou do portão pode reagir contra estímulos. Dor induz respostas
reflexas que resultam no aumento do tônus simpáti-
A teoria do portão proposta por MELZACK e co, vasoconstrição, aumento da resistência vascular
WALL em 1965 (apud MELZACK,1993), muito sistêmica, aumento do débito cardíaco pelo aumento
embora possa ser exposta em termos simples, da freqüência cardíaca e do débito cardíaco, aumento
possui diversificações bastante complexas e por do consumo de oxigênio pelo miocárdio , diminuição
isso vem recebendo muita atenção atualmente, do tônus gastrointestinal e urinário e aumento do tônus
pelo fato de levar em consideração um elemento músculo-esquelético (MATHEWS, 2005).
participante do mecanismo da dor: a emoção. A resposta endócrina compreende aumento
Essa teoria pode ser exposta da seguinte maneira: da secreção de corticotropina, cortisol, hormônio
os milhões de receptores do corpo conservam antidiurético, hormônio do crescimento, AMP cíclico,
o cérebro abastecido de informações sobre catecolaminas, renina, angiotensina II, aldosterona,
temperatura e condições dos tecidos e órgãos. glucagon e interleucina 1, com concomitante diminuição
Estas informações são moduladas na Lâmina II ou da secreção de insulina e testosterona. Estas alterações
substância gelatinosa. Como já visto, os receptores são traduzidas por um estado catabólico caracterizado
e o sistema nervoso central comunicam-se por meio por hiperglicemia, aumento do catabolismo protéico,
de um complexo código neural, que compreende lipólise, retenção renal de água e sódio, com aumento
a atividade relativa de fibras grossas e fibras finas. da excreção de potássio e diminuição da taxa de
As fibras mais grossas ou Aβ transmitem impulsos filtração glomerular. A estimulação nociceptiva
como os originados nos receptores do tato; as de centros cerebrais leva à hipoventilação e a
mais finas, do tipo C e Aδ, de transmissão mais resposta simpática descrita contribui para aumento
lenta, conduzem os impulsos de dor. Esses nervos da viscosidade sanguínea, aumento do tempo de
convergem para a medula espinhal e ali, através de coagulação, fibrinólise e agregação plaquetária
conexões com neurônios WDR, os autores da teoria (LAMONT e TRANQUILLI, 2000; MATHEWS, 2005;
admitem a existência de um mecanismo semelhante TEIXEIRA, 2005).
a um portão que usualmente permanece fechado A estimulação nociceptiva do tronco cerebral causa
para bloquear a dor mas, às vezes, pode abrir-se taquipnéia, com tendência à dor, secundária às doen-
para admiti-la (MELZACK, 1993; THURMON et ças torácicas e abdominais, resultando em espasmos
al., 1996). musculares de reflexo e fadiga involuntária da muscu-
Quando se arranha a pele suavemente, latura e consequente hipoventilação e piora na relação
as fibras grossas conduzem impulsos que são ventilação/perfusão (MATHEWS, 2005).
percebidos, porém não traduzem uma sensação Estes efeitos constituem a clássica resposta ao
desagradável pois a “porta” conserva-se fechada. estresse e correspondem a uma adaptação desen-
Se a pele continuar a ser arranhada, cada vez com volvida para otimizar a sobrevivência no período ime-
maior intensidade, mais receptores são estimulados diatamente após a injúria. No entanto, a persistência
e as fibras grossas sobrecarregadas fazem com deste quadro clínico pode ser deletério, visto que a
que a “porta” se abra e as fibras finas transmitem resposta neuroendócrina à dor pós traumática ou pós
impulsos dolorosos aos centros nervosos superiores cirúrgica é suficiente para desencadear estado de
(MELZACK, 1993; THURMON et al., 1996). choque (LAMONT e TRANQUILLI, 2000).
Sugere-se ainda que a existência de um A supressão do eixo adrenal-pituitário da resposta
estímulo nociceptivo não seja um pré-requisito para hormonal ao estresse tem sido descrita como o prin-
geração de dor. A dor seria uma experiência multidi- cipal objetivo do controle da dor. O reconhecimento

Archives of Veterinary Science, v. 13, n.1, p. 1-12, 2008


9
Patofisiologia da dor

de marcadores intracelulares do estresse tem redi- também modulam a experiência dolorosa e devem ser
mensionado este objetivo. Estes marcadores são combatidos através da terapia multimodal. (LAMONT
gerados nos neurônios do corno dorsal da medula e TRANQUILLI, 2000).
espinhal e acredita-se que contribuam para mudanças Os opióides são um grupo de fármacos naturais
fenotípicas nos neurônios sensoriais periféricos: 1) ou sintéticos amplamente utilizados no manejo de dor
expressão de genes (c-fos) que codificam proteínas pós-operatória e em processos oncológicos. Recepto-
envolvidas na iniciação da excitabilidade neuronal de res opióides específicos estão localizados na periferia,
longa ação, 2) ativação de enzimas (proteína cinase medula espinhal e estruturas supra-espinhais, sendo os
C e óxido nítrico sintase) que produz importante papel receptores µ(OP3) e κ(OP2) os de maior importância
na sensibilização central e desenvolvimento de tole- clínica reforçando a ação fisiológica das endorfinas e a
rância a opióides, 3) secreção de fator de crescimento das vias inibitórias noradrenérgicas e serotoninérgicas.
neural e citocinas neuropoiéticas que contribuem A eficácia analgésica dos opióides pode variar segundo
para sensibilização central e periférica (LAMONT e a característica, duração intensidade do estímulo; dosa-
TRANQUILLI, 2000). gem e espécie. Os opióides bloqueiam a transmissão
periférica e central da via nociceptiva aferente e por
Implicações para o manejo da dor isso, tornam-se bastante eficientes no tratamento da dor
inflamatória aguda. No entanto, eles não são igualmente
Segundo GLEED e LUDDERS (2006) a maioria eficazes para todo tipo de dor como, por exemplo, a dor
das síndromes dolorosas são complexas e envolvem neuropática que possui uma resposta pobre ou de curta
mais de um tipo de dor. A primeira estratégia para ma- duração aos opióides (RIBEIRO et al., 2002, BASSANE-
ximizar o sucesso da terapia analgésica é o conceito ZI e OLIVEIRA FILHO, 2006). Agentes opióides como
de analgesia preemptiva. O tratamento iniciado antes tramadol e morfina contribuíram para modulação da
da injúria inibe o processo de sensibilização periférica resposta neuroendócrina à dor, após a OSH em cães
e central. A segunda estratégia envolve a combinação (MASTROCINQUE e FANTONI , 2001).
de fármacos analgésicos e técnicas que promovam Os anestésicos locais atuam tanto no bloqueio de
efeito sinérgico como analgesia balanceada. Com estas canais de sódio, como prevenindo a transmissão do
técnicas, pode-se utilizar baixas doses, diminuindo a impulso nervoso e a excitação do nociceptor ou inibindo
possibilidade de efeitos colaterais (KUMAZAWA, 1998; o processo modulatório de nocicepção quando adminis-
LUNA, 2006). trado por via central (LAMONT e TRANQUILLI, 2000;
A analgesia preempitva ou analgesia preventiva BASSANEZI e OLIVEIRA FILHO, 2006).
envolve a administração de analgésicos antes da injúria Os anti-inflamatórios não esteróides (AINE) continu-
tecidual, para minimizar a dor pós-operatória e promo- am sendo a principal ferramenta no tratamento da dor
ver um curto período de recuperação ao paciente. O crônica. Acredita-se que os efeitos analgésicos destes
principal objetivo da analgesia preemptiva é bloquear o fármacos deve-se à sua habilidade em inibir a ativida-
Wind-up celular e, com isso, bloquear a sensibilização de da ciclo-oxigenase e lipo-oxigenase e prevenindo
central, prevenindo a dor ou tornando-a mais fácil de a síntese das prostaglandinas e a sensibilização de
controlar. Apesar do exposto, a técnica não é aceita para nociceptores periféricos. Existem dois tipos principais
indução e manutenção de anestesia isoladamente e não de COX: a COX- 1 e COX- 2, presentes na maioria dos
elimina a necessidade de analgésicos no pós-operatório tecidos. Existem também relatos da existência de um
(SHAFFORD et al., 2001; GLEED e LUDDERS, 2006; terceiro tipo de COX (COX-3), presente principalmen-
LUNA, 2006; ROBERTSON, 2006). te no córtex cerebral, que é inibida seletivamente por
A analgesia balanceada ou multimodal utiliza mais drogas analgésicas e antipiréticas, como a dipirona e o
de uma modalidade de analgésicos. O processo de acetaminofeno. A ação dos AINE é dose /resposta limi-
nocicepção e dor envolve diversos mecanismos e tada (efeito teto), ou seja, a sua administração em doses
parece óbvio que um único fármaco não seja capaz superiores às recomendadas não proporciona analgesia
de aliviar a dor completamente. Um plano efetivo inclui suplementar, aumentando a incidência de efeitos cola-
fármacos de diferentes classes analgésicas, atuando terais. (LAMONT e TRANQUILLI, 2000; BASSANEZI
em pontos diferentes dos mecanismos fisiopatológicos e OLIVEIRA FILHO, 2006; ROBES, 2006).
que envolvem a dor (ROBERTSON, 2006). Já os glucocorticóides diminuem a expressão do
A dor crônica, resultante da persistência de estímu- ácido araquidônico e conseqüentemente diminuição
los nociceptivos ou disfunções do sistema nervoso, não de seus metabólitos (prostaglandinas, leucotrienos e
é uma versão prolongada da dor aguda. Dor crônica tromboxanos), diminuem a expressão de interleucinas
perde a função biológica e caracteriza-se pela sua na- e TNFα e parecem estar envolvidos na diminuição da
tureza multidimensional, em que além dos fenômenos resposta dolorosa em processos autoimunes (LAMONT
neurofisiológicos, os aspectos psicológicos, cognitivos, e TRANQUILLI, 2000).
comportamentais, sociais, familiares e vocacionais

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10 KLAUMANN, P. R. et al.

Os α 2-agonistas ligam-se a receptores pré- mente patológicos. Tais informações são essenciais
sinápticos α localizados na fibras aferentes sim- para a instituição de uma terapia analgésica eficiente,
páticas, modulando a liberação de norepinefrina, preemptiva e multimodal, pois a síndrome dolorosa
substância P, peptídeo relacionado com o gene da pode ser considerada uma doença, gerando alte-
calcitonina e outros neurotransmissores envolvidos rações na homeostasia orgânica que implicam em
na transmissão da informação nociceptiva. No SNC perda da qualidade de vida do paciente.
os receptores α2 encontram-se no tronco cerebral e As conseqüências negativas da dor de longe
a ativação de seus núcleos resulta em sedação e excedem alguma preocupação especial para a uti-
anestesia. Também no tronco cerebral, a ação dos lização de analgésicos. O estresse causado por tal
agonistas α2 ativa uma via inibitória descendente da situação deve ser impedido de tomar proporções
medula espinhal, diminuindo o tônus simpático. Na catastróficas para o indivíduo, ou seja, antes que haja
medula espinhal estes receptores estão localizados a exaustão das reservas biológicas de energia. Deve-
no corno posterior e sua ativação inibe a transmissão se ter em mente que não existem efeitos negativos
da informação dolorosa, resultando em analgesia da utilização dos analgésicos, mas sim, relacionados
(LAMONT e TRANQUILLI, 2000; BASSANEZI e à escolha inadequada ou a dose.
OLIVEIRA FILHO, 2006).
Os antagonistas dos receptores NMDA como a
cetamina, previnem o fenômeno de “wind-up” e a REFERÊNCIAS
conseqüente sensibilização dos neurônios do corno
dorsal. Devido seu efeito modulatório da medula
espinhal, a cetamina pode ser eficaz no tratamento ALMEIDA, T. P.; MAIA, J. Z.; FISCHER, C. D. B.;
de dor neuropática que normalmente não responde PINTO, V. M.; PULZ, R. S.; RODRIGUES, P. R. C.
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Os anestésicos gerais não são analgésicos. veterinária. Veterinária em Foco, v. 3, n. 2, p. 107-
Entretanto estes fármacos inibem a percepção da 118, 2006.
dor induzindo o córtex cerebral à não percepção
da informação nociceptiva que está sendo recebida BASSANEZI, B. S. B.; OLIVEIRA FILHO, A. G. D.
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codificam proteínas envolvidas na iniciação da exci- e Controle da Dor. In: FANTONI, D.T.; CORTOPASSI,
tabilidade neuronal de longa duração. 2) ativação de S. R. G. Anestesia em Cães e Gatos. São Paulo:
enzimas (proteína cinase C e NOS) que possuem um Rocca, 2002. p. 323-334.
importante papel na sensibilização central e desen-
volvimento da tolerância por opióides. 3) secreção FORSS, N.; RAIJ, T. T.; SEPPA, M.; HARI, R.
do fator de crescimento neural e citocinas neuro- Common cortical network for fisrst and second pain.
poiéticas, contribuindo para sensibilização central e Neuroimage. v. 24, n.1, p. 132-142, 2005.
periférica (LAMONT e TRANQUILLI, 2000).
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nocicepção é uma importante ferramenta para o
entendimento dos mecanismos desencadeantes dos
processos dolorosos, sejam fisiológicos ou principal-

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