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Dor neuropática

Revisão
Prof. Dr. Pedro Schestatsky - CRM-RS: 25.102
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Neurologista do Hospital Moinhos de Vento
Ex-coordenador do Departamento de Dor da Associação Brasileira de Neurologia
Ex-coordenador do Departamento de Dor da European Neurological Society

A dor é definida como experiência emocional


desagradável relacionada a um dano tecidual real
de pacientes com doenças crônicas associadas a
esse tipo de dor (câncer, infecção pelo vírus da
ou potencial1, sendo dividida nos tipos nocicepti- imunodeficiência humana e diabetes) e ao enve-
va e neuropática. A dor nociceptiva ocorre por lhecimento populacional, já que a dor neuropática
ativação fisiológica de receptores ou da via dolo- é mais frequente em idosos (p. ex., herpes-zóster
rosa e associa-se à lesão de tecidos ósseos, mus- e neuropatia diabética). De maneira geral, a maior
culares ou ligamentares2. Já a dor neuropática é causa de dor neuropática é a neuropatia diabética.
definida como dor iniciada por lesão ou disfunção Mais recentemente, observou-se alta prevalência
do sistema nervoso, sendo mais bem compreen- desse sintoma nos pacientes com pré-diabetes4.
dida como resultado da ativação anormal da via Há cerca de 20 teorias para tentar explicar os
nociceptiva (fibras de pequeno calibre e trato es- mecanismos responsáveis pelo desenvolvimento
pinotalâmico)1. Mais recentemente, em razão da da dor neuropática5. No entanto, a maioria de-
possível concomitância de ambos os tipos de dor las é fundamentada em modelos neuroquímicos
e das dificuldades diagnósticas, alguns autores re- excessivamente teóricos e complexos, de pouco
comendam o uso do termo “dor predominante- entendimento entre os próprios neurologistas6,7.
mente neuropática” ou “dor predominantemente Um reflexo disso é o baixo rendimento dos tra-
nociceptiva”, dependendo do padrão clínico de tamentos farmacológicos atualmente disponíveis
apresentação2. para a dor neuropática, cujo alívio da dor em
Um estudo recente3, que avaliou, randomi- 30% é considerado sucesso terapêutico. Outro
camente, 6 mil adultos procedentes de postos motivo para a persistente refratariedade do
de saúde do Reino Unido, verificou tratamento da dor neuropática é a
prevalência de dor crônica de ori- ênfase excessiva de certos pes-
gem predominantemente neu- quisadores no fenômeno da
ropática de 8,2%. Essa cifra sensibilização central como
representou 17% de todos os causa de dor neuropática.
pacientes com dor crônica, Tal fenômeno é incapaz de
sendo composta majoritaria- responder pela maioria dos
mente de mulheres, idosos casos de dor neuropática, já
e indivíduos de baixo nível que esta pode ser frequente-
socioeconômico. No en- mente aliviada por bloqueios
tanto, a prevalência de dor anestésicos do nervo periférico8.
neuropática provavelmente Atualmente, o mecanismo mais
aumentará no futuro, devido plausível e cientificamente aceito
ao incremento da sobrevida para explicar a dor neuropática é a
geração ectópica de impulsos nervosos às fibras diante o recurso da analogia (“é como se fosse
de pequeno calibre dos tipos C e A 9. Após a um...”). Tais queixas se dividem em dores espon-
lesão do nervo, alguns pacientes desenvolvem tâneas (aquelas que se manifestam sem nenhum
alteração na distribuição e conformação de ca- estímulo detectável) e dores evocadas (respostas
nais iônicos (especialmente canais de sódio) que anormais ao estímulo). Por sua vez, as dores es-
promovem aumento da excitabilidade axonal das pontâneas podem ser contínuas ou paroxísticas10.
fibras finas nociceptivas. Muitas vezes, tal excita- Na literatura, há várias escalas disponíveis para
bilidade é gerada longe do foco da lesão inicial qualificar e quantificar a dor neuropática. Mais
(por isso, chamada de descarga ectópica), mas é recentemente, a escala de Leeds Assessment of
capaz de acarretar o surgimento de sintomas de Neuropathic Symptoms and Signs (LANSS) vem
características neuropáticas. Não é por acaso que sendo utilizada como indicador de um processo
um dos tratamentos mais eficazes para a dor neu- doloroso de predomínio neuropático versus noci-
ropática é o uso de anticonvulsivantes que agem ceptivo já validada para a língua portuguesa11.
sobre os canais de sódio, como carbamazepina,
gabapentina e pregabalina. Para alguns estudiosos,
a dor neuropática poderia ser considerada uma
Referências bibliográficas
1. Merskey H, Bogduk N. Classification of chronic pain. Se-
“epilepsia do nervo”. attle: IASP Press, 1994.
Na prática clínica, identificar esse tipo de dor 2. Bennett MI, Smith BH, Torrance N, et al. Can pain can
be more or less neuropathic? Comparison of symptom
é uma tarefa difícil. A sensação dolorosa não pode assessment tools with ratings of certainty by clinicians.
ser mensurada objetivamente, não existindo, ainda, Pain. 2006;122:289-94.
um consenso universal para o diagnóstico da dor 3. Torrance N, Smith BH, Bennett MI, et al. The epide-
miology of chronic pain of predominantly neuropathic
neuropática. Entretanto, o quadro clínico e os tes- origin. Results from a general population survey. J Pain.
tes quantitativos podem auxiliar nesse processo10. 2006;7:281-9.
4. Smith AG, Singleton JR. Impaired glucose tolerance and
Os fenômenos positivos da dor neuropática neuropathy. Neurologist. 2008;14:23-9.
podem apresentar-se de forma espontânea ou 5. Devor M. Neuropathic pain: what do we do with all the-
evocada, em várias combinações, como: a) alodi- se theories? Acta Anaesthesiol Scand. 2001;45:1121-7.
nia: uma manifestação comum, definida como dor 6. Woolf CJ, Mannion RJ. Neuropathic pain, aetiolo-
gy, symptoms, mechanisms and management. Lancet.
devida a um estímulo incapaz de provocar dor em 1999;353:1959-64.
situações normais; b) hiperalgesia: sensação do- 7. Woolf CJ, Salter MW. Neuronal plasticity: increasing the
gain in pain. Science. 2000;288:1765-8.
lorosa de intensidade anormal após um estímulo
8. Serra J, Campero M, Bostock H, et al. Two types of C
nocivo que representa uma resposta exagerada a nociceptors in human skin and their behavior in areas of
uma determinada modalidade de estímulo (p. ex., capsaicin-induced secondary hyperalgesia. J Neurophy-
siol. 2004;91:2770-81.
hiperalgesia térmica); c) hiperpatia: reação dolo-
9. Bostock H, Campero M, Serra J, et al. Temperature-de-
rosa aumentada a estímulos repetitivos sublimia- pendent double spikes in C-nociceptors of neuropathic
res ou pós-sensações dolorosas prolongadas; d) pain patients. Brain. 2005;128:2154-63.
hiperatividade autonômica: fluxo sanguíneo, tem- 10. Schestatsky P, Félix-Torres V, Chaves ML, et al. Brazilian
Portuguese validation of the leeds assessment of neuro-
peratura cutânea e sudorese podem estar todos pathic symptoms and signs for patients with chronic pain.
aumentados ou diminuídos, variando conforme o Pain Med. 2011Oct;12(10):1544-50.
11. Schestatsky P, Nascimento OJ. What do general neuro-
paciente. Alterações tróficas são sinais tardios de logists need to know about neuropathic pain? Arq Neu-
disfunção autonômica. ropsiquiatr. 2009 Sep;67(3A):741-9.
Pacientes com dor neuropática apresentam
*Algumas disponíveis no site www.sobreneurologia.com.br
queixas múltiplas e complexas. Diferentemente (produção intelectual – artigos publicados).
da dor nociceptiva, há limitação dos descritores
verbais para caracterizar a dor neuropática. A
maioria deles tenta descrever seus sintomas me-

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