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v. : il.
ISSN:0034/9240
Editada pelo DASP em nov. de 1937 e p ublicada no Rio de Janeiro até 1959.
A periodicidade varia desde o primeiro ano de circulação, sendo que a partir dos últimos
anos teve predominância trimestral (1998/2004).
Interrompida no período de 1975/1980 e 1990/1993.
RSP Revisitada
O estudo da
Administração *
Woodrow Wilson
norte-americana Political Science Quarterly, de onde, data venia, o transcrevemos, não tem,
como se verá, um mero valor histórico: a sua atualidade e significação permanecem imedia-
tas, como quando apareceu pela primeira vez, marcando a distinção teórica e prática entre
Administração e Política. Não fôsse pelo nome de seu autor e pelas referências agora injustas
considerá-lo como de hoje, tão vivas e contundentes são as lições que encerra.
Nêle, Wilson, mais conhecido entre nós como Presidente e pacifista do que como notável
professor de Ciência Política, que o foi anteriormente, durante muitos anos, sintetiza a
para demonstrar, em conclusão, a necessidade de seu estudo e prática. A sua idéia funda-
Serve ainda êste ensaio de introdução a uma Govêrno e os mais altos objetivos fixados
série já programada de estudos sôbre a teoria e a ao Govêrno pela natureza humana, e os
prática da Administração, do ponto de vista propósitos dos homens. O centro da con-
universal, os quais publicaremos doravante trovérsia foi êste grande campo teórico
sistemáticamente, em cada número da Revista. Pelo em que a monarquia terçava armas com
cuidado na escolha e seriação dêsses estudos, assinados a democracia, em que a oligarquia cons-
por mestres e especialistas estrangeiros, estamos certos truiria para si bastiões de privilégio, e no
de ir ao encontro do interêsse geral de nossos leitores qual a tirania procurava oportunidade
e, em particular, dos candidatos a concursos que não para fazer valer suas exigências de sub-
tenham facilidade de acesso às fontes do conhecimento missão de todos os competidores. Den-
e experiência alienígenas (N.R.). tro dessa acessa guerra de princípios, a
Administração não poderia exigir uma
A Ciência da Administração é o mais pausa para que a considerassem. A ques-
recente fruto do estudo de Ciência Política, tão era sempre: quem deve fazer a lei e o
iniciado há cerca de dois mil e duzentos que deve ser essa lei? A outra questão –
anos atrás. É uma criação do nosso século, como a lei deve ser administrada sàbia-
quase de nossa própria geração. mente, com equidade e rapidez e sem atri-
Por que teria ela tardado tanto em to – era posta de lado como um “deta-
aparecer? Por que esperou pelo nosso tão lhe prático” que os amanuenses poderiam
preocupado século, para exigir atenção? A tratar depois que os doutores tivessem
Administração é a mais evidente parte do concordado sôbre os princípios.
Govêrno; é o Govêrno em ação; é o exe- Que a filosofia política tivesse tomado
cutivo, operante, o mais visível aspecto do esta direção não foi, naturalmente, nenhum
Govêrno, e, naturalmente, é tão antigo acidente, nenhuma preferência ocasional
quanto o próprio Govêmo. É o Govêrno do capricho perverso aos filósofos da
em ação, e seria natural esperar-se que o Política. A filosofia de qualquer tempo,
Govêrno em ação tivesse prendido a como diz Hegel, “não é senão o espírito
atenção e provocado o exame minucioso dêsse tempo expresso em pensamento
dos escritores de Política, muito cedo, na abstrato”; a filosofia política, como a
história do pensamento sistemático. filosofia de qualquer outra espécie, tem
Tal, porém, não foi o caso. Ninguém sòmente refletido os negócios contem-
escreveu sistemáticamente sôbre a porâneos. A dificuldade em tempos
Administração como um ramo da ciên- remotos era quase tôda a respeito da
cia do Govêrno até que o presente sécu- constituição do Govêrno; e, conseqüente-
lo tivesse amadurecido e começado a mente, era isso o que absorvia o pensa-
desabrochar as suas flores características mento dos homens. Pouca ou nenhuma
do conhecimento sistemático. Até os nos- dificuldade havia com respeito à Admi-
sos dias todos os autores de Política, que nistração, pelo menos pouco a que dessem
agora lemos, pensaram, discutiram e ouvido os administradores. As funções de
dogmatizaram sòmente a respeito da Govêrno eram simples porque simples era
constituição do Govêrno; sôbre a natu- a própria vida. O Govêrno agia impera-
reza do Estado, a essência e a origem da tivamente e compelia os homens, sem
soberania, poder popular e prerrogativa pensar em consultar os seus desejos. Não
real; sôbre o sentido imanente do havia nenhum sistema complexo de rendas
trabalho que só podem ser levados a como eu disse, não são senão algumas
efeito pela maior aptidão natural, o poucas das portas que agora estão sendo
mais eficiente treinamento, a mais abertas às repartições governamentais. A
firme e regular diligência1. idéia do Estado e o decorrente ideal de
seus deveres estão passando por transfor-
Difìcilmente haverá uma única tarefa mações dignas de nota; e “a idéia do
de Govêrno que tendo sido antes simples, Estado é a consciência da Administração”.
não se tenha tornada agora complexa; o Vendo-se cada dia novas coisas que o Estado
Govêrno antes não tinha senão poucos deve fazer, cabe-nos ver em seguida clara-
dirigentes; êle tem agora numerosos mente como deve êle fazê-las.
dirigentes. As maiorias antes sòmente Esta é a razão pela qual deve haver
sujeitavam-se ao Govêrno; elas agora con- uma Ciência da Administração que procure
duzem o Govêrno. Onde o Govêrno retificar as trilhas do Govêrno, tornar as
podia antes seguir os caprichos da côrte, suas opiniões mais eficientes, fortalecer e
deve agora seguir as opiniões da Nação. purificar sua organização e incutir em seus
E estas opiniões estão se abrindo deveres a devoção. Esta é uma razão por
ràpidamente a novas concepções do dever que há tal Ciência.
do Estado; de modo que, ao mesmo Mas onde cresceu esta Ciência? Com
tempo que as funções de Govêrno se certeza, não nêste lado do oceano. Poucos
tornam cada dia mais complexas e difíceis, métodos científicos e imparciais são
elas também se multiplicam vastamente. A discerníveis em nossas práticas adminis-
Administração está, por tôda a parte, pon- trativas. A envenenada atmosfera do
do as mãos em novos emprendimentos. Govêrno municipal, os segredos torpes da
A utilidade, a modicidade e o sucesso do administração estadual, a confusão, o sine-
serviço postal do Govêrno, por exemplo, curismo e a corrupção de quando em vez
indicam o pronto estabelecimento do descobertos nas repartições de Washington,
contrôle governamental sôbre o sistema te- impedem-nos acreditar que quaisquer
legráfico. Mesmo, porém que o nosso noções sôbre o que constitui uma boa
Govêrno não siga a orientação dos administração já sejam largamente correntes
Govêrnos da Europa, encampando ou nos Estados Unidos. Não, os autores ame-
construindo linhas telegráficas e ferroviárias, ricanos não tomaram até agora parte muito
ninguém duvida que, de algum modo, êle importante no avanço desta Ciência. Ela
deve se fazer dirigente de emprêsas achou seus doutores na Europa. Ela não é
influentes. A criação de comissões nacio- de nossa feitura; é uma ciência estrangeira,
nais de ferrovias, em adição às antigas pouco falando a língua do princípio inglês
comissões estaduais, envolve uma impor- ou americano. Ela emprega somente
tantíssima e delicada extensão de funções línguas estrangeiras; nada exprime senão o
administrativas. Qualquer que seja o grau que para nossos espíritos são idéias
de autoridade que os govêrnos federal e alienígenas. Seus propósitos, seus exem-
estadual venham a ter sôbre as emprêsas, plos, suas condições são quase exclusi-
decorrerão cuidados e responsabilidade a vamente calcados na história de raças
exigir não pouca sabedoria, conhecimento estrangeiras, nos precedentes de exemplos
e experiência. Tais coisas devem ser estu- estrangeiros, nas lições de revoluções
dadas de modo a serem bem feitas. E estas, estrangeiras. Foi desenvolvida por pro-
mas não o destruiu. Napoleão sucedeu aos Magna Carta, as reformas administrativas
monarcas de França, para exercer um e legais começaram a ser executadas com
poder tão irrestrito como êles jamais senso e vigor sob o impulso do esperto,
possuíram. ativo, empreendedor e indómito espírito
A remodelação da Administração e propósito de Henrique II; e a iniciativa
francesa por Napoleão é, por conseguinte, real parecia destinada, na Inglaterra, como
meu segundo exemplo do aperfeiçoa- alhures a informar, à sua vontade, o
mento da maquinária civil pela vontade crescimento governamental. Mas o impul-
unipessoal de um governante absoluto, sivo e excêntrico Ricardo e o fraco e
antes do despontar da era constitucional. desprezível João não eram os homens para
Nenhuma vontade popular corporificada levarem a efeito tais planos como os de
poderia jamais ter efetuado transfor- seu pai. O desenvolvimento administrativo
mações como as que Napoleão dirigiu. deu lugar, em seus reinados, a lutas consti-
Disposições tão simples em prejuízo do tucionais; e o Parlamento tornou-se rei
preconceito local, tão lógicas em sua indi- antes que qualquer monarca inglês tivesse
ferença à escolha popular, poderiam ter tido o gênio prático ou a consciência
sido decretadas por uma Assembléia esclarecida para conceber justas e dura-
Constituinte, mas sòmente poderiam ter douras formas para a vida civil do Estado.
sido postas em prática pela autoridade A raça inglesa, conseqüentemente, tem
ilimitada de um déspota. O sistema do por muito tempo estudado com sucesso a
Ano VIII foi impiedosamente completo e arte de refrear o Poder Executivo, com
de uma perfeição sem entranhas. Foi, ainda, negligência constante da arte de aperfeiçoar
em grande parte um retorno ao despo- os métodos executivos. Ela se tem exerci-
tismo que havia sido derrubado. tado muito mais em controlar do que em
Entre essas nações, de outro lado, que ativar o Govêrno. Tem-se preocupado
entraram numa fase de elaboração consti- muito mais em tornar o Govêrno justo e
tucional e reforma popular, antes que a moderado, do que fazê-lo fácil, bem
administração tivesse recebido o cunho do ordenado e eficaz. A história política inglesa
princípio liberal, o aperfeiçoamento e americana tem sido uma história não de
administrativo tem sido tardio e de meias progresso administrativo, mas de supervisão
medidas. Uma vez que uma nação se legislativa, – não de progresso na
empenhe na atividade de manufaturar organização governamental mas de avanço
Constituições, ela achará extremamente na elaboração legislativa e crítica política.
difícil encerrar esta atividade e abrir ao Conseqüentemente, atingimos uma época
público um escritório de administração em que o estudo e a criação administrativa
hábil e econômica. Parece não haver fim são imperativamente necessários ao bem
no remendar de Constituições. A Consti- estar de nossos governos, peiados pelos
tuição ordinária difìcilmente durará dez hábitos de um longo período de elaboração
anos sem reparos ou adições; e o tempo constitucional. Êsse período está pràti-
para o detalhe administrativo vem tarde. camente encerrado, no que diz respeito ao
Aqui, naturalmente, nossos exemplos estabelecimento de princípios essenciais, mas
são a Inglaterra e o nosso próprio país. não podemos dissipar a sua atmosfera.
Nos dias dos reis d’Anjou, antes que a vida Prosseguimos criticando, quando deve-
constitucional tivesse tomado raízes na ríamos estar criando. Alcançamos o terceiro
embora não seja senão um outro aspecto liberdade. Mas, pensando bem, mesmo
da distinção entre a Administração e a isso será verdade? A liberdade não consiste
Política, não é tão fácil de ser mantida à vista: mais na facilidade de movimento funcional
quero dizer, a distinção entre questões que a inteligência consiste na facilidade e
constitucionais e administrativas, entre essas vigor com que se movimentam os mem-
disposições governamentais que são bros inferiores e superiores de um homem
essenciais ao princípio constitucional e aquelas forte. Os princípios que governam interior-
que são meramente instrumentais aos mente o homem, ou a constituição, são as
objetivos, possivelmente mutáveis, de uma molas vitais da liberdade ou da servidão.
conveniência inteligentemente adaptável. Porque a dependência e a sujeição não
Não se pode fàcilmente tornar claro, tenham algemas, aliviadas que sejam por
a todos, onde se localiza a Administração todos os arranjos praticáveis de um
nos vários departamentos do Govêrno, Govêrno refletido e paternal, não quer
sem entrar sôbre particularidades tão dizer que se transformem por isso em
numerosas a ponto de confundir e liberdade. A liberdade não pode viver à
distinções tão minuciosas que desorien- parte do princípio constitucional; e nenhu-
tariam. Nenhuma linha de demarcação, ma Administração, por mais perfeitos e
separando as funções administrativas das liberais que sejam os seus métodos, poderá
não-administrativas, pode ser traçada, entre dar aos homens mais do que uma grosseira
êste e aquêle departamento governamental, imitação de liberdade, se ela assenta em
sem altos e baixos, sôbre alturas vertiginosas princípios antiliberais de Govêrno.
de distinção e através de densas florestas Uma visão nítida da diferença entre o
de elaboração estatutária, para lá e para cá campo do Direito Constitucional e o da
em volta de “se” e “mas”, “quando” e função administrativa não deve dar lugar
“entretanto”, até que elas se perdem à concepção errônea; e é possível citar
completamente aos olhos desacostumados alguns critérios mais ou menos definidos
a esta espécie de demarcação, e, conseqüen- sôbre os quais pode ser obtida tal visão. A
temente, não familiarizados com o uso do Administração Pública é a execução deta-
teodolito do discernimento lógico. Grande lhada e sistemática do Direito Público.
parte de administração realiza-se incógnita Tôda a aplicação particular de lei geral é
para a maior parte do mundo, sendo um ato de administração. O lançamento e
confundida ora com “direção” política, ora a cobrança de impostos, por exemplo, o
com princípio constitucional. enforcamento de um criminoso, o trans-
Talvez essa facilidade de confusão porte e a entrega de malas postais, o
explique afirmações como as de Niebuhr: equipamento e o recrutamento do Exército
“A liberdade depende incomparàvelmente e da Marinha, etc., são todos, evidente-
mais da Administração do que da Consti- mente, atos de administração; mas as leis
tuição”. À primeira vista, isso parece ser, gerais que obrigam a fazer essas coisas
em grande parte, verdadeiro. Aparente- estão, obviamente, fora e acima da Admi-
mente, a facilidade no exercício real da nistração. Os largos planos de ação gover-
liberdade depende mais de disposições namental não são administrativos; a sua
administrativas do que de garantias cons- execução detalhada é administrativa. As
titucionais; embora sòmente as garantias Constituições, portanto, só dizem respeito,
constitucionais assegurem a existência de pròpriamente, a esses instrumentos de
Govêrno que se relacionam com a lei geral. importância, talvez, sob um sistema demo-
A nossa Constituição Federal observa êste crático, onde os funcionários servem a
princípio, silenciando até mesmo sôbre os muitos dirigentes, do que sob outros siste-
maiores órgãos puramente executivos, fa- mas onde êles servem a poucos. Todos os
lando sòmente do Presidente da União que soberanos suspeitam de seus servidores, e
deveria compartilhar das funções legis- o povo soberano não é exceção à regra;
lativas e normativas de Govêrno; sòmente mas como poderá a sua suspeita ser
dos juízes de mais alto grau, a quem caberia afastada pelo conhecimento? Se essa descon-
interpretar e velar pela observância dos seus fiança pudesse ser pelo menos depurada
princípios, e não daquêles que deveriam, numa sábia vigilância, seria de todo salutar;
simplesmente, afirmá-los. se esta vigilância pudesse ser ajudada pela
Esta não é, exatamente, uma distinção inequívoca atribuição de responsabilidade,
entre Vontade e Ato correspondente, pois seria de todo benéfico. A suspeita, em si
o administrador deve ter e tem uma vonta- mesma, jamais é saudável, quer no espírito
de própria na escolha dos meios para efetuar particular quanto no público. A confiança
o seu trabalho. Ela não é nem deve ser um faz a força em tôdas as relações da vida; e,
mero instrumento passivo. A distinção é como compete ao reformador constitu-
entre planos gerais e meios específicos. cional criar condições de confiança, assim
Há, de fato, um ponto no qual os também compete ao organizador admi-
estudos administrativos invadem o terreno nistrativo revestir a Administração de
constitucional, ou, pelo menos, o que condições de responsabilidade determi-
parece ser terreno constitucional. O estudo nada, que inspirem confiança.
da Administração, visto filosoficamente, é E seja-me lícito dizer que poderes latos
estreitamente relacionado com o estudo da e discrição inconstrastada parecem-me as
distribuição adequada da autoridade condições indispensáveis de responsabi-
constitucional. Para ser eficiente deve êle lidade. A atenção pública deve ser dirigida,
descobrir os meios mais simples pelos quais fàcilmente, no caso de boa ou má admi-
a responsabilidade possa ser inequivo- nistração, para o homem merecedor de
camente atribuída aos funcionários; a elogio ou condenação. Não há perigo no
melhor maneira de dividir a autoridade poder, desde que êle não seja irresponsável.
sem prejudicá-la, e a responsabilidade, sem Se êle for dividido, entregue em parcelas a
obscurecê-la. E esta questão da distribuição muitos, se obscurece; e se for obscurecido,
de autoridade, quando levada à esfera das é tornado irresponsável. Mas se êle for
mais altas e originárias funções de localizado em chefes de departamentos e
Govêrno, é obviamente uma questão de divisões, é fàcilmente observado e
central de Direito Constitucional. Se o responsabilizado. Se para manter o seu
estudo administrativo puder descobrir os cargo deve um homem alcançar franco e
melhores princípios sôbre os quais basear honesto sucesso, e se ao mesmo tempo
tal distribuição, terá êle prestado ao estudo sente que lhe foi confiada uma larga
constitucional um serviço incalculável. discrição, quanto maior o seu poder menos
Montesquieu não disse, estou certo, a última provável será que dêle abuse, mais é forti-
palavra a êste respeito. ficado, moderado e elevado por êle.
Descobrir o melhor princípio para a Quanto menor o seu poder, mais obscura-
distribuição de autoridade é de maior mente seguro e desapercebido sente-se êle
estadista imbuído de verdadeiro espírito O Estado democrático está ainda por ser
público transformou repartições arro- aparelhado para carregar êssas enormes
gantes e formais em instrumentos cívicos cargas, que as necessidades de nossa era
de um Govêrno justo. industrial e comercial estão acumulando tão
O ideal para nós é um funcionalismo ràpidamente. Sem estudos comparativos
civil bastante culto e auto-suficiente para agir sôbre Govêrno, não nos podemos livrar
com senso e vigor, e, todavia, tão intima- da errônea suposição de que a Adminis-
mente ligado ao pensamento popular, por tração tem num Estado democrático bases
meio de eleições e constante orientação essencialmente diferentes daquelas sôbre que
pública, a ponto de achar inadmissíveis a assenta em um Estado não-democrático.
arbitrariedade e o espírito de classe. Depois de tal estudo, poderíamos
conceder à democracia à honra de decidir,
III em última instância, pelo debate, tôdas as
Tendo assim visto, de certo modo, a questões essenciais que afetem o bem
matéria e os objetivos do estudo da público, de basear tôda a estrutura da
Administração, que devemos concluir direção política sôbre a vontade da
quanto aos métodos mais adequados, os maioria; mas não teríamos encontrado
pontos de vista mais vantajosos a êle? senão uma regra única de boa adminis-
O Govêrno é tão próximo de nós, tração para todos os Govêrnos igualmente.
uma coisa tanto de nosso trato familiar e No que diz respeito a funções administra-
cotidiano, que só com dificuldade pode- tivas, todos os Govêrnos têm uma forte
mos perceber a necessidade de qualquer semelhança estrutural; mais do que isso, se
estudo filosófico sôbre êle, ou o sentido quiserem ser uniformemente úteis e
exato de tal estudo, se tiver que ser eficientes, devem ter uma forte semelhança
empreendido. Temos andado com as estrutural. Um homem livre tem os
nossas próprias pernas por um tempo mesmos órgãos, vísceras e membros que
demasiado longo para aprender agora a o escravo, por mais diferentes que sejam
arte de andar. Somos um povo prático, os seus propósitos, seus serviços, suas
tornado tão apto, tão versado em auto- energias. Monarquias e democracias, radi-
govêrno, por séculos de exercício expe- calmente diferentes como são sob outros
rimental, que difìcilmente seremos capazes aspectos, têm, na realidade, muito da
de perceber o que há de desajeitado em mesma atividade a desempenhar.
determinado sistema que estivermos Há abundantes razões para não temer,
usando, justamente porque é tão fácil para nos dias de hoje, a insistência sôbre essa
nós usar qualquer sistema. Não estudamos semelhança real de todos os Govêrnos,
a arte de governar: governamos. O simples porquanto estes são dias em que os abusos
talento inculto para negócios não nos de poder são facilmente expostos e
poupará de tristes cincadas em Adminis- detidos, em países como o nosso, por um
tração. Apesar de democratas por heredi- audaz, alerta, curioso e observador espírito
tariedade e reiterada preferência, somos popular e um indefectível senso de
ainda democratas um tanto crus. Por mais independência, que o povo tem, agora,
antiga que seja a democracia, sua organi- como jamais o teve antes. Somos tardos
zação na base de idéias e condições em reconhecer isso; mas é fácil reconhecê-
modernas é ainda um trabalho incompleto. lo. Tente-se imaginar um Govêrno pessoal
nos Estados Unidos. É como tentar compreensível. Mas êle difìcilmente seria
imaginar uma adoração nacional de Zeus. evitado em qualquer outro grupo.
Nossas imaginações são demasiado É tanto mais necessário insistir sôbre
modernas para tal façanha. o abandono, dêsse modo, do preconceito
Mas, além de não ser perigoso, é contra a procura de sugestões em qualquer
necessário perceber que, para todos os parte do mundo, exceto na terra natal,
Govêrnos, os fins legítimos da Adminis- quanto em nenhuma outra parte de todo
tração são os mesmos, de modo a não o campo da Política, ao que parece,
temermos a idéia de observar os sistemas podemos fazer uso do método histórico,
estrangeiros de Administração em busca comparativo, com maior segurança do que
de instrução e sugestão; de modo a no setor da Administração. Talvez que,
desfazer o receio de que se possa, por quanto mais formas novas estudarmos,
acaso, tomar emprestado cegamente algo melhor: mais cedo conheceremos as
incompatível com nossos princípios. É um peculiaridades de nossos próprios
cego desorientado aquele que denuncia métodos. Jamais poderemos conhecer
tentativas de transplantar sistemas estran- nossas próprias fraquezas, nem nossas
geiros neste País. É impossível: êles próprias virtudes, comparando-nos
simplesmente não crescerão aqui. Mas por conosco mesmos. Estamos demasiado
que não devemos usar certas partes de acostumados à aparência e processo de
concepções estrangeiras de que precisamos, nosso próprio sistema, para que possamos
se elas nos forem, de qualquer modo, úteis? perceber a sua verdadeira significação.
Não corremos o risco de usá-las de modo Talvez que mesmo o sistema inglês seja
estrangeiro. Recebemos de fora o arroz, demasiado semelhante ao nosso, para que
mas não o comemos com pauzinhos. possa ser usado, com o máximo proveito,
Recebemos tôda a nossa linguagem como ilustração. O melhor, em geral, é
política da Inglaterra, mas dela descartamos afastarmo-nos inteiramente de nossa
as palavras “rei” e “lords”. A que jamais própria atmosfera e sermos cuidadosos o
demos origem, exceto à ação do Govêrno mais possível, examinando sistemas tais
Federal sôbre indivíduos e algumas das como os da França e da Alemanha. Vendo
funções da Suprema Côrte Federal? nossas próprias instituições através de tais
Podemos tomar emprestada a Ciência media, vemo-nos como os estrangeiros nos
da Administração, sem perigo e com veriam se nos olhassem sem preconceitos.
proveito, contanto que distingamos em Enquanto só conhecermos a nós mesmos,
seus postulados tôdas as diferenças funda- não saberemos nada sôbre nós.
mentais que acondicionam. Temos sòmente Note-se que é a distinção, já traçada,
que filtrá-la através de nossa Constituição, entre a Administração e a Política, que torna
sòmente que submetê-la ao fogo lento da o método comparativo tão seguro no
crítica e destilar os vapores estrangeiros. campo da Administração. Quando estu-
Eu sei que há um receio inconfessado, damos os sistemas administrativos da
em alguns espíritos conscientemente patrió- França e da Alemanha, sabendo que não
ticos, de que os estudos de sistemas europeus estamos à procura de princípios políticos,
possam apontar certos métodos europeus não nos preocupamos, nem um pouco,
como melhores que determinados métodos com as razões constitucionais ou políticas
americanos, e o receio é fàcilmente que os franceses ou alemães dão para as
suas práticas, quando no-las explicam. Se satisfatórias aos padrões da política prática.
vejo um facínora afiando uma navalha Criações doutrinárias devem ceder o passo
habilmente, poderei imitar o seu modo de a práticas testadas. Arranjos, sancionados
afiar a navalha sem a sua provável inten- não sòmente pela experiência concludente
ção de cometer um assassínio com ela; e em outra parte, mas também congênere
assim sendo, se vejo um monarquista do costume americano, devem ser prefe-
convicto administrando bem uma repar- ridos, sem hesitação, à perfeição teórica.
tição pública, posso aprender seus Em uma palavra, a segura e prática arte
métodos administrativos sem alterar política deve vir primeiro, a doutrina de
nenhuma de minhas convicções repu- gabinete em segundo. O cosmopolita o que
blicanas. Êle pode servir o seu Rei; eu fazer deve estar sempre subordinado ao como
continuarei a servir o povo; mas eu gostaria fazer americano.
de servir tão bem o meu soberano quanto Nosso dever é suprir com a melhor
êle serve o dêle. Tendo em vista esta vida possível a organização federal, a
distinção, isto é, estudando a Administração sistemas dentro de sistemas; fazer o
como um meio de levar nossa própria Govêrno distrital, municipal, estadual e
política a práticas convenientes, como um federal viverem com igual fôrça e igual-
meio de tornar o que é democràticamente mente saudáveis, mantendo cada um deles
político, para todos administrativamente inquestionàvelmente o dirigente dos seus
possível em relação a cada um, – estamos próprios negócios e, não obstante,
em terreno perfeitamente seguro, e interdependentes e cooperativos, combi-
podemos aprender, sem êrro, o que os nando independência com ajuda mútua. A
sistemas estrangeiros tenham a nos ensinar. tarefa é suficientemente grande e impor-
Criamos assim um mecanismo de ajuste tante para atrair os melhores espíritos.
para o nosso método comparativo de Êsse entrelaçamento do Govêrno local
estudo. Podemos, desse modo, escrutar a com o federal é uma concepção bem
anatomia de Govêrnos estrangeiros sem moderna. Não se assemelha aos arranjos
medo de contrair quaisquer de suas doenças; da federação imperial na Alemanha. Lá, o
dissecar os sistemas alienígenas sem preo- Govêrno local não é ainda completo auto-
cupação com envenenamento do sangue. Govêrno local. O burocrata está em tôda
Nossa própria política deve ser a pedra a parte ocupado. Sua eficiência, porém,
de toque para tôdas as teorias. Os prin- decorre do esprit de corps, da preocupação
cípios sôbre os quais basear uma ciência de obediência servil à autoridade de um
da Administração para a América devem superior, ou, na melhor das hipóteses, de
ser os princípios que tenham, bem no uma consciência sensível. Êle serve não ao
âmago, a diretriz democrática. E para se público, mas a um ministro irresponsável.
adaptarem ao hábito americano, tôdas as A questão para nós consiste em como
teorias gerais devem, como teorias, deverão as nossas séries de Govêrnos
manter-se modestamente no segundo dentro de Govêrnos serem administradas,
plano, não sòmente nas discussões, mas, de modo a ser sempre do interêsse do
também, em nosso próprio espírito, – se funcionário público servir não só ao seu
não, opiniões satisfatórias sòmente em gabi- superior, mas também à comunidade, com
nete de leitura serão usadas dogmà- os melhores esforços de seu talento e o
ticamente, como se fôssem por igual mais escrupuloso serviço de sua
consciência? Como deverá êste serviço ser divisões de prerrogativa. Esta é uma
tornado de seu interêsse mais imediato pela tendência para o tipo americano – de
contribuição abundante ao seu sustento, ao Govêrnos ligados a Govêrnos para a reali-
seu mais caro interêsse pelo desenvolvi- zação de propósitos comuns, em igualdade
mento de sua ambição, e ao seu mais alto e subordinação dignas. Princípios seme-
interêsse pelo acréscimo de sua dignidade lhantes de liberdade civil estão em tôda a
e estabelecimento de sua reputação? E parte suscitando métodos semelhantes de
como deverá ser isso feito igualmente para Govêrno; e se os estudos comparativos
a parte local e para o todo nacional? dos meios e modos de Govêrno nos
Se resolvermos êste problema, orien- habilitarem a oferecer sugestões que
taremos novamente o mundo. Há uma combinarão, pràticamente, largueza e vigor
tendência – não há? – uma tendência ainda na administração de tais Govêrnos com
obscura, mas já firmemente impulsiva e pronta docilidade à tôda a crítica pública
claramente destinada a prevalecer, no séria e fundamentada, terão êsses estudos
sentido da confederação de partes de provado ser dignos de se classificar entre
impérios como a inglesa em primeiro lugar os mais altos e mais frutuosos dos grandes
e, finalmente, dos próprios grandes Esta- departamentos do estudo político. Que êles
dos. Em vez de centralização de poder, resultarão em tais sugestões, é o que eu
deverá haver larga união com toleradas espero confiantemente.
.
Notas
*
Foram mantidas as grafias originais do texto publicado em 1946.
1
Politik, S. 467