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Missão da Revista do Serviço Público Draibe, Tarso Fernando Herz Genr o, Vicente Carlos

Disseminar conhecimento sobre a gestão de Y Plá Trevas, Zairo B. Cheib ub


políticas públicas , estimular a ref lexão e o
debate e promover o desenvolvimento de Peridiocidade
servidor es e sua interação com a cidadania. A Revista do Serviço Público é uma publicação
trimestral da Escola Nacional de Administração
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Revista do Serviço Público. 1937 - . Brasília: ENAP, 1937 - .

v. : il.

ISSN:0034/9240

Editada pelo DASP em nov. de 1937 e p ublicada no Rio de Janeiro até 1959.
A periodicidade varia desde o primeiro ano de circulação, sendo que a partir dos últimos
anos teve predominância trimestral (1998/2004).
Interrompida no período de 1975/1980 e 1990/1993.

1. Administração Pública – Periódicos. I. Escola Nacional de Administração Pública.


CDD: 350.005

© ENAP, 2005 ENAP


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Sumário
Contents

Inovação no governo e no setor público: desafios e implicações


para a liderança 259
Government and public sector innovation: selected leadership implications
Erwin Schwella

Política social, governança e capacidade: reformas e restrições


do setor público
Social policy, governance and capacity: public sector reforms
and restraints 277
James Warner Björkman

Relação indivíduo e instituição total: socialização, controles e coesão


internos em uma organização policial 295
The individual-total institution relation: socialization, controls and
internal cohesion within a police organization
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro, Marcus Vinicius Gonçalves da Cruz e
Eduardo Cerqueira Batitucci

Ensaio: Interesse, ética e política no serviço público 309


Cicero Araujo

Ensaio: Cidadania e civilização tecnológica: a mudança de quadros


conceptuais em formação e educação 321
Joaquim Coelho Rosa

Entrevista: Serge Alecian e Dominique Foucher –


É preciso aprender a transgredir 331

Reportagem: A difícil arte de gerir pessoas 341

RSP Revisitada: O estudo da Administração – Woodrow Wilson 349

Para saber mais 367

Acontece na ENAP 368


Woodrow Wilson RSP

RSP Revisitada
O estudo da
Administração *

Texto publicado na RSP de Maio de 1946 (Ano 9, v. 2, n. 2)

Woodrow Wilson

Êste ensaio, publicado originàriamente em 1887 e reproduzido em 1941 na revista

norte-americana Political Science Quarterly, de onde, data venia, o transcrevemos, não tem,

como se verá, um mero valor histórico: a sua atualidade e significação permanecem imedia-

tas, como quando apareceu pela primeira vez, marcando a distinção teórica e prática entre

Administração e Política. Não fôsse pelo nome de seu autor e pelas referências agora injustas

e inexatas ao sistema administrativo dos Estados Unidos, poder-se-ia fàcil e razoávelmente

considerá-lo como de hoje, tão vivas e contundentes são as lições que encerra.

Nêle, Wilson, mais conhecido entre nós como Presidente e pacifista do que como notável
professor de Ciência Política, que o foi anteriormente, durante muitos anos, sintetiza a

evolução histórica e doutrinária da Ciência de Administração, suas condições e métodos,

para demonstrar, em conclusão, a necessidade de seu estudo e prática. A sua idéia funda-

mental, a tônica dominante, em consonância, aliás, com o nosso editorial de abril, é a da

importância da opinião pública na conduta da Administração, os justos limites de sua ação

e os benéficos resultados de sua influência.

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

Serve ainda êste ensaio de introdução a uma Govêrno e os mais altos objetivos fixados
série já programada de estudos sôbre a teoria e a ao Govêrno pela natureza humana, e os
prática da Administração, do ponto de vista propósitos dos homens. O centro da con-
universal, os quais publicaremos doravante trovérsia foi êste grande campo teórico
sistemáticamente, em cada número da Revista. Pelo em que a monarquia terçava armas com
cuidado na escolha e seriação dêsses estudos, assinados a democracia, em que a oligarquia cons-
por mestres e especialistas estrangeiros, estamos certos truiria para si bastiões de privilégio, e no
de ir ao encontro do interêsse geral de nossos leitores qual a tirania procurava oportunidade
e, em particular, dos candidatos a concursos que não para fazer valer suas exigências de sub-
tenham facilidade de acesso às fontes do conhecimento missão de todos os competidores. Den-
e experiência alienígenas (N.R.). tro dessa acessa guerra de princípios, a
Administração não poderia exigir uma
A Ciência da Administração é o mais pausa para que a considerassem. A ques-
recente fruto do estudo de Ciência Política, tão era sempre: quem deve fazer a lei e o
iniciado há cerca de dois mil e duzentos que deve ser essa lei? A outra questão –
anos atrás. É uma criação do nosso século, como a lei deve ser administrada sàbia-
quase de nossa própria geração. mente, com equidade e rapidez e sem atri-
Por que teria ela tardado tanto em to – era posta de lado como um “deta-
aparecer? Por que esperou pelo nosso tão lhe prático” que os amanuenses poderiam
preocupado século, para exigir atenção? A tratar depois que os doutores tivessem
Administração é a mais evidente parte do concordado sôbre os princípios.
Govêrno; é o Govêrno em ação; é o exe- Que a filosofia política tivesse tomado
cutivo, operante, o mais visível aspecto do esta direção não foi, naturalmente, nenhum
Govêrno, e, naturalmente, é tão antigo acidente, nenhuma preferência ocasional
quanto o próprio Govêmo. É o Govêrno do capricho perverso aos filósofos da
em ação, e seria natural esperar-se que o Política. A filosofia de qualquer tempo,
Govêrno em ação tivesse prendido a como diz Hegel, “não é senão o espírito
atenção e provocado o exame minucioso dêsse tempo expresso em pensamento
dos escritores de Política, muito cedo, na abstrato”; a filosofia política, como a
história do pensamento sistemático. filosofia de qualquer outra espécie, tem
Tal, porém, não foi o caso. Ninguém sòmente refletido os negócios contem-
escreveu sistemáticamente sôbre a porâneos. A dificuldade em tempos
Administração como um ramo da ciên- remotos era quase tôda a respeito da
cia do Govêrno até que o presente sécu- constituição do Govêrno; e, conseqüente-
lo tivesse amadurecido e começado a mente, era isso o que absorvia o pensa-
desabrochar as suas flores características mento dos homens. Pouca ou nenhuma
do conhecimento sistemático. Até os nos- dificuldade havia com respeito à Admi-
sos dias todos os autores de Política, que nistração, pelo menos pouco a que dessem
agora lemos, pensaram, discutiram e ouvido os administradores. As funções de
dogmatizaram sòmente a respeito da Govêrno eram simples porque simples era
constituição do Govêrno; sôbre a natu- a própria vida. O Govêrno agia impera-
reza do Estado, a essência e a origem da tivamente e compelia os homens, sem
soberania, poder popular e prerrogativa pensar em consultar os seus desejos. Não
real; sôbre o sentido imanente do havia nenhum sistema complexo de rendas

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Woodrow Wilson RSP

públicas e de dívidas públicas para desafiar exaustiva e sistemàticamente ajustadas a


a argúcia dos financistas; não havia, por diretivas cuidadosamente testadas, a razão
conseguinte, financistas a se preocuparem. por que estamos tendo agora o que jamais
Ninguém que tivesse poder ficava em tivemos antes – uma Ciência da Adminis-
dúvida, por muito tempo, em como usá- tração. Os mais importantes debates sôbre
lo. A grande e única questão era – quem princípios constitucionais ainda não estão
deverá possuí-lo? As populações eram de de modo algum, concluídos; mas êles já
números manipuláveis; a propriedade era não são de mais iminente atualidade prática
de espécie simples. Havia muitas fazendas, que as questões de Administração. Está se
mas não ações e debentures: mais gado tornando cada vez mais difícil administrar
que direitos adquiridos. uma Constituição do que elaborá-la.
Afirmei que tudo isto era verdade com Eis o modo pictoresco e singular
respeito aos “tempos antigos”; mas era como Bagehot descreve a diferença entre
verdade também, em substância, com o antigo e o moderno em Administração:
respeito a épocas relativamente recentes.
Não há necessidade de recuar-se o olhar Nos tempos antigos, quando um
além do último século para contemplar-se déspota desejava governar uma pro-
os primórdios das atuais complexidades de víncia distante, enviava um sátrapa num
comércio e as perplexidades da especula- grande cavalo e outras pessoas em
ção comercial, nem o prodigioso nascimento cavalos menores; e muito pouco se
das dívidas públicas. A boa rainha Elizabete, ouvia do sátrapa depois disso, a
sem dúvida, pensou que os monopólios do me- nos que êle enviasse de volta
século XVI eram bastante difíceis de mani- algumas das pessoas inferiores para
pular sem queimar-lhe as mãos; mas êles dizer o que êle estava fazendo.
não são lembrados na presença dos gigan- Nenhum grande trabalho de supe-
tescos monopólios do século XIX. Quan- rintendência era possível. O rumor
do Blackstone lamentou que as emprêsas público e um relatório casual eram as
não tivessem corpos para que se lhes desse únicas fontes de informação. Se parecia
um ponta-pé, nem espíritos a serem man- que a província estava em má situação,
dados ao inferno, estava êle antecipando de o sátrapa no 1 era demitido e o sátrapa
um século inteiro o tempo próprio para tais n o 2 era mandado em seu lugar. Nos
lamentos. As discórdias perenes entre países civilizados o processo é dife-
patrões e operários, que agora tão freqüen- rente. Monta-se um escritório na
temente perturbam a sociedade industrial, província que se quer governar; faz-se
começaram antes da Pêste Negra e do com que êle escreva cartas e copie
Estatuto dos Trabalhadores; mas nunca cartas; êle remete oito relatórios per diem
antes de nossos próprios dias assumiram ao escritório central em S. Petersburgo.
elas tão tremendas proporções como agora. Ninguém escritura uma importância na
Em suma, se as dificuldades da ação província sem que alguém escriture a
governamental são vislumbradas origi- mesma soma na capital, para “contro-
nando-se em outros séculos, vemo-las lá-lo”, verificando se o outro agiu
culminarem no século atual. corretamente. A conseqüência disso é
Esta é a razão por que as tarefas admi- jogar sôbre os chefes de departa-
nistrativas têm, em nossos dias, que ser tão mentos uma quantidade de leitura e

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

trabalho que só podem ser levados a como eu disse, não são senão algumas
efeito pela maior aptidão natural, o poucas das portas que agora estão sendo
mais eficiente treinamento, a mais abertas às repartições governamentais. A
firme e regular diligência1. idéia do Estado e o decorrente ideal de
seus deveres estão passando por transfor-
Difìcilmente haverá uma única tarefa mações dignas de nota; e “a idéia do
de Govêrno que tendo sido antes simples, Estado é a consciência da Administração”.
não se tenha tornada agora complexa; o Vendo-se cada dia novas coisas que o Estado
Govêrno antes não tinha senão poucos deve fazer, cabe-nos ver em seguida clara-
dirigentes; êle tem agora numerosos mente como deve êle fazê-las.
dirigentes. As maiorias antes sòmente Esta é a razão pela qual deve haver
sujeitavam-se ao Govêrno; elas agora con- uma Ciência da Administração que procure
duzem o Govêrno. Onde o Govêrno retificar as trilhas do Govêrno, tornar as
podia antes seguir os caprichos da côrte, suas opiniões mais eficientes, fortalecer e
deve agora seguir as opiniões da Nação. purificar sua organização e incutir em seus
E estas opiniões estão se abrindo deveres a devoção. Esta é uma razão por
ràpidamente a novas concepções do dever que há tal Ciência.
do Estado; de modo que, ao mesmo Mas onde cresceu esta Ciência? Com
tempo que as funções de Govêrno se certeza, não nêste lado do oceano. Poucos
tornam cada dia mais complexas e difíceis, métodos científicos e imparciais são
elas também se multiplicam vastamente. A discerníveis em nossas práticas adminis-
Administração está, por tôda a parte, pon- trativas. A envenenada atmosfera do
do as mãos em novos emprendimentos. Govêrno municipal, os segredos torpes da
A utilidade, a modicidade e o sucesso do administração estadual, a confusão, o sine-
serviço postal do Govêrno, por exemplo, curismo e a corrupção de quando em vez
indicam o pronto estabelecimento do descobertos nas repartições de Washington,
contrôle governamental sôbre o sistema te- impedem-nos acreditar que quaisquer
legráfico. Mesmo, porém que o nosso noções sôbre o que constitui uma boa
Govêrno não siga a orientação dos administração já sejam largamente correntes
Govêrnos da Europa, encampando ou nos Estados Unidos. Não, os autores ame-
construindo linhas telegráficas e ferroviárias, ricanos não tomaram até agora parte muito
ninguém duvida que, de algum modo, êle importante no avanço desta Ciência. Ela
deve se fazer dirigente de emprêsas achou seus doutores na Europa. Ela não é
influentes. A criação de comissões nacio- de nossa feitura; é uma ciência estrangeira,
nais de ferrovias, em adição às antigas pouco falando a língua do princípio inglês
comissões estaduais, envolve uma impor- ou americano. Ela emprega somente
tantíssima e delicada extensão de funções línguas estrangeiras; nada exprime senão o
administrativas. Qualquer que seja o grau que para nossos espíritos são idéias
de autoridade que os govêrnos federal e alienígenas. Seus propósitos, seus exem-
estadual venham a ter sôbre as emprêsas, plos, suas condições são quase exclusi-
decorrerão cuidados e responsabilidade a vamente calcados na história de raças
exigir não pouca sabedoria, conhecimento estrangeiras, nos precedentes de exemplos
e experiência. Tais coisas devem ser estu- estrangeiros, nas lições de revoluções
dadas de modo a serem bem feitas. E estas, estrangeiras. Foi desenvolvida por pro-

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fessores alemães e franceses e, em mudar com o tempo. Tem simplesmente


conseqüência, é em tôdas as suas partes, temperado a severidade da transição de
adaptada às necessidades de um Estado uma política de privilégio aristocrático a
compacto e feita sob medida para formas um sistema de poder democrático pelas
grandemente centralizadas de Govêrno; vagarosas medidas de reforma constitu-
enquanto para atender aos nossos propó- cional que, sem prevenir revoluções a tem
sitos, ela deve ser adaptada, não a um mantido nas veredas pacíficas. Mas os
simples e compacto, mas a um complexo países do continente, por um longo, tempo,
e multiforme Estado, e feita sob medida lutaram desesperadamente contra tôda a
para formas grandemente descentralizadas mudança, e teriam desviado a revolução
de Govêrno. Se formos empregá-la, atenuando as asperezas do Govêrno
devemos americanizá-la e, não só do absoluto. Êles procuraram aperfeiçoar a
ponto de vista formal, meramente na sua maquinária a ponto de destruir todos
linguagem, mas, radicalmente, em pensa- os conctatos irritantes, adoçando os seus
mento e princípio, tanto quanto em sua métodos com a consideração dos inte-
finalidade. Ela deve saber de cór as nossas rêsses dos governados, de modo a aplacar
Constituições, deve extirpar de suas veias todos os ódios obstrucionistas, e tão
a febre burocrática, deve aspirar muito do assídua e oportunamente oferecendo a sua
ar livre da América. ajuda a tôdas as classes de empreen-
Se alguma explicação deve ser pro- dimentos até tornarem-se indispensáveis
curada para o fato de que uma ciência aos diligentes. Deram, por fim, ao povo
evidentemente tão suscetível de ser tornada Constituições e franquias; mas mesmo
útil a todos os govêrnos igualmente, tenha depois disso êles se permitiram continuar
no entanto recebido em primeiro lugar a despóticos, tornando-se paternais. Torna-
atenção na Europa, onde o Govêrno tem ram-se demasiado eficientes para poderem
sido, de longa data, um monopólio, antes ser dispensados, demasiado esclarecidos
do que na Inglaterra ou nos Estados para serem questionados desavisadamente,
Unidos, onde o Govêrno tem sido, há demasiado benevolentes para serem
muito, uma franquia comum, achar-se-á suspeitados, demasiado poderosos para
que a razão disso será, sem dúvida, de dupla serem enfrentados. Tudo isto demandou
espécie: primeiro, que na Europa, justa- estudo e êles estudaram-no ìntimamente.
mente porque o Govêrno era inde- Dêste lado do oceano nós, enquanto
pendente do consentimento popular, havia isso, não conhecemos grandes dificuldades
muito mais que governar; e, segundo, que de Govêrno. Com um país novo, no qual
o desejo de manter o Govêrno um havia espaço, emprêgo remunerativo para
monopólio tornou os monopolistas todo o mundo, com princípios liberais de
interessados em descobrir os meios menos Govêrno e habilidade ilimitada na política
irritantes de governar . Êles eram, além prática, estivemos nós, por longo tempo,
disso, em número suficientemente reduzido isentos da necessidade de ser ansiosamente
para adotar tais meios prontamente. cuidadosos sôbre planos e métodos de
Será instrutivo considerar esta matéria administração. Temos sido naturalmente
um pouco mais de perto. Ao falar de tardos em perceber o uso ou a significação
govêrnos europeus, não incluo, é claro, a dêsses muitos volumes de pesquisa erudita
Inglaterra. Ela não se tem recusado a e exame minucioso sôbre os modos e

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

meios de conduzir o Govêrno, que as modernos de esclarecimento político, nos


editoras da Europa têm enviado às nossas quais tornou-se evidente a todos, exceto
bibliotecas. Como uma criança cheia de aos cegos, que os governantes não são
vida, o Govêrno entre nós desenvolveu a pròpriamente senão os servidores dos
sua natureza e cresceu em estatura, mas governados. Em tais Govêrnos a Adminis-
também tornou-se desajeitado de movi- tração tem sido organizada para servir ao
mentos. O vigor e o crescimento em sua bem estar geral, com a simplicidade e o
vida têm sido completamente despropor- sucesso sòmente assegurados aos em-
cionais à sua habilidade em viver. Tem preendimentos de uma vontade unipessoal.
ganho fôrça mas não adquiriu porte. Tal foi o caso na Prússia, por exemplo,
Grande, portanto, como tem sido a nossa onde a Administração tem sido estudada,
vantagem sôbre os países da Europa e mais aperfeiçoada. Frederico, o Grande,
quanto à facilidade e saúde do desenvol- austero e magistral como foi seu Govêrno,
vimento constitucional, agora que nos sinceramente confessava entretanto, consi-
chegou o tempo para mais cuidadosos derar-se sòmente como primeiro dos
ajustamentos administrativos e, maiores servidores do Estado, reputando seu alto
conhecimentos de administração, estamos cargo como um mandato da confiança
em evidente desvantagem em relação às pública; e foi êle quem, construindo sôbre
nações transatlânticas; e isso por motivos os fundamento lançados por seu pai,
que eu tentarei esclarecer. começou a organizar o serviço público da
A julgar pelas histórias constitucionais Prússia, como sendo, em verdade, um
das principais nações do mundo moderno, serviço do público. Seu sucessor, não
pode-se dizer ter havido três períodos de menos absoluto, Frederico Guilherme III,
crescimento através dos quais o Govêrno sob a inspiração de Stein, ainda por sua
passou em todos os mais desenvolvidos vez avançou o trabalho mais longe, plane-
dos sistemas existentes, e através dos quais jando muitos dos aspectos estruturais mais
êle promete passar em todos os restantes largos que deram firmeza e forma à admi-
sistemas. O primeiro dêsses períodos é o nistração prussiana de hoje. Quase todo o
dos governantes absolutos e de um sistema conjunto dêsse sistema admirável tem sido
administrativo adaptado ao Govêrno desenvolvido por iniciativa real.
absoluto; o segundo, é aquele em que as De origem semelhante foi a prática,
constituições são elaboradas de modo a senão o plano da moderna Administração
afastar os Govêrnos absolutos e substituí- francesa, com as suas simétricas divisões
los pelo contrôle popular, e no qual a de território e suas ordenadas graduações
Administração é negligenciada em favor administrativas. Os dias da Revolução –
dessas preocupações mais altas; e o terceiro, da Assembléia Constituinte – foram dias
é aquele em que o povo soberano de redação-constitucional mas difìcilmente
empreende o aperfeiçoamento da Admi- poderão ser chamados de dias de elabo-
nistração, sob essa nova Constituição que ração-constitucional. A Revolução anunciou
o levou ao poder. um período de desenvolvimento constitu-
Êsses Govêrnos, que estão agora à cional, – a entrada da França no segundo
frente em prática administrativa, tinham daqueles períodos que enumerei, – mas ela
dirigentes ainda absolutos mas também própria não inaugurou tal período. Ela
esclarecidos quando chegaram êstes dias interrompeu e destronou o absolutismo

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mas não o destruiu. Napoleão sucedeu aos Magna Carta, as reformas administrativas
monarcas de França, para exercer um e legais começaram a ser executadas com
poder tão irrestrito como êles jamais senso e vigor sob o impulso do esperto,
possuíram. ativo, empreendedor e indómito espírito
A remodelação da Administração e propósito de Henrique II; e a iniciativa
francesa por Napoleão é, por conseguinte, real parecia destinada, na Inglaterra, como
meu segundo exemplo do aperfeiçoa- alhures a informar, à sua vontade, o
mento da maquinária civil pela vontade crescimento governamental. Mas o impul-
unipessoal de um governante absoluto, sivo e excêntrico Ricardo e o fraco e
antes do despontar da era constitucional. desprezível João não eram os homens para
Nenhuma vontade popular corporificada levarem a efeito tais planos como os de
poderia jamais ter efetuado transfor- seu pai. O desenvolvimento administrativo
mações como as que Napoleão dirigiu. deu lugar, em seus reinados, a lutas consti-
Disposições tão simples em prejuízo do tucionais; e o Parlamento tornou-se rei
preconceito local, tão lógicas em sua indi- antes que qualquer monarca inglês tivesse
ferença à escolha popular, poderiam ter tido o gênio prático ou a consciência
sido decretadas por uma Assembléia esclarecida para conceber justas e dura-
Constituinte, mas sòmente poderiam ter douras formas para a vida civil do Estado.
sido postas em prática pela autoridade A raça inglesa, conseqüentemente, tem
ilimitada de um déspota. O sistema do por muito tempo estudado com sucesso a
Ano VIII foi impiedosamente completo e arte de refrear o Poder Executivo, com
de uma perfeição sem entranhas. Foi, ainda, negligência constante da arte de aperfeiçoar
em grande parte um retorno ao despo- os métodos executivos. Ela se tem exerci-
tismo que havia sido derrubado. tado muito mais em controlar do que em
Entre essas nações, de outro lado, que ativar o Govêrno. Tem-se preocupado
entraram numa fase de elaboração consti- muito mais em tornar o Govêrno justo e
tucional e reforma popular, antes que a moderado, do que fazê-lo fácil, bem
administração tivesse recebido o cunho do ordenado e eficaz. A história política inglesa
princípio liberal, o aperfeiçoamento e americana tem sido uma história não de
administrativo tem sido tardio e de meias progresso administrativo, mas de supervisão
medidas. Uma vez que uma nação se legislativa, – não de progresso na
empenhe na atividade de manufaturar organização governamental mas de avanço
Constituições, ela achará extremamente na elaboração legislativa e crítica política.
difícil encerrar esta atividade e abrir ao Conseqüentemente, atingimos uma época
público um escritório de administração em que o estudo e a criação administrativa
hábil e econômica. Parece não haver fim são imperativamente necessários ao bem
no remendar de Constituições. A Consti- estar de nossos governos, peiados pelos
tuição ordinária difìcilmente durará dez hábitos de um longo período de elaboração
anos sem reparos ou adições; e o tempo constitucional. Êsse período está pràti-
para o detalhe administrativo vem tarde. camente encerrado, no que diz respeito ao
Aqui, naturalmente, nossos exemplos estabelecimento de princípios essenciais, mas
são a Inglaterra e o nosso próprio país. não podemos dissipar a sua atmosfera.
Nos dias dos reis d’Anjou, antes que a vida Prosseguimos criticando, quando deve-
constitucional tivesse tomado raízes na ríamos estar criando. Alcançamos o terceiro

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dos períodos por mim mencionados, – o embaraça. Entronizamos a opinião


período, a saber, quando o povo tem que pública; e nos é vedado esperar durante o
desenvolver a Administração de acôrdo seu reinado por qualquer rápida apren-
com as Constituições que êles conquistaram dizagem do soberano em perícia executiva
para si, numa época anterior de luta com o ou nas condições de perfeito equilíbrio
poder absoluto; mas não estamos ainda funcional no Govêrno. O fato mesmo de
preparados para as tarefas do novo período. que realizamos o Govêrno popular em sua
Essa explicação parece ser a única totalidade, tornou a tarefa de organizar êsse
alternativa ao espanto total frente ao fato Govêrno tanto mais difícil. De modo a
de que, a despeito de nossas imensas vanta- realizar qualquer avanço, devemos instruir
gens em matéria de liberdade política, e e persuadir um monarca múltiplo cha-
acima de tudo no que diz respeito à habi- mado opinião pública, – um empreendi-
lidade política prática e sagacidade, tantas mento muito menos praticável do que
nações estão a nossa frente em organização influenciar um único monarca denominado
administrativa e capacidade de adminis- rei. Um soberano individual adotará um
tração. Por que, por exemplo, só agora simples plano e o executará diretamente:
começamos a purificar um Serviço Público não terá senão uma opinião e concretizará
que êsteve apodrecido nos últimos essa opinião em uma ordem. Mas êsse
cinqüenta anos? Dizer que a escravidão outro soberano, o povo, terá dezenas de
desviou-nos, não é senão repetir o que eu opiniões diferentes. Não podem concordar
disse – que as falhas, em nossa Consti- sôbre nada simples: o avanço deve ser feito
tuição, nos retardaram. por meio de concessões, por uma conci-
Sem dúvida tôda a preferência razoável liação de divergências, por uma poda de
se manifestaria por êsse rumo político planos e uma supressão de princípios
inglês e americano, antes do que o de qual- demasiado rígidos. Haverá uma sucessão
quer outro país europeu. Não gostaríamos de resoluções transcorrendo através de
de ter tido a história da Prússia para que anos, uma descarga intermitente de ordens
tivéssemos a habilidade administrativa da através de uma escala completa de
Prússia; e o peculiar sistema de adminis- modificações.
tração da Prússia nos sufocaria. É melhor Em Govêrno, como em virtude, a
ser destreinado e 1ivre do que ser servil e mais difícil das coisas difíceis, é progredir.
sistemático. Contudo, não há que negar que Antigamente, a razão disso era que o indi-
seria ainda melhor ser, ao mesmo tempo, víduo que fôsse soberano era, em geral,
livre em espírito e proficiente na prática. É ou egoísta, ignorante, tímido ou um tolo,
esta preferência, ainda mais razoável, que – embora, de quando em vez, houvêsse
nos impele à descoberta do que pode haver alguém que fôsse sábio. Atualmente a ra-
que nos embarace ou atrase em naturalizar zão é que os muitos, o povo, que são so-
esta tão desejável Ciência da Administração. beranos, não têm um único ouvido do qual
Que há, então, que a isso impede? alguém possa aproximar-se e são egoístas,
A soberania popular, principalmente. ignorantes, tímidos, teimosos ou tolos,
É mais difícil para a democracia organizar com o egoísmo, a ignorância, a teimosia, a
a Administração, do que para a monar- timidês ou as tolices de diversos milhares
quia. A própria extensão dos nossos mais de pessoas – embora haja centenas que são
caros sucessos políticos no passado nos sábios. Noutro tempo, a vantagem do

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reformador era que o espírito do soberano a posse é uma presunção de legalidade. É


tinha uma localização definida, que era quase impossível removê-las. Instituições
contida na cabeça de um homem, e que que uma geração considera tão sòmente
conseqüentemente poderia ser alcançada; como uma aproximação temporária à
ainda que fôsse uma desvantagem que tal realização de um princípio, a próxima
espírito aprendesse sòmente com relutância geração honra como a maior aproximação
ou em pequenas quantidades, ou que possível a êsse princípio, e a seguinte adora-
estivesse sob a influência de alguém que só as como o próprio princípio. Raramente
o deixasse aprender as coisas erradas. são precisas três gerações para a apoteose.
Agora, ao contrário, o reformador fica O neto aceita a experiência hesitante de seu
atônito pelo fato de que o espírito do avô como uma parte integrante da consti-
soberano não tem uma localização defi- tuição fixa da natureza.
nida, mas é contido em uma maioria Mesmo se tivéssemos uma percepção
eleitoral de alguns milhões de cabeças; e clara de todo o passado político, e pudés-
embaraçado pelo fato de que o espírito semos formar de algumas cabeças perfei-
dêsse soberano também está sob a tamente instruídas umas poucas máximas
influência de favoritos, que não são, entre- de Govêrno, constantes infalíveis, serenas
tanto, favoritos no bom e antigo sentido e sábias, nas quais tôda a boa doutrina
da palavra, porque não são pessoas, mas política se resumisse, em última análise,
opiniões preconcebidas; isto é, preconceitos agiria o país na base dessas máximas? Esta
com os quais não se pode racionar porque é a questão. A grande massa da humani-
não são filhos da razão. dade é rìgidamente afilosófica, e nos dias
Em qualquer parte onde o respeito de hoje a grande massa da humanidade
pela opinião pública é o primeiro princípio vota. Uma verdade deve-se tornar, não
de Govêrno, as reformas práticas devem sòmente simples mas, também, lugar
ser lentas e tôdas as reformas devem ser comum antes que ela seja vista pelo povo
cheias de concessões. Pois que, em qualquer que vai para o trabalho muito cedo de
parte onde a opinião pública existe, ela deve manhã; e o seu desconhecimento como
governar. Isto é agora um axioma na norma de ação deverá provocar grandes
metade do mundo, e cedo virá a ser e contundentes inconveniências antes que
acreditado mesmo na Rússia. Quem quer essas mesmas pessoas se decidam a
que efetue uma mudança num Govêrno obedecê-las.
constitucional moderno deve primeiro E onde esta afilosófica massa da
educar seus concidadãos a quererem humanidade é mais multiforme em sua
alguma mudança. Isto feito, deve persua- composição do que nos Estados Unidos?
di-los a quererem esta determinada Para conhecer o espírito do povo dêste País,
mudança que êle quer. Deve primeiro fazer deve-se conhecer o espírito não sòmente
com que a opinião pública êsteja disposta dos americanos de origens mais antigas, mas
a ouvir e, então, fazer com que ela ouça as também de irlandeses, alemães e de negros.
coisas certas. Êle deve incitar a busca de De modo a obter uma base para a nova
uma opinião e então agir de modo a doutrina, tem-se que influenciar espíritos
colocar a opinião certa em seu caminho. formados em todos os moldes raciais, es-
O primeiro passo não é menos difícil píritos que herdaram todos os preconceitos
do que o segundo. Em matéria de opiniões, do meio ambiente, urdidos pelas histórias

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de muitas nações diferentes, aquecidos ou preparação de espírito para o que se deve


esfriados, retraídos ou expandidos por quase seguir. Ela está limpando a atmosfera moral
todos os climas do globo. da vida oficial pelo estabelecimento da
É o que basta dizer sôbre a história santidade do Serviço Público como uma
do estudo da Administração e as condi- responsabilidade cívica, e tornando o
ções peculiarmente difíceis sob as quais, serviço sem faccionismo político, está abrin-
quando a isso resolvermos, teremos que do caminho à assemelhação com os
empreendê-lo. Vejamos agora qual é a serviços de iniciativa privada. Serenando os
matéria dêsse estudo e quais os seus seus estímulos, torna-o capaz de aperfeiçoar
objetivos característicos. seus métodos de trabalho.
Seja-me permitido ampliar um pouco
II o que eu disse sôbre o campo da Admi-
O campo da Administração é um nistração. O mais importante a ser obser-
campo de atividades apolíticas. Êle está vado é a verdade já tantas vezes e com
afastado da pressa e lutas da política; sob tanto sucesso reiterada pelos nossos
alguns aspectos mesmo êle se mantém reformadores do serviço público; a saber:
afastado do controvertido terreno do que a Administração está fora da esfera
estudo constitucional. É uma parte da vida própria da política. As questões adminis-
política sòmente na medida em que os trativas não são questões políticas. Embora
métodos do escritório comercial são uma a política determine as tarefas para a
parte da vida social; sòmente como a administração, não se deve tolerar que ela
máquina é parte do produto manufatu- maneje as suas repartições.
rado. Mas, ao mesmo tempo, êle se eleva Esta é uma distinção altamente auto-
muito acima do nível enfadonho do mero rizada e nela eminentes autores alemães
detalhe técnico pelo fato de que, através de insistem, como ponto pacífico. Bluntschili,
seus maiores princípios, êle se liga direta- por exemplo, nos leva a separar a Admi-
mente às máximas duradouras da sabedoria nistração tanto da Política quanto do
política, às verdades permanentes do Direito. A Política, diz êle, é a atividade do
progresso político. Estado “nas coisas grandes e universais”
O objeto do estudo administrativo é enquanto que “a Administração, por outro
salvar os métodos executivos da confusão lado”, é “a atividade do Estado nas coisas
e do alto prêço da experiência empírica, pequenas e individualizadas. A Política é
alicerçando-os profundamente em sólidos assim campo específico do estadista, a
princípios. Administração, do funcionário técnico”. “A
É por esta razão que devemos con- elaboração de diretrizes políticas não pres-
siderar a reforma do Serviço Público Civil, cinde da ajuda da Administração”; mas
em sua fase atual, como um simples prelúdio nem por isso a Administração é Política.
a uma reforma administrativa mais Não necessitamos, porém, de invocar a
completa. Estamos agora retificando autoridade alemã para esposar essa opinião;
formas de nomeação; devemos prosseguir tal discriminação entre Administração e
para melhor ajustar as funções executivas e Política é agora felizmente mais que
prescrever melhores métodos de ação e evidente para necessitar de maior discussão.
organização do Executivo. A reforma do Há uma outra distinção em que se
Serviço Público não é, assim, senão uma apóiam tôdas as nossas conclusões, a qual,

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embora não seja senão um outro aspecto liberdade. Mas, pensando bem, mesmo
da distinção entre a Administração e a isso será verdade? A liberdade não consiste
Política, não é tão fácil de ser mantida à vista: mais na facilidade de movimento funcional
quero dizer, a distinção entre questões que a inteligência consiste na facilidade e
constitucionais e administrativas, entre essas vigor com que se movimentam os mem-
disposições governamentais que são bros inferiores e superiores de um homem
essenciais ao princípio constitucional e aquelas forte. Os princípios que governam interior-
que são meramente instrumentais aos mente o homem, ou a constituição, são as
objetivos, possivelmente mutáveis, de uma molas vitais da liberdade ou da servidão.
conveniência inteligentemente adaptável. Porque a dependência e a sujeição não
Não se pode fàcilmente tornar claro, tenham algemas, aliviadas que sejam por
a todos, onde se localiza a Administração todos os arranjos praticáveis de um
nos vários departamentos do Govêrno, Govêrno refletido e paternal, não quer
sem entrar sôbre particularidades tão dizer que se transformem por isso em
numerosas a ponto de confundir e liberdade. A liberdade não pode viver à
distinções tão minuciosas que desorien- parte do princípio constitucional; e nenhu-
tariam. Nenhuma linha de demarcação, ma Administração, por mais perfeitos e
separando as funções administrativas das liberais que sejam os seus métodos, poderá
não-administrativas, pode ser traçada, entre dar aos homens mais do que uma grosseira
êste e aquêle departamento governamental, imitação de liberdade, se ela assenta em
sem altos e baixos, sôbre alturas vertiginosas princípios antiliberais de Govêrno.
de distinção e através de densas florestas Uma visão nítida da diferença entre o
de elaboração estatutária, para lá e para cá campo do Direito Constitucional e o da
em volta de “se” e “mas”, “quando” e função administrativa não deve dar lugar
“entretanto”, até que elas se perdem à concepção errônea; e é possível citar
completamente aos olhos desacostumados alguns critérios mais ou menos definidos
a esta espécie de demarcação, e, conseqüen- sôbre os quais pode ser obtida tal visão. A
temente, não familiarizados com o uso do Administração Pública é a execução deta-
teodolito do discernimento lógico. Grande lhada e sistemática do Direito Público.
parte de administração realiza-se incógnita Tôda a aplicação particular de lei geral é
para a maior parte do mundo, sendo um ato de administração. O lançamento e
confundida ora com “direção” política, ora a cobrança de impostos, por exemplo, o
com princípio constitucional. enforcamento de um criminoso, o trans-
Talvez essa facilidade de confusão porte e a entrega de malas postais, o
explique afirmações como as de Niebuhr: equipamento e o recrutamento do Exército
“A liberdade depende incomparàvelmente e da Marinha, etc., são todos, evidente-
mais da Administração do que da Consti- mente, atos de administração; mas as leis
tuição”. À primeira vista, isso parece ser, gerais que obrigam a fazer essas coisas
em grande parte, verdadeiro. Aparente- estão, obviamente, fora e acima da Admi-
mente, a facilidade no exercício real da nistração. Os largos planos de ação gover-
liberdade depende mais de disposições namental não são administrativos; a sua
administrativas do que de garantias cons- execução detalhada é administrativa. As
titucionais; embora sòmente as garantias Constituições, portanto, só dizem respeito,
constitucionais assegurem a existência de pròpriamente, a esses instrumentos de

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Govêrno que se relacionam com a lei geral. importância, talvez, sob um sistema demo-
A nossa Constituição Federal observa êste crático, onde os funcionários servem a
princípio, silenciando até mesmo sôbre os muitos dirigentes, do que sob outros siste-
maiores órgãos puramente executivos, fa- mas onde êles servem a poucos. Todos os
lando sòmente do Presidente da União que soberanos suspeitam de seus servidores, e
deveria compartilhar das funções legis- o povo soberano não é exceção à regra;
lativas e normativas de Govêrno; sòmente mas como poderá a sua suspeita ser
dos juízes de mais alto grau, a quem caberia afastada pelo conhecimento? Se essa descon-
interpretar e velar pela observância dos seus fiança pudesse ser pelo menos depurada
princípios, e não daquêles que deveriam, numa sábia vigilância, seria de todo salutar;
simplesmente, afirmá-los. se esta vigilância pudesse ser ajudada pela
Esta não é, exatamente, uma distinção inequívoca atribuição de responsabilidade,
entre Vontade e Ato correspondente, pois seria de todo benéfico. A suspeita, em si
o administrador deve ter e tem uma vonta- mesma, jamais é saudável, quer no espírito
de própria na escolha dos meios para efetuar particular quanto no público. A confiança
o seu trabalho. Ela não é nem deve ser um faz a força em tôdas as relações da vida; e,
mero instrumento passivo. A distinção é como compete ao reformador constitu-
entre planos gerais e meios específicos. cional criar condições de confiança, assim
Há, de fato, um ponto no qual os também compete ao organizador admi-
estudos administrativos invadem o terreno nistrativo revestir a Administração de
constitucional, ou, pelo menos, o que condições de responsabilidade determi-
parece ser terreno constitucional. O estudo nada, que inspirem confiança.
da Administração, visto filosoficamente, é E seja-me lícito dizer que poderes latos
estreitamente relacionado com o estudo da e discrição inconstrastada parecem-me as
distribuição adequada da autoridade condições indispensáveis de responsabi-
constitucional. Para ser eficiente deve êle lidade. A atenção pública deve ser dirigida,
descobrir os meios mais simples pelos quais fàcilmente, no caso de boa ou má admi-
a responsabilidade possa ser inequivo- nistração, para o homem merecedor de
camente atribuída aos funcionários; a elogio ou condenação. Não há perigo no
melhor maneira de dividir a autoridade poder, desde que êle não seja irresponsável.
sem prejudicá-la, e a responsabilidade, sem Se êle for dividido, entregue em parcelas a
obscurecê-la. E esta questão da distribuição muitos, se obscurece; e se for obscurecido,
de autoridade, quando levada à esfera das é tornado irresponsável. Mas se êle for
mais altas e originárias funções de localizado em chefes de departamentos e
Govêrno, é obviamente uma questão de divisões, é fàcilmente observado e
central de Direito Constitucional. Se o responsabilizado. Se para manter o seu
estudo administrativo puder descobrir os cargo deve um homem alcançar franco e
melhores princípios sôbre os quais basear honesto sucesso, e se ao mesmo tempo
tal distribuição, terá êle prestado ao estudo sente que lhe foi confiada uma larga
constitucional um serviço incalculável. discrição, quanto maior o seu poder menos
Montesquieu não disse, estou certo, a última provável será que dêle abuse, mais é forti-
palavra a êste respeito. ficado, moderado e elevado por êle.
Descobrir o melhor princípio para a Quanto menor o seu poder, mais obscura-
distribuição de autoridade é de maior mente seguro e desapercebido sente-se êle

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em seu cargo, e mais prontamente cai no atenta e francamente disposta a prepon-


relaxamento. derar de qualquer modo. É algo patético
Justamente aqui emergimos, manifes- ver um livro inteiro escrito por um pro-
tamente, no campo dessa questão ainda fessor alemão de Ciência Política para dizer
maior – as relações próprias entre a opinião aos seus concidadãos: “Por favor, pro-
pública e a Administração. curem ter uma opinião sôbre os assuntos
A quem deve a fidelidade oficial se nacionais”; mas de um público tão
revelar, e por quem deve ela ser recompen- modesto pode-se ao menos esperar que
sada? Deve o funcionário esperar elogio e seja muito dócil e solícito em aprender
promoção do público ou sòmente de seu quais as coisas sôbre que não tem o direito
superior hierárquico? Deve o povo ser de pensar e falar imperativamente. Êle
chamado a estabelecer a disciplina admi- pode ser apático, mas não será metediço.
nistrativa como é chamado a estabelecer Deixar-se-á instruir, de preferência a tentar
princípios constitucionais? Estas questões instruir. Sua educação política virá antes de
evidentemente encontram suas raízes no que sua atividade política. Ao tentar instruir
é, sem dúvida; o problema fundamental de nossa própria opinião pública, estamos
todo êste estudo. Tal problema é o seguinte: tratando com um aluno disposto a consi-
que parte deve ter a opinião pública na derar-se prévia e suficientemente instruído.
conduta da Administração? O problema é tornar a opinião públi-
A resposta correta parece ser a de que ca eficaz, sem permiti-la ser metediça.
a opinião pública deve desempenhar o Exercendo-se diretamente na supervisão
papel de crítico autorizado. dos detalhes de todo o dia e na escolha
Mas qual o método por que sua autori- dos meios cotidianos de Govêrno, a críti-
dade se manifestará? A dificuldade peculiar ca pública é naturalmente uma interferên-
a nós, americanos, em organizar a Admi- cia despropositada, um manejo rústico de
nistração, não é o perigo de perdermos a uma maquinaria delicada. Mas superin-
liberdade, mas o perigo de não sermos tendendo as forças maiores da elaboração
capazes ou de não querermos separar o de diretrizes, tanto em Política quanto em
que lhe é essencial do acessório. Nosso Administração, a crítica pública é ao mes-
sucesso torna-se duvidoso por êste nosso mo tempo segura e benéfica, e de todo
êrro constante, o êrro de tentar fazer indispensável. Deixai que o estudo admi-
demasiado pelo voto. Govêrno autôno- nistrativo encontre os melhores meios para
mo não consiste em ingerir-se em tudo, dar à opinião pública êste contrôle e para
assim como administração doméstica não impedi-la de tôdas as outras interferências.
consiste, necessàriamente, em cozinhar com Mas será a tarefa do estudo adminis-
as próprias mãos. À cozinheira deve ser trativo sòmente a de ensinar o povo qual a
confiada uma larga discrição no manejo espécie de Administração a desejar e exigir,
do forno e do fogão. e como obter o que exigir? Não deverá
Nos países em que a opinião pública êle ir além, exercitando candidatos para o
está ainda por ser instruída em seus privi- Serviço Público?
légios, ainda por acostumar-se a prevalecer, Há, agora, em marcha neste País, um
a questão concernente ao campo da admirável movimento em prol da edu-
opinião pública se resolve mais pronta- cação política universal. Cedo virá o tempo
mente do que neste País, onde a opinião é em que nenhum colégio idôneo se

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

permitirá prescindir de um bom cate- espírito livre, e com corações restritos à


drático de Ciência Política. Mas a educação mesquinhez de um oficialismo fanático. Tal
assim dada não irá senão até uma certa classe, certamente, seria de todo odiosa e
extensão. Ela multiplicará o número de prejudicial nos Estados Unidos. Quaisquer
críticos inteligentes do Govêrno, mas não medidas tendentes a produzi-la seriam
criará um corpo competente de adminis- para nós medidas de reação e desatino.
tradores. Preparará o caminho para o Mas temer a criação de um oficialismo
desenvolvimento de uma compreensão dominador e antiliberal, como resultado
bem fundamentada dos princípios gerais dos estudos que estou aqui propondo, é
de Govêrno, mas não incrementará desaperceber completamente o princípio
necessariamente a habilidade em conduzir sôbre o qual eu mais desejo insistir. Êsse
o Govêrno. É uma educação que prepa- princípio é que a Administração nos
rará legisladores, talvez, mas não funcio- Estados Unidos deve ser, em todos os
nários executivos. Se tivermos que pontos, sensível à opinião pública. Um
aperfeiçoar a opinião pública, que é a força corpo de funcionários bem treinados,
motriz do Govêrno, devemos preparar mantidos enquanto bem servirem, deve-
melhores funcionários como o aparelho mos tê-lo em qualquer caso: é uma questão
do Govêrno. Se tivermos que colocar de pura e simples necessidade funcional.
novas caldeiras e reparar as fornalhas que Mas o receio de que tal corpo se torne
movimentam a nossa máquina governa- algo anti-americano esvai-se no instante em
mental, não devemos deixar que as velhas que se pergunta – que é bem servir? Pois
rodas, engrenagens e válvulas continuem que essa questão tem em si mesma estam-
chiando, buzinando e chocalhando como pada a sua própria resposta. Firme e sincera
melhor puderem, ao sabor da nova fôrça. obediência à orientação do Govêrno a que
Devemos colocar acessórios novos onde servem será bem servir. Essa orientação não
quer que haja a menor falta de resistência terá em si nenhuma mancha de oficialismo.
ou de ajustamento. Será necessário Ela não será criação de funcionários
organizar a democracia enviando aos permanentes, mas de estadistas cuja
concursos para o Serviço Público homens responsabilidade para com a opinião
perfeitamente preparados a enfrentar pública será direta e inevitável. Burocracia
exames sôbre conhecimentos técnicos. Um só pode existir onde o serviço inteiro do
funcionalismo público técnicamente Estado é afastado da vida política comum
instruído, cedo tornar-se-á indispensável. do povo, tanto os chefes quanto o pessoal
Eu sei que um corpo de servidores subordinado. Seus motivos, propósitos,
civis preparado por uma educação especial orientação, sua tábua de valores devem ser
e transformado pelo exercício, após a burocráticos. Será difícil apontar exemplos
nomeação, em uma perfeita organização, de impudente exclusivismo e arbitrarie-
com uma hierarquia apropriada e disciplina dade da parte de funcionários servindo sob
característica, parece, a muitas pessoas de um chefe de repartição que realmente tenha
reflexão, conter elementos que se poderiam servido ao público, como todos os nossos
combinar na criação de uma agressiva chefes de repartição devem ser levados a
classe oficial, – um corpo distinto, proceder. Seria fácil, por outro lado, aduzir
semicorporativo, com simpatias divor- outros exemplos como os da influência da
ciadas das de um povo progressista e de Stein na Prússia, onde a liderança de um

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estadista imbuído de verdadeiro espírito O Estado democrático está ainda por ser
público transformou repartições arro- aparelhado para carregar êssas enormes
gantes e formais em instrumentos cívicos cargas, que as necessidades de nossa era
de um Govêrno justo. industrial e comercial estão acumulando tão
O ideal para nós é um funcionalismo ràpidamente. Sem estudos comparativos
civil bastante culto e auto-suficiente para agir sôbre Govêrno, não nos podemos livrar
com senso e vigor, e, todavia, tão intima- da errônea suposição de que a Adminis-
mente ligado ao pensamento popular, por tração tem num Estado democrático bases
meio de eleições e constante orientação essencialmente diferentes daquelas sôbre que
pública, a ponto de achar inadmissíveis a assenta em um Estado não-democrático.
arbitrariedade e o espírito de classe. Depois de tal estudo, poderíamos
conceder à democracia à honra de decidir,
III em última instância, pelo debate, tôdas as
Tendo assim visto, de certo modo, a questões essenciais que afetem o bem
matéria e os objetivos do estudo da público, de basear tôda a estrutura da
Administração, que devemos concluir direção política sôbre a vontade da
quanto aos métodos mais adequados, os maioria; mas não teríamos encontrado
pontos de vista mais vantajosos a êle? senão uma regra única de boa adminis-
O Govêrno é tão próximo de nós, tração para todos os Govêrnos igualmente.
uma coisa tanto de nosso trato familiar e No que diz respeito a funções administra-
cotidiano, que só com dificuldade pode- tivas, todos os Govêrnos têm uma forte
mos perceber a necessidade de qualquer semelhança estrutural; mais do que isso, se
estudo filosófico sôbre êle, ou o sentido quiserem ser uniformemente úteis e
exato de tal estudo, se tiver que ser eficientes, devem ter uma forte semelhança
empreendido. Temos andado com as estrutural. Um homem livre tem os
nossas próprias pernas por um tempo mesmos órgãos, vísceras e membros que
demasiado longo para aprender agora a o escravo, por mais diferentes que sejam
arte de andar. Somos um povo prático, os seus propósitos, seus serviços, suas
tornado tão apto, tão versado em auto- energias. Monarquias e democracias, radi-
govêrno, por séculos de exercício expe- calmente diferentes como são sob outros
rimental, que difìcilmente seremos capazes aspectos, têm, na realidade, muito da
de perceber o que há de desajeitado em mesma atividade a desempenhar.
determinado sistema que estivermos Há abundantes razões para não temer,
usando, justamente porque é tão fácil para nos dias de hoje, a insistência sôbre essa
nós usar qualquer sistema. Não estudamos semelhança real de todos os Govêrnos,
a arte de governar: governamos. O simples porquanto estes são dias em que os abusos
talento inculto para negócios não nos de poder são facilmente expostos e
poupará de tristes cincadas em Adminis- detidos, em países como o nosso, por um
tração. Apesar de democratas por heredi- audaz, alerta, curioso e observador espírito
tariedade e reiterada preferência, somos popular e um indefectível senso de
ainda democratas um tanto crus. Por mais independência, que o povo tem, agora,
antiga que seja a democracia, sua organi- como jamais o teve antes. Somos tardos
zação na base de idéias e condições em reconhecer isso; mas é fácil reconhecê-
modernas é ainda um trabalho incompleto. lo. Tente-se imaginar um Govêrno pessoal

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

nos Estados Unidos. É como tentar compreensível. Mas êle difìcilmente seria
imaginar uma adoração nacional de Zeus. evitado em qualquer outro grupo.
Nossas imaginações são demasiado É tanto mais necessário insistir sôbre
modernas para tal façanha. o abandono, dêsse modo, do preconceito
Mas, além de não ser perigoso, é contra a procura de sugestões em qualquer
necessário perceber que, para todos os parte do mundo, exceto na terra natal,
Govêrnos, os fins legítimos da Adminis- quanto em nenhuma outra parte de todo
tração são os mesmos, de modo a não o campo da Política, ao que parece,
temermos a idéia de observar os sistemas podemos fazer uso do método histórico,
estrangeiros de Administração em busca comparativo, com maior segurança do que
de instrução e sugestão; de modo a no setor da Administração. Talvez que,
desfazer o receio de que se possa, por quanto mais formas novas estudarmos,
acaso, tomar emprestado cegamente algo melhor: mais cedo conheceremos as
incompatível com nossos princípios. É um peculiaridades de nossos próprios
cego desorientado aquele que denuncia métodos. Jamais poderemos conhecer
tentativas de transplantar sistemas estran- nossas próprias fraquezas, nem nossas
geiros neste País. É impossível: êles próprias virtudes, comparando-nos
simplesmente não crescerão aqui. Mas por conosco mesmos. Estamos demasiado
que não devemos usar certas partes de acostumados à aparência e processo de
concepções estrangeiras de que precisamos, nosso próprio sistema, para que possamos
se elas nos forem, de qualquer modo, úteis? perceber a sua verdadeira significação.
Não corremos o risco de usá-las de modo Talvez que mesmo o sistema inglês seja
estrangeiro. Recebemos de fora o arroz, demasiado semelhante ao nosso, para que
mas não o comemos com pauzinhos. possa ser usado, com o máximo proveito,
Recebemos tôda a nossa linguagem como ilustração. O melhor, em geral, é
política da Inglaterra, mas dela descartamos afastarmo-nos inteiramente de nossa
as palavras “rei” e “lords”. A que jamais própria atmosfera e sermos cuidadosos o
demos origem, exceto à ação do Govêrno mais possível, examinando sistemas tais
Federal sôbre indivíduos e algumas das como os da França e da Alemanha. Vendo
funções da Suprema Côrte Federal? nossas próprias instituições através de tais
Podemos tomar emprestada a Ciência media, vemo-nos como os estrangeiros nos
da Administração, sem perigo e com veriam se nos olhassem sem preconceitos.
proveito, contanto que distingamos em Enquanto só conhecermos a nós mesmos,
seus postulados tôdas as diferenças funda- não saberemos nada sôbre nós.
mentais que acondicionam. Temos sòmente Note-se que é a distinção, já traçada,
que filtrá-la através de nossa Constituição, entre a Administração e a Política, que torna
sòmente que submetê-la ao fogo lento da o método comparativo tão seguro no
crítica e destilar os vapores estrangeiros. campo da Administração. Quando estu-
Eu sei que há um receio inconfessado, damos os sistemas administrativos da
em alguns espíritos conscientemente patrió- França e da Alemanha, sabendo que não
ticos, de que os estudos de sistemas europeus estamos à procura de princípios políticos,
possam apontar certos métodos europeus não nos preocupamos, nem um pouco,
como melhores que determinados métodos com as razões constitucionais ou políticas
americanos, e o receio é fàcilmente que os franceses ou alemães dão para as

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suas práticas, quando no-las explicam. Se satisfatórias aos padrões da política prática.
vejo um facínora afiando uma navalha Criações doutrinárias devem ceder o passo
habilmente, poderei imitar o seu modo de a práticas testadas. Arranjos, sancionados
afiar a navalha sem a sua provável inten- não sòmente pela experiência concludente
ção de cometer um assassínio com ela; e em outra parte, mas também congênere
assim sendo, se vejo um monarquista do costume americano, devem ser prefe-
convicto administrando bem uma repar- ridos, sem hesitação, à perfeição teórica.
tição pública, posso aprender seus Em uma palavra, a segura e prática arte
métodos administrativos sem alterar política deve vir primeiro, a doutrina de
nenhuma de minhas convicções repu- gabinete em segundo. O cosmopolita o que
blicanas. Êle pode servir o seu Rei; eu fazer deve estar sempre subordinado ao como
continuarei a servir o povo; mas eu gostaria fazer americano.
de servir tão bem o meu soberano quanto Nosso dever é suprir com a melhor
êle serve o dêle. Tendo em vista esta vida possível a organização federal, a
distinção, isto é, estudando a Administração sistemas dentro de sistemas; fazer o
como um meio de levar nossa própria Govêrno distrital, municipal, estadual e
política a práticas convenientes, como um federal viverem com igual fôrça e igual-
meio de tornar o que é democràticamente mente saudáveis, mantendo cada um deles
político, para todos administrativamente inquestionàvelmente o dirigente dos seus
possível em relação a cada um, – estamos próprios negócios e, não obstante,
em terreno perfeitamente seguro, e interdependentes e cooperativos, combi-
podemos aprender, sem êrro, o que os nando independência com ajuda mútua. A
sistemas estrangeiros tenham a nos ensinar. tarefa é suficientemente grande e impor-
Criamos assim um mecanismo de ajuste tante para atrair os melhores espíritos.
para o nosso método comparativo de Êsse entrelaçamento do Govêrno local
estudo. Podemos, desse modo, escrutar a com o federal é uma concepção bem
anatomia de Govêrnos estrangeiros sem moderna. Não se assemelha aos arranjos
medo de contrair quaisquer de suas doenças; da federação imperial na Alemanha. Lá, o
dissecar os sistemas alienígenas sem preo- Govêrno local não é ainda completo auto-
cupação com envenenamento do sangue. Govêrno local. O burocrata está em tôda
Nossa própria política deve ser a pedra a parte ocupado. Sua eficiência, porém,
de toque para tôdas as teorias. Os prin- decorre do esprit de corps, da preocupação
cípios sôbre os quais basear uma ciência de obediência servil à autoridade de um
da Administração para a América devem superior, ou, na melhor das hipóteses, de
ser os princípios que tenham, bem no uma consciência sensível. Êle serve não ao
âmago, a diretriz democrática. E para se público, mas a um ministro irresponsável.
adaptarem ao hábito americano, tôdas as A questão para nós consiste em como
teorias gerais devem, como teorias, deverão as nossas séries de Govêrnos
manter-se modestamente no segundo dentro de Govêrnos serem administradas,
plano, não sòmente nas discussões, mas, de modo a ser sempre do interêsse do
também, em nosso próprio espírito, – se funcionário público servir não só ao seu
não, opiniões satisfatórias sòmente em gabi- superior, mas também à comunidade, com
nete de leitura serão usadas dogmà- os melhores esforços de seu talento e o
ticamente, como se fôssem por igual mais escrupuloso serviço de sua

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RSP RSP Revisitada: O estudo da Administração

consciência? Como deverá êste serviço ser divisões de prerrogativa. Esta é uma
tornado de seu interêsse mais imediato pela tendência para o tipo americano – de
contribuição abundante ao seu sustento, ao Govêrnos ligados a Govêrnos para a reali-
seu mais caro interêsse pelo desenvolvi- zação de propósitos comuns, em igualdade
mento de sua ambição, e ao seu mais alto e subordinação dignas. Princípios seme-
interêsse pelo acréscimo de sua dignidade lhantes de liberdade civil estão em tôda a
e estabelecimento de sua reputação? E parte suscitando métodos semelhantes de
como deverá ser isso feito igualmente para Govêrno; e se os estudos comparativos
a parte local e para o todo nacional? dos meios e modos de Govêrno nos
Se resolvermos êste problema, orien- habilitarem a oferecer sugestões que
taremos novamente o mundo. Há uma combinarão, pràticamente, largueza e vigor
tendência – não há? – uma tendência ainda na administração de tais Govêrnos com
obscura, mas já firmemente impulsiva e pronta docilidade à tôda a crítica pública
claramente destinada a prevalecer, no séria e fundamentada, terão êsses estudos
sentido da confederação de partes de provado ser dignos de se classificar entre
impérios como a inglesa em primeiro lugar os mais altos e mais frutuosos dos grandes
e, finalmente, dos próprios grandes Esta- departamentos do estudo político. Que êles
dos. Em vez de centralização de poder, resultarão em tais sugestões, é o que eu
deverá haver larga união com toleradas espero confiantemente.
.

Notas

*
Foram mantidas as grafias originais do texto publicado em 1946.
1
Politik, S. 467

Woodrow Wilson foi o 28o presidente dos EUA (1913-1921).

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