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São Paulo
2018
PEDRO ALVARES LEITE CARBONI
São Paulo
2018
1
“Não há possibilidade de escapar do tropicalismo.
É como amor de mãe para sempre devorador e eterno.”
Jorge Mautner
2
Sumário
1. Raízes Antropofágicas 4
1.1. O “manifesto” Tropicalista 4
1.2. Manifesto Antropófago 5
1.3. O hibridismo da Antropofagia 6
1.3. Uma visão sobre a cultura popular e a de massas 7
1.4. A Bossa Nova 8
1.5. O Rock 9
1.6 Antropofagia como movimento político-artístico-cultural 10
2. Tropicália 12
2.1 Breve Contexto Histórico 12
2.2 A mistura tropicalista 13
2.2.1 Fusão de gêneros 14
2.2.2 Uma nova modernização 14
2.2.3 Intercâmbios Artísticos 15
2.2.4 Hibridações sociais e políticas 16
2.2.5 Dialética produção-consumo 16
2.3 A “estética” tropicalista 17
2.4 Cinema novo e a Tropicália 17
2.5 Concretismo e a poesia tropicalista 19
2.6 Zé Celso e o teatro tropicalista 22
2.7 Artes plásticas e a Tropicália 24
2.8 Contracultura e Tropicália: fim de um movimento 25
3. Tropicalismo hoje 27
3.1 Pós Tropicalismo 27
3.2 Herdeiros Musicais da Tropicália 28
3.3 Vanguarda paulistana 29
3.4 Mangue Beat 30
3.5 Inevitável volta ao Tropicalismo? 31
4. Conclusão 33
5. Bibliografia 34
3
1. Raízes Antropofágicas
1
Diálogos com o Professor de Filosofia Tiago Lopes sobre o livro O Capital, de Karl Marx e sobre a Dialética
Hegeliana
4
1.2. Manifesto Antropófago
Publicado por Oswald De Andrade em 1928, o manifesto propunha
alimentar-se de tudo que o estrangeiro traz ao país e misturar esses elementos com
os tradicionais brasileiros, com o objetivo de ter uma produção artística e cultural
rica, criativa, única e própria. Tinha como objetivo romper com as tradições e
transformar o produto importado em exportável por meio da devoração da cultura e
das técnicas estrangeiras. A antropofagia não foi um projeto teórico convencional, já
que rompia com a tradição e a linguagem hermética, e por isso, conseguiu agregar
ideias dos mais diversos campos artísticos.
2
http://teatroficina.com.br/wp-content/uploads/2018/02/oswald-127.jpg Acessado em: 5/11/2018
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mantidos prisioneiros durante um período no qual todas as honras e privilégios lhes
eram concedidos - eram devorados para que os membros da tribo adquirissem
todos os saberes e a força do guerreiro em questão. Assim, conseguimos entender
alguns elementos presentes na linguagem antropófaga, como “devorar”, “comer” e
“vomitar”.
Oswald desfaz as oposições tradicionais entre colonizador/colonizado,
civilizado/bárbaro e natureza/tecnologia. Ao considerar o canibal como um elemento
transformador, social e coletivo, revê a tradição ocidental, propondo um bárbaro
tecnizado, muito mais próximo das manifestações da cultura contemporânea, tribal e
tecnológica. Diversas ideias recentes de compartilhamento da informação são
antecipadas por Oswald. No lugar do hibridismo, sempre tivemos em todos os
processos étnicos e culturais, a mestiçagem, genuína criação brasileira. (ALMEIDA,
2002)
Em termos práticos da produção artística, Augusto de Campos cita que a
incorporação antropofágica de experiências positivas de outras músicas à nossa
prática composicional não apresenta, em si, nada de negativo. Saber digeri-las e
aplicá-las criativamente é o que constitui o principal problema da invenção artística.
O autor acredita que nos dias atuais, a nacionalidade de uma nova realidade
espiritual é um aspecto que vem a posteriori e não a priori em relação à sua
manifestação e afirmação. CAMPOS (1993/2012:108)
Quanto à música, pode-de dizer que o compositor brasileiro Heitor Villa
Lobos foi o primeiro a incorporar a linguagem antropófaga ao se apropriar da música
de J.S. Bach para compor uma obra originalmente brasileira: As Bachianas
Brasileiras.
3
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1989. 372 p.
6
hibridações são muito claramente vistas na Antropofagia e, consequentemente, na
Tropicália.
Na Antropofagia, esse hibridismo pode ser visto a partir do conceito de
devoração, proposto por ela mesma: ao devorar elementos diferentes, a resultante
dessas influências é sempre híbrida, já que apresenta elementos distintos de cada
uma dessas fontes em um único produto. Exemplo disso é a devoração da arte
estrangeira, que combinada com a brasileira, gera um produto sempre híbrido, com
elementos das duas influências. Tal hibridação, na Teoria Oswaldiana, pode ser
vista em diferentes aspectos, como o erudito e o popular, o nacional e o universal, o
kitsch e o chique, o artesanal e o industrial, o corpo e a máquina; o centro e a
periferia, segundo Lúcia Santaella.
A hibridação de tais antagonismos foi o que possibilitou a existência do
Tropicalismo como movimento artístico, já que ele está estritamente ligado a tais
contradições, muito presentes nas tensões do regime político-militar que foi o pano
de fundo da Tropicália.
7
realizou “trocas”, ela fica estagnada. Tal questionamento está ligado à contestação
das normas e valores estabelecidos, o que parece ser o principal mecanismo de
criação de culturas novas, a Tropicália, inspirada na antropofagia, subvertia as três
culturas (erudita, popular e de massa), fundindo-as, segundo a própria linguagem
antropófaga “devorando-as” para depois “vomitar” uma cultura totalmente nova,
criativa e livre de barreiras. Para isso, é necessário pôr de lado diversos
preconceitos estabelecidos contra a cultura pop, e não confundir o veículo cultural
com a ideologia que rege seu uso.
4
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/i1408200801.jpg Acessado em: 5/11/2018. Acessado em:
5/11/2018
8
Dessa forma, pode-se constatar o mesmo caráter antropofágico que está
presente na Tropicália também está na Bossa-Nova também, mesmo que de forma
menos evidente, mais sutil, já que esta tem a característica do “culto à música
popular nacional no sentido de integrar no universal da música as particularidades
específicas daquela”, segundo Campos(1993/2012:24). Tal culto não pode ser dito
como regionalista e preconceituoso quanto a práticas musicais estrangeiras, mas
sim no âmbito de revitalizar essas características regionais, porém “garantindo a
individualidade das composições pela não-diluição dos elementos
regionais”(CAMPOS, 1993/2012:24).
Mário de Andrade, em seu livro Pequena História da Música, afirma que
desde sua origem, a música popular brasileira incorpora diversos recursos de
origem estrangeira: americanos, italianos, franceses, ibéricos, centro-americanos,
argentinos, africanos, etc. Sendo assim, com a Bossa Nova e a Tropicália não é
diferente. Concluímos que a Bossa Nova por si só apresenta características
antropófagas, embora em força muito menor do que aconteceu na Tropicália.
1.5. O Rock
O Rock como gênero musical surgiu nos Estados Unidos do começo da
década de 60 (MUGGIATI, 1983), embora suas raízes estejam no rock and roll dos
anos 50(CHACON,1985). O estilo surgiu como uma mistura do Blues, do Country e
do Rhythm n’ Blues, e posteriormente, foi influenciado por estilos como o Folk, o
Jazz e até a música erudita. Tendo em vista tais exemplos, vemos que a
característica da devoração mencionada acima está presente no rock, já que ele
devora tantos estilos e influências para si, sendo quase que antropófago, salvo o
fato dele não devorar o estrangeiro, mas sim a cultura exclusivamente
estadunidense, ao menos num primeiro momento, não tendo assim o caráter mais
brasileiro e tropical que Oswald propunha, até por se tratar de outro país, porém
ainda assim é possível destacar desse gênero que compõe a mistura da Tropicália a
devoração como característica antropofágica.
9
1.6 Antropofagia como movimento político-artístico-cultural
Ao sintetizar movimentos dialeticamente opostos - Bossa Nova e Iê-Iê-Iê (o
assim chamado rock que começou a aparecer no brasil em meados da década de
60, liderado por Roberto Carlos e Erasmo Carlos) - a Tropicália devorava tanto a
cultura popular quanto a de massa, conforme as definições de cultura dadas por
Teixeira Coelho, e que nos aprofundaremos adiante, e criava uma arte rica, criativa
e única, rompendo com os padrões que estavam estabelecidos para as expressões
artísticas dos anos 60, mas em especial à música.
5
https://3.bp.blogspot.com/-7SA0IsCImwI/Vuv4mnh1_pI/AAAAAAAAJ1I/2ymzMbkZfvYi-8qtO1NWZjC
PlJub6d1qA/s1600/tumblr_nig4ealWvS1r87y3ro1_1280.jpg Acessado em: 5 de novembro de 2018
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http://rollingstone.uol.com.br/media/_versions/legacy/2011/img_24851_roberto-carlos_widelg.jpg
Acessado em: 5 de novembro de 2018
10
popular brasileira. Colocar guitarras elétricas no samba era praticamente uma
heresia, uma submissão ao colonialismo cultural encabeçado pelos Estados Unidos.
Segundo a definição de Haroldo de Campos, a Antropofagia indica
“fenômenos de desconstrução, de destruição de padrões, de esquemas”. Esse
movimento de subversão, desconstrução e de questionamento ao tradicional, muito
presente nas manifestações contraculturais da segunda metade da década de 60,
como o movimento hippie, por exemplo, não está apenas no âmbito da arte, mas
também na cultura, nas tradições e na sociedade de uma forma geral.
Tal movimento de desconstrução muitas vezes é acompanhado por um
processo de devoração do que não é “nosso”; é necessário romper com as
estruturas antigas e as tradições para depois estabelecer uma nova arte e cultura
baseada no que se “devorou”.
No manifesto antropófago, Oswald diz que: “Só me interessa o que não é
meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. A tropicália utiliza-se disso para embasar
uma transformação cultural, porém neste caso tal devoração não é feita como uma
mera cópia, mas sim uma fusão, uma espécie de hibridismo. Um exemplo desse
caráter antropofágico no movimento da tropicália, possivelmente o mais citado em
textos sobre o assunto, é a mistura da música popular brasileira com o Rock que
estava florescendo nos anos 60 com a explosão dos beatles, do rock Inglês de uma
maneira geral e da ascensão da flower power nos EUA, principalmente.
Ironicamente, Oswald já preconizava essa devoração do “inimigo” que seria,
para os militantes do CPC, os imperialistas ianques, no seguinte verso do Manifesto
Antropófago: “(...)Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em
totem.(...)“ ( ANDRADE, 1928)
11
2. Tropicália
7
Embora o tropicalismo tenha seu fim demarcado em 1969, com a prisão e o posterior exílio em Londres de
Caetano Veloso e Gilberto Gil, alguns autores defendem a existência de um “pós-tropicalismo”, que será
mencionado mais tarde no texto.
12
Quando, em 1968, o governo militar baixou o Ato Institucional n° 5, o regime
chegou ao ápice da repressão e censura em todas as esferas; com isso, muitos
artistas mais engajados na luta revolucionária contra a ditadura, foram presos ou
mandados para o exílio (DA PAIXÃO, 2013). A esse momento da prisão de Gilberto
Gil e Caetano Veloso, em dezembro de 1969, é atribuído o fim da Tropicália.
13
implicações ‘maiores’ do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações
com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto
de uma super-intelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que
a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.”
VELOSO(1997:247-248)
14
sucumbindo ao imperialismo americano, como argumenta o crítico José Ramos
Tinhorão, mas muito pelo contrário.
Os tropicalistas viam que a Bossa Nova estava dando sinais de desgaste e
de conservadorismo, e além disso eram contrários ao nacionalismo que os adeptos
das canções politizadas, herdeiros da primeira geração da Bossa Nova,
expressavam de maneira enfática, naquele momento. (CALADO, 2017:40)
Em 66, na “Revista Civilização Brasileira”, Caetano anunciava claramente o
que deveria ser -e foi- feito nos anos seguintes: “Só a retomada da linha evolutiva
pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação.
Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e
nonas não resolve o problema''.
No mesmo depoimento, apontava João Gilberto como a ponta do novelo da
modernidade a ser retomada: “João Gilberto para mim é exatamente o momento em
que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na
renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira” (CALADO,
2017:40).
A resposta que o tropicalismo dava a essa questão pode ser explicada com
as ideias antropofágicas, que propunham a devoração desse suposto “inimigo” que
seria, nesse caso, a Bossa Nova. “(...)Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.
Para transformá-lo em totem.(...)“ (ANDRADE, 1928)
15
2.2.4 Hibridações sociais e políticas
Em termos sociais e políticos podemos dizer que a Tropicália propunha uma
aproximação do artesanal à indústria, ao incorporar elementos exclusivamente
tradicionais com elementos massificados, como Gilberto Gil mostrou numa
entrevista a Augusto de Campos:
16
que muito têm contribuído para uma separação rígida e falsa entre arte e meios de
comunicação.(SANTAELLA, 2017:30)
Os tropicalistas conseguiram recriar os elementos tradicionais do Brasil,
deglutindo antropofagicamente o que havia de elementos informativos nos
movimentos de massa e ao incorporarem traços do repertório erudito. Dessa forma,
vemos que a tropicália consegue ser híbrida ao atuar tanto na esfera da produção
artística, quanto na do consumo, mais ligada ao fim comercial da arte.
17
A história do filme se passa em Eldorado, cidade em que a situação política
está insustentável. O grande protagonista do filme é o poeta, jornalista e militante
Paulo Martins. Após a sua experiência política o poeta afirma que: "a política e a
poesia são demais para um homem só." Esse descontentamento com a política faz
com que ele dedique-se apenas a poesia. Tal situação é análoga à Tropicália
quando, ao não seguir a música militante e de protesto do CPC, nem a música
considerada alienada da Jovem Guarda, ao mesmo tempo propondo algo novo e
que contesta o status-quo não pela ação direta nas letras, mas sim na discussão e
proposição de uma arte nova e diferente.
8
http://www.planocritico.com/critica-terra-em-transe/ acessado em: 01/11/2018
9
HOLLANDA, H. B. de GONÇALVES, M. A. Op., Cit., p. 37.
18
nossa realidade, a realidade do subdesenvolvimento, um comprometimento com os
problemas no nosso tempo. Glauber propõe um cinema revolucionário na forma e
no conteúdo, distante tanto das preocupações mercantilistas quanto das puramente
formais, uma arte comprometida com a verdade. Este cinema estaria à margem da
indústria, pois, como diz o autor, "o compromisso do Cinema Industrial é com a
mentira e com a exploração"(ROCHA, 1965).
O movimento narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os
temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes,
personagens roubando para comer, personagens matando para comer,
personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando
em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema
Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos
interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não
suportando as imagens da própria miséria”.10
A tropicália bebeu dessas raízes propostas por Glauber ao, assim como os
filmes do cineasta, propor a escancaração dessa nossa realidade
subdesenvolvimentista, porém ao mesmo tempo negando seu estado depreciativo
que a ideologia imperialista pressupõe. Conforme entrevista de Caetano Veloso,
“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades
técnicas.”
10
Ibidem nota 9
19
tradição empenhada, a tradição nacional e continental de engajamento no campo
das letras.
O Tropicalismo e o concretismo estão ambos, enfim, preocupados com um
perfil nacional marcado pelo ufanismo folclórico. Eles foram críticos severos que
produziram “contra-ideologias estéticas ou estratégias culturais profundamente
semelhantes”, nas palavras de Lúcia Santaella. Enquanto ela deixa de usar
exemplos do impulso concretista na MPB, aloca outro ponto fundamental em
contato com uma compartilhada “abertura do aparato produtivo da criação para a
interseção com outras áreas de atividade artística… nessa raiz intersemiótica”. Esta
referência para inclinação interartes sugere a etiqueta “verbivocovisual” da poesia
concretista e, em outro nível, o contato com outras contrapartes em escultura ou
show (concerto musical), bem como no caráter multidisciplinar do tropicalismo. As
atitudes-guia da nova expressão musical, adicionalmente, estão relacionadas como
nunca foram antes, com relação à variedade e variações das partes.
Todo esse relacionamento, assim como o do grupo baiano com o grupo
paulistano é analisado a nível teórico por Celso F. Favaretto em Tropicália: alegoria
alegria11. Enfatizando objetos artísticos afins (revisão crítica de cultura nacional,
ânimo de renovação) em vez de falar em influências diretas, Favaretto esclarece
que no tropicalismo há “um emprego reduzido dos procedimentos típicos da poesia
concreta (sintaxe não-discursiva, verbi-voco-visualidade, concisão verbal)”. O
próprio Augusto de Campos respondeu a perguntas sobre as ligações entre os dois
grupos. Antes de assinalar pontos de contato, faz uma ressalva significativa: “Mas o
que me fascina e me entusiasma neles não é tanto o fato de eventualmente
incidirem ou coincidirem com a poesia concreta, como a capacidade que eles têm
de fazer coisas diferentes do que fizemos e fazemos e que constituem informações
originais até mesmo para nós, que nos especializamos na invenção” (PERRONE,
1985)
Do trabalho coletivo tropicalista (Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé, Capinan,
Torquato Neto, Rita Lee, Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão), a única canção que
realiza propositadamente uma noção concreta é “Batmacumba” (Veloso-Gil):
11
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegria Alegoria. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1979. 158 p.
20
batmacumbaiéié batmacumbaoba
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumba
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié
batmacumbaié
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaié
batmacumbaiéié
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumbaoba12
12
GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Intérprete: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes. Tropicália
ou panis et circensis. São Paulo: Philips, 1968. 1 Disco sonoro.
21
encenação uma renovação dramática, a busca por uma arte engajada, pelo
aprimoramento do trabalho de ator e da linguagem cênica (BARBOSA, 2000).
O momento de grande importância para o grupo foi o ano de 1967, quando
fora encenada a peça "O Rei da Vela" de Oswald de Andrade, momento em que
juntamente com "Terra em Transe" (1967), e as músicas de Caetano e Gilberto Gil,
"Alegria Alegria" e "Domingo no Parque", tivemos uma verdadeira revolução em
relação à estética do período. O texto de Oswald encenado pelo grupo e dirigido por
Zé Celso, era uma resposta à radicalidade do Oficina naquele momento, a estética e
a política almejada pelo grupo.
13
https://f.i.uol.com.br/fotografia/2017/09/28/150662087359cd35c9967d8_1506620873_3x2_md.jpg. Acessado
em 7/11/2018
22
No terceiro ato, por meio do estilo operístico temos a tragicomédia da morte. Após o
falecimento de Abelardo I e a substituição por Abelardo II (figura que ele mesmo
criou), fica visível como no universo burguês um indivíduo é facilmente substituível
por outro, desde que esteja de acordo com os interesses da burguesia.
Do ponto de vista visual, temos um impacto causado pelas cores, por
exemplo Abelardo I na praia está vestindo uma calça cor de ovo, ou seja, cores
fortes entram em sintonia com a temperatura elevada dos trópicos. Outro fator a
analisar é a junção de elementos arcaicos com modernos; o maiô futurista de
Heloísa em contraste com o arcaísmo dos trópicos, a crítica a um Brasil moderno,
que mescla elementos arcaicos e modernos e que não reconhece seu
subdesenvolvimento. Em uma visão tropicalista, a dependência existe, a alienação
existe e temos que viver em meio a isso, reconhecer que somos subdesenvolvidos.
Temos em O Rei da Vela uma cena antropofágica, que devora, incorpora
outras experiências teatrais, sem desprivilegiar os elementos nacionais,
reconhecendo o nosso subdesenvolvimento, que é o que propõe a discussão
tropicalista. Neste período, o grupo Arena destaca-se como uma companhia de
teatro realista, nessa perspectiva de retratar a realidade brasileira, assim como
Glauber Rocha em Terra em Transe, fazendo um teatro político que se propunha a
transformar a sociedade, ao lado da música popular brasileira das canções de
protesto, por meio da estética realista tínhamos uma denúncia do que se passava
na sociedade brasileira naqueles anos, de forma explícita.
23
Imagem - Exposição Tropicália de Hélio Oiticica14
14
Do site OBVIUS http://lounge.obviousmag.org/coqueluche/2013/04/tropicalia.html ACESSADO EM: 01 NOV
2018
15
FIORAVANTE, C. E a Cor dançou com Oiticica. ln: Folha de São Paulo, São Paulo, quarta-feira, 09/09/98, p. 1,
(Ilustrada).
24
Quanto à arte de Hélio, pode-se destacar os elementos tropicalistas de
devoração antropofágica, devoração de linguagens, da cultura externa, da mistura
de elementos arcaicos e modernos (BARBOSA, 2000).
16
JUNQUEIRA (2009:29)
25
3. Tropicalismo hoje
“(...) não há possibilidade de escapar do tropicalismo. É como amor de mãe para sempre
devorador e eterno.” Jorge Mautner17
17
MAUTNER, Jorge. Herdeiros Musicais: Jorge Mautner. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/jorge-mautner-2>. Acesso em: 17 out.
2018.
26
atentam para o que há de espantoso numa tal afirmação no contexto brasileiro:
“Não se assuste, pessoa / se eu lhe disser que a vida é boa.”
Os músicos considerados “malditos” não pertenciam a um “movimento”
especificamente, como o movimento bossa-nova ou os tropicalistas por exemplo.
Porém, eram eles os responsáveis pelas propostas musicais mais arrojadas e
ligadas à vanguarda musical brasileira. Além da musicalidade bastante “exótica”, os
“malditos” possuíam em comum traços de personalidade bastante forte e impulsiva.
Vendo essas características sob uma proposta comercial e direcionada a um
público alvo, a própria dificuldade de catalogação e enquadramento em estilos
musicais específicos, as gravadoras encontraram nesses artistas uma possibilidade
de venda de um produto, só faltava o rótulo, daí surgiu o apelido nada carinhoso de
“maldito”. Apelido esse que inicialmente foi alimentado pelas próprias gravadoras,
provavelmente buscando atingir uma juventude, cult, politizada e ligada às
tendências contraculturais. Porém, a rotulação com o tempo foi entrando em
desgaste e até mesmo voltando-se contra os próprios artistas.
27
(como o rock, o funk e o rap). Esse estilo foi denominado Mangue-beat e adquiriu
caráter de movimento, tendo até um manifesto, influenciado pela proposta
antropófaga de Oswald de Andrade. Outras bandas atuais de Recife, como
Mombojó ou Banda Eddie, ainda mantêm a perspectiva de modernizar o som local a
partir de influências universais.
A aproximação da música atual com o canibalismo oswaldiano-tropicalista é
evidenciada por trabalhos do mainstream, como os de Carlinhos Brown, Arnaldo
Antunes e Marisa Monte. Os três fundaram o projeto Tribalistas, com claras
influências tropicalistas, seja pelo seu som e letras, seja pela proposta de um disco
coletivo entre compositores. Da mesma forma, esse legado também se faz presente
em suas carreiras. Carlinhos, compositor e músico baiano, promove, tanto com sua
música quanto com seu visual exagerado, uma nova e pessoal mescla de
linguagens locais e externas, o rock-afro-reggae-baiana. Já o paulista Arnaldo
Antunes, compositor popular e poeta concretista, mostrou-se em sua carreira solo
um herdeiro da inquietação, do espírito de aventura e de vanguarda característicos
do tropicalismo. A carioca Marisa Monte, por sua vez, segue o exemplo de liberdade
de repertórios e de compromisso com a inovação musical. Marisa se permite
interpretar os mais diversos gêneros de dentro e de fora do País, do pop ao brega,
do rock de vanguarda ao samba de tradição, gravando inclusive músicas
diretamente ligadas ao Tropicalismo, como “Panis et Circensis”.
28
convencionais, as canções não eram musicalmente ousadas e precisavam ser bem
mais experimentais18
Segundo Arrigo Barnabé, o que lhe interessou muito na Tropicália foi a
possibilidade de trabalhar a cultura popular com a erudita, porque era
profundamente ligado à música erudita, e não tinha essa familiaridade com a música
popular. Segundo suas palavras, “Eu não sei, se não tivesse acontecido a
Tropicália, que caminho eu teria tomado. A fusão é fundamental para mim e a
influência que eu tenho deles é essa tendência de misturar as coisas.”19
Assumpção achava que não ocorrera nenhuma grande inovação na música
popular brasileira desde as agitações instigadas pela tropicália, e tanto ele quanto
Barnabé eram movidos por um desejo de buscar direções musicais até então
inexploradas.
Em 1982 Assumpção declarou que suas apresentações ao vivo (as quais
eram conscientemente teatrais e provocativas) eram um esforço diligente para
expandir as ideias existentes de como apresentar música no palco, e que estava à
procura de uma apresentação musical mais completa, algo que iria além das
inovações da tropicália. Em sua opinião, a música popular brasileira não conseguirá
assimilar os aspectos originais da tropicália e ficará presa num bloqueio criativo.
18
STROUD, Sean. Música popular brasileira experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a
tropicália. Revista USP, São Paulo, n. 87, p. 86-97, nov. 2010. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13832/15650/0>. Acesso em: 17 out. 2018.
19
BARNABÉ, Arrigo. Herdeiros Musicais: Arrigo Barnabé. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/arrigo-barnabe>. Acesso em: 17 out. 2018.
29
O movimento se consolida, assim como a Antropofagia, com um manifesto de
cunho textual, denominado “Manifesto Caranguejos com Cérebro”, alusão ao animal
comum no mangue. A proximidade do texto com as ideias de Oswald são muito
claras, por exemplo nesse fragmento do texto:
“Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade
um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um
*circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede
mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica
enfiada na lama.”20
20
ZERO QUATRO, Fred; SCIENCE, Chico. Manifesto Caranguejos com Cérebro. 1992. Disponível
em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1308779-7085,00-LEIA+O+MANIFESTO+CARANGUEJ
OS+COM+CEREBRO.html>. Acesso em: 17 out. 2018.
30
Mautner, a massificação e a ampliação em direção da cultura de massas da
ideologia criada a partir da semana de arte moderna de 1922 em São Paulo.
Já segundo Chico César, cantor, compositor e artista paraibano, a vitória
mercadológica do Tropicalismo tem herdeiros muito claros, mercadológicos. O
artista diz que o herdeiro comercial do Tropicalismo é o axé music, mas o herdeiro
ideológico do Tropicalismo, o herdeiro estético, nós não sabemos quem é. “As
pessoas que fazem música se apropriam de tudo o tempo inteiro, se apropriam de
tecnologias, de posturas etc. E essa foi, inclusive, a atitude dos tropicalistas. Talvez
nós vivamos hoje uma superação do conceito de herança. Não há mais herança, há
apropriação. Isso que se chama de herança que, por um lado, se considera positiva
e ela é positiva — e também elogiosa aos pseudo herdeiros — diminui o trabalho
que as pessoas tiveram para reconstruir um conceito de música brasileira que
estava se indo por água abaixo.”21
Nesse sentido, César argumenta que toda forma de arte é essencialmente
híbrida, e que a apropriação artística e cultural é o motor de toda criação artística.
Segundo TOTA (2010:37), a criatividade do artista está ligada à herança que
recebeu do passado e o meio social no qual está inserido. Assim, não é possível
dizer que a Tropicália foi o ponto exato da história da música popular brasileira onde
essa apropriação surgiu, porém podemos dizer que ela provocou intensamente a
desconstrução de diversos tabus que estavam presentes na arte popular da época,
e que essa desconstrução foi a base sólida que possibilitou a arte pós moderna que
é produzida hoje.
Segundo CANCLINI (1989/2015:23), as transformações mercadológicas na
arte ao mesmo tempo em que radicalizaram o projeto moderno, nos levaram a um
estado pós moderno de ruptura com o anterior. Nesse estado, as culturas já não se
agrupam em grupos fixos e estáveis e os dispositivos de reprodução se proliferam
(CANCLINI, 1989/2015:304), e a Tropicália está no meio dessa condição.
21
CÉSAR, Chico. Herdeiros Musicais: Chico César. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/chico-cesar>. Acesso em: 17 out. 2018.
31
4. Conclusão
Há divergências no tocante à existência de uma volta inevitável ao
tropicalismo em todas as obras que surgiram após ele, mas ainda assim o legado
que ele deixou na nossa arte foi tão grande que não pode ser deixado de lado. A
Tropicália foi em embate ao status-quo da época, rompendo com a tradição
estabelecida, e foi dialeticamente incorporando elementos modernos e
pós-modernos à nossa arte, levando-a para um rumo totalmente novo e
desconhecido até então.
O movimento inaugurou uma condição onde toda arte popular produzida é
híbrida, o que é um fato que pode ser claramente visto na arte de hoje em dia, onde
mistura-se o rap com ritmos afro-brasileiros e obtém o funk; mistura-se o pop, o
sertanejo e a arrocha e surge o sertanejo universitário. Enfim, exemplos não são o
que faltam para exemplificar essas hibridações na arte contemporânea brasileira.
O tropicalismo muito provavelmente não teria esse legado que teve se não
tivesse se apropriado (ou melhor, devorado) da Teoria Antropofágica, que é o motor
de toda criação tropicalista, e que traz esse caráter hibridizante ao movimento e a
todos os seus sucessores.
A Tropicália ainda vive e respira na arte e na cultura brasileira, mesmo tendo
acabado há quase meio século atrás.
32
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