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COLÉGIO OSWALD DE ANDRADE

PEDRO ALVARES LEITE CARBONI

HIBRIDAÇÕES ANTROPOFÁGICAS DA TROPICÁLIA


E SUAS INFLUÊNCIAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

São Paulo

2018
PEDRO ALVARES LEITE CARBONI

HIBRIDAÇÕES ANTROPOFÁGICAS DA TROPICÁLIA


E SUAS INFLUÊNCIAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

Trabalho de aproveitamento do Projeto de

Teses do curso de Comunicação, Cultura e Tecnologia

orientado pelo Prof° Amadeu Cardoso Jr.

do Colégio Oswald de Andrade

São Paulo

2018

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“Não há possibilidade de escapar do tropicalismo.
É como amor de mãe para sempre devorador e eterno.”
Jorge Mautner

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Sumário
1. Raízes Antropofágicas 4
1.1. O “manifesto” Tropicalista 4
1.2. Manifesto Antropófago 5
1.3. O hibridismo da Antropofagia 6
1.3. Uma visão sobre a cultura popular e a de massas 7
1.4. A Bossa Nova 8
1.5. O Rock 9
1.6 Antropofagia como movimento político-artístico-cultural 10

2. Tropicália 12
2.1 Breve Contexto Histórico 12
2.2 A mistura tropicalista 13
2.2.1 Fusão de gêneros 14
2.2.2 Uma nova modernização 14
2.2.3 Intercâmbios Artísticos 15
2.2.4 Hibridações sociais e políticas 16
2.2.5 Dialética produção-consumo 16
2.3 A “estética” tropicalista 17
2.4 Cinema novo e a Tropicália 17
2.5 Concretismo e a poesia tropicalista 19
2.6 Zé Celso e o teatro tropicalista 22
2.7 Artes plásticas e a Tropicália 24
2.8 Contracultura e Tropicália: fim de um movimento 25

3. Tropicalismo hoje 27
3.1 Pós Tropicalismo 27
3.2 Herdeiros Musicais da Tropicália 28
3.3 Vanguarda paulistana 29
3.4 Mangue Beat 30
3.5 Inevitável volta ao Tropicalismo? 31

4. Conclusão 33

5. Bibliografia 34

3
1. Raízes Antropofágicas

1.1. O “manifesto” Tropicalista


A Tropicália não teve, assim como outros movimentos de vanguarda artística
como a antropofagia, seu caminho definido por algum manifesto de cunho textual.
Por outro lado, o movimento foi muito mais o fruto do acaso, da necessidade
midiática de um rótulo para a cena musical dos músicos predominantemente
baianos que tocavam no Rio de Janeiro e em São Paulo nos meados da década de
60, e que, posteriormente, acabariam se aproveitando dessa imagem para
consolidar o disco “Tropicália”, de 1968, quase como um disco-manifesto. Conforme
entrevista de Gilberto Gil a Augusto de Campos, “​O tropicalismo surgiu mais de uma
preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um
movimento organizado” ​(CAMPOS 1993/2012:193)
Esse processo de consolidação da cena musical em um movimento artístico
maior, de múltiplas frentes, não só na área da música, pode ser compreendida a
partir de uma abordagem materialista-histórica-dialética, visto que toda a
fundamentação teórica do movimento, baseada nos ideais antropofágicos de
Oswald de Andrade, é constituída a partir de uma práxis material prévia, ou seja, o
“manifesto” da Tropicália e as suas ideias vieram depois que a cena musical dos
músicos tropicalistas já estava estabelecida, tudo isso em oposição ao modelo de
consolidação de movimento artístico que seu predecessor, a Antropofagia, utilizou,
mais aproximada aos ideais de Hegel, onde a prática artística é precedida pelo seu
embasamento teórico, ou seja: seu manifesto veio antes da produção artística em si
1

Segundo Campos (1993/2012:27), a própria Bossa Nova, uma das


influências da Tropicália, não teve proximidade com o concretismo das artes em
virtude de uma posição estética apriorística, mas essa relação foi estabelecida
posteriormente por teóricos, analisando-a como um processo de aproximação quase
que intuitivo e inconsciente.

1
Diálogos com o Professor de Filosofia Tiago Lopes sobre o livro O Capital, de Karl Marx e sobre a Dialética
Hegeliana

4
1.2. Manifesto Antropófago
Publicado por Oswald De Andrade em 1928, o manifesto propunha
alimentar-se de tudo que o estrangeiro traz ao país e misturar esses elementos com
os tradicionais brasileiros, com o objetivo de ter uma produção artística e cultural
rica, criativa, única e própria. Tinha como objetivo romper com as tradições e
transformar o produto importado em exportável por meio da devoração da cultura e
das técnicas estrangeiras. A antropofagia não foi um projeto teórico convencional, já
que rompia com a tradição e a linguagem hermética, e por isso, conseguiu agregar
ideias dos mais diversos campos artísticos.

Embora a Antropofagia – formulada sobretudo através do “Manifesto Antropófago”


(1928) - não seja, a priori, um projeto sistemático, baseado em um discurso teórico, seu viés
filosófico e cultural adquire vasto apelo pelas fortes sugestões desafiadoras em que, pela
primeira vez, a noção de influência ganha a versão de convergência, rompendo com a
ênfase da tradição e fonte de domínio cultural como fatores inabaláveis e herméticos. Por
isso ela ter sido associada, atuando em suas respectivas intenções, por inúmeros
movimentos artísticos. Acreditamos ter ela sido, dessa forma, responsável por atuar como
catalisadora de fórmulas estanques e, especialmente, por visar a Literatura como constante
troca cultural. (DA COSTA, 2011)

Imagem 1 - Retrato de Oswald de Andrade2

A raíz etimológica da palavra “Antropofagia” vem de um ritual indígena onde


os prisioneiros de guerra de determinada tribo indígena - depois de serem ali

2
http://teatroficina.com.br/wp-content/uploads/2018/02/oswald-127.jpg​ Acessado em: 5/11/2018

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mantidos prisioneiros durante um período no qual todas as honras e privilégios lhes
eram concedidos - eram devorados para que os membros da tribo adquirissem
todos os saberes e a força do guerreiro em questão. Assim, conseguimos entender
alguns elementos presentes na linguagem antropófaga, como “devorar”, “comer” e
“vomitar”.
Oswald desfaz as oposições tradicionais entre colonizador/colonizado,
civilizado/bárbaro e natureza/tecnologia. Ao considerar o canibal como um elemento
transformador, social e coletivo, revê a tradição ocidental, propondo um bárbaro
tecnizado, muito mais próximo das manifestações da cultura contemporânea, tribal e
tecnológica. Diversas ideias recentes de compartilhamento da informação são
antecipadas por Oswald. No lugar do hibridismo, sempre tivemos em todos os
processos étnicos e culturais, a mestiçagem, genuína criação brasileira. (ALMEIDA,
2002)
Em termos práticos da produção artística, Augusto de Campos cita que a
incorporação antropofágica de experiências positivas de outras músicas à nossa
prática composicional não apresenta, em si, nada de negativo. Saber digeri-las e
aplicá-las criativamente é o que constitui o principal problema da invenção artística.
O autor acredita que nos dias atuais, a nacionalidade de uma nova realidade
espiritual é um aspecto que vem ​a posteriori e não a priori em relação à sua
manifestação e afirmação. CAMPOS (1993/2012:108)
Quanto à música, pode-de dizer que o compositor brasileiro Heitor Villa
Lobos foi o primeiro a incorporar a linguagem antropófaga ao se apropriar da música
de J.S. Bach para compor uma obra originalmente brasileira: As Bachianas
Brasileiras.

1.3. O hibridismo da Antropofagia


O livro Culturas Híbridas3, do antropólogo argentino Néstor García Canclini,
propõe uma análise da hibridação intercultural na américa latina, e suas
manifestações que fogem do culto e do popular, modernidade e pós-modernidade,
cultura e poder e a interação dos locais com redes nacionais e transnacionais. Tais

3
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1989. 372 p.

6
hibridações são muito claramente vistas na Antropofagia e, consequentemente, na
Tropicália.
Na Antropofagia, esse hibridismo pode ser visto a partir do conceito de
devoração, proposto por ela mesma: ao devorar elementos diferentes, a resultante
dessas influências é sempre híbrida, já que apresenta elementos distintos de cada
uma dessas fontes em um único produto. Exemplo disso é a devoração da arte
estrangeira, que combinada com a brasileira, gera um produto sempre híbrido, com
elementos das duas influências. Tal hibridação, na Teoria Oswaldiana, pode ser
vista em diferentes aspectos, como o erudito e o popular, o nacional e o universal, o
kitsch e o chique, o artesanal e o industrial, o corpo e a máquina; o centro e a
periferia, segundo Lúcia Santaella.
A hibridação de tais antagonismos foi o que possibilitou a existência do
Tropicalismo como movimento artístico, já que ele está estritamente ligado a tais
contradições, muito presentes nas tensões do regime político-militar que foi o pano
de fundo da Tropicália.

1.3. Uma visão sobre a cultura popular e a de massas


Dwight MacDonald defende que existem três tipos de cultura: a superior, a
média, e a de massas. A cultura superior é definida pelos produtos canonizados
pela crítica erudita, e reconhecida como uma cultura específica da elite; a cultura
média, também chamada de midcult, é definida por se passar por uma cultura “boa”,
tentando incorporar para si alguns elementos da cultura superior, mesmo não tendo
um valor cultural tão grande assim, causando uma falsa impressão do público estar
se enriquecendo culturalmente, está ligada a classe emergente dos “novos-ricos” no
mesmo período do nascimento da indústria cultural. A última categoria é a da cultura
de massa, ​masscult ou pop, que é mais grossa e sincera em relação à midcult, já
que ela não diz ser algo que não é, e tem como público o máximo de pessoas que
conseguir alcançar, uma “massa”.
Para além da oposição da cultura superior e a de massa, é necessário
contrapor a última à cultura popular. Essa tem como característica a soma dos
valores relativos a um povo, expressa em arte, e não questiona a si mesma, ou seja,
sem o estímulo da cultura pop (de massas) e de outras culturas com as quais ela

7
realizou “trocas”, ela fica estagnada. Tal questionamento está ligado à contestação
das normas e valores estabelecidos, o que parece ser o principal mecanismo de
criação de culturas novas, a Tropicália, inspirada na antropofagia, subvertia as três
culturas (erudita, popular e de massa), fundindo-as, segundo a própria linguagem
antropófaga “devorando-as” para depois “vomitar” uma cultura totalmente nova,
criativa e livre de barreiras. Para isso, é necessário pôr de lado diversos
preconceitos estabelecidos contra a cultura pop, e não confundir o veículo cultural
com a ideologia que rege seu uso.

1.4. A Bossa Nova


No quesito musical, a bossa nova teve um impacto muito grande na
elaboração da tropicália, como nos é claramente apresentado em canções como
“Clarice” e “Coração Vagabundo” - embora essa última tenha sido composta antes
da consolidação da Tropicália como um movimento - ambas de Caetano Veloso. A
Bossa Nova fez um caminho muito parecido com o da Tropicália: enquanto os
tropicalistas mesclavam a música popular brasileira com o rock, tendo também
influências da música erudita por conta dos maestros que participaram ativamente
nos arranjos, a bossa-nova misturava o samba com o jazz, principalmente o Bebop
e o Cool Jazz, segundo Campos(1993/2012).

Imagem 2 - Tom Jobim e João Gilberto, precursores da Bossa Nova4

4
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/i1408200801.jpg Acessado em: 5/11/2018. ​Acessado em:
5/11/2018

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Dessa forma, pode-se constatar o mesmo caráter antropofágico que está
presente na Tropicália também está na Bossa-Nova também, mesmo que de forma
menos evidente, mais sutil, já que esta tem a característica do “culto à música
popular nacional no sentido de integrar no universal da música as particularidades
específicas daquela”, segundo Campos(1993/2012:24). Tal culto não pode ser dito
como regionalista e preconceituoso quanto a práticas musicais estrangeiras, mas
sim no âmbito de revitalizar essas características regionais, porém “garantindo a
individualidade das composições pela não-diluição dos elementos
regionais”(CAMPOS, 1993/2012:24).
Mário de Andrade, em seu livro Pequena História da Música, afirma que
desde sua origem, a música popular brasileira incorpora diversos recursos de
origem estrangeira: americanos, italianos, franceses, ibéricos, centro-americanos,
argentinos, africanos, etc. Sendo assim, com a Bossa Nova e a Tropicália não é
diferente. Concluímos que a Bossa Nova por si só apresenta características
antropófagas, embora em força muito menor do que aconteceu na Tropicália.

1.5. O Rock
O Rock como gênero musical surgiu nos Estados Unidos do começo da
década de 60 (MUGGIATI, 1983), embora suas raízes estejam no rock and roll dos
anos 50(CHACON,1985). O estilo surgiu como uma mistura do Blues, do Country e
do Rhythm n’ Blues, e posteriormente, foi influenciado por estilos como o Folk, o
Jazz e até a música erudita. Tendo em vista tais exemplos, vemos que a
característica da devoração mencionada acima está presente no rock, já que ele
devora tantos estilos e influências para si, sendo quase que antropófago, salvo o
fato dele não devorar o estrangeiro, mas sim a cultura exclusivamente
estadunidense, ao menos num primeiro momento, não tendo assim o caráter mais
brasileiro e tropical que Oswald propunha, até por se tratar de outro país, porém
ainda assim é possível destacar desse gênero que compõe a mistura da Tropicália a
devoração como característica antropofágica.

9
1.6 Antropofagia como movimento político-artístico-cultural
Ao sintetizar movimentos dialeticamente opostos - Bossa Nova e Iê-Iê-Iê (o
assim chamado rock que começou a aparecer no brasil em meados da década de
60, liderado por Roberto Carlos e Erasmo Carlos) - a Tropicália devorava tanto a
cultura popular quanto a de massa, conforme as definições de cultura dadas por
Teixeira Coelho, e que nos aprofundaremos adiante, e criava uma arte rica, criativa
e única, rompendo com os padrões que estavam estabelecidos para as expressões
artísticas dos anos 60, mas em especial à música.

Figura 3 - Elis e Jair Rodrigues no Figura 4 - palco do programa Jovem


programa O Fino da Bossa5 Guarda6

Quando a Tropicália surge como algo diferente do que se tinha na época, ao


se diferenciar dos dois únicos programas musicais da TV, Fino da Bossa,
comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, que representava o pessoal da MPB,
e o programa Jovem Guarda, tendo a frente Roberto Carlos, representando o
pessoal do Iê-Iê-Iê, ela passa a ser vista de forma diferente pelas pessoas, já que
não havia uma identificação do movimento com o iê-iê-iê, já que não era um rock
puro e estava ligado à música popular, e nem com a primeira leva da MPB (Nara
Leão, Elis Regina e Edu Lobo), já que eram vistos como “traidores” da música

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https://3.bp.blogspot.com/-7SA0IsCImwI/Vuv4mnh1_pI/AAAAAAAAJ1I/2ymzMbkZfvYi-8qtO1NWZjC
PlJub6d1qA/s1600/tumblr_nig4ealWvS1r87y3ro1_1280.jpg​ Acessado em: 5 de novembro de 2018
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http://rollingstone.uol.com.br/media/_versions/legacy/2011/img_24851_roberto-carlos_widelg.jpg
Acessado em: 5 de novembro de 2018
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popular brasileira. Colocar guitarras elétricas no samba era praticamente uma
heresia, uma submissão ao colonialismo cultural encabeçado pelos Estados Unidos.
Segundo a definição de Haroldo de Campos, a Antropofagia indica
“fenômenos de desconstrução, de destruição de padrões, de esquemas”. Esse
movimento de subversão, desconstrução e de questionamento ao tradicional, muito
presente nas manifestações contraculturais da segunda metade da década de 60,
como o movimento hippie, por exemplo, não está apenas no âmbito da arte, mas
também na cultura, nas tradições e na sociedade de uma forma geral.
Tal movimento de desconstrução muitas vezes é acompanhado por um
processo de devoração do que não é “nosso”; é necessário romper com as
estruturas antigas e as tradições para depois estabelecer uma nova arte e cultura
baseada no que se “devorou”.
No manifesto antropófago, Oswald diz que: “​Só me interessa o que não é
meu. Lei do homem. Lei do antropófago​”. A tropicália utiliza-se disso para embasar
uma transformação cultural, porém neste caso tal devoração não é feita como uma
mera cópia, mas sim uma fusão, uma espécie de hibridismo. Um exemplo desse
caráter antropofágico no movimento da tropicália, possivelmente o mais citado em
textos sobre o assunto, é a mistura da música popular brasileira com o Rock que
estava florescendo nos anos 60 com a explosão dos beatles, do rock Inglês de uma
maneira geral e da ascensão da flower power nos EUA, principalmente.
Ironicamente, Oswald já preconizava essa devoração do “inimigo” que seria,
para os militantes do CPC, os imperialistas ianques, no seguinte verso do Manifesto
Antropófago: ​“(...)Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em
totem.(...)“ (​ ANDRADE, 1928)

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2. Tropicália

2.1 Breve Contexto Histórico


A Tropicália foi um movimento artístico, predominantemente de linguagem
musical, que começou em 1967 e terminou em 19697. Embora curto, o Tropicalismo
foi um dos momentos mais importantes para a música brasileira, no qual se abriram
as portas para a mistura do Rock que estava surgindo na época nos Estados Unidos
e na Inglaterra com as músicas tradicionais brasileiras, tal fusão que perdura até
hoje no Brasil.
O nascimento da Tropicália é marcado entre setembro e outubro de 1967,
durante o Festival de Música Popular Brasileira de 1967, organizado pela TV
Record, com a apresentação de “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, com a
participação do grupo de iê-iê-iê Beat Boys; e “Domingo No Parque”, de Gilberto Gil
ao lado d’Os Mutantes. Ambas as canções foram um choque para o público, já que
na época, a música popular no Brasil era formada apenas pelo movimento do
iê-iê-iê, uma tentativa de rock brasileiro totalmente inspirado na música estrangeira,
e a chamada MPB, que se apresentava no programa O Fino Da Bossa, englobando
ícones como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Edu Lobo, Jair Rodrigues e Nara
Leão, como já foi dito no capítulo 1.6.
Quanto a esse segundo grupo, é possível notar um caráter de protesto muito
forte em muitas de suas canções, indo em confronto direto com o regime militar que
estava estabelecido no Brasil naquela época. O elemento ditadura militar é
essencial para a plena compreensão do projeto tropicalista, já que embora as letras
não contivessem mensagens tão explicitamente políticas quanto canções como “Pra
não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré, ou “Apesar de você” de Chico
Buarque, o movimento foi perseguido por questionar o conservadorismo da
sociedade brasileira e propor uma revolução dos costumes, com uma nova cultura
não necessariamente popular, mas ​pop ​no contexto do final dos anos 60.

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Embora o tropicalismo tenha seu fim demarcado em 1969, com a prisão e o posterior exílio em Londres de
Caetano Veloso e Gilberto Gil, alguns autores defendem a existência de um “​pós-tropicalismo​”, que será
mencionado mais tarde no texto.

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Quando, em 1968, o governo militar baixou o Ato Institucional n° 5, o regime
chegou ao ápice da repressão e censura em todas as esferas; com isso, muitos
artistas mais engajados na luta revolucionária contra a ditadura, foram presos ou
mandados para o exílio (DA PAIXÃO, 2013). A esse momento da prisão de Gilberto
Gil e Caetano Veloso, em dezembro de 1969, é atribuído o fim da Tropicália.

2.2 A mistura tropicalista


“Síntese de movimentos dialeticamente opostos - bossa nova e iê-iê-iê - e um
dos criadores do Tropicalismo, Caetano trouxe para sua linguagem nossa realidade
de país subdesenvolvido, aproximando indústria e artesanato”
(KUBRUSLY, 1982. Disponível no LP História da Música Brasileira)

O tropicalismo foi um movimento que teve como norte a hibridação, a


devoração antropofágica do outro. Tal processo pode ser visto quando, ao justapor
elementos diversos da cultura, se obtém uma suma cultural de caráter
antropofágico, em que contradições históricas, ideológicas e artísticas são
levantadas para sofrer uma operação desmistificadora (FAVARETTO, 1979:23). Tal
hibridação pode ser analisada em diversos aspectos, como na liquidificação dos
gêneros musicais estabelecidos, a proposição de uma nova modernização no
campo das artes, uma aproximação maior entre as diferentes linguagens artísticas,
e a aproximação do artesanal da indústria. Agora analisaremos individualmente
cada uma dessas hibridações.

“A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva.


Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a
atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e
exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não
sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos.
Procurei também – e procuro agora – relê-la nos textos originais, tendo em mente as
obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal
poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a
experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos
dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as

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implicações ‘maiores’ do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações
com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto
de uma super-intelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que
a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.”
VELOSO(1997:247-248)

2.2.1 Fusão de gêneros


Uma das características mais importantes, e possivelmente a mais conhecida
da Tropicália é a sua fusão de gêneros e o rompimento de normas estabelecidas no
meio musical, assim como Oswald já propunha em seu manifesto antropofágico.
Essa hibridação se deu em dois principais âmbitos: o primeiro foi a tentativa de
realizar uma música que não podia ser considerada nem pertencente à MPB, nem
ao iê-iê-iê, devido a aproximação dos músicos tropicalistas com bandas como os
Beat Boys e Os Mutantes, que traziam o elemento Rock à música genuinamente
brasileira que estavam fazendo.
Outro aspecto que mostra essa fusão de gêneros é a incorporação de
músicos eruditos de vanguarda, como Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Sandini
Hohagen e Júlio Medaglia, ao movimento. Esses músicos foram arranjadores e
maestros de muitas das canções tropicalistas, incorporando elementos eruditos à
música popular, como se pode ver no arranjo de sopros de “Domingo No Parque”,
de Gilberto Gil, feito por Rogério Duprat, ou até mesmo no arranjo de “Alegria,
Alegria”, de Caetano Veloso, feito por Júlio Medaglia, fundindo assim as culturas
erudita e popular.

2.2.2 Uma nova modernização


O Tropicalismo foi de encontro à modernização musical que acontecia na
década de 50 e 60 com o movimento da Bossa Nova, não no sentido de
contestação, mas de propor algo novo. A visão dos tropicalistas era de que a Bossa
Nova foi algo positivo para a música brasileira, ao propor algo novo e diferente, e
que possibilitou uma renovação na música da época. As críticas da Tropicália à
Bossa Nova não são pelo viés de que a Bossa Nova subverteu a música brasileira,

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sucumbindo ao imperialismo americano, como argumenta o crítico José Ramos
Tinhorão, mas muito pelo contrário.
Os tropicalistas viam que a Bossa Nova estava dando sinais de desgaste e
de conservadorismo, e além disso eram contrários ao nacionalismo que os adeptos
das canções politizadas, herdeiros da primeira geração da Bossa Nova,
expressavam de maneira enfática, naquele momento. (CALADO, 2017:40)
Em 66, na “Revista Civilização Brasileira”, Caetano anunciava claramente o
que deveria ser -e foi- feito nos anos seguintes: “​Só a retomada da linha evolutiva
pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação.
Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e
nonas não resolve o problema​''.
No mesmo depoimento, apontava João Gilberto como a ponta do novelo da
modernidade a ser retomada: “​João Gilberto para mim é exatamente o momento em
que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na
renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira​” (CALADO,
2017:40).
A resposta que o tropicalismo dava a essa questão pode ser explicada com
as ideias antropofágicas, que propunham a devoração desse suposto “inimigo” que
seria, nesse caso, a Bossa Nova. ​“(...)Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.
Para transformá-lo em totem.(...)“​ (ANDRADE, 1928)

2.2.3 Intercâmbios Artísticos


Para além da hibridação das contradições no âmbito musical, a Tropicália foi
além, e trouxe a fusão da música com outras linguagens artísticas, possibilitado pelo
contato dos tropicalistas com artistas de outras áreas, como José Celso Martinez
Corrêa, do teatro; Glauber Rocha, do cinema; Hélio Oiticica, nas artes plásticas; os
poetas concretos Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, em
conjunto com os poetas genuinamente tropicalistas Torquato Neto, Capinam e Waly
Salomão. Nos tópicos seguintes, abordaremos especificamente a relação da
Tropicália com tais linguagens e artistas.

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2.2.4 Hibridações sociais e políticas
Em termos sociais e políticos podemos dizer que a Tropicália propunha uma
aproximação do artesanal à indústria, ao incorporar elementos exclusivamente
tradicionais com elementos massificados, como Gilberto Gil mostrou numa
entrevista a Augusto de Campos:

“A propósito, essa ideia (...) de aproximar a sonoridade do berimbau dos


instrumentos elétricos é um “achado” muito interessante (...) e que tem esse
sentido “antropofágico” mesmo. Colocar a monocultura dentro da indústria,
de repente…” (​ CAMPOS, 1993)

Portanto, há acima de tudo uma hibridação do que é nacional com o que é


estrangeiro. Caetano já dizia em 1967 “Nego-me a folclorizar meu
subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a
Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas
acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs. (...) Venho-me interessando mais
pela poesia iê-iê, pela vitalidade natural da música vulgar e comercial, do que pelo
intelectualismo em que haviam caído todos os que se acreditavam continuadores de
Caymmi, Noel e outros. (...) Estou-me esforçando para respeitar meu público, que é
jovem como eu, e está também interessado em que sejamos gente do mundo de
agora.'' Ser gente do mundo de agora, ser um país do mundo de agora, uma cultura
do mundo de agora. E de quem era o mundo de agora? “O mundo realmente é de
Batman”, provocava Caetano, causando urticárias na esquerda nacionalista, nos
arautos das “raízes”, nos violeiros do protesto “anti imperialista”.(GONÇALVES,
1996)

2.2.5 Dialética produção-consumo


No momento em que Caetano chama a atenção para a conscientização dos
recursos técnico-artísticos, para trazer o verdadeiro lastro criativo à música
moderna, coloca o dedo em uma ferida difícil de fechar. Ao incorporar tecnicamente
novos meios e materiais, surgem diversos preconceitos baseados no arcaísmo das
visões anti-dialéticas, hostis aos meios tecnológicos de produção de linguagem e

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que muito têm contribuído para uma separação rígida e falsa entre arte e meios de
comunicação.(SANTAELLA, 2017:30)
Os tropicalistas conseguiram recriar os elementos tradicionais do Brasil,
deglutindo antropofagicamente o que havia de elementos informativos nos
movimentos de massa e ao incorporarem traços do repertório erudito. Dessa forma,
vemos que a tropicália consegue ser híbrida ao atuar tanto na esfera da produção
artística, quanto na do consumo, mais ligada ao fim comercial da arte.

2.3 A “estética” tropicalista


O tropicalismo, por não ser um gênero musical, mas sim um movimento, não
possui uma estética palpável e definida, porque a própria ideia de tropicalismo
implica na liberdade e libertação das amarras dos gêneros musicais. Como, então,
definir algo comum a todas as obras tropicalistas? O tropicalismo contrapõe-se à
estética tanto quanto se contrapõe à política, pois não possui um discurso verbal
politizado. O caráter revolucionário e político do movimento estão inseridos em sua
própria estética. Por essa conceituação queriam uma linguagem mais cruel e mais
realista, o que Gilberto Gil chamava de “veneno no novo”. Os tropicalistas buscavam
os sons universais, próximos da estética ​pop internacional(CONTIER, 2006). A
“estética” tropicalista está muito mais ligada a contestação do que é tradicional,
erudito e ​pop naquele contexto histórico do final da década de 60, do que a um
conjunto de semelhanças artísticas que podem ser consolidadas em uma estética
comum a todas as obras tropicalistas.

2.4 Cinema novo e a Tropicália


O Cinema Novo, mais precisamente o filme Terra em Transe, do cineasta
brasileiro Glauber Rocha, foi o estopim para a formulação das primeiras ideias de
Caetano Veloso que levariam ao desenvolvimento da Tropicália, por parte de
Caetano Veloso. Como ele mesmo diz em seu livro Noites Tropicais, “Se o
tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então
de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme
Terra em Transe​ de Glauber Rocha” (VELOSO, 1997:99)

17
A história do filme se passa em Eldorado, cidade em que a situação política
está insustentável. O grande protagonista do filme é o poeta, jornalista e militante
Paulo Martins. Após a sua experiência política o poeta afirma que: "a política e a
poesia são demais para um homem só." Esse descontentamento com a política faz
com que ele dedique-se apenas a poesia. Tal situação é análoga à Tropicália
quando, ao não seguir a música militante e de protesto do CPC, nem a música
considerada alienada da Jovem Guarda, ao mesmo tempo propondo algo novo e
que contesta o ​status-quo não pela ação direta nas letras, mas sim na discussão e
proposição de uma arte nova e diferente.

Imagem do filme ​Terra em Transe8

O movimento do cinema novo, que abre espaço para as produções


brasileiras e para um cinema engajado politicamente, vinha com uma nova
perspectiva: "a realização de filmes descolonizados, vinculados criticamente à
realidade do subdesenvolvimento, capazes de traduzir a especificidade da vivência
histórica de um país do Terceiro Mundo."9 Glauber se dizia influenciado pela estética
da época, em sua obra estavam presentes as preocupações ideológicas que
marcaram sua geração. O Cinema Novo se propõe a realizar filmes vinculados à

8
http://www.planocritico.com/critica-terra-em-transe/ acessado em: 01/11/2018
9
HOLLANDA, H. B. de GONÇALVES, M. A. Op., Cit., p. 37.

18
nossa realidade, a realidade do subdesenvolvimento, um comprometimento com os
problemas no nosso tempo. Glauber propõe um cinema revolucionário na forma e
no conteúdo, distante tanto das preocupações mercantilistas quanto das puramente
formais, uma arte comprometida com a verdade. Este cinema estaria à margem da
indústria, pois, como diz o autor, "o compromisso do Cinema Industrial é com a
mentira e com a exploração"(ROCHA, 1965).
O movimento narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os
temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes,
personagens roubando para comer, personagens matando para comer,
personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando
em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema
Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos
interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não
suportando as imagens da própria miséria”.10
A tropicália bebeu dessas raízes propostas por Glauber ao, assim como os
filmes do cineasta, propor a escancaração dessa nossa realidade
subdesenvolvimentista, porém ao mesmo tempo negando seu estado depreciativo
que a ideologia imperialista pressupõe. Conforme entrevista de Caetano Veloso,
“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades
técnicas.”

2.5 Concretismo e a poesia tropicalista


O concretismo, em termos de poesia política, atribuiu o problema de
identidade ao nacionalismo por um prisma diferente. Com a integração de sua linha
de frente num circuito internacional de arte e com sua ênfase na exploração
modernista de recursos intelectuais e técnicos, independentemente da origem,
nacional ou estrangeira, o concretismo auxiliou a reconfigurar culturalmente a nação
de forma positiva. Com sua insistência na teoria, reconsiderações históricas e
criação de uma tradição alternativa, a vanguarda concretista “intencionalmente
engajou-se numa missão de civilização que resultou na representação de um
projeto de modernidade”. É nesse sentido que o concretismo está alinhado com a

10
Ibidem nota 9
19
tradição empenhada, a tradição nacional e continental de engajamento no campo
das letras.
O Tropicalismo e o concretismo estão ambos, enfim, preocupados com um
perfil nacional marcado pelo ufanismo folclórico. Eles foram críticos severos que
produziram “contra-ideologias estéticas ou estratégias culturais profundamente
semelhantes”, nas palavras de Lúcia Santaella. Enquanto ela deixa de usar
exemplos do impulso concretista na MPB, aloca outro ponto fundamental em
contato com uma compartilhada “abertura do aparato produtivo da criação para a
interseção com outras áreas de atividade artística… nessa raiz intersemiótica”. Esta
referência para inclinação interartes sugere a etiqueta “verbivocovisual” da poesia
concretista e, em outro nível, o contato com outras contrapartes em escultura ou
show (concerto musical), bem como no caráter multidisciplinar do tropicalismo. As
atitudes-guia da nova expressão musical, adicionalmente, estão relacionadas como
nunca foram antes, com relação à variedade e variações das partes.
Todo esse relacionamento, assim como o do grupo baiano com o grupo
paulistano é analisado a nível teórico por Celso F. Favaretto em Tropicália: alegoria
alegria11. Enfatizando objetos artísticos afins (revisão crítica de cultura nacional,
ânimo de renovação) em vez de falar em influências diretas, Favaretto esclarece
que no tropicalismo há “um emprego reduzido dos procedimentos típicos da poesia
concreta (sintaxe não-discursiva, verbi-voco-visualidade, concisão verbal)”. O
próprio Augusto de Campos respondeu a perguntas sobre as ligações entre os dois
grupos. Antes de assinalar pontos de contato, faz uma ressalva significativa: “Mas o
que me fascina e me entusiasma neles não é tanto o fato de eventualmente
incidirem ou coincidirem com a poesia concreta, como a capacidade que eles têm
de fazer coisas diferentes do que fizemos e fazemos e que constituem informações
originais até mesmo para nós, que nos especializamos na invenção” (PERRONE,
1985)
Do trabalho coletivo tropicalista (Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé, Capinan,
Torquato Neto, Rita Lee, Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão), a única canção que
realiza propositadamente uma noção concreta é “Batmacumba” (Veloso-Gil):

11
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegria Alegoria. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1979. 158 p.

20
batmacumbaiéié batmacumbaoba
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumba
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié
batmacumbaié
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaié
batmacumbaiéié
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumbaoba12

2.6 Zé Celso e o teatro tropicalista


O principal grupo de teatro que tinha seu nome ligado à Tropicália é o
Oficina, liderado pelo ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, mais
conhecido como Zé Celso. O Oficina tinha uma perspectiva sem ligações partidárias
mas estava inserido dentro de uma estética realista, suas produções buscavam uma
inovação estética; havia a todo tempo não só uma preocupação político-social, mas
também com a forma teatral. O próprio nome Oficina, nos sugere conserto,
aprimoramento, e é isso que o grupo no decorrer dos anos buscou, a cada

12
GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Intérprete: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes. Tropicália
ou panis et circensis. São Paulo: Philips, 1968. 1 Disco sonoro.

21
encenação uma renovação dramática, a busca por uma arte engajada, pelo
aprimoramento do trabalho de ator e da linguagem cênica (BARBOSA, 2000).
O momento de grande importância para o grupo foi o ano de 1967, quando
fora encenada a peça "O Rei da Vela" de Oswald de Andrade, momento em que
juntamente com "Terra em Transe" (1967), e as músicas de Caetano e Gilberto Gil,
"Alegria Alegria" e "Domingo no Parque", tivemos uma verdadeira revolução em
relação à estética do período. O texto de Oswald encenado pelo grupo e dirigido por
Zé Celso, era uma resposta à radicalidade do Oficina naquele momento, a estética e
a política almejada pelo grupo.

Imagem - Encenação da peça O Rei da Vela pelo grupo Oficina13

A peça, encenada em três atos, conta da exploração capitalista de Abelardo,


um agiota vendedor de velas, que posteriormente vai à ilha de guanabara em um
ato de frente única sexual, junto dos outros personagens da peça, e nada mais
apropriado que o teatro de revista para ilustrar a vida do burguês brasileiro, a sua
antropofagia e como ele vive de conchavos com os reis da velas e os americanos.

13
https://f.i.uol.com.br/fotografia/2017/09/28/150662087359cd35c9967d8_1506620873_3x2_md.jpg​. Acessado
em 7/11/2018
22
No terceiro ato, por meio do estilo operístico temos a tragicomédia da morte. Após o
falecimento de Abelardo I e a substituição por Abelardo II (figura que ele mesmo
criou), fica visível como no universo burguês um indivíduo é facilmente substituível
por outro, desde que esteja de acordo com os interesses da burguesia.
Do ponto de vista visual, temos um impacto causado pelas cores, por
exemplo Abelardo I na praia está vestindo uma calça cor de ovo, ou seja, cores
fortes entram em sintonia com a temperatura elevada dos trópicos. Outro fator a
analisar é a junção de elementos arcaicos com modernos; o maiô futurista de
Heloísa em contraste com o arcaísmo dos trópicos, a crítica a um Brasil moderno,
que mescla elementos arcaicos e modernos e que não reconhece seu
subdesenvolvimento. Em uma visão tropicalista, a dependência existe, a alienação
existe e temos que viver em meio a isso, reconhecer que somos subdesenvolvidos.
Temos em O Rei da Vela uma cena antropofágica, que devora, incorpora
outras experiências teatrais, sem desprivilegiar os elementos nacionais,
reconhecendo o nosso subdesenvolvimento, que é o que propõe a discussão
tropicalista. Neste período, o grupo Arena destaca-se como uma companhia de
teatro realista, nessa perspectiva de retratar a realidade brasileira, assim como
Glauber Rocha em Terra em Transe, fazendo um teatro político que se propunha a
transformar a sociedade, ao lado da música popular brasileira das canções de
protesto, por meio da estética realista tínhamos uma denúncia do que se passava
na sociedade brasileira naqueles anos, de forma explícita.

2.7 Artes plásticas e a Tropicália


Em relação às artes plásticas, é destacada a obra de Hélio Oiticica,
"Tropicália", que inspira e dá nome ao movimento tropicalista. A obra era um
labirinto em forma de caracol, com muita areia no chão, rodeado de plantas
tropicais, muito verde, muito tropical. As pessoas percorriam o labirinto até
chegarem a uma televisão com a programação normal. Essa obra pode ser
relacionada com o hino tropicalista “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, já que há
uma mesma relação estabelecida entre o nacional e o estrangeiro nas duas obras.

23
Imagem - Exposição​ Tropicália​ de Hélio Oiticica14

Caetano é o primeiro a cantar sobre a Coca Cola e outros elementos da cultura


americana num contexto de uma música popular brasileira muito rígida e com limites
nacionalistas, e Oiticica nos traz esse mesmo sentimento ao misturar elementos
tradicionais e tipicamente brasileiros com um elemento proveniente de um mundo
globalizado e tecnizado, no caso a televisão.
A concepção de arte de Oiticica esteve sempre ligada às questões estéticas
levantadas nos anos 50 e 60. O artista plástico, como todos aqueles que
vivenciaram os anos sessenta, queria uma arte de vanguarda, brasileira, que
incorporasse por meio da antropofagia elementos estrangeiros. O próprio autor
afirma que sua obra: "Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de
impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das
manifestações em geral da arte nacional. "15

14
Do site OBVIUS ​http://lounge.obviousmag.org/coqueluche/2013/04/tropicalia.html ACESSADO EM: 01 NOV
2018
15
FIORAVANTE, C. E a Cor dançou com Oiticica. ln: Folha de São Paulo, São Paulo, quarta-feira, 09/09/98, p. 1,
(Ilustrada).
24
Quanto à arte de Hélio, pode-se destacar os elementos tropicalistas de
devoração antropofágica, devoração de linguagens, da cultura externa, da mistura
de elementos arcaicos e modernos (BARBOSA, 2000).

2.8 Contracultura e Tropicália: fim de um movimento


Foi no dia 22 de dezembro de 1969 que, por conta da ditadura militar que se
instaurava no país, a revolucionária Tropicália chegava ao seu fim, com a prisão e,
mais tarde, exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso, dois grandes ícones da
tropicália no País. Essa época final do projeto tropicalista coincide com o declínio
dos movimentos contraculturais que aconteciam no resto do mundo, no final da
década de 60.
No Brasil, esse movimento de contracultura havia chegado um pouco
atrasado por conta do regime ditatorial instaurado no ano de 1964. Uma ramificação
desse movimento só começa a ser percebida no ano de 1969, no auge da censura e
repressão do governo brasileiro. A “contracultura tropical” provocada principalmente
pela Tropicália ficou conhecida como “desbunde”.
Assim como aconteceu com o rock nos Estados Unidos da América, foi por
meio da música que o desbunde ganhou força social. Com nomes como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, os baianos do Tropicalismo surgem com sua versão tropical
de contracultura, com uma “atmosfera de potencial libertador”16, trazendo questões
já conhecidas no movimento internacional – religiões orientais, hippies, rock – e
acrescentando temas brasileiros – candomblé, índios, negros, jovem guarda, bossa
nova. Mas, por causa da ditadura brasileira, esse desbunde cultural foi recebido e
visto de maneira extremamente negativa por parte do governo e das famílias.

16
JUNQUEIRA (2009:29)
25
3. Tropicalismo hoje

“(...) não há possibilidade de escapar do tropicalismo. É como amor de mãe para sempre
devorador e eterno.”​ Jorge Mautner17

3.1 Pós Tropicalismo


Os compositores considerados “malditos” da MPB, já que acabaram não
sendo tão reconhecidos ao grande público, como Jards Macalé, Tom Zé, Luiz
Melodia, Jorge Mautner e Sérgio Sampaio, surgiram e iniciaram suas carreiras sob a
influência da Tropicália, não eram tropicalistas, pois apesar da repressão ser a
mesma, o contexto era outro. Os “malditos” da MPB deram abertura a suas carreiras
acrescentando não um novo movimento, mas um novo olhar, o “pós-Tropicalismo”
Enquanto a Tropicália cantava a “Alegria, alegria”, canções de caráter mais
feliz, otimista e libertador, o pós-tropicalismo trouxe canções de caráter “noturno”, a
desesperança, a solidão, a tristeza, a escuridão, a temática da morte e o sentimento
de derrota. Num contexto de exílio dos maiores símbolos do tropicalismo e da MPB,
os pós-tropicalistas surgiram sob o impacto da desesperança, da frustração dos
sonhos de resistência quanto à ditadura e da própria derrota que a essa altura era
fato consumado.
Embora haviam, no começo da década de 70, algumas canções mais ligadas
ao lado feliz e esperançoso dos movimentos contraculturais. São exemplos desse
lado solar da contracultura brasileira diversas canções de Raul Seixas, dos Novos
Baianos e dos Mutantes, bem como da posterior carreira solo de Rita Lee. Mas o
que podemos denominar de temática noturna é talvez a que melhor caracteriza o
período denominado ​pós-tropicalismo​, e vamos encontrar sinais dela até mesmo na
produção dos artistas mais identificados com a visão positiva do momento. Assim,
“Dê um rolê”, canção da dupla novo-baiana Moraes Moreira e Luiz Galvão,
memoravelmente gravada por Gal Costa (Gal a todo vapor), afirma o tema básico
do flower power: “Eu sou amor da cabeça aos pés”, mas os versos iniciais da letra

17
MAUTNER, Jorge. Herdeiros Musicais: Jorge Mautner. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/jorge-mautner-2>. Acesso em: 17 out.
2018.
26
atentam para o que há de espantoso numa tal afirmação no contexto brasileiro:
“Não se assuste, pessoa / se eu lhe disser que a vida é boa.”
Os músicos considerados “malditos” não pertenciam a um “movimento”
especificamente, como o movimento bossa-nova ou os tropicalistas por exemplo.
Porém, eram eles os responsáveis pelas propostas musicais mais arrojadas e
ligadas à vanguarda musical brasileira. Além da musicalidade bastante “exótica”, os
“malditos” possuíam em comum traços de personalidade bastante forte e impulsiva.
Vendo essas características sob uma proposta comercial e direcionada a um
público alvo, a própria dificuldade de catalogação e enquadramento em estilos
musicais específicos, as gravadoras encontraram nesses artistas uma possibilidade
de venda de um produto, só faltava o rótulo, daí surgiu o apelido nada carinhoso de
“maldito”. Apelido esse que inicialmente foi alimentado pelas próprias gravadoras,
provavelmente buscando atingir uma juventude, ​cult​, politizada e ligada às
tendências contraculturais. Porém, a rotulação com o tempo foi entrando em
desgaste e até mesmo voltando-se contra os próprios artistas.

3.2 Herdeiros Musicais da Tropicália


A Tropicália vem inspirando diversos jovens artistas desde seu nascimento. A
abertura de possibilidades sonoras e quebras de fronteiras entre gêneros
consolidados proposta pelo movimento, acabou influenciando direta e indiretamente
as gerações seguintes. Sua ousadia e seu caráter de vanguarda possibilitou uma
maior liberdade para os músicos e bandas surgidas após o movimento.
Nos anos 80, por exemplo, duas vertentes bem diferentes trouxeram de volta
algumas das experimentações tropicalistas. O rock brasileiro e a chamada
“Vanguarda Paulistana” dialogaram diretamente com os avanços do movimento.
Mais posteriormente, caracterizaremos mais a fundo esse movimento, que foi um
dos maiores herdeiros da Tropicália.
Nos anos 90, a obra dos tropicalistas serviu de estímulo para uma série de
grandes cantores-compositores da moderna MPB. O pernambucano Chico Science,
por exemplo, criou junto com sua banda Nação Zumbi um dos movimentos mais
fortes da música popular brasileira da época, empregando um recurso tipicamente
tropicalista: o diálogo estratégico de ritmos regionais (como o maracatu) e universais

27
(como o rock, o funk e o rap). Esse estilo foi denominado Mangue-beat e adquiriu
caráter de movimento, tendo até um manifesto, influenciado pela proposta
antropófaga de Oswald de Andrade. Outras bandas atuais de Recife, como
Mombojó ou Banda Eddie, ainda mantêm a perspectiva de modernizar o som local a
partir de influências universais.
A aproximação da música atual com o canibalismo oswaldiano-tropicalista é
evidenciada por trabalhos do ​mainstream,​ como os de Carlinhos Brown, Arnaldo
Antunes e Marisa Monte. Os três fundaram o projeto Tribalistas, com claras
influências tropicalistas, seja pelo seu som e letras, seja pela proposta de um disco
coletivo entre compositores. Da mesma forma, esse legado também se faz presente
em suas carreiras. Carlinhos, compositor e músico baiano, promove, tanto com sua
música quanto com seu visual exagerado, uma nova e pessoal mescla de
linguagens locais e externas, o rock-afro-reggae-baiana. Já o paulista Arnaldo
Antunes, compositor popular e poeta concretista, mostrou-se em sua carreira solo
um herdeiro da inquietação, do espírito de aventura e de vanguarda característicos
do tropicalismo. A carioca Marisa Monte, por sua vez, segue o exemplo de liberdade
de repertórios e de compromisso com a inovação musical. Marisa se permite
interpretar os mais diversos gêneros de dentro e de fora do País, do pop ao brega,
do rock de vanguarda ao samba de tradição, gravando inclusive músicas
diretamente ligadas ao Tropicalismo, como “Panis et Circensis”.

3.3 Vanguarda paulistana


O arranjador Rogério Duprat exerceu uma influência fundamental no
movimento tropicalista e, coincidentemente, teve também uma relação próxima com
Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção no início de suas carreiras. A mistura
audaciosa de Barnabé de música popular e atonal nasceu da admiração pelos
arranjos tropicalistas de Duprat, mas Barnabé também considerava que o
experimento tropicalista fora apenas parcialmente bem-sucedido. Embora as letras
de muitas composições tropicalistas fossem quase sempre desconcertantes e não

28
convencionais, as canções não eram musicalmente ousadas e precisavam ser bem
mais experimentais18
Segundo Arrigo Barnabé, o que lhe interessou muito na Tropicália foi a
possibilidade de trabalhar a cultura popular com a erudita, porque era
profundamente ligado à música erudita, e não tinha essa familiaridade com a música
popular. Segundo suas palavras, “​Eu não sei, se não tivesse acontecido a
Tropicália, que caminho eu teria tomado. A fusão é fundamental para mim e a
influência que eu tenho deles é essa tendência de misturar as coisas.​”19
Assumpção achava que não ocorrera nenhuma grande inovação na música
popular brasileira desde as agitações instigadas pela tropicália, e tanto ele quanto
Barnabé eram movidos por um desejo de buscar direções musicais até então
inexploradas.
Em 1982 Assumpção declarou que suas apresentações ao vivo (as quais
eram conscientemente teatrais e provocativas) eram um esforço diligente para
expandir as ideias existentes de como apresentar música no palco, e que estava à
procura de uma apresentação musical mais completa, algo que iria além das
inovações da tropicália. Em sua opinião, a música popular brasileira não conseguirá
assimilar os aspectos originais da tropicália e ficará presa num bloqueio criativo.

3.4 Mangue Beat


O movimento Manguebeat é apresentado como um movimento que trazia
para a cena política e cultural os jovens de “periferia”, com o intuito de mudar o
contexto de estagnação cultural que a cidade se encontrava nos anos de 1990, a
proposta era associar política e música com um olhar “antenado” as condições de
seu cotidiano na cidade. A ideia do movimento era justamente universalizar os
elementos nacionais (a fusão dos ritmos regionais e o pop), propondo mostrar uma
nova cena para o mundo, conectando o Brasil com o cenário pop mundial e assim,
dialogando com as ideias tropicalistas e antropofágicas.

18
STROUD, Sean. Música popular brasileira experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a
tropicália. Revista USP, São Paulo, n. 87, p. 86-97, nov. 2010. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13832/15650/0>. Acesso em: 17 out. 2018.
19
BARNABÉ, Arrigo. Herdeiros Musicais: Arrigo Barnabé. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/arrigo-barnabe>. Acesso em: 17 out. 2018.

29
O movimento se consolida, assim como a Antropofagia, com um manifesto de
cunho textual, denominado “Manifesto Caranguejos com Cérebro”, alusão ao animal
comum no mangue. A proximidade do texto com as ideias de Oswald são muito
claras, por exemplo nesse fragmento do texto:

“Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade
um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um
*circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede
mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica
enfiada na lama.”20

Tal imagem de uma antena parabólica fincada na lama é, por si só,


antropofágica: propõe uma fusão da cultura local, as raízes do mangue, com as
influências externas sendo captadas pela antena, da mesma forma que a
Antropofagia fez, e posteriormente, a Tropicália.

3.5 Inevitável volta ao Tropicalismo?


Jorge Mautner, artista que caminhou ao lado de diversos tropicalistas no
período do movimento, e figura muito ligada ao período do pós-tropicalismo,
defende a tese de que toda a arte produzida após o tropicalismo, consciente ou
inconscientemente, bebe de tais raízes, de forma que não há possibilidade de
escapar do tropicalismo, e destaca a amplitude e a abrangência das influências do
tropicalismo na cena atual. Ela vai desde estilos atuais musicais e comportamentais
dos mais sofisticados aos mais populares. Segundo o autor, “​a influência do
tropicalismo se estende em direção de todas as artes, não só das musicais, mas
das cinematográficas, coreográficas, culinárias, plásticas, ambientais, etc​.” O
próximo capítulo desta imensa ação tropical é a sua influência no mundo a partir
deste início de século XXI no qual o Brasil terá no espectro da cultura mundial sua
grande importância por causa deste tropicalismo que na realidade é, segundo

20
ZERO QUATRO, Fred; SCIENCE, Chico. Manifesto Caranguejos com Cérebro. 1992. Disponível
em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1308779-7085,00-LEIA+O+MANIFESTO+CARANGUEJ
OS+COM+CEREBRO.html>. Acesso em: 17 out. 2018.
30
Mautner, a massificação e a ampliação em direção da cultura de massas da
ideologia criada a partir da semana de arte moderna de 1922 em São Paulo.
Já segundo Chico César, cantor, compositor e artista paraibano, a vitória
mercadológica do Tropicalismo tem herdeiros muito claros, mercadológicos. O
artista diz que o herdeiro comercial do Tropicalismo é o axé music, mas o herdeiro
ideológico do Tropicalismo, o herdeiro estético, nós não sabemos quem é. “​As
pessoas que fazem música se apropriam de tudo o tempo inteiro, se apropriam de
tecnologias, de posturas etc. E essa foi, inclusive, a atitude dos tropicalistas. Talvez
nós vivamos hoje uma superação do conceito de herança. Não há mais herança, há
apropriação. Isso que se chama de herança que, por um lado, se considera positiva
e ela é positiva — e também elogiosa aos pseudo herdeiros — diminui o trabalho
que as pessoas tiveram para reconstruir um conceito de música brasileira que
estava se indo por água abaixo.”21
Nesse sentido, César argumenta que toda forma de arte é essencialmente
híbrida, e que a apropriação artística e cultural é o motor de toda criação artística.
Segundo TOTA (2010:37), a criatividade do artista está ligada à herança que
recebeu do passado e o meio social no qual está inserido. Assim, não é possível
dizer que a Tropicália foi o ponto exato da história da música popular brasileira onde
essa apropriação surgiu, porém podemos dizer que ela provocou intensamente a
desconstrução de diversos tabus que estavam presentes na arte popular da época,
e que essa desconstrução foi a base sólida que possibilitou a arte pós moderna que
é produzida hoje.
Segundo CANCLINI (1989/2015:23), as transformações mercadológicas na
arte ao mesmo tempo em que radicalizaram o projeto moderno, nos levaram a um
estado pós moderno de ruptura com o anterior. Nesse estado, as culturas já não se
agrupam em grupos fixos e estáveis e os dispositivos de reprodução se proliferam
(CANCLINI, 1989/2015:304), e a Tropicália está no meio dessa condição.

21
CÉSAR, Chico. Herdeiros Musicais: Chico César. 2007. Disponível em:
<http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais/chico-cesar>. Acesso em: 17 out. 2018.
31
4. Conclusão
Há divergências no tocante à existência de uma volta inevitável ao
tropicalismo em todas as obras que surgiram após ele, mas ainda assim o legado
que ele deixou na nossa arte foi tão grande que não pode ser deixado de lado. A
Tropicália foi em embate ao ​status-quo da época, rompendo com a tradição
estabelecida, e foi dialeticamente incorporando elementos modernos e
pós-modernos à nossa arte, levando-a para um rumo totalmente novo e
desconhecido até então.
O movimento inaugurou uma condição onde toda arte popular produzida é
híbrida, o que é um fato que pode ser claramente visto na arte de hoje em dia, onde
mistura-se o rap com ritmos afro-brasileiros e obtém o funk; mistura-se o pop, o
sertanejo e a arrocha e surge o sertanejo universitário. Enfim, exemplos não são o
que faltam para exemplificar essas hibridações na arte contemporânea brasileira.
O tropicalismo muito provavelmente não teria esse legado que teve se não
tivesse se apropriado (ou melhor, devorado) da Teoria Antropofágica, que é o motor
de toda criação tropicalista, e que traz esse caráter hibridizante ao movimento e a
todos os seus sucessores.
A Tropicália ainda vive e respira na arte e na cultura brasileira, mesmo tendo
acabado há quase meio século atrás.

Viva a Bossa, sa, sa


Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

32
5. Bibliografia

ALMEIDA, Maria Cândida. Tornar-se outro. O topos canibal na literatura brasileira.


São Paulo, Annablume, 2002.
ANDRADE, Oswald De. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São
Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-6, maio. 1928. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>. Acesso em: 17 out. 2018.
BARBOSA, Kátia Eliane. A encenação de "O Rei Da Vela" (Oswald De Andrade)
pelo Grupo Oficina em 1967: Marco Historiográfico do debate tropicalista no
brasil contemporâneo. 2000. 86 p. Monografia de conclusão de curso
(Bacharel em História)- Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2000.
Disponível em: <https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/18674>. Acesso
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