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OS DIAS DA VERGONHA
DE 25 DE ABRIL DE 1974 A
11 DE NOVEMBRO DE 1975
OS NOMES E OS ACONTECIMENTOS
DA LIBERTAÇÃO DE ANGOLA
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PREFÁCIO
Um dia, que esperamos a justiça dos homens não faça esperar muito, será classificado o
que se passou no Ultramar Português, e especialmente em Angola, no que se refere à
chamada «Descolonização». Nessa altura haverá revelações que muito surpreenderão o
nosso povo.
Entretanto, a verdade dos acontecimentos está sendo, aos poucos, descoberta por
testemunhas atentas e sensíveis que, numa tessitura aqui e além romanceada, vão contando
o que efectivamente presenciaram, ainda sem grande preocupação, ou possibilidade, de
aprofundar as respectivas causas.
Deste modo se estão produzindo verdadeiras monografias do dia-a-dia vivido naquilo que
constituiu não uma epopeia igual aos descobrimentos, como impudicamente foi dito, mas a
maior tragédia (e vergonha) da nossa História: a «Descolonização» e o «Retorno».
Num tempo em que generalizada crise de carácter se reflecte na acomodação cobarde de
muitos e na amnésia de quase todos, dos responsáveis às próprias vítimas, o aparecimento
dessas monografias dos acontecimentos deve ser saudado como verdadeira pedrada neste
charco.
Assim fui entendendo Os Dias da Vergonha, à medida que desfolhava as suas páginas. E
ficou-me um sentimento, complexo e amargo, de saudade, vergonha e desespero...
Todos, em Angola, conhecemos Reis Ventura das suas numerosas obras literárias, da sua
colaboração permanente num jornal da província, da sua fluente e empolgante oratória em
momentos históricos da vida do País e de Angola.
Numa prosa simples, acessível a todos, e rica de sensibilidade e de expressão, retraía
agora, nos sentimentos, nas atitudes e nas actuações, horas cruciais vividas em Angola,
naquele período de infelicidade e amargura que sucedeu ao 25 de Abril.
Nesta Crónica dos Dias da Vergonha ficam fixados factos que então ocorreram e que será
crime esquecer.
A Reis Ventura passamos a dever, os "retornados» verdadeiros, e os que o somos
espiritualmente e todos quantos conhecemos e compreendemos Angola e continuamos a
sofrer o destino que lhe foi preparado e imposto, a gratidão por mais este trabalho.
Reavivar assim a memória é serviço prestado a muitos de nós. E também à História.
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EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA
Neste livro se relatam factos que aconteceram em Angola desde 25 de Abril de 1974 a 11
de Novembro de 1975.
Começa ainda sob o signo da esperança, no engano do programa Inicial do Movimento das
Forças Armadas, que preconizava a defesa da Nação Pluricontinental, e das promessas dos
seus homens mais responsáveis. Mas termina em gritos de desespero, porque bem depressa
a realidade mostrou que era tudo mentira, vergonha e traição.
Há muito boa gente da melhor do Portugal desta hora aziaga) que se admira de que os
homens de Angola, tão corajosos e resolutos nos dias trágicos de 1961, se tenham mostrado
tão resignados e submissos depois do 25 de Abril de 1974.
Compreendemos esta atitude, porque até nós próprios choramos de raiva, ao pensar que
poderíamos ter altivamente salvo a terra dos nossos filhos, em vez de vir mendigar para a
desolada Pátria de nossos pais. Correria sangue, que nós não queríamos, e haveria uma
inevitável ruptura temporária com o Governo da Metrópole, que nunca deixou de ser a terra
da nossa saudade. Mas não aconteceria a entrega de Angola aos russos, nem a ignóbil
traição ao Ocidente, nem a tremenda desgraça de milhões de brancos, pretos e mestiços,
nem a confrangedora e multimoda vergonha de uma velha e nobre Nação, nem a rápida e
completa derrocada do que podia ser um grande e próspero País.
Se os brancos, pretos e mestiços que não andaram aos tiros nas matas, mas construíram
a Angola moderna, tivessem decidido assumir o poder na sua terra, nunca os laços fraternos
com a Mãe Pátria se quebrariam definitivamente; e dali poderia vir, a curto prazo, a força e a
ajuda necessárias para salvar este velho Portugal, integrado numa efectiva e grandiosa
Comunidade de Nações Lusíadas.
Mas é agora, depois dos acontecimentos, que tudo isto se vê com facilidade e clareza. No
decurso deles era diferente. E é preciso tê-los vivido, no confuso clima dos primeiros meses
da Revolução dos Cravos, para compreender a atitude dos portugueses de Angola.
Em 1961 tínhamos Salazar em Lisboa, um governador-geral bem português em Luanda (a)
e a Nação inteira ao nosso lado.
Acordávamos com esse tremendo hino «Angola é nossa!», que parecia — e era — um
clamor imperativo da alma milenar da Grei. Estávamos sem armas e sem soldados, mas
sabíamos que todo o povo português acompanhava emocionadamente a nossa resistência e
rezava pela nossa vitória. Durante a noite do cerco terrorista à pequenina povoação de
Mucaba, houve na Metrópole muita gente que não dormiu. Tínhamos connosco a ansiedade
e o apoio moral de todos os portugueses.
Depois do 25 de Abril de 1974, o mais pequeno gesto de resistência em Angola constituía
pretexto para detenção imediata, à ordem dos novos senhores, que logo saltaram sobre
aquela terra como lobos esfaimados. E o sofisma da «agressão ideológica» foi um látego de
esclavagista nas mãos de Correia Jesuíno... Todos os homens e mulheres que tinham apoiado
Salazar e Marcelo Caetano na sua decisão de defender o Ultramar ficaram imediatamente
sob suspeita, quando não sob atenta vigilância. O general Costa Gomes teve o cuidado de
substituir sem demora nem aviso prévio todos os comandos das Forcas Armadas de Portugal
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em Angola. Não se podia escrever uma palavra em defesa da acção portuguesa naquela
terra, sem ser logo apodado de reaccionário e fascista. Os videirinhos de sempre trataram de
alinhar na condenação de tudo quanto antes se tinha feito. A colaboração do autor deste
livro para a Emissora Oficial foi suprimida por sugestão de antigos elementos da União
Nacional. Quando o governador-geral Santos e Castro, tão vivamente entusiasmado com o
progresso daquela portentosa terra, tomou o navio do regresso, o porto de Luanda foi
fechado, para que ninguém se despedisse dele.
A independência de Angola, que primeiro se declarou dependente da vontade de todas as
populações, rapidamente se tornou uma decisão ditatorial e irreversível do Governo de
Lisboa. As notícias da Metrópole eram tão más que os melhores portugueses do que foi a
maior província de Portugal compreenderam que nada podiam esperar desse lado. E o dr.
Mário Soares declarava então, para quem o queria ouvir, que os nossos soldados abririam
fogo contra os brancos do Ultramar que tentassem qualquer aventura.
Mas há outra realidade ainda mais importante: e é que os brancos de Angola foram
torpemente levados de engano em engano, precisamente porque os vendilhões da Pátria
sabiam que a sua reacção seria inevitável, se em tempo oportuno pudessem imaginar o que
lhes viria a acontecer.
Todos os governantes de então declaravam que Angola era um caso especial. O general
António de Spínola disse que a escolha do governador-geral de Angola era mais importante
do que a nomeação do primeiro-ministro. E ainda hoje não somos capazes de compreender
porque deu ouvidos aos emissários do MPLA, que vieram a Lisboa caluniar o general Silvino
Silvério Marques, e substituiu esse homem íntegro, leal e sabedor por uma criatura tão reles
e tão comprometida com os comunistas, como o almirante Rosa Coutinho.
Muito mais se poderia aqui dizer sobre a maneira covarde e nojenta como foram
ludibriados os bons portugueses de Angola. Mas acrescentaremos apenas que o próprio
general Costa Gomes afirmou bem alto estar convencido de que Angola continuaria
portuguesa e várias vezes tranquilizou amigos íntimos, assegurando-lhes que os brancos
seriam sempre consultados e tudo se faria para conservar aquela terra ligada à Metrópole da
melhor forma possível.
Foi neste deslizar de engano em engano que os brancos de Angola, ainda com soldados
portugueses e autoridades portuguesas naquela terra, chegaram até à situação de se verem
inteiramente dependentes dos movimentos de libertação, que tinham ocupado todas as
posições abandonadas pela nossa tropa no Norte da província e já em princípios de 1975
faziam em Luanda tudo quanto lhes apetecia, agredindo, incendiando e roubando, à vista da
polícia e dos nossos soldados, alguns dos quais eu vi chorar de raiva, porque os não
deixavam fazer-se respeitar.
Com o decorrer do tempo as nossas Forças Armadas, sobretudo o Exército, ficaram tão
infiltradas por elementos comunistas, propositadamente enviados de Lisboa, que assistiam,
sem um gesto, a toda a espécie de infâmias praticadas contra os brancos. E no que respeita à
defesa das valiosíssimas estruturas da economia angolana, comportavam-se com a mesma
indiferença.
Bem me recordo ainda de como, durante um dos dias em que os empregados da Petrangol
foram impedidos de entrar na Refinaria do Alto da Mulemba por piquetes da UNTA (União
Nacional dos Trabalhadores de Angola), que era — e é — uma organização do MPLA, os
Unimogs da nossa tropa paravam junto das centenas de empregados acumulados à entrada
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do grande complexo industrial, e os nossos soldados riam da cena, inteiramente
desinteressados do enorme prejuízo económico resultante da paralisação da unidade. Houve
até alguns mais atrevidos (ou mais progressistas...) que foram buscar dois estrangeiros para
fotografar aquele belo quadro da descolonização exemplar. Tudo uma tristeza!...
Foi neste clima humano que decidi publicar este livro no jornal A Província de Angola, pela
única forma então possível, escolhendo para narrador e principal personagem um jovem
angolano, que sinceramente desejasse, com dignidade e bom senso, a independência de
Angola.
Não direi o seu nome, nem a sua raça, nem a sua religião.
Nada disto é da sua escolha. Usa o nome que outros lhe deram; tem a cor da pele com que
nasceu; professa o culto de seus pais.
Citará o nome de outros homens, as suas ideias políticas e religiosas, a cor do seu rosto.
Mas ele — o principal personagem deste livro — é apenas um homem, com o idealismo de
todos os jovens, com raízes bem mergulhadas na terra de Angola, com as ambições e
limitações da condição humana. Um homem com virtudes e pecados, com sonhos e
desilusões, com os olhos ávidos da juventude. Um homem em que muitos homens se podem
encontrar, se abstraírem de pequenas diferenças, olhando apenas o que é essencial no seu
corpo e na sua alma de filhos de Deus sujeitos às tentações do diabo.
Um homem que pensa, que fala, que julga o presente, que interroga o futuro, que vive na
convivência de outros homens.
O seu bilhete de identidade não é da sua iniciativa. Não foi convidado a nascer, não
escolheu as linhas ou a cor do seu rosto, não influiu na posição social de seus pais. Ninguém
o consultou sobre a terra da sua naturalidade. Na sua realidade mais profunda, é apenas um
homem.
Mas esse jovem angolano existe e, felizmente, continua vivo.
Reproduzo, por vezes textualmente, afirmações que lhe ouvi. Creio ter interpretado as
suas ideias e sentimentos, com respeito e fidelidade. Nem sequer fechei os olhos à sua
arrepiante desgraça e à sua amarga desilusão que, por incrível que pareça, também
aconteceu.
Não estou arrependido desta decisão, que me permitiu fixar, neste volume, o que foi uma
forte e muito expressiva tendência da Juventude Angolana, na sequência da revolução de 25
de Abril de 1974. Na verdade, e sem falsa modéstia, parece-me de alguma utilidade para os
futuros historiadores que se tenha anotado, ainda em cima dos acontecimentos, como foi
que tantos angolanos, honestamente adeptos da independência de Angola, passaram da
esperança ao desespero.
O meu ideal sempre foi outro.
Desde que me conheço, em livros, artigos, discursos e conferências sempre defendi a
continuação de Portugal no Ultramar Português. Sonhei uma Pátria Grande, desde o Minho a
Timor, onde coubessem todos os portugueses, em igualdade de direitos e deveres, com
idênticas possibilidades de acesso ao trabalho e aos seus frutos, de participação na
administração pública e suas responsabilidades, de completa integração na carne e na alma
da Nação.
Queria que um preto de Luanda, um mestiço de Cabo Verde ou S. Tomé, um indiano de
Goa, um fula da Guiné, um m acarta e de Moçambique ou um montanhês de Timor,
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qualquer deles, sem distinção de raça, cor ou religião, apenas pelas suas virtudes pessoais e
com a sua dignidade de português, pudesse ascender à Suprema Magistratura da Nação.
Sonho grande demais?
Não há sonhos demasiadamente grandes, «se a alma não é pequena».
Esse ideal não morreu: — mataram-no! Mas eu nunca o reneguei.
Em Angola, mesmo durante os dias malditos, as semanas da traição e todo o tempo da
vergonha, continuou a existir muita gente fiel ao belo sonho da Pátria multirracial e
pluricontinental.
Em 4 de Maio de 1974, na minha primeira crónica do jornal A Província de Angola,
publicada depois do 25 de Abril, escrevi o que a seguir transcrevo:
«Perante a viragem política efectuada pelas Forças Armadas de Portugal, eu, que sempre
defendi os governantes agora depostos, poderia ceder à tentação de me remeter ao silêncio.
Era cómodo, mas indigno.
Mantenho inalterado todo o meu respeito pela figura histórica de Salazar.
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permanente, esperando um líder que lhes marcasse o rumo, orientasse os passos e
aglutinasse as dispersas energias.
Assim o exprimem algumas das suas atitudes, desde as sensatas às desvairadas, como a
reacção ao estrangulamento dum motorista de táxi no Muceque Rangel, a greve dos
camionistas, a invasão do Palácio para interpelar o Almirante Vermelho, ou essa vaga de
incontível entusiasmo que deles se apoderou em 7 de Setembro, perante as notícias que
vinham de Lourenço Marques, através da Rádio Clube de Moçambique...
O desejado líder nunca apareceu. Os brancos foram desarmados. Uma a uma, caíram
todas as ilusões. E, só então, os melhores portugueses de Angola, que sempre estiveram
dispostos a segurar nas suas mãos a mais rica parcela da sua Pátria, só então é que
aflitivamente se agarraram à derradeira esperança: uma independência real e verdadeira
para todos, embora sob um governo da maioria negra.
Dessa última fase dá testemunho o pescador português Manuel da Costa Marques,
quando, já durante o Governo de Transição, o ministro Johnny Eduardo vai ao porto
pesqueiro recomendar a reactivação das pescas.
— Eu fico por todos estes pescadores — respondeu-lhe Manuel da Costa Marques —
porque os conheço a todos. Aqueles que por aqui aparecem, de noite, para roubar e com
ameaças, são desconhecidos. (...) Todos nós queremos trabalhar. E é o que eu tenho feito
desde que para aqui vim, em 1957. Olhe as minhas mãos, Excelência (e mostrava-
Ihas, possantes e bem calejadas...). E não estou arrependido. Tenho filhos mulatos. A minha
casa é um paraíso com todas as cores e sinto-me feliz: Agora, humilhado é que eu não quero
ser. Mandem-me embora mas não me humilhem!
— Ninguém o vai mandar embora! — interveio o ministro. E esta foi apenas uma das muitas
promessas não cumpridas...
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OS SINOS DA LIBERDADE
— A sério, o quê?
— Coitado! Ele não sabe de nada!... — fez o colega no dito habitual dos programas
Luanda-74.
— Não sejas obtuso, homem! O incidente das Caldas foi uma boa manobra para dar ao
Governo uma ilusão de força. Agora é que se vai ver.
Peguei no jornal, ainda fresco da impressão e percorri rapidamente os títulos.
— Querias? — perguntou ironicamente o Baldaque. — Não vês aí que foi visado pela
censura?
O meu jornal faz-se durante a tarde e a maior parte da noite. Na rotação dos turnos,
tocara-me a vez de dormir de noite e era, nesse dia, o único redactor escalado para a parte da
manhã.
O Baldaque tinha ficado de piquete ao telex desde as 2 horas. Mas não regressou. E,
quase de seguida, outros elementos do corpo redactorial entraram, quebrando o seu tempo
de repouso, ávidos de notícias: o Maia Campita, ferozmente decidido a emagrecer e cada vez
mais gordo; o Carlos Pontes com a sua barba à Renascença; o Gama Ribeiro, de bigode
farfalhudo; o Rosa Amaral, de cara emoldurada numa franja loura; o Sousa Quevedo, que na
véspera regressara de uma reportagem aos campos de petróleo do Zaire; o Santos Gouveia,
sempre de alma aberta a todas as esperanças —, todos gente nova, idealista e alvoroçada com
as perspectivas da sonhada mudança.
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— Que dizes a isto, bailundo? — disparou contra mim o último dos citados, que nasceu
no Algarve mas tem a cara tostada dum mouro de Ceuta.
— Louvo os teus propósitos, irmão! — declarou o Sousa Quevedo com a voz solene dum
padre no altar. — E ofereço-te um tema mesmo em cima do acontecimento: «os sinos da
liberdade»...
— Boa ideia! — apoiou o Maia Campita. — Deixemos este génio a alinhar os seus
adjectivos e vamos ao Biker, rapazes! É capaz de haver lá mais notícias...
Saíram, na mesma lufada de alegria com que tinham entrado. O Baldaque foi com eles e
eu fiquei só, na sala repentinamente silenciosa.
Puxei dum maço de linguados e escrevi ao alto «Os sinos da Liberdade». Mas fumei todo
um lento cigarro antes de encontrar qualquer frase de abertura. Eu ainda não ouvia o badalar
festivo. Ou estava desabituado do tema. De resto, só pela rádio é que se podem ouvir os sinos
das igrejas de Lisboa. É pouco, para mim, que sou um homem de Angola...
Já perto do meio-dia, soube que o Presidente Américo Tomaz não estava no Carmo:
tinha-se refugiado no quartel de outra unidade militar, também -cercada por tropas do
Movimento. A Marinha alinhara no golpe de Estado e uma fragata tomara posição no Tejo,
ameaçando bombardear o Palácio de Belém, se fosse indispensável.
Às 13 horas, a secção portuguesa da BBC de Londres voltou a dar notícias. A mais importante -
era que o Governo de Marcelo Caetano continuava cercado no Quartel do Carmo mas ainda se
não rendera. Constava apenas que já lhe fora entregue um ultimato pelo Capitão Salgueiro
Maia, que tinha os canhões dos seus «tanques» apontados para a velha caserna,
significativamente situada à sombra de ruínas históricas.
Foi neste ambiente que, às 17 horas, regressei a casa, sem ter conseguido escrever mais
que o título dum artigo e com o pensamento bloqueado pela mistura duma esperançada
ansiedade e do receio de uma nova desilusão.
Pouco mais tarde, ainda não eram 18 horas, ouvi tocar a campainha e fui abrir a porta. O
mesmo grupo da manhã irrompeu pela sala de estar, gritando a grande notícia: o Governo
rendera-se. O Movimento das Forças Armadas acabava de triunfar sem um tiro. E os recém
chegados romperam em vivas a liberdade. Viviam o seu momento de euforia. Abraçavam-se
no magnífico entusiasmo da juventude. Quase choravam de alegria.
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Alegria que era também a minha, porque tenho 32 anos e nunca simpatizei com o
regime deposto. Por isso abracei os colegas, um a um. Mas coibi-me de ser tão expansivo
como eles. E a razão era aquele homem de cabelos brancos, entristecido pela recente
reforma, sentado e silencioso no seu cadeirão do living.
Caminhei para ele, a pensar num abraço de compreensão. Ergueu em barreira as suas
mãos austeras de lutador e disse apenas:
Parei, com o respeito de sempre por aquele velho, que durante 48 anos apoiara os
governantes agora vencidos, que nunca me tentara afastar das minhas ideias políticas, que é
meu pai...
— Não tinha nada de ser! — protestou vivamente. E logo, com uma certa resignação —
Mas não falemos mais nisso...
— Ao pé de mim, sempre poderá dizer o que pensa...
— Para quê?! Todo o meu mundo ruiu. Mas eu estou no fim. Tu pareces satisfeito e é
isso que mais interessa... Agora, deixa-me só, meu filho...
Nasci de gente pobre, fiz o curso dos liceus com livros emprestados e matriculei-me em
Direito na Universidade de Lisboa, com uma Bolsa de Estudo.
Perdi-a quando entrei na greve de fome, ©m 1963. Tive então o primeiro contacto com
o facciosismo político e com a polícia. Emprestei os meus discos, para iludir a fome ao som
da música POP. A fome gritava mais alto e os discos nunca mais me foram devolvidos. Assisti a
exageros verbais e brutalidades físicas. Nada disto destruiu a minha sede de liberdade, que
tem o seu preço.
Na primeira carta após a greve, meu pai nem sequer ralhou. Deu-me apenas alguns
conselhos.
«Se tanto gostas da liberdade — escrevia — lembra-te de que, em Portugal, sem um
canudo de Curso Superior nunca passarás de subalterno. Conquista a carta de advogado e
serás mais livre do que eu pude ser. Muitas vezes me apetece dizer umas verdades ao meu
chefe, mas engulo em seco, porque o meu pão depende dele.
«A liberdade é, essencialmente, uma conquista interior. Se formos nós próprios no
domínio da nossa consciência, aí somos livres, ainda que de fora nos impeçam de exprimir as
nossas ideias.
«Neste sentido, fui sempre um homem livre. Se tu queres ser mais do que isto, como
sempre me pareceu, se queres ter também a liberdade de exprimir o que pensas e escolher o
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ideal político que mais te agrade, tens de te libertar da grilheta económica, que é a
necessidade primária de ganhar o pão de cada dia.
«E só a quebrarás completamente quando licenciado em Direito e devidamente
instalado no exercício da tua profissão.
«Com o Curso de Direito ganhas uma profissão liberal. E o nome é bem cabido, porque
uma profissão liberal ainda é o melhor processo de se beneficiar de um pouco de liberdade
efectiva e real.
«Sei que perdeste a Bolsa de Estudo, mas não te aflijas muito por isso. Eu vou mandar-
te toda a ajuda que puder.»
Respondi com palavras de comovido agradecimento por tão bons conselhos, mas
declarando que não precisava de dinheiro. Daria explicações para me aguentar nos estudos e
havia de vencer.
Meu pai teimou e eu comecei a receber um conto e duzentos por mês. Mas soube mais
tarde que o modesto funcionário passara a vestir de fardo e a usar sapatos keeds da Fábrica
Macambira.
Mesmo assim, não consegui terminar o curso. As faltas dadas durante a greve da fome
fizeram-me perder o ano e, com ele, o direito a adiamento do serviço militar. Fui incorporado,
vivi o meu tempo de instrução na Escola Prática de Infantaria em Mafra e fui mobilizado para
Moçambique.
Nessa altura, o Sousa Peixoto, meu condiscípulo e amigo, alferes como eu, mas
destacado para Angola, propôs-me a troca:
— Tu és de Luanda e eu sou de Lourenço Marques. Ambos temos família na cidade onde
nascemos. Dizes que teus pais são pobres e os meus vivem desafogadamente. Se trocasses
comigo, eu dava-4e 50 contos...
— Não! — respondi sem hesitar. — Não sou mercenário e vou para onde me mandam.
Embarquei no Príncipe Perfeito e conheci a bordo uma bonita moça, de nome Salomé.
Andámos muita vez juntos, dançámos quase sempre um com o outro e, em Luanda, despedi-
me dela com a promessa de lhe escrever.
Não morri em Mueda, porque as orações de minha mãe me protegeram. Atirada por um
bando de guerrilheiros, uma granada caiu junto de mim, mas não explodiu.
Como todos os combatentes, deparei com angustiantes problemas humanos. Por
exemplo, durante uma patrulha de reconhecimento armado, com objectivo importante e
rigorosamente secreto, alguma coisa buliu, por entre o capim alto.
Afocinhámos na picada, com as caras no lodo e o dedo no gatilho das armas.
— Esperem a minha voz de fogo! — transmiti ao pelotão. E ficámos à espera do que
surgisse.
Afinal, surgiu uma velha tacanha, com as mãos bem erguidas acima da cabeça, já de
carapinha toda branca.
Logo cercada por quatro soldados, a pobre mulher nem conseguia falar, do muito que
tremia.
— Raios parta o azar! — praguejou o meu sargento — se a deixamos ir, adeus segredo
desta operação! E levá-la às costas não podemos, porque nos atrasa a marcha. O diabo da
velha... Olhe, meu alferes, vou com ela para trás daqueles arbustos <e arruma-se a questão...
— Ninguém toca nessa mulher! — decidi, após segundos de reflexão, que me
pareceram anos — a velha vai connosco. Quando não puder andar, carrega-se numa padiola.
— A nossa vida está sempre em risco. Não a quero defender com um assassínio.
Vamos!...
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Naquele meu grupo de amigos, quase todos camaradas de trabalho no meu jornal, a
alegria era sincera e profunda. E, se bem que temperada pelo respeito devido a meu pai,
também em mim o era.
Mas, em termos de generalidade, na cidade branca e preta, verificava-se uma certa
confusão de sentimentos, à volta da grande interrogação que se levantava para os lados do
futuro. Como se ia pôr termo à guerra de Angola?
Numa geral aspiração de paz, os angolanos brancos receavam que fosse, para eles, a
paz dos vencidos, ou mesmo a paz da sepultura. E a grande massa dos angolanos de cor, que
não tem ambições políticas, pensava no que poderia acontecer nos dias da confusão.
Por isso, não houve imediatamente em Luanda nada semelhante à explosão de alegria
popular que aconteceu em Lisboa no dia 1.°de Maio. E isto parece-me grandemente
significativo, porque em Lisboa havia apenas a deposição de um regime e, em Angola, estava
no horizonte o nascimento de uma nova nação.
Com o rosto moreno debruado pela barba bem tratada, o Rosa Amaral lembrava um
condottïere, com a bravura dum guerrilheiro na alma dum poeta lírico.
Falou pouco e bem. Disse que o programa era irem dali ao Largo do Palácio e,
seguidamente, ao comandante-chefe. Afirmou que Luanda devia associar-se à alegria de todo
o Povo português, pelo regresso às liberdades democráticas.
— ...é preciso que todos nós, finalmente restituídos à nossa dignidade de homens, todos
nós...
— Apoiado! Viva o 25 de Abril! Viva o general Spínola!
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— ...todos nós — dizia eu — gritemos a nossa liberdade, abracemos a nossa liberdade,
defendamos a nossa liberdade...
— Muito bem! Muito bem! O povo unido jamais será vencido. O povo unido jamais
será vencido. Viva a Liberdade!
— Peço a palavra!
— Pois eu pedi a palavra só para dizer aqui bem alto, sem medo dos pides, e dos
fascistas e do grande raio que os parta a todos...
— ...só para dizer que sempre fui um bom democrático. E agora que foi esmagada a
cabeça da tirania...
— ...agora, coimo estava a dizer, só quero gritar com toda a minha alma: viva a
Liberdaaaaade!...
— Viva o dr. Rui Luís Gomes, que é meu amigo! E logo a nota cómica, inevitável na euforia dos
grandes entusiasmos populares:
— Viva!
— Viva a Democracia!
— Viva!
— Viva a Liberdade!
— Viva!
— Viva Luanda!
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— Viva!
— Viva Angola!
— Viva!
— Viva Portugal!
— Viva!
— Viva Moçambique!
— Viva!
— Viva!
— Viva!
— Viva Portugal!
Meu pai, no seu cadeirão de repouso, lia os jornais de ponta a ponta, acendia os
cigarros uns nos outros e não correspondia às minhas tentativas de o distrair da sua
crescente amargura.
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— Mas com uma cara de desesperado...
— Estás a ser cruel, meu filho. Lembras-me aquele tenente americano da «25.a Hora»
que aponta a sua máquina fotográfica a Johan Moritz e pede: — Smille! Também tu queres
que eu sorria para ficar bonito no retrato?
— Ouço dobrar a finados por uma Pátria que sonhei grande. Não é música agradável...
— Sempre os povos gostaram dos ventos da mudança. Eu já estou velho demais para
mudar. Segue o caminho que julgas melhor e deixa-me ser fiel a mim próprio. Não viro a
casaca, até porque foi albarda que nunca tive.
Meu pai é assim: uma rocha inabalável. E nem eu gostaria que fosse diferente...
Entretanto, na Metrópole, começaram as greves reivindicativas. E não tardou muito que
o processo ecoasse em Angola, com perturbações de toda a ordem que só a espantosa
vitalidade económica do território poderá vencer.
Houve a greve dos estivadores do Porto, a dos Transportes Colectivos, a dos Bancos, a
dos serventuários da Câmara, a do Caminho de Ferro de Benguela, a das tripulações de alguns
navios fundeados no porto e até, numa hora em que se pediam vassouradas gerais, também
parou a laboração de uma fábrica de vassouras.
Assisti, por incumbência do meu jornal, à mais breve e mais ordeira de todas: a da
Refinaria de Petróleo, cujas unidades pararam às 12 horas de uma sexta-feira e recomeçaram
o fabrico ao anoitecer desse mesmo dia.
No intervalo, houve reunião no Centro de Convívio do pessoal da Petrangol, com diálogo
animado e a serena paciência dum major do Exército, que ajudou a conciliar as partes em
litígio.
As palavras mais exaltadas que ouvi, enquanto o oficial tentava demonstrar os
inconvenientes de uma tal greve, viriam dum operário mais renitente, que do meio da
assistência, comentou:
Mas o major não ouviu (ou não ligou) e tudo terminou em beleza com um convite que
lhe foi dirigido pelo pessoal da refinaria para uma visita a unidade.
O oficial acedeu, circulou através dos toppings e das fornalhas, acabando por entrar na
sala de controlo.
— Agora, o sr. major carregue neste botão! — pediu o chefe do turno.
— Para quê?! — disse o oficial. — Eu não percebo nada de refinarias de petróleo...
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— Nem é preciso. Basta carregar neste botão. Faça favor! O major fez o que lhe era pedido e o
técnico declarou com a maior naturalidade:
Ainda não tenho 35 anos e já uso um estado civil que cheira a velho: sou viúvo. Viúvo
daquela Salomé que encontrei a bordo do Príncipe Perfeito, durante a minha viagem para
Moçambique e a quem prometi escrever quando ela des-embarcou em Luanda.
Prometi e fui além da minha promessa. Na verdade, as minhas cartas e as dela tornaram-se
tão frequentes e progressivamente tão íntimas que logo se transformaram em namoro
pegado. Namoro por correspondência, que é dos mais perigosos que podem acontecer entre
homem e mulher.
Teimoso como sempre fui, consegui vir passar a Luanda as minhas primeiras férias
militares, viajando num velho Skymaster da FAP.
Meu pai ficou delirante, porque pensou que seria por amor à família. E também era,
mas não em regime de prioridade. A razão mais forte estava naquelas cartas incendiárias, em
que, às minhas primeiras ousadias verbais, a Salomé correspondia sem hesitações, abrindo-se
toda, como um botão de rosa que desabrocha ao toque mágico dum sol primaveril.
Passei a frequentar a casa dela, onde fui acolhido com as honras de noivo declarado,
aceite e seguro. Ela morava numa vivenda do Bairro da CAOP, bonita e confortável. Chamava-
se Salomé de Almeida Cadernais, filha de Júlio de Malva Cadernais, funcionário público, e de
Cremilde Figueirinhas de Almeida Cadernais, dona de sua casa e muito senhora do seu
arrebitado nariz.
Era de leite e mel para mim, essa dama ainda frescalhota, bastante espalhafatosa, com
todos os vícios da nova rica e sempre com quatro pedras na mão contra o marido, que usava
com ela a fatal condescendência de quase todos os homens pacíficos e bons.
O meu pensamento de que a filha única talvez saísse à mãe depressa naufragou nas
vagas encapeladas do nosso desvairo amoroso.
Abreviando uma história cuja recordação ainda me aflige, passo imediatamente ao final.
Aquele precipitado casamento falhou em menos de dois anos, felizmente sem filhos, porque
ela não os queria ter.
Requeremos o divórcio de comum acordo. Pouco depois de o juiz ter lido a sentença, ela
matou-se estupidamente num aparatoso desastre de automóvel. E, apesar de tudo, tive muita
pena dela.
Durante longos meses, que lentamente se foram dobando em três novelos de anos,
senti-me complexado pela ideia de ser viúvo. Entendia que isso me colocava à margem de
qualquer interesse de rapariga.
Até que reparei nos olhos límpidos da Mariluz (Maria Lucinda, na pia do baptismo).
16
Os olhos límpidos diziam coisas suaves mas eu já tinha perdido a sensibilidade requerida
para bem as entender. Interpretei-as com um sentido que não tinham, aproveitei a primeira
oportunidade para avançar com as mãozinhas, levei uma tampa de todo o tamanho e tive o
bom senso de reconhecer o meu erro.
— Contaram-me.
— São.
— Aquém?
17
— A uma certa rapariga, cuja lembrança me tira o sono...
Num dos primeiros dias de Maio, o cabo João dos Santos, da Polícia Militar, estava de
sentinela à porta de armas da Fortaleza de S. Miguel, em Luanda.
Pensava na sua modesta casa na Rua da Figueirinha, em Oeiras, onde sua mãe o
aguardava ansiosamente, agora que a guerra de Angola ia findar, para dar lugar a uma solução
política, livremente escolhida por toda a população da maior província africana de Portugal.
Sonhava com o belo sorriso daquela moça leal e afectiva, que encontrara na Feira
Popular de Paço de Arcos, pouco antes do seu embarque para Luanda, e que agora lhe
escrevia todas as semanas. Sentia-se já demais, de guarda àquela grave fortaleza de outras
eras, tendo à sua frente quatro grandes canhões do século XVIII.
Mas, de repente, olhando por cima daquelas peças históricas, avistou um belo Mercedes
a atravessar a ponte dos suicídios que une a cidade alta ao morro de S. Miguel, por cima da
ravina que do Hotel Continental conduz à Praia do Bispo.
O veloz automóvel galgou rapidamente a pequena encosta, entrou na meia laranja e
estacou junto da porta de armas. Já perfilado em continência, o cabo viu como do carro saía
um general de quatro estrelas. E, ao fitar-lhe o rosto, João dos Santos ia caindo de puro
espanto. À sua frente estava o general Costa Gomes.
Com um risinho de esguelha, o antigo comandante-chefe das Forças Armadas de
Portugal em Angola correspondeu à continência do militar, entrou no túnel de acesso e pediu
ao oficial de serviço que o conduzisse ao comandante-chefe.
Em passadas largas e firmes, foi pisando aquelas pedras históricas e entrou na
impressionante sala de comando.
Também colhido de surpresa, o general comandante-chefe das Forças Armadas ergueu-se da
cabeceira da grande mesa rectangular, onde estudava um grande mapa do Sector Leste e
bateu a continência.
— Podes sair — disse o general Costa Gomes — já estás substituído neste posto. — E o
outro saiu, sem dizer palavra.
Entretanto, alguns capitães e um major, que tinham chegado de Lisboa no mesmo avião
militar do general Costa Gomes, reuniram-se no salão de convívio da Base Aérea n.° 9, à volta
de mesas bem fornecidas de cerveja Cuca e de uísque White Horse.
— Como foi isso do 25 de Abril? — perguntou um piloto de helicópteros.
— Temos aqui o cérebro da revolução — informou um dos recém-
-chegados. — Ele que vos conte.
O oficial indicado bebeu o resto do seu uísque, esmagou no cinzeiro o cigarro que
começava a fumar e declarou que tudo tinha sido muito simples.
— Os gajos estavam todos podres. Não foi preciso disparar um tiro. Tudo funcionou com
a precisão dum relógio suíço. Logo às primeiras horas da manhã, já sabíamos que tínhamos
vencido.
— Mas o Presidente do Conselho só se rendeu ao fim da tarde
— objectou um tenente aviador.
— No Carmo, o capitão Salgueiro Maia armou em menino bem comportado, que não
gosta de partir a louça. Ia-se lixando, porque chegou a estar encalhado entre a Guarda
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Republicana que o visava das janelas do Quartel e uma força de infantaria, cujas intenções
não conhecíamos e que descia dos lados da Santa Casa da Misericórdia. Mas o Maia é um gajo
fixe e tudo terminou em bem.
— E agora? — quis saber o chefe dos mecânicos da Base.
— Temos de acabar com esta guerra sem sentido e entregar a terra aos donos. Estamos
muito satisfeitos com os nossos camaradas de Angola. Mas os elementos do MFA devem
manter os olhos bem abertos. Sabemos que há por aí uns tipos com peneiras. Vão ser
imediatamente enquadrados por gente da nossa inteira confiança... Vejo aí, na placa de
estacionamento dois Camberras da África do Sul! — que vieram cá fazer?
— Havia um plano para acabar com os últimos focos de resistência dos turras — explicou o
comandante da Base. — E os nossos caças-bombardeiross F 84 já não estão operacionais. Com
as três Fortalezas Voadoras B 26 vindas de Lisboa e uma pequena ajuda da Força Aérea Sul
Africana, já podíamos actuar em força.
— Tudo isso é história antiga — decidiu o major. — O general Costa Gomes deve estar a
despedir o comandante-chefe. E certamente ordenará a partida dos Camberras para a sua
terra e o regresso das três Fortalezas Voadoras a Lisboa. Os bombardeamentos da aviação em
Angola terminaram. E pronto, rapazes! Vão consciencializando as tropas da necessidade de
abandonar uma terra que nos não pertence, Portugal tem de reconquistar a sua dignidade e o
seu prestígio no mundo. O fascismo terminou. É preciso substituir rapidamente os elementos
suspeitos. E cautela com a maioria dos brancos, hein!............
Entretanto, falando ao findar desse mesmo dia, pela Emissora Oficial de Angola, o
general Costa Gomes adoptava um tom muito diferente, manifestando uma grande confiança
no futuro do que significativamente chamou «a maior parcela de Portugal».
Afirmou que Angola continuaria portuguesa, embora ressalvando que seriam as suas
populações — todas as suas populações — a decidir sobre os laços que desejavam manter com
a Mãe-Pátria, no exercício do seu direito à auto-determinação. Assegurou solenemente que
nada se faria sem que a etnia branca fosse previamente consultada. E, referindo-se aos
guerrilheiros, que então passou a chamar movimentos emancipalistas, embora considerasse
muito pequena a sua representatividade, disse que poderiam vir para a sua terra dialogar
connosco no plano das ideias políticas. «Mas com uma condição — acrescentou — a de
deporem as armas. Tenho ordens terminantes da Junta de Salvação Nacional para não permitir
a propaganda de movimentos em armas. Permitir isso seria apunhalar os nossos soldados
pelas costas.»
Antes de regressar a Lisboa, não deixou de visitar um velho amigo e conterrâneo, em
casa de quem jantava frequentemente quando foi comandante-chefe das Forças Armadas na
maior província do Ultramar Português.
E como este, enquanto lhe servia um uísque bem doseado, insinuasse que não tinha um
centavo fora de Angola, atalhou impulsivamente, em tom de grande convicção:
— Nem precisa, homem!... Se eu fosse rico, era agora que investia todo o meu dinheiro
nesta bela terra.
19
Com a sua paciência de advogado, habituado a dirimir «milandos» em Lourenço
Marques, ouviu quantos quiseram falar-lhe e depois, numa animada conferência de
imprensa, revelou desconsoladamente que, em vez de um nome, lhe tinham sugerido
quarenta.
No dia da partida (26 de Maio de 1974), autorizou que adeptos dos movimentos
emancipalistas se manifestassem em frente do palácio. E pôde ler dezenas de cartazes, desde
os apelos à independência total e imediata, até aos «vivas» e «morras» que são inevitáveis
quando o povo começa a falar sem papas na língua.
Mas o pior aconteceu depois: a contra-manifestação, em que o ministro foi alvo de
palavras azedas, que persistentemente o acompanharam até ao avião do regresso a Lisboa e,
mais do que todos os discursos de circunstância, o terão alertado para a real complexidade do
processo de descolonização de Angola.
De regresso a casa, informei meu pai dos acontecimentos e pedi a sua opinião.
— Nunca aprovei faltas de respeito à autoridade constituída — respondeu ele
prontamente. — Mas a primeira manifestação também foi um erro. Assisti, por acaso, à
debandada dos manifestantes. E não gostei.
— Incomodaram-no?!
— Nada. Quando atravessava um grupo mais numeroso, até um garoto negro teve um
rasgado gesto de sinaleiro e berrou cordialmente:
— Não aprovo nada! Já te disse que não gosto de desordeiros, sejam eles quem forem.
Mas os governantes que nos mandam de Lisboa devem saber prever as reacções de todos os
sectores da população. Luanda não foi construída por gente abúlica ou insensível...
Calei-me respeitosamente. Meu pai aparentava uma serenidade que não sentia.
Continuava fiel a convicções muito sinceras. E ao mais ligeiro toque, a ferida sangrava...
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— Confusão também é notícia...
— E perigo...
— Não. E até aos bocadinhos te aceitaria com amor inteiro. Mas a coragem não impede
a prudência...
— Um jornalista é, de profissão, um imprudente. Mas não te aflijas, que não vai haver
nada de especial.
E até houve. Não pelo facto de o avião dos TAP chegar atrasado, ao que já estamos
habituados, mas porque não vi os costumeiros ranchos de crianças das escolas, nem as
bandeiras da Mocidade Portuguesa, nem as camionetas carregadas com gente dos muceques.
O que logo se notava era um dispositivo militar de muito respeito...
De inteiramente novo, registei a presença dum grupo, situado bem em frente da saída
da aerogare, com três cartazes, num dos quais se dava o «fora» ao governador prestes a
chegar. Isto acontecia pela primeira vez em Luanda, depois de quase meio século em que os
governantes enviados de Lisboa eram sempre entusiasticamente aplaudidos à chegada e
severamente criticados à partida...
Mas também este incidente teve um desfecho ainda mais original e imprevisto. Após a
breve cerimónia do protocolo, e quebrando a rotina da habitual mensagem aos microfones da
Emissora Oficial na sala dos VIPS, o general Silvino Silvério Marques atravessou por entre o
povo que enchia o átrio do aeroporto e encaminhou-se para o automóvel.
Com o seu modo grave mas afável, saudou a multidão acumulada no largo e, como não
podia deixar de ser, leu num dos cartazes erguidos bem à sua frente:
Teve um sorriso indefinível e com a mão fina saudou cordialmente quem assim o
hostilizava.
Aconteceu então o inacreditável: o grupo deixou cair o cartaz e correspondeu à
saudação do governador com uma salva de palmas.
O general Silvino Silvério Marques entrou no carro e seguiu para um palácio já seu
conhecido e para uma das mais amargas fases da sua vida de português, de soldado e de
governante.
Mas esta sua segunda passagem pelo Governo-Geral de Angola, infelizmente tão breve,
foi um clarão de esperança para a esmagadora maioria dos angolanos de todas as etnias.
Assim o afirmou, com inteira verdade e muita oportunidade, um dos mais antigos
colaboradores do meu jornal, com ideias muito semelhantes às de meu pai, que saudou o
novo governador-geral com palavras de muito respeito e admiração, sem se importar
absolutamente nada com a bruta hostilidade, que já então começava a manifestar-se, da parte
dos novos antifascistas, contra tudo o que pudesse interpretar-se como apoio, directo ou
indirecto, a homens do antigo regime.
21
«Depois de Norton de Matos — escreveu ele — o general Silvino Silvério Marques é o
único governador-geral de Angola a voltar ao cargo que anteriormente exerceu.
«Deixou Angola há cerca de oito anos, com as lágrimas nos olhos. Regressa em
circunstâncias decisivas para o destino desta terra e com uma amplitude de iniciativa que nem
ao general Norton de Matos foi concedida.
«Penso conhecer bastante bem as suas qualidades, porque sou testemunha presencial
da sua actuação no Conselho Legislativo e beneficiei do privilégio de o acompanhar em
algumas das suas viagens através de Angola.
«Não agradou então, nem agradará agora, a toda a gente. Mas o defeito que mais
insistentemente se lhe apontou, durante os quatro anos do seu anterior Governo, foi, afinal, a
sua mais alta virtude: a sua contínua preocupação de chamar os mais válidos naturais da terra
ao desempenho de funções qualificadas no Governo, na administração pública e nas
empresas.
Houve quem ouvisse essa recomendação, porque no dia seguinte, o Santos Gouveia,
que estava a ficar «vermelho assanhado», como dizia o Rosa Amaral, comentou na redacção
do jornal:
O Santos Gouveia sabia que esse governante profundamente dedicado à terra do seu
governo já estava sob a implacável hostilidade dos que, em Luanda e em Lisboa, tinham
pressa de entregar todos o Ultramar Português ao despotismo de Moscovo.
22
OS DIAS MALDITOS
Num dos primeiros dias de Junho, ainda antes da chegada do governador-geral Silvino
Silvério Marques, o enfermeiro negro Pedro Benge foi assassinado por um branco.
Correu que o acto tresloucado acontecera na sequência duma discussão azeda.
— O enfermeiro limitou-se a dar «vivas» ao general Spínola — diziam alguns.
— Não acredito! — afirmava o Baldaque, que é um moço ponderado e sério.
— Eu conheço o assassino e já lhe falei agora na cadeia. Está arrependidíssimo do que
fez, mas afirma que não conseguiu dominar-se quando o enfermeiro lhe fez ameaças relativas
à filha e à mulher.
— Ninguém sabe, porque não houve testemunhas. Mas estou tentado a relatar esta
conversa no jornal.
— É disparate! Coisas destas só se afirmam quando se podem provar.
— Há novidade?
— Há mais um crime. Lá em cima, à entrada do Muceque Lixeira, um motorista de táxi
está morto, ao volante do seu carro. Estrangulado.
23
— Por quem?
— Ninguém sabe dizer. Aparentemente, pêlos passageiros que transportava. Está de
cabeça caída para trás, sobre as costas do banco dianteiro, na surpresa da morte. Um horror!
Precisamente nesse momento chegava o fotógrafo do jornal, também alarmado. E
seguiram ambos para o local da tragédia.
Na tarde do mesmo dia, os motoristas de táxi manifestaram-se junto do Palácio,
protestando contra o crime e pedindo providências quanto à sua segurança no exercício da
profissão.
Foram-lhes prometidas.
Mas, logo no dia seguinte, verificou-se na mesma zona um estúpido assalto aos
passageiros dum machibombo. Morreram inocentes que pacificamente voltavam do seu
trabalho.
Nunca lamentei tanto o meu escasso poder de expressão. Não há palavras que digam o
impacto daquela multidão silenciosa, acompanhando a pé a última viagem de Pedro Benge,
sem mesmo olhar para a tropa que o general Franco Pinheiro encarregara de assegurar a
ordem e a dignidade do cortejo fúnebre. Não conheço adjectivos capazes de definir a atitude
serena e vigilante dos soldados brancos e negros. E não há, na minha singela técnica de
jornalista, recursos para exprimir a luz amargurada dos olhos dos brancos (falo da grande
maioria pacífica), aio saberem-se incriminados pela imprensa metropolitana de todo o mal
que acontecia em Luanda.
Não é preciso ser branco (e eu não digo a minha cor) para compreender o profundo
desgosto de homens tão injustamente apreciados por gente do mesmo sangue e da mesma
Pátria. Não é preciso ter as mesmas ideias políticas, nem as mesmas crenças religiosas; basta
ser apenas um homem como eles.
Mergulhado nos acontecimentos por dever de ofício, sinto uma enorme tristeza ao
relembrar esses dias malditos, que mancharam de sangue a mais bela cidade da África
tropical.
Vi a raiva incontrolada das multidões exasperadas. Senti o cheiro acre do sangue
derramado, ainda vivo e quente. Ouvi os gritos do ódio adulto e choro confrangedor das
crianças aterrorizadas.
Não quero — ninguém deve querer — que Luanda se transforme num hediondo
matadouro.
Toda a minha alma se insurge contra os instigadores de tamanho crime. Todo o meu
coração pede que se trave esta escalada de violência.
24
2.2 — Sangue, intrigas e traição
— Nada temos a recear de Lisboa. Os homens do MFA estão mortinhos por se verem
livres de Angola...
Contei isto ao Rosa Amaral. Respondeu-me que o MPLA era um partido de fanfarrões.
Mas estava internamente tão esfrangalhado que já não valia o espirro dum gato sifilítico.
— Talvez não valha — comentei, reticente —, mas não me admiro nada se conseguir
afastar daqui o general Silvino Silvério Marques. Já o chamaram a Lisboa...
Era verdade. E essa viagem não teve regresso. Será que o dr. Almeida Santos o mandou
para Luanda, não porque assim lho tivessem pedido os homens de Angola, mas para mais
depressa o queimar?!...
Já em pleno domínio da traição, esse Homem bom, generoso e competente foi
substituído por uma Junta Governativa, presidida pelo almirante Rosa Coutinho.
O Almirante Vermelho desceu na capital de Angola com a arrogância de um comandante
de tropas de ocupação.
— Quando volta o sr. general Silvino Silvério Marques? — perguntaram-lhe os jornalistas
no aeroporto.
— Já não é governador-geral de Angola — respondeu com a sua malcriadez de
complexado pelas sevícias a que o submeteram em Matadi.
— São os angolanos que hão-de decidir. Eles já decidiram? — fez ele com o seu risinho
cínico...
— Será agora que teremos algum sossego? — pergunta-me a Mariluz, com o seu ar de
donzela assustada.
— Bem sei. Mas nós precisamos de paz e tu andas no meio dos tiros...
25
— Com uma esferográfica e um bloco de apontamentos.
E não era.
Com uma inconsciência incrível, a imprensa lisboeta continuava a sua odienta campanha
contra os brancos de Angola, atribuindo-lhes todas as culpas, mostrando-se vivamente
interessada em despertar todos os ressentimentos da população negra, acirrando o ódio,
parecendo desejar que não ficasse nem um só branco vivo, numa cidade por brancos
portugueses fundada há quatrocentos amos.
— Como pode isto acontecer?! — perguntava-se entre gente pacífica, que sempre viveu
do seu trabalho, que sabe ser pior do que nos muceques de Luanda a vida em certas aldeias
do Norte metropolitano, e que tem sido tão explorada como os pretos pelos colonialistas de
Lisboa e Porto.
Instalou-se um forte dispositivo de segurança entre a cidade e os subúrbios. Na linha
divisória, todos os carros são interceptados, para se. ver se levam armas.
Meu pai gosta de ir ver o que se passa, em lentos passeios a pé, ou no seu velho
Cortina.
No regresso de uma dessas voltas de curiosidade, encontra-me em, casa e, contra o seu
costume, mete conversa:
— Não senhor.
26
— Hum! Assim já velhote, com certeza tem aí a sua pistola...
— Pois disse...
Ele olhou para mim durante segundos, teve um sorriso triste e esclareceu:
— Cumpre as ordens que recebe. Só o futuro dirá se chegam para impedir maior
sangueira.
O Rosa Amaral já não mostra o mesmo entusiasmo com que organizou em Luanda a
primeira manifestação a favor do Movimento das Forças Armadas.
Foi hoje ao enterro do jovem estudante de Medicina, morto na Avenida Álvaro Ferreira,
durante a humaníssima tarefa de acudir aos feridos, quando os soldados tiveram de optar
entre abrir fogo ou entregar as armas aos civis amotinados.
— Aí entrou política...
— Começo a odiar a política — fez ele com desalento. — A morte desse moço branco é
tão lamentável como a do enfermeiro negro.
— Sei lá...
27
— Também te consideras culpado?!
— Claro que sim. Todos nós somos responsáveis pelo clima de loucura que deixámos
criar em Luanda. Andamos todos excitados. E pouco se faz para apagar a fogueira.
— Estás a ser injusto. Todas as emissoras e jornais de Luanda se juntaram agora num
apelo à calma.
— Bem sei, mas não basta. Nos muceques apedrejam os carros dos bombeiros que vão
acudir aos incêndios. Há dias passaram pelas ruas da cidade os quatro negros mortos no
assalto ao machibombo. Mas a quinta vítima foi esquecida, porque era um branco, que
também lá morreu. Não gosto de cortejos macabros e, muito menos, de qualquer espécie de
discriminação...
O Rosa Amaral é branco e louro como um inglês de Oxford, mas sei que tal circunstância
nada influi nas suas apreciações. Não há, no seu coração, nem um miligrama de preconceitos
étnicos. Lamenta, tanto como eu próprio, este vento de violência que devasta os subúrbios de
Luanda, e em que é de pretos o maior número de vítimas, porque já não há brancos para
matar, embora conste que os há, vindos de fora de Angola, para incitar à matança.
Sucedem-se os actos incompreensíveis para quem seja apenas um homem bom. Os
brancos deixaram de ir aos muceques, mas há milhares de pretos que fogem para os bairros
de predominância branca. A pilhagem, o incêndio e a morte continuam à solta nas zonas
suburbanas.
«Vários incêndios crepitam. Acorrem novamente os bombeiros, mas desta feita não
passam. O acesso foi bloqueado. Recorrem os bombeiros ao exército para que lhes possibilite
o acesso. Sem melhores resultados. Uma barragem na entrada corta a via e uma multidão
atrás dela hostiliza os soldados. O que arde é para arder...»
Até as ambulâncias que recolhem os feridos são alvejadas com coquetéis Molotov.
Nem os postos de venda de pão escapam à fúria destruidora. Nem as escolas, tão necessárias
à promoção social dum povo que vai para a independência num mundo ferozmente
competitivo.
Os cinemas suprimem sessões, mesmo no centro da cidade. Era certo dia, é interdito
todo o trânsito automóvel após as 20 e 30. Parece morta, a minha linda Luanda!
Numa dessas noites de sono intermitente, acordei com o estalar de tiros mais próximos
e fui à varanda da frente, onde já encontrei meu pai.
— Há para ali barulho do grosso — informou ele, apontando o Muceque Prenda.
E havia. Tiros soltos de pistola, logo seguidos de rajadas de G3. Estouros maiores, que
parecem de granadas de mão. Explosões mais abafadas, mas sinistras, talvez dos foguetes das
bazucas. Depois a cadência das armas de guerra, no tiro-a-tiro. E mais disparos de pistolas. E
novas rajadas de carabinas automáticas, agora contínuas, resolutas, raivosas, na decisão
militar de acabar com aquilo. Quinze minutos de fogo nutrido, terrivelmente ampliados pelo
multiplicar da nossa angústia.
— É uma autêntica batalha! — diz meu pai.
— Parece que já acabou — respondo eu, dando voz à minha esperança.
Esperança vã, porque o tiroteio recomeça, ainda mais vivo. Agora julgo distinguir o
ribombo dos morteiros. Um helicóptero, denunciado mais pelo seu grazinar característico do
que pelas luzes de posição, aparece em voltas apertadas sobre o Prenda. E, logo a seguir, as
rajadas tornam-se menos frequentes, o tiro-a-tiro rareia e volta um silêncio que, para alguns,
terá sido definitivo.
Só então reparamos, meu pai e eu, que todas as janelas do largo fronteiro à nossa casa
estão cheias de gente alarmada por esta guerra estúpida que tenta atingir uma cidade
pacífica.
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A guerrilha suburbana já acontece em pleno dia. À entrada do Muceque Lixeira, mesmo
ao pé da rua asfaltada, incendeiam mais um estabelecimento, que fica a arder durante horas.
Os trabalhadores da zona industrial da estrada do Cacuaco preferem regressar a suas casas
pela Avenida da Boavista.
A notícia (ou o boato) de que pretendem desarmar a Polícia de Segurança Pública leva uma
grande massa de civis até ao Comando-Geral da Corporação. Forma-se um cortejo até ao
Palácio do Governo Geral. Um magote de populares teima em entrar no edifício e procura o
presidente da Junta Governativa, que foge de gabinete em gabinete, até ser cercado por uma
turba furiosa. Pula para cima duma secretária e ergue as mãos a proteger a cabeça, na exacta
posição de um animal encurralado — a única posição em que poderá ficar na história.
Invectivado, insultado, trémulo de medo, promete tudo, concorda com tudo, confessa
que os verdadeiros colonialistas estão em Lisboa.
A multidão acalma, chega mesmo a sorrir com desprezo. E, segundo se afirma no dia
seguinte por toda a Luanda, uma rude mulher, vendedeira de peixe no Mercado dos Lusíadas,
terá então bradado para o Almirante Vermelho:
— Podia matá-lo, seu marinheiro de água doce, mas o senhor não vale os 7$50 que me
custa uma bala...
Depois desse dia, o Palácio do Governo Geral passou a ser guardado por fortes
destacamentos dos fuzileiros especiais, que vigiavam permanentemente nos terraços do
edifício, à volta dele e ao longo dos corredores.
Nas repartições, nas fábricas, nos escritórios das empresas privadas, nas esplanadas, nos
cadeirões da sapiência da Livraria Leio, nos cafés, nos restaurantes, no convívio das famílias à
mesa das refeições, os acontecimentos dos muceques constituem o tema de todas as
conversas.
— São racistas brancos — afirmam os mais timoratos, que tentam uma carta de seguro,
dizendo-se agora do MPLA.
— São guerrilheiros da FNLA que se infiltraram nos subúrbios — declaram outros,
argumentando com o facto de ninguém hostilizar os pretos na cidade do asfalto.
— É tudo uma desgraça — concluem aqueles para quem o sangue inocente não tem cor
política.
Ainda não disse que fiquei sem mãe aos 10 anos de idade. Meu pai não voltou a casar. E,
desde então, quem governa a casa é minha Tia Isaura, irmã de meu pai e como ele nascida na
Gabela, na primeira década deste século. Embora mais velha do que o irmão, mantém-se uma
mulher de armas que traz a casa num brinquinho, sem criados mas com a ajuda de todos os
electrodomésticos de que se pode dispor em Luanda.
Por isso, quando não há visitas, que são raras, somos apenas três à mesa.
Meu pai anda pouco falador, mas ela fala pêlos dois.
De política nada entende — afirma —, mas não se coíbe de rir das ingenuidades do
«menino», como continua a chamar-me.
— Sabe de quem tenho pena, menino? Dessa pobre gente dos muceques, que anda
entregue à bicharada.
— Os pretos ou os brancos?
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— Todos os que não querem barulhos e andam metidos neles. Os brancos já de lá
saíram, depois de verem queimadas as suas casas. E os bailundos estão a fugir para as suas
terras. Ainda esta manhã, quando voltava do talho, encontrei uma família completa, a
caminho da Estação do Caminho-de-ferro, com as biquatas às costas. O menino já viu aquela
tristeza?
Eu já tinha visto.
Homens emagrecidos no trabalho sem pão suficiente, mulheres com filhos ao colo e outros
agarrados às saias, crianças em pasmo de espanto ou na eloquência das lágrimas infantis. E o
estendal comovedor da pobreza! Velhas mesas de pé-coxinho, cadeiras desconjuntadas, col-
chões de folhelho atados com fios de mateba, míseros trastes de cozinha sumariamente
embrulhados em jornais, panelas amolgadas, caçarolas enegrecidas, fogareiros de ferro, malas
de fechos avariados atadas com cordéis, fardos de roupa remendada, alguns caixotes de
ferramenta, sacos de plástico atulhados com as últimas compras do Mercado de S. Paulo ou
do «Pão de Açúcar» — toda a pobreza em gritante comício de condenação ao egoísmo dos
ricos, à incúria das autoridades e à fraqueza patente das chamadas forças da ordem. A
debandada dos enjeitados da cidade, que só têm os braços para trabalhar e não sabem
política, não pertencem a movimentos de libertação e nada fizeram — nada, Senhor Deus! —
para merecer a desgraça que lhes acontece, sem saberem como veio, de quem veio e porque
veio.
— Operário?
— E deixa o emprego?!
30
— Onde é a sua casa?
— Não sei.
— Ainda há — teima a moça. — Com olho azul e cabelo da cor da tuge de menino com
diarreia...
— Greve?
— Não. Os bailundos foram-se embora. Nunca vi o meu velho tão desanimado. Nem
quis almoçar...
É a ocasião de falar um pouco da família desta moça amorável e sensata. Seu pai é
natural de Luanda, filho de branco e de mestiça, e não nega a cor da mãe, embora seja de tez
mais clara que a de muitos algarvios curtidos pelo ar do mar.
Casou com uma branca e, na sua profissão de construtor civil, o sr. Armindo das Neves
Calabriz conseguiu meios de vida confortável para a família. A dona da casa, Aríete de Moura
Calabriz, pertence a uma família antiga, de origem beira, radicada em Angola há três gerações.
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Fez o 7.° ano dos liceus e só não tirou um Curso Superior porque os pais não tinham posses
para a sustentar em Lisboa, nesse tempo em que ainda não existia a Universidade em Angola.
Com o sr. Calabriz falei há dias, na intenção de o tranquilizar quanto às minhas intenções
sobre a filha. Levava um discurso cuidadosamente estudado, mas ele estragou todos os meus
planos, recebendo-me com a maior naturalidade e lançando logo uma pergunta sobre o
assunto político do dia:
— Que raio de gente é essa, que manda agora em Lisboa? Então, nomeiam para aqui um
governador-geral e nem sequer lhe dão tempo de acabar de formar o seu Governo?!
— Estamos numa fase muito complexa — expliquei eu cautelosamente —, o Governo de
Lisboa tem agora muitos problemas a resolver...
— Hum! — resmungou o sr. Calabriz — quais são os problemas que este Governo já
resolveu?
— Aqui, em Angola...
— É onde tenho vivido, desde que sou gente. E não precisei de esconder as minhas
ideias políticas.
— Nas conversas com amigos. Se escrevesse para os jornais, tomaria conhecimento com
a Censura.
— Esqueci-me que você é jornalista... Tá bem! Então, diga lá o que o trouxe a esta sua
casa...
— Vinha informá-lo das minhas intenções sobre a Mariluz... Encontramo-nos com
frequência...
— Também eu.
— Nem eu. Pode confiar em mim. E suponho que também confia na sua filha.
— Se não confiasse, fechava-a à chave. Nós somos uma família honrada. E espero que se
não esqueça disso...
Eu não esquecia. E agora, quando a Mariluz me falava na tristeza do pai, sentia as
preocupações daquele homem, como se fossem minhas.
32
— Gosto profundamente de meu pai — disse-me ela, acentuando o seu ar melancólico.
— E ele não sabe estar parado. Além disso/, e como já te disse, nós não somos ricos.
— Claro que têm. E suponho que ninguém os expulsa. Fogem porque não gostam de
barulhos.
— Meu pai diz que ninguém lhes dá a protecção que merecem. E diz isto
indignadamente. Não é só porque as obras param; ele afeiçoa-se ao pessoal com quem
trabalha...
Um velho amigo de meu pai veio a nossa casa, certa manhã, antes do nascer do sol.
Vi-o entrar, alto e magro, em mangas de camisa, com um ar febril.
Fecharam-se ambos no escritório e lá permaneceram durante três horas, com uma
garrafa de uísque, um balde de gelo e algumas sodas bem geladas...
Não era a primeira vez que meu pai mantinha longas conversas com pessoas
importantes do regime deposto e também com gente nova, que tinha feito o serviço militar na
luta contra o terrorismo e agora se interrogava sobre o futuro. Dava-me a impressão de andar
a conspirar.
33
Desta vez, decidi interrogá-lo, sem receios nem complexos, pois ambos sabíamos que
tudo quanto entre nós se dissesse, entre nós ficaria, selado pela nossa recíproca e absoluta
lealdade.
— Julgo conhecer este senhor — insinuei quando meu pai voltava de acompanhar o
visitante à porta de saída.
— É natural. Até há pouco ensinava Economia na Universidade de Luanda. Agora, vem
de Lisboa. Incógnito...
— Trouxe-lhe notícias?
— E sobre Angola?
— É segredo, mas não para ti, porque te sei incapaz de comprometer este homem, que
vem de Lisboa com muita coragem e uma ideia grande e generosa.
— Eu ouvi a um dos chefes locais do MPLA afirmar que Lisboa quer ver-se livre de
Angola o mais depressa possível.
— Também sei disso, mas os homens de Angola ainda terão uma palavra a dizer, se
conseguirem sair deste perigoso atordoamento em que caíram.
— A que chama «perigoso atordoamento»?
— Talvez eu não tenha usado a expressão mais adequada. Os homens de Angola andam
hesitantes, entre a -esperança e o desespero. Encontram-se paralisados pelo receio de
provocar um banho de sangue. Fecham-se num silêncio angustiado. Vivem aprisionados numa
teia de sentimentos complexos. Sentem-se abandonados, traídos, caluniados. Se aparecesse
um chefe...
— Esse professor da Universidade veio convidá-lo para qualquer aventura?! —
interrompi, muito preocupado.
— Não! — respondeu ele com veemência. — Já não tenho idade para aventuras.
Infelizmente!...
34
— Mas, acredita, rapaz: continua a haver bons e corajosos portugueses em Angola. E a grande
massa da população não gosta nada da confusão que se estabeleceu...
— Nunca lhe ocultei as minhas ideias, pai. Mas gosto de o ver assim, mais animado.
E era totalmente sincero neste meu gostar. Via o meu velho rejuvenescido com a
esperança de que ainda pudesse sobreviver o seu ideal de uma grande pátria multirracial e
pluricontinental.
35
NO RUMO DA INDEPENDÊNCIA
Sinto-me feliz, porque sou angolano e sei que Angola reúne todas as condições para uma
independência autêntica. Há, todavia, uma tarefa prévia e fundamental: a fraterna
reconciliação de todos os angolanos, tanto dos que pegaram em armas e assim nos
arranjaram três exércitos (que não chegam, porque são demais) como daqueles que, durante
estes últimos treze anos, continuaram a obra do progresso desta terra, criando-lhe
perspectivas e estruturas muito superiores às que existiam em 1961.
Ora, é essa fraterna conciliação que eu ainda não vejo. Dentro e fora de Angola, pretos
e brancos estão muito mais divididos do que nunca e, com Portugal a oferecer a
independência e a paz, a guerrilha instala-se na própria cidade de Luanda onde, até agora, as
Forças Armadas Portuguesas nunca a tinham deixado chegar. E, com ela, chegam aos
subúrbios sistemas de apartheid que nunca existiram nesta bela cidade atlântica, já a rondar
os 400 anos de idade.
O Gama Ribeiro deitou chispas de lume pelo bigode à antiga portuguesa, quando lhe
falei nestes termos.
— Então porque estranhas que fale agora em excesso quem andou de boca fechada
durante meio século?! Não é a falar que a gente se entende?
— Devia ser. Mas o que eu noto é que, com tantas sessões de esclarecimento, cada vez
andamos mais baralhados...
— É o fenómeno da descompressão.
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— Talvez. Mas explica tu esse apartheid que agora existe em alguns muceques de
Luanda...
— Referes-te ao Golfe?
— Exactamente.
Fomos.
— São jornalistas?
— Até somos — declarou o Gama Ribeiro —, mas não viemos propriamente nessa
qualidade. Aqui o meu colega tem umas ideias esquisitas sobre este muceque e eu gostava de
lho mostrar...
— Está bem — disse o militar —, mas nesta altura não lhe posso dar escolta; e, sozinhos,
nem pensar!
— Eu acompanho-os.
Erguemos os braços e ele passou uma rápida vistoria. Depois decidiu que o nosso
Volkswagen ficava ali: nos teríamos de seguir a pé.
E lá fomos, com o amável cicerone, que informou chamar-se Paulo Cabanga.
O Muceque do Golfe, que é dos mais recentes de Luanda, não tem os intrincados
meandros de certas zonas do Rangel ou do Lixeira. Já foi instalado com algum ordenamento,
embora elementar. E lá dentro, tudo nos pareceu calmo e normal.
Pelos estreitos arruamentos de terra batida, havia crianças a brincar. Uma delas, contagiada
pelo tiroteio dos últimos dias, apontou-me um cabo de vassoura, fuzilando-me com uma
rajada terrível: tá-tá-tá-tá-tá!
— Pronto! — gritei, entrando no jogo. — Estou morto. Pronto! O miúdo riu, consolado, mas o
seu riso apagou-se logo, ante a severa repreensão do Paulo Cabanga:
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— Tem juízo, menino!
— Não fez nada de mal — aleguei, lembrado de iguais brincadeiras do meu tempo de
garoto.
— Com a morte não se brinca — sentenciou o Cabanga, ainda com olhos maus para a
criança encabulada.
— Este é o senhor presidente da Comissão Administrativa do Bairro do Golfe —
apresentou o Cabanga, indicando um negro de meia-idade, elegante e bem vestido, que, por
trás duma secretária metálica, falava pausadamente a um grupo de populares.
Notei a sua barbicha à Lumumba, que lhe prolongava o queixo voluntarioso, e os seus
olhos espertos, protegidos por óculos de pequena graduação.
— São jornalistas? — perguntou, depois de um certo olhar para o apresentante.
— Somos. E pretendemos ver como se vive neste bairro. Dizem-se coisas na cidade...
— Talvez — respondi eu. — Mas, por agora, apenas desejamos saber como funciona
isto.
— Melhor que dantes — respondeu o presidente. — Ninguém cuidava disto. Agora
cuidamos nós.
— Já prometeram a água — lembrou o Gama Ribeiro.
— É verdade que não deixam entrar aqui os brancos? — perguntei do meu lado.
— É verdade e não é. Os brancos podem entrar, desde que sejam acompanhados por
um de nós. E com os pretos de outros muceques é igual. Não queremos cá quem não seja do
bairro...
— Porquê?!
Hoje almoçou connosco o eng.° Duarte Balanta, que foi geólogo da Companhia de Petróleos
de Angola e, por morte do pai, abandonou as boas perspectivas que ali lhe ofereciam para
tomar conta da herança paterna — uma grande fazenda de café nos Dembos.
É um rapaz novo, se bem que já casado e pai de um bonito par de miúdos, que são o
seu maior enlevo.
— Já, o quê?
— Aí está uma frase bem recheada de asneiras — sentenciou ele com a voz calma dum
juiz em férias. — Os meus cabelos brancos ainda se não podem chamar veneráveis e eu já não
sou rico nem menino. Sou apenas um pai cheio de preocupações.
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— Preocupações porquê? Nasceste em Angola, nunca andaste na política, sabes cheirar
as riquezas do subsolo...
— E tenho, nos Dembos, uma fazenda de café que vai ficar afogada em capim.
— Já percebi... É essa história do avanço dos guerrilheiros de Holden Roberto. Uma fase
que há-de passar...
Meu pai parou a colher da sopa, a meio caminho do destino, para me perguntar em
que factos concretos baseava eu tanto optimismo.
— Mas pode manter a sua dignidade! — atalhou o meu pai, elevando a voz.
— Gostaria que me explicasse melhor — insinuei com a calma toda, para o não irritar.
— Interpreta como quiseres. A mim custa-me falar em certas coisas...
— Também a mim — interveio o eng.° Balanta —, mas compreendo o problema. Ou
Portugal conserva em Angola a capacidade de iniciativa que lhe permita a função de árbitro no
processo da independência, ou esta já não será uma concessão: será uma conquista.
— Não vejo bem onde está o valor prático da diferença — afirmei eu. — Parece mera
subtileza.
— Não é mera subtileza — contestou o engenheiro. — Embora nascido em Angola, sou de raiz
portuguesa e não gosto de ver Portugal na função de triste figura. Já que reconheceu a Angola
o direito à independência, deve dar-lha de mão a mão, efectiva e limpa. Tem de manter a
força indispensável para desencorajar as pressões externas e permitir que as populações
façam a sua opção política, num processo correcto e livre. Para transferir os poderes
soberanos, deve exercê-los com dignidade e (eficiência até à declaração da independência. Se
perder a autoridade e os meios de a impor, quais são os poderes que vai transferir? Ninguém
pode dar o que já não tem...
— Exacto! — concordou meu pai, que parecia encantado com o discurso. — Em tudo
isto, eu já não sou mais do que mero espectador. Mas se os meus cansados olhos me não
enganam, assisto a tristeza dum rápido desmoronamento de estruturas que levaram muito
tempo a construir. É lamentável...
— São as convulsões naturais do nascimento duma nova nação...
— Naturais, uma ova! — refilou o engenheiro. — Que raio de naturalidade encontras tu
nesta atitude de se expulsarem os bailundos das fazendas onde trabalham?!
— Talvez uma questão de bairrismo. Em Trás-os-Montes também se diz que «para lá do
Marão mandam os que lá estão»...
— Chama-lhe o que quiseres. Para mim, que também nasci nesta terra e nela tenho
trabalhado à bruta, chama-se a ruína completa. Que mal fiz, para tamanho castigo?! De resto,
a minha desgraça, somada à desgraça de muitos outros cafeicultores, gradua-se numa trágica
sangria económica de Angola. Se esta loucura pega, vai perder-se a próxima colheita de café,
no valor de três ou quatro milhões de contos. E, o que é pior, os cafezais ficarão Infestados.
Quem lucra com isso?
— Há que pensar em termos de cidadão angolano — lembrei com intenção.
— Sou tão angolano como tu — declarou o engenheiro. — Nem podes fazer ideia dos
sacrifícios que a meu pai custou aquela fazenda de café. Esse pedaço de cafezal roubou-lhe
anos de vida. Morreu com 52 anos. E, seguidamente, fui eu que lhe sacrifiquei a minha
profissão, para a qual estudei no Instituto Superior Técnico de Lisboa. Agora, sem um centavo
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fora desta terra, olho para os meus filhos e pergunto se os poderei ver passar fome num canto
qualquer de Portugal, que vai ficar reduzido a menos da vigésima parte do que era antes da
Revolução de 25 de Abril, e que parece disposto a receber-nos à pedrada.
— E compreendo. Mas a justiça perfeita tem de ser para todos, não é verdade? —
acrescentou, voltando-se para meu pai.
— Quem pode hoje dizer o que é a verdade? — disse ele com uma profunda e
contagiante melancolia.
Neste breve diálogo se define o clima da população branca de Angola, em começos de
Setembro de 1974.
3.3 — O 7 de Setembro
— As autoridades desmentiram...
40
— Têm toda a razão! — exclamava-se em reuniões convocadas para casas particulares,
ou segredava-se, com mais cautela, às mesas dos cafés — Estão cheios de razão. Deus os
ajude!
Na Pastelaria Versalhes, aonde fui tomar o meu pequeno-almoço, o Sanches Quintão,
funcionário de Fazenda recentemente transferido da Outra Costa, demonstrava por a + b, num
círculo de amigos, que a Frelimo
era apenas um bando de comunistas e só os comunistas portugueses é que a consideravam
representativa dos povos moçambicanos.
?!
— Judas.
Durante a tarde, já havia quem sugerisse o envio de telegramas de apoio aos ocupantes
do Rádio Clube de Moçambique.
Mas aí, os mais prudentes reclamavam calma. Enquanto a situação se não clarificasse, a
ninguém interessava criar pretextos para uma repressão brutal da Junta Governativa.
Claro que também não faltava quem classificasse tudo aquilo de manobra de fascistas,
apoiados pela África do Sul. Mas, pelo menos em Luanda, o sentimento mais generalizado era
de grande euforia e de uma enorme esperança.
Nessa noite, ao regressar a casa, encontrei meu pai, sentado ao pé do nosso grande
aparelho de telefonia, ouvindo sofregamente a emissão do Rádio Clube de Moçambique.
41
— Que raio de fita é esta?! — explodiu o repórter, que é um adepto furioso do MPLA,
rival da FNLA sediada em Kinshasa.
— Parece-te episódio de cinema? — piquei eu, que admiro a espontaneidade deste
moço, sem dúvida sincero, embora faccioso.
— Cinema, uma gaita! O que me parece é uma refinada malandrice.
— Não se trata de quem esteve na ilha do Sal — declarou o Gouveia, que nem é de
birras contra pessoas. — Anota lá montes de respeito pêlos dois generais, sem distinção de
branco e preto. A refinada malandrice vem deste mundo em que vivemos...
Fitei o colega com os olhos cândidos dum menino totalmente ignorante das manhas da
política mundial...
— Não topas a manobra? — investiu ele.
— Eu, não...
— Pois há... — fez ele, arreganhando para mim um risinho feroz. — E a multazinha por
agressão ideológica?...
Seguidamente sentou-se à secretária e sacou bruscamente da esferográfica, com o brio
alucinado de um Dom Quixote a arrancar da espada...
*
Até o general Spínola, que sempre os tentara tranquilizar, e que ultimamente lhes criara
uma derradeira esperança declarando que assumia pessoalmente a direcção da
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descolonização de Angola — até esse acabava de abandonar o seu posto, deixando o campo
livre aos que apenas desejavam entregar à Rússia o Ultramar Português, a qualquer preço e o
mais depressa possível.
Encolhi os ombros, sem resposta para dar-lhe. E, como sempre que me sinto enervado e
perplexo, procurei a companhia apaziguante da Mariluz. Mas também ela cedia ao
nervosismo envolvente.
— Não. Mas passei uma noite abominável. De minha casa ouvia-se perfeitamente o
tiroteio, para os lados do Rangel. E, em certos momentos, parecia uma autêntica batalha.
Minha mãe já fala em partir para Lisboa. Mas meu pai, coitado...
Passei-lhe um braço carinhoso à volta dos ombros, com receio de que rompesse a
chorar.
— Talvez. Mas quase não fala connosco. E com certeza lhe custará muito ficar só...
Porque ele terá de ficar, amarrado ao seu trabalho. Não temos nada em Portugal. Não
conhecemos lá ninguém...
— Começaste por dizer que tudo parecia simples... — lembrei eu, mais comovido do que
desejava parecer.
— E parecia, a julgar pelos dados da questão. Angola quer ser independente. O novo
Governo de Lisboa concorda que sim senhor e diz aos movimentos emancipalistas que se
juntem numa frente comum, para receber os poderes soberanos. Parece-te complicado? Mas
o que acontece é que, em vez de uma festa de confraternização, arma-se uma barafunda em
que ninguém se entende. Com a garantia da independência, a capital de Angola em vez de
lançar foguetes dispara tiros, em vez de cantar a vitória, enche-se de luto e de sangue.
Entendes alguma coisa disto?!...
— Procuro aceitar a realidade tal como ela é. O 25 de Abril não é natural de Luanda:
nasceu em Lisboa...
Num dos três dias seguintes, à hora do almoço, chamaram meu pai ao telefone.
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— Sou a pessoa menos indicada para depor neste momento...
— Uma brigada da Televisão Portuguesa teima que eu vá a uma mesa redonda sobre a
comunicação presidencial de 27 de Julho. Uma chatice!...
— Não sei porquê. Vai lá, diz o que pensa e acabou-se!
— Se eu disser tudo o que penso, prendem-me! Vou falar o mínimo possível. Queres ir
comigo?
— Sabe-se lá... Ando com os nervos tão arrasados, que já tenho medo de guiar. Prefiro
que tu me leves, se puderes...
— Claro que posso. Talvez até arranje uma «caixa» para o jornal.
Mas quando o meu bom velho me pareceu perder algo daquela sua serenidade
caldeada em muitas dores, foi já sentado à mesa redonda, numa luxuosa vivenda do Futungo
de Belas, ao ouvir a identificação dos presentes. Só então verificou o seu completo isolamento
ideológico, visto que ia depor com dois elementos do MPLA, ambos recém-libertados dos
Campos do Tarrafal e de S. Nicolau, e mais dois dirigentes de um partido surgido após o 25 de
Abril mas solidário com o mesmo movimento emancipalista. Ele, que sempre tinha defendido
a presença de Portugal em Angola...
Notei a rápida crispação que lhe vincou as rugas do rosto. E, no meu íntimo, perguntei
se ele se não julgaria apanhado numa espécie de emboscada.
No entanto, a sua voz pareceu-me calma quando, no fim de todos, declinou o seu nome,
sem mais recomendação que a de residir em Angola há quarenta anos «de maneira tão
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colonialista que se agora tivesse dei regressar à Metrópole teria de pedir emprestado o
dinheiro para a passagem».
— Quer dizer-nos a sua opinião sobre o reconhecimento, pelo Chefe do Estado
(português, do direito à independência -para Angola, Guiné e Moçambique? — perguntou-lhe
o chefe da equipa da TV.
— Desejo primeiro esclarecer que estou aqui depois de repetidamente me ter
confessado a pessoa menos indicada para depor sobre o assunto.
— O sr. general Spínola — lembrou meu pai — aludiu no seu discurso de 27 de Julho
findo «àqueles que honestamente sonharam uma África lusa». Eu sonhei mais do que isso:
sonhei e preconizei um Portugal do Minho a Timor, com absoluta igualdade para todos os
portugueses, em que um negro da nossa África pudesse chegar até à Presidência da República
e Luanda viesse um dia a ser a capital de Portugal. Esse meu sonho não morreu — foi
assassinado! Considero-me politicamente vencido e acato, de coração aberto e leal, uma
Angola independente, que o pode ser em paz e prosperidade, desde que mantenha a sua
fisionomia multirracial. Fora da multirracialidade, receio que até o próprio nome de Angola
venha a desaparecer do mapa deste continente. E é tudo.
Após os longos segundos de silêncio que se seguiram à fala do velho teimoso, o chefe da
equipa perguntou-me se também queria falar.
— Não senhor — respondi com certo orgulho. — Só meu pai foi convidado.
— Isso não é preciso para o grande respeito e consideração que lhe consagro.
Pelo caminho, perguntei a meu pai se estava arrependido de ter comparecido à mesa
redonda.
— Bem... — disse ele com uma certa ironia — consegui resistir à tentação de os tratar
por «senhores turras». E, ao fim e ao cabo, também eles me não chamaram reaccionário,
fascista explorador, como todos os dias faz certa gente de Lisboa. Não reparaste?
— Reparei, pai. E nunca admiti que assim não acontecesse. Em todos os sectores da
política se pode ser honesto e sincero.
Ele levantou os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados e pareceu-me
concordante com as minhas palavras...
Quando lembrei que o 25 de Abril não é natural de Angola, porque nasceu em Lisboa, a
Mariluz arregalou para mim uns olhos interrogativos, mas não pediu explicações. E ainda bem,
porque, ao dizer tais palavras, obedeci apenas a uma nebulosa intuição, nada fácil de
esclarecer em termos concretos de encadeamento lógico.
Repensando-as agora, até me parece que acertei numa verdade capaz de explicar muita
coisa. No binómio geo-humano Portugal-Angola, o 25 de Abril só tem um aspecto comum:
constitui, para ambos os povos, um marco histórico. Mas a partir dele, até pela própria força
das ideias que o animaram, os caminhos podem divergir até ao ângulo raso.
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O 1.° de Maio de 1974, tão eufórico na capital de Portugal, foi um dia como outro
qualquer nas praias luandenses. E, mesmo para aqueles portugueses aqui radicados, que
sempre se manifestaram genuinamente democráticos e contrários ao regime deposto, a
alegria da recobrada liberdade não tardou a ensombrar-se com as preocupações fundamentais
da sobrevivência nesta terra, de uma etnia continuamente insultada, caluniada e aviltada pela
imprensa, a rádio e a televisão de Lisboa e Porto, na sua quase totalidade.
Já disse que não é preciso ser branco, para compreender a amargura dos brancos perante este
comportamento estúpido e injusto dos homens que agora mandam na sua Pátria. E ainda esta
tarde, ao regressar da redacção do meu jornal, pude ver bem uma imagem bem dramática
desta situação.
Na Bolacha da Alameda Dom João II, ao esbarrar com o sinal vermelho, travei já
demasiado à frente, para continuar a ver as luzes do semáforo e aguardei calmamente o aviso
do carro que me seguia. Esse aviso soou, anunciando a luz verde, e arranquei. Mas logo
estaquei bruscamente, quase a tocar num branco de meia-idade que, de olhos alucinados,
barba crescida e os braços abertos como os de Cristo a oferecer-se à cruz, berrou numa voz
tremendamente amargurada:
— Para morrer lá de fome?! Eu nasci em Angola, de pais que também já aqui nasceram e
estão agora no Cemitério do Alto das Cruzes... Desço aqui, se faz favor...
Encostei ao passeio, junto da esplanada Punia dei Este e aconselhei-o a espairecer, falar
com os amigos, reconstruir a sua vida. Embebedar-se era disparate.
— Talvez nem consiga embebedar-me — confessou ele com um riso triste. — Só me
restam 50 paus...
Com emoção inexprimível, meti-lhe discretamente nela uma nota de 100, num gesto
impulsivo e apenas obediente ao desejo de ajudar aquele pobre português a afogar a sua dor,
ainda que fosse em vinho...
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Conto esta ocorrência, como exemplo das tragédias vivas com que hoje se depara nas
ruas de Luanda.
É por estas e outras coisas do mesmo género que o 25 de Abril tem, em Angola, um
sentido diferente do que lhe dão em Lisboa. Lá, foi apenas uma viragem política. Aqui, iniciou
um processo de marcha para honrosas mas pesadas responsabilidades. O que parecia tão
simples — assumir uma independência que já ninguém nega — fermentou no veneno de
velhos ódios, causando a morte de muitos milhares de inocentes. E ninguém sabe quanto
sangue ainda será derramado num caminho que devia ser juncado de flores, já que representa
o nascimento de uma nova nação, com todas as condições para ser grande e próspera.
Não consigo pensar nestas coisas com a cabeça fria, como tantos aconselham,
principalmente quando já têm garantido o embarque para Lisboa. Ninguém vive com o
coração frio. Nem sei quem possa pensar com os miolos congelados. Todo o homem vivo é
nervos, calor e vibração.
Se há tiros no silêncio das noites luandenses e o sangue derramado torna mais
vermelhas as areias dos muceques, e são aos milhares os habitantes em êxodo e as famílias
sem futuro, como posso eu, que sou apenas um homem dedicado a esta terra e a este povo,
como posso eu contar friamente os que fogem e os que morrem?!
Por Deus, irmãos! Reparem que até os circuitos integrados dum computador aquecem
no trabalho de tais contagens.
Talvez, no entanto, os leitores possam reter, de toda esta baralhada verbal, a ideia certa
de que Luanda não é Lisboa e que o 25 de Abril, longe de lhes apagar as diferenças, só veio
torná-las maiores e mais evidentes.
Moro num bairro sossegado, onde a regra de vida é uma decente mediania, mas
também há gente pobre e um ou outro rico em figuras de excepção.
Em dias do meu descanso semanal, que são variáveis na rotação dos turnos do meu
serviço, costumo sair, num pequeno passeio a pé, depois do pequeno-almoço.
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Como parceiro certo, segue-me um cão grande, não sei de que dono nem de que raça,
com o pêlo encarapinhado dum caniche malfeitão e uns olhos leais e camaradas.
Diz meu pai que os donos lhe dão banho com normal regularidade, mas o bicho corre
logo para uns barrocais próximos e ali se rebola consoladamente, até ficar mais enlameado
do que um suíno ao sair do espojadouro. De positivo, eu nunca o vi limpo e, por isso, lhe
chamo João Sujo, nome que ele aceita, arreganhando os dentes, numa espécie de riso
compreensivo e bom.
Ora, não sei por que silenciosa e discreta amizade (que gostosamente declaro
recíproca), o João Sujo alinha sempre comigo nesses passeios matinais, em dias limpos do meu
trabalho de jornalista.
Lança-lhes, ainda de longe, o seu desafio, bem claro e três vezes repetido, como valente
cavaleiro que desfralda a sua bandeira de guerra, ao avistar o castelo do inimigo fanfarrão. E
logo os três lordes comparecem ao portão, alinhados como soldados em parada, solenes como
ministros em despacho, arrogantes e pimpões como um triunvirato de ditadores. E dignam-se
mirar o intruso, respondendo com três latidos serenos e compassados ao ladrar viril daquele
enxovalhado proletário. Este acelera o ritmo da ladração, investe com o focinho contra a
fronteira de ferro que o separa dos inimigos, mostra-lhes a dentuça afiada. Os três dálmatas
perdem a sua compostura de bichos-de-bem, eriçam o pêlo fino, revelam os seus genuínos
dentes de cão. E é, durante minutos, uma terrível batalha de insultos, entre o podengo vilão e
os três grão-duques da Dalmácia, agora iguais nas dentuças ferozes, encharcadas pela baba do
ódio.
O João Sujo aguenta-se lindamente, não cede um milímetro da sua posição, tem mesmo
o focinho para além da raia definida pêlos varões de ferro do portão e algumas vezes
consegue tocar, com os seus dentes vorazes de cão da rua, as orelhas bem lavadas dos
enfurecidos dálmatas. E são eles que vão cedendo terreno, recuando ora um ora outro, nuns
ganidos que me soam a pedidos de socorro.
Será com medo dos dentes arreganhados do João Sujo? Será para não conspurcar os
seus finos pijamas às bolinhas no contacto com aquele mísero rafeiro enlameado?
Não sei. Mas são eles que fogem, refugiando-se no seu luxuoso canil, todo em ferro
esmaltado a branco.
O João Sujo tem então, para mim, um olhar de esguelha, como quem me pisca o olho, e
retira com dignidade, não sem primeiro alçar a perna contra a ombreira do portão, para regar
o local da vitória.
Nesta cena, tantas vezes repetida, abstenho-me de tomar partido com gesto de apreço
ou palavra de estímulo. Assumo a atitude neutra dum observador imparcial. Mas não sou. Cá
no meu íntimo, sinto que ficaria danado se o João Sujo se deixasse vencer e escorraçar. Os três
limpíssimos dálmatas nunca me ladraram nem morderam. Mas, instintivamente, não gosto do
seu ar altivo, autoritário e mandão.
48
Sempre as minhas simpatias foram para os mais humildes, sobretudo quando são
corajosos. E nesta birra do João Sujo contra os três empertigados guardas da vivenda de luxo,
não há um miligrama de inveja — é tudo vontade de se afirmar, de mostrar que também
existe, de provar que não tem medo.
Coisas que eu gosto de ver...
Nessa manhã, ainda sorria da cena do João Sujo, no seu último acto de vingança
contra a prosápia dos três dálmatas, quando encontrei o eng.° Balanta, que vinha de comprar
o jornal.
— Quais são as últimas? — fiz eu, na pergunta habitual dos dias que correm.
— Chega amanhã a delegação da FNLA — informou ele com voz de caso.
— É uma consequência do acordo de cessar-fogo, há dias celebrado em Kinshasa —
insinuei.
— Desde que os três movimentos se juntem em Luanda, acabarão por se entender. Por
vezes é só uma questão de palavras...
— Neste caso, não é. Tenho amigos nos dois movimentos e sei que os seus ideários são
muito divergentes, quase antagónicos.
— Mas combateram pelo mesmo objectivo fundamental: a independência. Não me
parece complicado que todos concordem em pegar na bandeja que o Governo de Lisboa agora
lhes oferece.
— Não parece, mas é — teimou o engenheiro.
— A FNLA e a UNITA já deram o exemplo.
— É fácil um entendimento com o dr. Jonas Savimbi, que me parece o espírito de
conciliação em pessoa e não está sujeito a pressões do exterior. No MPLA há outros
problemas.
— Continuas pessimista...
— Talvez, mas com sobejas razões. E só desejo que o futuro desminta tudo quanto hoje
receio. Pelo menos, não imitarei esse desgraçado que ontem varou o coração com uma bala,
no momento em que devia embarcar para Lisboa.
— Não sabia disso. Quem foi?
Ele disse-me o nome: exactamente o nome daquele branco que há dias, na Alameda
Dom João II, quando se viu à frente do meu carro que arrancava, pediu que o matasse,
sublinhando o pedido com o palavrão mais obsceno do vocabulário português.
Senhor Deus! Tanta tragédia que hoje caminha pelas ruas desta minha bela e querida
cidade!...
49
AS BOAS PALAVRAS
— Já é saber alguma coisa — disse o Quevedo. — E eu, dos políticos da última colheita
estou farto de ouvir disparates, quando não são baforadas de ódio. Este procede doutra
maneira.
— Fala de outra maneira — corrigiu o Santos Gouveia sem disfarçar a sua hostilidade. —
Espera pelas obras.
— Claro que todos devemos esperar pelas obras — concordou o outro. — Mas até essa
esperança morre para os que desconfiam de toda a gente.
— E tens alguma coisa com isso?! — refilou o Santos Gouveia, pronto para a
contestação.
— Bem sei. Mas nunca a guerra deixa de ser aquele monstro de que falava o padre
António Vieira. Se estás em maré de recordações trágicas, podes lembrar as atrocidades da
última conflagração mundial, cometidas por alguns dos mais civilizados povos do mundo... E
há ainda outra coisa que tu deves saber: é que os homens mais duros na guerra são, por vezes,
os mais compreensivos na paz. Não é verdade?
50
Vieram depois as delegações do MPLA e da UNITA. E aí, as massas populares
manifestaram-se em pleno.
A recepção aos representantes do MPLA foi um autêntico delírio. E, embora sem tanta
gente, os filiados, aderentes e simpatizantes da UNITA, dois dias mais tarde, manifestaram um
entusiasmo igual.
Em ambos os casos, logo que o avião tocou a pista, a multidão venceu todas as
barreiras, invadiu a placa de estacionamento e transformou a escada de acesso ao transporte
aéreo num incrível e barulhento cacho humano.
Encarregado da reportagem, vi-me inteiramente naufragado naquele mar de gente,
perdi-me do meu fotógrafo e senti-me em riscos de sufocar na terrível compressa daquela
vaga humana, que irresistivelmente rolava ao encontro dos recém-chegados.
A delegação do MPLA esperou mais de uma hora pela possibilidade de desembarcar. E,
seguidamente, correu verdadeiro perigo quando os mais eufóricos se apinharam sobre o
autocarro que a transportava à sala dos VIPS e a assistência receou que o tejadilho abatesse.
Tudo se repetiu à chegada dos delegados da UNITA, com a agravante de alguns
incidentes, ocorridos antes, pela acção nefasta de agitadores estranhos ao Movimento.
Quanto eu pude julgar, na confusão em que me vi envolvido por ambas as partes, a UNITA
beneficiou de maior concorrência da etnia branca que, misturada à população negra, acom-
panhou a delegação até às suas instalações, num impressionante cortejo automóvel, com o
habitual grazinar das motorizadas e a sinfonia das buzinas.
Em minha casa, logo após a chegada do MPLA, meu pai saudou-me com um riso triste:
— Deves ter passado um mau bocado, rapaz!
— Foi uma cena indescritível —declarei, ainda aturdido.
— Eu ouvi tudo pela rádio. Quando o repórter da Emissora Oficial emudeceu de
repente, cheguei a pensar numa tragédia.
— Um problema tremendo!
— Que problema?
— Pois é. Mas se isto acontece quando as massas populares vibram de alegria, imagina
o que será se um dia reagirem pelo ódio.
— Os chefes dos movimentos emancipalistas também sabem disso. Todos eles querem
que a independência se realize em paz.
— Acredito. Mas querer não é poder. Tudo depende desta fase de diálogo e
mentalização em que vamos entrar. Os três movimentos precisam de conjugar todos os seus
esforços nesta tarefa complexa e difícil. Mas parece que também estão divididos entre si.
51
— Juntam-se agora em Luanda. Isso ajudará muito, se não lhes faltar uma boa
colaboração dos que não pegaram em armas, mas querem esta terra próspera e feliz.
Devemos esperar, pai! E ajudar...
— Pois claro! E que Deus confirme a nossa esperança! 4.2 — «Ê por todos,
patrão!»
52
Digo o que penso, mas continuo de olhos bem abertos para o que acontece à minha volta e
com o espírito preparado para as inevitáveis mudanças. Mudanças que já começam a ver-se
nesta cidade capital. E, principalmente, no seu rosto humano.
No espaço de poucas semanas, o povo dos subúrbios, que representa mais de dois
terços da população luandense, emergiu da penumbra em que vivia. O aumento do poder de
compra, resultante dos primeiros aumentos nos salários mais baixos, ampliou a sua influência
no mercado de consumo. E já com a certeza de vir a ter uma representação autêntica no
exercício do poder político, entrou activamente no diálogo das ideias, com uma eloquência
bem característica dos povos bantus.
Mas também depois se viu como, de entre as massas populares, se erguiam oradores de
inesperado poder comunicativo, chefes de bairros com notáveis qualidades de organização e
bom senso, toda uma extensa gama de valores humanos que prudentemente se refugiavam
no anonimato do silêncio.
A minoria branca, quase toda se repartiu entre dois exageros: ou pulou para a frente dos
Movimentos, agitando-se em atitudes de mais papista que o Papa, ou caiu numa atitude de
expectativa, cheia de ansiedades e preocupações, amargurada pela injusta campanha que lhe
move a imprensa de Lisboa e Porto, resignada a colaborar com as novas autoridades, pedindo
apenas o privilégio de continuar a viver e a trabalhar nesta terra.
Num dos primeiros dias de Novembro de 1974, chegou à Cela uma enorme coluna de
camiões, logo rodeados por grande multidão, alarmada pela notícia de que tinham sido
atacados.
— Não — esclareceu o motorista Manuel António Luís do Pranto. — Nós não fomos
atacados. Mas, a alguns quilómetros do Dondo, encontrámos o cadáver do Pedro Calha, que
ontem tinha partido sozinho, com o seu camião carregado de cimento, a caminho de Nova
Lisboa. Antes de o matar, vazaram-lhe os olhos...
— Quem nos protege, a nós que só queremos trabalhar?! Apareça alguém, do Exército
Português, do MPLA, da FNLA ou da UNITA, apareça alguém para defender quem precisa de
ganhar o pão de seus filhos!...
Esta declaração saiu no meu jornal, com grande relevo. E, logo de manhã, fui até à
Portugália, na mira de comentários que me ajudassem a escrever um artigo para o dia
seguinte.
53
— É uma brincadeira de mau gosto — sentenciava o Silva Carvalhais, modesto
empregado de escritório que repentinamente descobrira a sua vocação política.
— Mas note que apenas pedem um mínimo de protecção para eles, na estrada, e para
as famílias que deixam nas suas casas em Luanda — lembrou o despachante. — Parece-me
justo.
Angola tem de saber aproveitar todos os valores humanos que actualmente constituem a sua
força de trabalho. A greve anunciada para o fim deste mês, a verificar-se, pode trazer
consequências terríveis, porque deixará Luanda no resvaladouro para a fome. E, no entanto,
trata-se apenas de 2 368 camionistas, quase todos brancos, num pequeno sector de acti-
vidade. Assim se verifica como é difícil prescindir dos meios humanos de que Angola
presentemente dispõe. Todos são bem poucos para as imensas tarefas do futuro.
— Irra, que grande discurso! — exclamou o Carvalhais, com alguma ironia, batendo as
palmas.
— Não é discurso: é apenas uma opinião que me pediram — emendei com veemência.
— Angola funciona como um delicado e complexo organismo vivo, com sectores essenciais,
onde qualquer lesão afecta a saúde de todo o conjunto. Se os responsáveis pelo futuro desta
terra não compreenderem a tempo esta realidade, não tardará muito que tenham de
enfrentar gravíssimos problemas...
54
E a greve dos camionistas não se concretizou.
A presença das delegações dos três Movimentos em Luanda parece estar a ser
benéfica em muitos aspectos.
O Rosa Amaral, cofiando a franja loura, concorda que sim senhor, que talvez haja muita
verdade nisso, desde que se jogue com os máximos e os mínimos e se obtenha a média
ponderada.
Com estas palavras sibilinas, assim filtradas pela barba decorativa, quer o meu colega
dizer que o encontro dos grupos que se hostilizaram nas matas também envolve certos riscos.
— Se começam aos tiros uns aos outros, é o diabo! — avisa ele com evidente
preocupação.
— E porque hão-de começar aos tiros?! — perguntou a Mariluz que assistia à nossa
conversa. — Vê só o que dizem as siglas: MPLA — Movimento Popular de Libertação de
Angola; FNLA — Frente Nacional de Libertação de Angola; UNITA — União Nacional para a
Independência Total de Angola. O grande objectivo é sempre o mesmo.
— Ele estava nos antípodas do meu pensamento. E assim mo foi dizendo, primeiro num
sereno encadeamento de raciocínios, depois com tanta propriedade de termos, com tal poder
de comunicabilidade, com tão evidente e forte convicção, que imediatamente me apercebi
estar diante de um tribuno, completamente seguro da sua verdade e brilhantemente dotado
para a transmitir a outros homens. Ouvi dele as afirmações mais contrárias às minhas ideias,
mas sempre fascinado pelo calor em que as envolvia. Desmantelou, uma por uma, as
grandes realidades em que firmemente me apoio — Deus, Pátria, Família — sem me atingir
pessoalmente nas minhas convicções. Simplesmente disse o que ele próprio pensava, os ando
do mesmo direito que antes me concedera, evitando magoar-me e sem tentar qualquer forma
de aliciamento. Formidável!
— Foge! — exclamou o meu colega, piscando um olho à Mariluz. — Olha com quem
anda metido este teu amigo!...
55
Não gostei do tom daquelas palavras, nem da piscadela de olho que as sublinhou, nem
do sorriso com que a Mariluz correspondeu. Não gostei de nada disso, nem consegui descobrir
a razão de não gostar... Senti-me confuso e perplexo e reagi em conformidade:
— A que vem tamanha espantação, pá? Quis apenas dar-te um exemplo real da
possibilidade de convicção sincera em todos os quadrantes da política...
E assim se encerrou a questão, porque, sem saber como, eu tinha perdido a vontade de
continuar a conversa.
56
O ACORDO DO ALVOR
E novamente ouvi, no meu íntimo, aquela voz de alerta, que soara pela primeira vez, no
fim da história do anarquista, quando o meu camarada de redacção, piscando o olho à
Mariluz, tinha exclamado:
E, nesta atitude, bem como no sorriso com que a moça correspondeu, quis o diabo que
eu visse (ou suspeitasse] uma secreta cumplicidade, qualquer coisa como a ofensiva
concordância de ambos na ideia de que eu era, afinal, um desses ingénuos tolinhos que
acreditam na boa fé de toda a gente.
Mobilizei todas as minhas reservas de bom senso para travar dentro de mim a suspeita
maluca. Ergui contra ela montes de argumentos, toda a lealdade da moça e todos os laços de
amizade e camaradagem que me ligavam ao Rosa Amaral. Com algum êxito, mas não
completo nem perdurável.
A suspeita renascia, ao ver os dois novamente juntos para assistir à minha partida,
tratando-se por tu (nem reparava que eram amigos de infância...), revelando uma intimidade
que só agora me parecia excessiva e comprometedora. Que haveria entre eles?... E, de
repente, concluí que estava cheio de ciúmes.
— Ora viva o menino que nasceu num fole! — saudou o Amaral, no seu jeito aberto de
sempre.
— Não é piada nenhuma: é inveja, invejinha reles, meu filho! Ir à Cimeira do Algarve não
é para toda a gente...
O vaivém dessa viagem veio depois na imprensa de Luanda e ainda estará presente na
memória dos leitores desta baralhada narrativa, que já nem sei se é história, ou crónica, ou
57
romance, ou somente a confissão plena e sincera de um homem apanhado no torvelinho de
muitas interrogações.
Ao descer no Aeroporto de Faro, deparámos com um dispositivo militar ainda mais forte
e severo do que em Lusaka.
— Cautelinha com a máquina — segredei ao Pedro Gilvaz, o fotógrafo que estivera
preso, durante alguns minutos, na capital da Zâmbia.
— Não é preciso recomendar — disse ele com um riso amarelo. — Sempre aprendi bem
as lições.
Levaram-nos para o Hotel Dom João II, onde encontrámos camaradas de toda a parte do
mundo. Todos ávidos de notícias. Cada vez mais ávidos, como sempre acontece com as coisas
que não há.
Do luxuoso Hotel da Penina, onde funcionava a Cimeira, nada transparecia. E as tropas
do COPCON fechavam a zona num círculo intransponível. Só o Gilvaz, que afinal esquecera a
lição, usando uma teleobjectiva conseguiu a primeira fotografia com sentido de furo
jornalístico. Mas só o disse quando já a tinha expedido para o seu jornal.
Cada um de nós ia telegrafando comentários, mais ou menos apropriados, para manter
a expectativa dos leitores. A tónica do verbo encher era o clima cordial em que decorriam as
negociações. E eu também bati essa tecla com a consciência de transmitir a verdade.
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Não sabíamos mais nada. Elementos da informação dos três Movimentos vieram
sucessivamente ao Hotel Dom João II explicar a razão do silêncio. E a sua visita deixou de boca
aberta muitos jornalistas, portugueses e estrangeiros, que tinham um razoável conhecimento
do MPLA mas consideravam insignificante a importância da FNLA e da UNITA. E, em certos
casos, julgando que lhes seria fácil usar a técnica das perguntas capciosas, esbarraram com
interlocutores bastante cultos, sempre delicados e prontos nas respostas, mas dizendo apenas
o que queriam dizer e sabendo temperar com um sorriso algumas boas lições que deram a
quem pretendia atraí-los ao terreno resvaladiço das declarações inoportunas,
— Têm muita categoria! — disse-me, num desses casos, o repórter de um diário
lisboeta.
— Pois que imaginava você? — fiz eu, sem esconder a minha vaidade de angolano.
Devo ainda esclarecer que, durante esses dias de quase férias no Hotel Dom João II, a
que chamávamos «o aquário», por ali nos sentirmos como peixinhos de águas presas,
completamente isolados dos acontecimentos da Cimeira da Penina —, durante todos esses
dias de frustração jornalística (onde estavam as notícias para transmitir?...), a minha capa-
cidade de observação e análise esteve bastante obscurecida pela nuvem tempestuosa do
ciúme.
Lá longe, no calor tropical de Luanda, certamente haveria repetidos encontros entre a
Mariluz e o Rosa Amaral. E, contra todas as vozes do bom senso, eu torturava-me a imaginar o
tema das conversas.
O Rosa Amaral era um rapaz simpático, inteligente e com fama de atrevido. E, no meu
desvairamento, chegava a perguntar se a Mariluz não poderia cansar-se de uma espera sem
termo à vista, se não interpretaria como fraqueza de amor a minha continuada abstenção de
maior intimidade física. Toda ,a mulher é um ser complexo, para quem o amor é a força maior.
A pressa da conquista ofende-a. Mas também as mais honestas perguntam, por vezes, que
paixão é a do homem que não assume a responsabilidade de saltar certas barreiras.
Durante a minha estadia no Algarve, recebi apenas uma carta da Mariluz. Breve e
simples, dizia-me, no essencial, que sentia saudades de mim, que em Angola se vivia uma
grande esperança na Cimeira da Penina e que passava o tempo livre a perguntar aos meus
amigos se tinham notícias minhas e todos lhe respondiam que não. Incidentalmente, per-
guntava se as turistas estrangeiras dos hotéis de luxo do Algarve eram assim tão atrevidas
como lhe dizia o Rosa Amaral.
E foi principalmente nisto que eu reparei. Nem o toque de ternura, bem patente nas
palavras da missiva, nem o final «com beijos da tua Mariluz», nem o facto concreto de ser ela
59
a primeira a escrever-me, nada disso diluiu o fel daquela curta referência ao homem cuja
influência eu desvairadamente ampliava e temia.
E logo esta maldita imaginação, que algumas vezes quase me faz perder o sentido do
real, se pôs a trabalhar raivosamente na interpretação daquelas poucas palavras.
Com que danada intenção o Rosa Amaral falava à minha prometida noiva dos assaltos
femininos que eu poderia sofrer nas praias algarvias?
Esta pergunta ciumenta foi analisada, explorada e dissecada, até às suas últimas
consequências, durante toda uma noite de insónia. E cheguei a considerar esse bom camarada
de redacção como um traidor infame. Ele sabia que eu não era tão santo que enjeitasse os
bons pitéus femininos, sempre possíveis para os jornalistas em digressão pêlos apodrecidos
países do Ocidente. Elas começam por pedir as últimas notícias e, a poucos minutos de
conversa, logo deixam desapertar o soutien...
Mas o Rosa Amaral também tinha boas provas do meu amor por aquela rapariga, tão
intenso e sincero que em nada podia ser afectado pelas efémeras aventuras sexuais do
homem-macho. E no caso presente, nem isso tinha havido. As insinuações do Amaral eram,
não só malévolas mas também gratuitas, porque vivi no Hotel Dom João II, tão casto como um
José do Egipto.
De regresso a Luanda, no auge da minha crise de ciúme, cometi um dos actos mais vis desta
minha vida ainda em começo: não avisei a Mariluz e passei o dia inteiro a espreitá-la. Segui-a
desde a sua casa à Universidade, esperei-a à saída das aulas. Não a surpreendi a falar com o
Rosa Amaral. Não me apercebi de nada que justificasse as minhas desconfianças. Mas o
veneno continuava activo. Se o combatia com a ideia de que o ciúme é, por via de regra,
injustificado, logo o meu demónio interior me respondia que essa lei era a do ciúme feminino.
As mulheres é que são useiras e vezeiras em desconfiar do que não existe. Nos homens
verifica-se o contrário: são sempre os últimos a saber como andam de cabeça armada e nem
sequer marram...
Ao Rosa Amaral só o vi quando, no dia seguinte, entrei na redacção.
— Cheguei ontem.
— Também é verdade. E, além disso, o dia da chegada tinha de ser para a Mariluz.
— Ainda lhe não falei.
O Rosa Amaral recuou dois passos e ficou a contemplar-me como se eu fosse um bicho
de antes do dilúvio.
— Explicarás porquê...
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— Porque essa estupenda moça, durante todos estes dias, não falou senão de ti. Quando
eu lhe disse que não te faltariam distracções no Algarve, ia-me batendo...
— E ainda mais de ingratidão... Será que realmente te apareceu alguma dessas ávidas
escandinavas que até no Inverno frequentam os hotéis do Algarve?
— Queres parar com as tuas malditas insinuações? — berrei eu.
— Onde estão as insinuações? Tu é que voltas chato como burro. Que te aconteceu?
— Nada.
— Pois, dá graças a Deus. Aqui, ainda ontem houve uma tragédia das antigas. Lembras-
te do Simão Caldeira?
— O marido daquela senhora bastante histérica? — perguntei, aceitando de boa mente
a mudança de assunto.
Dos Acordos do Alvor, soube apenas que as reuniões tinham decorrido em ambiente
cordial, que passaria a funcionar um Governo de Transição, com três ministros portugueses e
outros três de cada um dos Movimentos, e que a independência seria proclamada em 11 de
Novembro de 1975.
Não sei se em Lisboa o povo teve conhecimento de mais pormenores. Em Luanda, não.
E, que me lembre, nem sequer foi publicado na imprensa o texto do Acordo.
A entrega de Angola fez-se com todos os segredos e cautelas de um negócio de
contrabando...
O Rosa Amaral saiu, pouco depois tocou a campainha do telefone e, ao atender, ouvi a
voz da Mariluz:
— Desde ontem.
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— Oh querido!...
— Da Universidade. Tenho agora uma aula de Matemática. Mas falto e vou já aí.
— Não: sou eu que vou ter contigo. Só tenho de terminar umas notas de reportagem.
Aproveita a tua aula.
— Com a que puderes. Antes da aula findar, aí estarei à tua espera. E estava.
Agarrou-se a mim, e no longo beijo que trocámos, todo o meu ciúme se dissolveu. Como
pude eu duvidar de tão enternecido amor?!
— ?!
— Descobri que sou bastante imbecil. Desde a minha partida para o Algarve, andei cheio
de ciúmes.
— Ciúmes?! Oh querido!
E beijou-me novamente, com todo o ímpeto de uma intensa paixão. Depois despegou a
boca da minha e, com as suas lindas mãos apoiadas nos meus ombros, perguntou de
quem tinha eu ciúmes.
— Do Rosa Amaral.
A isto ela respondeu com uma gargalhada inteiramente imprevista. E, ainda entre
acessos de riso que tentava dominar, declarou que eu tivera pura e simplesmente um
golpe de loucura.
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— Tu nunca podes ser imbecil, mas foste horrivelmente injusto para um dos teus
melhores amigos que, só por isso, também o é meu. O Rosa Amaral falou-me sempre de ti
como um pai casamenteiro e desejoso de arranjar noiva para o filho.
— Vamos esquecer tudo isso, está bem? — sugeri com um arrependimento sincero.
— Pela minha parte, delibero nem tomar conhecimento — respondeu ela singelamente.
NOTA:
O Acordo do Alvor foi assinado em 15 de Janeiro de 1975 e publicado em Suplemento ao Diário do
a
Governo n.° 23 — l. Série — datado de 28 do mesmo mês, mas distribuído bastante mais tarde.
Vale a pena transcrever o seu artigo 9.°:
«Artigo 9.° — Com a conclusão deste Acordo, consideram-se amnistiados, para todos os efeitos, os
actos patrióticos praticados no decurso da luta de libertação nacional de Angola que fossem
considerados puníveis pela legislação vigente, à data em que tiveram lugar».
Estes actos patrióticos foram, por exemplo, os horrendos massacres de civis brancos, pretos e
mestiços, que encheram de sangue e de carne esfrangalhada o Nordeste de Angola.
Um general do Exército Português assinou esta infâmia!...
O Acordo foi declarado transitoriamente suspenso pelo Decreto-Lei n.° 458-a/75, de 22 de Agosto
de 1975, que é mais um documento miserável assinado pelo Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e pelo
Presidente da República, Francisco da Costa Gomes. Os seus únicos efeitos práticos foram deixar o MPLÂ
inteiramente à vontade para usurpar o Poder e ignorar a alínea i) do artigo 24.° (garantir e salvaguardar
a defesa de pessoas e bens) e, sobretudo, o artigo 54.° pelo qual «a FNLA, o MPLA e a UNITA se
comprometeram a respeitar os bens e interesses legítimos dos portugueses domiciliados em Angola».
63
ENTRE A ESPERANÇA E O DESESPERO
— Parece-me bem-intencionado.
— Na minha boca?! — reagiu ele, vincando as rugas verticais da testa. — Alguma vez me
conheceste o vício da intransigência?
— Exactamente.
— Não era utópica, não! Simplesmente, sobreveio o mais terrível veneno das pátrias: a
Traição!...
— Defendeu as suas ideias com sincero amor a esta terra. Posso testemunhar que foi um
grande lutador.
64
— E continuará, enquanto tiver um sopro de vida. Por isso me alegro quando as
declarações dos novos governantes revelam maturidade, realismo e bom senso. Que Deus
os ajude!
— Muito. Deixaram-se degradar estruturas vitais. Criaram-se maus hábitos muito mais
fáceis de adquirir que de emendar e, para complicar tudo isto, entrou-se numa profunda crise
de autoridade. Não é assim?
— Também a mim. Mas durou pouco. E quando o ódio começou a fazer vítimas
inocentes, e as estruturas económicas sofreram os primeiros abalos, os governantes, ou
traíram preconcebidamente, ou deixaram-se arrastar pêlos acontecimentos, receando que
uma actuação firme os complicasse ainda mais.
— Nem ponho a questão, porque há uma verdade acima dela: o primeiro dever de um
governo é governar.
— Bem: mas isso é já o passado. E eu gostaria de o ouvir falar sobre o presente.
— O presente anda cheio de boas palavras. Mas não é com palavras que se constrói o
futuro...
Olhou-me silenciosamente, durante um longo minuto e, depois, continuou:
— Sei que és um sincero adepto da total independência de Angola e, por isso mesmo,
não gosto de te contrariar; mas queres saber qual continua a ser a minha opinião?
— Creio que sei...
— A independência de Angola só pode acontecer na Independência de Portugal. Não
acredito noutra!
Fitei-o com certa estranheza, por verificar que ainda não tinha mudado nada. Depois,
comentei:
— O quê?!...
— Exactamente o que te digo. Em 1971, o eng. Amílcar Cabral declarou que, se Portugal
tratasse o seu ultramar em plena igualdade com a Metrópole, de forma que um negro da
Guiné ou um mestiço de Cabo Verde pudessem ascender à Presidência da República
Portuguesa, eles não teriam de lutar pela independência, «porque já seriam independentes
num quadro mais vasto e muito mais eficaz do ponto de vista histórico».
— Isso é verdade?!
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— Foi ele próprio quem o disse, em entrevista para a revista «Anticolonialismo». Posso
mostrar-te o «recorte» que ainda conservo em meu poder.
— Espantoso!
— Sinceramente, tenho!
6.2 — Entrevista
Creio ter já dito que a face humana desta cidade está a sofrer uma rápida
transformação. A grande massa dos subúrbios, que representa mais de dois terços da
população luandense, começa a emergir da penumbra em que viveu até há poucos meses. É
ela que fala, argumenta e reivindica.
Com a teimosa esperança que é uma das suas características étnicas, os brancos de
Angola compreendem a situação e nem estranham o facto de terem desaparecido, quase
completamente, das gravuras dos jornais e revistas. Os angolanos de cor subiram
definitivamente para o primeiro plano da vida política e social.
As figuras de vértice — Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi — até há pouco só
bem conhecidas dos seus militantes, definem-se perante o conjunto das populações.
A minha profissão de jornalista tem-me oferecido algumas oportunidades de contacto
com os actuais responsáveis pelo destino desta terra. Parecem-me homens convencidos das
suas verdades, mas simples, afáveis -e compreensivos. Gosto da sua facilidade de expressão,
tão característica dos povos bantus, da sua maneira directa de encarar os problemas, da sua
enorme vontade de encontrar os melhores rumos para a Angola do futuro.
Ontem, entrevistei um dos membros do Governo de Transição. Antes de qualquer
pergunta, tomou a iniciativa de afirmar a importância da imprensa! Entrelaçou os dedos das
mãos sobre os joelhos, esteve durante um longo minuto com os olhos alongados, através da
ampla janela, para a cidade velha que descia até aos modernos arranha-céus da Avenida
Marginal e disse:
— Os jornais exercem uma grande influência sobre as massas — disse — e, nesta hora
de Angola, é imperativo que a exerçam no melhor sentido...
— Pode haver concepções diferentes do que seja esse «melhor sentido» — insinuei.
— Claro que pode. Mas, na presente conjuntura da nação angolana, não nre parece
difícil encontrar um ponto de convergência.
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— Basta que os jornalistas se orientem pela realidade essencial desta fase histórica de
Angola. Vivemos uma fase de transição para o pleno exercício da soberania. É nas dificuldades
da travessia desta ponte que se conjugam presentemente os esforços de um governo com
igual representação de cada um dos três Movimentos. Haverá algum bom angolano que não
deseje uma travessia sem perigosas colisões?
— Não há, nas minhas palavras, qualquer alvo pessoal — atalhou o ministro. — Nem
sequer sugiro que os jornalistas sacrifiquem as suas ideias ou se diminuam na sua
personalidade. Apelo apenas para o bom senso de todos, no sentido de atenderem agora ao
que é essencial.
— Bem...
— Bem, uma ova! Toda a gente sabe dos assaltos que todos os dias se praticam em
Luanda. E Holden Roberto não tem medo da verdade.
67
— Ando pelas ruas de Luanda e ainda me não aconteceu nada — alegou o Santos
Gouveia.
— Pode acontecer-te amanhã — interferi do meu lado. — Ao Cardiga, que é do MPLA
como tu, ontem, em plena Baixa e à luz do dia, roubaram-lhe 4 contos, arrancaram-lhe o
relógio do pulso e bateram-lhe.
— Não com este descaramento e sem que a polícia ou a tropa intervenham. O Jorge
Penha, que trabalhava na Robert Hudson, foi ontem levar a bagagem para o Infante Dom
Henrique, em que regressa a Portugal. Os dois carregadores negros que contratou começaram
por pedir 300 escudos à hora; depois de içarem para bordo a primeira mala, pediram 600 — e
o Jorge, apesar dos protestos da mulher, que estava com ele, pagou. Daí a meia hora, pararam
e declararam que só trabalhavam por 1 200 escudos para cada um. Aí, o Jorge refilou. Então o
carregador sacou do bolso uma navalha de ponta e mola, apontou-a ao peito do branco e
ameaçou:
A mulher do Jorge, aflitíssima, correu até um polícia, que rondava perto, e contou-lhe o
que se passava.
— Não posso fazer nada, minha senhora! — disse o guarda envergonhadamente. —
Estamos rigorosamente proibidos de intervir...
— Holden Roberto está bem dentro dela e exprime claramente os seus receios — disse
o Sousa Quevedo.
— O presidente da FN1A fala dentro de um certo ideário político e com uma
determinada intenção — explicou o Santos Gouveia. — Não aceita o Poder Popular...
— Vamos apreciar as coisas com serenidade — aconselhei eu — Holden Roberto
também diz que está ao lado do povo. Mas entende que o povo manda através dos homens
que livremente escolhe para o exercício do poder. E, nisto, parece ter o acordo de Jonas
Savimbi. Nenhum deles quer a anarquia.
— Ninguém disse isso, pá! Estou a tentar explicar posições diferentes: mais nada! E nem
sequer vou dizer qual é a que julgo melhor. Todos temos de fazer um esforço para
compreender o que se passa, o que não é nada fácil nem agradável. Ora, enquanto dois dos
movimentos tendem para um regime democrático, baseado no voto secreto dos cidadãos, há
um terceiro que se apoia na força emocional das massas, pretendendo que o povo participe
directamente no exercício do poder. Por outras palavras: o dr. Agostinho Neto luta contra a
ideia duma burguesia negra que substitua a burguesia branca. E a sua arma é o Poder Popular.
— Bem sei — confirmei eu. — Qualquer dos movimentos em armas quer o apoio popular e
precisa dele. A diferença está nos processos. Holden Roberto e Savimbi concordam em que a
vontade do povo se manifeste pelo voto secreto, em eleições livres. Agostinho Neto prefere
que as massas populares reajam agora, organizando-se para manifestar a sua força e exprimir
directamente a sua influência política. Dum lado temos o processo clássico da Democracia; do
outro há um processo revolucionário semelhante ao que presentemente se verifica em
Portugal.
68
— E para que lado pendes? — atacou rudemente o Sousa Quevedo.
— Para nenhum. Como jornalista, procuro observar os factos como eles são e
interpretar lealmente o pensamento dos líderes políticos da hora presente. Quando me
enganar, aceitarei que me corrijam e darei publicamente a mão à palmatória.
— ...Lavando-a primeiro na bacia de Pilatos — rosnou o Sousa Quevedo.
— Merda para as tuas piadas de comício barato! — explodi com certa irritação. —
Reconhecer um erro é o contrário de fugir às responsabilidades.
— Merda, digo eu, para a tua atitude de juiz arbitrai — vociferou o outro. — Tu não tens
ideias próprias, pá?!
— Claro que tenho. Mas não as devo inserir no pensamento alheio. Isto, como jornalista.
Como angolano, sei que vivemos numa fase política muito delicada. Não quero escrever uma
só palavra que possa contribuir para cavar ainda mais as dissidências que já existem. Achas
que faço mal?
69
RESVALADOURO
Por essa altura já o Almirante Vermelho era a criatura mais execrada pêlos portugueses
de Angola.
O seu riso era uma mistura de ódios recalcados, íntimos complexos e vaidades grotescas.
E ria por tudo e por nada, só para ficar bem no retracto.
Medroso como um rafeiro Cabiri, transformou o Palácio do Governo Geral numa caserna
Com homens armados a circular em todos os corredores, fuzileiros especiais nos terraços do
edifício e, quando o seu medo era maior, com um aparatoso dispositivo militar, que cercava
toda a zona, desde a Avenida Álvaro Ferreira até ao Largo do Baleizão. No entanto, sempre
que os brancos ainda residentes nos bairros suburbanos reclamavam protecção, respondia
que Angola não era para timoratos.
Foi, em Angola, a sinistra figura do vilão com a vara na mão. Logo à chegada a Luanda,
como presidente da Junta Governativa. a que os luandenses chamavam «o quinteto de
cordas», quando os jornalistas lhe perguntaram quando voltaria o general Silvino Silvério
Marques, respondeu brutalmente:
Era um malcriado.
— As populações já decidiram?!...
70
— Faz asneiras aos montes — arrematou o engenheiro Balanta, que andava de um
terrível mau humor. — Falei há dias com um oficial dos «comandos» que quase chorava de
raiva. A tropa foi proibida de entrar nos muceques, porque esse malvado careca tem um plano
diabólico. Vai deixar armar o «poder popular» e, entretanto, já mandou tirar as armas aos
brancos.
— Eu não entrego a minha pistola — declarou um camionista da Petrangol.
— Não terás outro remédio — afirmou o engenheiro. — Até sei que, na tua Companhia,
já as começaram a recolher.
— Mas a minha arma não é da Companhia — esclareceu o camionista. — Foi comprada
com o meu dinheiro; e não a entrego. Sabem o que aconteceu ao meu Chefe?
— Se calhar, era o que todos devíamos fazer... — insinuou o Baldaque, muito sério.
— Nem falou. Disse-me apenas que já estava a ver os brancos mais curtos...
— É o falar adequado à imaginação visual dum pintor — explicou o Gouveia.
— Será o que vocês quiserem — aceitou o Baldaque. — Mas os artistas têm sempre algo de
adivinhos. E o riso perene desse almirante de navios naufragados parece-me de mau agouro.
Seria bom que nos preparássemos para o pior...
— Desejas para Angola um banho de sangue? — desafiou o Gouveia em tom sarcástico.
— Desejo que a independência de Angola seja para todos os que a ajudaram a construir.
— É exactamente o que o almirante promete — lembrei eu com alguma timidez.
— Não acredito numa única palavra desse malandro — interveio rudemente o
camionista.
— E eu já não acredito em nada — desabafou o Baldaque. — Estamos a cair numa cilada
em que deliberadamente se prepara a nossa desgraça. Disseram-nos que os guerrilheiros só
poderiam entrar sem armas: e trouxeram quantas armas quiseram. Prometeram que nada se
faria sem ouvir também a população branca: e ainda nos não consultaram para coisa
nenhuma. Convidaram toda a gente a agrupar-se em partidos políticos; mas dizem agora que
só os movimentos de libertação é que representam legitimamente as gentes de Angola.
Vamos escorregando de engano em engano. Se não acordamos a tempo, estamos perdidos.
— Tudo isto é uma grande chatice — sintetizou desconsoladamente o engenheiro
Balanta.
— Vocês falam como autênticos reaccionários! — disparou o Gouveia, muito firme nas
suas convicções democráticas e sempre agarrado à esperança de uma Angola independente e
próspera.
71
— Reaccionária será a tua avó! — clamou. — Eu estou-me nas tintas para a política.
Apenas pretendo continuar a viver e a trabalhar na terra onde nasci. E começo a ver que não
vai ser fácil. Esse maldito careca, com o seu Quinteto de Cordas, veio para aqui na função de
traidor.
— O que aí vai! — protestou o Gouveia.
— O que aí vem! — arrematou o engenheiro. — o que eu gostava era de saber o que aí
vem para todos nós, brancos, pretos e mestiços, porque ou eu me engano muito ou o
«Quinteto de Cordas», que nos mandaram de Lisboa, nem representa Portugal nem liga
pevide aos verdadeiros interesses das populações de Angola. Vieram para aqui brincar ao
comunismo — e é tudo.
— Tens a certeza? — ironizou o Gouveia.
— Não há certezas neste mundo — interveio gravemente o Baldaque — Mas o
engenheiro é bem capaz de ter razão. Pelo que estou a ver,
já não são os portugueses nem os angolanos quem manda no destino desta bela terra.
E é pena...
Nessa mesma tarde, contei a conversa à Mariluz e pedi-lhe que me desse também a sua
opinião. Ela permaneceu de cabeça baixa, tardando em responder. E quando, finalmente,
levantou os olhos para mim, reparei que os tinha rasos de lágrimas...
— Você julga que me não custa ficar sozinho? — arremeteu desabridamente. — Sinto
apenas que devo proteger minha mulher e minha filha contra os perigos a que se arriscam
nesta terra. Nem quero pensar no que lhes pode acontecer... Não compreende?
— Compreendo perfeitamente. Mas, por enquanto, ainda cá temos a tropa portuguesa.
— A tropa portuguesa?! Soldados que têm assistido às maiores infâmias sem mexer um
dedo?! Isso já nem é tropa nem é nada. É uma vergonha para todos nós! Devíamos pô-los fora
daqui a pontapés no rabo!
— Calma! — aconselhei pacientemente. — Eu estou atento ao que se passa. E, como
sabe, estou num bom ponto de observação. Logo que pressinta um perigo real e próximo, não
deixarei de o avisar e serei eu próprio a tratar do embarque da sua família com toda a rapidez.
— Você é um bom moço, mas tem um defeito: é muito ingénuo. Ainda acredita na
canalha que já nos vendeu e talvez já tenha recebido o preço.
— É preciso acreditar em alguém...
E, forçando a minha própria esperança, já bastante abalada, inconscientemente movido
pelo desejo de conservar pelo maior tempo possível a adorável presença da Mariluz, expliquei
que os soldados portugueses, na sua esmagadora maioria, continuavam a ser valentes e
resolutos, que só não intervinham quando estavam absolutamente proibidos de o fazer e que
até o Rosa Coutinho já por duas vezes tinha levantado essa proibição.
O preocupado homem ainda argumentou que as coisas iam de mal a pior, que o Almirante
Vermelho era um lacrau dos grandes, que ninguém podia confiar na malandragem que era
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agora Governo em Lisboa, que era do seu dever pôr a família a salvo, que estas coisas nunca se
deviam deixar para a confusão da última hora, etc., etc. Mas acabou por ceder.
— Isto agora é assim... — disse o engenheiro sem mais explicações. — Que manda?
— Nada. Peço, e com a maior humildade. O engenheiro Balanta (não sei se conhece...)
foi preso esta noite. Sou muito amigo dele. Pode informar-me do que se passa?
Foi por esses dias que incendiaram várias casas de brancos no Muceque Catambor. E
houve quem afirmasse ter visto um alferes, dos recentemente chegados de Lisboa, a dirigir a
73
estúpida e nefanda proeza. Já completamente descrente do novo Governo da sua Pátria, os
brancos começavam também a perder aquela fugaz esperança que nascera das primeiras
palavras e atitudes do Governo de Transição.
Repentinamente, na noite de 24 de Março de 1975, rebentou de novo o tiroteio na
cidade, agora entre o MPLA e a FNLA, que se degladiavam nos subúrbios luandenses, com
fogo de armas ligeiras, intercalado pelo ribombar das granadas de mão, morteiros e
foguetões. Mais uma vez, a população de Luanda, sobretudo a sacrificada gente dos
muceques (brancos já lá os não havia...), era roubada ao seu merecido repouso, após um dia
de trabalho.
Nos dias 25 e 26, já os tiros alastravam para as zonas mais centrais da cidade e em pleno
dia. Pelas 11 horas de 26, eu próprio estive bem perto do tiroteio, quando ia tratar de um
assunto de impostos, na Repartição de Finanças da Avenida dos Combatentes. Encontrei a
porta fechada, como todas as das lojas mais próximas.
— Não teve tempo — explicou ela. — Os tiros eram muitos e os bandidos andavam a
assaltar as cubatas.
— Para onde vai agora?
— Só tem cinquenta angolares, da palanca que o meu homem me deu no último sábado.
Talvez chega para a 3." classe. Os filhos não paga. O mais velho ainda não fez 5 anos.
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— Há três dias que não sei dele. Talvez já morreu de morte matada. Agora, no muceque, só
há confusão e a gente malvada que rouba tudo e mata logo, sem avisar. Diz já, patrão, porque
é que os portugueses estão a ir embora?
Já a descer a Rua de Camões, travei atrás dum Unimog da tropa, estacionado junto do
Hotel Trópico, e disse ao alferes português que havia tiros ao fundo da Avenida dos
Combatentes.
— O almirante?...
Ele nem negou nem confirmou: limitou-se a sorrir, talvez para ocultar a sua íntima
frustração de soldado reduzido à reles condição de mero espectador de uma enorme
desgraça.
Na estação do Caminho-de-ferro, dei 500 escudos àquela mãe de quatro filhos
pequeninos e arranquei logo, para fugir aos seus agradecimentos, abundantemente molhados
de lágrimas. O meu bilhete de identidade ainda é de cidadão português. E uma nota de 500
escudos não é nada para a dívida que Portugal contraiu com aquela pobre mulher.
Na redacção do meu jornal já sabiam da luta na zona de S. Paulo. Tinha partido para lá o
Pedro Gilvaz, que se considerava vacinado contra as balas perdidas e teimava em ir tirar uns
bonecos.
— Viste alguma coisa? — perguntou-me o Baldaque, quando lhe falei no tiroteio.
— Ouvi os tiros a poucas dezenas de metros e assisti à debandada dos pretos do Rangel.
— Não sei.
— Isto está a tornar-se muito feio — opinou o Baldaque. —A entrega de Angola aos
guerrilheiros do terrorismo é um erro tremendo. Começo a pensar se não terei também de ir
embora...
— Para a África do Sul, para o Brasil, até mesmo para a Metrópole. Para qualquer parte,
desde que seja para longe deste carnaval trágico. Sou branco e, nesta terra, o tempo dos
brancos acabou.
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— E terá começado o tempo dos angolanos pretos? — perguntei com cepticismo. — Ainda
agora levei à estação do Bungo uma preta com quatro filhos pequeninos, que já não sabe se o
marido é morto ou vivo e foge do inferno dos muceques. Um horror!
— Esse Rosa Coutinho merecia ser atirado para o meio duma alcateia de mabecos.
Dizem que vai embora amanhã. E não deixará de sorrir à partida... Tu já sabes alguma coisa do
engenheiro Balanta?
— Nada de seguro. Mas parece que sempre conseguiu voar para Joanesburgo.
Durante quase um mês nada mais soube do engenheiro Balanta. Até que um dia, já muito
perto da meia-noite, apareceu de surpresa em minha casa.
— Fugi da cadeia e tenho de sair urgentemente de Angola — disse, após o abraço do
reencontro. — Podes esconder-me aqui por um ou dois dias?
— E depois?
— Bem... era meu dever avisar-te, mas já esperava essa reacção. Não fales nisto a
ninguém. Mesmo depois de eu sair, é melhor que ninguém saiba que eu fugi da cadeia para
aqui. É melhor, principalmente para ti.
— Está bem — concordei eu. — Mas senta-te. Vens com ar esfomeado, homem. Meu
pai e a tia Isaura foram a uma festa de anos. Mas, por mistérios inescrutáveis, tenho aí um
pedaço de carne assada. E também há pão relativamente fresco, o uísque da praxe e algumas
sodas geladas. Abanca, que vamos jantar os dois.
Deixei-o beber dois uísques seguidos e devorar três grossas fatias de carne assada com
uma rapidez que não enganava ninguém. E, então, já com a fome acalmada, foi ele que
espontaneamente declarou:
— Ainda bem que mandei a família para a Metrópole. Se tivesse a mulher e os filhos em
Angola, nem me atrevia a fugir... Sabes que me foram buscar a casa às 11 horas da noite?
— Não sei nada. Ainda fiz uma diligência no Palácio, mas foram passos perdidos.
— Pois foi mesmo para o Palácio que me levaram nessa noite de há vinte e sete dias.
Entrámos numa sala onde estava o Almirante Vermelho a dizer coisas a um cómico grupo de
oficiais do exército e da marinha, uns de pé, outros recostados nas poltronas e até alguns
sentados no chão. Um quadro de garotos de escola primária, na ausência do professor. Só com
a diferença que o professor estava lá e era dos mais gozões, exibindo aquele riso alvar que
todos lhe conhecemos. O almirante falou, falou, sem nunca olhar para mim, que fiquei à porta
entre os meus dois guardas, aparentemente ávidos de carregar no gatilho, e desandou para o
seu gabinete, seguido pelos guarda-costas. O meu primeiro interrogatório foi ali mesmo,
76
sempre sob a ameaça das armas e a servir de pião das nicas de toda aquela reinadia
assembleia, constituída por cerca de vinte militares eminentemente progressistas, desses que
o general Costa Gomes (raios o partam!) nos mandou de presente.
«— Está a mentir!
«—Ai, que menino tão bem comportado! — chasqueou um alferes, com olhos
ramelosos e barbicha de chibo no cio.
«—A sua fazenda dos Dembos tem dado apoio logístico aos guerrilheiros de Holden
Roberto — acusou o Comandante.
«—A minha fazenda está ocupada pêlos turras, o que é muito diferente.
«—Este gajo está a rir-se de nós! — acusou um alferes de camisa aberta até ao umbigo.
«—Rira bien qui rira lê dernier — disse o comandante, muito vaidoso do seu francês. —
Nós temos processos de fazer cantar este canário... Vamos lá a saber: quais eram
exactamente as suas relações com o dr. Ferrenha?
«—Nenhumas. Nem sequer o conheço pessoalmente.
«—Se soubesse, não lho dizia! — gritei, já enfurecido com a rópia do marujo de água
doce. — Deixem de me aborrecer com perguntas de esquadra da polícia. E, se eu próprio
também posso perguntar alguma coisa, agora que há liberdade para todos, gostaria que me
dissessem porque é que estou preso...
«—Qual é a sua opinião sobre a FUÁ? — disparou um tipo de óculos, ignorando a minha
pergunta.
«—Se o senhor é capelão, fique sabendo que não estou preparado para mie confessar.
«—E, se o menino começa a refilar, vai daqui para os muceques e o Poder Popular lhe
tratará da saúde... — rosnou um dos militares mais cabeludos.
«Com um gesto de apaziguamento, o comandante ordenou então que me entregassem
aos «rapazes» da sala do lado. E encontrei-me entre um novo grupo de militares, quase todos
com o galão de alferes, ainda mais progressistas e cabeludos do que os primeiros.
«—Ouça lá, amigo! — começou um deles, todo falinhas mansas — Gosta ou não gosta
de Angola?
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«—Então, porque anda metido com essa canalha do PDCA(1), que é a nata dos
exploradores desta terra?
«—Já disse aos vossos camaradas ali ao lado que não pertenço a nenhum partido
político. Só quero que me deixem viver e trabalhar na terra onde nasci.
«—Certo! — concordou o cabeludo. — Mas, nesse caso, deve colaborar na construção
de uma Angola livre e independente. E há por aí uns malucos ainda convencidos de que
podem impedir que isso aconteça. O amigo sabe quem são... Venham de lá os nomes!
«Fomos, eu com os meus dois guardas, mais dois militares armados de G3. Junto da
Estação Ferroviária do Bungo, os quatro militares saíram do jipe, mandando-me esperar, e
afastaram-se uns cinquenta metros. Reparei que nem tinham deixado à mão uma carabina G3
e compreendi a intenção de ma arrastarem a um acto de desespero, para resolver rapida-
mente o meu problema com uma bala certeira. Mas não caí na emboscada. Saí também do
jipe, levantei os braços ao ar e gritei-lhes o desafio:
«— Ninguém o quer matar, seu caguinchas! — declarou o chefe da escolta com a mais
descarada insolência.
«Acabei por dar entrada na Casa de Reclusão, onde fiquei encarcerado durante 56
horas, sem comer nem beber.
«Levaram-me depois para a antiga prisão da DGS, em S. Paulo, onde me fecharam numa
cela fétida e só dois dias mais tarde me deram uma cama de campanha e uma vassoura para
varrer um pouco de toda aquela porcaria. Ali encontrei o capitão Seara, o mesmo que
defendeu a Casa da Reclusão em 4 de Fevereiro de 1961, do assalto dos homens do MPLA, e
que também era acusado de se opor à descolonização. Mas, quando tentávamos conversar,
separaram-nos brutalmente -e nunca mais nos vimos.
«Recomeçaram os interrogatórios, que se prolongaram, de dia e de noite, durante cerca
de três semanas. Sempre a mesma lengalenga. No que mais insistiam era em informações
sobre a FUÁ, sobre elementos do PDCA, sobre oficiais dos Comandos, sobre pilotos da Força
Aérea Portuguesa e até sobre alguns membros do Governo de Transição.
«Teimaram, voltaram a teimar, mas deram sempre com o nariz na porta. Durante um
dos últimos interrogatórios, um capitão com cara de cavalo ainda fez menção de me agredir.
Mas fitei-o com tais olhos, que logo desistiu do intento. Lá cobardes são elas, podes ter a
certeza!
«Não sei se sabes que a antiga prisão da DGS serve agora também de quartel do COTI.1,
que é uma das unidades encarregadas de manter a ordem em Luanda, ou de fingir que a
mantém. Eram da Cavalaria e pareceu-me que continuam a ser bons soldados, alguns deles
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enraivecidos com o Almirante Vermelho, que só está interessado em que lhe defendam o seu
covil. Logrei conquistar a simpatia de alguns furriéis e de um alferes. E só assim consegui fugir.
«E aí tens, em breve resumo, o que me aconteceu nestes últimos vinte e sete dias.
— E agora? — perguntei eu, que propositadamente o não interrompera uma só vez,
durante a sua emocionante narrativa.
— Agora, vou sair de Angola o mais depressa possível. E tu, se queres um conselho,
larga também!
— Eu sou angolano.
— Também eu. Mas já não existe segurança para nenhum de nós, nesta desgraçada
terra, onde ninguém se entende.
Indiquei-lhe o quarto onde poderia dormir e, nos dias seguintes não descansei enquanto
não arranjei um barco de pesca que o levasse até Moçâmedes, onde tinha bons amigos.
O Baldaque estava bem informado. Com efeito, no dia seguinte, pouco antes da meia-
noite, o «quinteto de cordas» tomou o avião de regresso a Lisboa. Sem aviso prévio. Sem
mesmo aguardar que chegasse o alto-comissário, general Silvino Cardoso.
A Junta Governativa, que tanto mal fez a Angola, esgueirou-se medrosamente, nas
sombras da noite, através dum aparatoso dispositivo militar, que se estendia desde o Palácio
do Governo até à escada do Boeing e até metralhadoras pesadas incluía.
Já na sala dos VlPs, com a aerogare rigorosamente interdita a civis, aqueles cinco
homens, quase todos execrados pela maior parte dos brancos e pretos de Angola, sentiram-se
repentinamente alegres e descontraídos. Todos à paisana e em mangas de camisa, riam e
chalaceavam como excursionistas no fim dum agradável passeio.
Os jornalistas que souberam a tempo daquela partida (entre eles, eu) acabaram por
conseguir acesso ao aeroporto, depois de prévia autorização do Almirante Vermelho que, no
entanto, não quis responder às nossas perguntas.
— Têm aí quem exerceu até agoira as funções de Secretário da Comunicação Social —
disse. — Falem com ele, se quiserem!
E voltou para junto do seu bando, rompendo logo em grandes gargalhadas, talvez no
desfecho de qualquer interrompida anedota.
— Digam!
Houve aqueles momentos de hesitação que sempre acontecem nestas ocasiões, com
olhares de uns para os outros, em mudo convite ao início das perguntas. E acabei eu por me
decidir:
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— O senhor comandante foi, durante estes meses, o responsável pêlos meios de
comunicação, nesta terra agora em vésperas da independência. Que pensa da imprensa de
Angola?
— Penso que a imprensa de Angola é uma boa merda — respondeu ele, de repente.
E, notando que eu regulava rapidamente o meu gravador, acrescentou com total
inconsciência e alvar descaramento:
— Pode gravar à sua vontade. Eu repito: penso que a imprensa de Angola é uma boa
merda.
Já todos sabia-mos que ele era burro e mau — coisas que, juntas, são demais. Mas
aquela resposta, na hora da partida de uma terra que tinha todo o direito de o correr a
pontapés, excedia quanto podíamos imaginar.
Fitámo-lo com o espanto de quem depara com um mabeco a falar e desistimos de mais
perguntas. Por acordo tácito, sem mais uma palavra, nem para ele nem para o resto do bando,
saímos dali.
No dia seguinte, quando, na redacção do jornal, se estranhava o facto de o «Quinteto de
Cordas» ter partido antes da chegada do alto-comissário, o Baldaque deu uma explicação
singular:
— Tinham mesmo de partir sem mais demoras — disse —, não há figueiras em Angola...
Toda a imprensa reproduziu a resposta malcheirosa do ex-secretário da Comunicação
Social. E a revista Notícia, que só à sua conta pagara mais de uma centena de contos de multas
aplicadas pelo progressista da merda, revelava que o insultador dos jornalistas angolanos
tinha levado a esposa à Conferência do Alvor, como representante da imprensa de Angola.
Foi daí em diante que os portugueses de Luanda começaram a dizer que o brilhante
tocador de rabecão do quinteto de cordas era «Je» por parte da mãe e «suíno» por parte do
pai...
80
GUERRA CIVIL
Bem contra a sua vontade, por exigência de Holden Roberto e Jonas Savimbi, que não
podiam tolerar a descarada parcialidade do Almirante Vermelho a favor do MPLA, o
general Costa Gomes substituiu o seu amigo e correligionário pelo general de Aviação,
Silva Cardoso, que muitos angolanos consideraram um Homem honesto e um Militar
corajoso.
Mas o Baldaque, cada vez mais azedo, protestou imediatamente contra tal opinião, que
era também a minha.
— Deixa-te de ilusões, menino! Para ser melhor que o Rosa Coutinho não é preciso
muito. Mas -este também obedece aos traidores de Lisboa e mantém a nossa tropa na
triste figura de assistir friamente às maiores infâmias e crueldades. É ou não é verdade?
E o seu olhar era tão furioso que nem sequer tentei defender o novo alto comissário.
Fosse como fosse, o mal estava feito. E apagara-se definitivamente a última faúlha de
esperança, acesa pelas primeiras declarações do Governo de Transição.
O processo da imensa tragédia de Angola estava já na sua linha irreversível.
O Rosa Amaral, que voltava de uma rápida visita à Metrópole, vinha profundamente
desanimado.
81
para que lhe pudesse resistir por muito mais tempo essa mimosa flor da esperança que
é, na alma do homem, uma saudade de Deus.
Sem lisonjas, que as não sei usar, sempre admirei esse rapaz, novo e dinâmico, que
alguns dos meus colegas tratam por tu, porque andaram com ele no Liceu Salvador
Correia. Herdou o jornal do grande jornalista e grande português, que foi António
Correia de Freitas, e tinha sabido honrar a tradição do mais prestigiado órgão da
imprensa angolana, mantendo-o na mesma linha de rumo e melhorando-o
substancialmente no apetrechamento técnico, no aspecto gráfico e na rentabilidade
económica.
Foi por isso com muita e muito sincera alegria que o abracei efusivamente. O espanto
veio depois, quando ele me apresentou um preto, que estava sentado num dos maples
do gabinete, fardado de camuflado e com uma pistola metralhadora em cima dos
joelhos.
— Logo, explicarei a todos. Vou convocar uma reunião para esta tarde.
E na reunião explicou:
— Meus amigos — disse ele com certa emoção —, julgo que não duvidam da minha
amizade nem do meu respeito pela vossa opinião. Nisto, como em tudo o mais, tenho
procurado seguir o exemplo do meu tio. Mas agora tomei uma decisão sem vos
consultar, porque era urgente e vital. Durante o meu breve exílio na África do Sul,
obtive informações seguras sobre o que se trama contra esta nossa terra. E coloquei o
nosso jornal sob a protecção da FNLA.
— Da FNLA?! — gritou o Sousa Quevedo, com o sobressalto de quem pisa uma cobra
cascavel.
— Exactamente. Falei com Holden Roberto e verifiquei que é bem diferente da imagem
que todos nós fazíamos dele.
— Mas tu — interveio o Rosa Amaral —, tu que tanta vez arriscaste a vida no teu avião
de brinquedo, para evacuar portugueses feridos pela UPA, alinhas agora com esse
movimento?!
— Não quero o comunismo na minha terra — disse ele com profunda amargura.
— Chama-se a isto «anticomunismo primário» — lançou o Sousa Quevedo do seu canto.
— Chama-lhe o que quiseres. Para mim, o comunismo é o contrário de democracia. E
nós já estamos vendidos a Moscovo. Eu não aceito isso!
— Tu não podes estar de acordo com Holden Roberto — insinuou o Baldaque.
— Estou de acordo com ele num ponto essencial: somos ambos anticomunistas. Mas
admito que já nos encontramos perante opções de emergência. O que todos
deveríamos ter feito era cortar com o Governo de Lisboa logo após o 25 de Abril.
Simplesmente, deixámo-nos enganar miseravelmente por um pequeno grupo de
traidores. E agora, é tarde! Pela minha parte, já que não posso fazer mais nada, quero
ao menos lutar contra a instalação de uma ditadura nesta bela terra. E é tudo, meus
amigos.
82
Levou-nos depois ao Gabinete da Direcção, onde nos apresentou o comandante
Cabango, como responsável pela nossa segurança.
O guerrilheiro, sempre sem largar a sua pistola-metralhadora, assumiu um ar simpático
para nos dizer que tinha quatro homens sob as suas ordens, que vestiam à paisana e só
ele sabia quem eram.
— Desculpa, mas não pode dizer— respondeu ele.— Este serviço é assim mesmo... Mas
toda a gente pode trabalhar na confiança, que nós vai guardar tudo muito bem, faz
favor de acreditar...
Voltámos para a sala da Redacção, num silêncio consternado, que o Sousa Quevedo
quebrou de forma imprevista:
83
morte antes de atingirem a plenitude da vida. Soube-se depois que, na maioria dos
casos, as «pobres crianças» nem sequer estavam feridas. Ao primeiro contacto com os
horrores da guerra civil, tinham muito naturalmente desmaiado de medo.
Mas também houve bastantes mortos de verdade. Os guerrilheiros do antigo futebolista
da Académica de Coimbra foram desalojados e o MPLA inchou com a grande vitória.
A guerra civil já era um facto em Angola, quando o general Silva Cardoso entrou no
abandalhado Palácio dos governadores-gerais; e o mais que pôde fazer foi confinar-se
numa estrita imparcialidade entre os Movimentos que reciprocamente se odiavam e
hostilizavam, tornando completamente inoperante o Governo de Transição.
— Não aturo mais isto — bradou ele com uma voz de alucinado. — Vou-me embora!
— Espera lá, comodista! Para mim o mais lamentável não foi isso. Que a Refinaria
suspenda a laboração por exigência de meia dúzia de desordeiros já nem me
surpreende. Se no porto não descarregam os navios; na Textang estão em greve; na
Cuca não trabalham; na Siga não trabalham; nas escolas não ensinam; no Governo não
governam — porque é que os homens do petróleo hão-de fugir a esta bela regra? Até
era um escândalo! O que me aborreceu deveras foi outra coisa. Vê lá se adivinhas...
— Pois foi só isto: no caminho para o Alto da Mulemba, aonde ia em busca de notícias,
dois soldados das FAPLAS plantaram-se à frente do meu carro e mandaram-me parar.
— Atão o camarada não vê que estamos a içar a bandeira do MPLA. Sai já do carro e fica
aí quieto, até tocar o sinal.
E eu saí. E fiquei quieto e perfilado, como ordenavam aqueles dois garotos armados.
Mas já não fui à Refinaria. Que se lixe toda esta merda! Vou-me embora!
Mas não foi embora, não. Uma patrulha das FAPLAS prendeu-o nessa mesma tarde e
levou-o para o campo de prisioneiros instalado na Praça de Touros...
84
Ao sair do jornal, encontrei a Mariluz, que mais uma vez me vinha falar do pai.
— O trabalho da construção -parou completamente e meu pai parece abúlico. Quase
não come. Quase não fala. Minha mãe anda a chorar pêlos cantos. Que hei-de eu fazer?
Isto vai de mal a pior...
— Portugal já não manda nada nesta terra. E esses ministros inventados à pressa não
sabem ou não querem governar. Anda tudo à toa. O pessoal das obras não trabalha mas
quer continuar a receber e pede aumento de salário. E o nosso dinheiro sai-se
derretendo. Tudo isto está a matar meu pai. Talvez fosse bom que aparecesses lá por
casa para ver se o animas...
— Está satisfeito?
— Ou piores. Desde o 25 de Abril que nada vai para melhor. Já anda outra vez tudo aos
tiros.
— Eu preciso é de morrer. Já não faço nada neste mundo. A dona da casa veio da
cozinha, cumprimentou-me amavelmente e perguntou-me se bebia um uísque.
— Acho que deve reagir contra esse desalento, que não remedeia nada. E deixe lá de
fumar dessa maneira suicida! — acrescentei ao ver que ele acendia mais um cigarro.
Vieram os dois uísques e o pai Calabriz bebeu o dele de um só trago. Depois perguntou:
— Sabe o que disse hoje o garoto que me traz o seu jornal todas as manhãs? Vem
sempre à hora do almoço, porque sabe que lhe damos de almoçar... Mas sabe o que me
disse?
85
— ?!
— Não. Levei-o ali ao quintal, apontei-lhe a terra do jardim e declarei-lhe que, sim
senhor, que ele ia ficar ali, na minha casa, mas com sete palmos de terra a fazer-lhe
sombra.
— Foi de férias?
— Está bem: eu tratarei do embarque, desde que autorize que, primeiro, se realize o
nosso casamento.
86
— Já lhe falou no assunto?
— Vou falar-lhe hoje mesmo e tenho a certeza de que vai concordar.
— Também concordará em partir para a Metrópole, só com a mãe, depois de casada
consigo?
Pela primeira vez aflorou um sorriso ao rosto torturado daquele homem. Não era
alegria, com certeza, mas era o sinal exterior de um grande alívio na sua profunda
ansiedade.
Fui ver e logo me convenci de que se tratava duma farsa muito mal montada. As
paredes da sala onde se exibia a hedionda exposição estavam crivadas de buracos de
balas, aqui e além entremeados de grandes rombos produzidos pelas granadas e
foguetões. Só os balcões frigoríficos, com as vísceras humanas que as FAPLAS afirmavam
ter lá encontrado, permaneciam intactos. Uma coisa totalmente inacreditável!
Correu depois que o MPLA tinha trazido as vísceras da sala de anatomia do Hospital
Universitário, obrigando a médica branca a entregá-las.
No desígnio de apurar a verdade, procurei essa médica, mas não a encontrei. Alguém
me assegurou que a tinham levado para o Campo de Prisioneiros da Praça de Touros...
87
— Há três dias que aquele hospital é um verdadeiro inferno — declara a senhora dona
Leonor da Silva, que é a informadora. — Eu trabalho num dos blocos cirúrgicos e ando
tão repassada de horror que, apesar de exausta, já não consigo dormir. Esta noite foram
novamente buscar-me, porque havia montes de feridos. Mas, perto do Cinema de S.
Paulo, a ambulância que me levava foi alvejada com rajadas de metralhadora -e
voltámos para trás. Depois, deu-se o tiroteio que todos ouvimos. E à hora do almoço, a
enfermeira-chefe foi a minha casa comunicar que o Hospital Universitário está debaixo
de fogo de morteiros.
— Muitos. E alguns mortos. Estão agora a tentar transferir os doentes para o Hospital
Maria Pia — respondeu a enfermeira Leonor da Silva. E acrescentou que a enfermeira-
chefe a tinha ido convidar a dar uma ajuda, mas que tivera de recusar porque já não
podia mais.
— O pessoal serventuário, quase todo da UNTA (União Nacional dos Trabalhadores de
Angola) nega-se a trabalhar e somos nós que temos de fazer tudo.
— E o moral dos brancos é bom? — perguntei eu.
— Todos os brancos estão a ser insultados, agredidos e caluniados — reforçou meu pai
com ar sombrio. — E nem sequer é de admirar. Há meses que na Metrópole nos
chamam fascistas, reaccionários, exploradores e ladrões. Os pretos de Angola apenas
copiam as palavras e atitudes da escumalha que usurpou o Poder na nossa desgraçada
Pátria. E, para lhes facilitar o trabalho, até nos mandaram, para a imprensa e a rádio
daqui, alguns elementos do Partido Comunista Português. Que dizes a isto, filho?
— Digo que, sob este aspecto, o pai está cheio de razão. Lisboa prometeu a
independência a Angola, mas pretende impor-lhe um determinado regime. O que é
mau...
Receio que estejamos todos perdidos, meu filho. E oxalá que isto seja apenas
pessimismo de um velho que vê todo o seu mundo desmantelado...
Por todo o mês de Julho, a guerra continuou furiosa em Luanda. Centenas de cadáveres
apinhavam-se nas mesas e no chão da Casa Mortuária. No Hospital Maria Pia, único que
ainda funcionava, era incessante a entrada dos feridos. O fogo de armas ligeiras e
pesadas ouvia-se em toda a cidade e, nas zonas já conquistadas pelo MPLA, o Poder
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Popular, armado com a conivência de Rosa Coutinho, lançava-se na caça aos filiados ou
simpatizantes dos outros movimentos, espancando, violando, roubando e matando.
Vi como, a pequena distância da Alameda Dom João II, uma Panhard dos Dragões ainda
afugentou os larápios que pilhavam as casas dos brancos. Mas também vi como eles
voltaram depois, para completar o saque.
Os moradores das torres do Prenda puderam observar como os soldados de Agostinho
Neto encostavam os adeptos da FNLA às paredes das casas abandonadas, fuzilando-os
sem mais formalidades. Na Avenida dos Combatentes, dois pretos foram abatidos como
cães raivosos, só porque usavam botas como os soldados do ELNA.
Por entre o tiroteio, as sirenes das ambulâncias lançam continuadamente o seu uivo
sinistro de angústia e de morte. Em toda a cidade paira o cheiro acre do sangue
derramado, enquanto não é superado pelo fedor nauseabundo dos cadáveres em
putrefacção.
Os brancos fugidos de Malange afirmam que a cidade foi quase toda destruída. Sabe-se
que Dalatando (a que já não chamam Cidade Salazar...) está a sofrer a mesma sorte. E
correm os mais diversos boatos. Afirma-se que Daniel Chipenda vem aí, para vingar a
derrota dos seus guerrilheiros no quartel do Bairro da CAOP. Diz-se que há em Luanda
soldados do COPCON, vindos expressamente, com homens armados da LUAR, para
ajudar o MPLA. O Rosa Amaral assegura-me que o Almirante Vermelho (que usurpou o
título de almirante, porque é apenas capitão de fragata...) está secretamente no Lobito,
a planear com elementos da Marinha de Guerra Portuguesa a expulsão da UNITA e da
FNLA de todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.
Ao abrir da segunda quinzena de Julho de 1975, a FNLA mantém-se apenas no seu
último reduto: a Fortaleza de S. Pedro da Barra. E os sitiados declararam que, se forem
atacados, bombardearão a Refinaria de Petróleo, que lhes fica a cerca de 1500 metros
de distância...
89
soldados portugueses e guerrilheiros da UNITA. Para cá de Quibala, os guerrilheiros da
UNITA foram atacados pela tropa do MPLA e dizimados sob os olhos dos soldados
portugueses, que nada fizeram para os proteger.
Tinha chegado finalmente a Luanda, há dez dias, e tratou imediatamente do embarque
para a Metrópole, porque os brancos já não podem viver nesta terra em que tanto
trabalharam. A família já está no aeroporto, à espera do avião que os levará para
Lisboa. Ele veio ao Banco de Angola tentar cambiar algum dinheiro. Não conseguiu
nada. Os 10 contos que ainda tinha, trocou-os na Portugália por três notas de conto do
Banco de Portugal. E é com isso que vai regressar à sua Pátria...
Outro conta que trabalhava nas Mabubas, desde há 17 anos. Lá tinha casado e assistido
ao nascimento dos seus três filhos. No princípio da semana, soube que a tropa do ELNA
tinha abandonado aquela zona e, logo a seguir, chegaram as FAPLAS, que levaram tudo
a ferro e fogo, chacinando os brancos e roubando tudo quanto encontravam.
— Quando atacaram a minha casa — conta o desgraçado —, minha mulher fugiu para a
varanda das traseiras, com o filho mais pequeno ao colo. Mas os bandidos perseguiram-
na e cortaram-nos literalmente ao meio, ao filhinho e a ela, com sucessivas rajadas de
metralhadora. Fizeram isto em pura crueldade, porque a primeira rajada chegou para os
matar... Arremeti contra os brutos mas, não sei porquê, não me mataram. Limitaram-se
a dar-me uma coronhada na cabeça, que me fez perder os sentidos... Voltei a mim na
carrinha dum comerciante preto do Caxito, meu antigo colega de trabalho, que nos
trouxe para Luanda, a mim e aos dois filhos que me restam. Chego aqui — e é o que se
vê... Que posso eu fazer, sem emprego, sem a minha querida mulher, e com dois filhos a
sustentar? Era bem melhor que me tivessem matado...
Estes são apenas alguns dos muitos dramas cujas narrativas pungentes chegam até à
redacção do meu jornal.
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A ameaça é muito séria e tem travado o ímpeto do MPLA e de todos aqueles que o
ajudam. Finalmente, obedecendo a instruções de Holden Roberto, os sitiados de S.
Pedro da Barra saem do seu refúgio e, pela calada da noite, tentam alcançar a tropa do
ELNA, que desce do Caxito.
— Dizem que rebentou uma bomba no nosso jornal — veio anunciar o Santos Gouveia,
com olhos de alucinado. — Tu não ouviste um grande estrondo?
— Ouvi muitos. Estrondos é o que mais se ouve agora nesta cidade enlouquecida.
— Aquele foi diferente — teimou ele. — Eu também não liguei; mas agora que me
falaram da bomba, compreendo. Anda daí comigo!
Fomos. Rompemos por entre a multidão acumulada junto ao velho edifício do jornal e
verificámos que as instalações da redacção estavam transformadas num monte de
escombros.
Senti-me invadido por uma íntima tristeza. Quem trabalha afeiçoa--se ao seu local de
trabalho. E o nosso director, que está novamente na África do Sul, tinha melhorado
todas as instalações, incluindo a redacção, que já beneficiava de ar condicionado.
A bruta carga de plástico destruiu quase todo o primeiro andar, mas poupou as oficinas
do rés-do-chão. As máquinas funcionam e o jornal pode continuar a sair.
Não temos secretárias, falta o telex, não há máquinas de escrever. Mas ainda não nos
cortaram a cabeça. E um repórter, desde que tenha ideias, uma esferográfica e uns
pedaços de papel, pode exercer a profissão.
Foi o que disse aos meus colegas, que acorreram imediatamente, como eu e o Santos
Gouveia, e concordaram em pleno. O jornal vai sair amanhã, à hora do costume.
Já estamos muito desfalcados. Além do director, mais uma vez longe de Luanda para
salvar a vida, o Baldaque -está preso, o Rosa Amaral desapareceu sem deixar rasto e o
Sousa Quevedo foi tentar vida no Brasil. De maneira que, neste amanhecer trágico,
somos apenas o Santos Gouveia, o Maia Campita, o Carlos Pontes, o Gama Ribeiro e eu.
— Isto é tudo uma grande chatice — resumiu o Gama Ribeiro, cofiando o seu bigode
farfalhado.
— Ainda podia ser pior— declara o Maia Campita que, agora sim, já conseguiu
emagrecer uns quilos. — Vocês sabem que, por mero acaso, faltei ao meu turno da
noite?
91
No dia seguinte, às 8 da manhã, o jornal já andava na rua, com uma extensa reportagem
dos últimos acontecimentos e um editorial da minha lavra, que era, todo ele, um apelo à
conciliação e ao trabalho ordeiro, coisas ambas elas indispensáveis à construção de uma
real independência e condições de progresso e bem-estar para a população de Angola.
Logo a seguir, apareceu de novo em Luanda, acompanhado por alguns dos seus
capangas, a figura sinistra do almirante Rosa Coutinho. Sob a sua orientação e
certamente na execução de planos urdidos em Cuba, quando lá foi com o major Otelo
Saraiva de Carvalho, promoveu que a Marinha de Guerra portuguesa conquistasse
sucessivamente, para o MPLA, todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.
92
A DEBANDADA
Noto que meu pai tenta agora ocultar-me as suas crescentes preocupações. Está
certamente ávido de notícias, porque constantemente me pede as «últimas novidades». Mas
parece-me claro que evita os comentários pessimistas, precisamente quando os
acontecimentos justificam plenamente aquela frase com que se demarcou do nosso
entusiasmo na manhã de 26 de Abril de 1974:
Agora, agarra-se às últimas razões de esperança, com uma pertinácia e uma coragem
que muitos rapazes novos já não sentem.
Vi-o de rosto crispado e pálido, quando do rebentamento da bomba no meu jornal. Mas
limitou-se a dizer-me que devia ter cuidado.
— Claro que um homem deve saber enfrentar o perigo — ponderou ele com uma calma
que era apenas força de vontade. — Mas precisas de pensar também naqueles que te
estimam...
— Não julgues que me refiro principalmente a mim. Eu já sou o passado... Mas há o teu
futuro: essa moça com quem vais casar.
— Nunca pensei que fosse uma coisa tão difícil. Ainda não consegui todos os papéis
necessários para o casamento. Agora, nas repartições, gasta-se o tempo todo a discutir
política...
— Tenho pena de te não poder ajudar. Mas os meus amigos já não valem nada. E eu
estou na lista negra dos novos governantes.
— Se calhar, nem está... Os novos governantes também apreciam a honestidade... — E,
a mudar de assunto, informei:
— Sabe que o pai da Mariluz está doente?
O sr. Calabriz já andava a pé, porque a mulher sabia tratá-lo. Recebeu-nos a Mariluz,
que beijou meu pai com alegria repassada de carinho.
— Em maré de dificuldades — declarou meu pai, logo a seguir às apresentações — é
bom que as famílias se juntem. E nós vamos ser família. Nem lhe pergunto pela saúde, porque
já vejo que deu na doença um bom pontapé à Eusébio...
— Isso de Eusébio é favor, porque eu já não posso com uma gata pelo rabo — rectificou
o dono da casa. — O que acontece é que, aos mosquitos que me mordem, sou eu que lhes
pego o paludismo. Por isso já nem ligo a picadelas de anófeles. Há coisas que me preocupam
muito mais... — E, voltando-se para mim, esclareceu:
93
— ...Por exemplo, essa bomba no seu jornal.
— A bomba era de «espera, galego» — minimizei eu, afectando uma grande serenidade.
— Não estragou nada de insubstituível.
— Mas representa um aviso muito sério — insistiu ele. — Vivemos as horas do diabo!...
E esses papéis do casamento?
— Hei-de consegui-los, custe o que custar!
— Eu já acendi uma vela a Santo António — interveio a Mariluz com o seu bom sorriso.
A situação em Luanda agrava-se de dia para dia. Com os seus conhecidos apoios, as
FAPLAS movem uma perseguição feroz contra os luandenses ligados (ou supostamente
ligados) aos dois Movimentos expulsos da cidade. Quando os não matam logo, sem perder
tempo com formalidades, levam-nos para a Praça de Touros, transformada em campo de
concentração. Milicianos do Poder Popular violam mulheres em plena rua ou assaltam as
moradias dos brancos, com o mesmo danado intuito. Numa vivenda do Alvalade, uma menina
de 12 anos sucumbiu à brutalidade de nove estrupadores sucessivos. E uma cena idêntica
sucedeu no Largo dos Lusíadas, à vista de toda a gente, junto da estátua que o povo crismou
de Maria da Fonte.
Perante espectáculos tão infames, a tropa portuguesa, infestada de uma hedionda
escumalha intencionalmente mandada pelos comunistas de Lisboa, mantém-se
vergonhosamente apática, quando não descaradamente colaborante.
Em face de tudo isto, aos portugueses de Angola só resta uma alternativa: fugir. E,
completamente abandonados pelo Governo da sua Pátria, sem a menor confiança no sucessor
do general Silva Cardoso, dirigem-se, em grandes multidões, aos consulados estrangeiros,
nomeada mente aos dos Estados Unidos, da França, da Alemanha Ocidental, da Bélgica e da
África do Sul, pedindo aviões que os levem para longe desta cidade, agora transformada em
valhacouto de ladrões, estrupadores e assassinos.
E, como diria o cronista Fernão Lopes, é coisa tristíssima de ver, na terra ainda
portuguesa de Angola, a lamentável procissão destas aflitas gentes de todas as raças,
suplicando a estrangeiros o auxílio que lhes é negado pelo Governo de Lisboa, totalmente
absorvido na miserável tarefa de continuar a destruir os restos de uma nobre e antiga nação.
As palavras que proferem não podem deixar de exprimir a sua enorme raiva e o seu
profundo desespero.
— Esses tipos que agora governam em Lisboa são todos uns filhos da puta! — berra um
camionista moreno, de olhos ardentes como tições.
— Temos agora um Governo de bandalhos sem ponta de vergonha! — reforça o dono
de um dos melhores prédios da Avenida Marginal, que já se sente reduzido à miséria.
— Não haverá quem castigue os responsáveis por toda esta desgraça? — clama uma
vendedeira de peixe do Mercado dos Lusíadas, que já abandonou a sua banca, porque não há
peixe para vender.
— Esse malvado Rosa Coutinho está cá outra vez? — pergunta um construtor civil, que
tem todas as suas obras paradas.
94
Tudo isto e muito mais, com as palavras mais expressivas e as pragas mais contundentes
do rico vocabulário português, chega até aos ouvidos do corpo diplomático acreditado em
Luanda, ainda na vigência da soberania portuguesa. No julgamento dos representantes das
nações civilizadas da Europa e da América, durante estes dias trágicos de Setembro de 1975,
os actuais detentores do poder em Lisboa e os seus delegados em Luanda devem ter descido
abaixo da última cotação possível para seres humanos, porque a sua abjecção atingiu
requintes inconcebíveis. Com um louco grotesco num cargo que foi exercido pelo dr. Salazar,
com um Chefe de Estado eleito por três votos (incluindo o seu), com um alto-comissário em
Luanda, escolhido pêlos comunistas de entre os músicos do famigerado «quinteto de
cordas», com o destino da sua maior província africana a ser decidido em Cuba e Moscovo —
é o próprio destino de Portugal que se afunda vergonhosamente no lodo e na merda.
Nunca um país, mesmo sob a pata dos invasores, foi tão profundamente humilhado e se
comportou com tanta indignidade e cobardia. Uma antiga e nobre nação, que soube realizar
sozinha um dos mais brilhantes capítulos da História Universal, e ainda há menos de dois anos
constituía um exemplo de coragem e determinação, torna-se de repente um motivo de
lástima ou de escárnio para todo o mundo civilizado, merecendo amplamente e qualificativo
de «manicómio em auto-gestão».
Como poderiam os bons portugueses de Angola escolher palavras moderadas para
exprimir a sua raiva e o seu desespero?...
Na verdade, durante essas concentrações de muitos milhares de portugueses, vendidos
ao comunismo internacional pela mais ignóbil quadrilha de traidores que ainda houve em
Portugal, ouvem-se acusações terríveis. Por exemplo, a um dos mais antigos alfaiates da
cidade, um danado tripeiro que há mais de quarenta anos trabalha, com alguns pretos do
mesmo ofício, num pequeno apartamento bem próximo da redacção do meu jornal, ouvi eu
dizer, para um dos seus habituais fregueses, que «os safardanas da descolonização contavam
com a chacina de todos os brancos de Angola».
— É assim mesmo! — teimou o alfaiate. — Você não leu essa carta do Almirante
Vermelho (mil diabos o levem!), a aconselhar o Agostinho Neto a matar os brancos, sobretudo
mulheres e crianças, porque só assim os malvados colonialistas se iriam embora?
— Está lá, bem clara, a assinatura do malandro, sobre o papel timbrado do Governo
Geral de Angola!
— Custa a acreditar...
— Pois a mim não me custa nada. Tudo é possível, nessa canalha que nos vendeu. E
ainda há coisas piores. Contaram-me que um dos grandes políticos de agora afirmou no Brasil
que os portugueses de Angola são para atirar aos tubarões...
Trazem o povo enganado sobre toda esta desgraça a que chamam «descolonizarão
exemplar» e não lhes interessa nada que nós regressemos para contar a verdade...
— E conseguiremos regressar?...
— Espero que sim. Não ouviste o que disse o cônsul dos Estados Unidos?...
O cônsul geral dos Estados Unidos, visivelmente impressionado pela aflição de tanta gente,
assegurou que o seu Governo começaria imediatamente a enviar aviões. E o mesmo
prometeram os cônsules da França, da Alemanha Ocidental e da África do Sul. Um grande
95
movimento de solidariedade internacional intervinha para salvar a vida de quase um milhão
de portugueses.
Se tal estava, ou não, nas intenções dos que planearam e realizaram a entrega de Angola
ao Comunismo Soviético, só o poderemos saber quando todos esses criminosos forem
expulsos dos cadeirões do poder. Por agora, o certo é que aos russos convém esvaziar o
território dos «quadros» portugueses, porque o processo mais fácil de assumir o poder
efectivo no novo país soberano é substituir os portugueses nos seus cargos, nas suas
empresas, nas suas casas e nos seus bens.
Meu pai, a quem acabo de falar neste assunto, contando-lhe o que há horas ouvi ao
alfaiate, puxou os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados e declarou judiciosamente
que o desespero quase sempre conduz a injustiças e a exageros.
— E nota que eu não vou desculpar os responsáveis por esta imensa tragédia —
acrescentou com certa brusquidão. — Esses hão-de ficar amarrados, para sempre, ao crime
mais infame que se praticou em toda a nossa história...
— Volta a ser muito duro, pai...
— Duros e cruéis são os factos, que até com os olhos fechados nos causam um indizível
horror. O procedimento de Lisboa, no caso de Angola, já não pode ter atenuantes de política
ou ideologia. Repito que é um crime: um crime hediondo, repugnante, imperdoável...
Calou-se, passou de novo a mão direita pelos olhos, como que para afastar uma visão de
inferno, e recomeçou mais sereno:
— Bem: voltando ao assunto, julgo que não é preciso pensar em sinistros planos de um
premeditado extermínio dos portugueses de Angola. Além de tudo o mais porque — acredita,
meu rapaz — eles ainda nos têm medo... De resto, o objectivo de abrir vagas para os russos e
cubanos — que eu aceito seja uma das determinantes de toda esta desgraça — também pode
ser conseguido com a debandada que já começou. E repara que as próprias autoridades
portuguesas (ou isso que para aí se exibe com esse nome) declararam que não podem garantir
a segurança de ninguém que aqui permaneça para além do dia da independência. Não parece
um incitamento à fuga?
— Certo! — concordei. — Mas se este êxodo bastará para os desígnios de Moscovo, que
nos quer substituir em Angola, para o conjunto dos responsáveis pela descolonização, o
regresso de centenas de milhares das suas vítimas constitui certamente um risco muito sério.
— E acreditas, por isso, que eles tenham jogado numa chacina geral dos brancos?
— Já não sei no que deva acreditar. Só sei que fizeram tudo para excitar o racismo
negro. Não houve nome feio que não chamassem aos brancos na imprensa, na rádio e na
televisão. E também sei que só a morte cala definitivamente a voz das testemunhas
incómodas. Por isso me impressionaram tanto as palavras daquele alfaiate, que até me lem-
brou o Fernão Vasques da História.
— Pode acontecer que ainda apareça um novo Fernão Vasques — insinuou meu pai
sibilinamente. — Mas, entretanto, vamos agora aos factos: qual é, neste momento, a
perspectiva de Angola?
— Exactamente. Já perdi o fio à meada, porque o teu jornal há três dias que não sai...
— E quando voltar a sair, já não será o mesmo. Passa a ser controlado por uma comissão
da UNTA H, reforçada por um delegado do Comité Político do MPLA. E não tem saído por falta
de papel. Ainda há bastante nos nossos armazéns do Bairro da Cuca. Mas as FAPLAS cercaram
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a zona e não deixam transitar os civis para além da passagem de nível do Caminho de Ferro de
Malange.
— Consta que os homens da UNITA, com o apoio da África do Sul, estão a chegar à
Barragem de Cambambe. E a tropa de Holden Roberto, que integra alguns antigos oficiais do
Exército Português, já retomou o Caxito e vem novamente a caminho de Quinfangondo, com o
objectivo de ocupar a Estação de Captação de Agua, no Rio Bengo. Diz-se que o cerco a Luanda
se fechará em breve e que a cidade poderá ser bombardeada pela artilharia pesada. Mas um
elemento da FNLA, que conseguiu entrar na nossa redacção exibindo um emblema do MPLA,
garantiu-nos que Holden Roberto poupará as principais zonas residenciais, nomeadamente as
da Baixa, do Aeroporto e do Palácio do Governo. Prevê-se a ocupação das estradas que dão
acesso à capital de Angola, para lhe cortar os abastecimentos, mandando então um ultimato a
Agostinho Neto. Se ele se não render, cortarão a água e a energia eléctrica antes do assalto
decisivo.
— Bonita perspectiva! — concluiu meu pai. — E nós, que vamos fazer?
— Continuo a lutar pela obtenção dos documentos para o casamento. Mas, entretanto,
também já estou a tratar das nossas passagens. E quando digo «nossas» incluo as da Mariluz
e família. Em último caso, peço ao padre Freitas que nos case com os documentos que
tivermos e regularizaremos depois o problema civil em Lisboa. Eu ainda não desanimei, pai! —
Nem deves desanimar — disse ele, forçando um sorriso de esperança e compreensão. — Mas
eu ainda não te disse que queria regressar a Lisboa...
— Ter a passagem garantida não prejudica nada...
Toda aquela gente parece apática, resignada, já esgotada em toda a sua capacidade de
sofrimento, sem outra ambição que não seja a de sair de Luanda o mais depressa possível.
Trocam-se automóveis por alguns maços de cigarros. Entregam-se aos criados pretos as
chaves de ricas vivendas. Dão-se dezenas de contos em dinheiro angolano por algumas notas
de cem escudos do Banco de Portugal.
Há senhoras que lavam a roupa nos lavatórios das instalações sanitárias. Outras
cozinham ao ar livre alguma sopa ainda possível. Paira no ar o odor de corpos, há muitos dias
sem banho, nem mudança de roupa.
Os soldados portugueses, não obstante o aviltamento a que têm estado sujeitos durante
os últimos tempos, recuperam aqui uma certa dignidade perante esta grande velada de
indizíveis angústias, nos dias da vergonha. Humanizam-se no contacto com tamanha desgraça
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e tentam ajudar os mais famintos, repartindo com eles o seu rancho. Mas também eles pouco
podem fazer.
Os aviões estão agora a chegar com maior frequência, porque os consulados estrangeiros
cumprem exemplarmente as suas promessas. A ponte aérea atinge proporções gigantescas.
Mas a turba dos fugitivos não cessa de crescer. E a cada avião que ruge, na pista de
descolagem, em direcção ao mar, acentua-se o desespero dos que ficam.
Malditos sejam, para sempre, os responsáveis por esta imensa tragédia!!!
Reparei que o autor do texto não incluirá nele qualquer referência ao Governo de
Lisboa. Mas, julgando compreender tal omissão, não foi nela que falei ao simpático
comandante da grande aeronave. Preferi pedir-lhe a sua impressão sobre os refugiados.
— É gente muito infeliz — declarou com visível compaixão. — Quando o avião levanta
voo, ficam a olhar a terra onde deixam tudo o que era seu. Parecem resignados. Ou talvez
apenas exaustos. Mal o avião ganha altura sobre o Atlântico, muitos adormecem logo
profundamente, libertos da tremenda tensão dos seus últimos dias nesta terra ensanguentada
(2).
(2) Aproveitaram-se, para este episódio, como tudo o resto fiel à essência dos acontecimentos,
alguns elementos da entrevista dada ao semanário «TEMPO» por Jacques Godfrain, das
Relações Públicas da U.T.A., e publicada em 11 de Setembro de 1975.
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O CERCO DE LUANDA
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Estendi-lhe um AC, acendi-lho com deferência e ele pôs-se a fumar com sofreguidão.
— Vivos para quê?! — disparou ele, cheio de raiva. — Nós /podíamos ter tomado conta
de Angola. E seria bem melhor para brancos e negros. Mas deixámo-nos enganar
estupidamente por uma corja de patifes. Agora, é aguentar!...
Calou-se a olhar para mim, sem que eu encontrasse uma palavra de ânimo para lhe
dizer. Depois, baixou os olhos, acrescentando:
— Há seis dias que não posso tomar banho nem mudar de roupa. Devo cheirar bastante
mal...
E afastou-se de mim, virando a cara, talvez para que eu lhe não visse as lágrimas...
— Bem... e depois?
— É um homem casado e um bom redactor deste jornal. Nunca fez mal a ninguém...
— O MPLA não prende quem nunca fez mal a ninguém — atalhou bruscamente o
delegado. — É melhor teres cuidado com a língua, camarada!
— Eu não disse...
— Mas...
100
E foi tudo o que obtive na minha tentativa de intervenção a favor de um bom
companheiro de trabalho.
— Vieram por um construtor civil, agora residente em Joanesburgo, que passou esta
manhã pelo Aeroporto, num avião da VARIG. O nosso director aconselha-nos coragem,
porque as coisas vão sofrer uma grande mudança...
— Como? — quis saber meu pai.
— A entrada dos sul-africanos é combinada com a UN1TA e com a FIMLA. Esperam
reconquistar rapidamente todos os portos do Sul e avançar até Luanda, antes da
independência, para fechar o cerco à cidade, pela estrada da Barra do Quanza.
— Esperam... — repisei com cepticismo. — Também nós temos esperado muita coisa e
acontece exactamente o contrário.
— lembrou o Santos Gouveia, aceitando o uísque que meu pai lhe oferecia.
— Enviaram uma força militar muito convincente e há mesmo quem diga que já entraram em
Moçâmedes...
— E a reacção internacional? — insinuou meu pai. — Na ONU e em todo o grupo afro-
asiático, vai erguer-se um berreiro tremendo contra a «agressão sul-africana».
—E, segundo o mesmo informador, esta operação tem o apoio secreto dos Estados Unidos.
— Fico ainda mais desconfiado — declarei eu. — Os norte-americanos quase sempre
têm falhado nas ajudas que prometem. E os russos também não vão ficar quietos.
— Começam os grandes corvos a pairar sobre esta desgraçada terra — anunciou
gravemente meu pai.
— Não é preciso dramatizar até esse ponto, caramba! Desde há muito que se esperava uma
atitude da África do Sul, que já a devia ter tomado em 7 de Setembro, em relação a
Moçambique. Agora decidiram-se e não são bebés que brinquem aos soldadinhos de chumbo.
O MPLA não terá outro remédio senão render-se!
101
O tempo vai decorrendo com uma lentidão exasperante, para esta pobre população,
ansiosa por sair da tensão insuportável dos dias que precedem a independência, em que os
boatos são a única coisa que abunda na capital de Angola.
A ponte aérea ganha um ritmo que ainda há um mês ninguém podia prever. Ë mais uma
debandada, na história triste das independências africanas, pré-fabricadas na ONU.
Entretanto, o avanço dos sul-africanos é fulminante e parece imparável. Retomaram
sucessivamente Moçâmedes, Sá da Bandeira, Lobito e Benguela; e marcham sobre Novo
Redondo e Porto Amboim. Não repousam. Entregam à UN1TA as áreas limpas de FAPLAS e
prosseguem para o Norte.
Os bisonhos soldados de Agostinho Neto, alguns com menos de quinze anos, fogem
espavoridos desses grandes soldados brancos, que trazem armas terríveis.
Entretanto, começam a chegar a Luanda grandes carregamentos de material de guerra,
enviado pêlos russos.
Mataram a minha esperança de uma independência concreta para esta Angola a que
tanto quero. Estão a estrangular o meu belo ideal de um País próspero para todos os bons
angolanos, sem discriminação de raça ou condição social. Morre, antes de nascer, esta nova
Pátria que tinha todas as condições para ser um dos mais ricos e progressivos estados
soberanos do Continente Africano. Salazar e Marcelo Caetano tinham razão...
102
PIOR QUE A MORTE
Corri repetidas vezes a longa via-sacra das agências de viagens. Em todas recebo agora o
mesmo conselho:
— Quer isso dizer que temos de ir quanto antes para o Aeroporto e aguardar na bicha
vários dias?
— Foi o que nos informaram. Mas nem sequer sabemos se acontecerá sempre assim. É
uma zona fora da nossa alçada. Aceitamos os passageiros que nos encaminham para os nossos
aviões até aos limites extremos da capacidade de transporte. Mais nada!...
— E sabe como vive aquela pobre gente no Aeroporto, durante os dias de espera?
— Tenho passado noites sem dormir, depois de assistir a cenas que nunca mais
esquecerei. Mas falou-me na sua noiva e em mais duas senhoras. Para elas, cá fora pode ser
pior...
De volta a casa, deparei com uma dificuldade imprevista: meu pai não quer partir.
103
— Quer dizer que julga cobardes os que partem?
— Longe disso. Considero que são sensatos. E as mulheres brancas portuguesas, essas
têm obrigação moral de fugir da canalha que anda à solta nesta cidade. Eu fico apenas por um
motivo: vivo nesta terra desde que me conheço e já estou velho demais para aventuras de
emigração.
— Que perigo?! — fez ele com certa amargura. — A quem interessa matar um velho
como eu?
— Mataram ontem, em plena Avenida Marginal, o Cruz Salvarinho, que já passava dos
setenta anos e gastou a vida inteira a ajudar toda a gente...
— Não insistas, meu filho! — decidiu meu pai em jeito de sentença sem apelação. — Tu,
a tua tia, a tua noiva e os teus futuros sogros devem ir ainda hoje para o Aeroporto...
— Fico com as vossas boas recordações. E não te aflijas que não vou morrer de fome.
Conheço os cantos da casa e até me ajeito bem a cozinhar uns petiscos...
— Não brinque comigo, pai! — disparei, de repente, com uma certa irritação. — Não
pode considerar-me capaz de o deixar sozinho, em vésperas do que pode ser um banho de
sangue em Luanda.
— Menos podes tu mandar na minha vontade.
— Nem pretendo mandar. Mas tenho uma contra-proposta a fazer: vamos pôr as
mulheres a salvo e ficamos nós. O pai Calabriz acompanhá-las e eu me encarregarei de lhes
enviar tudo o que for possível, de barco ou de avião.
— Entendo que tu também deves partir, até para regularizar a parte civil do teu
casamento, em Lisboa.
— Desde que estejamos casados pela Igreja, o oficial do registo civil pode esperar. Só
tenho um receio...
— Qual?
— E se a tia Isaura não quiser embarcar sem nós?
— Bem capaz disso é ela — concordou meu pai. E, num tom resoluto, acrescentou:
— Mas ainda sou eu quem manda nesta casa. Vamos falar ao sr. Calabriz!
Estava toda a gente em casa, mais uma visita: o sr. padre Freitas.
— Ainda bem que o encontro aqui — disse-lhe eu, logo após os cumprimentos. —
Quando é que o Senhor Padre nos pode casar?
— Não — respondi eu. — E é mesmo por isso que estamos aqui. Vínhamos dizer ao sr.
Calabriz que não existe qualquer possibilidade de seguir para Lisboa sem ser integrado na
Ponte Aérea. E, para tanto, é indispensável ir para o Aeroporto, enquanto é tempo, e aguardar
lá a nossa vez...
104
— Nesse caso, vamos! — concordou o dono da casa. — Aqui já se não pode viver. Para
além de tudo o mais, há essa malandragem que assalta as casas em pleno dia, para roubar,
para matar...
— Pois é desse «pior» que eu tenho mais medo — declarou meu futuro sogro. —
Vamos embora para o Aeroporto! Formamos o nosso grupinho, acampamos em qualquer
canto e aguardamos...
— Eu e meu pai ficamos.
Menti, explicando que ficava apenas mais uns dias, por exigência do jornal.
— Tenho de fazer a reportagem da independência — balbuciei com um risinho difícil.
— Eu fico porque não sei viver fora de Angola — declarou meu pai rudemente. — E meu filho
não me quer deixar sozinho. Se o convencerem a ir também, fazem-me um grande favor.
— Se você põe a questão nestes termos — disse meu pai — está a atirar uma terrível
responsabilidade para cima de mim, na hipótese de lhes acontecer algo de mau em Luanda. E,
ainda por cima, não está a ser razoável. Convém que alguém acompanhe as senhoras...
— Eu não saio daqui sem o meu marido — interveio a senhora dona Etelvina, que era
este o nome da minha futura sogra.
— E eu também não embarco sem o meu noivo — acrescentou a Mariluz.
— Ambas têm carradas de razão — sentenciou meu pai. — Meu filho é que não tem um
miligrama dela. Até esqueceu aquelas palavras da Bíblia: «deixarás teu pai e tua mãe...»
— Há que atender às circunstâncias — lembrei eu. — E as circunstâncias...
105
— Eu não vou sem o meu marido! — teimou a sr.a d. Etelvina.
— E eu não posso deixar meu pai sozinho em Luanda numa ocasião destas — declarei
eu, seguro da minha razão.
— Portanto, meu caro senhor — concluiu o sacerdote, dirigindo-se a meu pai —, está nas suas
mãos a chave do problema. Até porque talvez também a sua irmã se recuse a deixá-lo
sozinho em casa. Assume, pois, uma enorme responsabilidade. E porquê? Porque lhe custa
deixar a terra de Angola? A quem não custará?... Meu caro senhor, desde há muito que o
conheço e respeito, para não estranhar agora esta espécie de birra...
— Amar esta terra de Angola será uma birra? — defendeu-se meu pai, embora mais
quebrado.
— Receio bem que esta Angola já não seja aquela que todos nós amamos — ponderou
gravemente o padre Freitas. — Agora parece a pátria do ódio...
— Acompanhar a sua família, animar um novo casal nas dificuldades que certamente
terá de enfrentar, aguardar o divino sorriso dos seus futuros netos. Não será bastante?...
Caiu entre nós um silêncio difícil. Meu pai permanecia de olhos no chão, com vincos
duros no rosto cansado. Mas, finalmente, ergueu a cabeça e disse:
— Por mim, podemos ir para o aeroporto quando quiserem. E assim se decidiu que, no dia
seguinte, logo a seguir ao almoço, iríamos todos para o aeroporto.
— Mas creio que há qualquer coisa muito importante, que deve ser feita antes —
lembrou a Mariluz.
— O vosso casamento pode ser também amanhã — afirmou o padre Freitas. — Logo a
seguir à missa das oito, na Igreja da Sagrada Família. Combinado?
106
— Vê se não te esqueces do meu velho sobretudo — pediu meu pai. — Vai fazer falta no
frio da Metrópole.
— Para já — fiz eu contra a melancolia daquela cena — parece que, em Lisboa, estão a
alojar os refugiados em bons hotéis...
— Depois, não vamos morrer de fome. Ainda sabemos trabalhar... Mas foi precisamente
neste momento que o Santos Gouveia nos entrou pela porta dentro, com um ar de alucinado:
— Anda daí, pá! Vem depressa, que estão a assaltar as casas do bairro onde mora a tua
noiva!
Saí de roldão, sem querer ouvir mais nada. Corremos ambos, rua adiante, metemo-nos
no primeiro táxi que encontrámos livre e mandámo-lo seguir para o Miramar.
Caídos para debaixo da mesa das refeições, jaziam os cadáveres do pai Calabriz e de sua
mulher, com o sangue ainda a borbulhar dos buracos de bala na testa. E sobre o tapete da
sala, donde tinham afastado a mesa redonda, dois militares fardados de camuflado seguravam
rijamente, um de cada lado, a Mariluz, abrindo-lhe amplamente os braços e as pernas.
Seguravam-na assim, em posição de poder ser comodamente violada, apenas por medida
cautelar, já que a moça, com os olhos fechados e as faces pálidas todas molhadas de lágrimas,
parecia desfalecida.
Sobre ela, um negro enorme, completamente nu, com uma espuma lúbrica a ressumar
dos beiços grossos, acelerava brutalmente a sua cópula unilateral de selvagem, urrando que
havia de chegar até à quinta vez. E, já ele estrebuchava nos paroxismos do espasmo,
relinchando de prazer, quando eu lhe atei as mãos ao pescoço e apertei com a raiva toda.
Mas um dos camaradas que se tinha aproximado por trás de mim, brandiu-me terrível
coronhada na cabeça e desmaiei...
107
— A Mariluz?
E reparei (só então...) que também estava o Santos Gouveia e era ele quem respondia:
— Fizeram daquele corpo virgem um campo de competição sexual — contou ele. —
Quando os três militares que tu viste ficaram completamente esgotados, chamaram os
camaradas que aguardavam no jardim. E a orgia continuou numa incrível sucessão de
crueldades e depravações. Sujeitaram a pobre moça a sevícias indescritíveis. Houve um que
lhe arrancou o bico de um seio à dentada...
— Não podes poupar-me a esses pormenores?! — berrei para ele, numa indizível
angústia.
— No cemitério?!
— Bem sei que tu continuarias disposto a casar com ela — concordou meu pai. — Mas
ela é que já não consentiria em ser tua mulher. Talvez caísse na tentação do suicídio; talvez
se finasse de puro desgosto ou decidisse entrar para um convento. Mas ou eu não cheguei a
conhecê-la bem, ou havia de se considerar para sempre aviltada, profanada, indigna de ser
tua mulher... Duvidas?
Não me lembro de mais nada daquela hora do reencontro com a minha incrível
tragédia.
108
Vagueio agora pelas ruas e praças de Lisboa, desempregado, precocemente envelhecido,
apático, inútil.
Comecei a escrever este livro num dealbar de esperança, com a firme intenção de contar
imparcialmente os actos preliminares da independência de uma terra amada e declarando ser
apenas um homem.
O Santos Gouveia, que arranjou emprego no Diário de Notícias, veio ver-me há dias e
trouxe-me alguns apontamentos sobre casos com que deparou, nesta jangada de náufragos,
que é agora aquilo que foi a Metrópole de uma grande Nação. Insistiu em que os aproveitasse
para uma série de narrativas literárias de episódios da grande tragédia.
O Santos Gouveia deve estar mais louco do que eu, visto que ainda me considera capaz
de escrever seja o que for com justo título literário, eu que já não consigo ir além destas
lamentações piegas e chatas...
Vou sair de novo, à procura de nada... Mas o pai e a tia Isaura que não se aflijam, se eu tardar
bastante a voltar. Coisa ruim não tem perigo. E ainda que me deitasse da ponte do Tejo
abaixo, era capaz de não me saber afogar. Nem há automóvel que me atropele. E é pena...
Com os olhos fechados, eu via constantemente, em imagens de uma nitidez cruel, a cena
tristíssima do arriar da Bandeira de Portugal, no Palácio dos Governadores Gerais, em Luanda.
E pensava em meu pai... Meu pai, que me trata como se eu tivesse voltado a ser o seu menino
pequenino... Tudo agora é pequenino, nesta capital de um império abandonado...
Adeus, Angola!...
109
JANGADA DE NÁUFRAGOS
Esta é a explicação do título geral escolhido para as singelas narrativas em que tentarei
contar episódios que vi com os meus próprios olhos ou ouvi da boca dos seus principais
protagonistas.
De vez em quando mirava a filha (era certamente sua filha) e esboçava uma tentativa de
sorriso mal conseguido. A seguir a um desses olhares, jogou uma pergunta escusada:
Mas a mãe não acreditou (nem era de acreditar, porque os olhos da menina
contradiziam a envergonhada negativa). Tirou da carteira de plástico um saquinho de
amendoim e passou-o às mãos da filha.
110
— Toma! Mas não deites as cascas para o chão: guarda-as no saco.
A mocinha aceitou e começou logo a comer, ainda com certo jeito envergonhado, que
depressa foi vencido pela euforia do apetite satisfeito. E agora a mãe chegou mesmo a sorrir,
com aquele enternecido sorriso de todas as mães pobres, quando podem acalmar a fome dos
filhos.
Exilado nesta grande Lisboa, com uma enorme saudade da terra em que vivi o melhor
tempo da minha vida, não pude resistir à tentação de confirmar a minha suspeita:
— Vieram de Angola?
— Vim de férias. Mas, agora, aconselham-me a não voltar, ao menos por enquanto...
— Há muita confusão — recordou ela com uma luz de medo nos olhos tristes. — Eu tive
de fugir só com a roupa que trazia vestida. E não sei do marido nem do meu filho mais velho...
— Não sei nada. Um dia, ao voltar do Liceu Salvador Correia, encontrei a casa roubada
de quanto tínhamos e os vizinhos disseram-me que fugisse, porque tinham levado o meu
marido e talvez me quisessem levar também a mim. Meu marido era 2.° oficial de Fazenda...
— E o seu filho?
— Esse já tinha desaparecido uns dias antes, mas eu ainda esperava que voltasse.
Coitado do meu Pedro! Teimou em inscrever-se na FNLA e as FAPLAS sabiam...
Caiu entre nós um silêncio incómodo. No meu íntimo, admirei a perfeição com que
aquela pobre negra de Angola falava a língua de Camões. O comboio tinha parado em Algés. E
só depois que arrancou de novo, lancei eu uma nova pergunta:
— E agora?
— À espera de quê?
— Já não é mau.
— É pelo menos triste. Para quem sabe trabalhar, custa muito viver de esmolas. E custa
ainda mais nada saber do marido, nem do filho, nem do que será o futuro...
Com a boa intenção de a afastar daquelas ideias amargas, perguntei o que fazia ela no
Liceu Salvador Correia, em Luanda.
111
— Ensinava — disse. E, timidamente, descendo um olhar envergonhado para o seu
vestido de outro corpo e para a sua velha carteira de fecho estragado, acrescentou:
Coimbra.
distritos de Angola, prejudicado pelo seu afastamento de Luanda, ainda vazio de estradas
asfaltadas, despovoado pelo êxodo de 1961.
No plano escolar, fervorosamente apoiado pelo dr. Pinheiro da Silva, então secretário
provincial da Educação, conseguiu também uma admirável colaboração das populações, ávidas
de progresso. As primeiras escolas foram construídas pelos pais dos futuros alunos, apenas
com a ajuda de uns sacos de cimento, algumas caixilharias e o zinco para a cobertura. E as
crianças levavam de casa os banquitos de fabrico gentílico em que se sentavam.
Mas, com tão humildes princípios, ao abrir de 1974, aquele era o primeiro distrito
angolano a atingir a escolaridade de cem por cento. Todas as crianças daquela vasta área
tinham a sua escola. E, agora, em belos edifícios de alvenaria, com várias salas de aula, boas
instalações sanitárias, posto de enfermagem e casa para os professores.
Em todas as aldeias havia os famosos «blocos de água» e algumas casas do tipo europeu,
construídas pelos nativos, com boas condições de habitabilidade. Também começava a surgir,
entre os naturais da terra, a classe média com alfaiates, pedreiros, marceneiros e
comerciantes, alguns deles donos e gerentes de bons estabelecimentos comerciais onde não
faltavam o balcão frigorífico, a máquina registadora, o quintalão para os batuques de fim de
semana e a instalação sonora para a música de discos a chamar a freguesia.
112
de crescer. Com uma perseverança que não cedia ao cansaço. Com a íntima alegria de ser
útil a todos, realizando-se a si próprio, enquanto lá longe, na saudosa Coimbra dos seus
tempos de rapaz, a filha única se preparava para continuar a tradição laboriosa de seus pais.
Foi saneado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. E não tardou muito que fosse expulso
do exército, sob a acusação de fascista e reaccionário.
— Porque usas tão feia palavra? Lembra-te de que temos uma filha!
— Se lembro...
Quando Rosa Coutinho chegou a Luanda, como presidente da Junta Governativa, a que
alguns chamaram o «Quinteto de Cordas», o ex-governador não quis almoçar.
113
— Não tenho apetite.
— Precisas de te alimentar...
Os dias foram passando. Soube-se que os guerrilheiros da FNLA estavam a ocupar todo o
Norte de Angola, que as nossas tropas abandonavam por ordem do almirante vermelho.
Passava agora dias sem comer. Apenas fumava cigarros, acesos uns nos outros. Era cada
vez mais difícil arrancar-lhe uma palavra.
— Estás doente? — quis saber a mulher, preocupada e compadecida.
— Não.
— Lembro.
— E escapámos vivos!
— Era aí que eu devia ter morrido... para não assistir a toda esta desgraça...
— Ouve...
Mas ele fugiu para o seu pequeno escritório e fechou a porta por dentro.
Uma hora mais tarde, ouviram-se dois tiros seguidos. Aos gritos da mulher apavorada
acudiram os vizinhos, arrombaram a porta e foram encontrar o ex-governador com a cabeça
esfacelada pelas balas da sua pistola de oficial do exército português.
— Bilhete de Identidade
114
Naquele sábado de Fevereiro de 1974, o calor tórrido que asfixiava a cidade
moçambicana da Beira não lograva entrada no bonito living da moradia dos Vouzelas, situada
bem perto da catedral erguida há meio século pelo missionário franciscano, padre Rafael, que
mais tarde, já bispo, projectou também a nova Catedral de Lourenço Marques, deixando a
alegria da inauguração ao seu sucessor, cardeal Teodósio Gouveia. Uma boa instalação de ar
condicionado, bem afinado pelo dono da casa que era engenheiro electrotécnico,
assegurava um clima deliciosamente primaveril: 22 graus.
No entardecer, negras e pesadas nuvens acastelavam-se para os lados do farol, a
anunciar uma dessas trovoadas da -estação das chuvas, que desabam sobre a cidade com a
raiva feroz dum bombardeamento de artilharia pesada. E havia, naquela vivenda de meio
luxo, uma visita: o padre Anselmo, que pertencia a uma congregação espanhola e, dias antes,
tinha provocado um certo escândalo, impedindo que um grupo de escuteiros entrasse na sua
igreja com a Bandeira Portuguesa. Era mesmo disso que se falava.
— A igreja não deve servir para manifestações políticas — afirmava o missionário.
— Não vejo onde está o mau costume — teimou a dona da casa. — A Bandeira é um
símbolo do nosso povo; e ao incliná-la no momento da elevação da Sagrada Hóstia, os
escuteiros apenas exprimem o preito cristão de Portugal.
— Não é com gestos desses que se presta culto ao Deus de todos os homens —
argumentou o padre. — Neste momento, há que respeitar os legítimos melindres do povo
moçambicano...
— Moçambique é Portugal — declarou o engenheiro Vousela com certa energia.
— Nem todos assim pensam — lembrou o padre Anselmo. — E um missionário católico
tem de atender a todos.
115
Viu as crianças emagrecidas pela fome, famílias inteiras de guarda aos miseráveis
salvados das economias de muitos anos de trabalho, mulheres dormitando abraçadas aos
filhos pequeninos, homens de barba crescida olhando no vago, como que perdidos de si e do
mundo — apenas uma pequena amostra da chamada descolonização exemplar. E nem se
atrevia a tentar palavras de consolação naquela caverna de desespero quando, de repente,
parou diante duma pobre mulher que tiritava no seu vestido de tobralco leve. Estava sozinha,
silenciosa, com o rosto pálido apoiado nas mãos calejadas e de unhas sujas. Encontrou os seus
olhos em que brilhava um lume de loucura. E avançou para ela, de mãos estendidas:
— Mas não é a esposa do sr. eng.° Vousela, a senhora Dona Guilhermina Vousela?!
— Não senhor.
— Quem é, então?
A interpelada fitou-o durante longos segundos; pareceu decidida a não dar qualquer
resposta; mas, finalmente, tirou do seio um cartão manchado de suor e, oferecendo-o na mão
estendida, intimou bruscamente:
— Leia!
— Ó minha senhora!...
— Já lhe disse que deixei de ser uma senhora! — gritou ela com raiva. E logo,
dominando a voz até um sussurro trágico e terrível, continuou:
— Eu agora sou prostituta, senhor padre. Pros-ti-tu-ta! Mas deixe-me em paz, porque
hoje não estou de serviço...
Atingido em pleno rosto pela tremenda chicotada, sentindo-se alvo dois olhares
acusadores dos refugiados que assistiam à cena incrível, o padre Anselmo começou a
afastar-se lentamente, cheio de pena, de arrependimento, de amargura e de remorso...
116
12.4 — Desempregado
fugiu!
Fugiu de casa
Fugiu!
À soleira da porta,
a mulher assistiu,
calada,
resignada,
Não gritou.
Não chorou.
Assistiu
e ficou.
117
Aos bordos pela rua,
caminhava de insólita maneira,
como um tonto...
«Vai na lua!
Que grande bebedeira!»
E pronto!
«Eis o progresso!
e parou.
À soleira da porta,
calada, resignada
118
E dentro do seu ventre estremeceu o derradeiro filho do
casal...
Volto a senti-los com redobrada amargura; porque mais uma vez ando à procura de
emprego, agora mais velho, mais cansado, mais desiludido.
Agora, nisto que resta de Portugal, com todo o tempo livre e tanta comédia e tragédia à
minha volta, vivo numa tensão angustiada que me não deixa escrever mais do que lamúrias de
homem findo. Tenho o espírito ressequido como as vides cortadas da cepa e abandonadas às
neves do Inverno.
Sei que esta terrível inibição só me passará, quando puder contar com algum salário
certo ao fim do mês, que afaste da porta de minha casa a raivosa cadela da fome. Por isso
aguentei a pé firme a bruta chuvada desta tarde, junto à paragem dos autocarros, em Algés.
Uma ou duas vezes, quando as cordas da água tocadas pelo vento me vergastavam com
mais fúria, ainda corri a abrigar-me no alpendre do supermercado. Mas logo voltava à
paragem, não fosse o meu amigo passar sem me ver.
Nesta cisma, acabei por não mais sair do combinado local de encontro, numa espécie
de raivoso desafio à chuva, que já me não podia molhar mais do que estava. O que estava era
119
mais fria, a malvada! Vinha oblíqua contra mim, em bátegas geladas e fustigantes como um
duche para loucos.
Louco, eu ainda não estava. Estava só profundamente infeliz. Reformado sem reforma
(que também a pensão de reforma me detiveram em Luanda pelo crime de não ser
comunista), preciso aflitivamente de trabalhar. Para ganhar o pão de cada dia, meu e da
família, e para recuperar a confiança em mim próprio.
E ali me via perdido nos arredores da grande Lisboa, abandonado e gelado no meio
duma chuva de temporal, já convencido de que o meu amigo se esquecera do combinado.
Afinal, o meu amigo chegou, mas para me dizer que a vaga de filosofia, em que pensara,
já estava preenchida.
— Porque não vai você ao FRAUL? — acrescentou, ao ler-me nos olhos o reflexo
inconfundível das grandes amarguras. — Não conhece o dr. Joaquim Mendes?
— Pertencemos ambos à Assembleia Legislativa e trabalhámos juntos na Comissão de
Redacção e Legislação...
— Pois, então, procure-o. Ele está a lutar bravamente pelos que vieram do Ultramar.
Talvez vá falar com esse colega nos trabalhos dum pequeno parlamento angolano,
onde ambos nos batemos pela resolução dos problemas de uma Angola em progresso
espectacular.
Vivo numa hora de grande depressão e profunda angústia. Sinto-me sem iniciativa e
sem coragem. Sinto, acima de tudo, que os responsáveis pela desgraça que atingiu doze
milhões de brancos, pretos e mestiços do Ultramar português, e condenou à fome as
populações deste pequeno rectângulo europeu, e destruiu completamente esta Pátria quase
milenar — esses ignóbeis traidores não podem ficar impunes.
Pela minha parte, estou velho e cansado. Apetece-me desistir desta luta e mandar tudo
e todos para o inferno. Trabalhei em Angola durante cerca de quarenta anos, à cadência de 12
horas por dia. Utilizei as minhas horas de descanso a ensinar angolanos de todas as cores.
Publiquei duas dúzias de livros, quase todos sobre temas de Angola. Defendi essa terra o
melhor que soube e pude, porque sempre previ que a independência de Angola sob o signo da
ONU daria o resultado que hoje está à vista de todos. Investi em Luanda tudo o que lá ganhei,
mais o produto de uma pequena herança e até algum dinheiro dos meus vencimentos de
férias.
E aqui ando agora, nesta bonita e preguiçosa Lisboa, à procura de um emprego em que
ganhe que bonde para o pão de cada dia, meu e da minha família.
Mas não há nesta terra, um emprego para mim. E os que entregaram a russos e
cubanos, entre biliões de contos de valores portugueses de Angola, todas as minhas
economias de quarenta anos de trabalho, dizem que fui um «explorador».
Era a mais nova de uma família de oito filhos: três rapazes e cinco raparigas, sem contar
com os dois rapazes que não vingaram nos três primeiros meses de vida.
Já não conheceu o pai, que morreu quarenta e sete dias antes de ela nascer. Por isso
mesmo, a tia Adélia, bem casada e apenas com duas meninas, uma delas já crescidota, teve
120
pena da irmã viúva e ofereceu-se para tomar conta da sobrinha caçula, logo que estivesse des-
mamada.
Aos dezassete anos, contra a vontade de toda a família, casou com o Chico Monteiro e
nenhum deles descansou enquanto não embarcaram para Luanda, onde ela tinha um irmão
bem colocado, embora honesto demais para estar rico, e do género complicadinho nisto de
abrir caminho à família. Mas a verdade é que os recebeu em sua casa e os ajudou a demarcar
500 hectares de boa terra de café, nas margens do rio Luége, a poucos quilómetros da vila do
Quitexe.
Para lá partiu o marido, logo que pôde, com o desígnio de erguer uma casita, onde o
casal se pudesse juntar a breve prazo, com o filho mais novo e a primeira filha, que já andava
na escola infantil.
Talvez porque fosse fácil de contentar com tudo, menos com a prolongada ausência da
mulher, o Chico Monteiro não tardou muito a escrever que já tinham casa e que ela podia
partir.
— Eu, por mim, vou no primeiro transporte que me leve para aquelas bandas — disse
ela ao irmão. — Mas, antes de levar os filhos, gostava de ver primeiro como é...
— Claro que não deves levar os filhos por enquanto — aconselhou ele. — Nem tu
precisas de ir, enquanto lá não tiveres aceitáveis condições de vida. Ou não te sentes bem
nesta casa?...
— Bem sabes que me sinto bem em tua casa — declarou ela em tom de ofendida com a
insinuação. — Mas o meu lugar é junto de meu marido, principalmente agora que nos vamos
meter na aventura do café. Quanto aos miúdos, vou deixar-tos ainda algum tempo, se não te
importas. Mais tarde, venho buscá-los...
121
Decorreram outros meses. E, numa tarde morrinhenta de cacimbo, a Ló veio da Escola
Infantil no grande automóvel dum médico que também lá trazia uma das filhas. Ao entregar a
menina, perguntou ao tio dela se sabia como estava a viver a irmã naqueles sertões do Uíge.
— Sei que teimaram em embarcar na aventura de começar uma plantação de café, a
uns vinte quilómetros do Quitexe, sem um pataco de economias. O Chico partiu primeiro,
para construir uma casita...
— ?!
— É uma cubata, meu amigo, uma cubata tão miserável como a do preto mais
matumbo! — informou o médico, quase a gritar. — Sua irmã está a viver em condições
incríveis. Cose pão e cria galinhas para os pretos. Faz costura para os pretos. Trabalha mais do
que o preto mais trabalhador daquela área. Ela e o marido agarram-se a tudo para sobreviver,
enquanto não colhem os primeiros sacos de café. E eu compreendo-os... Mas olhe que sua
irmã e o menino... enfim: o meu amigo lá sabe...
— Eu não sabia nada do que me está a contar. Meu cunhado escreveu a dizer que já
tinham casa. Pensei que fosse coisa capaz. Vivi sempre em Luanda, mas dizem-me que lá para
o Uíge, com a alta do café, já se não vive mal...
— Vá ver! — recomendou o médico, quase zangado. E ele foi. E, depois de observar toda
aquela miséria, desatou a berrar com o cunhado:
— Foi o que pude construir com as minhas próprias mãos, trabalhando de dia e de
noite.
— Pedia um empréstimo...
— Minha irmã e o pequenito estavam debaixo de telha. Deixava-os estar onde estavam,
enquanto não tivesse aqui melhores condições de vida.
— E eu?! — fez o homem com um riso amargo — Acha que se pode viver muito tempo
nestes ermos, sem a companhia da mulher com quem casámos?!...
O visitante ficou de olhos arregalados, sem resposta a dar.
E, precisamente nesse momento, a irmã chamava para o almoço, que era no chamado
«salão nobre»: uma rica sombra debaixo de uma frondosa mulemba que era o principal apoio
da cubata.
No meio de toda aquela pobreza, a caldeirada de cabrito estava de gritos. E o Paulo
(assim se chamava o cunhado do Chico Monteiro) reparou que a irmã acudia pelo marido e
não tinha perdido o seu feitio alegre.
— Deixa lá, que já foi pior! — disse ela para o irmão. — Nas últimas chuvas, esta palhota
metia água por todos os lados. Fazia frio de gelar. E um dia, ao levantar-me, apanhei um susto
danado: ao pé da cama do menino, encontrei uma cobra enrolada dentro das botas do pai.
Nem quero que me lembre!...
122
— Voltas comigo para minha casa — decidiu o Paulo.
— O menino ainda precisa dos cuidados da mãe. E, como disse, o pior já passou. Pena
foi que não trouxesses a Ló, para a vermos...
— Não cabia no carro do Machado, em que vim. E, com toda a franqueza, também não
quis que se afligisse com a miséria em que vivem os pais.
— É assim que têm começado quase todos os pequenos agricultores em Angola — disse
o Chico Monteiro, saindo do seu mutismo. — Daqui a dois anos já colheremos os nossos
primeiros sacos de café.
E essa primeira colheita chegou. E outras lhe sucederam, cada vez maiores. A cubata de
pau-a-pique e cobertura de capim foi substituída por uma casa de alvenaria, ampla e
confortável.
Já viviam bem quando, em Março de 1961, fugiram a tempo para Luanda, antes que os
turras lhe ocupassem a fazenda, já com uma produção de mais de cem sacos de café por ano.
O Chico Monteiro voltou ao que era seu, logo que a tropa completou a reocupação
daquela área. Mas sua mulher passou então a viver em Luanda, para que os filhos pudessem
estudar.
Alguns anos mais tarde, o Chico Monteiro morreu. Mas a família continuou sem
dificuldades, porque a fazenda, mesmo arrendada, dava amplamente para todos viverem
bem. Toda a Angola estava num progresso espectacular, que naturalmente se reflectia nos
seus habitantes.
E veio o que ninguém podia imaginar, nem admitir, nem conceber: — veio a traição de
alguns portugueses, que sabiam que a vitória estava à vista e receberam de estrangeiros a
infame tarefa de a evitar...
Aquela mulher, ainda nova e já com netos, teve de regressar a Lisboa, só com a roupa
que trazia vestida.
Desta vez, a sua estupenda alegria não resistiu ao vendaval terrível da maior tragédia de
toda a história de Portugal.
E vive agora por aí, sabe Deus como, triste e apagada como a lareira de uma casa que
ruiu.
Quase não come. Quase não fala. Quando tentam acalmá-la ou simplesmente lhe perguntam
como tem passado, fica de olhos no longe, a olhar para ontem, talvez a pensar na sua fazenda
de café afogada pelo capim... E, misturando português e quimbundo, como outrora na sua
chitaca de à-beira-Luége, murmura em voz sumida, sibilada, raivosa: — Capitãezinhos da
tuge!...
Foi uma espantação, quando entrei na Rua de S. Luís, pilotando um grande «espada»
que não tem igual na Metrópole.
É um Corvette-Stingway dos mais Luxuosos e egoístas, porque só tem dois lugares. Com
os inconvenientes da sua legenda de rico para um homem repentinamente esbulhado de
123
todas as economias de longos anos de trabalho, tem uma vantagem muito apreciável nestes
tempos de olho vê, pé vai e mão pilha: não é fácil de roubar.
E não só porque a chave de ignição bloqueia o volante, como acontece em muitos
outros carros: é principalmente porque a sua aparelhagem electrónica inclui vários
dispositivos de segurança que só os iniciados sabem manobrar. Quem os não conheça não
consegue nada deste automóvel.
Pois serve para demonstrar a mim próprio que não tenho culpa da miséria que me
acontece. E por isso é agora que mais gosto dele. Quando o comprei podia comprá-lo. E
paguei-o a pronto.
Embarquei para Angola com umas centenas de escudos na carteira. Mas encontrei
aquela terra na fase do após-guerra, quando o governador Silva Carvalho ali iniciava uma
época de grande progresso.
Comecei como caixeiro-viajante da firma Cirilo & Irmão. Era solteiro e recatado; vivia
com o mínimo possível e economizei quanto pude. Percorri Angola inteira, dormi muita vez na
estrada dentro de viaturas atoladas na lama, andei muitos quilómetros a pé, de noite e através
do capim, com milhares de mosquitos a fartarem-se do meu sangue.
Quando o meu depósito no Banco de Angola atingiu os cinquenta contos, arranjei umas
representações, despedi-me da firma e passei a trabalhar ainda mais. Durante o dia, fazia o
giro dos clientes, quase sempre a butes e às vezes de machibombo, porque ainda não podia
pensar nem mesmo num desses feios Volkswagens que então começavam a aparecer em
Luanda e se vendiam a 30 contos, se a memória me não falha.
Aos trinta anos casei com uma boa moça, que me saiu companheira fiel e dona de casa como
já se não fabricam. Dois anos mais tarde montei a minha primeira lojeca de acessórios de
automóvel. Acertei no negócio porque, logo a seguir, começou a crescer rapidamente o
parque automóvel da província. E eu não tinha mãos a medir...
Em pagamento de uma dívida, recebi uns terrenos, à razão de 4$00 por metro
quadrado. Vendi-os cinco anos mais tarde, a 200SOO, quando ali se começaram a construir
as primeiras vivendas do Bairro de Alvalade. E comprei o meu primeiro carrito: um Cônsul
com 25 mil quilómetros que era o carro de serviço do gerente da Robert Hudson. E também se
começou a beber vinho em minha casa.
Daí para a frente eu estava lançado e tudo passou a correr sobre esferas. Sempre fui
sério nos meus negócios, mas ganhei muito dinheiro. Construí uma boa moradia no Bairro de
Alvalade, junto da piscina e fiz outra compra de terrenos, também muito feliz.
Ao abrir de 1974, a compra do Corvette já foi para mim uma coisa trivial. Tinha um
negócio próspero, pessoal bom a quem pagava muito bem e um confortável depósito
bancário. Bebia uísque Whíte Horse, adorava as gambas grelhadas do Clube Naval e julgava-
me com um futuro completamente assegurado.
Enganava-me redondamente, porque os salteadores da descolonização exemplar já
estavam ao virar da esquina...
Deu-se a catástrofe, fartei-me de jurar que não saía de Angola, mas os factos são mais
fortes do que as palavras e tive de fugir, como tantos outros. De tudo o que era meu e já
valia para cima de cem mil contos, salvei o Corvette.
A primeira vez que o encostei ao passeio, ali na Rua de S. Luís, em Oeiras, quando aqui
cheguei e andava à procura de qualquer buraco onde me meter com a família, logo ouvi um
tipo de barbas, que rosnava:
— Fascista!...
124
— Isso é comigo? — perguntei.
E ele foi, porque logo se esgueirou por um carreiro de emergência, que vai dar à sub-
estação de energia eléctrica.
Fui sempre um homem paciente mas, talvez por isso mesmo, acabou-se-me a reserva de
paciência. Coragem para a vida, ainda tenho, porque não aceito morrer de fome. Mas já não
consigo tolerar certas gracinhas de quem nos pretende julgar, a nós, refugiados, sem conhecer
patavina do que foi a nossa vida em Angola. Nem sequer sabem que estão a caminho da fome,
agora que já não existe o Ultramar para ires acudir com ajudas de toda a espécie. Mas não
tardará muito que o aprendam à sua custa...
Quem me conheceu nos últimos tempos de Angola, pasma de me ver servir à mesa,
neste pequeno snack-bar em que me aventurei com alguns amigos. Pasmam, porque me
conheceram já no tempo das vacas gordas. Ao princípio, também nessa vasta terra cumpri
tarefas ainda mais duras.
O trabalho nunca é vergonha. E nesta fileira de estabelecimentos, os homens que
ajudaram a construir a Angola moderna e lá deixaram tanta coisa feita, não podem
envergonhar-se dos calos nas mãos.
Mas não gostamos que nos humilhem. Não aceitamos lições de gente que se gasta em
comícios, greves e plenários. Ainda hoje, um destes calcinhas, presumidos de espertalhões, me
ia fazendo perder a calma.
Sentou-se a uma das mesas a pedir um copo de cerveja com um prego no pão.
Servi-o como podia, enquanto ele circundava os olhos pelo estabelecimento, com ares
de apreciador.
— É meu.
— Quanto custa?
Os meus olhos deviam chispar lume, porque o malandrote recuou, ergueu-se e tentou
fugir. Mas eu deitei-lhe mão rija ao braço franzino.
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— Calma, meu filho! Tem de pagar primeiro... E o homem pagou, tão trémulo de medo, que
acabei por sentir pena dele.
Junho de 1975.
— A senhora fugiu?
— Exactamente. E tive muita sorte. Uma sorte que a maior parte não consegue.
— Conte!
— Deixou lá família?
126
— Deixei, infelizmente. Um filho, recentemente casado, que me ajudou nesta aventura,
mas ainda quer ver se pode salvar alguma coisa do que lá tem... Sabe? Eu vim com passagem
Beira-Lisboa-Beira.
— Quero dizer que os enganei, àqueles patifes! O Samora Machel quer segurar lá os
brancos, para os humilhar e torturar...
— Pote não é tanto assim, não: é muito mais do que eu lhe posso dizer, porque há cenas
que uma senhora não conta. O presidente da Frelimo, para ele, tem tudo quanto quer e pouco
se importa da miséria do povo. A sua grande distracção é humilhar os portugueses que lá fica-
ram. Sabe o que ele fez a um médico com quem trabalhou, como ajudante de enfermeiro,
antes de -entrar no terrorismo?
— A senhora contará...
— Foi ao hospital e assistiu a toda a operação que esse médico estava a fazer. No fim,
depois de levarem o doente, o operador tirou as luvas, desinfectou as mãos e encaminhou-se
para o presidente, para o cumprimentar.
— Tu ainda não acabaste o teu serviço! — observou arrogantemente Samora Machel,
conservando as mãos nos bolsos.
127
— Pois compreende mal — disse ela, aind'3 nervosa. — O meu ressentimento não é
contra os pretos: é contra certos brancos portugueses. Os grandes responsáveis estão aqui,
em Portugal!
Caiu entre nós um doloroso silêncio. E já entrávamos em Lisboa, quando ela retomou a
palavra:
— Sabe o senhor que nunca fui capaz de matar uma galinha? Não posso ver sangue.
Não quero mal a ninguém. Mas agora... Quando penso nesses cobardes, nesses traidores...
— Compreendo — intercalei, tentando acalmá-la. Mas talvez nem me tenha ouvido.
Continuou, de olhos perdidos na lonjura de outros horizontes, com uma voz que parecia
molhada em fel:
— Estragaram tudo... Bandearam-se com os nossos piores inimigos... Ajudaram a matar
os seus irmãos e os seus camaradas de armas... Desgraçaram milhões de portugueses
brancos, pretos e mulatos... Destruíram uma grande e nobre nação...
E continuam vivos!...
Assim se repetiu, a dois mil anos de distância no tempo, pela boca de uma velhinha que
nunca leu Cícero, a frase mais pungente, proferida pelo maior orador de Roma, antes do
nascimento de Cristo.
Ao findar do ano louco de 1975 — tempo português, quase todo dominado pela
perigosa demência de Vasco Gonçalves e da sua «muralha de aço», — começaram a aparecer
estranhas criaturas em Oeiras, nesta Rua de Belém, que mais parece um pequeno largo.
Agasalhadas em velhas gabardines ou sobretudos antiquados, tossicando sob as agulhas
geladas do Inverno que há longos anos desconheciam, caminhavam ao longo do passeio
fronteiro às lojas por arrendar. Passeavam num passo curto, rápido e febril, bem batido no
chão de paralelepípedos, não para encurtar distâncias mas somente para aquecer os pés
enregelados.
Com o ar inconfundível dos exilados, o rosto amarelento dos impaludados crónicos, os
olhos amargos de quem viu o ódio e a morte, pareciam possuídos de uma estranha timidez,
mantendo-se arredios dos naturais da terra, como elefantes velhos, que se afastam da
manada quando sentem a morte próxima.
Mas, com o correr dos dias, começaram a acontecer imprevistos reencontros.
— Você não é o Viegas, de Santa Comba?
— Até ver...
— Ó alma do diabo, então já me não conhece?! Eu sou o Moreira, da Petrangol!
Apertaram-se num abraço à antiga portuguesa, desses que incluem palmadinhas nas
costas e repetidas doses de mútua contemplação, com os olhos nos olhos e o rosto iluminado
por uma grande satisfação interior.
— Grande sacana, que já nem conheces os amigos! — disse o mais antigo na rua, em
benigna reprimenda.
— Já nem a mim me reconheço — ponderou o Viegas, retomando o ar sério.
— Pois é... — concordou o outro, vagamente.— Lixaram-nos ávida... Quando chegaste?
— Anteontem, de manhã.
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— Em casa duns parentes, ali em Porto Salvo. Hoje, meti-me no machibombo...
E, enquanto os dois caíam num silêncio confrangido, da loja de pronto a vestir saiu um
homem alto e forte, de gabardine quase nova, muito bem engravatado, com o guarda-chuva
pendurado no braço esquerdo, como um senhor do antigamente. Avançou resoluto para os
dois e, com a mão estendida para os cumprimentos da praxe, afectando grande cerimónia,
como um diplomata que exibe as suas credenciais, apresentou-se:
129
— Ou isso... — concordou calmamente o invectivado. — Mas seja qual for o seu nome,
um saltinho dali para o Tejo resolve tudo em definitivo. De acordo?...
Ninguém lhe respondeu.
O grupo foi engrossando com novos «retornados», que acudiam a saber notícias pela
boca do último que chegara: um desses bravos camionistas que sabiam de cor todas as
estradas de Angola; o guarda--livros de uma grande empresa de Luanda, que magicava na
possibilidade de abrir um pequeno restaurante; um agente de viagens de Lourenço Marques,
que andava a instalar as estantes para uma papelaria; um casal ainda jovem, que vinha do
IARN, onde estivera durante cinco horas, numa bicha de quilómetros, à espera das senhas de
alimentação.
E a conversa generalizou-se. Histórias de arrepiar sobre o êxodo de Angola. Ansiosas
interrogações sobre o futuro. Palavras de incontável raiva contra os responsáveis pela grande
catástrofe...
Decorreu quase um ano. Naquela esquina que era um dos pontos de reunião dos
«retornados» da zona, o guarda-livros sempre abriu o seu sonhado restaurante. O dono da
papelaria, trabalhando no duro com a mulher e as filhas, revelou-se um mestre na conquista
da clientela e já não diz que o negócio não dá para pagar a renda do estabelecimento. O
Viegas começou por pequenas reparações nas viaturas dos residentes mais próximos,
conseguiu algumas ferramentas a crédito, readquiriu o seu -ar jovial e afirma «que ainda
havemos de ensinar a estes calaceirões de Lisboa como é que se trabalha». Na Casa das
Ferragens trabalham agora três gerações de brancos nascidos em Moçambique. O Meires está
para os lados de Santarém, a tomar conta duma quintarola onde cria coelhos e galinhas. E há
também uns chineses vindos de Moçambique que cozinham bons pitéus, e a casa dos
churrascos, e o homem da barbicha rala, que era um ricaço em Luanda e agora serve à mesa
no seu snack-bar com salão de bilhares anexo.
130
Epílogo
131
UMA VOZ NA NOITE
Perdido o Império, as Quinas e os Castelos,
E os gestos belos
dos austeros e graves ancestrais,
regressando da terra e dos meus filhos,
procuro – não encontro – a Pátria de meus pais …
Aqui e agora,
nós, os sem pão, sem trabalho e sem casa,
marcados no espírito e na carne,
com a marca cruel, a ferro em brasa,
dos rebanhos do IARN,
- somos ainda restos , os “salvados”
da Pátria plena,
na sua grande, exacta dimensão:
grande demais para a vossa alma pequena,
insustentável para homens-não.
132
No vosso vil projecto de traidores,
uma coisa falhou:
não nos mataram todos em Moçambique e Angola,
como a vossa alma pútrida sonhou:
e nesta exígua terra que sobrou,
nesta pequena Casa que ainda não ruiu,
mesmo a pedir esmola,
nós somos o terror de quem nos traiu!
Deixamos no Ultramar
Uma obra sem par.
Construímos estradas, escolas, hospitais,
monumentos, palácios, catedrais,
arranha-céus, vivendas,
gigantescas barragens, e os portos e aeroportos,
e as belas pontes,
e as enormes fazendas
com mais terra que o Minho ou Trás-os-Montes,
e quase uma centena de cidades novas,
que são formosas, clamorosas provas
de como se engrandece uma Nação.
133
se recusarmos ser um povo estrangulado
pela mais vil e torpe ditadura
- a do vilão com a vara na mão - ;
BASTA!
134
Índice
Prefácio ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 2
Explicação necessária ... … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 3
1 — Os Sinos da Liberdade … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 8
2 — Os dias malditos .. … … ... ... ... ... ... ... ... . ... ... ... ... ... 23
3 — No rumo da Independência ... … … … ... ... ... ... ... ... ... 36
4 — As boas palavras . ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... 50
5 —O Acordo de Alvor … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 57
7 — Resvaladouro .. ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 70
8 —Guerra civil … ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 81
9 —A debandada ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 93
10 — O cerco de Luanda … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 99
11 — Pior que a morte ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... 103
12 — Jangada de náufragos ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... 110
Epílogo ... ... ... ... ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 131
Do site: http://www.macua.org/livros/diasdavergonha.html
135