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REIS VENTURA

OS DIAS DA VERGONHA

DE 25 DE ABRIL DE 1974 A
11 DE NOVEMBRO DE 1975
OS NOMES E OS ACONTECIMENTOS
DA LIBERTAÇÃO DE ANGOLA

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PREFÁCIO

PALAVRAS DO GENERAL SILVINO SILVÉRIO MARQUES


ANTIGO GOVERNADOR GERAL DE ANGOLA

Um dia, que esperamos a justiça dos homens não faça esperar muito, será classificado o
que se passou no Ultramar Português, e especialmente em Angola, no que se refere à
chamada «Descolonização». Nessa altura haverá revelações que muito surpreenderão o
nosso povo.
Entretanto, a verdade dos acontecimentos está sendo, aos poucos, descoberta por
testemunhas atentas e sensíveis que, numa tessitura aqui e além romanceada, vão contando
o que efectivamente presenciaram, ainda sem grande preocupação, ou possibilidade, de
aprofundar as respectivas causas.
Deste modo se estão produzindo verdadeiras monografias do dia-a-dia vivido naquilo que
constituiu não uma epopeia igual aos descobrimentos, como impudicamente foi dito, mas a
maior tragédia (e vergonha) da nossa História: a «Descolonização» e o «Retorno».
Num tempo em que generalizada crise de carácter se reflecte na acomodação cobarde de
muitos e na amnésia de quase todos, dos responsáveis às próprias vítimas, o aparecimento
dessas monografias dos acontecimentos deve ser saudado como verdadeira pedrada neste
charco.
Assim fui entendendo Os Dias da Vergonha, à medida que desfolhava as suas páginas. E
ficou-me um sentimento, complexo e amargo, de saudade, vergonha e desespero...
Todos, em Angola, conhecemos Reis Ventura das suas numerosas obras literárias, da sua
colaboração permanente num jornal da província, da sua fluente e empolgante oratória em
momentos históricos da vida do País e de Angola.
Numa prosa simples, acessível a todos, e rica de sensibilidade e de expressão, retraía
agora, nos sentimentos, nas atitudes e nas actuações, horas cruciais vividas em Angola,
naquele período de infelicidade e amargura que sucedeu ao 25 de Abril.
Nesta Crónica dos Dias da Vergonha ficam fixados factos que então ocorreram e que será
crime esquecer.
A Reis Ventura passamos a dever, os "retornados» verdadeiros, e os que o somos
espiritualmente e todos quantos conhecemos e compreendemos Angola e continuamos a
sofrer o destino que lhe foi preparado e imposto, a gratidão por mais este trabalho.
Reavivar assim a memória é serviço prestado a muitos de nós. E também à História.

Silvino Silvério Marques

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EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Neste livro se relatam factos que aconteceram em Angola desde 25 de Abril de 1974 a 11
de Novembro de 1975.
Começa ainda sob o signo da esperança, no engano do programa Inicial do Movimento das
Forças Armadas, que preconizava a defesa da Nação Pluricontinental, e das promessas dos
seus homens mais responsáveis. Mas termina em gritos de desespero, porque bem depressa
a realidade mostrou que era tudo mentira, vergonha e traição.
Há muito boa gente da melhor do Portugal desta hora aziaga) que se admira de que os
homens de Angola, tão corajosos e resolutos nos dias trágicos de 1961, se tenham mostrado
tão resignados e submissos depois do 25 de Abril de 1974.
Compreendemos esta atitude, porque até nós próprios choramos de raiva, ao pensar que
poderíamos ter altivamente salvo a terra dos nossos filhos, em vez de vir mendigar para a
desolada Pátria de nossos pais. Correria sangue, que nós não queríamos, e haveria uma
inevitável ruptura temporária com o Governo da Metrópole, que nunca deixou de ser a terra
da nossa saudade. Mas não aconteceria a entrega de Angola aos russos, nem a ignóbil
traição ao Ocidente, nem a tremenda desgraça de milhões de brancos, pretos e mestiços,
nem a confrangedora e multimoda vergonha de uma velha e nobre Nação, nem a rápida e
completa derrocada do que podia ser um grande e próspero País.
Se os brancos, pretos e mestiços que não andaram aos tiros nas matas, mas construíram
a Angola moderna, tivessem decidido assumir o poder na sua terra, nunca os laços fraternos
com a Mãe Pátria se quebrariam definitivamente; e dali poderia vir, a curto prazo, a força e a
ajuda necessárias para salvar este velho Portugal, integrado numa efectiva e grandiosa
Comunidade de Nações Lusíadas.
Mas é agora, depois dos acontecimentos, que tudo isto se vê com facilidade e clareza. No
decurso deles era diferente. E é preciso tê-los vivido, no confuso clima dos primeiros meses
da Revolução dos Cravos, para compreender a atitude dos portugueses de Angola.
Em 1961 tínhamos Salazar em Lisboa, um governador-geral bem português em Luanda (a)
e a Nação inteira ao nosso lado.
Acordávamos com esse tremendo hino «Angola é nossa!», que parecia — e era — um
clamor imperativo da alma milenar da Grei. Estávamos sem armas e sem soldados, mas
sabíamos que todo o povo português acompanhava emocionadamente a nossa resistência e
rezava pela nossa vitória. Durante a noite do cerco terrorista à pequenina povoação de
Mucaba, houve na Metrópole muita gente que não dormiu. Tínhamos connosco a ansiedade
e o apoio moral de todos os portugueses.
Depois do 25 de Abril de 1974, o mais pequeno gesto de resistência em Angola constituía
pretexto para detenção imediata, à ordem dos novos senhores, que logo saltaram sobre
aquela terra como lobos esfaimados. E o sofisma da «agressão ideológica» foi um látego de
esclavagista nas mãos de Correia Jesuíno... Todos os homens e mulheres que tinham apoiado
Salazar e Marcelo Caetano na sua decisão de defender o Ultramar ficaram imediatamente
sob suspeita, quando não sob atenta vigilância. O general Costa Gomes teve o cuidado de
substituir sem demora nem aviso prévio todos os comandos das Forcas Armadas de Portugal

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em Angola. Não se podia escrever uma palavra em defesa da acção portuguesa naquela
terra, sem ser logo apodado de reaccionário e fascista. Os videirinhos de sempre trataram de
alinhar na condenação de tudo quanto antes se tinha feito. A colaboração do autor deste
livro para a Emissora Oficial foi suprimida por sugestão de antigos elementos da União
Nacional. Quando o governador-geral Santos e Castro, tão vivamente entusiasmado com o
progresso daquela portentosa terra, tomou o navio do regresso, o porto de Luanda foi
fechado, para que ninguém se despedisse dele.
A independência de Angola, que primeiro se declarou dependente da vontade de todas as
populações, rapidamente se tornou uma decisão ditatorial e irreversível do Governo de
Lisboa. As notícias da Metrópole eram tão más que os melhores portugueses do que foi a
maior província de Portugal compreenderam que nada podiam esperar desse lado. E o dr.
Mário Soares declarava então, para quem o queria ouvir, que os nossos soldados abririam
fogo contra os brancos do Ultramar que tentassem qualquer aventura.
Mas há outra realidade ainda mais importante: e é que os brancos de Angola foram
torpemente levados de engano em engano, precisamente porque os vendilhões da Pátria
sabiam que a sua reacção seria inevitável, se em tempo oportuno pudessem imaginar o que
lhes viria a acontecer.
Todos os governantes de então declaravam que Angola era um caso especial. O general
António de Spínola disse que a escolha do governador-geral de Angola era mais importante
do que a nomeação do primeiro-ministro. E ainda hoje não somos capazes de compreender
porque deu ouvidos aos emissários do MPLA, que vieram a Lisboa caluniar o general Silvino
Silvério Marques, e substituiu esse homem íntegro, leal e sabedor por uma criatura tão reles
e tão comprometida com os comunistas, como o almirante Rosa Coutinho.
Muito mais se poderia aqui dizer sobre a maneira covarde e nojenta como foram
ludibriados os bons portugueses de Angola. Mas acrescentaremos apenas que o próprio
general Costa Gomes afirmou bem alto estar convencido de que Angola continuaria
portuguesa e várias vezes tranquilizou amigos íntimos, assegurando-lhes que os brancos
seriam sempre consultados e tudo se faria para conservar aquela terra ligada à Metrópole da
melhor forma possível.
Foi neste deslizar de engano em engano que os brancos de Angola, ainda com soldados
portugueses e autoridades portuguesas naquela terra, chegaram até à situação de se verem
inteiramente dependentes dos movimentos de libertação, que tinham ocupado todas as
posições abandonadas pela nossa tropa no Norte da província e já em princípios de 1975
faziam em Luanda tudo quanto lhes apetecia, agredindo, incendiando e roubando, à vista da
polícia e dos nossos soldados, alguns dos quais eu vi chorar de raiva, porque os não
deixavam fazer-se respeitar.
Com o decorrer do tempo as nossas Forças Armadas, sobretudo o Exército, ficaram tão
infiltradas por elementos comunistas, propositadamente enviados de Lisboa, que assistiam,
sem um gesto, a toda a espécie de infâmias praticadas contra os brancos. E no que respeita à
defesa das valiosíssimas estruturas da economia angolana, comportavam-se com a mesma
indiferença.
Bem me recordo ainda de como, durante um dos dias em que os empregados da Petrangol
foram impedidos de entrar na Refinaria do Alto da Mulemba por piquetes da UNTA (União
Nacional dos Trabalhadores de Angola), que era — e é — uma organização do MPLA, os
Unimogs da nossa tropa paravam junto das centenas de empregados acumulados à entrada

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do grande complexo industrial, e os nossos soldados riam da cena, inteiramente
desinteressados do enorme prejuízo económico resultante da paralisação da unidade. Houve
até alguns mais atrevidos (ou mais progressistas...) que foram buscar dois estrangeiros para
fotografar aquele belo quadro da descolonização exemplar. Tudo uma tristeza!...
Foi neste clima humano que decidi publicar este livro no jornal A Província de Angola, pela
única forma então possível, escolhendo para narrador e principal personagem um jovem
angolano, que sinceramente desejasse, com dignidade e bom senso, a independência de
Angola.
Não direi o seu nome, nem a sua raça, nem a sua religião.
Nada disto é da sua escolha. Usa o nome que outros lhe deram; tem a cor da pele com que
nasceu; professa o culto de seus pais.
Citará o nome de outros homens, as suas ideias políticas e religiosas, a cor do seu rosto.
Mas ele — o principal personagem deste livro — é apenas um homem, com o idealismo de
todos os jovens, com raízes bem mergulhadas na terra de Angola, com as ambições e
limitações da condição humana. Um homem com virtudes e pecados, com sonhos e
desilusões, com os olhos ávidos da juventude. Um homem em que muitos homens se podem
encontrar, se abstraírem de pequenas diferenças, olhando apenas o que é essencial no seu
corpo e na sua alma de filhos de Deus sujeitos às tentações do diabo.
Um homem que pensa, que fala, que julga o presente, que interroga o futuro, que vive na
convivência de outros homens.
O seu bilhete de identidade não é da sua iniciativa. Não foi convidado a nascer, não
escolheu as linhas ou a cor do seu rosto, não influiu na posição social de seus pais. Ninguém
o consultou sobre a terra da sua naturalidade. Na sua realidade mais profunda, é apenas um
homem.
Mas esse jovem angolano existe e, felizmente, continua vivo.
Reproduzo, por vezes textualmente, afirmações que lhe ouvi. Creio ter interpretado as
suas ideias e sentimentos, com respeito e fidelidade. Nem sequer fechei os olhos à sua
arrepiante desgraça e à sua amarga desilusão que, por incrível que pareça, também
aconteceu.
Não estou arrependido desta decisão, que me permitiu fixar, neste volume, o que foi uma
forte e muito expressiva tendência da Juventude Angolana, na sequência da revolução de 25
de Abril de 1974. Na verdade, e sem falsa modéstia, parece-me de alguma utilidade para os
futuros historiadores que se tenha anotado, ainda em cima dos acontecimentos, como foi
que tantos angolanos, honestamente adeptos da independência de Angola, passaram da
esperança ao desespero.
O meu ideal sempre foi outro.
Desde que me conheço, em livros, artigos, discursos e conferências sempre defendi a
continuação de Portugal no Ultramar Português. Sonhei uma Pátria Grande, desde o Minho a
Timor, onde coubessem todos os portugueses, em igualdade de direitos e deveres, com
idênticas possibilidades de acesso ao trabalho e aos seus frutos, de participação na
administração pública e suas responsabilidades, de completa integração na carne e na alma
da Nação.
Queria que um preto de Luanda, um mestiço de Cabo Verde ou S. Tomé, um indiano de
Goa, um fula da Guiné, um m acarta e de Moçambique ou um montanhês de Timor,

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qualquer deles, sem distinção de raça, cor ou religião, apenas pelas suas virtudes pessoais e
com a sua dignidade de português, pudesse ascender à Suprema Magistratura da Nação.
Sonho grande demais?
Não há sonhos demasiadamente grandes, «se a alma não é pequena».
Esse ideal não morreu: — mataram-no! Mas eu nunca o reneguei.
Em Angola, mesmo durante os dias malditos, as semanas da traição e todo o tempo da
vergonha, continuou a existir muita gente fiel ao belo sonho da Pátria multirracial e
pluricontinental.
Em 4 de Maio de 1974, na minha primeira crónica do jornal A Província de Angola,
publicada depois do 25 de Abril, escrevi o que a seguir transcrevo:
«Perante a viragem política efectuada pelas Forças Armadas de Portugal, eu, que sempre
defendi os governantes agora depostos, poderia ceder à tentação de me remeter ao silêncio.
Era cómodo, mas indigno.
Mantenho inalterado todo o meu respeito pela figura histórica de Salazar.

Mantenho inalterada e inalterável a admiração que sempre manifestei ao sr. professor


Marcelo Caetano, antes e depois de ele ser Presidente do Conselho de Ministros.
Considero que o sr. engenheiro Santos e Castro, que meras circunstâncias políticas
afastaram do Governo Geral de Angola, fez aqui um bom trabalho e se revelou
profundamente dedicado a esta terra. Quando, no último sábado (27 de Abril findo) fui ao
Palácio dar-lhe um abraço de despedida, encontrei-o a arrumar, numa das malas da sua
bagagem particular, as bandeiras de todos os distritos de Angola. E isso comoveu-me quase
até às lágrimas.
Sempre vivi do meu trabalho e espero poder continuar a viver.
Saiu há cerca de dois anos, numa edição de cinquenta mil exemplares, um texto meu,
subordinado ao título UMA PÁTRIA PARA TODOS.
Não por minha iniciativa mas com o meu consentimento, essa pequena brochura foi a
única das minhas obras que saiu sem o meu nome, porque a outros pareceu que assim
produzia melhor efeito.
Julgo do meu dever, neste momento, assumir a responsabilidade do que então escrevi e
representa o que penso sobre a Nação Portuguesa.»
Escrevi estas palavras, sem medo nem arrogância, em plena sinceridade, apenas porque a
consciência assim mo pediu. E nunca pensei que tal atitude pudesse desencadear a catadupa
de telefonemas e de telegramas de apoio e aplauso, alguns em voz embargada pela emoção,
vindos de várias regiões de Angola.
Recordo este pormenor de ordem pessoal, porque de algum modo documenta a afirmação
que acima faço e quero deixar aqui, bem clara e peremptória: mesmo durante os dias
malditos, nunca deixou de haver em Angola, entre brancos, pretos e mestiços, muita gente
fiel a Portugal!
Completamente abandonados pelos novos governantes da sua Pátria, vilmente caluniados
pela imprensa, rádio e televisão de Lisboa e Porto, repentinamente privados do clarão de
esperança que para eles representou o Governo do general Silvino Silvério Marques,
obrigados ao silêncio pela ditadura antiportuguesa de Rosa Coutinho —, esses bons
portugueses, que continuavam a querer uma Angola portuguesa, viveram numa angústia

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permanente, esperando um líder que lhes marcasse o rumo, orientasse os passos e
aglutinasse as dispersas energias.
Assim o exprimem algumas das suas atitudes, desde as sensatas às desvairadas, como a
reacção ao estrangulamento dum motorista de táxi no Muceque Rangel, a greve dos
camionistas, a invasão do Palácio para interpelar o Almirante Vermelho, ou essa vaga de
incontível entusiasmo que deles se apoderou em 7 de Setembro, perante as notícias que
vinham de Lourenço Marques, através da Rádio Clube de Moçambique...
O desejado líder nunca apareceu. Os brancos foram desarmados. Uma a uma, caíram
todas as ilusões. E, só então, os melhores portugueses de Angola, que sempre estiveram
dispostos a segurar nas suas mãos a mais rica parcela da sua Pátria, só então é que
aflitivamente se agarraram à derradeira esperança: uma independência real e verdadeira
para todos, embora sob um governo da maioria negra.
Dessa última fase dá testemunho o pescador português Manuel da Costa Marques,
quando, já durante o Governo de Transição, o ministro Johnny Eduardo vai ao porto
pesqueiro recomendar a reactivação das pescas.
— Eu fico por todos estes pescadores — respondeu-lhe Manuel da Costa Marques —
porque os conheço a todos. Aqueles que por aqui aparecem, de noite, para roubar e com
ameaças, são desconhecidos. (...) Todos nós queremos trabalhar. E é o que eu tenho feito
desde que para aqui vim, em 1957. Olhe as minhas mãos, Excelência (e mostrava-
Ihas, possantes e bem calejadas...). E não estou arrependido. Tenho filhos mulatos. A minha
casa é um paraíso com todas as cores e sinto-me feliz: Agora, humilhado é que eu não quero
ser. Mandem-me embora mas não me humilhem!
— Ninguém o vai mandar embora! — interveio o ministro. E esta foi apenas uma das muitas
promessas não cumpridas...

(a) O dr. Silva Tavares.

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OS SINOS DA LIBERDADE

1.1 —«Desculpem, mas não alinho...»

— Desta vez é a sério! — anunciou o Simeão Baldaque quando cheguei à sala da


redacção, às 9 horas de 25 de Abril de 1974.

— A sério, o quê?

— Coitado! Ele não sabe de nada!... — fez o colega no dito habitual dos programas
Luanda-74.

— Deixa-te de gracinhas idiotas e, se tens alguma coisa a dizer, fala!

— Golpe de Estado em Lisboa.

— Ouvi às 7 horas a Emissora Oficial e não falou nisso.

— Não há comunicações com a Metrópole.

— Então como sabes?


— Tu ainda vens a dormir, menino! E as emissoras estrangeiras?! A BBC informou que a
maior parte das Forças Armadas aderiu. O Governo refugiou-se no Quartel do Carmo, que está
cercado por um esquadrão de blindados de Cavalaria 7.

— Outro passeio das Caldas...

— Não sejas obtuso, homem! O incidente das Caldas foi uma boa manobra para dar ao
Governo uma ilusão de força. Agora é que se vai ver.
Peguei no jornal, ainda fresco da impressão e percorri rapidamente os títulos.

— Ainda não traz nada sobre o caso...

— Querias? — perguntou ironicamente o Baldaque. — Não vês aí que foi visado pela
censura?

O meu jornal faz-se durante a tarde e a maior parte da noite. Na rotação dos turnos,
tocara-me a vez de dormir de noite e era, nesse dia, o único redactor escalado para a parte da
manhã.

O Baldaque tinha ficado de piquete ao telex desde as 2 horas. Mas não regressou. E,
quase de seguida, outros elementos do corpo redactorial entraram, quebrando o seu tempo
de repouso, ávidos de notícias: o Maia Campita, ferozmente decidido a emagrecer e cada vez
mais gordo; o Carlos Pontes com a sua barba à Renascença; o Gama Ribeiro, de bigode
farfalhudo; o Rosa Amaral, de cara emoldurada numa franja loura; o Sousa Quevedo, que na
véspera regressara de uma reportagem aos campos de petróleo do Zaire; o Santos Gouveia,
sempre de alma aberta a todas as esperanças —, todos gente nova, idealista e alvoroçada com
as perspectivas da sonhada mudança.

— Agora é que é! — exclamavam.

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— Que dizes a isto, bailundo? — disparou contra mim o último dos citados, que nasceu
no Algarve mas tem a cara tostada dum mouro de Ceuta.

— Que queres que diga, beduíno?

— Beduíno será o teu avô!

— O meu avô é da Gabela...

— E teu pai é fascista...

— Merda para a conversa de chacha! Eu estou de serviço e tenho que fazer.


— Viva o glorioso trabalhador! — chasqueou o Rosa Amaral. — Responde ao que te
perguntam, meu filho! Vomita o que pensas, que o tempo da rolha acabou.
— Deus te ouça, poeta! Mas, por enquanto, ainda não vi nada. Deixem-me trabalhar!

— Louvo os teus propósitos, irmão! — declarou o Sousa Quevedo com a voz solene dum
padre no altar. — E ofereço-te um tema mesmo em cima do acontecimento: «os sinos da
liberdade»...

— Boa ideia! — apoiou o Maia Campita. — Deixemos este génio a alinhar os seus
adjectivos e vamos ao Biker, rapazes! É capaz de haver lá mais notícias...
Saíram, na mesma lufada de alegria com que tinham entrado. O Baldaque foi com eles e
eu fiquei só, na sala repentinamente silenciosa.

Puxei dum maço de linguados e escrevi ao alto «Os sinos da Liberdade». Mas fumei todo
um lento cigarro antes de encontrar qualquer frase de abertura. Eu ainda não ouvia o badalar
festivo. Ou estava desabituado do tema. De resto, só pela rádio é que se podem ouvir os sinos
das igrejas de Lisboa. É pouco, para mim, que sou um homem de Angola...

Já perto do meio-dia, soube que o Presidente Américo Tomaz não estava no Carmo:
tinha-se refugiado no quartel de outra unidade militar, também -cercada por tropas do
Movimento. A Marinha alinhara no golpe de Estado e uma fragata tomara posição no Tejo,
ameaçando bombardear o Palácio de Belém, se fosse indispensável.

Às 13 horas, a secção portuguesa da BBC de Londres voltou a dar notícias. A mais importante -
era que o Governo de Marcelo Caetano continuava cercado no Quartel do Carmo mas ainda se
não rendera. Constava apenas que já lhe fora entregue um ultimato pelo Capitão Salgueiro
Maia, que tinha os canhões dos seus «tanques» apontados para a velha caserna,
significativamente situada à sombra de ruínas históricas.

No decorrer da tarde, as notícias continuaram sem qualquer confirmação oficial, com o


Chefe do Estado e o Presidente do Conselho privados de comunicação com o exterior e o
Governo-Geral de Angola remetido a um silêncio de expectativa.

Foi neste ambiente que, às 17 horas, regressei a casa, sem ter conseguido escrever mais
que o título dum artigo e com o pensamento bloqueado pela mistura duma esperançada
ansiedade e do receio de uma nova desilusão.

Pouco mais tarde, ainda não eram 18 horas, ouvi tocar a campainha e fui abrir a porta. O
mesmo grupo da manhã irrompeu pela sala de estar, gritando a grande notícia: o Governo
rendera-se. O Movimento das Forças Armadas acabava de triunfar sem um tiro. E os recém
chegados romperam em vivas a liberdade. Viviam o seu momento de euforia. Abraçavam-se
no magnífico entusiasmo da juventude. Quase choravam de alegria.

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Alegria que era também a minha, porque tenho 32 anos e nunca simpatizei com o
regime deposto. Por isso abracei os colegas, um a um. Mas coibi-me de ser tão expansivo
como eles. E a razão era aquele homem de cabelos brancos, entristecido pela recente
reforma, sentado e silencioso no seu cadeirão do living.
Caminhei para ele, a pensar num abraço de compreensão. Ergueu em barreira as suas
mãos austeras de lutador e disse apenas:

— Desculpem, mas não alinho...

Parei, com o respeito de sempre por aquele velho, que durante 48 anos apoiara os
governantes agora vencidos, que nunca me tentara afastar das minhas ideias políticas, que é
meu pai...

1.2 — «Não tinha nada de ser!»

Os meus amigos compreenderam a situação, calaram com respeito as suas vozes de


alegria e foram saindo discretamente.

Sentei-me então ao pé do meu querido velho e tentei confortá-lo:

— Tinha de ser, pai...

— Não tinha nada de ser! — protestou vivamente. E logo, com uma certa resignação —
Mas não falemos mais nisso...
— Ao pé de mim, sempre poderá dizer o que pensa...

— Para quê?! Todo o meu mundo ruiu. Mas eu estou no fim. Tu pareces satisfeito e é
isso que mais interessa... Agora, deixa-me só, meu filho...

Fiz-lhe a vontade, porque me pareceu que iria chorar.


No vento daquela amargura, toda a minha alegria se apagou. Será que a perfeita
felicidade não é deste mundo?!

Nasci de gente pobre, fiz o curso dos liceus com livros emprestados e matriculei-me em
Direito na Universidade de Lisboa, com uma Bolsa de Estudo.
Perdi-a quando entrei na greve de fome, ©m 1963. Tive então o primeiro contacto com
o facciosismo político e com a polícia. Emprestei os meus discos, para iludir a fome ao som
da música POP. A fome gritava mais alto e os discos nunca mais me foram devolvidos. Assisti a
exageros verbais e brutalidades físicas. Nada disto destruiu a minha sede de liberdade, que
tem o seu preço.
Na primeira carta após a greve, meu pai nem sequer ralhou. Deu-me apenas alguns
conselhos.
«Se tanto gostas da liberdade — escrevia — lembra-te de que, em Portugal, sem um
canudo de Curso Superior nunca passarás de subalterno. Conquista a carta de advogado e
serás mais livre do que eu pude ser. Muitas vezes me apetece dizer umas verdades ao meu
chefe, mas engulo em seco, porque o meu pão depende dele.
«A liberdade é, essencialmente, uma conquista interior. Se formos nós próprios no
domínio da nossa consciência, aí somos livres, ainda que de fora nos impeçam de exprimir as
nossas ideias.
«Neste sentido, fui sempre um homem livre. Se tu queres ser mais do que isto, como
sempre me pareceu, se queres ter também a liberdade de exprimir o que pensas e escolher o

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ideal político que mais te agrade, tens de te libertar da grilheta económica, que é a
necessidade primária de ganhar o pão de cada dia.
«E só a quebrarás completamente quando licenciado em Direito e devidamente
instalado no exercício da tua profissão.
«Com o Curso de Direito ganhas uma profissão liberal. E o nome é bem cabido, porque
uma profissão liberal ainda é o melhor processo de se beneficiar de um pouco de liberdade
efectiva e real.
«Sei que perdeste a Bolsa de Estudo, mas não te aflijas muito por isso. Eu vou mandar-
te toda a ajuda que puder.»
Respondi com palavras de comovido agradecimento por tão bons conselhos, mas
declarando que não precisava de dinheiro. Daria explicações para me aguentar nos estudos e
havia de vencer.
Meu pai teimou e eu comecei a receber um conto e duzentos por mês. Mas soube mais
tarde que o modesto funcionário passara a vestir de fardo e a usar sapatos keeds da Fábrica
Macambira.
Mesmo assim, não consegui terminar o curso. As faltas dadas durante a greve da fome
fizeram-me perder o ano e, com ele, o direito a adiamento do serviço militar. Fui incorporado,
vivi o meu tempo de instrução na Escola Prática de Infantaria em Mafra e fui mobilizado para
Moçambique.
Nessa altura, o Sousa Peixoto, meu condiscípulo e amigo, alferes como eu, mas
destacado para Angola, propôs-me a troca:
— Tu és de Luanda e eu sou de Lourenço Marques. Ambos temos família na cidade onde
nascemos. Dizes que teus pais são pobres e os meus vivem desafogadamente. Se trocasses
comigo, eu dava-4e 50 contos...
— Não! — respondi sem hesitar. — Não sou mercenário e vou para onde me mandam.
Embarquei no Príncipe Perfeito e conheci a bordo uma bonita moça, de nome Salomé.
Andámos muita vez juntos, dançámos quase sempre um com o outro e, em Luanda, despedi-
me dela com a promessa de lhe escrever.

Não morri em Mueda, porque as orações de minha mãe me protegeram. Atirada por um
bando de guerrilheiros, uma granada caiu junto de mim, mas não explodiu.
Como todos os combatentes, deparei com angustiantes problemas humanos. Por
exemplo, durante uma patrulha de reconhecimento armado, com objectivo importante e
rigorosamente secreto, alguma coisa buliu, por entre o capim alto.
Afocinhámos na picada, com as caras no lodo e o dedo no gatilho das armas.
— Esperem a minha voz de fogo! — transmiti ao pelotão. E ficámos à espera do que
surgisse.
Afinal, surgiu uma velha tacanha, com as mãos bem erguidas acima da cabeça, já de
carapinha toda branca.
Logo cercada por quatro soldados, a pobre mulher nem conseguia falar, do muito que
tremia.
— Raios parta o azar! — praguejou o meu sargento — se a deixamos ir, adeus segredo
desta operação! E levá-la às costas não podemos, porque nos atrasa a marcha. O diabo da
velha... Olhe, meu alferes, vou com ela para trás daqueles arbustos <e arruma-se a questão...
— Ninguém toca nessa mulher! — decidi, após segundos de reflexão, que me
pareceram anos — a velha vai connosco. Quando não puder andar, carrega-se numa padiola.

— Desculpe, meu alferes, mas está a arriscar a vida de todos nós...

— A nossa vida está sempre em risco. Não a quero defender com um assassínio.
Vamos!...

1.3 — Uma certa confusão de sentimentos...

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Naquele meu grupo de amigos, quase todos camaradas de trabalho no meu jornal, a
alegria era sincera e profunda. E, se bem que temperada pelo respeito devido a meu pai,
também em mim o era.
Mas, em termos de generalidade, na cidade branca e preta, verificava-se uma certa
confusão de sentimentos, à volta da grande interrogação que se levantava para os lados do
futuro. Como se ia pôr termo à guerra de Angola?
Numa geral aspiração de paz, os angolanos brancos receavam que fosse, para eles, a
paz dos vencidos, ou mesmo a paz da sepultura. E a grande massa dos angolanos de cor, que
não tem ambições políticas, pensava no que poderia acontecer nos dias da confusão.
Por isso, não houve imediatamente em Luanda nada semelhante à explosão de alegria
popular que aconteceu em Lisboa no dia 1.°de Maio. E isto parece-me grandemente
significativo, porque em Lisboa havia apenas a deposição de um regime e, em Angola, estava
no horizonte o nascimento de uma nova nação.

O Rosa Amaral, escandalizado com esta apatia, perguntava:

— Então, que raio de pasmaceira é esta?! Quando chega a Luanda o 25 de Abril?


E, dias mais tarde, foi, com alguns partidários políticos mais decididos, quem organizou
a primeira manifestação de apoio ao Movimento das Forças Armadas.
— Tens de vir! — disse-me ele no dia aprazado. — E vê se contas a verdade no jornal!
— Estás a insultar-me com a recomendação. Mesmo com a Censura, se calei muito do
que sentia, nunca disse o que não pensava. Entendido?

— Tá bem, mas quero-te lá com o teu saco de adjectivos de primeira escolha... A


concentração é às 15 horas, no Largo Dom Afonso Henriques.

Quando lá cheguei, já o largo estava cheio de gente de todas as classes sociais e de


todas as cores da pele. Mas pareceu-me que a maior parte era de curiosos, sem integração
real no sentido político daquele encontro.
O Rosa Amaral foi o primeiro a falar, empoleirado no pedestal daquela estátua, que
Lisboa nos mandou como sendo Afonso Henriques mas que, na má língua de Luanda, era Egas
Moniz, antes de ir ao rei de Leão com a corda ao pescoço...

Com o rosto moreno debruado pela barba bem tratada, o Rosa Amaral lembrava um
condottïere, com a bravura dum guerrilheiro na alma dum poeta lírico.

Falou pouco e bem. Disse que o programa era irem dali ao Largo do Palácio e,
seguidamente, ao comandante-chefe. Afirmou que Luanda devia associar-se à alegria de todo
o Povo português, pelo regresso às liberdades democráticas.

E logo irromperam os primeiros aplausos:

— Muito bem! Muito bem!...

Aquecido pelo entusiasmo popular, o orador lançou-se nas grandes afirmações.

— A partir desse glorioso amanhecer de 25 de Abril em que o sol já era o rosto da


Liberdade...

— Muito bem! Muito bem!

— ...é preciso que todos nós, finalmente restituídos à nossa dignidade de homens, todos
nós...
— Apoiado! Viva o 25 de Abril! Viva o general Spínola!

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— ...todos nós — dizia eu — gritemos a nossa liberdade, abracemos a nossa liberdade,
defendamos a nossa liberdade...

— Muito bem! É assim mesmo! Viva a Liberdade!

— ...e proclamemos bem alto a nossa união, a nossa força, a nossa...

— Muito bem! Muito bem! O povo unido jamais será vencido. O povo unido jamais
será vencido. Viva a Liberdade!

— Peço a palavra!

— Tem a palavra o senhor (como se chama?)

— Abel Rieiros, metalúrgico.

— Tem a palavra o sr. Abel Rieiros...

— Pois eu pedi a palavra só para dizer aqui bem alto, sem medo dos pides, e dos
fascistas e do grande raio que os parta a todos...

— Muito bem! Apoiado! Isso é que é falar...

— ...só para dizer que sempre fui um bom democrático. E agora que foi esmagada a
cabeça da tirania...

— Muito bem! Viva o 25 de Abril!

— ...agora, coimo estava a dizer, só quero gritar com toda a minha alma: viva a
Liberdaaaaade!...

— Viva!!! — ecoou a multidão em delírio.

E outros vivas explodiram, ao general Spínola, ao Exército Português, a Angola, ao MFA,


a Portugal, até mais outro, bem cabido mas de cariz pessoal:

— Viva o dr. Rui Luís Gomes, que é meu amigo! E logo a nota cómica, inevitável na euforia dos
grandes entusiasmos populares:

— Viva o amigo do sr. dr. Rui Luís Gomes!

— Viva!

— Viva a Democracia!

— Viva!

— Viva a Liberdade!

— Viva!

— Viva Luanda!

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— Viva!

— Viva Angola!

— Viva!

— Viva Portugal!

— Viva a gente dos Muceques!

— Viva!

— Viva, outra vez e sempre, o 25 de Abril!

— Viva Moçambique!

— Viva!

— Viva Cabo Verde!

— Viva!

— Viva S. Tomé e Príncipe!

— Viva!

— Viva Portugal!

No rosto fino de Rosa Amaral, notei o aborrecimento de ver descarrilar a sua


manifestação para níveis de mau gosto e de chacota.
— Meus senhores — pediu, erguendo os braços num gesto de reclamar silêncio —
temos de ir ao Palácio.
— Mas eu também quero falar — lembrou um dos presentes.
— Deixem falar o homem! — gritaram várias vozes.
— Sim, porque ou há liberdade ou não há liberdade! — refilou o candidato ao uso da
palavra.
liderados por velhos democráticos de sempre, outros claramente nascidos das despertas
ambições dos oportunistas de todas as horas confusas.

A Acção Nacional Popular, a Mocidade Portuguesa e outras instituições do regime


deposto foram sucessivamente dissolvidas. Quase todos os mais entusiásticos defensores de
Salazar e Marcelo Caetano desapareceram como por encanto. Afinal, nesta terra, agora
novamente designada como colónia, só havia democratas. Democratas sinceríssimos, fidelís-
simos e indefectíveis...

Meu pai, no seu cadeirão de repouso, lia os jornais de ponta a ponta, acendia os
cigarros uns nos outros e não correspondia às minhas tentativas de o distrair da sua
crescente amargura.

— Porque não aceita a realidade, pai?

— Sou um vencido e aceito a derrota.

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— Mas com uma cara de desesperado...

— Estás a ser cruel, meu filho. Lembras-me aquele tenente americano da «25.a Hora»
que aponta a sua máquina fotográfica a Johan Moritz e pede: — Smille! Também tu queres
que eu sorria para ficar bonito no retrato?

— Só queria vê-lo menos infeliz...

— Ouço dobrar a finados por uma Pátria que sonhei grande. Não é música agradável...

— Como podemos ser tão diferentes, pai?!

— Estás profundamente enganado, rapaz! Ambos somos sinceros e é na sinceridade


que se igualam os homens com ideologias diferentes. Assisti à Revolução de 28 de Maio de
1926 e as palavras que hoje se dizem são bem semelhantes às que então se disseram.

— Mas com sinais diferentes...

— Sempre os povos gostaram dos ventos da mudança. Eu já estou velho demais para
mudar. Segue o caminho que julgas melhor e deixa-me ser fiel a mim próprio. Não viro a
casaca, até porque foi albarda que nunca tive.

— Bem sei. Usou roupa de fardo, para eu continuar a estudar...

— Que importância tem isso, agora?

Meu pai é assim: uma rocha inabalável. E nem eu gostaria que fosse diferente...
Entretanto, na Metrópole, começaram as greves reivindicativas. E não tardou muito que
o processo ecoasse em Angola, com perturbações de toda a ordem que só a espantosa
vitalidade económica do território poderá vencer.
Houve a greve dos estivadores do Porto, a dos Transportes Colectivos, a dos Bancos, a
dos serventuários da Câmara, a do Caminho de Ferro de Benguela, a das tripulações de alguns
navios fundeados no porto e até, numa hora em que se pediam vassouradas gerais, também
parou a laboração de uma fábrica de vassouras.
Assisti, por incumbência do meu jornal, à mais breve e mais ordeira de todas: a da
Refinaria de Petróleo, cujas unidades pararam às 12 horas de uma sexta-feira e recomeçaram
o fabrico ao anoitecer desse mesmo dia.
No intervalo, houve reunião no Centro de Convívio do pessoal da Petrangol, com diálogo
animado e a serena paciência dum major do Exército, que ajudou a conciliar as partes em
litígio.
As palavras mais exaltadas que ouvi, enquanto o oficial tentava demonstrar os
inconvenientes de uma tal greve, viriam dum operário mais renitente, que do meio da
assistência, comentou:

— Parece um guarda-republicano a falar!

Mas o major não ouviu (ou não ligou) e tudo terminou em beleza com um convite que
lhe foi dirigido pelo pessoal da refinaria para uma visita a unidade.
O oficial acedeu, circulou através dos toppings e das fornalhas, acabando por entrar na
sala de controlo.
— Agora, o sr. major carregue neste botão! — pediu o chefe do turno.
— Para quê?! — disse o oficial. — Eu não percebo nada de refinarias de petróleo...

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— Nem é preciso. Basta carregar neste botão. Faça favor! O major fez o que lhe era pedido e o
técnico declarou com a maior naturalidade:

— Pode V. Ex..cia telefonar ao sr. comandante-chefe que a Refinaria de Luanda já está


de novo em labutação. Aqui tem o telefone...

1.5 — De Salomé à Mariluz

Ainda não tenho 35 anos e já uso um estado civil que cheira a velho: sou viúvo. Viúvo
daquela Salomé que encontrei a bordo do Príncipe Perfeito, durante a minha viagem para
Moçambique e a quem prometi escrever quando ela des-embarcou em Luanda.

Prometi e fui além da minha promessa. Na verdade, as minhas cartas e as dela tornaram-se
tão frequentes e progressivamente tão íntimas que logo se transformaram em namoro
pegado. Namoro por correspondência, que é dos mais perigosos que podem acontecer entre
homem e mulher.
Teimoso como sempre fui, consegui vir passar a Luanda as minhas primeiras férias
militares, viajando num velho Skymaster da FAP.
Meu pai ficou delirante, porque pensou que seria por amor à família. E também era,
mas não em regime de prioridade. A razão mais forte estava naquelas cartas incendiárias, em
que, às minhas primeiras ousadias verbais, a Salomé correspondia sem hesitações, abrindo-se
toda, como um botão de rosa que desabrocha ao toque mágico dum sol primaveril.

Passei a frequentar a casa dela, onde fui acolhido com as honras de noivo declarado,
aceite e seguro. Ela morava numa vivenda do Bairro da CAOP, bonita e confortável. Chamava-
se Salomé de Almeida Cadernais, filha de Júlio de Malva Cadernais, funcionário público, e de
Cremilde Figueirinhas de Almeida Cadernais, dona de sua casa e muito senhora do seu
arrebitado nariz.

Era de leite e mel para mim, essa dama ainda frescalhota, bastante espalhafatosa, com
todos os vícios da nova rica e sempre com quatro pedras na mão contra o marido, que usava
com ela a fatal condescendência de quase todos os homens pacíficos e bons.
O meu pensamento de que a filha única talvez saísse à mãe depressa naufragou nas
vagas encapeladas do nosso desvairo amoroso.

E o que tinha de acontecer, aconteceu...

Com uma honestidade herdada de meus pais, considerei-me comprometido e, no termo


da comissão militar, casei com a Salomé, no maior disparate que ainda cometi na minha vida.

Abreviando uma história cuja recordação ainda me aflige, passo imediatamente ao final.
Aquele precipitado casamento falhou em menos de dois anos, felizmente sem filhos, porque
ela não os queria ter.
Requeremos o divórcio de comum acordo. Pouco depois de o juiz ter lido a sentença, ela
matou-se estupidamente num aparatoso desastre de automóvel. E, apesar de tudo, tive muita
pena dela.

Durante longos meses, que lentamente se foram dobando em três novelos de anos,
senti-me complexado pela ideia de ser viúvo. Entendia que isso me colocava à margem de
qualquer interesse de rapariga.
Até que reparei nos olhos límpidos da Mariluz (Maria Lucinda, na pia do baptismo).

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Os olhos límpidos diziam coisas suaves mas eu já tinha perdido a sensibilidade requerida
para bem as entender. Interpretei-as com um sentido que não tinham, aproveitei a primeira
oportunidade para avançar com as mãozinhas, levei uma tampa de todo o tamanho e tive o
bom senso de reconhecer o meu erro.

— Desculpa, Mariluz! — pedi com humildade. — Transformei-me num bicho... Sabes


que fui casado?

— Contaram-me.

— Foi uma péssima experiência!

— Acredito. E deste agora em experimentador profissional...

— Será um pouco isso...

— Mas é mau. Nem todas as mulheres são iguais.

— Estás zangada comigo?

— Não gostaria que me obrigasses a tanto.

— Não quero obrigar-te a nada. Só gostaria de me reconciliar com a vida.


— Acabarás por encontrar quem te ajude nessa boa tarefa.
— Talvez já tenha encontrado...
Ela sorriu, com os seus modos comedidos de menina séria e bem educada.
Multiplicámos os nossos encontros, comigo no comportamento de namorado fiel e
respeitador. Contei-lhe a minha vida. Contou-me a dela. E nasceu entre nós uma doce
intimidade.
Nos olhos límpidos também às vezes chispavam fulgurações muito vivas, cuja intenção
não me atrevia a perguntar. Tornava-se belíssima nesses momentos fugazes.
— Porque estás tão linda? — perguntei às vezes.
— Isso é dos teus olhos... — respondia evasivamente.
— Gosto muito de ti — disse-lhe, mais tarde, evitando ainda a palavra amor.
— Não gostas mais do que eu...
Arregalei os olhos, na surpresa daquela inesperada confissão. E, depois, murmurei-lhe
baixinho:

Tu dizes que gostas muito e eu digo que gosto


mais; juntam-se as bocas num beijo e os beijos
ficam iguais...

— Bonitos versos! São teus?

— São.

— Dedicados à tua primeira mulher?

— Fi-los esta noite, porque não conseguia dormir.

— Aquém?

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— A uma certa rapariga, cuja lembrança me tira o sono...

— Não te sabia poeta. Os poetas imaginam coisas...

— Não há como tirar a prova da verdade!

E assim aconteceu o nosso primeiro beijo de amor...

1.6 — «Nem precisa, homem!»

Num dos primeiros dias de Maio, o cabo João dos Santos, da Polícia Militar, estava de
sentinela à porta de armas da Fortaleza de S. Miguel, em Luanda.
Pensava na sua modesta casa na Rua da Figueirinha, em Oeiras, onde sua mãe o
aguardava ansiosamente, agora que a guerra de Angola ia findar, para dar lugar a uma solução
política, livremente escolhida por toda a população da maior província africana de Portugal.

Sonhava com o belo sorriso daquela moça leal e afectiva, que encontrara na Feira
Popular de Paço de Arcos, pouco antes do seu embarque para Luanda, e que agora lhe
escrevia todas as semanas. Sentia-se já demais, de guarda àquela grave fortaleza de outras
eras, tendo à sua frente quatro grandes canhões do século XVIII.

Mas, de repente, olhando por cima daquelas peças históricas, avistou um belo Mercedes
a atravessar a ponte dos suicídios que une a cidade alta ao morro de S. Miguel, por cima da
ravina que do Hotel Continental conduz à Praia do Bispo.
O veloz automóvel galgou rapidamente a pequena encosta, entrou na meia laranja e
estacou junto da porta de armas. Já perfilado em continência, o cabo viu como do carro saía
um general de quatro estrelas. E, ao fitar-lhe o rosto, João dos Santos ia caindo de puro
espanto. À sua frente estava o general Costa Gomes.
Com um risinho de esguelha, o antigo comandante-chefe das Forças Armadas de
Portugal em Angola correspondeu à continência do militar, entrou no túnel de acesso e pediu
ao oficial de serviço que o conduzisse ao comandante-chefe.
Em passadas largas e firmes, foi pisando aquelas pedras históricas e entrou na
impressionante sala de comando.
Também colhido de surpresa, o general comandante-chefe das Forças Armadas ergueu-se da
cabeceira da grande mesa rectangular, onde estudava um grande mapa do Sector Leste e
bateu a continência.
— Podes sair — disse o general Costa Gomes — já estás substituído neste posto. — E o
outro saiu, sem dizer palavra.
Entretanto, alguns capitães e um major, que tinham chegado de Lisboa no mesmo avião
militar do general Costa Gomes, reuniram-se no salão de convívio da Base Aérea n.° 9, à volta
de mesas bem fornecidas de cerveja Cuca e de uísque White Horse.
— Como foi isso do 25 de Abril? — perguntou um piloto de helicópteros.
— Temos aqui o cérebro da revolução — informou um dos recém-
-chegados. — Ele que vos conte.
O oficial indicado bebeu o resto do seu uísque, esmagou no cinzeiro o cigarro que
começava a fumar e declarou que tudo tinha sido muito simples.
— Os gajos estavam todos podres. Não foi preciso disparar um tiro. Tudo funcionou com
a precisão dum relógio suíço. Logo às primeiras horas da manhã, já sabíamos que tínhamos
vencido.
— Mas o Presidente do Conselho só se rendeu ao fim da tarde
— objectou um tenente aviador.
— No Carmo, o capitão Salgueiro Maia armou em menino bem comportado, que não
gosta de partir a louça. Ia-se lixando, porque chegou a estar encalhado entre a Guarda

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Republicana que o visava das janelas do Quartel e uma força de infantaria, cujas intenções
não conhecíamos e que descia dos lados da Santa Casa da Misericórdia. Mas o Maia é um gajo
fixe e tudo terminou em bem.
— E agora? — quis saber o chefe dos mecânicos da Base.

— Agora, vamos começar a limpar as pocilgas do país.

— Quanto às colónias? — insinuou outro.

— Temos de acabar com esta guerra sem sentido e entregar a terra aos donos. Estamos
muito satisfeitos com os nossos camaradas de Angola. Mas os elementos do MFA devem
manter os olhos bem abertos. Sabemos que há por aí uns tipos com peneiras. Vão ser
imediatamente enquadrados por gente da nossa inteira confiança... Vejo aí, na placa de
estacionamento dois Camberras da África do Sul! — que vieram cá fazer?
— Havia um plano para acabar com os últimos focos de resistência dos turras — explicou o
comandante da Base. — E os nossos caças-bombardeiross F 84 já não estão operacionais. Com
as três Fortalezas Voadoras B 26 vindas de Lisboa e uma pequena ajuda da Força Aérea Sul
Africana, já podíamos actuar em força.
— Tudo isso é história antiga — decidiu o major. — O general Costa Gomes deve estar a
despedir o comandante-chefe. E certamente ordenará a partida dos Camberras para a sua
terra e o regresso das três Fortalezas Voadoras a Lisboa. Os bombardeamentos da aviação em
Angola terminaram. E pronto, rapazes! Vão consciencializando as tropas da necessidade de
abandonar uma terra que nos não pertence, Portugal tem de reconquistar a sua dignidade e o
seu prestígio no mundo. O fascismo terminou. É preciso substituir rapidamente os elementos
suspeitos. E cautela com a maioria dos brancos, hein!............

Entretanto, falando ao findar desse mesmo dia, pela Emissora Oficial de Angola, o
general Costa Gomes adoptava um tom muito diferente, manifestando uma grande confiança
no futuro do que significativamente chamou «a maior parcela de Portugal».
Afirmou que Angola continuaria portuguesa, embora ressalvando que seriam as suas
populações — todas as suas populações — a decidir sobre os laços que desejavam manter com
a Mãe-Pátria, no exercício do seu direito à auto-determinação. Assegurou solenemente que
nada se faria sem que a etnia branca fosse previamente consultada. E, referindo-se aos
guerrilheiros, que então passou a chamar movimentos emancipalistas, embora considerasse
muito pequena a sua representatividade, disse que poderiam vir para a sua terra dialogar
connosco no plano das ideias políticas. «Mas com uma condição — acrescentou — a de
deporem as armas. Tenho ordens terminantes da Junta de Salvação Nacional para não permitir
a propaganda de movimentos em armas. Permitir isso seria apunhalar os nossos soldados
pelas costas.»
Antes de regressar a Lisboa, não deixou de visitar um velho amigo e conterrâneo, em
casa de quem jantava frequentemente quando foi comandante-chefe das Forças Armadas na
maior província do Ultramar Português.
E como este, enquanto lhe servia um uísque bem doseado, insinuasse que não tinha um
centavo fora de Angola, atalhou impulsivamente, em tom de grande convicção:
— Nem precisa, homem!... Se eu fosse rico, era agora que investia todo o meu dinheiro
nesta bela terra.

1.7 — Manifestação e contra-manifestação

Veio a Luanda o ministro da Comunicação Interterritorial, com a declarada intenção de


auscultar as populações sobre a nomeação do novo governador-geral.

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Com a sua paciência de advogado, habituado a dirimir «milandos» em Lourenço
Marques, ouviu quantos quiseram falar-lhe e depois, numa animada conferência de
imprensa, revelou desconsoladamente que, em vez de um nome, lhe tinham sugerido
quarenta.
No dia da partida (26 de Maio de 1974), autorizou que adeptos dos movimentos
emancipalistas se manifestassem em frente do palácio. E pôde ler dezenas de cartazes, desde
os apelos à independência total e imediata, até aos «vivas» e «morras» que são inevitáveis
quando o povo começa a falar sem papas na língua.
Mas o pior aconteceu depois: a contra-manifestação, em que o ministro foi alvo de
palavras azedas, que persistentemente o acompanharam até ao avião do regresso a Lisboa e,
mais do que todos os discursos de circunstância, o terão alertado para a real complexidade do
processo de descolonização de Angola.
De regresso a casa, informei meu pai dos acontecimentos e pedi a sua opinião.
— Nunca aprovei faltas de respeito à autoridade constituída — respondeu ele
prontamente. — Mas a primeira manifestação também foi um erro. Assisti, por acaso, à
debandada dos manifestantes. E não gostei.
— Incomodaram-no?!
— Nada. Quando atravessava um grupo mais numeroso, até um garoto negro teve um
rasgado gesto de sinaleiro e berrou cordialmente:

— Deixem passar este branco velho!

— Mas também houve atitudes bastante diferentes, pedradas em automóveis, coisas


que podiam dar muito mau resultado.
— A contra-manifestação foi mais desordeira— intercalei, em defesa da verdade.
— Não sei, porque não vi. Mas, a ter de acontecer, foi bom que o ministro assistisse. Se
já cá não estivesse e depois lho contassem, talvez não acreditasse...
— Não me diga que aprova?!

— Não aprovo nada! Já te disse que não gosto de desordeiros, sejam eles quem forem.
Mas os governantes que nos mandam de Lisboa devem saber prever as reacções de todos os
sectores da população. Luanda não foi construída por gente abúlica ou insensível...

Calei-me respeitosamente. Meu pai aparentava uma serenidade que não sentia.
Continuava fiel a convicções muito sinceras. E ao mais ligeiro toque, a ferida sangrava...

Eu via os factos de outra perspectiva. Mas também começava a sentir-me apreensivo.


Não poderá a Nação Angolana nascer sem grandes sofrimentos e convulsões?...

Tardou mais tempo do que o previsto a nomeação do novo governador-geral de Angola,


mas acabou por chegar. E, com grande surpresa para muitos, recaiu sobre o general Silvino
Silvério Marques.
— Vais à chegada do governador? — perguntou-me a Mariluz, na manhã do dia
anunciado para o acontecimento.
— Tenho mesmo de ir, porque estou encarregado da reportagem para o jornal.

— Correm por aí uns panfletos, a aconselhar que não vão lá...

— Então, irá muito mais gente.

— E é capaz de haver confusão.

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— Confusão também é notícia...

— E perigo...

— Gostarias de um homem medroso?

— Não. E até aos bocadinhos te aceitaria com amor inteiro. Mas a coragem não impede
a prudência...
— Um jornalista é, de profissão, um imprudente. Mas não te aflijas, que não vai haver
nada de especial.

E até houve. Não pelo facto de o avião dos TAP chegar atrasado, ao que já estamos
habituados, mas porque não vi os costumeiros ranchos de crianças das escolas, nem as
bandeiras da Mocidade Portuguesa, nem as camionetas carregadas com gente dos muceques.
O que logo se notava era um dispositivo militar de muito respeito...

No entanto, não faltava gente, ou por sincera dedicação a um governante já conhecido


em Angola, ou em reacção bem luandense contra o conselho de não comparecer.

De inteiramente novo, registei a presença dum grupo, situado bem em frente da saída
da aerogare, com três cartazes, num dos quais se dava o «fora» ao governador prestes a
chegar. Isto acontecia pela primeira vez em Luanda, depois de quase meio século em que os
governantes enviados de Lisboa eram sempre entusiasticamente aplaudidos à chegada e
severamente criticados à partida...

Mas também este incidente teve um desfecho ainda mais original e imprevisto. Após a
breve cerimónia do protocolo, e quebrando a rotina da habitual mensagem aos microfones da
Emissora Oficial na sala dos VIPS, o general Silvino Silvério Marques atravessou por entre o
povo que enchia o átrio do aeroporto e encaminhou-se para o automóvel.
Com o seu modo grave mas afável, saudou a multidão acumulada no largo e, como não
podia deixar de ser, leu num dos cartazes erguidos bem à sua frente:

«Silvino, vai-te embora!»

Teve um sorriso indefinível e com a mão fina saudou cordialmente quem assim o
hostilizava.
Aconteceu então o inacreditável: o grupo deixou cair o cartaz e correspondeu à
saudação do governador com uma salva de palmas.

O general Silvino Silvério Marques entrou no carro e seguiu para um palácio já seu
conhecido e para uma das mais amargas fases da sua vida de português, de soldado e de
governante.

Mas esta sua segunda passagem pelo Governo-Geral de Angola, infelizmente tão breve,
foi um clarão de esperança para a esmagadora maioria dos angolanos de todas as etnias.

1.8 — Um clarão de esperança

Assim o afirmou, com inteira verdade e muita oportunidade, um dos mais antigos
colaboradores do meu jornal, com ideias muito semelhantes às de meu pai, que saudou o
novo governador-geral com palavras de muito respeito e admiração, sem se importar
absolutamente nada com a bruta hostilidade, que já então começava a manifestar-se, da parte
dos novos antifascistas, contra tudo o que pudesse interpretar-se como apoio, directo ou
indirecto, a homens do antigo regime.

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«Depois de Norton de Matos — escreveu ele — o general Silvino Silvério Marques é o
único governador-geral de Angola a voltar ao cargo que anteriormente exerceu.

«Deixou Angola há cerca de oito anos, com as lágrimas nos olhos. Regressa em
circunstâncias decisivas para o destino desta terra e com uma amplitude de iniciativa que nem
ao general Norton de Matos foi concedida.

«Penso conhecer bastante bem as suas qualidades, porque sou testemunha presencial
da sua actuação no Conselho Legislativo e beneficiei do privilégio de o acompanhar em
algumas das suas viagens através de Angola.

«Não agradou então, nem agradará agora, a toda a gente. Mas o defeito que mais
insistentemente se lhe apontou, durante os quatro anos do seu anterior Governo, foi, afinal, a
sua mais alta virtude: a sua contínua preocupação de chamar os mais válidos naturais da terra
ao desempenho de funções qualificadas no Governo, na administração pública e nas
empresas.

«Trabalhou esclarecidamente pela sociedade multirracial, com uma honesta e constante


atenção aos homens de cor, mas com os olhos bem abertos para os legítimos interesses de
todas as etnias. Diziam alguns que só apertava as mãos dos pretos. Mas, sempre que o
acompanhei, vi que apertava a mão de toda a gente.
«A sua coragem está documentada pelo próprio facto de aceitar, nas presentes
circunstâncias, as tremendas responsabilidades do cargo de governador-gera'1 de Angola.
«Mas, embora altamente dotado para as tarefas mais delicadas, o general Silvino
Silvério Marques precisa aflitivamente, não do apoio de todos (que nunca o terá) mas, pelo
menos, do apoio de uma significativa maioria dos angolanos de todas as etnias.
«Se lhe negarmos este apoio, talvez nem assim o levemos ao desânimo, porque é um
soldado robustecido na luta e um homem de coração africano, definitivamente ligado a esta
terra pelo sangue de um filho muito querido.
«Nós é que, abandonando-o à hostilidade aberta dos seus inimigos, poderemos entrar
nos tenebrosos resvaladouros do desespero.
«Na verdade, o general Silvino Silvério Marques representa agora uma esperança para
todas as populações de Angola.
«E é esta esperança que eu hoje saúdo, com inteira sinceridade, mas sem qualquer
espécie de subserviência.»
No dia seguinte, quando saía da Igreja de Jesus, onde fora ouvir missa, o novo
governador-geral encontrou o autor do artigo e, depois de lhe agradecer as suas boas
palavras, acrescentou, de olhos nos olhos:

— Continue a defender a Angola dos portugueses...

Houve quem ouvisse essa recomendação, porque no dia seguinte, o Santos Gouveia,
que estava a ficar «vermelho assanhado», como dizia o Rosa Amaral, comentou na redacção
do jornal:

— Não vai durar muito, com estas ideias ultrapassadas...

O Santos Gouveia sabia que esse governante profundamente dedicado à terra do seu
governo já estava sob a implacável hostilidade dos que, em Luanda e em Lisboa, tinham
pressa de entregar todos o Ultramar Português ao despotismo de Moscovo.

22
OS DIAS MALDITOS

2.1 — A morte do enfermeiro Pedro Benge

Num dos primeiros dias de Junho, ainda antes da chegada do governador-geral Silvino
Silvério Marques, o enfermeiro negro Pedro Benge foi assassinado por um branco.
Correu que o acto tresloucado acontecera na sequência duma discussão azeda.
— O enfermeiro limitou-se a dar «vivas» ao general Spínola — diziam alguns.
— Não acredito! — afirmava o Baldaque, que é um moço ponderado e sério.
— Eu conheço o assassino e já lhe falei agora na cadeia. Está arrependidíssimo do que
fez, mas afirma que não conseguiu dominar-se quando o enfermeiro lhe fez ameaças relativas
à filha e à mulher.

— E será verdade? — perguntei eu.

— Ninguém sabe, porque não houve testemunhas. Mas estou tentado a relatar esta
conversa no jornal.
— É disparate! Coisas destas só se afirmam quando se podem provar.

— Compete-nos esclarecer o público.

— Assim não esclareces nada, porque tu próprio não conheces a verdade.


— É a versão mais verosímil. E eu não vou afirmar que é a verdadeira. Julgas possível
que um homem normalmente sensato mate outro só porque ele dá vivas ao Chefe do
Estado?!

— Vivemos horas de anormal excitação...

— Tentar explicar um gesto insensato é combater o clima de anormalidade.


— No caso presente não será. Tudo quanto pareça atenuante do crime servirá para
enfurecer os mais exaltados. E, para a população negra, já o Pedro Benge se transformou num
mártir.

Embora me não parecesse convencido, o Baldaque escreveu uma crónica sóbria e


objectiva, abstendo-se de comentários. E o funeral de Pedro Benge, com slogans e bandeiras
do MPLA, foi uma impressionante manifestação de protesto ordeiro e silencioso. Claro que o
dispositivo militar, dentro e fora do cemitério, também era de respeito. E houve o cuidado de
fechar ao trânsito de viaturas a zona mais quente do percurso.

A tensão na cidade encaminhava-se para o ponto de ruptura.

Ao amanhecer de um desses dias, o Gama Ribeiro apareceu na redacção do jornal,


onde eu passara a noite.

— Preciso dum fotógrafo! — anunciou de olhos esgazeados.

— Há novidade?
— Há mais um crime. Lá em cima, à entrada do Muceque Lixeira, um motorista de táxi
está morto, ao volante do seu carro. Estrangulado.

23
— Por quem?
— Ninguém sabe dizer. Aparentemente, pêlos passageiros que transportava. Está de
cabeça caída para trás, sobre as costas do banco dianteiro, na surpresa da morte. Um horror!
Precisamente nesse momento chegava o fotógrafo do jornal, também alarmado. E
seguiram ambos para o local da tragédia.
Na tarde do mesmo dia, os motoristas de táxi manifestaram-se junto do Palácio,
protestando contra o crime e pedindo providências quanto à sua segurança no exercício da
profissão.

Foram-lhes prometidas.

Mas, logo no dia seguinte, verificou-se na mesma zona um estúpido assalto aos
passageiros dum machibombo. Morreram inocentes que pacificamente voltavam do seu
trabalho.

Germinavam as sementes malditas do ódio.

— Foram os taxistas! — gritavam uns.

— Não foram nada! — contestavam outros.

E as opiniões dividiam-se, conforme as simpatias e tendências de cada um. Só a


imprensa de Lisboa parecia dona da certeza absoluta: «tinham sido os racistas brancos.»
Começou, para mim, um tempo de intensa actividade profissional. O jornal queria uma
cobertura completa dos acontecimentos. E eu fui para o meio de emoções terrivelmente
contagiosas.

Nunca lamentei tanto o meu escasso poder de expressão. Não há palavras que digam o
impacto daquela multidão silenciosa, acompanhando a pé a última viagem de Pedro Benge,
sem mesmo olhar para a tropa que o general Franco Pinheiro encarregara de assegurar a
ordem e a dignidade do cortejo fúnebre. Não conheço adjectivos capazes de definir a atitude
serena e vigilante dos soldados brancos e negros. E não há, na minha singela técnica de
jornalista, recursos para exprimir a luz amargurada dos olhos dos brancos (falo da grande
maioria pacífica), aio saberem-se incriminados pela imprensa metropolitana de todo o mal
que acontecia em Luanda.

Não é preciso ser branco (e eu não digo a minha cor) para compreender o profundo
desgosto de homens tão injustamente apreciados por gente do mesmo sangue e da mesma
Pátria. Não é preciso ter as mesmas ideias políticas, nem as mesmas crenças religiosas; basta
ser apenas um homem como eles.
Mergulhado nos acontecimentos por dever de ofício, sinto uma enorme tristeza ao
relembrar esses dias malditos, que mancharam de sangue a mais bela cidade da África
tropical.
Vi a raiva incontrolada das multidões exasperadas. Senti o cheiro acre do sangue
derramado, ainda vivo e quente. Ouvi os gritos do ódio adulto e choro confrangedor das
crianças aterrorizadas.
Não quero — ninguém deve querer — que Luanda se transforme num hediondo
matadouro.
Toda a minha alma se insurge contra os instigadores de tamanho crime. Todo o meu
coração pede que se trave esta escalada de violência.

E não me digam que as nações também nascem em dor!

Será que todos nos entregamos à fatalidade?!...

24
2.2 — Sangue, intrigas e traição

Prosseguiram e agravaram-se os tumultos nos muceques.


Numa segunda-feira, por ordem da FNLA, os trabalhadores de cor faltam em massa,
guardando o luto pelos seus mortos.
A tropa negra deixa as armas nos quartéis e marcha para a Fortaleza de S. Miguel, onde
protesta junto do comandante-chefe contra a sua exclusão das patrulhas de protecção ao
povo dos subúrbios.
Uma grande multidão civil, que vai na retaguarda dos soldados, depara com uma
barreira da Polícia Militar. Impasse. Manifestantes mais exaltados tentam desarmar um
elemento das forças armadas. Segue-se a inevitável reacção pelo fogo. Estalam rajadas das
armas de guerra, primeiro para o ar, depois para o monte. Tombam alguns manifestantes. Um
jovem estudante de Medicina, que se apeia de uma ambulância para acudir aos feridos, é
fulminado por uma bala vadia. E, pela tarde, os autotanques dos bombeiros lavam o sangue
da Avenida Álvaro Ferreira...
Uma delegação do M.P.L.A. vai a Lisboa expor a sua versão dos acontecimentos. E, dias
depois, na orla dos muceques, encontrei um dos seus elementos, que afirmava, num grupo de
militantes do partido do dr. Agostinho Neto:

— Nada temos a recear de Lisboa. Os homens do MFA estão mortinhos por se verem
livres de Angola...

Contei isto ao Rosa Amaral. Respondeu-me que o MPLA era um partido de fanfarrões.
Mas estava internamente tão esfrangalhado que já não valia o espirro dum gato sifilítico.
— Talvez não valha — comentei, reticente —, mas não me admiro nada se conseguir
afastar daqui o general Silvino Silvério Marques. Já o chamaram a Lisboa...

— É verdade?! — perguntou o meu colega de redacção.

Era verdade. E essa viagem não teve regresso. Será que o dr. Almeida Santos o mandou
para Luanda, não porque assim lho tivessem pedido os homens de Angola, mas para mais
depressa o queimar?!...
Já em pleno domínio da traição, esse Homem bom, generoso e competente foi
substituído por uma Junta Governativa, presidida pelo almirante Rosa Coutinho.
O Almirante Vermelho desceu na capital de Angola com a arrogância de um comandante
de tropas de ocupação.
— Quando volta o sr. general Silvino Silvério Marques? — perguntaram-lhe os jornalistas
no aeroporto.
— Já não é governador-geral de Angola — respondeu com a sua malcriadez de
complexado pelas sevícias a que o submeteram em Matadi.

— Quando será a independência de Angola?

— São os angolanos que hão-de decidir. Eles já decidiram? — fez ele com o seu risinho
cínico...

2.3 — Que querem fazer da nossa cidade?!

— Será agora que teremos algum sossego? — pergunta-me a Mariluz, com o seu ar de
donzela assustada.

— A história dos homens é uma crónica de guerras.

— Bem sei. Mas nós precisamos de paz e tu andas no meio dos tiros...

25
— Com uma esferográfica e um bloco de apontamentos.

— Frágil couraça contra as balas das metralhadoras!

— As armas hão-de calar-se.


— Não é o que se vê...

E não era.

Chegaram mais dias tumultuosos. Durante a noite, a escuridão dos muceques,


enjeitados pela energia eléctrica vinda do Quanza, iluminava-se com o rubro clarão dos
incêndios. Os estabelecimentos comerciais dos brancos e cabo-verdianos foram
sistematicamente pilhados e queimados. A morgue encheu-se de cadáveres e o Hospital de S.
Paulo ficou encharcado pelo sangue dos feridos. No Golfe, no Cazenga, no Lixeira, no Prenda e
no Catambor, multiplicavam-se as agressões entre homens da mesma ou diversa cor.
Com a pura intenção de evitar maior efusão de sangue os soldados tentavam
restabelecer a ordem com a simples presença. Mas havia nos subúrbios gente interessada em
que não houvesse paz, excitando as populações. E estas interpretavam como fraqueza as
armas silenciosas. Tropas de elite, de bravura comprovada, envergonhavam-se de recuar
perante bandos cada vez mais atrevidos e receberam, finalmente, ordem de abrir fogo,
quando absolutamente necessário.
Nas zonas centrais da cidade recomeçaram a ouvir-se as rajadas das armas automáticas.
Helicópteros e Dorniers da FAP sobrevoavam incessantemente as áreas mais afectadas.
Os comerciantes dos muceques fugiram para a zona do asfalto. Luanda — a cidade
branca e preta — parecia infectada pela doença do apartheid. Como não sabe viver dessa
maneira, tomou, durante algum tempo, os aspectos duma cidade morta. E a revista Notícia,
numa das suas crónicas mais emocionantes, perguntava desoladamente:
— Que querem fazer da nossa cidade?

Com uma inconsciência incrível, a imprensa lisboeta continuava a sua odienta campanha
contra os brancos de Angola, atribuindo-lhes todas as culpas, mostrando-se vivamente
interessada em despertar todos os ressentimentos da população negra, acirrando o ódio,
parecendo desejar que não ficasse nem um só branco vivo, numa cidade por brancos
portugueses fundada há quatrocentos amos.

— Como pode isto acontecer?! — perguntava-se entre gente pacífica, que sempre viveu
do seu trabalho, que sabe ser pior do que nos muceques de Luanda a vida em certas aldeias
do Norte metropolitano, e que tem sido tão explorada como os pretos pelos colonialistas de
Lisboa e Porto.
Instalou-se um forte dispositivo de segurança entre a cidade e os subúrbios. Na linha
divisória, todos os carros são interceptados, para se. ver se levam armas.
Meu pai gosta de ir ver o que se passa, em lentos passeios a pé, ou no seu velho
Cortina.
No regresso de uma dessas voltas de curiosidade, encontra-me em, casa e, contra o seu
costume, mete conversa:

— A tropa começa a cumprir — informa. — Numa ida ao Aeroporto, mandaram-me


parar três vezes. E, logo à primeira, um sargento, que deve ser do Minho e ainda conserva as
cores de lá, espreitou para dentro do automóvel e disse:

— Traz alguma arma?

— Não senhor.

26
— Hum! Assim já velhote, com certeza tem aí a sua pistola...

— Já lhe disse que não tenho. Mas pode revistar-me...

— Não temos ordens para revistar ninguém. Siga!

— E o pai seguiu? — perguntei eu.

— Com alguma desilusão. Se a tropa quer controlar, deve controlar a valer.

— O pai disse que a tropa está a cumprir...

— Pois disse...

— Então — fiz eu, perplexo.

Ele olhou para mim durante segundos, teve um sorriso triste e esclareceu:
— Cumpre as ordens que recebe. Só o futuro dirá se chegam para impedir maior
sangueira.

2.4 — «Podia matá-lo, seu marinheiro de água doce!»

O Rosa Amaral já não mostra o mesmo entusiasmo com que organizou em Luanda a
primeira manifestação a favor do Movimento das Forças Armadas.

Foi hoje ao enterro do jovem estudante de Medicina, morto na Avenida Álvaro Ferreira,
durante a humaníssima tarefa de acudir aos feridos, quando os soldados tiveram de optar
entre abrir fogo ou entregar as armas aos civis amotinados.

— Maldita bala! — exclamou ele, ao regressar à redacção com os apontamentos para a


reportagem do funeral.

— Estava muita gente?

— Nada que se pareça com um acompanhamento de Pedro Benge.

— Aí entrou política...

— Começo a odiar a política — fez ele com desalento. — A morte desse moço branco é
tão lamentável como a do enfermeiro negro.

— Mas não foi um crime.

— Sei lá...

— Estás desorientado, homem!

— Venho de ver enterrar um amigo...

— Que não foi visado pessoalmente.

— A morte com alvo certo é o gesto assassino de um só homem. A morte indiscriminada


é um crime de todos.

27
— Também te consideras culpado?!

— Claro que sim. Todos nós somos responsáveis pelo clima de loucura que deixámos
criar em Luanda. Andamos todos excitados. E pouco se faz para apagar a fogueira.
— Estás a ser injusto. Todas as emissoras e jornais de Luanda se juntaram agora num
apelo à calma.
— Bem sei, mas não basta. Nos muceques apedrejam os carros dos bombeiros que vão
acudir aos incêndios. Há dias passaram pelas ruas da cidade os quatro negros mortos no
assalto ao machibombo. Mas a quinta vítima foi esquecida, porque era um branco, que
também lá morreu. Não gosto de cortejos macabros e, muito menos, de qualquer espécie de
discriminação...
O Rosa Amaral é branco e louro como um inglês de Oxford, mas sei que tal circunstância
nada influi nas suas apreciações. Não há, no seu coração, nem um miligrama de preconceitos
étnicos. Lamenta, tanto como eu próprio, este vento de violência que devasta os subúrbios de
Luanda, e em que é de pretos o maior número de vítimas, porque já não há brancos para
matar, embora conste que os há, vindos de fora de Angola, para incitar à matança.
Sucedem-se os actos incompreensíveis para quem seja apenas um homem bom. Os
brancos deixaram de ir aos muceques, mas há milhares de pretos que fogem para os bairros
de predominância branca. A pilhagem, o incêndio e a morte continuam à solta nas zonas
suburbanas.

«Vários incêndios crepitam. Acorrem novamente os bombeiros, mas desta feita não
passam. O acesso foi bloqueado. Recorrem os bombeiros ao exército para que lhes possibilite
o acesso. Sem melhores resultados. Uma barragem na entrada corta a via e uma multidão
atrás dela hostiliza os soldados. O que arde é para arder...»

Assim escreve a revista Notícias, no seu número de 10 de Agosto.

Até as ambulâncias que recolhem os feridos são alvejadas com coquetéis Molotov.
Nem os postos de venda de pão escapam à fúria destruidora. Nem as escolas, tão necessárias
à promoção social dum povo que vai para a independência num mundo ferozmente
competitivo.
Os cinemas suprimem sessões, mesmo no centro da cidade. Era certo dia, é interdito
todo o trânsito automóvel após as 20 e 30. Parece morta, a minha linda Luanda!
Numa dessas noites de sono intermitente, acordei com o estalar de tiros mais próximos
e fui à varanda da frente, onde já encontrei meu pai.
— Há para ali barulho do grosso — informou ele, apontando o Muceque Prenda.
E havia. Tiros soltos de pistola, logo seguidos de rajadas de G3. Estouros maiores, que
parecem de granadas de mão. Explosões mais abafadas, mas sinistras, talvez dos foguetes das
bazucas. Depois a cadência das armas de guerra, no tiro-a-tiro. E mais disparos de pistolas. E
novas rajadas de carabinas automáticas, agora contínuas, resolutas, raivosas, na decisão
militar de acabar com aquilo. Quinze minutos de fogo nutrido, terrivelmente ampliados pelo
multiplicar da nossa angústia.
— É uma autêntica batalha! — diz meu pai.
— Parece que já acabou — respondo eu, dando voz à minha esperança.
Esperança vã, porque o tiroteio recomeça, ainda mais vivo. Agora julgo distinguir o
ribombo dos morteiros. Um helicóptero, denunciado mais pelo seu grazinar característico do
que pelas luzes de posição, aparece em voltas apertadas sobre o Prenda. E, logo a seguir, as
rajadas tornam-se menos frequentes, o tiro-a-tiro rareia e volta um silêncio que, para alguns,
terá sido definitivo.
Só então reparamos, meu pai e eu, que todas as janelas do largo fronteiro à nossa casa
estão cheias de gente alarmada por esta guerra estúpida que tenta atingir uma cidade
pacífica.

28
A guerrilha suburbana já acontece em pleno dia. À entrada do Muceque Lixeira, mesmo
ao pé da rua asfaltada, incendeiam mais um estabelecimento, que fica a arder durante horas.
Os trabalhadores da zona industrial da estrada do Cacuaco preferem regressar a suas casas
pela Avenida da Boavista.

A notícia (ou o boato) de que pretendem desarmar a Polícia de Segurança Pública leva uma
grande massa de civis até ao Comando-Geral da Corporação. Forma-se um cortejo até ao
Palácio do Governo Geral. Um magote de populares teima em entrar no edifício e procura o
presidente da Junta Governativa, que foge de gabinete em gabinete, até ser cercado por uma
turba furiosa. Pula para cima duma secretária e ergue as mãos a proteger a cabeça, na exacta
posição de um animal encurralado — a única posição em que poderá ficar na história.
Invectivado, insultado, trémulo de medo, promete tudo, concorda com tudo, confessa
que os verdadeiros colonialistas estão em Lisboa.

A multidão acalma, chega mesmo a sorrir com desprezo. E, segundo se afirma no dia
seguinte por toda a Luanda, uma rude mulher, vendedeira de peixe no Mercado dos Lusíadas,
terá então bradado para o Almirante Vermelho:

— Podia matá-lo, seu marinheiro de água doce, mas o senhor não vale os 7$50 que me
custa uma bala...
Depois desse dia, o Palácio do Governo Geral passou a ser guardado por fortes
destacamentos dos fuzileiros especiais, que vigiavam permanentemente nos terraços do
edifício, à volta dele e ao longo dos corredores.

2.5 — «A minha cubata a tropa não pode chegar...»

Nas repartições, nas fábricas, nos escritórios das empresas privadas, nas esplanadas, nos
cadeirões da sapiência da Livraria Leio, nos cafés, nos restaurantes, no convívio das famílias à
mesa das refeições, os acontecimentos dos muceques constituem o tema de todas as
conversas.
— São racistas brancos — afirmam os mais timoratos, que tentam uma carta de seguro,
dizendo-se agora do MPLA.
— São guerrilheiros da FNLA que se infiltraram nos subúrbios — declaram outros,
argumentando com o facto de ninguém hostilizar os pretos na cidade do asfalto.
— É tudo uma desgraça — concluem aqueles para quem o sangue inocente não tem cor
política.

E a tónica geral das conversas é de espanto, apreensão e terror.

Ainda não disse que fiquei sem mãe aos 10 anos de idade. Meu pai não voltou a casar. E,
desde então, quem governa a casa é minha Tia Isaura, irmã de meu pai e como ele nascida na
Gabela, na primeira década deste século. Embora mais velha do que o irmão, mantém-se uma
mulher de armas que traz a casa num brinquinho, sem criados mas com a ajuda de todos os
electrodomésticos de que se pode dispor em Luanda.
Por isso, quando não há visitas, que são raras, somos apenas três à mesa.

Meu pai anda pouco falador, mas ela fala pêlos dois.

De política nada entende — afirma —, mas não se coíbe de rir das ingenuidades do
«menino», como continua a chamar-me.
— Sabe de quem tenho pena, menino? Dessa pobre gente dos muceques, que anda
entregue à bicharada.

— Os pretos ou os brancos?

29
— Todos os que não querem barulhos e andam metidos neles. Os brancos já de lá
saíram, depois de verem queimadas as suas casas. E os bailundos estão a fugir para as suas
terras. Ainda esta manhã, quando voltava do talho, encontrei uma família completa, a
caminho da Estação do Caminho-de-ferro, com as biquatas às costas. O menino já viu aquela
tristeza?

Eu já tinha visto.

A todo o comprimento da fachada do velho edifício do Bungo e dos armazéns para


mercadorias, uma pobre multidão de fugitivos aguarda o comboio que os leve para longe das
makas que outros alimentam e eles não querem. Fogem de zonas onde se morre sem saber
porquê. Onde se mata sem saber porquê. Onde as balas são anónimas e os incêndios
constituem a única iluminação pública. Onde a noite tem garras de chumbo quente que se
cravam em carne de inocentes. Onde já nem a luz do Sol intimida a fúria do crime. Onde se
barra o caminho dos chefes de família que pretendem ir ao seu trabalho. Onde a loucura é a
ordem do dia e a insónia a tortura das noites, quando já nem os cães respondem ao ladrar das
metralhadoras.
Pobre gente apavorada, que foge dos seus lares e abandona os seus empregos, com o
pânico de quem foge dum terramoto!

Homens emagrecidos no trabalho sem pão suficiente, mulheres com filhos ao colo e outros
agarrados às saias, crianças em pasmo de espanto ou na eloquência das lágrimas infantis. E o
estendal comovedor da pobreza! Velhas mesas de pé-coxinho, cadeiras desconjuntadas, col-
chões de folhelho atados com fios de mateba, míseros trastes de cozinha sumariamente
embrulhados em jornais, panelas amolgadas, caçarolas enegrecidas, fogareiros de ferro, malas
de fechos avariados atadas com cordéis, fardos de roupa remendada, alguns caixotes de
ferramenta, sacos de plástico atulhados com as últimas compras do Mercado de S. Paulo ou
do «Pão de Açúcar» — toda a pobreza em gritante comício de condenação ao egoísmo dos
ricos, à incúria das autoridades e à fraqueza patente das chamadas forças da ordem. A
debandada dos enjeitados da cidade, que só têm os braços para trabalhar e não sabem
política, não pertencem a movimentos de libertação e nada fizeram — nada, Senhor Deus! —
para merecer a desgraça que lhes acontece, sem saberem como veio, de quem veio e porque
veio.

São apenas as vítimas habituais de todos os conflitos, de todo o choque de ideias, de


todas as ambições embrulhadas em palavras bonitas, que eles não compreendem e aos seus
ouvidos apenas soam com o sentido de um «salve-se quem puder!»
Dos seus cómodos automóveis, os brancos olham e passam. Das suas barulhentas
motorizadas, outros negros, bem vestidos e bem alimentados, olham e passam.
Mas eles só têm a esperança ao comboio que os leve para longe duma cidade que
parece louca, para longe dos bairros do medo, da pilhagem e da morte.
Aproximo-me desse quadro vivo do êxodo e é com timidez que faço algumas perguntas:
— Você donde é?
— Sou da Quibala — responde-me um preto de pequena estatura, que vigia o seu grupo
familiar.

— Operário?

— Sim: carpinteiro de cofragens.

— E deixa o emprego?!

— Não quero morrer.

30
— Onde é a sua casa?

— Era no Cazenga. Queimaram-na.

— Dizem que por lá agora está mais sereno.

— Ainda ontem me apontaram uma faca...

— Mas a tropa está lá.

— À minha cubata, a tropa não pode chegar.

— Quem são os culpados da confusão?

— Não sei.

— São os brancos! — grita raivosamente uma rapariga de outro grupo.


— Não mintas! — repreende uma velha — Não foi um branco que te trouxe até aqui na
sua carrinha?!
— Esse é branco bom. Mas os brancos bons são poucos...
— Mas ainda há brancos no Cazenga?! — pergunto eu.

— Ainda há — teima a moça. — Com olho azul e cabelo da cor da tuge de menino com
diarreia...

— Talvez nem sejam portugueses — insinuo.

— Não sei: são brancos.

E, sem dúvida alguma, naquele rosto de rapariga vi perfeitamente os sinais do ódio


racial. Mas na grande multidão dos fugitivos só estava a pobreza, igual em todas as raças, filha
do egoísmo de outros homens, sem discriminação de política, religião ou cor...

2.6 — Hum! Quais são os problemas que este Governo já resolveu?

A Mariluz apareceu-me hoje muito triste.

— Que te aconteceu, pequena? — perguntei, solícito.

— Meu pai parou as obras, por falta de pessoal.

— Greve?

— Não. Os bailundos foram-se embora. Nunca vi o meu velho tão desanimado. Nem
quis almoçar...
É a ocasião de falar um pouco da família desta moça amorável e sensata. Seu pai é
natural de Luanda, filho de branco e de mestiça, e não nega a cor da mãe, embora seja de tez
mais clara que a de muitos algarvios curtidos pelo ar do mar.

Casou com uma branca e, na sua profissão de construtor civil, o sr. Armindo das Neves
Calabriz conseguiu meios de vida confortável para a família. A dona da casa, Aríete de Moura
Calabriz, pertence a uma família antiga, de origem beira, radicada em Angola há três gerações.

31
Fez o 7.° ano dos liceus e só não tirou um Curso Superior porque os pais não tinham posses
para a sustentar em Lisboa, nesse tempo em que ainda não existia a Universidade em Angola.

A Mariluz, filha única, frequenta Química Industrial na Universidade de Luanda.


É uma família do velho estilo, com a autoridade paterna bem instalada e firme, embora
sem despotismo.
Habitam numa vivenda do Bairro Miramar e fazem vida de bom nível, mas sem luxos
que escandalizem os mais pobres.

Com o sr. Calabriz falei há dias, na intenção de o tranquilizar quanto às minhas intenções
sobre a filha. Levava um discurso cuidadosamente estudado, mas ele estragou todos os meus
planos, recebendo-me com a maior naturalidade e lançando logo uma pergunta sobre o
assunto político do dia:

— Que raio de gente é essa, que manda agora em Lisboa? Então, nomeiam para aqui um
governador-geral e nem sequer lhe dão tempo de acabar de formar o seu Governo?!
— Estamos numa fase muito complexa — expliquei eu cautelosamente —, o Governo de
Lisboa tem agora muitos problemas a resolver...
— Hum! — resmungou o sr. Calabriz — quais são os problemas que este Governo já
resolveu?

— Está a ser injusto — protestei com respeitosa firmeza —, o regresso às liberdades


democráticas é um facto.

— Nunca ninguém me impediu de ser democrático.

— Aqui, em Angola...

— É onde tenho vivido, desde que sou gente. E não precisei de esconder as minhas
ideias políticas.
— Nas conversas com amigos. Se escrevesse para os jornais, tomaria conhecimento com
a Censura.
— Esqueci-me que você é jornalista... Tá bem! Então, diga lá o que o trouxe a esta sua
casa...
— Vinha informá-lo das minhas intenções sobre a Mariluz... Encontramo-nos com
frequência...

— Eu sei — disse ele, assumindo um ar muito sério. E sério se manteve durante


lentíssimos segundos. Depois, cravou nos meus os seus olhos castanhos e disse, numa voz
pausada, baixa, quase segredada:

— Sabe que estimo profundamente a Mariluz?

— Também eu.

— Não quero que lhe aconteça algum mal...

— Nem eu. Pode confiar em mim. E suponho que também confia na sua filha.
— Se não confiasse, fechava-a à chave. Nós somos uma família honrada. E espero que se
não esqueça disso...
Eu não esquecia. E agora, quando a Mariluz me falava na tristeza do pai, sentia as
preocupações daquele homem, como se fossem minhas.

32
— Gosto profundamente de meu pai — disse-me ela, acentuando o seu ar melancólico.
— E ele não sabe estar parado. Além disso/, e como já te disse, nós não somos ricos.

— Acredito. Teu pai é honesto demais para enriquecer depressa.

— Exactamente. Meu pai não explora ninguém e cumpre escrupulosamente os contratos


que assina. Ora, durante os últimos tempos, tudo aumentou à bruta. As construções
contratadas há seis meses custam agora quase o dobro. Com as obras paradas e letras a
vencer, as perspectivas não são risonhas.
— Toda esta confusão há-de passar — profetizei por não ter mais nada que dizer.
— Não é o que parece. Porque expulsam os bailundos? Não terão eles o direito de
trabalhar em Luanda?

— Claro que têm. E suponho que ninguém os expulsa. Fogem porque não gostam de
barulhos.

— Meu pai diz que ninguém lhes dá a protecção que merecem. E diz isto
indignadamente. Não é só porque as obras param; ele afeiçoa-se ao pessoal com quem
trabalha...

— As Forças Armadas já estão a restabelecer a tranquilidade...

— Na cidade do asfalto — interrompeu ela com vivacidade. — Em certas zonas dos


muceques, parece que nem entram.
— Não podem entrar, querida — expliquei pacientemente. — Tu nem fazes ideia do que
é o interior de alguns muceques de Luanda. Naqueles meandros, a coragem dum soldado
pouco vale.

— E quem lá vive fica à mercê do mais forte, não é?

— Não tanto como julgas. Os pretos de Angola têm um sentido de solidariedade


humana bem mais apurado do que muitos brancos. Mas, nesta emergência, não querem por
companhia gente de quem desconfiam.
— Posso fazer-te uma pergunta ingénua?

— As perguntas ingénuas ficam bem em meninas como tu...

— Acreditas que a independência de Angola se faça em paz?...

2.7 — «Se aparecesse um chefe...»

Um velho amigo de meu pai veio a nossa casa, certa manhã, antes do nascer do sol.
Vi-o entrar, alto e magro, em mangas de camisa, com um ar febril.
Fecharam-se ambos no escritório e lá permaneceram durante três horas, com uma
garrafa de uísque, um balde de gelo e algumas sodas bem geladas...

Não era a primeira vez que meu pai mantinha longas conversas com pessoas
importantes do regime deposto e também com gente nova, que tinha feito o serviço militar na
luta contra o terrorismo e agora se interrogava sobre o futuro. Dava-me a impressão de andar
a conspirar.

33
Desta vez, decidi interrogá-lo, sem receios nem complexos, pois ambos sabíamos que
tudo quanto entre nós se dissesse, entre nós ficaria, selado pela nossa recíproca e absoluta
lealdade.

— Julgo conhecer este senhor — insinuei quando meu pai voltava de acompanhar o
visitante à porta de saída.
— É natural. Até há pouco ensinava Economia na Universidade de Luanda. Agora, vem
de Lisboa. Incógnito...
— Trouxe-lhe notícias?

— Más! Os comunistas estão a tomar conta de Portugal...

— E sobre Angola?

E como ele tivesse para mim um sorriso ambíguo, acrescentei:

— Se é segredo, não diga...


— Bem sabes que não tenho segredos para ti. Mas conheço as tuas ideias e não quero
desgostar-te.

— O pai nunca mês desgosta. Se não é segredo, conte!

— É segredo, mas não para ti, porque te sei incapaz de comprometer este homem, que
vem de Lisboa com muita coragem e uma ideia grande e generosa.

— Louvo a coragem e gostava de conhecer a ideia.

— Quer manter Angola portuguesa.

— E o pai acredita que é possível?

— Contra o que parece, as populações de Angola, na sua esmagadora maioria, não


querem separar-se da Mãe-Pátria. E andam apavoradas com os acontecimentos. O visitante
de há pouco confia nisso...

— Eu ouvi a um dos chefes locais do MPLA afirmar que Lisboa quer ver-se livre de
Angola o mais depressa possível.

— Também sei disso, mas os homens de Angola ainda terão uma palavra a dizer, se
conseguirem sair deste perigoso atordoamento em que caíram.
— A que chama «perigoso atordoamento»?
— Talvez eu não tenha usado a expressão mais adequada. Os homens de Angola andam
hesitantes, entre a -esperança e o desespero. Encontram-se paralisados pelo receio de
provocar um banho de sangue. Fecham-se num silêncio angustiado. Vivem aprisionados numa
teia de sentimentos complexos. Sentem-se abandonados, traídos, caluniados. Se aparecesse
um chefe...
— Esse professor da Universidade veio convidá-lo para qualquer aventura?! —
interrompi, muito preocupado.
— Não! — respondeu ele com veemência. — Já não tenho idade para aventuras.
Infelizmente!...

E, após um melancólico silêncio, acrescentou:

34
— Mas, acredita, rapaz: continua a haver bons e corajosos portugueses em Angola. E a grande
massa da população não gosta nada da confusão que se estabeleceu...
— Nunca lhe ocultei as minhas ideias, pai. Mas gosto de o ver assim, mais animado.

E era totalmente sincero neste meu gostar. Via o meu velho rejuvenescido com a
esperança de que ainda pudesse sobreviver o seu ideal de uma grande pátria multirracial e
pluricontinental.

Eu considerava tudo isso ultrapassado, mas quase me apetecia compartilhar de uma


ilusão que o tornava tão feliz.

E foi a última vez que o vi ainda confiante.

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NO RUMO DA INDEPENDÊNCIA

3.1—O discurso presidencial de 27.7.74

Em 27 de Julho de 1974, num discurso justificadamente classificado de histórico, o


general António de Spínola, presidente da República Portuguesa, reconheceu às populações
da Guiné, Angola e Moçambique o direito à autodeterminação e à independência,
declarando-se pronto a iniciar imediatamente o processo de transferência de poderes.

Sinto-me feliz, porque sou angolano e sei que Angola reúne todas as condições para uma
independência autêntica. Há, todavia, uma tarefa prévia e fundamental: a fraterna
reconciliação de todos os angolanos, tanto dos que pegaram em armas e assim nos
arranjaram três exércitos (que não chegam, porque são demais) como daqueles que, durante
estes últimos treze anos, continuaram a obra do progresso desta terra, criando-lhe
perspectivas e estruturas muito superiores às que existiam em 1961.

Ora, é essa fraterna conciliação que eu ainda não vejo. Dentro e fora de Angola, pretos
e brancos estão muito mais divididos do que nunca e, com Portugal a oferecer a
independência e a paz, a guerrilha instala-se na própria cidade de Luanda onde, até agora, as
Forças Armadas Portuguesas nunca a tinham deixado chegar. E, com ela, chegam aos
subúrbios sistemas de apartheid que nunca existiram nesta bela cidade atlântica, já a rondar
os 400 anos de idade.

O Gama Ribeiro deitou chispas de lume pelo bigode à antiga portuguesa, quando lhe
falei nestes termos.

— Até pareces fascista, homem!

— Bem sabes que o não sou.

— Então porque estranhas que fale agora em excesso quem andou de boca fechada
durante meio século?! Não é a falar que a gente se entende?
— Devia ser. Mas o que eu noto é que, com tantas sessões de esclarecimento, cada vez
andamos mais baralhados...

— É o fenómeno da descompressão.

— Deus queira que não redunde em grossa pancadaria!

— Todos queremos a independência.

— Cada um à sua maneira. E também há quem só queira tacho.

— Isso era no tempo da outra senhora.


— Os homens não mudam só com usar um cravo vermelho na lapela...

— Estás um corvo de mau agoiro...

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— Talvez. Mas explica tu esse apartheid que agora existe em alguns muceques de
Luanda...

— Referes-te ao Golfe?

— Exactamente.

— Não é apartheid nenhum, criatura. Eu levo-te lá e já vês como é...

Fomos.

Na fronteira do que risonhamente passou a chamar-se «o Estado Livre do Golfe», um


cabo do posto de controlo militar mandou-nos parar.
— Que desejam?

— Dar uma vista de olhos pela zona.

— São jornalistas?

— Até somos — declarou o Gama Ribeiro —, mas não viemos propriamente nessa
qualidade. Aqui o meu colega tem umas ideias esquisitas sobre este muceque e eu gostava de
lho mostrar...
— Está bem — disse o militar —, mas nesta altura não lhe posso dar escolta; e, sozinhos,
nem pensar!

Então, um preto de meia-idade, que assistia à cena, a alguns passos de distância,


aproximou-se e ofereceu os seus préstimos:

— Eu acompanho-os.

O cabo olhou para ele e perguntou-lhe se tomava a responsabilidade.

— Se vêm na boa intenção, ninguém lhes faz mal. E já íamos a largar,


quando o cabo interveio:

— Um momento! Os senhores levam armas?

— Nem um canivete! — declarámos ambos ao mesmo tempo.

— Desculpem, mas tenho de verificar...

Erguemos os braços e ele passou uma rápida vistoria. Depois decidiu que o nosso
Volkswagen ficava ali: nos teríamos de seguir a pé.
E lá fomos, com o amável cicerone, que informou chamar-se Paulo Cabanga.
O Muceque do Golfe, que é dos mais recentes de Luanda, não tem os intrincados
meandros de certas zonas do Rangel ou do Lixeira. Já foi instalado com algum ordenamento,
embora elementar. E lá dentro, tudo nos pareceu calmo e normal.
Pelos estreitos arruamentos de terra batida, havia crianças a brincar. Uma delas, contagiada
pelo tiroteio dos últimos dias, apontou-me um cabo de vassoura, fuzilando-me com uma
rajada terrível: tá-tá-tá-tá-tá!

— Pronto! — gritei, entrando no jogo. — Estou morto. Pronto! O miúdo riu, consolado, mas o
seu riso apagou-se logo, ante a severa repreensão do Paulo Cabanga:

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— Tem juízo, menino!

— Não fez nada de mal — aleguei, lembrado de iguais brincadeiras do meu tempo de
garoto.

— Com a morte não se brinca — sentenciou o Cabanga, ainda com olhos maus para a
criança encabulada.
— Este é o senhor presidente da Comissão Administrativa do Bairro do Golfe —
apresentou o Cabanga, indicando um negro de meia-idade, elegante e bem vestido, que, por
trás duma secretária metálica, falava pausadamente a um grupo de populares.
Notei a sua barbicha à Lumumba, que lhe prolongava o queixo voluntarioso, e os seus
olhos espertos, protegidos por óculos de pequena graduação.
— São jornalistas? — perguntou, depois de um certo olhar para o apresentante.
— Somos. E pretendemos ver como se vive neste bairro. Dizem-se coisas na cidade...

— Nós sabemos... É para contar no jornal?

— Talvez — respondi eu. — Mas, por agora, apenas desejamos saber como funciona
isto.
— Melhor que dantes — respondeu o presidente. — Ninguém cuidava disto. Agora
cuidamos nós.
— Já prometeram a água — lembrou o Gama Ribeiro.

— Prometeram mas ainda não cumpriram. É sempre assim...

— É verdade que não deixam entrar aqui os brancos? — perguntei do meu lado.
— É verdade e não é. Os brancos podem entrar, desde que sejam acompanhados por
um de nós. E com os pretos de outros muceques é igual. Não queremos cá quem não seja do
bairro...

— Porquê?!

— Porque queremos viver em paz...

3.2 — O engenheiro Balanta

Hoje almoçou connosco o eng.° Duarte Balanta, que foi geólogo da Companhia de Petróleos
de Angola e, por morte do pai, abandonou as boas perspectivas que ali lhe ofereciam para
tomar conta da herança paterna — uma grande fazenda de café nos Dembos.
É um rapaz novo, se bem que já casado e pai de um bonito par de miúdos, que são o
seu maior enlevo.

Há semanas que o não via e notei-lhe alguns cabelos brancos.

— Já?! — estranhei no tom cordial da nossa antiga amizade.

— Já, o quê?

— Essas veneráveis cãs nas tuas fontes de menino rico...

— Aí está uma frase bem recheada de asneiras — sentenciou ele com a voz calma dum
juiz em férias. — Os meus cabelos brancos ainda se não podem chamar veneráveis e eu já não
sou rico nem menino. Sou apenas um pai cheio de preocupações.

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— Preocupações porquê? Nasceste em Angola, nunca andaste na política, sabes cheirar
as riquezas do subsolo...
— E tenho, nos Dembos, uma fazenda de café que vai ficar afogada em capim.
— Já percebi... É essa história do avanço dos guerrilheiros de Holden Roberto. Uma fase
que há-de passar...
Meu pai parou a colher da sopa, a meio caminho do destino, para me perguntar em
que factos concretos baseava eu tanto optimismo.

— Está na ordem natural das coisas — afirmei sem hesitações.— Em vésperas de


negociações, a Frente Nacional de Libertação de Angola prepara uma posição de força.

— Força da FNLA não será igual a fraqueza de Portugal?

— Portugal já desistiu de continuar em Angola.

— Mas pode manter a sua dignidade! — atalhou o meu pai, elevando a voz.
— Gostaria que me explicasse melhor — insinuei com a calma toda, para o não irritar.
— Interpreta como quiseres. A mim custa-me falar em certas coisas...
— Também a mim — interveio o eng.° Balanta —, mas compreendo o problema. Ou
Portugal conserva em Angola a capacidade de iniciativa que lhe permita a função de árbitro no
processo da independência, ou esta já não será uma concessão: será uma conquista.
— Não vejo bem onde está o valor prático da diferença — afirmei eu. — Parece mera
subtileza.

— Não é mera subtileza — contestou o engenheiro. — Embora nascido em Angola, sou de raiz
portuguesa e não gosto de ver Portugal na função de triste figura. Já que reconheceu a Angola
o direito à independência, deve dar-lha de mão a mão, efectiva e limpa. Tem de manter a
força indispensável para desencorajar as pressões externas e permitir que as populações
façam a sua opção política, num processo correcto e livre. Para transferir os poderes
soberanos, deve exercê-los com dignidade e (eficiência até à declaração da independência. Se
perder a autoridade e os meios de a impor, quais são os poderes que vai transferir? Ninguém
pode dar o que já não tem...

— Exacto! — concordou meu pai, que parecia encantado com o discurso. — Em tudo
isto, eu já não sou mais do que mero espectador. Mas se os meus cansados olhos me não
enganam, assisto a tristeza dum rápido desmoronamento de estruturas que levaram muito
tempo a construir. É lamentável...
— São as convulsões naturais do nascimento duma nova nação...
— Naturais, uma ova! — refilou o engenheiro. — Que raio de naturalidade encontras tu
nesta atitude de se expulsarem os bailundos das fazendas onde trabalham?!
— Talvez uma questão de bairrismo. Em Trás-os-Montes também se diz que «para lá do
Marão mandam os que lá estão»...
— Chama-lhe o que quiseres. Para mim, que também nasci nesta terra e nela tenho
trabalhado à bruta, chama-se a ruína completa. Que mal fiz, para tamanho castigo?! De resto,
a minha desgraça, somada à desgraça de muitos outros cafeicultores, gradua-se numa trágica
sangria económica de Angola. Se esta loucura pega, vai perder-se a próxima colheita de café,
no valor de três ou quatro milhões de contos. E, o que é pior, os cafezais ficarão Infestados.
Quem lucra com isso?
— Há que pensar em termos de cidadão angolano — lembrei com intenção.
— Sou tão angolano como tu — declarou o engenheiro. — Nem podes fazer ideia dos
sacrifícios que a meu pai custou aquela fazenda de café. Esse pedaço de cafezal roubou-lhe
anos de vida. Morreu com 52 anos. E, seguidamente, fui eu que lhe sacrifiquei a minha
profissão, para a qual estudei no Instituto Superior Técnico de Lisboa. Agora, sem um centavo

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fora desta terra, olho para os meus filhos e pergunto se os poderei ver passar fome num canto
qualquer de Portugal, que vai ficar reduzido a menos da vigésima parte do que era antes da
Revolução de 25 de Abril, e que parece disposto a receber-nos à pedrada.

— Quem te diz que serás obrigado a sair de Angola?

— E quem me garante que não?

— Tens de compreender os legítimos direitos do povo angolano.

— E compreendo. Mas a justiça perfeita tem de ser para todos, não é verdade? —
acrescentou, voltando-se para meu pai.

— Quem pode hoje dizer o que é a verdade? — disse ele com uma profunda e
contagiante melancolia.
Neste breve diálogo se define o clima da população branca de Angola, em começos de
Setembro de 1974.

3.3 — O 7 de Setembro

— Lê! — convidou o Baldaque, quando cheguei à redacção, em 7 de Setembro de 1974,


entregando-me um pedaço de fita do Telex.
Era a primeira notícia da Reuter sobre os incidentes da véspera em Lourenço Marques.
Uma viatura com a bandeira da Frelimo içada sobre o espelho retrovisor, descendo a
Avenida da República, tinha passado em frente do Scala e do Continental, arrastando pelo
chão a Bandeira Nacional.
Numa reacção imediata, os numerosos frequentadores dos dois cafés cercaram os
atrevidos, zurziram-nos a soco e a pontapé, viraram o carro e, levantando do chão a Bandeira
de Portugal, foram apedrejar as montras do Diário de Notícias, que ultimamente se tornara
frelimista ferrenho.
O incidente transformara-se rapidamente num generalizado protesto contra a entrega
de Moçambique à Frelimo. E os que, na véspera, tinham assim desagravado a Bandeira
portuguesa estavam agora de posse da Rádio Clube de Moçambique, donde irradiavam
constantes apelos à união de todos os moçambicanos contra o vergonhoso acordo de Lusaka e
transmitiam palavras de esperança no futuro do Grande Estado Português do Índico.
— Vai correr sangue... — murmurei com o meu instintivo horror a todos os aspectos da
guerra civil.
— Talvez— admitiu o Baldaque. — Mas o que esses homens fizeram é um gesto lindo.
Querias que ficassem insensíveis à profanação do símbolo da Pátria?!
— Queria que, em todo o Ultramar português, a prometida independência se
processasse em paz.
— Também eu. Mas seria preciso que não houvesse traidores no Governo de Lisboa. E
há... Também aqui enxovalharam a nossa Bandeira, no Clube do Golfe, ao que consta, com a
conivência de um oficial português. Não te lembras?

— As autoridades desmentiram...

— Os maiores mentirosos são os que mais desmentem — sentenciou o Baldaque. — Sei


de boa fonte que não se trata de um boato. E é por isso que me sinto orgulhoso com a atitude
dos homens de Moçambique. Estão a dar-nos um exemplo maravilhoso. Oxalá se aguentem!
Por toda a cidade, principalmente entre os brancos, mas também entre muitos pretos e
mestiços, e não obstante o justificado receio da feroz perseguição do Almirante Vermelho, o
ambiente era de alvoroço e de esperança.

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— Têm toda a razão! — exclamava-se em reuniões convocadas para casas particulares,
ou segredava-se, com mais cautela, às mesas dos cafés — Estão cheios de razão. Deus os
ajude!
Na Pastelaria Versalhes, aonde fui tomar o meu pequeno-almoço, o Sanches Quintão,
funcionário de Fazenda recentemente transferido da Outra Costa, demonstrava por a + b, num
círculo de amigos, que a Frelimo
era apenas um bando de comunistas e só os comunistas portugueses é que a consideravam
representativa dos povos moçambicanos.

— Então, porque raio de mania lhe querem entregar Moçambique?!

— perguntava o Tobias da Farmácia Central.

— Não é mania: é refinada traição — assegurava o da Fazenda. — Eu ainda estava em


Nampula quando o general Costa Gomes, logo após o 25 de Abril, em 12 de Maio, salvo erro,
declarou que, se a Frelimo quisesse continuar a guerrilha, o papel das Forças Armadas
portuguesas era bem claro: «prosseguir no combate, defendendo o povo irmão, agredido no
sagrado direito de decidir em paz os seus próprios destinos.»

— Tá bem! — disse, da mesa próxima, um branco de idade, já com os cabelos todos


brancos, que ostentava na lapela do casaco o emblema do Colégio Militar. — Mas os senhores
sabem qual era a alcunha do Costa Gomes no Colégio Militar?

?!

— Judas.

Ninguém comentou e o ancião também não disse mais nada...

Durante a tarde, já havia quem sugerisse o envio de telegramas de apoio aos ocupantes
do Rádio Clube de Moçambique.

Mas aí, os mais prudentes reclamavam calma. Enquanto a situação se não clarificasse, a
ninguém interessava criar pretextos para uma repressão brutal da Junta Governativa.

Claro que também não faltava quem classificasse tudo aquilo de manobra de fascistas,
apoiados pela África do Sul. Mas, pelo menos em Luanda, o sentimento mais generalizado era
de grande euforia e de uma enorme esperança.

Nessa noite, ao regressar a casa, encontrei meu pai, sentado ao pé do nosso grande
aparelho de telefonia, ouvindo sofregamente a emissão do Rádio Clube de Moçambique.

Mas não trocámos uma única palavra sobre o assunto.

3.4 — A desistência do general Spínola

Inesperadamente surgiu a notícia do encontro dos generais António de Spínola e


Mobutu Sese Seku na ilha do Sal. Fui eu que a mostrei no telex da Reuter ao Santos Gouveia
que me veio render no turno da noite.

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— Que raio de fita é esta?! — explodiu o repórter, que é um adepto furioso do MPLA,
rival da FNLA sediada em Kinshasa.
— Parece-te episódio de cinema? — piquei eu, que admiro a espontaneidade deste
moço, sem dúvida sincero, embora faccioso.
— Cinema, uma gaita! O que me parece é uma refinada malandrice.

— Vê como falas de dois Chefes de Estado...

— Não se trata de quem esteve na ilha do Sal — declarou o Gouveia, que nem é de
birras contra pessoas. — Anota lá montes de respeito pêlos dois generais, sem distinção de
branco e preto. A refinada malandrice vem deste mundo em que vivemos...

Fitei o colega com os olhos cândidos dum menino totalmente ignorante das manhas da
política mundial...
— Não topas a manobra? — investiu ele.

— Eu, não...

— Pois é fácil de compreender...

E, apontando-me aos olhos um dedo minaz, sentenciou, em berros curtos, raivosos,


definitivos:
— Os americanos, meu filho! A CIA! A fraude de uma independência apenas teórica! A
transferência de poderes para outros que não os angolanos! Neocolonialismo, entendes?
E começou às voltas pela sala, batendo patadas no chão, irrequieto e furioso como um
tigre encurralado.
— ...Porque a verdade é esta — retomou, estacando na minha frente —: quem está por
trás de Kinshasa é Washington. E há um cunhado de Mobutu que se chama Holden Roberto.
Estás a ver a jogada capitalista?
— Espera aí, pá! — interrompi deliberadamente. — Pode ser que tenhas razão. Mas é
cedo para essa fúria toda. Nem sequer sabemos o que foi tratado na ilha do Sal...
— Péssimo sintoma, menino! Mais que péssimo. Quem me dera poder deslindar toda
esta merda!

— Há liberdade de imprensa — lembrei, já no acto de sair.

— Pois há... — fez ele, arreganhando para mim um risinho feroz. — E a multazinha por
agressão ideológica?...
Seguidamente sentou-se à secretária e sacou bruscamente da esferográfica, com o brio
alucinado de um Dom Quixote a arrancar da espada...
*

Os acontecimentos dos últimos dias de Setembro fizeram-me esquecer os maus agouros


do Santos Gouveia, muita vez excessivo mas sempre sagaz e bem intencionado. A ida de várias
pessoas a Lisboa, a convite do Chefe do Estado, e a expectativa criada pelas notícias sobre a
manifestação da maioria silenciosa foram temas de todas as conversas. Depois, o discurso do
general Spínola, a renunciar à chefia do Estado, surgiu em grande estilo de final de acto, com
todos os seus temperos de emoção e drama.

Os brancos de Angola sentiram-se ainda mais abandonados.

Até o general Spínola, que sempre os tentara tranquilizar, e que ultimamente lhes criara
uma derradeira esperança declarando que assumia pessoalmente a direcção da

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descolonização de Angola — até esse acabava de abandonar o seu posto, deixando o campo
livre aos que apenas desejavam entregar à Rússia o Ultramar Português, a qualquer preço e o
mais depressa possível.

3.5 — Bombas e tiros de morteiro

Na noite de 2 de Outubro, o estourar de uma primeira bomba alvoroçou a plateia do


Cinema Tivoli. Ao segundo rebentamento, ocorrido a pequena distância do ecrã, toda a
assistência debandou em pânico.
No dia seguinte, houve disparos de morteiro para a Feira Popular, instalada ao lado da
Avenida Lisboa, e foguetes lançados contra um Jumbo carregado de passageiros, na placa de
estacionamento do aeroporto de Luanda. O gigantesco Boeing 747 escapou por uma unha
negra porque, logo ao primeiro foguete, o comandante apagou todas as luzes e safou-se da
placa segundos antes de ser atingida uma das escadas de acesso, que lhe estavam encostadas.

— Estamos a chegar ao fim — declarava o Baldaque na redacção do jornal, comentando


a notícia da prisão de gente grada, acusada de ligações com os acontecimentos de 29 de
Setembro em Lisboa. — Não te parece?

Encolhi os ombros, sem resposta para dar-lhe. E, como sempre que me sinto enervado e
perplexo, procurei a companhia apaziguante da Mariluz. Mas também ela cedia ao
nervosismo envolvente.

— Parecia tudo tão simples! — lamentou numa voz desiludida.

— Estás doente? — perguntei, notando-lhe os olhos febris.

— Não. Mas passei uma noite abominável. De minha casa ouvia-se perfeitamente o
tiroteio, para os lados do Rangel. E, em certos momentos, parecia uma autêntica batalha.
Minha mãe já fala em partir para Lisboa. Mas meu pai, coitado...
Passei-lhe um braço carinhoso à volta dos ombros, com receio de que rompesse a
chorar.

— ...Teu pai tem mais fé em Angola, não é verdade?

— Talvez. Mas quase não fala connosco. E com certeza lhe custará muito ficar só...
Porque ele terá de ficar, amarrado ao seu trabalho. Não temos nada em Portugal. Não
conhecemos lá ninguém...
— Começaste por dizer que tudo parecia simples... — lembrei eu, mais comovido do que
desejava parecer.
— E parecia, a julgar pelos dados da questão. Angola quer ser independente. O novo
Governo de Lisboa concorda que sim senhor e diz aos movimentos emancipalistas que se
juntem numa frente comum, para receber os poderes soberanos. Parece-te complicado? Mas
o que acontece é que, em vez de uma festa de confraternização, arma-se uma barafunda em
que ninguém se entende. Com a garantia da independência, a capital de Angola em vez de
lançar foguetes dispara tiros, em vez de cantar a vitória, enche-se de luto e de sangue.
Entendes alguma coisa disto?!...
— Procuro aceitar a realidade tal como ela é. O 25 de Abril não é natural de Luanda:
nasceu em Lisboa...

Num dos três dias seguintes, à hora do almoço, chamaram meu pai ao telefone.

— O próprio — declarou ele, ao atender.

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— Sou a pessoa menos indicada para depor neste momento...

— É verdade: trabalho em Angola há quarenta anos. Mas não nasci cá. E a


independência é para os naturais da terra...

— Bem: se põe a questão em termos de eu colaborar ou não no esclarecimento do


público, decida o senhor. Mas, nesta emergência preferia não comparecer a essa tal mesa
redonda. Se insiste em nome dos direitos da informação, irei.

— Está bem. Aparecerei no Restinga às 14h30m. Até logo!

— Que é? — perguntei, logo que ele desligou o telefone.

— Uma brigada da Televisão Portuguesa teima que eu vá a uma mesa redonda sobre a
comunicação presidencial de 27 de Julho. Uma chatice!...
— Não sei porquê. Vai lá, diz o que pensa e acabou-se!
— Se eu disser tudo o que penso, prendem-me! Vou falar o mínimo possível. Queres ir
comigo?

— Com muito gosto! Embora o pai não precise de companhia.

— Sabe-se lá... Ando com os nervos tão arrasados, que já tenho medo de guiar. Prefiro
que tu me leves, se puderes...

— Claro que posso. Talvez até arranje uma «caixa» para o jornal.

Acabámos de almoçar e, na hora aprazada, comparecemos no Restinga da ilha.


A equipa da W integrava três homens: o chefe, sério e de poucas palavras; o operador,
gorducho de cara reinadia, e um sujeito comprido e magro, com um bigode à tártara que lhe
dava um ar feroz.
Com eles estava um moço negro, que meu pai conhecia, porque logo o abraçou
efusivamente.
— Há que tempos que o não vejo! — disse. — Por onde tem você andado?
— No Campo de S. Nicolau...

—Você esteve preso?!

— Durante três anos.


— Palavra que não sabia... — garantiu meu pai, no tom de quem sinceramente lamenta.

Mas quando o meu bom velho me pareceu perder algo daquela sua serenidade
caldeada em muitas dores, foi já sentado à mesa redonda, numa luxuosa vivenda do Futungo
de Belas, ao ouvir a identificação dos presentes. Só então verificou o seu completo isolamento
ideológico, visto que ia depor com dois elementos do MPLA, ambos recém-libertados dos
Campos do Tarrafal e de S. Nicolau, e mais dois dirigentes de um partido surgido após o 25 de
Abril mas solidário com o mesmo movimento emancipalista. Ele, que sempre tinha defendido
a presença de Portugal em Angola...

Notei a rápida crispação que lhe vincou as rugas do rosto. E, no meu íntimo, perguntei
se ele se não julgaria apanhado numa espécie de emboscada.
No entanto, a sua voz pareceu-me calma quando, no fim de todos, declinou o seu nome,
sem mais recomendação que a de residir em Angola há quarenta anos «de maneira tão

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colonialista que se agora tivesse dei regressar à Metrópole teria de pedir emprestado o
dinheiro para a passagem».
— Quer dizer-nos a sua opinião sobre o reconhecimento, pelo Chefe do Estado
(português, do direito à independência -para Angola, Guiné e Moçambique? — perguntou-lhe
o chefe da equipa da TV.
— Desejo primeiro esclarecer que estou aqui depois de repetidamente me ter
confessado a pessoa menos indicada para depor sobre o assunto.

— É verdade — confirmou o homem da TV.

— Já aqui ouvi opiniões que respeito, mas de que profundamente discordo...


— A nossa intenção — declarou o chefe da equipa — é precisamente levar aos
telespectadores de Portugal todo um amplo leque de opiniões.

— O sr. general Spínola — lembrou meu pai — aludiu no seu discurso de 27 de Julho
findo «àqueles que honestamente sonharam uma África lusa». Eu sonhei mais do que isso:
sonhei e preconizei um Portugal do Minho a Timor, com absoluta igualdade para todos os
portugueses, em que um negro da nossa África pudesse chegar até à Presidência da República
e Luanda viesse um dia a ser a capital de Portugal. Esse meu sonho não morreu — foi
assassinado! Considero-me politicamente vencido e acato, de coração aberto e leal, uma
Angola independente, que o pode ser em paz e prosperidade, desde que mantenha a sua
fisionomia multirracial. Fora da multirracialidade, receio que até o próprio nome de Angola
venha a desaparecer do mapa deste continente. E é tudo.

Após os longos segundos de silêncio que se seguiram à fala do velho teimoso, o chefe da
equipa perguntou-me se também queria falar.
— Não senhor — respondi com certo orgulho. — Só meu pai foi convidado.

— Pensa como ele?

— Isso não é preciso para o grande respeito e consideração que lhe consagro.

Despedimo-nos de todos os presentes e regressámos à cidade.

Pelo caminho, perguntei a meu pai se estava arrependido de ter comparecido à mesa
redonda.
— Bem... — disse ele com uma certa ironia — consegui resistir à tentação de os tratar
por «senhores turras». E, ao fim e ao cabo, também eles me não chamaram reaccionário,
fascista explorador, como todos os dias faz certa gente de Lisboa. Não reparaste?
— Reparei, pai. E nunca admiti que assim não acontecesse. Em todos os sectores da
política se pode ser honesto e sincero.
Ele levantou os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados e pareceu-me
concordante com as minhas palavras...

3.6 — «Já agora, mate-me, C...!»

Quando lembrei que o 25 de Abril não é natural de Angola, porque nasceu em Lisboa, a
Mariluz arregalou para mim uns olhos interrogativos, mas não pediu explicações. E ainda bem,
porque, ao dizer tais palavras, obedeci apenas a uma nebulosa intuição, nada fácil de
esclarecer em termos concretos de encadeamento lógico.
Repensando-as agora, até me parece que acertei numa verdade capaz de explicar muita
coisa. No binómio geo-humano Portugal-Angola, o 25 de Abril só tem um aspecto comum:
constitui, para ambos os povos, um marco histórico. Mas a partir dele, até pela própria força
das ideias que o animaram, os caminhos podem divergir até ao ângulo raso.

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O 1.° de Maio de 1974, tão eufórico na capital de Portugal, foi um dia como outro
qualquer nas praias luandenses. E, mesmo para aqueles portugueses aqui radicados, que
sempre se manifestaram genuinamente democráticos e contrários ao regime deposto, a
alegria da recobrada liberdade não tardou a ensombrar-se com as preocupações fundamentais
da sobrevivência nesta terra, de uma etnia continuamente insultada, caluniada e aviltada pela
imprensa, a rádio e a televisão de Lisboa e Porto, na sua quase totalidade.

Já disse que não é preciso ser branco, para compreender a amargura dos brancos perante este
comportamento estúpido e injusto dos homens que agora mandam na sua Pátria. E ainda esta
tarde, ao regressar da redacção do meu jornal, pude ver bem uma imagem bem dramática
desta situação.
Na Bolacha da Alameda Dom João II, ao esbarrar com o sinal vermelho, travei já
demasiado à frente, para continuar a ver as luzes do semáforo e aguardei calmamente o aviso
do carro que me seguia. Esse aviso soou, anunciando a luz verde, e arranquei. Mas logo
estaquei bruscamente, quase a tocar num branco de meia-idade que, de olhos alucinados,
barba crescida e os braços abertos como os de Cristo a oferecer-se à cruz, berrou numa voz
tremendamente amargurada:

— Já agora, mate-me, C...!!!

E o palavrão mais obsceno do vocabulário português atingiu-me em pleno rosto, como


um vómito de sangue e fel.
— Desculpe! — balbuciei impressionadíssimo com aquela máscara de tragédia. E,
abrindo-lhe a porta do carro, pedi-lhe que entrasse, para eu o levar aonde quisesse ir.

Ele entrou, reconheceu-me e curvou a cabeça, na vergonha do seu procedimento.

— Sabe?... — explicou quando já subíamos a Avenida dos Combatentes — Um homem


chega a pontos que já não tem mão nas palavras...
— Nem eu reparei que você ia a passar. Andamos todos avariados... Onde quer que o
deixe?

— No primeiro bar que veja. Preciso de me embebedar...

— Para quê, homem?

— Para esquecer... Eu tinha aí uma pequena oficina no Cazenga. Queimaram-na...

— E não lhe ofereceram passagem para Lisboa?

— Para morrer lá de fome?! Eu nasci em Angola, de pais que também já aqui nasceram e
estão agora no Cemitério do Alto das Cruzes... Desço aqui, se faz favor...
Encostei ao passeio, junto da esplanada Punia dei Este e aconselhei-o a espairecer, falar
com os amigos, reconstruir a sua vida. Embebedar-se era disparate.
— Talvez nem consiga embebedar-me — confessou ele com um riso triste. — Só me
restam 50 paus...

E estendeu-me a mão calejada no duro trabalho de muitos anos.

Com emoção inexprimível, meti-lhe discretamente nela uma nota de 100, num gesto
impulsivo e apenas obediente ao desejo de ajudar aquele pobre português a afogar a sua dor,
ainda que fosse em vinho...

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Conto esta ocorrência, como exemplo das tragédias vivas com que hoje se depara nas
ruas de Luanda.

É por estas e outras coisas do mesmo género que o 25 de Abril tem, em Angola, um
sentido diferente do que lhe dão em Lisboa. Lá, foi apenas uma viragem política. Aqui, iniciou
um processo de marcha para honrosas mas pesadas responsabilidades. O que parecia tão
simples — assumir uma independência que já ninguém nega — fermentou no veneno de
velhos ódios, causando a morte de muitos milhares de inocentes. E ninguém sabe quanto
sangue ainda será derramado num caminho que devia ser juncado de flores, já que representa
o nascimento de uma nova nação, com todas as condições para ser grande e próspera.

Não consigo pensar nestas coisas com a cabeça fria, como tantos aconselham,
principalmente quando já têm garantido o embarque para Lisboa. Ninguém vive com o
coração frio. Nem sei quem possa pensar com os miolos congelados. Todo o homem vivo é
nervos, calor e vibração.
Se há tiros no silêncio das noites luandenses e o sangue derramado torna mais
vermelhas as areias dos muceques, e são aos milhares os habitantes em êxodo e as famílias
sem futuro, como posso eu, que sou apenas um homem dedicado a esta terra e a este povo,
como posso eu contar friamente os que fogem e os que morrem?!
Por Deus, irmãos! Reparem que até os circuitos integrados dum computador aquecem
no trabalho de tais contagens.

E lá me perdi de novo, nesta baldada tentativa de explicar como o 25 de Abril não é,


para os luandenses, o que representa para os lisboetas. Há nesta afirmação um conteúdo real
em que eu sinto o sabor da verdade. Mas se pretendo evidenciar-lhe o sentido concreto, logo
me enredo numa complicada teia de ideias, sentimentos e circunstâncias, que me deixam
perplexo e confuso, como na perdição dum nevoeiro...

Talvez, no entanto, os leitores possam reter, de toda esta baralhada verbal, a ideia certa
de que Luanda não é Lisboa e que o 25 de Abril, longe de lhes apagar as diferenças, só veio
torná-las maiores e mais evidentes.

A pluralidade dos partidos, em regime democrático, possível nas velhas Nações do


Ocidente Europeu, talvez seja irrealizável numa nascente nação da África tropical. As querelas
políticas, perfeitamente naturais e importantes no hemiciclo do Palácio de S. Bento, parecem
por enquanto vazias de sentido para pretos e brancos de Luanda, que acordam agora com o
crepitar das metralhadoras, ou são forçados a abandonar os seus empregos, ou ignoram se o
dia da independência será uma festa de confraternização ou um banho de sangue.

Perante este acervo de interrogações e problemas essenciais, o leque das ideologias


políticas é um objecto de luxo, bem dispensável pela grande massa dos que vivem do seu
trabalho e nada mais pretendem do que a independência no progresso e na paz. E os cravos
vermelhos do 25 de Abril, que nunca foram aborígenes de Angola (nem mesmo de Portugal)
até podem ser acusados de uma transplantação colonialista e contrária à genuína
autenticidade da terra angolana.

3.7 — O João Sujo

Moro num bairro sossegado, onde a regra de vida é uma decente mediania, mas
também há gente pobre e um ou outro rico em figuras de excepção.

Em dias do meu descanso semanal, que são variáveis na rotação dos turnos do meu
serviço, costumo sair, num pequeno passeio a pé, depois do pequeno-almoço.

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Como parceiro certo, segue-me um cão grande, não sei de que dono nem de que raça,
com o pêlo encarapinhado dum caniche malfeitão e uns olhos leais e camaradas.

Diz meu pai que os donos lhe dão banho com normal regularidade, mas o bicho corre
logo para uns barrocais próximos e ali se rebola consoladamente, até ficar mais enlameado
do que um suíno ao sair do espojadouro. De positivo, eu nunca o vi limpo e, por isso, lhe
chamo João Sujo, nome que ele aceita, arreganhando os dentes, numa espécie de riso
compreensivo e bom.

Ora, não sei por que silenciosa e discreta amizade (que gostosamente declaro
recíproca), o João Sujo alinha sempre comigo nesses passeios matinais, em dias limpos do meu
trabalho de jornalista.

Não se encosta às minhas pernas, porque bem sabe como está


enlameado, nem estende a língua para a lambidela do sabujice, porque é um bicho rude,
franco e alérgico a lisonjas políticas e artes correlativas.

Ele acompanha-me para outra espécie de demonstração. A duas centenas de passos de


minha casa, ao lado direito de uma rua a subir, dentro do quintal de uma vivenda de luxo, há
três canzarrões dálmatas, sempre muito limpos e asseados, no seu pêlo branco salpicado de
bolinhas pretas. E é com a mira neles que o João Sujo me segue, para mostrar a este seu
amigo, em particular, e a todo o bairro em geral, o seu infinito desprezo de plebeu por aqueles
três empertigados fidalgos.

Lança-lhes, ainda de longe, o seu desafio, bem claro e três vezes repetido, como valente
cavaleiro que desfralda a sua bandeira de guerra, ao avistar o castelo do inimigo fanfarrão. E
logo os três lordes comparecem ao portão, alinhados como soldados em parada, solenes como
ministros em despacho, arrogantes e pimpões como um triunvirato de ditadores. E dignam-se
mirar o intruso, respondendo com três latidos serenos e compassados ao ladrar viril daquele
enxovalhado proletário. Este acelera o ritmo da ladração, investe com o focinho contra a
fronteira de ferro que o separa dos inimigos, mostra-lhes a dentuça afiada. Os três dálmatas
perdem a sua compostura de bichos-de-bem, eriçam o pêlo fino, revelam os seus genuínos
dentes de cão. E é, durante minutos, uma terrível batalha de insultos, entre o podengo vilão e
os três grão-duques da Dalmácia, agora iguais nas dentuças ferozes, encharcadas pela baba do
ódio.

O João Sujo aguenta-se lindamente, não cede um milímetro da sua posição, tem mesmo
o focinho para além da raia definida pêlos varões de ferro do portão e algumas vezes
consegue tocar, com os seus dentes vorazes de cão da rua, as orelhas bem lavadas dos
enfurecidos dálmatas. E são eles que vão cedendo terreno, recuando ora um ora outro, nuns
ganidos que me soam a pedidos de socorro.
Será com medo dos dentes arreganhados do João Sujo? Será para não conspurcar os
seus finos pijamas às bolinhas no contacto com aquele mísero rafeiro enlameado?
Não sei. Mas são eles que fogem, refugiando-se no seu luxuoso canil, todo em ferro
esmaltado a branco.
O João Sujo tem então, para mim, um olhar de esguelha, como quem me pisca o olho, e
retira com dignidade, não sem primeiro alçar a perna contra a ombreira do portão, para regar
o local da vitória.
Nesta cena, tantas vezes repetida, abstenho-me de tomar partido com gesto de apreço
ou palavra de estímulo. Assumo a atitude neutra dum observador imparcial. Mas não sou. Cá
no meu íntimo, sinto que ficaria danado se o João Sujo se deixasse vencer e escorraçar. Os três
limpíssimos dálmatas nunca me ladraram nem morderam. Mas, instintivamente, não gosto do
seu ar altivo, autoritário e mandão.

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Sempre as minhas simpatias foram para os mais humildes, sobretudo quando são
corajosos. E nesta birra do João Sujo contra os três empertigados guardas da vivenda de luxo,
não há um miligrama de inveja — é tudo vontade de se afirmar, de mostrar que também
existe, de provar que não tem medo.
Coisas que eu gosto de ver...
Nessa manhã, ainda sorria da cena do João Sujo, no seu último acto de vingança
contra a prosápia dos três dálmatas, quando encontrei o eng.° Balanta, que vinha de comprar
o jornal.
— Quais são as últimas? — fiz eu, na pergunta habitual dos dias que correm.
— Chega amanhã a delegação da FNLA — informou ele com voz de caso.
— É uma consequência do acordo de cessar-fogo, há dias celebrado em Kinshasa —
insinuei.

— E os outros movimentos? — lembrou ele.

— Agora só falta o MPLA...

— Acreditas na possibilidade da frente comum?

— Desde que os três movimentos se juntem em Luanda, acabarão por se entender. Por
vezes é só uma questão de palavras...
— Neste caso, não é. Tenho amigos nos dois movimentos e sei que os seus ideários são
muito divergentes, quase antagónicos.
— Mas combateram pelo mesmo objectivo fundamental: a independência. Não me
parece complicado que todos concordem em pegar na bandeja que o Governo de Lisboa agora
lhes oferece.
— Não parece, mas é — teimou o engenheiro.
— A FNLA e a UNITA já deram o exemplo.
— É fácil um entendimento com o dr. Jonas Savimbi, que me parece o espírito de
conciliação em pessoa e não está sujeito a pressões do exterior. No MPLA há outros
problemas.
— Continuas pessimista...
— Talvez, mas com sobejas razões. E só desejo que o futuro desminta tudo quanto hoje
receio. Pelo menos, não imitarei esse desgraçado que ontem varou o coração com uma bala,
no momento em que devia embarcar para Lisboa.
— Não sabia disso. Quem foi?
Ele disse-me o nome: exactamente o nome daquele branco que há dias, na Alameda
Dom João II, quando se viu à frente do meu carro que arrancava, pediu que o matasse,
sublinhando o pedido com o palavrão mais obsceno do vocabulário português.
Senhor Deus! Tanta tragédia que hoje caminha pelas ruas desta minha bela e querida
cidade!...

49
AS BOAS PALAVRAS

4.1 — A chegada das delegações

A chegada a Luanda da delegação da Frente de Libertação de Angola (FNLA) passou


quase despercebida da grande massa da população. Veio, instalou-se e o seu chefe, Heidrich
Vaal Neto, começou a falar num tom de moderação e maturidade política, surpreendeu muita
gente, lembrada da dureza deste Movimento, durante a segunda quinzena de Março de 1961.
Na redacção do meu jornal, o Sousa Quevedo pareceu-me logo conquistado.

— Fala muito bem, este homem! — declarou sem hesitações.

— É um político — sentenciou o Santos Gouveia, reticente. — E, se é inteligente, um


político sabe levar a água ao seu moinho.

— Já é saber alguma coisa — disse o Quevedo. — E eu, dos políticos da última colheita
estou farto de ouvir disparates, quando não são baforadas de ódio. Este procede doutra
maneira.

— Fala de outra maneira — corrigiu o Santos Gouveia sem disfarçar a sua hostilidade. —
Espera pelas obras.
— Claro que todos devemos esperar pelas obras — concordou o outro. — Mas até essa
esperança morre para os que desconfiam de toda a gente.

— Eu não desconfio de toda a gente — afirmou o Quevedo.

— Confias no MPLA — insinuei eu do meu lado.

— E tens alguma coisa com isso?! — refilou o Santos Gouveia, pronto para a
contestação.

— Nada, menino. Absolutamente nada — declarei com ênfase. — Sempre fui


respeitador das opiniões alheias. Mas, se não te importas de ouvir, também gostei das
palavras do dr. Vaal Neto. Não há ódio nelas, e o ódio pode estragar completamente a
independência de Angola.

— Já te esqueceste dos ataques da UPA em 1961? — perguntou ele de rompante.


— Todos temos muito que esquecer. E se queremos a paz, é tolice continuar a lembrar
coisas da guerra.

— Há muitas maneiras de guerrear...

— Bem sei. Mas nunca a guerra deixa de ser aquele monstro de que falava o padre
António Vieira. Se estás em maré de recordações trágicas, podes lembrar as atrocidades da
última conflagração mundial, cometidas por alguns dos mais civilizados povos do mundo... E
há ainda outra coisa que tu deves saber: é que os homens mais duros na guerra são, por vezes,
os mais compreensivos na paz. Não é verdade?

50
Vieram depois as delegações do MPLA e da UNITA. E aí, as massas populares
manifestaram-se em pleno.
A recepção aos representantes do MPLA foi um autêntico delírio. E, embora sem tanta
gente, os filiados, aderentes e simpatizantes da UNITA, dois dias mais tarde, manifestaram um
entusiasmo igual.
Em ambos os casos, logo que o avião tocou a pista, a multidão venceu todas as
barreiras, invadiu a placa de estacionamento e transformou a escada de acesso ao transporte
aéreo num incrível e barulhento cacho humano.
Encarregado da reportagem, vi-me inteiramente naufragado naquele mar de gente,
perdi-me do meu fotógrafo e senti-me em riscos de sufocar na terrível compressa daquela
vaga humana, que irresistivelmente rolava ao encontro dos recém-chegados.
A delegação do MPLA esperou mais de uma hora pela possibilidade de desembarcar. E,
seguidamente, correu verdadeiro perigo quando os mais eufóricos se apinharam sobre o
autocarro que a transportava à sala dos VIPS e a assistência receou que o tejadilho abatesse.
Tudo se repetiu à chegada dos delegados da UNITA, com a agravante de alguns
incidentes, ocorridos antes, pela acção nefasta de agitadores estranhos ao Movimento.
Quanto eu pude julgar, na confusão em que me vi envolvido por ambas as partes, a UNITA
beneficiou de maior concorrência da etnia branca que, misturada à população negra, acom-
panhou a delegação até às suas instalações, num impressionante cortejo automóvel, com o
habitual grazinar das motorizadas e a sinfonia das buzinas.

Em minha casa, logo após a chegada do MPLA, meu pai saudou-me com um riso triste:
— Deves ter passado um mau bocado, rapaz!
— Foi uma cena indescritível —declarei, ainda aturdido.
— Eu ouvi tudo pela rádio. Quando o repórter da Emissora Oficial emudeceu de
repente, cheguei a pensar numa tragédia.

— Felizmente, tudo acabou bem.

— Um problema tremendo!

— Que problema?

— O controlo das massas populares...

— Gostaria que explicasse melhor...

— Basta que tires as conclusões do que se passou. A multidão quase impedia de


desembarcar precisamente aqueles que tanto desejava ver e abraçar. E isto, apesar dos
apelos dos seus líderes...

— O povo é assim mesmo.

— Pois é. Mas se isto acontece quando as massas populares vibram de alegria, imagina
o que será se um dia reagirem pelo ódio.
— Os chefes dos movimentos emancipalistas também sabem disso. Todos eles querem
que a independência se realize em paz.
— Acredito. Mas querer não é poder. Tudo depende desta fase de diálogo e
mentalização em que vamos entrar. Os três movimentos precisam de conjugar todos os seus
esforços nesta tarefa complexa e difícil. Mas parece que também estão divididos entre si.

51
— Juntam-se agora em Luanda. Isso ajudará muito, se não lhes faltar uma boa
colaboração dos que não pegaram em armas, mas querem esta terra próspera e feliz.
Devemos esperar, pai! E ajudar...

— Pois claro! E que Deus confirme a nossa esperança! 4.2 — «Ê por todos,

patrão!»

Desprezando as tonalidades que as ideias assumem no pensamento de cada homem,


pode afirmar-se que nos três movimentos emancipalistas, agora presentes em Luanda através
das suas delegações, existem os três rumos tradicionais da política: o Centro, a Direita e a
Esquerda. E é segundo esta definição de valores que se vai dividindo a parte da população que
não pegou em armas e constitui a esmagadora maioria dos pretos e mestiços de Angola.
Recordo, a propósito, a resposta de um velho jardineiro bailundo e velho amigo de meu
pai, a quem perguntei se era da FNLA, do MPLA ou da UNITA.
— É por todos — declarou logo ele, lançando olhares receosos para todos os
lados. — Agora, o povo tem de ser por todos os que lutaram.
Fiquei a pensar nas sibilinas palavras daquele velho assustado. Nisto deram as
promessas de uma livre e aberta consulta às populações, na base de um homem-um voto.

Todos os principais responsáveis pelo 25 de Abril prometeram repetidamente que


seriam os povos do Ultramar Português a decidir o seu futuro. Mas agora afirmam que os
movimentos emancipalistas (os turras, evidentemente...) são os únicos representantes dos
povos de Angola. E comportam-se de tal modo que a grande massa dos angolanos, apavora-
dos e desprotegidos, numa terra sem autoridade e sem lei, já se dizem de acordo com quem
lhes parece mais forte, porque pode matá-los sem que ninguém lhes valha.

Será este o prometido referendo?!

4.3 — As inevitáveis mudanças

Antes de mais nada, um homem deve compreender os seus semelhantes. E não os


compreenderá, fechando-se no círculo das suas convicções, por mais sinceras que sejam,
como quem se defende com a barreira de altos muros ou com as pontas dilacerantes do
arame farpado.
Abrindo os ouvidos do corpo e do espírito às ideias de quem lhe fala, um homem não
arrisca a sua verdade subjectiva: apenas a põe em prova, confrontando-a com uma verdade
diferente, como quem tempera o aço ao rubro, mergulhando-o na água fria.
Há quem não saiba escutar, porque as suas ideias são tão vivas que repelem o diálogo.
Defeito ou qualidade? Nem sequer me permito julgar. Mas não gosto de falar a quem só ouve
a própria voz. E por isso me calei perante o Gouveia, com quem não sei discutir, embora seja
seu verdadeiro amigo.
Não duvido da sua inteira sinceridade, quando afirmou que esta é a hora de todos os
angolanos optarem por um dos movimentos de libertação. Compreendo mesmo o plano de
honestidade em que se apoia esta sua opinião. E até admito que seja ele quem está na razão,
para o que subjectivamente basta estar de acordo com a sua consciência.

Eu faria o mesmo, se assim o tivesse decidido, aberta ou clandestinamente, antes do 25


de Abril. Mas a verdade é que nessa altura, eu não decidi. Decidir agora quando, nos
Movimentos, as semelhanças interessam mais do que as diferenças, seria da minha parte uma
atitude oportunista, que é muito diferente de ser uma atitude oportuna.

Estou certo? Estou errado? Estou a dizer o que penso. E é tudo.

52
Digo o que penso, mas continuo de olhos bem abertos para o que acontece à minha volta e
com o espírito preparado para as inevitáveis mudanças. Mudanças que já começam a ver-se
nesta cidade capital. E, principalmente, no seu rosto humano.
No espaço de poucas semanas, o povo dos subúrbios, que representa mais de dois
terços da população luandense, emergiu da penumbra em que vivia. O aumento do poder de
compra, resultante dos primeiros aumentos nos salários mais baixos, ampliou a sua influência
no mercado de consumo. E já com a certeza de vir a ter uma representação autêntica no
exercício do poder político, entrou activamente no diálogo das ideias, com uma eloquência
bem característica dos povos bantus.

Muitas surpresas aconteceram já neste domínio, pulverizando velhos preconceitos ou


ideias construídas sobre a resignação de gente que durante séculos refreou as palavras. A
primeira, talvez a maior dessas surpresas, veio com a chegada das delegações dos
movimentos emancipalistas, quando se viu como sabiam falar de paz e enfrentar as perguntas
mais ardilosas dos jornalistas, esses mesmos homens que, na opinião de muitos, só sabiam
dar tiros e montar emboscadas, na dura estratégia da guerra de guerrilhas.

Mas também depois se viu como, de entre as massas populares, se erguiam oradores de
inesperado poder comunicativo, chefes de bairros com notáveis qualidades de organização e
bom senso, toda uma extensa gama de valores humanos que prudentemente se refugiavam
no anonimato do silêncio.

A minoria branca, quase toda se repartiu entre dois exageros: ou pulou para a frente dos
Movimentos, agitando-se em atitudes de mais papista que o Papa, ou caiu numa atitude de
expectativa, cheia de ansiedades e preocupações, amargurada pela injusta campanha que lhe
move a imprensa de Lisboa e Porto, resignada a colaborar com as novas autoridades, pedindo
apenas o privilégio de continuar a viver e a trabalhar nesta terra.

4.4 — A greve dos camionistas

Num dos primeiros dias de Novembro de 1974, chegou à Cela uma enorme coluna de
camiões, logo rodeados por grande multidão, alarmada pela notícia de que tinham sido
atacados.

— Não — esclareceu o motorista Manuel António Luís do Pranto. — Nós não fomos
atacados. Mas, a alguns quilómetros do Dondo, encontrámos o cadáver do Pedro Calha, que
ontem tinha partido sozinho, com o seu camião carregado de cimento, a caminho de Nova
Lisboa. Antes de o matar, vazaram-lhe os olhos...

E, a terminar aquela história de horror, gritou desvairadamente:

— Quem nos protege, a nós que só queremos trabalhar?! Apareça alguém, do Exército
Português, do MPLA, da FNLA ou da UNITA, apareça alguém para defender quem precisa de
ganhar o pão de seus filhos!...

Como ninguém respondesse a este e a outros apelos semelhantes, os camionistas, a


meados desse mesmo mês, efectuaram uma breve paralisação dos transportes rodoviários,
como aviso, e anunciaram que, se até ao fim de Novembro lhes não garantissem um mínimo
de segurança, não sairiam mais para a estrada.

Esta declaração saiu no meu jornal, com grande relevo. E, logo de manhã, fui até à
Portugália, na mira de comentários que me ajudassem a escrever um artigo para o dia
seguinte.

53
— É uma brincadeira de mau gosto — sentenciava o Silva Carvalhais, modesto
empregado de escritório que repentinamente descobrira a sua vocação política.

— É simplesmente uma greve — rectificou o Sanches Quintão, que o malogro do 7 de


Setembro, em Lourenço Marques, tornara conflituoso. — E a greve, agora, é um direito dos
trabalhadores. Ou não é?!
— Neste caso, constitui um crime contra a economia de Angola — rosnou o Carvalhais.
— E quando a UNTA decide impedir a descarga dos navios acostados ao Cais de Luanda,
o que é?! — refilou o Quintão.
— Tudo isto é lamentável — interveio um despachante oficial. — Por exemplo, essas
paralisações da actividade portuária já nos estão a tornar a vida mais cara.
— A paralisação da camionagem pode redundar numa autêntica tragédia — declarou o
Carvalhais. — São cerca de 2400 camionistas que ameaçam entrar em greve em 30 do
corrente...

— Mas note que apenas pedem um mínimo de protecção para eles, na estrada, e para
as famílias que deixam nas suas casas em Luanda — lembrou o despachante. — Parece-me
justo.

E voltando-se ostensivamente para mim, acrescentou:

— Que nos diz o sr. jornalista?

— Repito as suas palavras de há pouco — respondi sem hesitações. — Tudo isto é


lamentável. Mas também representa um sério aviso para os novos governantes.

Angola tem de saber aproveitar todos os valores humanos que actualmente constituem a sua
força de trabalho. A greve anunciada para o fim deste mês, a verificar-se, pode trazer
consequências terríveis, porque deixará Luanda no resvaladouro para a fome. E, no entanto,
trata-se apenas de 2 368 camionistas, quase todos brancos, num pequeno sector de acti-
vidade. Assim se verifica como é difícil prescindir dos meios humanos de que Angola
presentemente dispõe. Todos são bem poucos para as imensas tarefas do futuro.

— Irra, que grande discurso! — exclamou o Carvalhais, com alguma ironia, batendo as
palmas.

— Não é discurso: é apenas uma opinião que me pediram — emendei com veemência.
— Angola funciona como um delicado e complexo organismo vivo, com sectores essenciais,
onde qualquer lesão afecta a saúde de todo o conjunto. Se os responsáveis pelo futuro desta
terra não compreenderem a tempo esta realidade, não tardará muito que tenham de
enfrentar gravíssimos problemas...

Entretanto, é justo dizer que, nessa emergência, os responsáveis mostraram


compreender a situação.
Na iminência de uma ruptura que poderia começar com a atitude dos camionistas, tanto
os membros da Junta Governativa como os delegados dos movimentos emancipalistas
conjugaram os seus esforços para convencer os camionistas a continuar a garantir a
circulação de produtos e mercadorias essenciais à vida das populações.

Preocupadíssimos, talvez amedrontados com a perspectiva de um levantamento geral da


grande massa dos angolanos brancos, pretos e mestiços, evitaram todos as palavras ou
atitudes que pudessem a c i r r a r os ânimos, prometeram tudo, concordaram com tudo.

54
E a greve dos camionistas não se concretizou.

4.5 — «Se começam aos tiros uns aos outros...»

A presença das delegações dos três Movimentos em Luanda parece estar a ser
benéfica em muitos aspectos.
O Rosa Amaral, cofiando a franja loura, concorda que sim senhor, que talvez haja muita
verdade nisso, desde que se jogue com os máximos e os mínimos e se obtenha a média
ponderada.
Com estas palavras sibilinas, assim filtradas pela barba decorativa, quer o meu colega
dizer que o encontro dos grupos que se hostilizaram nas matas também envolve certos riscos.
— Se começam aos tiros uns aos outros, é o diabo! — avisa ele com evidente
preocupação.

— E porque hão-de começar aos tiros?! — perguntou a Mariluz que assistia à nossa
conversa. — Vê só o que dizem as siglas: MPLA — Movimento Popular de Libertação de
Angola; FNLA — Frente Nacional de Libertação de Angola; UNITA — União Nacional para a
Independência Total de Angola. O grande objectivo é sempre o mesmo.

— Mas há as circunstâncias de modo — lembrou o Rosa Amaral. — Os três Movimentos


querem a mesma coisa, mas de modo diferente. E é daí que podem nascer as complicações...

— As divergências ideológicas só azedam com o vinagre do facciosismo — opinei eu. —


Há muita gente que sabe discutir lideras sem as transformar em pedradas.
— Mas não é preciso ser faccioso para sustentar vigorosamente um determinado tipo
de regime político. Basta estar convicto da sua verdade. E há convicções igualmente sinceras
nas ideias mais antagónicas.
— Isso é verdade — concordei. — Até posso demonstrar com um facto recente. Tive há
dias em minha casa um moço estupendo, tão delicadamente atento ao que eu dizia da
conjuntura angolana, que despejei todo o meu saco de esperanças, dúvidas e receios, com
aquela satisfação de falar que sempre nasce de haver alguém que parece escutar-nos com
agrado. E o meu visitante tinha um sorriso calmo no rosto simpático... Falei, falei, falei, até
que julguei correcto pedir-lhe também a sua opinião. E sabem o que aconteceu?

— Ele abundava nas mesmas ideias... — apostou a Mariluz.

— Ele estava nos antípodas do meu pensamento. E assim mo foi dizendo, primeiro num
sereno encadeamento de raciocínios, depois com tanta propriedade de termos, com tal poder
de comunicabilidade, com tão evidente e forte convicção, que imediatamente me apercebi
estar diante de um tribuno, completamente seguro da sua verdade e brilhantemente dotado
para a transmitir a outros homens. Ouvi dele as afirmações mais contrárias às minhas ideias,
mas sempre fascinado pelo calor em que as envolvia. Desmantelou, uma por uma, as
grandes realidades em que firmemente me apoio — Deus, Pátria, Família — sem me atingir
pessoalmente nas minhas convicções. Simplesmente disse o que ele próprio pensava, os ando
do mesmo direito que antes me concedera, evitando magoar-me e sem tentar qualquer forma
de aliciamento. Formidável!

— Mas, afinal, que era ele? — quis saber o Rosa Amaral.

— Disse-mo com simplicidade, no fim da sua longa dissertação: declarou-se um


«anarquista puro».

— Foge! — exclamou o meu colega, piscando um olho à Mariluz. — Olha com quem
anda metido este teu amigo!...

55
Não gostei do tom daquelas palavras, nem da piscadela de olho que as sublinhou, nem
do sorriso com que a Mariluz correspondeu. Não gostei de nada disso, nem consegui descobrir
a razão de não gostar... Senti-me confuso e perplexo e reagi em conformidade:
— A que vem tamanha espantação, pá? Quis apenas dar-te um exemplo real da
possibilidade de convicção sincera em todos os quadrantes da política...

— Está bem — condescendeu o Rosa Amaral, desinteressado de abrir controvérsia. —


Mas a verdade é que fugimos do primeiro assunto que era importante. Há, entre os
movimentos emancipalistas, ideologias que vão desde a direita à esquerda, passando pelo
centro. Juntam-se agora em Luanda e noutras cidades de Angola, com homens armados. Tu
dizes que é um facto benéfico. E eu digo que veremos...

— Pois, esperemos para ver, seguindo a pragmática dos norte--americanos.

E assim se encerrou a questão, porque, sem saber como, eu tinha perdido a vontade de
continuar a conversa.

56
O ACORDO DO ALVOR

5.1 — Vaivém nos céus africanos

Fui encarregado da cobertura do meu jornal na cimeira do Algarve e, embora avisado


apenas noventa minutos antes da hora da partida, ainda tive tempo de informar a Mariluz,
que me apareceu no terminal da FAP quando já chamavam para o avião que nos levaria a
Lusaka, para daí tomar o rumo de Faro, com escala na ilha do Sal.

Mas a moça vinha com o Rosa Amaral.

E novamente ouvi, no meu íntimo, aquela voz de alerta, que soara pela primeira vez, no
fim da história do anarquista, quando o meu camarada de redacção, piscando o olho à
Mariluz, tinha exclamado:

— Foge! Olha com quem anda metido este teu amigo!

E, nesta atitude, bem como no sorriso com que a moça correspondeu, quis o diabo que
eu visse (ou suspeitasse] uma secreta cumplicidade, qualquer coisa como a ofensiva
concordância de ambos na ideia de que eu era, afinal, um desses ingénuos tolinhos que
acreditam na boa fé de toda a gente.

Mobilizei todas as minhas reservas de bom senso para travar dentro de mim a suspeita
maluca. Ergui contra ela montes de argumentos, toda a lealdade da moça e todos os laços de
amizade e camaradagem que me ligavam ao Rosa Amaral. Com algum êxito, mas não
completo nem perdurável.
A suspeita renascia, ao ver os dois novamente juntos para assistir à minha partida,
tratando-se por tu (nem reparava que eram amigos de infância...), revelando uma intimidade
que só agora me parecia excessiva e comprometedora. Que haveria entre eles?... E, de
repente, concluí que estava cheio de ciúmes.
— Ora viva o menino que nasceu num fole! — saudou o Amaral, no seu jeito aberto de
sempre.

— A que vem a piada?!

— Não é piada nenhuma: é inveja, invejinha reles, meu filho! Ir à Cimeira do Algarve não
é para toda a gente...

— Ainda estás a tempo de ir na minha vez.


— Bolas para o disparate, pá! — reagiu ele. — Bem sabes que sou teu amigo. E se estás
com o estômago azedo, vou buscar-te um copo cheio de sais de frutos...

— Não gostas de ir? — interveio a Mariluz, em missão de paz.

— Não gosto de ir para longe de ti — declarei, envergonhado do meu mau humor.


Ouviu-se nova chamada dos passageiros, tentei estrangular aquela ideia diabólica num
apertado abraço ao Rosa Amaral, dei à Mariluz um beijo longo e peremptório de resoluto
proprietário e lá fui para o Boeing 707, marcado com a cruz de Cristo.

O vaivém dessa viagem veio depois na imprensa de Luanda e ainda estará presente na
memória dos leitores desta baralhada narrativa, que já nem sei se é história, ou crónica, ou

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romance, ou somente a confissão plena e sincera de um homem apanhado no torvelinho de
muitas interrogações.

A Lusaka tinha chegado o Presidente do Malawi e havia no aeroporto um dispositivo


militar de muito aparato.
Talvez por que algo tivesse falhado na programação da nossa viagem, ninguém nos
esperava. E o fotógrafo Pedro Gil Vaz, que da porta do avião disparou a sua máquina, foi logo
preso por soldados que lhe confiscaram o filme, embora com bons modos e soltando-o pouco
depois.
Ficámos duas horas dentro do avião, até que ouvimos o comandante anunciar que
regressávamos a Luanda.
Aterrámos às 2 da manhã seguinte e retomámos o mesmo rumo cento e cinquenta
minutos mais tarde.
Então, toda a engrenagem funcionou bem. Os drs. Agostinho Neto e Jonas Savimbi
embarcaram com as suas comitivas e o avião, desde a véspera transformado em lançadeira de
tear, rumou novamente para o Atlântico, sobrevoou Luanda pelas 15 horas, fez a sua prevista
escala técnica no Aeroporto da ilha do Sal e daí galgou até às brancas areias de Faro.
Um dos assessores do almirante Rosa Coutinho, homem com muita experiência das
vicissitudes humanas, talvez tenha adivinhado o meu drama interior e meteu conversa:
— Você vai muito calado, moço...
— Sou pouco falador dentro dum tubo de alumínio — desculpei-me eu. — Talvez sofra
de claustrofobia...
— Há um processo de combater isso, homem! É abrir os largos espaços do pensamento.
Que pensa você da Cimeira?

— Penso que do alto dela se poderá ver melhor o futuro de Angola.

— E eu espero que assim seja. Tenho fé no povo angolano.

— Também eu — disse ao velho senhor. — Mas a fé não basta: é indispensável a


coragem de defender aquilo em que acreditamos. E tudo isso pode começar na Cimeira.
— Dizer que pode é uma forma de talvez. A sua fé não parece isenta de receio...
— Eu sei — respondi com intenção. Uma intenção que o meu companheiro de viagem
não podia adivinhar, pois ignorava a espécie de veneno que se infiltrara no meu sangue.

5.2 — A/o aquário

Ao descer no Aeroporto de Faro, deparámos com um dispositivo militar ainda mais forte
e severo do que em Lusaka.
— Cautelinha com a máquina — segredei ao Pedro Gilvaz, o fotógrafo que estivera
preso, durante alguns minutos, na capital da Zâmbia.
— Não é preciso recomendar — disse ele com um riso amarelo. — Sempre aprendi bem
as lições.
Levaram-nos para o Hotel Dom João II, onde encontrámos camaradas de toda a parte do
mundo. Todos ávidos de notícias. Cada vez mais ávidos, como sempre acontece com as coisas
que não há.
Do luxuoso Hotel da Penina, onde funcionava a Cimeira, nada transparecia. E as tropas
do COPCON fechavam a zona num círculo intransponível. Só o Gilvaz, que afinal esquecera a
lição, usando uma teleobjectiva conseguiu a primeira fotografia com sentido de furo
jornalístico. Mas só o disse quando já a tinha expedido para o seu jornal.
Cada um de nós ia telegrafando comentários, mais ou menos apropriados, para manter
a expectativa dos leitores. A tónica do verbo encher era o clima cordial em que decorriam as
negociações. E eu também bati essa tecla com a consciência de transmitir a verdade.

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Não sabíamos mais nada. Elementos da informação dos três Movimentos vieram
sucessivamente ao Hotel Dom João II explicar a razão do silêncio. E a sua visita deixou de boca
aberta muitos jornalistas, portugueses e estrangeiros, que tinham um razoável conhecimento
do MPLA mas consideravam insignificante a importância da FNLA e da UNITA. E, em certos
casos, julgando que lhes seria fácil usar a técnica das perguntas capciosas, esbarraram com
interlocutores bastante cultos, sempre delicados e prontos nas respostas, mas dizendo apenas
o que queriam dizer e sabendo temperar com um sorriso algumas boas lições que deram a
quem pretendia atraí-los ao terreno resvaladiço das declarações inoportunas,
— Têm muita categoria! — disse-me, num desses casos, o repórter de um diário
lisboeta.
— Pois que imaginava você? — fiz eu, sem esconder a minha vaidade de angolano.
Devo ainda esclarecer que, durante esses dias de quase férias no Hotel Dom João II, a
que chamávamos «o aquário», por ali nos sentirmos como peixinhos de águas presas,
completamente isolados dos acontecimentos da Cimeira da Penina —, durante todos esses
dias de frustração jornalística (onde estavam as notícias para transmitir?...), a minha capa-
cidade de observação e análise esteve bastante obscurecida pela nuvem tempestuosa do
ciúme.
Lá longe, no calor tropical de Luanda, certamente haveria repetidos encontros entre a
Mariluz e o Rosa Amaral. E, contra todas as vozes do bom senso, eu torturava-me a imaginar o
tema das conversas.
O Rosa Amaral era um rapaz simpático, inteligente e com fama de atrevido. E, no meu
desvairamento, chegava a perguntar se a Mariluz não poderia cansar-se de uma espera sem
termo à vista, se não interpretaria como fraqueza de amor a minha continuada abstenção de
maior intimidade física. Toda ,a mulher é um ser complexo, para quem o amor é a força maior.
A pressa da conquista ofende-a. Mas também as mais honestas perguntam, por vezes, que
paixão é a do homem que não assume a responsabilidade de saltar certas barreiras.

Na torrente destes pensamentos, lembrava-me de certas condescendências dela, em


momentos de maior abandono, da sua pronta resposta aos meus beijos mais possessivos, da
tremura da sua voz ao pedir-me que «tivesse juizinho».
Ficava então convencido de que ela cederia se eu insistisse. Algumas vezes, à minha
desistência, perante a sua instintiva defesa de donzela, correspondia com a iniciativa de um
novo beijo fremente e apaixonado. E era depois bem frágil e hesitante o seu gesto de me
afastar com as suas mãos de amorosa. Tão frágil e hesitante que mais parecia uma nova
carícia...
Apelava para toda a lealdade da minha promessa ao pai Calabriz e começava a falar do
meu jornal, dos estudos dela, de qualquer coisa que me distraísse daquela obsessão. Ela sorria,
com um ar de compreensão resignada. Parecia-me agora que era de compreensão resignada...
E — tenho de confessar tudo — lamentava não ter chegado àquela intimidade física total, que
realiza a plenitude do amor entre homem e mulher.

De nada me valia combater esta ideia: não conseguia vencê-la.

5.3 — Negócio de contrabando

Durante a minha estadia no Algarve, recebi apenas uma carta da Mariluz. Breve e
simples, dizia-me, no essencial, que sentia saudades de mim, que em Angola se vivia uma
grande esperança na Cimeira da Penina e que passava o tempo livre a perguntar aos meus
amigos se tinham notícias minhas e todos lhe respondiam que não. Incidentalmente, per-
guntava se as turistas estrangeiras dos hotéis de luxo do Algarve eram assim tão atrevidas
como lhe dizia o Rosa Amaral.

E foi principalmente nisto que eu reparei. Nem o toque de ternura, bem patente nas
palavras da missiva, nem o final «com beijos da tua Mariluz», nem o facto concreto de ser ela

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a primeira a escrever-me, nada disso diluiu o fel daquela curta referência ao homem cuja
influência eu desvairadamente ampliava e temia.

E logo esta maldita imaginação, que algumas vezes quase me faz perder o sentido do
real, se pôs a trabalhar raivosamente na interpretação daquelas poucas palavras.

Com que danada intenção o Rosa Amaral falava à minha prometida noiva dos assaltos
femininos que eu poderia sofrer nas praias algarvias?

Esta pergunta ciumenta foi analisada, explorada e dissecada, até às suas últimas
consequências, durante toda uma noite de insónia. E cheguei a considerar esse bom camarada
de redacção como um traidor infame. Ele sabia que eu não era tão santo que enjeitasse os
bons pitéus femininos, sempre possíveis para os jornalistas em digressão pêlos apodrecidos
países do Ocidente. Elas começam por pedir as últimas notícias e, a poucos minutos de
conversa, logo deixam desapertar o soutien...

Mas o Rosa Amaral também tinha boas provas do meu amor por aquela rapariga, tão
intenso e sincero que em nada podia ser afectado pelas efémeras aventuras sexuais do
homem-macho. E no caso presente, nem isso tinha havido. As insinuações do Amaral eram,
não só malévolas mas também gratuitas, porque vivi no Hotel Dom João II, tão casto como um
José do Egipto.
De regresso a Luanda, no auge da minha crise de ciúme, cometi um dos actos mais vis desta
minha vida ainda em começo: não avisei a Mariluz e passei o dia inteiro a espreitá-la. Segui-a
desde a sua casa à Universidade, esperei-a à saída das aulas. Não a surpreendi a falar com o
Rosa Amaral. Não me apercebi de nada que justificasse as minhas desconfianças. Mas o
veneno continuava activo. Se o combatia com a ideia de que o ciúme é, por via de regra,
injustificado, logo o meu demónio interior me respondia que essa lei era a do ciúme feminino.
As mulheres é que são useiras e vezeiras em desconfiar do que não existe. Nos homens
verifica-se o contrário: são sempre os últimos a saber como andam de cabeça armada e nem
sequer marram...
Ao Rosa Amaral só o vi quando, no dia seguinte, entrei na redacção.

— Chegaste depois dos colegas?! — estranhou ele.

— Cheguei ontem.

— E só hoje é que apareces?!

— Vinha muito cansado...

— Cansado de descansar no «aquário» Dom João II?!

— Há coisas que fatigam mais do que o trabalho.

— Também é verdade. E, além disso, o dia da chegada tinha de ser para a Mariluz.
— Ainda lhe não falei.
O Rosa Amaral recuou dois passos e ficou a contemplar-me como se eu fosse um bicho
de antes do dilúvio.

— Homem, isso é crueldade!

— Explicarás porquê...

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— Porque essa estupenda moça, durante todos estes dias, não falou senão de ti. Quando
eu lhe disse que não te faltariam distracções no Algarve, ia-me batendo...

— Só se perderiam as que caíssem no chão.

— Irra, que é de amigo! Comeste figos envenenados em Faro?...

— Há muitas espécies de veneno.

— E ainda mais de ingratidão... Será que realmente te apareceu alguma dessas ávidas
escandinavas que até no Inverno frequentam os hotéis do Algarve?
— Queres parar com as tuas malditas insinuações? — berrei eu.
— Onde estão as insinuações? Tu é que voltas chato como burro. Que te aconteceu?
— Nada.
— Pois, dá graças a Deus. Aqui, ainda ontem houve uma tragédia das antigas. Lembras-
te do Simão Caldeira?
— O marido daquela senhora bastante histérica? — perguntei, aceitando de boa mente
a mudança de assunto.

— Esse mesmo. Ontem matou a mulher e suicidou-se.

— Horrível! — exclamei repentinamente humanizado. — Esse homem sempre me


pareceu infeliz.
— E ainda o era mais do que parecia. Já se tinha tentado suicidar várias vezes. A mulher
acudia-lhe sempre. Depois, nas suas crises de histerismo, fazia-lhe a vida impossível. Até que,
pelo visto, o Caldeira compreendeu que só havia uma forma de sair deste mundo: obrigá-la a
sair primeiro. Isto imagino eu, porque a verdadeira explicação ninguém a conhece. Ninguém
adivinha quanta angústia pode andar escondida na alma de um homem...

Ele calou-se e eu também. O impacto de tamanha tragédia teve o condão de aplacar a


minha pequena tempestade sentimental. E creio que todos somos assim...

Dos Acordos do Alvor, soube apenas que as reuniões tinham decorrido em ambiente
cordial, que passaria a funcionar um Governo de Transição, com três ministros portugueses e
outros três de cada um dos Movimentos, e que a independência seria proclamada em 11 de
Novembro de 1975.
Não sei se em Lisboa o povo teve conhecimento de mais pormenores. Em Luanda, não.
E, que me lembre, nem sequer foi publicado na imprensa o texto do Acordo.
A entrega de Angola fez-se com todos os segredos e cautelas de um negócio de
contrabando...

5.4 — O Governo de Transição

O Rosa Amaral saiu, pouco depois tocou a campainha do telefone e, ao atender, ouvi a
voz da Mariluz:

— Disseram-me agora que já cá estás...

— Desde ontem.

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— Oh querido!...

E foi só esta a sua reacção de surpresa.

— Donde telefonas? — perguntei, cheio de vergonha.

— Da Universidade. Tenho agora uma aula de Matemática. Mas falto e vou já aí.
— Não: sou eu que vou ter contigo. Só tenho de terminar umas notas de reportagem.
Aproveita a tua aula.

— Com que atenção?

— Com a que puderes. Antes da aula findar, aí estarei à tua espera. E estava.

Agarrou-se a mim, e no longo beijo que trocámos, todo o meu ciúme se dissolveu. Como
pude eu duvidar de tão enternecido amor?!

— É verdade que chegaste ontem? — perguntou-me ela, depois de entrar comigo no


carro.

— Valerá a pena falar nisso? — fiz eu, fugindo às explicações.

— Vale — afirmou ela. — Custa-me a compreender a tua pouca pressa de me veres...

— Vi-te ontem, meia hora depois do desembarque.

— ?!

— É verdade. E vi-te mais vezes durante todo o dia.

— Pois tiveste a coragem de nem me falar?!

— Olha, Mariluz, é melhor confessar tudo, embora me custe. Andei a espreitar-te...

— Jesus, que coisa bárbara! E que descobriste?

— Descobri que sou bastante imbecil. Desde a minha partida para o Algarve, andei cheio
de ciúmes.

— Ciúmes?! Oh querido!

E beijou-me novamente, com todo o ímpeto de uma intensa paixão. Depois despegou a
boca da minha e, com as suas lindas mãos apoiadas nos meus ombros, perguntou de
quem tinha eu ciúmes.

— Do Rosa Amaral.

A isto ela respondeu com uma gargalhada inteiramente imprevista. E, ainda entre
acessos de riso que tentava dominar, declarou que eu tivera pura e simplesmente um
golpe de loucura.

62
— Tu nunca podes ser imbecil, mas foste horrivelmente injusto para um dos teus
melhores amigos que, só por isso, também o é meu. O Rosa Amaral falou-me sempre de ti
como um pai casamenteiro e desejoso de arranjar noiva para o filho.

— Vamos esquecer tudo isso, está bem? — sugeri com um arrependimento sincero.
— Pela minha parte, delibero nem tomar conhecimento — respondeu ela singelamente.

A 31 de Janeiro de 1975, tomou posse o Governo de Transição. E, nesse dia, a alegria da


grande massa da população de Luanda encheu tudo, não deixando tempo nem espaço para
quaisquer incidentes.
O mesmo aconteceu em 4 de Fevereiro, quando o Presidente do MPLA regressou à sua
terra, após longos anos de ausência.
As Forças Armadas Portuguesas timbraram em assegurar ao dr. Agostinho Neto uma
protecção absolutamente eficaz. Trouxeram-no do avião para a sala dos VIPS num blindado
Chaimite e transportaram-no depois para o Palácio do Governo num helicóptero escoltado por
mais dois.
A enorme multidão que se apinhava ao longo da Avenida de Lisboa ficou frustrada no
seu desejo de saudar o recém-chegado. E, na redacção do meu jornal, houve quem
estranhasse o impressionante dispositivo de segurança, em relação a um líder político
profundamente admirado e estimado na capital de Angola.
— Basta um só louco para abater um homem — reagiu o Santos Gouveia. — E o dr.
Agostinho Neto também aqui conta com alguns inimigos ferozes...
— Além disso — reforçou o Baldaque — não foi ele que pediu protecção. A sua
completa segurança era um ponto de honra para as autoridades e para as Forças Armadas. Se
lhe acontecesse algo de mau, seria aqui o fim do mundo...
Durante os dias que se seguiram, os partidos políticos surgidos após o 25 de Abril foram-
se dissolvendo um a um, aconselhando os seus adeptos a optar pelo movimento de libertação
que mais lhes agradasse. Politicamente (e erradamente), os brancos apagavam-se, ainda
esperançados numa independência real para todos, acreditando ainda em quem os
entregaria, como servos da gleba, aos novos senhores de Angola, que nem sequer são os
angolanos...

A controvérsia política ficou circunscrita à defesa dos ideários de cada movimento. E,


durante algum tempo, o maior problema continuou a ser o das dissidências no seio do MPLA,
que atingiram o seu «clímax» no assalto aos aquartelamentos de Daniel Chipemba.

NOTA:
O Acordo do Alvor foi assinado em 15 de Janeiro de 1975 e publicado em Suplemento ao Diário do
a
Governo n.° 23 — l. Série — datado de 28 do mesmo mês, mas distribuído bastante mais tarde.
Vale a pena transcrever o seu artigo 9.°:
«Artigo 9.° — Com a conclusão deste Acordo, consideram-se amnistiados, para todos os efeitos, os
actos patrióticos praticados no decurso da luta de libertação nacional de Angola que fossem
considerados puníveis pela legislação vigente, à data em que tiveram lugar».
Estes actos patrióticos foram, por exemplo, os horrendos massacres de civis brancos, pretos e
mestiços, que encheram de sangue e de carne esfrangalhada o Nordeste de Angola.
Um general do Exército Português assinou esta infâmia!...
O Acordo foi declarado transitoriamente suspenso pelo Decreto-Lei n.° 458-a/75, de 22 de Agosto
de 1975, que é mais um documento miserável assinado pelo Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e pelo
Presidente da República, Francisco da Costa Gomes. Os seus únicos efeitos práticos foram deixar o MPLÂ
inteiramente à vontade para usurpar o Poder e ignorar a alínea i) do artigo 24.° (garantir e salvaguardar
a defesa de pessoas e bens) e, sobretudo, o artigo 54.° pelo qual «a FNLA, o MPLA e a UNITA se
comprometeram a respeitar os bens e interesses legítimos dos portugueses domiciliados em Angola».

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ENTRE A ESPERANÇA E O DESESPERO

6.1 — As boas palavras

Há três ministros portugueses no Governo de Transição. Ou pela própria natureza das


suas funções ou porque o processo de abandono efectivamente já começou, têm-se abstido
de qualquer atitude política. E os brancos, aqui nascidos ou radicados, respiram mais fundo
cada vez que os novos governantes de raça negra reafirmam que é angolano todo aquele que
nasceu em Angola, fixou residência em Angola e ama sinceramente esta terra.

Um deles é meu pai.

Ontem, depois do jantar, meti conversa:

— Então, pai, que me diz do novo Governo?

— Parece-me bem-intencionado.

— Na sua boca são palavras de grande elogio...

— Na minha boca?! — reagiu ele, vincando as rugas verticais da testa. — Alguma vez me
conheceste o vício da intransigência?

— Não. E desculpe o deslize. Mas lembrei-me das suas convicções.

— O que disse em nada as afecta. Continuo saudoso do meu sonho de um Portugal do


Minho a Timor. Mas deves lembrar-te de que, nesse meu ideal de uma grande Pátria, sempre
defendi uma completa igualdade para todos os seus cidadãos...
— E lembro: uma pátria grande e original, em que um preto de Angola pudesse ascender
naturalmente à Presidência da República e Luanda viesse a ser a capital da Nação.

— Exactamente.

— Uma bela utopia!

— Não era utópica, não! Simplesmente, sobreveio o mais terrível veneno das pátrias: a
Traição!...

— O pai fez o que pôde...

— Que podia eu?!

— Defendeu as suas ideias com sincero amor a esta terra. Posso testemunhar que foi um
grande lutador.

— Que termina vencido.

— A sua dedicação a Angola continua.

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— E continuará, enquanto tiver um sopro de vida. Por isso me alegro quando as
declarações dos novos governantes revelam maturidade, realismo e bom senso. Que Deus
os ajude!

— Acha que precisam?

— Muito. Deixaram-se degradar estruturas vitais. Criaram-se maus hábitos muito mais
fáceis de adquirir que de emendar e, para complicar tudo isto, entrou-se numa profunda crise
de autoridade. Não é assim?

— Talvez fosse inevitável.

— Em certa medida, aceito que teria de haver um período de descompressão, em que


os adeptos da independência exprimissem a sua alegria. Mas, se ainda compreendo o que se
passa à minha volta, não foi bem isso o que aconteceu. O que mais se nota nas populações é
uma grande preocupação.
— A seguir ao 25 de Abril, o ambiente geral pareceu-me de satisfação e cordialidade...

— Também a mim. Mas durou pouco. E quando o ódio começou a fazer vítimas
inocentes, e as estruturas económicas sofreram os primeiros abalos, os governantes, ou
traíram preconcebidamente, ou deixaram-se arrastar pêlos acontecimentos, receando que
uma actuação firme os complicasse ainda mais.

— Não lhe parece justificado um tal receio?

— Nem ponho a questão, porque há uma verdade acima dela: o primeiro dever de um
governo é governar.
— Bem: mas isso é já o passado. E eu gostaria de o ouvir falar sobre o presente.
— O presente anda cheio de boas palavras. Mas não é com palavras que se constrói o
futuro...
Olhou-me silenciosamente, durante um longo minuto e, depois, continuou:
— Sei que és um sincero adepto da total independência de Angola e, por isso mesmo,
não gosto de te contrariar; mas queres saber qual continua a ser a minha opinião?
— Creio que sei...
— A independência de Angola só pode acontecer na Independência de Portugal. Não
acredito noutra!

Fitei-o com certa estranheza, por verificar que ainda não tinha mudado nada. Depois,
comentei:

— Belo, mas ultrapassado!


— Talvez — murmurou ele com olhos distantes. — Mas até o chefe da guerrilha na
Guiné era da mesma opinião...

— O quê?!...

— Exactamente o que te digo. Em 1971, o eng. Amílcar Cabral declarou que, se Portugal
tratasse o seu ultramar em plena igualdade com a Metrópole, de forma que um negro da
Guiné ou um mestiço de Cabo Verde pudessem ascender à Presidência da República
Portuguesa, eles não teriam de lutar pela independência, «porque já seriam independentes
num quadro mais vasto e muito mais eficaz do ponto de vista histórico».

— Isso é verdade?!

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— Foi ele próprio quem o disse, em entrevista para a revista «Anticolonialismo». Posso
mostrar-te o «recorte» que ainda conservo em meu poder.

— Espantoso!

— Certo! — rectificou meu pai — Amílcar Cabral era um homem de formação


portuguesa. E por isso o assassinaram... Existe uma realidade que vocês, os puros idealistas da
independência, parece que nunca descobriram ou já esqueceram. E é que toda a Campanha
contra Portugal tem sido conduzida pelas grandes potências, principalmente pêlos russos, que
pretendem substituir os portugueses em África. E são eles que agora mandam em Lisboa...
Tens dúvidas?

— Sinceramente, tenho!

— Eu, não. Mas oxalá seja eu que esteja enganado!...

6.2 — Entrevista

Creio ter já dito que a face humana desta cidade está a sofrer uma rápida
transformação. A grande massa dos subúrbios, que representa mais de dois terços da
população luandense, começa a emergir da penumbra em que viveu até há poucos meses. É
ela que fala, argumenta e reivindica.

Com a teimosa esperança que é uma das suas características étnicas, os brancos de
Angola compreendem a situação e nem estranham o facto de terem desaparecido, quase
completamente, das gravuras dos jornais e revistas. Os angolanos de cor subiram
definitivamente para o primeiro plano da vida política e social.

Os homens que andam na boca do grande público e nos noticiários da imprensa e da


rádio são, agora, além dos presidentes dos movimentos de libertação e dos novos
governantes, os seus mais directos colaboradores, com predomínio dos elementos das etnias
negras.

As figuras de vértice — Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi — até há pouco só
bem conhecidas dos seus militantes, definem-se perante o conjunto das populações.
A minha profissão de jornalista tem-me oferecido algumas oportunidades de contacto
com os actuais responsáveis pelo destino desta terra. Parecem-me homens convencidos das
suas verdades, mas simples, afáveis -e compreensivos. Gosto da sua facilidade de expressão,
tão característica dos povos bantus, da sua maneira directa de encarar os problemas, da sua
enorme vontade de encontrar os melhores rumos para a Angola do futuro.
Ontem, entrevistei um dos membros do Governo de Transição. Antes de qualquer
pergunta, tomou a iniciativa de afirmar a importância da imprensa! Entrelaçou os dedos das
mãos sobre os joelhos, esteve durante um longo minuto com os olhos alongados, através da
ampla janela, para a cidade velha que descia até aos modernos arranha-céus da Avenida
Marginal e disse:
— Os jornais exercem uma grande influência sobre as massas — disse — e, nesta hora
de Angola, é imperativo que a exerçam no melhor sentido...
— Pode haver concepções diferentes do que seja esse «melhor sentido» — insinuei.
— Claro que pode. Mas, na presente conjuntura da nação angolana, não nre parece
difícil encontrar um ponto de convergência.

— Como definir as coordenadas desse encontro?

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— Basta que os jornalistas se orientem pela realidade essencial desta fase histórica de
Angola. Vivemos uma fase de transição para o pleno exercício da soberania. É nas dificuldades
da travessia desta ponte que se conjugam presentemente os esforços de um governo com
igual representação de cada um dos três Movimentos. Haverá algum bom angolano que não
deseje uma travessia sem perigosas colisões?

— Com direito ao qualificativo de bom, não há.

— Então, aí está o ponto de convergência: não complicar ainda mais as tarefas do


Governo de Transição. Ou, por outras palavras: evitar tudo quanto nos divida, num momento
em que precisamos do esforço conjugado de todos. Certo?

— Certíssimo! E, pela minha parte, dentro da modéstia das minhas possibilidades...

— Não há, nas minhas palavras, qualquer alvo pessoal — atalhou o ministro. — Nem
sequer sugiro que os jornalistas sacrifiquem as suas ideias ou se diminuam na sua
personalidade. Apelo apenas para o bom senso de todos, no sentido de atenderem agora ao
que é essencial.

— Nos domínios do essencial podem inscrever-se vários temas...

— Creio serem do conhecimento geral. Salvaguardadas as indispensáveis condições de


paz, é preciso que a juventude continue a estudar, que os trabalhadores continuem a
trabalhar e que os erros antigos sejam gradualmente corrigidos, sobretudo no que respeita à
equitativa distribuição da riqueza por aqueles que efectivamente a produzem. E repare que,
afinal, ainda não saímos do primeiro problema, porque tudo isto se insere no quadro das
condições de paz.

6.3 — Situação explosiva

Na redacção do meu jornal, discutia-se a conferência de imprensa dada em Kinshasa


pelo presidente da FNLA, por motivo da comemoração do 14.° aniversário do 15 de Março
de 1961.
— Quando Holden Roberto considera explosiva a situação em Angola — começou o
Santos Gouveia — faz-nos um aviso terrível.
— Quem me avisa meu amigo é — sentenciou o Sousa Quevedo. — E as palavras do
presidente da FNLA são objectivas, embora cautelosas. «Não é minha intenção entrar em
polémica com quem quer que seja
— afirmou ele. — Mas, em função dos acordos de Alvor, a situação em Angola preocupa-me
realmente. Tenho a impressão de que as assinaturas não estão a ser respeitadas e isso é
grave. Eu considero a situação em Angola explosiva. É um vulcão. Dizem-me que há
movimentos que se opõem às eleições. Boatos que nos chegam aqui e que não sei se será
assim ou não. Mas as eleições fazem parte dos acordos de Alvor. Por isso as eleições devem
ter lugar...»
— Nestas afirmações — concluiu o Sousa Quevedo — vejo apenas uma honesta
preocupação, misturada ao desejo de evitar maior efusão de sangue.
— Certo! — concordou o Santos Gouveia. — Mas não se absteve de afirmar que não há
segurança em Angola, especialmente em Luanda.
— E é mentira?

— Bem...

— Bem, uma ova! Toda a gente sabe dos assaltos que todos os dias se praticam em
Luanda. E Holden Roberto não tem medo da verdade.

67
— Ando pelas ruas de Luanda e ainda me não aconteceu nada — alegou o Santos
Gouveia.
— Pode acontecer-te amanhã — interferi do meu lado. — Ao Cardiga, que é do MPLA
como tu, ontem, em plena Baixa e à luz do dia, roubaram-lhe 4 contos, arrancaram-lhe o
relógio do pulso e bateram-lhe.

— São coisas que acontecem em toda a parte.,.

— Não com este descaramento e sem que a polícia ou a tropa intervenham. O Jorge
Penha, que trabalhava na Robert Hudson, foi ontem levar a bagagem para o Infante Dom
Henrique, em que regressa a Portugal. Os dois carregadores negros que contratou começaram
por pedir 300 escudos à hora; depois de içarem para bordo a primeira mala, pediram 600 — e
o Jorge, apesar dos protestos da mulher, que estava com ele, pagou. Daí a meia hora, pararam
e declararam que só trabalhavam por 1 200 escudos para cada um. Aí, o Jorge refilou. Então o
carregador sacou do bolso uma navalha de ponta e mola, apontou-a ao peito do branco e
ameaçou:

— Pagas, e já! Senão...

A mulher do Jorge, aflitíssima, correu até um polícia, que rondava perto, e contou-lhe o
que se passava.
— Não posso fazer nada, minha senhora! — disse o guarda envergonhadamente. —
Estamos rigorosamente proibidos de intervir...

— Tem de se atender à conjuntura — teimou ainda o Santos Gouveia.

— Holden Roberto está bem dentro dela e exprime claramente os seus receios — disse
o Sousa Quevedo.
— O presidente da FN1A fala dentro de um certo ideário político e com uma
determinada intenção — explicou o Santos Gouveia. — Não aceita o Poder Popular...
— Vamos apreciar as coisas com serenidade — aconselhei eu — Holden Roberto
também diz que está ao lado do povo. Mas entende que o povo manda através dos homens
que livremente escolhe para o exercício do poder. E, nisto, parece ter o acordo de Jonas
Savimbi. Nenhum deles quer a anarquia.

— E o dr. Agostinho Neto quer?! — refilou o Sousa Quevedo.

— Ninguém disse isso, pá! Estou a tentar explicar posições diferentes: mais nada! E nem
sequer vou dizer qual é a que julgo melhor. Todos temos de fazer um esforço para
compreender o que se passa, o que não é nada fácil nem agradável. Ora, enquanto dois dos
movimentos tendem para um regime democrático, baseado no voto secreto dos cidadãos, há
um terceiro que se apoia na força emocional das massas, pretendendo que o povo participe
directamente no exercício do poder. Por outras palavras: o dr. Agostinho Neto luta contra a
ideia duma burguesia negra que substitua a burguesia branca. E a sua arma é o Poder Popular.

— Também o dr. Savimbi se apoia no povo — argumentou o Santos Gouveia.

— Bem sei — confirmei eu. — Qualquer dos movimentos em armas quer o apoio popular e
precisa dele. A diferença está nos processos. Holden Roberto e Savimbi concordam em que a
vontade do povo se manifeste pelo voto secreto, em eleições livres. Agostinho Neto prefere
que as massas populares reajam agora, organizando-se para manifestar a sua força e exprimir
directamente a sua influência política. Dum lado temos o processo clássico da Democracia; do
outro há um processo revolucionário semelhante ao que presentemente se verifica em
Portugal.

68
— E para que lado pendes? — atacou rudemente o Sousa Quevedo.

— Para nenhum. Como jornalista, procuro observar os factos como eles são e
interpretar lealmente o pensamento dos líderes políticos da hora presente. Quando me
enganar, aceitarei que me corrijam e darei publicamente a mão à palmatória.
— ...Lavando-a primeiro na bacia de Pilatos — rosnou o Sousa Quevedo.
— Merda para as tuas piadas de comício barato! — explodi com certa irritação. —
Reconhecer um erro é o contrário de fugir às responsabilidades.
— Merda, digo eu, para a tua atitude de juiz arbitrai — vociferou o outro. — Tu não tens
ideias próprias, pá?!

— Claro que tenho. Mas não as devo inserir no pensamento alheio. Isto, como jornalista.
Como angolano, sei que vivemos numa fase política muito delicada. Não quero escrever uma
só palavra que possa contribuir para cavar ainda mais as dissidências que já existem. Achas
que faço mal?

— Acho que a tua calma é indecente — definiu o Sousa Quevedo, desistindo de me


convencer.
Só então reparei que o Baldaque ainda não tinha dito uma única palavra. E decidi
sacudi-lo daquela espécie de torpor meditativo:

— E tu, dorminhoco, que pensas dos três movimentos de libertação?

— Não acredito em nenhum — respondeu ele soturnamente. — Há uma vil traição em


curso...

69
RESVALADOURO

7.1 — O vilão com a vara na mão

Por essa altura já o Almirante Vermelho era a criatura mais execrada pêlos portugueses
de Angola.
O seu riso era uma mistura de ódios recalcados, íntimos complexos e vaidades grotescas.
E ria por tudo e por nada, só para ficar bem no retracto.

Gostava imenso de falar na rádio e apressou, quanto pôde, a instalação da televisão em


Luanda, sonhando com a presença da sua cara nos televisores dos luandenses.

Medroso como um rafeiro Cabiri, transformou o Palácio do Governo Geral numa caserna
Com homens armados a circular em todos os corredores, fuzileiros especiais nos terraços do
edifício e, quando o seu medo era maior, com um aparatoso dispositivo militar, que cercava
toda a zona, desde a Avenida Álvaro Ferreira até ao Largo do Baleizão. No entanto, sempre
que os brancos ainda residentes nos bairros suburbanos reclamavam protecção, respondia
que Angola não era para timoratos.

Foi, em Angola, a sinistra figura do vilão com a vara na mão. Logo à chegada a Luanda,
como presidente da Junta Governativa. a que os luandenses chamavam «o quinteto de
cordas», quando os jornalistas lhe perguntaram quando voltaria o general Silvino Silvério
Marques, respondeu brutalmente:

— Já não é governador-geral de Angola.

Era um malcriado.

Interrogado, na mesma ocasião, se a independência de Angola estava para breve,


declarou que esse era um assunto a decidir por todas as populações, e perguntou, com o seu
risinho alvar:

— As populações já decidiram?!...

Mentia com cínico descaramento.

E, ao regressar da Cimeira do Alvor, em que o não deixaram participar, teve a incrível


atitude de pretender passar por alto comissário. À pergunta sobre quem seria nomeado para o
novo cargo, insinuou ambiguamente:

— Por enquanto sou eu o alto-comissário.

Procedia como um insuportável fanfarrão.

No entanto, o Gouveia, coerente com as suas tendências políticas, ainda tentava


defendê-lo.
— Governar Angola, nesta fase da transição, é uma empreitada do inferno — dizia ele.
— O almirante faz o que pode.

70
— Faz asneiras aos montes — arrematou o engenheiro Balanta, que andava de um
terrível mau humor. — Falei há dias com um oficial dos «comandos» que quase chorava de
raiva. A tropa foi proibida de entrar nos muceques, porque esse malvado careca tem um plano
diabólico. Vai deixar armar o «poder popular» e, entretanto, já mandou tirar as armas aos
brancos.
— Eu não entrego a minha pistola — declarou um camionista da Petrangol.
— Não terás outro remédio — afirmou o engenheiro. — Até sei que, na tua Companhia,
já as começaram a recolher.
— Mas a minha arma não é da Companhia — esclareceu o camionista. — Foi comprada
com o meu dinheiro; e não a entrego. Sabem o que aconteceu ao meu Chefe?

— Conta lá — convidou o Baldaque, que também estava presente.

— Meteu a pistola no carro, para a entregar na Petrangol. Ali perto do campo da


Académica, uma patrulha da FNLA mandou-o parar, revistou-lhe o carro, encontrou a arma e
levou-o para o seu quartel. De nada lhe valeram as explicações. Ficaram-lhe com a pistola,
bateram-lhe até se fartarem, roubaram-lhe todo o dinheiro que tinha consigo e ainda o
tiveram preso durante dois dias, sem comer nem beber. Eu não entrego a minha arma.

— Se calhar, era o que todos devíamos fazer... — insinuou o Baldaque, muito sério.

— Para quê? — interrogou o Sousa Quevedo.

— Para nos defendermos quando for preciso — declarou rudemente o interrogado. —


Isto começa a virar para o torto. Sabem vocês o que me disse o Neves e Sousa, quando ontem
o encontrei ali no Largo da Mutamba?

— Esse não costuma falar de política — lembrei eu do meu canto.

— Nem falou. Disse-me apenas que já estava a ver os brancos mais curtos...
— É o falar adequado à imaginação visual dum pintor — explicou o Gouveia.
— Será o que vocês quiserem — aceitou o Baldaque. — Mas os artistas têm sempre algo de
adivinhos. E o riso perene desse almirante de navios naufragados parece-me de mau agouro.
Seria bom que nos preparássemos para o pior...
— Desejas para Angola um banho de sangue? — desafiou o Gouveia em tom sarcástico.
— Desejo que a independência de Angola seja para todos os que a ajudaram a construir.
— É exactamente o que o almirante promete — lembrei eu com alguma timidez.
— Não acredito numa única palavra desse malandro — interveio rudemente o
camionista.
— E eu já não acredito em nada — desabafou o Baldaque. — Estamos a cair numa cilada
em que deliberadamente se prepara a nossa desgraça. Disseram-nos que os guerrilheiros só
poderiam entrar sem armas: e trouxeram quantas armas quiseram. Prometeram que nada se
faria sem ouvir também a população branca: e ainda nos não consultaram para coisa
nenhuma. Convidaram toda a gente a agrupar-se em partidos políticos; mas dizem agora que
só os movimentos de libertação é que representam legitimamente as gentes de Angola.
Vamos escorregando de engano em engano. Se não acordamos a tempo, estamos perdidos.
— Tudo isto é uma grande chatice — sintetizou desconsoladamente o engenheiro
Balanta.
— Vocês falam como autênticos reaccionários! — disparou o Gouveia, muito firme nas
suas convicções democráticas e sempre agarrado à esperança de uma Angola independente e
próspera.

Mas o engenheiro reagiu à bruta:

71
— Reaccionária será a tua avó! — clamou. — Eu estou-me nas tintas para a política.
Apenas pretendo continuar a viver e a trabalhar na terra onde nasci. E começo a ver que não
vai ser fácil. Esse maldito careca, com o seu Quinteto de Cordas, veio para aqui na função de
traidor.
— O que aí vai! — protestou o Gouveia.
— O que aí vem! — arrematou o engenheiro. — o que eu gostava era de saber o que aí
vem para todos nós, brancos, pretos e mestiços, porque ou eu me engano muito ou o
«Quinteto de Cordas», que nos mandaram de Lisboa, nem representa Portugal nem liga
pevide aos verdadeiros interesses das populações de Angola. Vieram para aqui brincar ao
comunismo — e é tudo.
— Tens a certeza? — ironizou o Gouveia.
— Não há certezas neste mundo — interveio gravemente o Baldaque — Mas o
engenheiro é bem capaz de ter razão. Pelo que estou a ver,
já não são os portugueses nem os angolanos quem manda no destino desta bela terra.

E é pena...

Nessa mesma tarde, contei a conversa à Mariluz e pedi-lhe que me desse também a sua
opinião. Ela permaneceu de cabeça baixa, tardando em responder. E quando, finalmente,
levantou os olhos para mim, reparei que os tinha rasos de lágrimas...

— Que tens? — perguntei carinhosamente.

— Meu pai quer que eu e a mãe embarquemos imediatamente para a Metrópole —


respondeu, rompendo num choro convulso.

— Vamos falar com ele — sugeri.

Ela concordou. Mas o sr. Calabriz custou a convencer.

— Você julga que me não custa ficar sozinho? — arremeteu desabridamente. — Sinto
apenas que devo proteger minha mulher e minha filha contra os perigos a que se arriscam
nesta terra. Nem quero pensar no que lhes pode acontecer... Não compreende?
— Compreendo perfeitamente. Mas, por enquanto, ainda cá temos a tropa portuguesa.
— A tropa portuguesa?! Soldados que têm assistido às maiores infâmias sem mexer um
dedo?! Isso já nem é tropa nem é nada. É uma vergonha para todos nós! Devíamos pô-los fora
daqui a pontapés no rabo!
— Calma! — aconselhei pacientemente. — Eu estou atento ao que se passa. E, como
sabe, estou num bom ponto de observação. Logo que pressinta um perigo real e próximo, não
deixarei de o avisar e serei eu próprio a tratar do embarque da sua família com toda a rapidez.
— Você é um bom moço, mas tem um defeito: é muito ingénuo. Ainda acredita na
canalha que já nos vendeu e talvez já tenha recebido o preço.
— É preciso acreditar em alguém...
E, forçando a minha própria esperança, já bastante abalada, inconscientemente movido
pelo desejo de conservar pelo maior tempo possível a adorável presença da Mariluz, expliquei
que os soldados portugueses, na sua esmagadora maioria, continuavam a ser valentes e
resolutos, que só não intervinham quando estavam absolutamente proibidos de o fazer e que
até o Rosa Coutinho já por duas vezes tinha levantado essa proibição.

O preocupado homem ainda argumentou que as coisas iam de mal a pior, que o Almirante
Vermelho era um lacrau dos grandes, que ninguém podia confiar na malandragem que era

72
agora Governo em Lisboa, que era do seu dever pôr a família a salvo, que estas coisas nunca se
deviam deixar para a confusão da última hora, etc., etc. Mas acabou por ceder.

Na segunda-feira da semana seguinte, o engenheiro Balanta foi preso.


Simultaneamente, o almirante Rosa Coutinho emitia ordens de prisão contra diversos
brancos, entre os quais se contava o director do meu jornal, que logrou escapar para a África
do Sul.
Muito preocupado com tudo isto, pedi audiência a um engenheiro português, membro
do Governo de Transição, que prometeu receber-me imediatamente.
Fui encontrar os corredores do Palácio cheios de soldados, principalmente fuzileiros
especiais, que circulavam com as pistolas-metralhadoras na posição de tiro instintivo. Não vi
nenhum dos antigos contínuos, alguns com dezenas de anos de serviço naquela casa. Tudo
estava mudado no velho Palácio dos governadores-gerais, agora ampliado e modernizado
segundo planos elaborados no tempo do governador Silva Carvalho.
Sob os olhos vigilantes dum sargento da Marinha, pedi a um dos novos funcionários
que me anunciasse. E estava a acender um cigarro, para enganar o tempo, quando o
governante surgiu à porta do gabinete, convidando-me a entrar.
— Desculpe, senhor engenheiro — balbuciei, apagando rapidamente o cigarro no
cinzeiro mais próximo. — Julguei que a sua secretária me viria avisar...
— Ainda não tenho secretária — declarou ele com toda a naturalidade.
— Mas, então... — estranhei, sem esconder a surpresa, lembrado de que mesmo ao lado
trabalhava a secretária do dr. António de Almeida.

— Isto agora é assim... — disse o engenheiro sem mais explicações. — Que manda?

— Nada. Peço, e com a maior humildade. O engenheiro Balanta (não sei se conhece...)
foi preso esta noite. Sou muito amigo dele. Pode informar-me do que se passa?

— Também não sei.

— O senhor almirante chama-o — veio dizer o sargento da Marinha, abrindo a porta


sem bater.

— Já vou — respondeu o engenheiro. E, depois de o intrometido (o mesmo sargento que eu


vira no corredor) ter fechado novamente a porta, reafirmou que, infelizmente, não estava em
condições de me ser agradável, como tanto desejava.
— Eu só agora sei da prisão desse engenheiro, que conheço muito bem. Fui grande
amigo do pai dele.
— Tem andado ultimamente muito apreensivo, por causa da sua fazenda de café nos
Dembos — informei. — Mas nunca se meteu na política. Não compreendo porque o
prenderam.
— Estamos numa fase de grande confusão... — alegou vagamente o governante. — E, se
me dá licença, tenho de ir ao almirante. Ele não gosta de esperar; e hoje está insuportável.

Saí imediatamente. E, já no Largo, onde a estátua de Salvador Correia aguardava o


camartelo dos demolidores, lembrei-lhe daquele sargento intrometido e veio-me a tentação
de pensar que o Almirante Vermelho fora informado da minha presença e propositadamente
interrompera a audiência dum redactor do jornal, cujo director tinha ordem de prisão. Apenas
vaidade minha? Talvez não...

7.2— Mais incêndios... Mais tiros...

Foi por esses dias que incendiaram várias casas de brancos no Muceque Catambor. E
houve quem afirmasse ter visto um alferes, dos recentemente chegados de Lisboa, a dirigir a

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estúpida e nefanda proeza. Já completamente descrente do novo Governo da sua Pátria, os
brancos começavam também a perder aquela fugaz esperança que nascera das primeiras
palavras e atitudes do Governo de Transição.
Repentinamente, na noite de 24 de Março de 1975, rebentou de novo o tiroteio na
cidade, agora entre o MPLA e a FNLA, que se degladiavam nos subúrbios luandenses, com
fogo de armas ligeiras, intercalado pelo ribombar das granadas de mão, morteiros e
foguetões. Mais uma vez, a população de Luanda, sobretudo a sacrificada gente dos
muceques (brancos já lá os não havia...), era roubada ao seu merecido repouso, após um dia
de trabalho.

Nos dias 25 e 26, já os tiros alastravam para as zonas mais centrais da cidade e em pleno
dia. Pelas 11 horas de 26, eu próprio estive bem perto do tiroteio, quando ia tratar de um
assunto de impostos, na Repartição de Finanças da Avenida dos Combatentes. Encontrei a
porta fechada, como todas as das lojas mais próximas.

— Há greve geral? — perguntei ao João Carmelino, que da porta (também fechada) da


sua loja de pronto-a-vestir, olhava apreensivamente para o fundo da bela artéria.
— Não se trata de greve — respondeu ele. — Trata-se de acautelar o físico. Aí para
diante, no muceque Rangel e lá para os eucaliptos, as FAPLAS engalfinharam-se outra vez com
as tropas do Holden Roberto. Parece que já há mortos em barda que, de uma parte e de outra,
enterram em valas abertas por escavadoras, sem mesmo averiguar se irão alguns vivos na
lingada... Um horror!...
Como a confirmar as palavras do comerciante, crepitaram tiros de armas automáticas,
logo seguidos dos estouros secos e trágicos dos morteiros. E uma grande multidão, vinda dos
lados do Rangel, invadia a Avenida, correndo desvairadamente, na ânsia de atingir a zona
central da cidade, onde as patrulhas do exército português davam ainda uma aparência de
segurança.
— Vamos embora daqui! — aconselhou o Carmelino, subindo para o seu automóvel.
Mas eu fiquei ainda alguns minutos, observando com profunda consternação aquela
pobre gente. Mulheres de rosto acinzentado pelo medo, crianças que já não sabiam do
paradeiro dos pais, doentes e estropiados, velhos de olhos tristes, a pedir o último esforço às
pernas trôpegas — tudo fugia como no pavor dum terramoto.
Reparei especialmente numa preta de meia-idade, que chorava desabaladamente, com
um filho ao colo (também ele a chorar) e mais três agarrados às suas saias em farrapos. E não
pude resistir a tamanha desgraça. Disse-lhe que entrasse para o meu carro, com as crianças, e
perguntei-lhe para onde queria ir.
— Eu queria ir no comboio, patrão — respondeu ela, quando já o menino de colo
terminara o seu choro, repentinamente interessado nas minhas manobras ao volante.

— Assim, sem nada?!

— Não teve tempo — explicou ela. — Os tiros eram muitos e os bandidos andavam a
assaltar as cubatas.
— Para onde vai agora?

— Talvez vai no Dondo. Eu tem lá irmãos...

— E dinheiro para o comboio?

— Só tem cinquenta angolares, da palanca que o meu homem me deu no último sábado.
Talvez chega para a 3." classe. Os filhos não paga. O mais velho ainda não fez 5 anos.

— Vai sem o seu marido?

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— Há três dias que não sei dele. Talvez já morreu de morte matada. Agora, no muceque, só
há confusão e a gente malvada que rouba tudo e mata logo, sem avisar. Diz já, patrão, porque
é que os portugueses estão a ir embora?

— Angola quer ser independente e o Governo de Lisboa já concordou.

— Independência! — fez a preta, no jeito de cuspir a palavra: — Eram os turras quem


queria a independência. E agora dão tiros uns nos outros...

Já a descer a Rua de Camões, travei atrás dum Unimog da tropa, estacionado junto do
Hotel Trópico, e disse ao alferes português que havia tiros ao fundo da Avenida dos
Combatentes.

— Já sei — respondeu ele —, mas estamos proibidos de intervir.

— Proibidos por quem?

— Por quem pode.

— O almirante?...

Ele nem negou nem confirmou: limitou-se a sorrir, talvez para ocultar a sua íntima
frustração de soldado reduzido à reles condição de mero espectador de uma enorme
desgraça.
Na estação do Caminho-de-ferro, dei 500 escudos àquela mãe de quatro filhos
pequeninos e arranquei logo, para fugir aos seus agradecimentos, abundantemente molhados
de lágrimas. O meu bilhete de identidade ainda é de cidadão português. E uma nota de 500
escudos não é nada para a dívida que Portugal contraiu com aquela pobre mulher.
Na redacção do meu jornal já sabiam da luta na zona de S. Paulo. Tinha partido para lá o
Pedro Gilvaz, que se considerava vacinado contra as balas perdidas e teimava em ir tirar uns
bonecos.
— Viste alguma coisa? — perguntou-me o Baldaque, quando lhe falei no tiroteio.
— Ouvi os tiros a poucas dezenas de metros e assisti à debandada dos pretos do Rangel.

— Quem está a vencer?

— Não sei.

— Podes escrever uma croniqueta sobre o assunto?

— Claro que posso. O que não vi é fácil de imaginar.

— Isto está a tornar-se muito feio — opinou o Baldaque. —A entrega de Angola aos
guerrilheiros do terrorismo é um erro tremendo. Começo a pensar se não terei também de ir
embora...

— Para onde? — perguntei com sinceridade.

— Para a África do Sul, para o Brasil, até mesmo para a Metrópole. Para qualquer parte,
desde que seja para longe deste carnaval trágico. Sou branco e, nesta terra, o tempo dos
brancos acabou.

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— E terá começado o tempo dos angolanos pretos? — perguntei com cepticismo. — Ainda
agora levei à estação do Bungo uma preta com quatro filhos pequeninos, que já não sabe se o
marido é morto ou vivo e foge do inferno dos muceques. Um horror!

— Esse Rosa Coutinho merecia ser atirado para o meio duma alcateia de mabecos.
Dizem que vai embora amanhã. E não deixará de sorrir à partida... Tu já sabes alguma coisa do
engenheiro Balanta?

— Nada de seguro. Mas parece que sempre conseguiu voar para Joanesburgo.

— Quando chegará a nossa vez? — insinuou ele, profundamente desiludido.

7.3 — Interrogatório no Palácio

Durante quase um mês nada mais soube do engenheiro Balanta. Até que um dia, já muito
perto da meia-noite, apareceu de surpresa em minha casa.
— Fugi da cadeia e tenho de sair urgentemente de Angola — disse, após o abraço do
reencontro. — Podes esconder-me aqui por um ou dois dias?

— Claro que posso.

— Talvez seja arriscado para ti...

— E depois?

— Bem... era meu dever avisar-te, mas já esperava essa reacção. Não fales nisto a
ninguém. Mesmo depois de eu sair, é melhor que ninguém saiba que eu fugi da cadeia para
aqui. É melhor, principalmente para ti.
— Está bem — concordei eu. — Mas senta-te. Vens com ar esfomeado, homem. Meu
pai e a tia Isaura foram a uma festa de anos. Mas, por mistérios inescrutáveis, tenho aí um
pedaço de carne assada. E também há pão relativamente fresco, o uísque da praxe e algumas
sodas geladas. Abanca, que vamos jantar os dois.
Deixei-o beber dois uísques seguidos e devorar três grossas fatias de carne assada com
uma rapidez que não enganava ninguém. E, então, já com a fome acalmada, foi ele que
espontaneamente declarou:

— Acabo de viver vinte e sete dias de inferno...

— Conta! — convidei, enchendo-lhe novamente o copo e pondo-lhe no prato mais


carne assada.

— Ainda bem que mandei a família para a Metrópole. Se tivesse a mulher e os filhos em
Angola, nem me atrevia a fugir... Sabes que me foram buscar a casa às 11 horas da noite?

— Não sei nada. Ainda fiz uma diligência no Palácio, mas foram passos perdidos.

— Pois foi mesmo para o Palácio que me levaram nessa noite de há vinte e sete dias.
Entrámos numa sala onde estava o Almirante Vermelho a dizer coisas a um cómico grupo de
oficiais do exército e da marinha, uns de pé, outros recostados nas poltronas e até alguns
sentados no chão. Um quadro de garotos de escola primária, na ausência do professor. Só com
a diferença que o professor estava lá e era dos mais gozões, exibindo aquele riso alvar que
todos lhe conhecemos. O almirante falou, falou, sem nunca olhar para mim, que fiquei à porta
entre os meus dois guardas, aparentemente ávidos de carregar no gatilho, e desandou para o
seu gabinete, seguido pelos guarda-costas. O meu primeiro interrogatório foi ali mesmo,

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sempre sob a ameaça das armas e a servir de pião das nicas de toda aquela reinadia
assembleia, constituída por cerca de vinte militares eminentemente progressistas, desses que
o general Costa Gomes (raios o partam!) nos mandou de presente.

«—Qual é o seu posto no Partido da Democracia Cristã de Angola — começou por me


perguntar um senhor comandante da Marinha de Guerra, com uma careca luzidia a prolongar-
lhe o focinho de raposa matreira.

«—Não pertenço a nenhum partido político — respondi.

«— Está a mentir!

«— Nunca fui mentiroso.

«—Ai, que menino tão bem comportado! — chasqueou um alferes, com olhos
ramelosos e barbicha de chibo no cio.
«—A sua fazenda dos Dembos tem dado apoio logístico aos guerrilheiros de Holden
Roberto — acusou o Comandante.
«—A minha fazenda está ocupada pêlos turras, o que é muito diferente.

«—Já não há turras! — repreendeu ele.

«—Ai, é verdade... — emendei, sem poder evitar um riso de troça.

«—Este gajo está a rir-se de nós! — acusou um alferes de camisa aberta até ao umbigo.
«—Rira bien qui rira lê dernier — disse o comandante, muito vaidoso do seu francês. —
Nós temos processos de fazer cantar este canário... Vamos lá a saber: quais eram
exactamente as suas relações com o dr. Ferrenha?
«—Nenhumas. Nem sequer o conheço pessoalmente.

«—Ai, que santa ignorância! — ganiu de novo o alferes das piadinhas.

«—Mas conhece os oficiais do Centro de Instrução dos Comandos...

«—Tenho entre eles alguns bons amigos.

«—Também por lá há alguns saudosistas da guerra colonial. Sabe quais são?

«—Se soubesse, não lho dizia! — gritei, já enfurecido com a rópia do marujo de água
doce. — Deixem de me aborrecer com perguntas de esquadra da polícia. E, se eu próprio
também posso perguntar alguma coisa, agora que há liberdade para todos, gostaria que me
dissessem porque é que estou preso...
«—Qual é a sua opinião sobre a FUÁ? — disparou um tipo de óculos, ignorando a minha
pergunta.
«—Se o senhor é capelão, fique sabendo que não estou preparado para mie confessar.
«—E, se o menino começa a refilar, vai daqui para os muceques e o Poder Popular lhe
tratará da saúde... — rosnou um dos militares mais cabeludos.
«Com um gesto de apaziguamento, o comandante ordenou então que me entregassem
aos «rapazes» da sala do lado. E encontrei-me entre um novo grupo de militares, quase todos
com o galão de alferes, ainda mais progressistas e cabeludos do que os primeiros.
«—Ouça lá, amigo! — começou um deles, todo falinhas mansas — Gosta ou não gosta
de Angola?

«—Nasci cá, de pais que também cá nasceram.

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«—Então, porque anda metido com essa canalha do PDCA(1), que é a nata dos
exploradores desta terra?
«—Já disse aos vossos camaradas ali ao lado que não pertenço a nenhum partido
político. Só quero que me deixem viver e trabalhar na terra onde nasci.
«—Certo! — concordou o cabeludo. — Mas, nesse caso, deve colaborar na construção
de uma Angola livre e independente. E há por aí uns malucos ainda convencidos de que
podem impedir que isso aconteça. O amigo sabe quem são... Venham de lá os nomes!

«—Não sou delator.

«—Bem... vamos lá com calma...

«E, revezando-se na tarefa de me fritar o juízo, sempre no mesmo tom, com um ou


outro rompante de fúria, assim me interrogaram durante quatro horas, mantendo-me de pé e
sob a ameaça das armas.

«Mas acabaram por desanimar.

«—É irrecuperável! — concluiu o maioral do grupo, quando o comandante careca veio


da outra sala perguntar «como iam as coisas».

«— Levem-no para a Casa da Reclusão — sentenciou o Comandante.

«Fomos, eu com os meus dois guardas, mais dois militares armados de G3. Junto da
Estação Ferroviária do Bungo, os quatro militares saíram do jipe, mandando-me esperar, e
afastaram-se uns cinquenta metros. Reparei que nem tinham deixado à mão uma carabina G3
e compreendi a intenção de ma arrastarem a um acto de desespero, para resolver rapida-
mente o meu problema com uma bala certeira. Mas não caí na emboscada. Saí também do
jipe, levantei os braços ao ar e gritei-lhes o desafio:

«—Se querem matar-me, não percam mais tempo!

«— Ninguém o quer matar, seu caguinchas! — declarou o chefe da escolta com a mais
descarada insolência.
«Acabei por dar entrada na Casa de Reclusão, onde fiquei encarcerado durante 56
horas, sem comer nem beber.
«Levaram-me depois para a antiga prisão da DGS, em S. Paulo, onde me fecharam numa
cela fétida e só dois dias mais tarde me deram uma cama de campanha e uma vassoura para
varrer um pouco de toda aquela porcaria. Ali encontrei o capitão Seara, o mesmo que
defendeu a Casa da Reclusão em 4 de Fevereiro de 1961, do assalto dos homens do MPLA, e
que também era acusado de se opor à descolonização. Mas, quando tentávamos conversar,
separaram-nos brutalmente -e nunca mais nos vimos.
«Recomeçaram os interrogatórios, que se prolongaram, de dia e de noite, durante cerca
de três semanas. Sempre a mesma lengalenga. No que mais insistiam era em informações
sobre a FUÁ, sobre elementos do PDCA, sobre oficiais dos Comandos, sobre pilotos da Força
Aérea Portuguesa e até sobre alguns membros do Governo de Transição.
«Teimaram, voltaram a teimar, mas deram sempre com o nariz na porta. Durante um
dos últimos interrogatórios, um capitão com cara de cavalo ainda fez menção de me agredir.
Mas fitei-o com tais olhos, que logo desistiu do intento. Lá cobardes são elas, podes ter a
certeza!

«Não sei se sabes que a antiga prisão da DGS serve agora também de quartel do COTI.1,
que é uma das unidades encarregadas de manter a ordem em Luanda, ou de fingir que a
mantém. Eram da Cavalaria e pareceu-me que continuam a ser bons soldados, alguns deles

78
enraivecidos com o Almirante Vermelho, que só está interessado em que lhe defendam o seu
covil. Logrei conquistar a simpatia de alguns furriéis e de um alferes. E só assim consegui fugir.

«E aí tens, em breve resumo, o que me aconteceu nestes últimos vinte e sete dias.
— E agora? — perguntei eu, que propositadamente o não interrompera uma só vez,
durante a sua emocionante narrativa.
— Agora, vou sair de Angola o mais depressa possível. E tu, se queres um conselho,
larga também!

— Eu sou angolano.

— Também eu. Mas já não existe segurança para nenhum de nós, nesta desgraçada
terra, onde ninguém se entende.
Indiquei-lhe o quarto onde poderia dormir e, nos dias seguintes não descansei enquanto
não arranjei um barco de pesca que o levasse até Moçâmedes, onde tinha bons amigos.

7.4 — O "Quinteto» regressa a Lisboa

O Baldaque estava bem informado. Com efeito, no dia seguinte, pouco antes da meia-
noite, o «quinteto de cordas» tomou o avião de regresso a Lisboa. Sem aviso prévio. Sem
mesmo aguardar que chegasse o alto-comissário, general Silvino Cardoso.

A Junta Governativa, que tanto mal fez a Angola, esgueirou-se medrosamente, nas
sombras da noite, através dum aparatoso dispositivo militar, que se estendia desde o Palácio
do Governo até à escada do Boeing e até metralhadoras pesadas incluía.

Já na sala dos VlPs, com a aerogare rigorosamente interdita a civis, aqueles cinco
homens, quase todos execrados pela maior parte dos brancos e pretos de Angola, sentiram-se
repentinamente alegres e descontraídos. Todos à paisana e em mangas de camisa, riam e
chalaceavam como excursionistas no fim dum agradável passeio.
Os jornalistas que souberam a tempo daquela partida (entre eles, eu) acabaram por
conseguir acesso ao aeroporto, depois de prévia autorização do Almirante Vermelho que, no
entanto, não quis responder às nossas perguntas.
— Têm aí quem exerceu até agoira as funções de Secretário da Comunicação Social —
disse. — Falem com ele, se quiserem!
E voltou para junto do seu bando, rompendo logo em grandes gargalhadas, talvez no
desfecho de qualquer interrompida anedota.

O comandante Correia Jesuíno também se mostrava eufórico. Parecia um estudante, ao


acabar de receber a sua carta de curso. Tinha aplicado pesadas multas a jornais e revistas, por
dizerem verdades que lhe desagradavam. Colaborara activamente com os inconscientes de
Lisboa nos insultos e calúnias contra os portugueses brancos do Ultramar Português. A
entrega de Angola aos russos estava bem encaminhada. Era um herói! Sofrera alguns sustos
que ele próprio classificava de «bestiais». Mas, agora, já estava a salvo dos indecentes
colonialistas. Iniciara uma bela carreira e esperava a recompensa do general Vasco Gonçalves.
Por isso nos atendeu com um largo sorriso de triunfador:

— Digam!

Houve aqueles momentos de hesitação que sempre acontecem nestas ocasiões, com
olhares de uns para os outros, em mudo convite ao início das perguntas. E acabei eu por me
decidir:

79
— O senhor comandante foi, durante estes meses, o responsável pêlos meios de
comunicação, nesta terra agora em vésperas da independência. Que pensa da imprensa de
Angola?
— Penso que a imprensa de Angola é uma boa merda — respondeu ele, de repente.
E, notando que eu regulava rapidamente o meu gravador, acrescentou com total
inconsciência e alvar descaramento:
— Pode gravar à sua vontade. Eu repito: penso que a imprensa de Angola é uma boa
merda.
Já todos sabia-mos que ele era burro e mau — coisas que, juntas, são demais. Mas
aquela resposta, na hora da partida de uma terra que tinha todo o direito de o correr a
pontapés, excedia quanto podíamos imaginar.
Fitámo-lo com o espanto de quem depara com um mabeco a falar e desistimos de mais
perguntas. Por acordo tácito, sem mais uma palavra, nem para ele nem para o resto do bando,
saímos dali.
No dia seguinte, quando, na redacção do jornal, se estranhava o facto de o «Quinteto de
Cordas» ter partido antes da chegada do alto-comissário, o Baldaque deu uma explicação
singular:
— Tinham mesmo de partir sem mais demoras — disse —, não há figueiras em Angola...
Toda a imprensa reproduziu a resposta malcheirosa do ex-secretário da Comunicação
Social. E a revista Notícia, que só à sua conta pagara mais de uma centena de contos de multas
aplicadas pelo progressista da merda, revelava que o insultador dos jornalistas angolanos
tinha levado a esposa à Conferência do Alvor, como representante da imprensa de Angola.

Foi daí em diante que os portugueses de Luanda começaram a dizer que o brilhante
tocador de rabecão do quinteto de cordas era «Je» por parte da mãe e «suíno» por parte do
pai...

(1) Partido da Democracia Cristã de Angola.

80
GUERRA CIVIL

8.1—Aquilo é um regabofe, meus filhos!

Bem contra a sua vontade, por exigência de Holden Roberto e Jonas Savimbi, que não
podiam tolerar a descarada parcialidade do Almirante Vermelho a favor do MPLA, o
general Costa Gomes substituiu o seu amigo e correligionário pelo general de Aviação,
Silva Cardoso, que muitos angolanos consideraram um Homem honesto e um Militar
corajoso.
Mas o Baldaque, cada vez mais azedo, protestou imediatamente contra tal opinião, que
era também a minha.
— Deixa-te de ilusões, menino! Para ser melhor que o Rosa Coutinho não é preciso
muito. Mas -este também obedece aos traidores de Lisboa e mantém a nossa tropa na
triste figura de assistir friamente às maiores infâmias e crueldades. É ou não é verdade?
E o seu olhar era tão furioso que nem sequer tentei defender o novo alto comissário.
Fosse como fosse, o mal estava feito. E apagara-se definitivamente a última faúlha de
esperança, acesa pelas primeiras declarações do Governo de Transição.
O processo da imensa tragédia de Angola estava já na sua linha irreversível.

O Rosa Amaral, que voltava de uma rápida visita à Metrópole, vinha profundamente
desanimado.

— Aquilo é um regabofe, meus filhos! — anunciou, sintético e decisivo. — Depois do 12


de Março, que foi uma inventona da extrema-esquerda, os comunistas de Álvaro Cunhal
apoderaram-se de quase todos os postos-chave. O general Vasco Gonçalves é um pau-
mandado nas mãos deles. E o Portugal dos portugueses vai alegremente para o fundo,
gritando por mais dinheiro e menos trabalho, já!

— É o habitual fenómeno da descompressão — comentou o Sousa Quevedo, que não


mudava facilmente de ideias.
— É a descompressão do raio que os parta a todos! — vociferou o Baldaque, agora
quase sempre em maré de mau humor. — Em poucos meses, rebentaram com uma
nação de oito séculos de independência. Enquanto durar o dinheiro deixado pelo regime
deposto, brincam às cigarras cantadeiras. Quando a «pesada herança» acabar, o povo
acorda para a miséria a que o arrastaram e é capaz de pedir a conta dos festejos...
— Cala-te para aí, coruja de mau agouro! — increpou o Santos Gouveia.
— Bem... — fez o Rosa Amaral, na função de apaziguador — E como vai isto por cá?
— Malíssimo! — uivou o Baldaque. — No caminho rectilíneo para a guerra civil. Os
Movimentos, que se guerrearam nas matas, não se desabituam assim tão depressa. E
agora vai ser muito pior.

A vaga de pessimismo ia engrossando e alastrando. Também havia os que ainda


teimavam em acreditar numa independência real e decente, para todos os homens
decentes. E eu era um desses. Mas o vendaval dos factos tornava-se demasiado violento

81
para que lhe pudesse resistir por muito mais tempo essa mimosa flor da esperança que
é, na alma do homem, uma saudade de Deus.

Um dos brutos pontapés da nova realidade angolana, recebi-o eu em pleno peito


quando, num desses dias, fui abraçar o nosso director, que regressava depois de saber
que o Almirante Vermelho fora substituído.

Sem lisonjas, que as não sei usar, sempre admirei esse rapaz, novo e dinâmico, que
alguns dos meus colegas tratam por tu, porque andaram com ele no Liceu Salvador
Correia. Herdou o jornal do grande jornalista e grande português, que foi António
Correia de Freitas, e tinha sabido honrar a tradição do mais prestigiado órgão da
imprensa angolana, mantendo-o na mesma linha de rumo e melhorando-o
substancialmente no apetrechamento técnico, no aspecto gráfico e na rentabilidade
económica.

Foi por isso com muita e muito sincera alegria que o abracei efusivamente. O espanto
veio depois, quando ele me apresentou um preto, que estava sentado num dos maples
do gabinete, fardado de camuflado e com uma pistola metralhadora em cima dos
joelhos.

— Este é o comandante Cabango — disse com a maior serenidade. Apertei a mão


do guerrilheiro mas, logo que pude falar a sós com o director, perguntei-lhe o que
significava aquilo.

— Logo, explicarei a todos. Vou convocar uma reunião para esta tarde.

E na reunião explicou:

— Meus amigos — disse ele com certa emoção —, julgo que não duvidam da minha
amizade nem do meu respeito pela vossa opinião. Nisto, como em tudo o mais, tenho
procurado seguir o exemplo do meu tio. Mas agora tomei uma decisão sem vos
consultar, porque era urgente e vital. Durante o meu breve exílio na África do Sul,
obtive informações seguras sobre o que se trama contra esta nossa terra. E coloquei o
nosso jornal sob a protecção da FNLA.

— Da FNLA?! — gritou o Sousa Quevedo, com o sobressalto de quem pisa uma cobra
cascavel.
— Exactamente. Falei com Holden Roberto e verifiquei que é bem diferente da imagem
que todos nós fazíamos dele.
— Mas tu — interveio o Rosa Amaral —, tu que tanta vez arriscaste a vida no teu avião
de brinquedo, para evacuar portugueses feridos pela UPA, alinhas agora com esse
movimento?!
— Não quero o comunismo na minha terra — disse ele com profunda amargura.
— Chama-se a isto «anticomunismo primário» — lançou o Sousa Quevedo do seu canto.
— Chama-lhe o que quiseres. Para mim, o comunismo é o contrário de democracia. E
nós já estamos vendidos a Moscovo. Eu não aceito isso!
— Tu não podes estar de acordo com Holden Roberto — insinuou o Baldaque.
— Estou de acordo com ele num ponto essencial: somos ambos anticomunistas. Mas
admito que já nos encontramos perante opções de emergência. O que todos
deveríamos ter feito era cortar com o Governo de Lisboa logo após o 25 de Abril.
Simplesmente, deixámo-nos enganar miseravelmente por um pequeno grupo de
traidores. E agora, é tarde! Pela minha parte, já que não posso fazer mais nada, quero
ao menos lutar contra a instalação de uma ditadura nesta bela terra. E é tudo, meus
amigos.

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Levou-nos depois ao Gabinete da Direcção, onde nos apresentou o comandante
Cabango, como responsável pela nossa segurança.
O guerrilheiro, sempre sem largar a sua pistola-metralhadora, assumiu um ar simpático
para nos dizer que tinha quatro homens sob as suas ordens, que vestiam à paisana e só
ele sabia quem eram.

— Onde estão? — quis saber o Santos Gouveia.

— Desculpa, mas não pode dizer— respondeu ele.— Este serviço é assim mesmo... Mas
toda a gente pode trabalhar na confiança, que nós vai guardar tudo muito bem, faz
favor de acreditar...

Voltámos para a sala da Redacção, num silêncio consternado, que o Sousa Quevedo
quebrou de forma imprevista:

— Tenho de pensar noutro emprego...

— Porquê? — fiz eu.

— Todos aqui conhecem as minhas ideias...


— E alguma vez, neste jornal, se perseguiu alguém por causa das suas ideias?
— Bem sei que não. Mas agora, com esses «fenelas» cá dentro, quem é que manda no
jornal?

E não encontrei resposta para lhe dar...

Na verdade, -não houve qualquer espécie de pressão pana o despedimento daquele


conhecido e reconhecido adepto do Partido Comunista Português e, por isso mesmo,
naturalmente simpatizante com o MPLA. Mas foi ele mesmo que se despediu, e por um
estranho motivo: porque foi dispensada a colaboração dum velho jornalista, que há
cerca de quarenta anos mandava ao nosso jornal dois ou três artigos por semana. Isto
sem nunca falhar, mesmo quando estava de férias na Metrópole.
— Porque fecham assim a porta a um dos nossos mais antigos colaboradores? —
perguntou o Sousa Quevedo.
— Certamente imaginas quanto isso me custa — confessou o director. — A decisão não
foi minha.
— Bem sei. E, para te poupar novo desgosto, vou-me embora, antes que o Holden
Roberto te mande um bilhetinho a meu respeito.

As ideias do velho colaborador saneado eram inteiramente contrárias às de Sousa


Quevedo, pelo que a sua atitude foi considerada paradoxal por alguns colegas. Mas não
havia paradoxo nenhum: havia apenas dois homens igualmente sinceros nas suas
convicções e que, por isso mesmo, se respeitavam e estimavam.

E acontecia também que chegara a hora de pensar e agir na dimensão da enorme


tragédia que já pairava sobre Angola e sobre as suas gentes...

8.2 — Guerra dos Movimentos

Já disse que, ainda com o Almirante Vermelho a executar as ordens de Moscovo em


Angola, o MPLA atacou o quartel da tropa de Daniel Chipenda no Bairro da Caop. Os
brancos residentes naquela zona viram como alguns «pioneiros» das FAPLAS caíam por
terra, logo aos primeiros tiros. E condoeram-se dessas «pobres crianças», ceifadas pela

83
morte antes de atingirem a plenitude da vida. Soube-se depois que, na maioria dos
casos, as «pobres crianças» nem sequer estavam feridas. Ao primeiro contacto com os
horrores da guerra civil, tinham muito naturalmente desmaiado de medo.
Mas também houve bastantes mortos de verdade. Os guerrilheiros do antigo futebolista
da Académica de Coimbra foram desalojados e o MPLA inchou com a grande vitória.
A guerra civil já era um facto em Angola, quando o general Silva Cardoso entrou no
abandalhado Palácio dos governadores-gerais; e o mais que pôde fazer foi confinar-se
numa estrita imparcialidade entre os Movimentos que reciprocamente se odiavam e
hostilizavam, tornando completamente inoperante o Governo de Transição.

Entretanto, a parcialidade dos novos governantes de Lisboa a favor do MPLA era


manifesta e escandalosa, traduzindo-se em toda a espécie de ajudas e incentivos. As
Forças Armadas Portuguesas, completamente «desmotivadas», como descaradamente
afirmavam os seus oficiais mais progressistas, tinham perdido toda a coesão, toda a
disciplina, todo o prestígio e todo o respeito da parte de brancos e pretos.

Foi nesta vergonhosa situação dos últimos meses da administração portuguesa em


Angola, que as FAPLAS, secretamente instigadas e ajudadas por oficiais comunistas do
exército português, decidiram expulsar da capital as forças da FNLA e da UNITA. Com o
êxito dos primeiros assaltos, tornaram-se de uma arrogância insuportável. E todos os
dias aconteciam horrores em diversas zonas da cidade.

Num desses dias, o Baldaque apareceu na redacção a espumar de fúria.

— Que te aconteceu, homem? — perguntei, levantando os olhos duma prosa tirada a


ferros.

— Não aturo mais isto — bradou ele com uma voz de alucinado. — Vou-me embora!

— Mas que foi?


— Esta manhã, um piquete da UNTA decidiu impedir o pessoal da Petrangol de entrar na
Refinaria.
— É lamentável! — atalhei eu. — Se a Refinaria pára, vai faltar-nos a gasolina...

— Espera lá, comodista! Para mim o mais lamentável não foi isso. Que a Refinaria
suspenda a laboração por exigência de meia dúzia de desordeiros já nem me
surpreende. Se no porto não descarregam os navios; na Textang estão em greve; na
Cuca não trabalham; na Siga não trabalham; nas escolas não ensinam; no Governo não
governam — porque é que os homens do petróleo hão-de fugir a esta bela regra? Até
era um escândalo! O que me aborreceu deveras foi outra coisa. Vê lá se adivinhas...

— Não sou feiticeiro...

— Pois foi só isto: no caminho para o Alto da Mulemba, aonde ia em busca de notícias,
dois soldados das FAPLAS plantaram-se à frente do meu carro e mandaram-me parar.

Obedeci e perguntei o motivo da intimação.

— Atão o camarada não vê que estamos a içar a bandeira do MPLA. Sai já do carro e fica
aí quieto, até tocar o sinal.
E eu saí. E fiquei quieto e perfilado, como ordenavam aqueles dois garotos armados.
Mas já não fui à Refinaria. Que se lixe toda esta merda! Vou-me embora!
Mas não foi embora, não. Uma patrulha das FAPLAS prendeu-o nessa mesma tarde e
levou-o para o campo de prisioneiros instalado na Praça de Touros...

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Ao sair do jornal, encontrei a Mariluz, que mais uma vez me vinha falar do pai.
— O trabalho da construção -parou completamente e meu pai parece abúlico. Quase
não come. Quase não fala. Minha mãe anda a chorar pêlos cantos. Que hei-de eu fazer?
Isto vai de mal a pior...

— É uma fase que há-de passar — declarei sem grande convicção.

— Portugal já não manda nada nesta terra. E esses ministros inventados à pressa não
sabem ou não querem governar. Anda tudo à toa. O pessoal das obras não trabalha mas
quer continuar a receber e pede aumento de salário. E o nosso dinheiro sai-se
derretendo. Tudo isto está a matar meu pai. Talvez fosse bom que aparecesses lá por
casa para ver se o animas...

8.3 — Um pai aflito

Fui a casa do sr. Calabriz nessa mesma tarde.


Encontrei-o sentado à secretária, a fumar de uma maneira esquisita, já com o cinzeiro a
transbordar de pontas de cigarro.
Correspondeu molemente ao meu aperto de mão e disparou, sem mais preâmbulos:

— Está satisfeito?

— Não. Mas ainda me não deixei arrastar para os abismos do desespero.

— E eu até compreendo. Você continua a trabalhar. O trabalho distrai... O diabo é que


eu já não faço nada...

— Melhores tempos virão...

— Ou piores. Desde o 25 de Abril que nada vai para melhor. Já anda outra vez tudo aos
tiros.

— Bem sei. Mas tudo depende do Movimento que vencer.

— Não acredito em nenhum deles.

— É preciso acreditar em alguma coisa...

— Eu preciso é de morrer. Já não faço nada neste mundo. A dona da casa veio da
cozinha, cumprimentou-me amavelmente e perguntou-me se bebia um uísque.

— Bebe-mos um uísque — declarei, com um gesto associativo para o sr. Calabriz.

— Acha que me devo embebedar? — fez ele com amargura.

— Acho que deve reagir contra esse desalento, que não remedeia nada. E deixe lá de
fumar dessa maneira suicida! — acrescentei ao ver que ele acendia mais um cigarro.

Vieram os dois uísques e o pai Calabriz bebeu o dele de um só trago. Depois perguntou:

— Sabe o que disse hoje o garoto que me traz o seu jornal todas as manhãs? Vem
sempre à hora do almoço, porque sabe que lhe damos de almoçar... Mas sabe o que me
disse?

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— ?!

— Que, depois da independência, a minha casa vai ser para ele...

— E não lhe deu duas bofetadas no focinho?

— Não. Levei-o ali ao quintal, apontei-lhe a terra do jardim e declarei-lhe que, sim
senhor, que ele ia ficar ali, na minha casa, mas com sete palmos de terra a fazer-lhe
sombra.

«—E põe-te já a milhas, meu pequeno sacana!...»

Fugiu desabaladamente e nunca mais apareceu...


Ficámos ambos num silêncio meditativo, até que ele abanou a cabeça, como quem
afasta uma visão de pesadelo, e fez nova pergunta:
— E sabe que a Mariluz tem passado um mau bocado na Universidade?
— Não me falou em nada — respondi, sem ocultar a minha preocupação.
— Isso é bem próprio dela. Eu também o soube por portas travessas. E ela ainda ignora
que eu sei...
— Mas que se passa exactamente?
— Passa-se que os estudantes negros se matem com ela. Dizem-lhe por exemplo,
que vai ser uma boa sobremesa na festa da Independência...
E, num grito de cólera terrível:
— Mas eu queimo os miolos de quem se atrever a tocar-lhe! Outro silêncio, tão
medonho, que logo o tentei afugentar.
— Como soube?
— Pelo dr. Sílvio Miranda, que era professor dela e veio despedir-se de mim, antes de
embarcar para a Metrópole.

— Foi de férias?

— Foi-se embora definitivamente. Disse-me que já não podia aturar a Comissão


Administrativa da Universidade, constituída quase exclusivamente por estudantes do
MPLA. E, a propósito, contou-me vexames que estão a sofrer os universitários brancos,
sobretudo as raparigas. A Mariluz, coitada, não me diz nada porque me não quer
aborrecer ainda mais. Mas eu bem vejo que também ela anda muito triste. Pediu-me
autorização para tomar lições de Judo e eu dei-lha logo. Mas soubemos depois que os
professores dessa escola também já partiram... Você continua a pensar que não há
perigo para minha mulher e minha filha?...
— Começa a haver perigo para todos nós... — respondi evasivamente.

— Para uma rapariga como a Mariluz, o maior perigo não é a morte...

— Compreendo. Mas também o sr. Calabriz deve compreender quanto me custa


separar-me agora da Mariluz...

— E a mim, não custa? O que tem de ser tem muita força!

— Está bem: eu tratarei do embarque, desde que autorize que, primeiro, se realize o
nosso casamento.

— O vosso casamento?! — fez ele, colhido de surpresa.

— Sim. Antes disso, não consigo e ncarar a ideia de a deixar partir.

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— Já lhe falou no assunto?
— Vou falar-lhe hoje mesmo e tenho a certeza de que vai concordar.
— Também concordará em partir para a Metrópole, só com a mãe, depois de casada
consigo?

— Saberei convencê-la. Talvez até eu embarque também...

Pela primeira vez aflorou um sorriso ao rosto torturado daquele homem. Não era
alegria, com certeza, mas era o sinal exterior de um grande alívio na sua profunda
ansiedade.

Pediu à mulher mais dois uísques.

— Para celebrar... — explicou.

— Para celebrar, o quê? — perguntou ela.

— Parece que vai haver um casamento...

A dona da casa compreendeu imediatamente e brindou-me com um sorriso, que já


vinha eivado de carinho maternal.

8.4 — A evidência dos factos

Comecei imediatamente a tratar da papelada. Mas, agora, nos departamentos oficiais


ninguém trabalha, ninguém atende, ninguém informa, ninguém sabe nada. Tudo se
complica. A grande tragédia chega, explosiva, sangrenta, incontrolável...
Em novo assalto aos quartéis dos outros dois Movimentos, as FA-PLAS, descaradamente
ajudadas pela facção comunista das Forças Armadas Portuguesas, obtêm sucessivos
êxitos. Após a tomada do grande quartel da FNLA, na Avenida Salazar, o MPLA monta ali
um quadro macabro: vísceras humanas em balcões frigoríficos: corações, fígados, rins,
tudo num mostruário de horror.
A propaganda do MPLA afirma que tudo aquilo constituía reserva alimentar dos
guerrilheiros do ELNA (a).

Fui ver e logo me convenci de que se tratava duma farsa muito mal montada. As
paredes da sala onde se exibia a hedionda exposição estavam crivadas de buracos de
balas, aqui e além entremeados de grandes rombos produzidos pelas granadas e
foguetões. Só os balcões frigoríficos, com as vísceras humanas que as FAPLAS afirmavam
ter lá encontrado, permaneciam intactos. Uma coisa totalmente inacreditável!

Correu depois que o MPLA tinha trazido as vísceras da sala de anatomia do Hospital
Universitário, obrigando a médica branca a entregá-las.

No desígnio de apurar a verdade, procurei essa médica, mas não a encontrei. Alguém
me assegurou que a tinham levado para o Campo de Prisioneiros da Praça de Touros...

Entra o mês de Junho. Bombardearam o Hospital de S. Paulo.


— Chegamos aos dias do fim — comenta meu pai, quando uma amiga da tia Isaura, que
é enfermeira no Hospital Universitário, vem contar que também o atingiram com fogo
de morteiros.

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— Há três dias que aquele hospital é um verdadeiro inferno — declara a senhora dona
Leonor da Silva, que é a informadora. — Eu trabalho num dos blocos cirúrgicos e ando
tão repassada de horror que, apesar de exausta, já não consigo dormir. Esta noite foram
novamente buscar-me, porque havia montes de feridos. Mas, perto do Cinema de S.
Paulo, a ambulância que me levava foi alvejada com rajadas de metralhadora -e
voltámos para trás. Depois, deu-se o tiroteio que todos ouvimos. E à hora do almoço, a
enfermeira-chefe foi a minha casa comunicar que o Hospital Universitário está debaixo
de fogo de morteiros.

— Há feridos? — quis saber a tia Isaura.

— Muitos. E alguns mortos. Estão agora a tentar transferir os doentes para o Hospital
Maria Pia — respondeu a enfermeira Leonor da Silva. E acrescentou que a enfermeira-
chefe a tinha ido convidar a dar uma ajuda, mas que tivera de recusar porque já não
podia mais.
— O pessoal serventuário, quase todo da UNTA (União Nacional dos Trabalhadores de
Angola) nega-se a trabalhar e somos nós que temos de fazer tudo.
— E o moral dos brancos é bom? — perguntei eu.

— Temos um certo brio profissional — declarou a enfermeira. — Mas há coisas que


custam muito. Quando, há dias, eu falei em abalar para a Metrópole, um negro disse-me
que, se fosse para o Puto, tinha de levar um mulatinho dele na barriga. Até os médicos
são insultados...

— Todos os brancos estão a ser insultados, agredidos e caluniados — reforçou meu pai
com ar sombrio. — E nem sequer é de admirar. Há meses que na Metrópole nos
chamam fascistas, reaccionários, exploradores e ladrões. Os pretos de Angola apenas
copiam as palavras e atitudes da escumalha que usurpou o Poder na nossa desgraçada
Pátria. E, para lhes facilitar o trabalho, até nos mandaram, para a imprensa e a rádio
daqui, alguns elementos do Partido Comunista Português. Que dizes a isto, filho?
— Digo que, sob este aspecto, o pai está cheio de razão. Lisboa prometeu a
independência a Angola, mas pretende impor-lhe um determinado regime. O que é
mau...

— É péssimo! — declarou meu pai com veemência. — O comunismo é tudo quanto há


de mais contrário ao temperamento dos povos angolanos. E eles querem implantá-lo
aqui.

— Querer nem sempre é poder — objectei.

— Por eles pouco poderão, inclusive porque já demonstraram a sua vergonhosa


cobardia. Mas a Rússia é uma grande potência. Com um regime implacável...

Receio que estejamos todos perdidos, meu filho. E oxalá que isto seja apenas
pessimismo de um velho que vê todo o seu mundo desmantelado...

Infelizmente, não se tratava de pessimismo de velho: era a evidência dos factos.

Por todo o mês de Julho, a guerra continuou furiosa em Luanda. Centenas de cadáveres
apinhavam-se nas mesas e no chão da Casa Mortuária. No Hospital Maria Pia, único que
ainda funcionava, era incessante a entrada dos feridos. O fogo de armas ligeiras e
pesadas ouvia-se em toda a cidade e, nas zonas já conquistadas pelo MPLA, o Poder

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Popular, armado com a conivência de Rosa Coutinho, lançava-se na caça aos filiados ou
simpatizantes dos outros movimentos, espancando, violando, roubando e matando.

Vi como, a pequena distância da Alameda Dom João II, uma Panhard dos Dragões ainda
afugentou os larápios que pilhavam as casas dos brancos. Mas também vi como eles
voltaram depois, para completar o saque.
Os moradores das torres do Prenda puderam observar como os soldados de Agostinho
Neto encostavam os adeptos da FNLA às paredes das casas abandonadas, fuzilando-os
sem mais formalidades. Na Avenida dos Combatentes, dois pretos foram abatidos como
cães raivosos, só porque usavam botas como os soldados do ELNA.

Por entre o tiroteio, as sirenes das ambulâncias lançam continuadamente o seu uivo
sinistro de angústia e de morte. Em toda a cidade paira o cheiro acre do sangue
derramado, enquanto não é superado pelo fedor nauseabundo dos cadáveres em
putrefacção.
Os brancos fugidos de Malange afirmam que a cidade foi quase toda destruída. Sabe-se
que Dalatando (a que já não chamam Cidade Salazar...) está a sofrer a mesma sorte. E
correm os mais diversos boatos. Afirma-se que Daniel Chipenda vem aí, para vingar a
derrota dos seus guerrilheiros no quartel do Bairro da CAOP. Diz-se que há em Luanda
soldados do COPCON, vindos expressamente, com homens armados da LUAR, para
ajudar o MPLA. O Rosa Amaral assegura-me que o Almirante Vermelho (que usurpou o
título de almirante, porque é apenas capitão de fragata...) está secretamente no Lobito,
a planear com elementos da Marinha de Guerra Portuguesa a expulsão da UNITA e da
FNLA de todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.
Ao abrir da segunda quinzena de Julho de 1975, a FNLA mantém-se apenas no seu
último reduto: a Fortaleza de S. Pedro da Barra. E os sitiados declararam que, se forem
atacados, bombardearão a Refinaria de Petróleo, que lhes fica a cerca de 1500 metros
de distância...

8.5 — Alguns casos confrangedores

O comandante Cabango e os seus quatro vigilantes desapareceram sem deixar rasto.


Também o Rosa Amaral não aparece na Redacção desde há dois dias. E não foi
encontrado no seu quarto de solteiro, na Avenida do Brasil. Ninguém sabe dele...

Vêm ao meu jornal contar-nos casos confrangedores.

Um carpinteiro da Companhia Teatral de Angola (CTA), com 55 anos de idade, informa


que embarca nessa mesma noite, porque uns pretos embriagados quiseram violar-lhe a
filha de 13 anos.
— Consegui afugentar os patifes e fui depois pedir a protecção da polícia portuguesa.
Responderam-me que não podiam fazer nada. Vou--me embora.
Um antigo soldado, que veio para Angola em 1962 e cá ficou, depois de terminada a sua
comissão militar, conta a sua má sina:
É casado e pai de um bonito par de crianças. Trabalhou no Quicolongo durante os
últimos dez anos. Agora que também lá começaram aos tiros, conseguiu fugir, com a
mulher e os filhos, para Malange. Como também naquela cidade tivesse começado a
confusão, fugiu mais uma vez e andou perdido no mato durante vinte e três dias. Passou
em Henrique de Carvalho — e havia confusão. Atingiu o Luso — e havia confusão.
Desceu a Nova Lisboa e verificou que, também ali, a tropa portuguesa estava inoperante
e apática, como se fosse constituída por soldados de chumbo. Meteu-se, então, a
caminho de Luanda, aproveitando uma escolta de Forças Integradas, composta por

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soldados portugueses e guerrilheiros da UNITA. Para cá de Quibala, os guerrilheiros da
UNITA foram atacados pela tropa do MPLA e dizimados sob os olhos dos soldados
portugueses, que nada fizeram para os proteger.
Tinha chegado finalmente a Luanda, há dez dias, e tratou imediatamente do embarque
para a Metrópole, porque os brancos já não podem viver nesta terra em que tanto
trabalharam. A família já está no aeroporto, à espera do avião que os levará para
Lisboa. Ele veio ao Banco de Angola tentar cambiar algum dinheiro. Não conseguiu
nada. Os 10 contos que ainda tinha, trocou-os na Portugália por três notas de conto do
Banco de Portugal. E é com isso que vai regressar à sua Pátria...
Outro conta que trabalhava nas Mabubas, desde há 17 anos. Lá tinha casado e assistido
ao nascimento dos seus três filhos. No princípio da semana, soube que a tropa do ELNA
tinha abandonado aquela zona e, logo a seguir, chegaram as FAPLAS, que levaram tudo
a ferro e fogo, chacinando os brancos e roubando tudo quanto encontravam.
— Quando atacaram a minha casa — conta o desgraçado —, minha mulher fugiu para a
varanda das traseiras, com o filho mais pequeno ao colo. Mas os bandidos perseguiram-
na e cortaram-nos literalmente ao meio, ao filhinho e a ela, com sucessivas rajadas de
metralhadora. Fizeram isto em pura crueldade, porque a primeira rajada chegou para os
matar... Arremeti contra os brutos mas, não sei porquê, não me mataram. Limitaram-se
a dar-me uma coronhada na cabeça, que me fez perder os sentidos... Voltei a mim na
carrinha dum comerciante preto do Caxito, meu antigo colega de trabalho, que nos
trouxe para Luanda, a mim e aos dois filhos que me restam. Chego aqui — e é o que se
vê... Que posso eu fazer, sem emprego, sem a minha querida mulher, e com dois filhos a
sustentar? Era bem melhor que me tivessem matado...

— Saído do Bairro da Cuca — continuou — onde o Poder Popular estava a matar e a


roubar, vim para casa dum amigo que vive no Bairro da Vila Alice. Fugi dum inferno para
cair noutro. O Bairro da Vila Alice parece uma roda de fogo preso. É um contínuo
ribombar de morteiros, por entre as gargalhadas das metralhadoras. Há constantes
matanças em plena rua. Apesar de estar mais próximo do centro da cidade, os roubos
não são menos e os mortos ainda são mais. Nas ruas desertas, zumbe continuadamente
um vespeiro de balas...

— Eu fui soldado na Guiné Portuguesa, que é um inferno de calor. Depois de lá cumprir


o serviço militar (e aquilo — podem acreditar — era mil vezes pior do que em Angola
onde, nos últimos tempos, já ninguém sentia o terrorismo), vim para esta grande terra,
a conselho dum primo. Tenho mulher e quatro filhos, o mais velho com 12 anos e o mais
novo com 3. Maldito conselho daquele maldito primo! Estamos no aeroporto, à espera
de que um avião estrangeiro nos salve desta tragédia nacional...

Estes são apenas alguns dos muitos dramas cujas narrativas pungentes chegam até à
redacção do meu jornal.

A ameaça de bombardeamento da Refinaria da Petrangol, situada no alto da Mulemba,


bem perto dos sitiados da Fortaleza de S. Pedro da Ba r r a , constitui agora um novo
facto de pânico. Os luandenses vivem num clima de terror.

Na verdade, os homens de Holden Roberto são como tigres encurralados e podem


provocar uma desgraça de consequências imprevisíveis. Possuem armamento pesado e,
na Refinaria, há muitos milhares de toneladas de produtos altamente inflamáveis que
podem atingir com toda a facilidade. Diz-se que só a explosão dos seis depósitos de gás
butano pode arrasar uma grande parte da cidade.

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A ameaça é muito séria e tem travado o ímpeto do MPLA e de todos aqueles que o
ajudam. Finalmente, obedecendo a instruções de Holden Roberto, os sitiados de S.
Pedro da Barra saem do seu refúgio e, pela calada da noite, tentam alcançar a tropa do
ELNA, que desce do Caxito.

O MPLA torna-se senhor exclusivo da capital de Angola.

8.6 — FAPLAS e Comandos

— Dizem que rebentou uma bomba no nosso jornal — veio anunciar o Santos Gouveia,
com olhos de alucinado. — Tu não ouviste um grande estrondo?
— Ouvi muitos. Estrondos é o que mais se ouve agora nesta cidade enlouquecida.
— Aquele foi diferente — teimou ele. — Eu também não liguei; mas agora que me
falaram da bomba, compreendo. Anda daí comigo!
Fomos. Rompemos por entre a multidão acumulada junto ao velho edifício do jornal e
verificámos que as instalações da redacção estavam transformadas num monte de
escombros.
Senti-me invadido por uma íntima tristeza. Quem trabalha afeiçoa--se ao seu local de
trabalho. E o nosso director, que está novamente na África do Sul, tinha melhorado
todas as instalações, incluindo a redacção, que já beneficiava de ar condicionado.
A bruta carga de plástico destruiu quase todo o primeiro andar, mas poupou as oficinas
do rés-do-chão. As máquinas funcionam e o jornal pode continuar a sair.
Não temos secretárias, falta o telex, não há máquinas de escrever. Mas ainda não nos
cortaram a cabeça. E um repórter, desde que tenha ideias, uma esferográfica e uns
pedaços de papel, pode exercer a profissão.
Foi o que disse aos meus colegas, que acorreram imediatamente, como eu e o Santos
Gouveia, e concordaram em pleno. O jornal vai sair amanhã, à hora do costume.

Já estamos muito desfalcados. Além do director, mais uma vez longe de Luanda para
salvar a vida, o Baldaque -está preso, o Rosa Amaral desapareceu sem deixar rasto e o
Sousa Quevedo foi tentar vida no Brasil. De maneira que, neste amanhecer trágico,
somos apenas o Santos Gouveia, o Maia Campita, o Carlos Pontes, o Gama Ribeiro e eu.

— Isto é tudo uma grande chatice — resumiu o Gama Ribeiro, cofiando o seu bigode
farfalhado.

— Ainda podia ser pior— declara o Maia Campita que, agora sim, já conseguiu
emagrecer uns quilos. — Vocês sabem que, por mero acaso, faltei ao meu turno da
noite?

— É verdade! — concordou o Carlos Pontes. — Alguém acendeu por ti uma velinha a


Nossa Senhora de Fátima.
— Sabe-se lá... Só sei que o meu despertador entrou em greve sem aviso prévio e eu
dormi desabaladamente até há bocadinho... Bem: vamos lá trabalhar.
Durante todo o dia, o nosso trabalho esteve bastante prejudicado pela contínua romaria
dos mirones, que vinham ver os estragos, e até por bons amigos, que tentavam insuflar-
nos uma coragem que eles próprios já não sentiam.
A Mariluz foi das primeiras a aparecer. Mas, quando me viu, ainda vivo e são, abraçou-
se a mim a chorar e partiu de novo, sem dizer uma palavra, sem mesmo me informar de
que o pai estava de cama, com 39 graus de febre.

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No dia seguinte, às 8 da manhã, o jornal já andava na rua, com uma extensa reportagem
dos últimos acontecimentos e um editorial da minha lavra, que era, todo ele, um apelo à
conciliação e ao trabalho ordeiro, coisas ambas elas indispensáveis à construção de uma
real independência e condições de progresso e bem-estar para a população de Angola.

Mas as nossas bem-intencionadas palavras, já tocadas dum crescente nervosismo,


perdiam-se ingloriamente no tumulto das ruas e na vertigem dos acontecimentos.
Foi por esses dias que uma patrulha portuguesa sofreu uma cobarde agressão das
FAPLAS, que lhe ocasionaram algumas baixas. Travando a custo a fúria dos «comandos»,
que pretendiam vingar imediatamente os seus camaradas mortos, o general Silva
Cardoso intimou o MPLA a castigar os agressores e a apresentar desculpas até às 8
horas do dia seguinte.
Ao expirar o prazo concedido, uma força dos «comandos» tomou posições junto do
principal quartel das FAPLAS e aguardou durante mais noventa minutos qualquer
atitude conciliatória dos soldados de Agostinho Neto.
Atacados novamente com rajadas de metralhadora, os «comandos» investiram
irresistivelmente contra o quartel e infligiram um duro castigo aos fanfarrões.
O MPLA rompeu num grande berreiro para Lisboa e o general Costa Gomes chamou à
capital portuguesa o general Silva Cardoso, que ainda inspirava alguma confiança à
esmagadora maioria das populações de Angola.

Logo a seguir, apareceu de novo em Luanda, acompanhado por alguns dos seus
capangas, a figura sinistra do almirante Rosa Coutinho. Sob a sua orientação e
certamente na execução de planos urdidos em Cuba, quando lá foi com o major Otelo
Saraiva de Carvalho, promoveu que a Marinha de Guerra portuguesa conquistasse
sucessivamente, para o MPLA, todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.

Em Lisboa, o general Silva Cardoso, na Radiotelevisão Portuguesa, declarava-se


enfaticamente farto de ódio e de sangue. E, em Angola, intensificava-se a debandada
dos portugueses, já completamente desiludidos, já em transe de desespero…

(a) Exército da Libertação Nacional de Angola.

92
A DEBANDADA

9.1 — Conselho de família

Noto que meu pai tenta agora ocultar-me as suas crescentes preocupações. Está
certamente ávido de notícias, porque constantemente me pede as «últimas novidades». Mas
parece-me claro que evita os comentários pessimistas, precisamente quando os
acontecimentos justificam plenamente aquela frase com que se demarcou do nosso
entusiasmo na manhã de 26 de Abril de 1974:

— Desculpem, mas não alinho...

Agora, agarra-se às últimas razões de esperança, com uma pertinácia e uma coragem
que muitos rapazes novos já não sentem.

Vi-o de rosto crispado e pálido, quando do rebentamento da bomba no meu jornal. Mas
limitou-se a dizer-me que devia ter cuidado.

— Claro que um homem deve saber enfrentar o perigo — ponderou ele com uma calma
que era apenas força de vontade. — Mas precisas de pensar também naqueles que te
estimam...

— Claro que penso, pai.

— Não julgues que me refiro principalmente a mim. Eu já sou o passado... Mas há o teu
futuro: essa moça com quem vais casar.
— Nunca pensei que fosse uma coisa tão difícil. Ainda não consegui todos os papéis
necessários para o casamento. Agora, nas repartições, gasta-se o tempo todo a discutir
política...
— Tenho pena de te não poder ajudar. Mas os meus amigos já não valem nada. E eu
estou na lista negra dos novos governantes.
— Se calhar, nem está... Os novos governantes também apreciam a honestidade... — E,
a mudar de assunto, informei:
— Sabe que o pai da Mariluz está doente?

— Só agora mo dizes... Vamos vê-lo!

O sr. Calabriz já andava a pé, porque a mulher sabia tratá-lo. Recebeu-nos a Mariluz,
que beijou meu pai com alegria repassada de carinho.
— Em maré de dificuldades — declarou meu pai, logo a seguir às apresentações — é
bom que as famílias se juntem. E nós vamos ser família. Nem lhe pergunto pela saúde, porque
já vejo que deu na doença um bom pontapé à Eusébio...
— Isso de Eusébio é favor, porque eu já não posso com uma gata pelo rabo — rectificou
o dono da casa. — O que acontece é que, aos mosquitos que me mordem, sou eu que lhes
pego o paludismo. Por isso já nem ligo a picadelas de anófeles. Há coisas que me preocupam
muito mais... — E, voltando-se para mim, esclareceu:

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— ...Por exemplo, essa bomba no seu jornal.

— A bomba era de «espera, galego» — minimizei eu, afectando uma grande serenidade.
— Não estragou nada de insubstituível.
— Mas representa um aviso muito sério — insistiu ele. — Vivemos as horas do diabo!...
E esses papéis do casamento?
— Hei-de consegui-los, custe o que custar!
— Eu já acendi uma vela a Santo António — interveio a Mariluz com o seu bom sorriso.

— Pois é... — fez ambiguamente o meu futuro sogro.

9.2 — Última alternativa: fugir

A situação em Luanda agrava-se de dia para dia. Com os seus conhecidos apoios, as
FAPLAS movem uma perseguição feroz contra os luandenses ligados (ou supostamente
ligados) aos dois Movimentos expulsos da cidade. Quando os não matam logo, sem perder
tempo com formalidades, levam-nos para a Praça de Touros, transformada em campo de
concentração. Milicianos do Poder Popular violam mulheres em plena rua ou assaltam as
moradias dos brancos, com o mesmo danado intuito. Numa vivenda do Alvalade, uma menina
de 12 anos sucumbiu à brutalidade de nove estrupadores sucessivos. E uma cena idêntica
sucedeu no Largo dos Lusíadas, à vista de toda a gente, junto da estátua que o povo crismou
de Maria da Fonte.
Perante espectáculos tão infames, a tropa portuguesa, infestada de uma hedionda
escumalha intencionalmente mandada pelos comunistas de Lisboa, mantém-se
vergonhosamente apática, quando não descaradamente colaborante.
Em face de tudo isto, aos portugueses de Angola só resta uma alternativa: fugir. E,
completamente abandonados pelo Governo da sua Pátria, sem a menor confiança no sucessor
do general Silva Cardoso, dirigem-se, em grandes multidões, aos consulados estrangeiros,
nomeada mente aos dos Estados Unidos, da França, da Alemanha Ocidental, da Bélgica e da
África do Sul, pedindo aviões que os levem para longe desta cidade, agora transformada em
valhacouto de ladrões, estrupadores e assassinos.
E, como diria o cronista Fernão Lopes, é coisa tristíssima de ver, na terra ainda
portuguesa de Angola, a lamentável procissão destas aflitas gentes de todas as raças,
suplicando a estrangeiros o auxílio que lhes é negado pelo Governo de Lisboa, totalmente
absorvido na miserável tarefa de continuar a destruir os restos de uma nobre e antiga nação.
As palavras que proferem não podem deixar de exprimir a sua enorme raiva e o seu
profundo desespero.
— Esses tipos que agora governam em Lisboa são todos uns filhos da puta! — berra um
camionista moreno, de olhos ardentes como tições.
— Temos agora um Governo de bandalhos sem ponta de vergonha! — reforça o dono
de um dos melhores prédios da Avenida Marginal, que já se sente reduzido à miséria.

— Não haverá quem castigue os responsáveis por toda esta desgraça? — clama uma
vendedeira de peixe do Mercado dos Lusíadas, que já abandonou a sua banca, porque não há
peixe para vender.

— Esse malvado Rosa Coutinho está cá outra vez? — pergunta um construtor civil, que
tem todas as suas obras paradas.

— Tu para onde vais, Zé Manuel?

— Sei lá... Para longe deste inferno!

— Quando vai acabar a confusão? — perguntam ansiosamente muitos pretos.

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Tudo isto e muito mais, com as palavras mais expressivas e as pragas mais contundentes
do rico vocabulário português, chega até aos ouvidos do corpo diplomático acreditado em
Luanda, ainda na vigência da soberania portuguesa. No julgamento dos representantes das
nações civilizadas da Europa e da América, durante estes dias trágicos de Setembro de 1975,
os actuais detentores do poder em Lisboa e os seus delegados em Luanda devem ter descido
abaixo da última cotação possível para seres humanos, porque a sua abjecção atingiu
requintes inconcebíveis. Com um louco grotesco num cargo que foi exercido pelo dr. Salazar,
com um Chefe de Estado eleito por três votos (incluindo o seu), com um alto-comissário em
Luanda, escolhido pêlos comunistas de entre os músicos do famigerado «quinteto de
cordas», com o destino da sua maior província africana a ser decidido em Cuba e Moscovo —
é o próprio destino de Portugal que se afunda vergonhosamente no lodo e na merda.

Nunca um país, mesmo sob a pata dos invasores, foi tão profundamente humilhado e se
comportou com tanta indignidade e cobardia. Uma antiga e nobre nação, que soube realizar
sozinha um dos mais brilhantes capítulos da História Universal, e ainda há menos de dois anos
constituía um exemplo de coragem e determinação, torna-se de repente um motivo de
lástima ou de escárnio para todo o mundo civilizado, merecendo amplamente e qualificativo
de «manicómio em auto-gestão».
Como poderiam os bons portugueses de Angola escolher palavras moderadas para
exprimir a sua raiva e o seu desespero?...
Na verdade, durante essas concentrações de muitos milhares de portugueses, vendidos
ao comunismo internacional pela mais ignóbil quadrilha de traidores que ainda houve em
Portugal, ouvem-se acusações terríveis. Por exemplo, a um dos mais antigos alfaiates da
cidade, um danado tripeiro que há mais de quarenta anos trabalha, com alguns pretos do
mesmo ofício, num pequeno apartamento bem próximo da redacção do meu jornal, ouvi eu
dizer, para um dos seus habituais fregueses, que «os safardanas da descolonização contavam
com a chacina de todos os brancos de Angola».

— Homem — protestou o outro —, não será tanto assim...

— É assim mesmo! — teimou o alfaiate. — Você não leu essa carta do Almirante
Vermelho (mil diabos o levem!), a aconselhar o Agostinho Neto a matar os brancos, sobretudo
mulheres e crianças, porque só assim os malvados colonialistas se iriam embora?

— E será autêntica essa carta?

— Está lá, bem clara, a assinatura do malandro, sobre o papel timbrado do Governo
Geral de Angola!

— Custa a acreditar...

— Pois a mim não me custa nada. Tudo é possível, nessa canalha que nos vendeu. E
ainda há coisas piores. Contaram-me que um dos grandes políticos de agora afirmou no Brasil
que os portugueses de Angola são para atirar aos tubarões...
Trazem o povo enganado sobre toda esta desgraça a que chamam «descolonizarão
exemplar» e não lhes interessa nada que nós regressemos para contar a verdade...

— E conseguiremos regressar?...

— Espero que sim. Não ouviste o que disse o cônsul dos Estados Unidos?...
O cônsul geral dos Estados Unidos, visivelmente impressionado pela aflição de tanta gente,
assegurou que o seu Governo começaria imediatamente a enviar aviões. E o mesmo
prometeram os cônsules da França, da Alemanha Ocidental e da África do Sul. Um grande

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movimento de solidariedade internacional intervinha para salvar a vida de quase um milhão
de portugueses.
Se tal estava, ou não, nas intenções dos que planearam e realizaram a entrega de Angola
ao Comunismo Soviético, só o poderemos saber quando todos esses criminosos forem
expulsos dos cadeirões do poder. Por agora, o certo é que aos russos convém esvaziar o
território dos «quadros» portugueses, porque o processo mais fácil de assumir o poder
efectivo no novo país soberano é substituir os portugueses nos seus cargos, nas suas
empresas, nas suas casas e nos seus bens.
Meu pai, a quem acabo de falar neste assunto, contando-lhe o que há horas ouvi ao
alfaiate, puxou os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados e declarou judiciosamente
que o desespero quase sempre conduz a injustiças e a exageros.
— E nota que eu não vou desculpar os responsáveis por esta imensa tragédia —
acrescentou com certa brusquidão. — Esses hão-de ficar amarrados, para sempre, ao crime
mais infame que se praticou em toda a nossa história...
— Volta a ser muito duro, pai...

— Duros e cruéis são os factos, que até com os olhos fechados nos causam um indizível
horror. O procedimento de Lisboa, no caso de Angola, já não pode ter atenuantes de política
ou ideologia. Repito que é um crime: um crime hediondo, repugnante, imperdoável...

Calou-se, passou de novo a mão direita pelos olhos, como que para afastar uma visão de
inferno, e recomeçou mais sereno:
— Bem: voltando ao assunto, julgo que não é preciso pensar em sinistros planos de um
premeditado extermínio dos portugueses de Angola. Além de tudo o mais porque — acredita,
meu rapaz — eles ainda nos têm medo... De resto, o objectivo de abrir vagas para os russos e
cubanos — que eu aceito seja uma das determinantes de toda esta desgraça — também pode
ser conseguido com a debandada que já começou. E repara que as próprias autoridades
portuguesas (ou isso que para aí se exibe com esse nome) declararam que não podem garantir
a segurança de ninguém que aqui permaneça para além do dia da independência. Não parece
um incitamento à fuga?

— Certo! — concordei. — Mas se este êxodo bastará para os desígnios de Moscovo, que
nos quer substituir em Angola, para o conjunto dos responsáveis pela descolonização, o
regresso de centenas de milhares das suas vítimas constitui certamente um risco muito sério.

— E acreditas, por isso, que eles tenham jogado numa chacina geral dos brancos?

— Já não sei no que deva acreditar. Só sei que fizeram tudo para excitar o racismo
negro. Não houve nome feio que não chamassem aos brancos na imprensa, na rádio e na
televisão. E também sei que só a morte cala definitivamente a voz das testemunhas
incómodas. Por isso me impressionaram tanto as palavras daquele alfaiate, que até me lem-
brou o Fernão Vasques da História.

— Pode acontecer que ainda apareça um novo Fernão Vasques — insinuou meu pai
sibilinamente. — Mas, entretanto, vamos agora aos factos: qual é, neste momento, a
perspectiva de Angola?

— Pretende que lhe faça o ponto da situação?

— Exactamente. Já perdi o fio à meada, porque o teu jornal há três dias que não sai...
— E quando voltar a sair, já não será o mesmo. Passa a ser controlado por uma comissão
da UNTA H, reforçada por um delegado do Comité Político do MPLA. E não tem saído por falta
de papel. Ainda há bastante nos nossos armazéns do Bairro da Cuca. Mas as FAPLAS cercaram

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a zona e não deixam transitar os civis para além da passagem de nível do Caminho de Ferro de
Malange.

— Entendido. E que sabeis vós, no jornal?

— Consta que os homens da UNITA, com o apoio da África do Sul, estão a chegar à
Barragem de Cambambe. E a tropa de Holden Roberto, que integra alguns antigos oficiais do
Exército Português, já retomou o Caxito e vem novamente a caminho de Quinfangondo, com o
objectivo de ocupar a Estação de Captação de Agua, no Rio Bengo. Diz-se que o cerco a Luanda
se fechará em breve e que a cidade poderá ser bombardeada pela artilharia pesada. Mas um
elemento da FNLA, que conseguiu entrar na nossa redacção exibindo um emblema do MPLA,
garantiu-nos que Holden Roberto poupará as principais zonas residenciais, nomeadamente as
da Baixa, do Aeroporto e do Palácio do Governo. Prevê-se a ocupação das estradas que dão
acesso à capital de Angola, para lhe cortar os abastecimentos, mandando então um ultimato a
Agostinho Neto. Se ele se não render, cortarão a água e a energia eléctrica antes do assalto
decisivo.
— Bonita perspectiva! — concluiu meu pai. — E nós, que vamos fazer?
— Continuo a lutar pela obtenção dos documentos para o casamento. Mas, entretanto,
também já estou a tratar das nossas passagens. E quando digo «nossas» incluo as da Mariluz
e família. Em último caso, peço ao padre Freitas que nos case com os documentos que
tivermos e regularizaremos depois o problema civil em Lisboa. Eu ainda não desanimei, pai! —
Nem deves desanimar — disse ele, forçando um sorriso de esperança e compreensão. — Mas
eu ainda não te disse que queria regressar a Lisboa...
— Ter a passagem garantida não prejudica nada...

9.3 — No Aeroporto de Luanda

Setembro aproxima-se do fim.


Como ainda se não sabe quando voltará a sair o jornal, passei toda esta tarde no
Aeroporto.

A bela aerogare, donde já retiraram a placa comemorativa da inauguração pelo marechal


Craveiro Lopes, e grande parte da zona exterior voltada para as placas de estacionamento
estão transformadas em acampamento de fugitivos, sob a protecção dos «comandos» e dos
pára-quedistas. É um espectáculo confrangedor. Milhares de pessoas aguardam
pacientemente os aviões da ponte aérea. Famílias inteiras, com crianças de todas as idades, ali
vivem desde há dias, dormindo ao relento e alimentando-se de frutas e conservas. Há meninos
que choram com fome, enquanto outros guardam ciosamente os seus bens mais estimados:
uma boneca vestida de minhota, um Tio Patinhas de plástico que até grasna se lhe apertarem
a barriga, um cãozinho de que não quiseram separar-se.

Toda aquela gente parece apática, resignada, já esgotada em toda a sua capacidade de
sofrimento, sem outra ambição que não seja a de sair de Luanda o mais depressa possível.
Trocam-se automóveis por alguns maços de cigarros. Entregam-se aos criados pretos as
chaves de ricas vivendas. Dão-se dezenas de contos em dinheiro angolano por algumas notas
de cem escudos do Banco de Portugal.

Há senhoras que lavam a roupa nos lavatórios das instalações sanitárias. Outras
cozinham ao ar livre alguma sopa ainda possível. Paira no ar o odor de corpos, há muitos dias
sem banho, nem mudança de roupa.

Os soldados portugueses, não obstante o aviltamento a que têm estado sujeitos durante
os últimos tempos, recuperam aqui uma certa dignidade perante esta grande velada de
indizíveis angústias, nos dias da vergonha. Humanizam-se no contacto com tamanha desgraça

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e tentam ajudar os mais famintos, repartindo com eles o seu rancho. Mas também eles pouco
podem fazer.
Os aviões estão agora a chegar com maior frequência, porque os consulados estrangeiros
cumprem exemplarmente as suas promessas. A ponte aérea atinge proporções gigantescas.
Mas a turba dos fugitivos não cessa de crescer. E a cada avião que ruge, na pista de
descolagem, em direcção ao mar, acentua-se o desespero dos que ficam.
Malditos sejam, para sempre, os responsáveis por esta imensa tragédia!!!

9.4 — «Gente muito infeliz»

Venho de falar com o comandante de um D.C. 10 da U.T.A. Disse-me que Giscard


d'Estaing acompanha pessoalmente a comparticipação francesa na ponte aérea e deu-me a
ler a mensagem redigida pelo presidente da França e agora lida em todas estas humanitárias
viagens dos aviões franceses.
«Este avião — lê-se nesse texto singelo e comovente — foi posto
à vossa disposição pelas autoridades francesas, para facilitar o vosso
regresso a Portugal. Esta decisão foi tomada como testemunho da
amizade do povo francês para com o povo português e como uma
contribuição nossa para vos ajudar a superar as vossas dificuldades
neste período da vossa vida. O povo francês deseja-vos uma boa
viagem».

Reparei que o autor do texto não incluirá nele qualquer referência ao Governo de
Lisboa. Mas, julgando compreender tal omissão, não foi nela que falei ao simpático
comandante da grande aeronave. Preferi pedir-lhe a sua impressão sobre os refugiados.

— É gente muito infeliz — declarou com visível compaixão. — Quando o avião levanta
voo, ficam a olhar a terra onde deixam tudo o que era seu. Parecem resignados. Ou talvez
apenas exaustos. Mal o avião ganha altura sobre o Atlântico, muitos adormecem logo
profundamente, libertos da tremenda tensão dos seus últimos dias nesta terra ensanguentada
(2).

Assim regressam, por esmola de estrangeiros, os portugueses que foram os primeiros


europeus a subir o rio Zaire e construíram em Angola a melhor infra-estrutura sócio-
económica de toda a África Tropical.

(1) União Nacional dos Trabalhadores de Angola, organização do MPLA.

(2) Aproveitaram-se, para este episódio, como tudo o resto fiel à essência dos acontecimentos,
alguns elementos da entrevista dada ao semanário «TEMPO» por Jacques Godfrain, das
Relações Públicas da U.T.A., e publicada em 11 de Setembro de 1975.

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O CERCO DE LUANDA

10.1 —«Espera pela tua vez, branco de tuge»!

Sabe-se que o triste espectáculo do Aeroporto de Luanda se repete no Aeroporto de


Nova Lisboa, para onde convergem os portugueses de toda a zona de influência do Caminho
de Ferro de Benguela.

Das áreas mais ao sul, entre Sá da Bandeira e Moçâmedes, os fugitivos viajam de


automóvel, em direcção à África do Sul, ou arriscam-se em frágeis traineiras de pesca, na
longa viagem marítima para Lisboa ou para o Brasil.

Há carros avariados que seguem a reboque durante muitas centenas de quilómetros.


Quem já viajou nestas condições sabe como é. Acontece que, por vezes, o reboque é para a
sepultura. E o velho mar--oceano traga mais alguns barcos lusíadas e ganha mais sal com
novas lágrimas de Portugal...

Junto à fronteira com o Sudoeste Africano acumulam-se milhares de portugueses de


todas as cores, aguardando as equipas sul-africanas de auxílio. E, na tensão da angustiada
espera, também há oportunistas que fazem bons negócios, traficando em tudo, nomeadamente
em automóveis, que compram por truta e meia, para ir vender do lado de lá com lucros
fabulosos. Nunca falta quem saiba explorar a desgraça alheia em proveito próprio...
Mas a aflição maior continua a ser em Luanda, cujo cerco se aperta de dia para dia.
As tropas da FNLA descem pelo Morro da Cal para a ponte sobre a lagoa de Panguila,
agora sob o comando de um valoroso coronel dos «comandos», que pediu a demissão do
Exército Português, convencido de que já se não pode contar com Lisboa para nada de bom.
Eu ando meio louco, na luta com este problema de arranjar passagens. Por agora, desisti de
conseguir os documentos para o casamento, confiado no padre Freitas, que prometeu casar-
nos quando quisermos, com a boa compreensão desse exemplo de missionários católicos, que
é o arcebispo D. Manuel Nunes Gabriel. As passagens constituem agora o objectivo de
máxima prioridade. E nunca pensei que chegaria a sofrer tantas humilhações!
Nas agências de viagens, já não encontro ninguém conhecido. Quem me tratava destes
assuntos — um bom amigo que acumulava as funções de vice-cônsul da Suíça — foi-se
embora para a sua bela terra dos relógios e do turismo. E à secretária onde ele resolvia tudo
depressa e bem, sempre com um dinamismo afável e eficiente, encontrei um negro fanfarrão,
que me insultou soezmente:
— Espera pela tua vez, branco da tuge (a)! Se não sabes esperar que eu tenha avião para
ti, vai a pé!
Não parti a cara daquele selvagem. Saí resignadamente e continuo a procurar quem me
valha nesta aflição.
Já não sei o que hei-de dizer ao meu futuro sogro, que ontem surpreendi a limpar
cuidadosamente a sua Walter 7,5. Mas não posso pensar em ver a minha gente naquela
balbúrdia do Aeroporto. Hoje mesmo, encontrei lá o Carlos Sanches, que era sempre tão
aprimorado no vestir. Trazia uma camisa bastante suja e exibia o ar sucumbido de quem anda
a pensar no suicídio.
— Quando embarcas? — perguntei-lhe para o despertar daquele seu estranho
alheamento.
— Sei lá! Quando Deus quiser e o diabo deixar. Mas daqui só saio para Lisboa ou para o
cemitério... Tens um cigarro que me dês?

99
Estendi-lhe um AC, acendi-lho com deferência e ele pôs-se a fumar com sofreguidão.

— Estás assim tão abatido, Carlos?

— Como queres que esteja?

— Ainda continuamos vivos...

— Vivos para quê?! — disparou ele, cheio de raiva. — Nós /podíamos ter tomado conta
de Angola. E seria bem melhor para brancos e negros. Mas deixámo-nos enganar
estupidamente por uma corja de patifes. Agora, é aguentar!...
Calou-se a olhar para mim, sem que eu encontrasse uma palavra de ânimo para lhe
dizer. Depois, baixou os olhos, acrescentando:
— Há seis dias que não posso tomar banho nem mudar de roupa. Devo cheirar bastante
mal...
E afastou-se de mim, virando a cara, talvez para que eu lhe não visse as lágrimas...

10.2 — Gama Ribeiro é preso

Chegou agora a vez do Gama Ribeiro ser preso.


Com aquele bigode farfalhudo de traga-mouros, é um coração onde cabe toda a gente. E
escondeu, na sua bela casa da Rua Luís de Camões, entre o Hotel Trópico e o Hotel Tivoli, dois
militantes da FNLA, fugidos à feroz perseguição do Movimento vencedor.
A mulher dele — uma bonita moça da Gabela — foi esta manhã ao jornal contar-nos que
dois agentes da DISA (b) o levaram, horas antes do nascer do sol.
Disse à pobre senhora que tentaria averiguar o que se passava e vi-a partir com os
olhos rasos de lágrimas. Anda grávida do primeiro filho do casal...
Logo que ela saiu, fui ter com o delegado do MPLA, que ocupa agora o gabinete do
director, onde ainda se pode ver o belo retracto de António Correia de Freitas, pintado a óleo
por Rui Preto Pacheco.
— Que há? — rosnou o importante personagem, que nos trata a todos como se
fôssemos cães sarnentos.

— Prenderam o Gama Ribeiro...

— Quem é esse gajo?

— É aquele de grande bigode, que faz a secção económica...

— Bem... e depois?

— É um homem casado e um bom redactor deste jornal. Nunca fez mal a ninguém...
— O MPLA não prende quem nunca fez mal a ninguém — atalhou bruscamente o
delegado. — É melhor teres cuidado com a língua, camarada!

— Eu não disse...

— Ouvi perfeitamente o que tu disseste!

— Mas...

— Acabou-se a conversa, camarada! Ou queres que te mande prender também a ti?...

100
E foi tudo o que obtive na minha tentativa de intervenção a favor de um bom
companheiro de trabalho.

10.3 — Os sul-africanos atacam

De repente, rebentou a notícia de que os sul-africanos atravessaram a fronteira-sul e já estão


às portas de Moçâmedes. Com carros de combate e sofisticados meios bélicos, avançam
irresistivelmente em duas colunas, uma ao longo do litoral e a outra em direcção ao planalto
da Huíla.

Ao fim da tarde, o Santos Gouveia acompanhou-me a casa. E só depois de fechados no


pequeno living, na presença de meu pai, enquanto a tia Isaura lidava na cozinha, é que eu
soube o motivo por que me acompanhou.
— Tenho notícias do nosso director — anunciou com cara de quem espera alvíssaras.

— Despeja o saco! — pedi, interessadíssimo.

— Vieram por um construtor civil, agora residente em Joanesburgo, que passou esta
manhã pelo Aeroporto, num avião da VARIG. O nosso director aconselha-nos coragem,
porque as coisas vão sofrer uma grande mudança...
— Como? — quis saber meu pai.
— A entrada dos sul-africanos é combinada com a UN1TA e com a FIMLA. Esperam
reconquistar rapidamente todos os portos do Sul e avançar até Luanda, antes da
independência, para fechar o cerco à cidade, pela estrada da Barra do Quanza.
— Esperam... — repisei com cepticismo. — Também nós temos esperado muita coisa e
acontece exactamente o contrário.

— Os sul-africanos não têm traidores nas suas Forças Armadas

— lembrou o Santos Gouveia, aceitando o uísque que meu pai lhe oferecia.

— Enviaram uma força militar muito convincente e há mesmo quem diga que já entraram em
Moçâmedes...
— E a reacção internacional? — insinuou meu pai. — Na ONU e em todo o grupo afro-
asiático, vai erguer-se um berreiro tremendo contra a «agressão sul-africana».

— As palavras não param as balas — sentenciou o nosso visitante.

—E, segundo o mesmo informador, esta operação tem o apoio secreto dos Estados Unidos.
— Fico ainda mais desconfiado — declarei eu. — Os norte-americanos quase sempre
têm falhado nas ajudas que prometem. E os russos também não vão ficar quietos.
— Começam os grandes corvos a pairar sobre esta desgraçada terra — anunciou
gravemente meu pai.

Mas o Santos Gouveia insurgiu-se contra o nosso pessimismo:

— Não é preciso dramatizar até esse ponto, caramba! Desde há muito que se esperava uma
atitude da África do Sul, que já a devia ter tomado em 7 de Setembro, em relação a
Moçambique. Agora decidiram-se e não são bebés que brinquem aos soldadinhos de chumbo.
O MPLA não terá outro remédio senão render-se!

— A ver vamos... — fez meu pai, reticente.

101
O tempo vai decorrendo com uma lentidão exasperante, para esta pobre população,
ansiosa por sair da tensão insuportável dos dias que precedem a independência, em que os
boatos são a única coisa que abunda na capital de Angola.
A ponte aérea ganha um ritmo que ainda há um mês ninguém podia prever. Ë mais uma
debandada, na história triste das independências africanas, pré-fabricadas na ONU.
Entretanto, o avanço dos sul-africanos é fulminante e parece imparável. Retomaram
sucessivamente Moçâmedes, Sá da Bandeira, Lobito e Benguela; e marcham sobre Novo
Redondo e Porto Amboim. Não repousam. Entregam à UN1TA as áreas limpas de FAPLAS e
prosseguem para o Norte.
Os bisonhos soldados de Agostinho Neto, alguns com menos de quinze anos, fogem
espavoridos desses grandes soldados brancos, que trazem armas terríveis.
Entretanto, começam a chegar a Luanda grandes carregamentos de material de guerra,
enviado pêlos russos.

Que vai acontecer a esta bela cidade?...

10.4 — Luanda está cercada

Nas vésperas da independência, Luanda está cercada.


Com os sul-africanos bem perto da Barra do Cuanza, a UNITA nas vizinhanças de
Cambambe e a FNLA no Cacuaco, o MPLA vê-se confinado na área da capital de Angola,
prolongada por uma estreita faixa ao longo do Caminho de Ferro de Malange.
Totalmente dominado pêlos comunistas que fazem o jogo de Moscovo, o Governo de
Lisboa suspendeu os Acordos do Alvor. Mas, por mais que assim o deseje, não pode entregar a
maior província de Portugal a um movimento que não controla mais que uma ínfima parte do
vasto território.
Para o dia da independência espera-se o pior. Diz-se que as Forças Militares Portuguesas
embarcarão antes da meia-noite de 11 de Novembro e que Holden Roberto só -espera por
isso para iniciar o bombardeamento da cidade.
Surgem nas ruas os primeiros tanques russos e os primeiros soldados cubanos. Toda a gente
os vê... menos o comandante Leonel Cardoso, a quem ainda compete o exercício da soberania
de Portugal em Angola.

Entretanto, as milícias do Poder Popular, a quem prometeram as casas, os automóveis e


as mulheres dos brancos, intensificam a violência, a pilhagem e o massacre. Há, sobretudo,
uma tremenda vaga de luxúria em toda a parte. Praticam-se diariamente, à luz do dia, em
plena rua ou dentro das moradias, centenas de estupros e desfloramentos, que não poupam
ninguém, desde as crianças de poucos anos até às velhas septuagenárias.

Mataram a minha esperança de uma independência concreta para esta Angola a que
tanto quero. Estão a estrangular o meu belo ideal de um País próspero para todos os bons
angolanos, sem discriminação de raça ou condição social. Morre, antes de nascer, esta nova
Pátria que tinha todas as condições para ser um dos mais ricos e progressivos estados
soberanos do Continente Africano. Salazar e Marcelo Caetano tinham razão...

Em poucas semanas, passei da esperança ao desespero. Toda a minha coragem se esvaiu


como o ar de um balão rebentado. Já não tenho outra ambição senão fugir desta caverna de
ódio, com todos os que me são queridos, o mais depressa possível.

(a) Merda, em Quimbundo.


b
( ) A polícia política do MPLA.

102
PIOR QUE A MORTE

11.1 — Uma passagem para Lisboa...

Corri repetidas vezes a longa via-sacra das agências de viagens. Em todas recebo agora o
mesmo conselho:

— Vá imediatamente para o Aeroporto e aguarde lá a primeira oportunidade de


embarque. Já não há mais nada a fazer. Acredite que não há...

Em desespero de causa, e lembrado da cordialidade daquele comandante da U.T.A., que


me deu a ler a mensagem do presidente Giscard d'Estang, fui hoje ao Consulado da França.
Venho agora de lá.

Receberam-me muito bem e o encarregado das Relações Públicas, que fala


correctamente o português, declarou-me com evidente sinceridade que compreendia
perfeitamente a minha aflição.

— Mas há milhares de casos idênticos, ou ainda mais confrangedores — declarou. — E


nós não temos qualquer interferência na ordem de embarque. Dizem-nos que este se
processa segundo a cronologia da chegada à aerogare, sob a fiscalização de delegados
especiais do alto-comissário...

— Quer isso dizer que temos de ir quanto antes para o Aeroporto e aguardar na bicha
vários dias?
— Foi o que nos informaram. Mas nem sequer sabemos se acontecerá sempre assim. É
uma zona fora da nossa alçada. Aceitamos os passageiros que nos encaminham para os nossos
aviões até aos limites extremos da capacidade de transporte. Mais nada!...
— E sabe como vive aquela pobre gente no Aeroporto, durante os dias de espera?
— Tenho passado noites sem dormir, depois de assistir a cenas que nunca mais
esquecerei. Mas falou-me na sua noiva e em mais duas senhoras. Para elas, cá fora pode ser
pior...

11.2 — Um velho que não quer partir

De volta a casa, deparei com uma dificuldade imprevista: meu pai não quer partir.

— Acho que o homem do Consulado Francês está cheio de razão

— disse ele. — Vocês devem ir já para o Aeroporto...

— Nós devemos ir já para o Aeroporto — rectifiquei sem demora.

— Eu fico — declarou como se afirmasse a coisa mais natural deste mundo.

— Luanda talvez venha a tornar-se inabitável — insinuei.

— Por enquanto ainda cá vive muita gente.

103
— Quer dizer que julga cobardes os que partem?

— Longe disso. Considero que são sensatos. E as mulheres brancas portuguesas, essas
têm obrigação moral de fugir da canalha que anda à solta nesta cidade. Eu fico apenas por um
motivo: vivo nesta terra desde que me conheço e já estou velho demais para aventuras de
emigração.

— Isso não o vacina contra o perigo...

— Que perigo?! — fez ele com certa amargura. — A quem interessa matar um velho
como eu?

— Mataram ontem, em plena Avenida Marginal, o Cruz Salvarinho, que já passava dos
setenta anos e gastou a vida inteira a ajudar toda a gente...

— Não insistas, meu filho! — decidiu meu pai em jeito de sentença sem apelação. — Tu,
a tua tia, a tua noiva e os teus futuros sogros devem ir ainda hoje para o Aeroporto...

— E o pai fica sozinho?

— Fico com as vossas boas recordações. E não te aflijas que não vou morrer de fome.
Conheço os cantos da casa e até me ajeito bem a cozinhar uns petiscos...
— Não brinque comigo, pai! — disparei, de repente, com uma certa irritação. — Não
pode considerar-me capaz de o deixar sozinho, em vésperas do que pode ser um banho de
sangue em Luanda.
— Menos podes tu mandar na minha vontade.
— Nem pretendo mandar. Mas tenho uma contra-proposta a fazer: vamos pôr as
mulheres a salvo e ficamos nós. O pai Calabriz acompanhá-las e eu me encarregarei de lhes
enviar tudo o que for possível, de barco ou de avião.
— Entendo que tu também deves partir, até para regularizar a parte civil do teu
casamento, em Lisboa.
— Desde que estejamos casados pela Igreja, o oficial do registo civil pode esperar. Só
tenho um receio...
— Qual?
— E se a tia Isaura não quiser embarcar sem nós?
— Bem capaz disso é ela — concordou meu pai. E, num tom resoluto, acrescentou:
— Mas ainda sou eu quem manda nesta casa. Vamos falar ao sr. Calabriz!

11.3 — Em casa da Mariluz

Estava toda a gente em casa, mais uma visita: o sr. padre Freitas.
— Ainda bem que o encontro aqui — disse-lhe eu, logo após os cumprimentos. —
Quando é que o Senhor Padre nos pode casar?

— Quando quiserem. Nestas circunstâncias, o sr. arcebispo já me disse que dispensa


todas as formalidades, uma vez que eu, que os conheço bem a ambos, lhe garanto que não há
impedimentos dirimentes. Já conseguiu as passagens para Lisboa?

— Não — respondi eu. — E é mesmo por isso que estamos aqui. Vínhamos dizer ao sr.
Calabriz que não existe qualquer possibilidade de seguir para Lisboa sem ser integrado na
Ponte Aérea. E, para tanto, é indispensável ir para o Aeroporto, enquanto é tempo, e aguardar
lá a nossa vez...

104
— Nesse caso, vamos! — concordou o dono da casa. — Aqui já se não pode viver. Para
além de tudo o mais, há essa malandragem que assalta as casas em pleno dia, para roubar,
para matar...

— E para pior... — acrescentou o sr. padre Freitas.

— Pois é desse «pior» que eu tenho mais medo — declarou meu futuro sogro. —
Vamos embora para o Aeroporto! Formamos o nosso grupinho, acampamos em qualquer
canto e aguardamos...
— Eu e meu pai ficamos.

— Tu ficas?! — reagiu logo a Mariluz.

Menti, explicando que ficava apenas mais uns dias, por exigência do jornal.
— Tenho de fazer a reportagem da independência — balbuciei com um risinho difícil.

— O teu jornal nem sequer está a sair — argumentou a Mariluz.

— Vai sair em 11 de Novembro, todo remodelado e até com um nome diferente...

— Bem — interveio o pai Calabriz, esfregando freneticamente o lóbulo da orelha direita


— e o sr. (disse o nome de meu pai, que não escrevo porque já disse que não quero
identificar-me neste livro), o senhor também fica para escrever alguma reportagem?...

— Eu fico porque não sei viver fora de Angola — declarou meu pai rudemente. — E meu filho
não me quer deixar sozinho. Se o convencerem a ir também, fazem-me um grande favor.

— Pronto! — concluiu o pai Calabriz. — Está o meu futuro genro vergonhosamente


apanhado em mentira. Mas eu compreendo a boa intenção... eu compreendo... Bem! Vamos
lá definir a situação em termos de gente! O mais importante é pôr as senhoras longe destes
bêbedos e drogados, que são agora os donos de Luanda, por obra e graça da cobardia dos
capitãezinhos de Abril. Feito isso, a minha opinião é muito clara: somos três homens neste
grupo; ou vamos todos ou não vai ninguém!

— Se você põe a questão nestes termos — disse meu pai — está a atirar uma terrível
responsabilidade para cima de mim, na hipótese de lhes acontecer algo de mau em Luanda. E,
ainda por cima, não está a ser razoável. Convém que alguém acompanhe as senhoras...
— Eu não saio daqui sem o meu marido — interveio a senhora dona Etelvina, que era
este o nome da minha futura sogra.
— E eu também não embarco sem o meu noivo — acrescentou a Mariluz.
— Ambas têm carradas de razão — sentenciou meu pai. — Meu filho é que não tem um
miligrama dela. Até esqueceu aquelas palavras da Bíblia: «deixarás teu pai e tua mãe...»
— Há que atender às circunstâncias — lembrei eu. — E as circunstâncias...

— As circunstâncias estão a criar nesta cidade um ambiente muito dramático —


interrompeu o sr. padre Freitas que, até então, se conservara calado. — Embora não deva
aumentar as vossas preocupações, posso informar que esta manhã foram desfloradas por uma
turba de pretos drogados, as crianças que saíam de uma escola de primeiro ciclo. O Lar das
Irmãs Beneditinas, na rua D. António Barroso, já fechou. Como a Mariluz informou, antes de os
senhores chegarem, a Universidade suspendeu as aulas. Isto está cada vez pior para toda a
gente. Mas, para as senhoras, as perspectivas são simplesmente horríveis. De momento, o
lugar de Luanda mais seguro para elas é o aeroporto. Eu aconselharia a que fossem
imediatamente para lá!

105
— Eu não vou sem o meu marido! — teimou a sr.a d. Etelvina.

— Eu não vou sem o meu noivo! — repetiu a Mariluz.

— E eu não posso deixar meu pai sozinho em Luanda numa ocasião destas — declarei
eu, seguro da minha razão.
— Portanto, meu caro senhor — concluiu o sacerdote, dirigindo-se a meu pai —, está nas suas
mãos a chave do problema. Até porque talvez também a sua irmã se recuse a deixá-lo
sozinho em casa. Assume, pois, uma enorme responsabilidade. E porquê? Porque lhe custa
deixar a terra de Angola? A quem não custará?... Meu caro senhor, desde há muito que o
conheço e respeito, para não estranhar agora esta espécie de birra...
— Amar esta terra de Angola será uma birra? — defendeu-se meu pai, embora mais
quebrado.
— Receio bem que esta Angola já não seja aquela que todos nós amamos — ponderou
gravemente o padre Freitas. — Agora parece a pátria do ódio...

— Que vou eu fazer para Lisboa?!...

— Acompanhar a sua família, animar um novo casal nas dificuldades que certamente
terá de enfrentar, aguardar o divino sorriso dos seus futuros netos. Não será bastante?...
Caiu entre nós um silêncio difícil. Meu pai permanecia de olhos no chão, com vincos
duros no rosto cansado. Mas, finalmente, ergueu a cabeça e disse:

— Por mim, podemos ir para o aeroporto quando quiserem. E assim se decidiu que, no dia
seguinte, logo a seguir ao almoço, iríamos todos para o aeroporto.

— Mas creio que há qualquer coisa muito importante, que deve ser feita antes —
lembrou a Mariluz.

— Bem sei — fiz eu — o nosso casamento.

— O vosso casamento pode ser também amanhã — afirmou o padre Freitas. — Logo a
seguir à missa das oito, na Igreja da Sagrada Família. Combinado?

Eu e a Mariluz fizemos apenas um gesto de assentimento.

11.4 — A cena hedionda

A família Calabriz começou logo a arranjar as malas, enquanto eu e meu pai


regressávamos a casa, para fazer o mesmo.
Para todos nós — meu pai, minha tia e eu — havia muita tristeza nessa faina de
seleccionar as coisas a levar connosco, ao deixar Angola talvez para sempre. Pela minha
parte, sentia-me com mais coragem. Tínhamos tomado uma resolução. Mas que sentiria meu
pai?
— Ao menos, não sofrerá o desgosto de ver arriar aqui a Bandeira Portuguesa... —
insinuei com os cuidados de cirurgião que aproxima o bisturi de um ponto vital.
— A Bandeira Portuguesa? Caiu em mãos de traidores que a estão a encher de lama... Faz-me
um favor, meu filho: não me fales agora em Pátria, Bandeira e coisas assim. Somos apenas
gente que foge, para salvar a vida, não é verdade? E desde há muito que eu ouço dobrar a
finados por uma Pátria que foi grande, corajosa e original...
— Quantos quilos de bagagem podemos levar no avião? — veio perguntar a tia Isaura.
— Não poderíamos levar também alguns móveis?
— Creio bem que não, tia — respondi eu, apiedado da boa mulher, tão ciosa da sua
casa. — De resto, não haveria tempo...

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— Vê se não te esqueces do meu velho sobretudo — pediu meu pai. — Vai fazer falta no
frio da Metrópole.
— Para já — fiz eu contra a melancolia daquela cena — parece que, em Lisboa, estão a
alojar os refugiados em bons hotéis...

— Para já... — repetiu meu pai — e depois?...

— Depois, não vamos morrer de fome. Ainda sabemos trabalhar... Mas foi precisamente
neste momento que o Santos Gouveia nos entrou pela porta dentro, com um ar de alucinado:

— Anda daí, pá! Vem depressa, que estão a assaltar as casas do bairro onde mora a tua
noiva!

Saí de roldão, sem querer ouvir mais nada. Corremos ambos, rua adiante, metemo-nos
no primeiro táxi que encontrámos livre e mandámo-lo seguir para o Miramar.

— O mais depressa que possa! — pedi, numa tremenda ansiedade.

À porta da vivenda da família Calabriz, estacionava um jipe militar com um soldado ao


volante. E, já dentro do jardim, alguns pretos armados soltavam gargalhadas de grossa malícia,
por entre comentários de uma obscenidade primitiva.
— Pronto! — dizia um deles, exibindo a pistola-metralhadora com a sua vaidade de
garoto de quinze anos. — A porta já foi dentro. Agora também vão dentro os tampos daquela
branca bonita. E, a seguir aos camaradas oficiais, nós também vai gozar...
A frase horrível queimou-me todo por dentro, como se me entrasse pela boca, moldada
em ferro em brasa. Ultrapassei o Santos Gouveia, furei através dos pretos e, em dois saltos
rápidos, já estava no livíng tão meu conhecido, a olhar, pasmado, para aquela cena hedionda...

Caídos para debaixo da mesa das refeições, jaziam os cadáveres do pai Calabriz e de sua
mulher, com o sangue ainda a borbulhar dos buracos de bala na testa. E sobre o tapete da
sala, donde tinham afastado a mesa redonda, dois militares fardados de camuflado seguravam
rijamente, um de cada lado, a Mariluz, abrindo-lhe amplamente os braços e as pernas.
Seguravam-na assim, em posição de poder ser comodamente violada, apenas por medida
cautelar, já que a moça, com os olhos fechados e as faces pálidas todas molhadas de lágrimas,
parecia desfalecida.

Sobre ela, um negro enorme, completamente nu, com uma espuma lúbrica a ressumar
dos beiços grossos, acelerava brutalmente a sua cópula unilateral de selvagem, urrando que
havia de chegar até à quinta vez. E, já ele estrebuchava nos paroxismos do espasmo,
relinchando de prazer, quando eu lhe atei as mãos ao pescoço e apertei com a raiva toda.

Mas um dos camaradas que se tinha aproximado por trás de mim, brandiu-me terrível
coronhada na cabeça e desmaiei...

Quando recobrei os sentidos, senti que me davam uma injecção e adormeci


profundamente, num sono que ainda não sei quanto tempo durou. Só sei que acordei no
Aeroporto de Luanda, deitado num colchão de vento, desses que se usam nas praias.
Abri os olhos e vi que o dr. Baptista, velho médico da família, me contava atentamente
as pulsações. E, do outro lado, o vulto curvado, as mãos nervosas, os olhos inquietos de meu
pai...
Decorreu talvez todo um longo minuto, antes que eu me apercebesse da realidade
envolvente. Depois surgiu no meu espírito o quadro horrível daquela imunda violação. E soltei
um grito estrangulado, em forma de pergunta:

107
— A Mariluz?

E reparei (só então...) que também estava o Santos Gouveia e era ele quem respondia:
— Fizeram daquele corpo virgem um campo de competição sexual — contou ele. —
Quando os três militares que tu viste ficaram completamente esgotados, chamaram os
camaradas que aguardavam no jardim. E a orgia continuou numa incrível sucessão de
crueldades e depravações. Sujeitaram a pobre moça a sevícias indescritíveis. Houve um que
lhe arrancou o bico de um seio à dentada...
— Não podes poupar-me a esses pormenores?! — berrei para ele, numa indizível
angústia.

— Desculpa! — fez ele, compreendendo. —Também ando atordoado.


Já nem sei o que faço... ,

— E como soubeste isso tudo que contaste?

— Obrigaram-me a assistir, amarrado e amordaçado. Nunca imaginei que houvesse


homens tão depravados...

— Onde está agora a Mariluz? — atalhei com impaciência.

— No cemitério do Alto das Cruzes, sepultada ao pé de seus pais.

— No cemitério?!

— Exactamente — confirmou o Santos Gouveia. — Naquela tarde maldita, o último soldado


que a possuiu já violou um cadáver. E foi melhor para ela...

— Porque dizes isso?! — bradei com a voz de quem insulta um inimigo.


— Ele tem razão, meu filho — interveio meu pai, quebrando o seu doloroso silêncio. —
Como poderia viver a Mariluz, depois de tudo aquilo, talvez grávida de algum dos assassinos
de seus pais?...

— Casava comigo! — sentenciei em definitivo.

— Bem sei que tu continuarias disposto a casar com ela — concordou meu pai. — Mas
ela é que já não consentiria em ser tua mulher. Talvez caísse na tentação do suicídio; talvez
se finasse de puro desgosto ou decidisse entrar para um convento. Mas ou eu não cheguei a
conhecê-la bem, ou havia de se considerar para sempre aviltada, profanada, indigna de ser
tua mulher... Duvidas?

— Sei lá, pai! Sei lá...

E, voltando-me para o dr. Baptista, pedi humildemente:

— Dê-me qualquer coisa para dormir, senhor doutor...

11.5 — A procura de nada...

Não me lembro de mais nada daquela hora do reencontro com a minha incrível
tragédia.

108
Vagueio agora pelas ruas e praças de Lisboa, desempregado, precocemente envelhecido,
apático, inútil.

Comecei a escrever este livro num dealbar de esperança, com a firme intenção de contar
imparcialmente os actos preliminares da independência de uma terra amada e declarando ser
apenas um homem.

Mas toda a minha esperança morreu, os factos constituíram-se em brutais desmentidos


das belas palavras, todas as raízes da minha vida secaram. Que faço eu neste mundo? Ainda
serei ao menos um Homem?...

O Santos Gouveia, que arranjou emprego no Diário de Notícias, veio ver-me há dias e
trouxe-me alguns apontamentos sobre casos com que deparou, nesta jangada de náufragos,
que é agora aquilo que foi a Metrópole de uma grande Nação. Insistiu em que os aproveitasse
para uma série de narrativas literárias de episódios da grande tragédia.

O Santos Gouveia deve estar mais louco do que eu, visto que ainda me considera capaz
de escrever seja o que for com justo título literário, eu que já não consigo ir além destas
lamentações piegas e chatas...
Vou sair de novo, à procura de nada... Mas o pai e a tia Isaura que não se aflijam, se eu tardar
bastante a voltar. Coisa ruim não tem perigo. E ainda que me deitasse da ponte do Tejo
abaixo, era capaz de não me saber afogar. Nem há automóvel que me atropele. E é pena...

11.6 — Adeus, Angola!

Esta noite não consegui adormecer.

Com os olhos fechados, eu via constantemente, em imagens de uma nitidez cruel, a cena
tristíssima do arriar da Bandeira de Portugal, no Palácio dos Governadores Gerais, em Luanda.
E pensava em meu pai... Meu pai, que me trata como se eu tivesse voltado a ser o seu menino
pequenino... Tudo agora é pequenino, nesta capital de um império abandonado...

Amanhece o dia 11 de Novembro de 1975. Vou optar pela


nacionalidade Portuguesa.

Adeus, Angola!...

Lisboa, Novembro de 1975

109
JANGADA DE NÁUFRAGOS

(Segundo os apontamentos de Santos Gouveia)

Após a descolonizarão dita exemplar, neste pequeno País a que estamos


irreversivelmente reduzidos, neste rosto da Europa como o sonhou o génio de Fernando
Pessoa, e que efectivamente alongou seus olhos por toda a redondeza do mundo mas agora
já mal avista a Madeira e os Açores —, vagueiam centenas de milhares de portugueses
regressados do Ultramar.
Vagueiam como fantasmas ainda bem capazes de assustar algumas crianças grandes que
jogaram ao berlinde as terras e as gentes que foram o Ultramar Português. Eles são as figuras
ainda vivas das últimas páginas da nossa História Trágico-Marítima. São a condenação inapelável
dos que deitaram pela janela fora, sem olhar como nem a quem, a herança de muitas
gerações. E porque entre eles há brancos, pretos e mestiços, ao aceitá-los a todos como
portugueses que todos são, a si próprios se contradizem aqueles que impugnaram, como
utópica e mentirosa, a formosa ideia da Nação multirracial.
Com a sua miséria, a sua raiva e o seu desespero, tudo somado ao contínuo vociferar de
comícios e plenários, greves e reivindicações, já este pequeno rectângulo europeu parece
transformado numa jangada de náufragos.

Esta é a explicação do título geral escolhido para as singelas narrativas em que tentarei
contar episódios que vi com os meus próprios olhos ou ouvi da boca dos seus principais
protagonistas.

12.1 —Mãe e Filha

No comboio da linha de Cascais, que acabava de partir do Cais do Sodré, sentou-se à


minha frente uma senhora de meia idade, preta retinta, com uma garota que lhe copiava o
essencial das feições, com pele bastante mais clara, quase de uma algarvia morena.
A mulher tinha esse ar de esmerado asseio, que é frequente nos pretos civilizados. Mas a
pobreza gritava em cada centímetro do vestido passajado e nos seus olhos havia uma dor
profunda, misturada a uma humilde resignação.
*

De vez em quando mirava a filha (era certamente sua filha) e esboçava uma tentativa de
sorriso mal conseguido. A seguir a um desses olhares, jogou uma pergunta escusada:

— Estás com fome, Nelinha?

— Não — balbuciou a criança.

Mas a mãe não acreditou (nem era de acreditar, porque os olhos da menina
contradiziam a envergonhada negativa). Tirou da carteira de plástico um saquinho de
amendoim e passou-o às mãos da filha.

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— Toma! Mas não deites as cascas para o chão: guarda-as no saco.

A mocinha aceitou e começou logo a comer, ainda com certo jeito envergonhado, que
depressa foi vencido pela euforia do apetite satisfeito. E agora a mãe chegou mesmo a sorrir,
com aquele enternecido sorriso de todas as mães pobres, quando podem acalmar a fome dos
filhos.

Exilado nesta grande Lisboa, com uma enorme saudade da terra em que vivi o melhor
tempo da minha vida, não pude resistir à tentação de confirmar a minha suspeita:

— Vieram de Angola?

— Viemos, sim senhor — respondeu a mulher depois de alguma surpresa e segundos de


hesitação. — Viemos de Luanda.

— Vivi e trabalhei lá durante quarenta anos.

— Ah! — fez ela mais confiada — Também teve de fugir?

— Vim de férias. Mas, agora, aconselham-me a não voltar, ao menos por enquanto...
— Há muita confusão — recordou ela com uma luz de medo nos olhos tristes. — Eu tive
de fugir só com a roupa que trazia vestida. E não sei do marido nem do meu filho mais velho...

— Mas sabe que estão vivos?

— Não sei nada. Um dia, ao voltar do Liceu Salvador Correia, encontrei a casa roubada
de quanto tínhamos e os vizinhos disseram-me que fugisse, porque tinham levado o meu
marido e talvez me quisessem levar também a mim. Meu marido era 2.° oficial de Fazenda...

— E o seu filho?

— Esse já tinha desaparecido uns dias antes, mas eu ainda esperava que voltasse.
Coitado do meu Pedro! Teimou em inscrever-se na FNLA e as FAPLAS sabiam...
Caiu entre nós um silêncio incómodo. No meu íntimo, admirei a perfeição com que
aquela pobre negra de Angola falava a língua de Camões. O comboio tinha parado em Algés. E
só depois que arrancou de novo, lancei eu uma nova pergunta:

— E agora?

— Agora estou à espera...

— À espera de quê?

— De que o futuro se me torne mais claro. Já me inscrevi no IARN. Dão-me casa e


comida...

— Já não é mau.

— É pelo menos triste. Para quem sabe trabalhar, custa muito viver de esmolas. E custa
ainda mais nada saber do marido, nem do filho, nem do que será o futuro...

Com a boa intenção de a afastar daquelas ideias amargas, perguntei o que fazia ela no
Liceu Salvador Correia, em Luanda.

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— Ensinava — disse. E, timidamente, descendo um olhar envergonhado para o seu
vestido de outro corpo e para a sua velha carteira de fecho estragado, acrescentou:

— Sou licenciada em Germânicas pela Universidade de

Coimbra.

Lisboa, Outubro de 1975

12.2 — O Senhor Desepero

Era um homem culto, dinâmico e entusiasta.

Deram-lhe, para governar, um dos mais atrasados

distritos de Angola, prejudicado pelo seu afastamento de Luanda, ainda vazio de estradas
asfaltadas, despovoado pelo êxodo de 1961.

Saudoso da filha única, que estudava na Universidade de Coimbra, mas beneficiado


com a presença e ajuda duma esposa exemplar, lançou--se ao trabalho com a coragem e
determinação de um pioneiro do antigamente. Daquele distrito fronteiriço — ele só maior que
todo o Portugal europeu mas reduzido a uma população de quarenta mil habitantes — fez a
grande obra e a grande razão da sua vida.

Abriu escolas, reparou caminhos, criou milícias de auto-defesa. Na antiga povoação, em


que avultavam as ruínas de igrejas e conventos, construiu uma cidade nova, progressiva,
acolhedora e confortável.
Espalhou fontenários por todos os aldeamentos e tinha uma justificada vaidade nos
seus «blocos de água», pequenas construções de 6x16 metros que incluíam o lavadouro de
roupa, balneários de chuveiro e instalações sanitárias, segundo um critério de concentração
comunitária que seria excelente solução para muitas aldeias da Metrópole Portuguesa.

No plano escolar, fervorosamente apoiado pelo dr. Pinheiro da Silva, então secretário
provincial da Educação, conseguiu também uma admirável colaboração das populações, ávidas
de progresso. As primeiras escolas foram construídas pelos pais dos futuros alunos, apenas
com a ajuda de uns sacos de cimento, algumas caixilharias e o zinco para a cobertura. E as
crianças levavam de casa os banquitos de fabrico gentílico em que se sentavam.

Mas, com tão humildes princípios, ao abrir de 1974, aquele era o primeiro distrito
angolano a atingir a escolaridade de cem por cento. Todas as crianças daquela vasta área
tinham a sua escola. E, agora, em belos edifícios de alvenaria, com várias salas de aula, boas
instalações sanitárias, posto de enfermagem e casa para os professores.
Em todas as aldeias havia os famosos «blocos de água» e algumas casas do tipo europeu,
construídas pelos nativos, com boas condições de habitabilidade. Também começava a surgir,
entre os naturais da terra, a classe média com alfaiates, pedreiros, marceneiros e
comerciantes, alguns deles donos e gerentes de bons estabelecimentos comerciais onde não
faltavam o balcão frigorífico, a máquina registadora, o quintalão para os batuques de fim de
semana e a instalação sonora para a música de discos a chamar a freguesia.

Dominado pela sua grande ânsia de realizar, o governador percorria incessantemente as


terras da sua administração. De avião, de jipe ou a pé. Com um entusiasmo que não deixava

112
de crescer. Com uma perseverança que não cedia ao cansaço. Com a íntima alegria de ser
útil a todos, realizando-se a si próprio, enquanto lá longe, na saudosa Coimbra dos seus
tempos de rapaz, a filha única se preparava para continuar a tradição laboriosa de seus pais.

Foi saneado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. E não tardou muito que fosse expulso
do exército, sob a acusação de fascista e reaccionário.

— Que será de nós, agora? — perguntou-lhe a mulher.

— Temos de sobreviver, por causa da nossa filha.

— E como vamos mandar-lhe a mesada?

— Ainda temos algum dinheiro...

Mas o dinheiro era pouco e acabou-se depressa.


Velhos amigos conseguiram-lhe então um emprego numa grande companhia. Isso deu-
lhe um certo alento, que não durou muito. E não durou muito porque o emprego era quase
nada para a sua enorme capacidade de trabalho. Como todas as actividades em Angola,
depois do 25 de Abril, também as daquela empresa esmoreciam e se degradavam. E ele
passava a maior parte do tempo a ler os jornais da Metrópole, que raivosamente, numa
espécie de fúria destruidora, atacavam todos os portugueses do Ultramar, acusando-os de
explorar os pretos, classificando--os de colonialistas e ladrões, cumulando-os de insultos e
calúnias.
Depois veio a declaração do general Spínola, reconhecendo o direito de Angola à
autodeterminação e à independência.

O ex-governador tornou-se amargo e taciturno. Não compreendia os novos tempos.


Todo o seu mundo se desmoronava. Os seus melhores amigos tinham sido saneados, presos
ou escorraçados. Não encontrava qualquer estímulo no ridículo trabalho do seu novo
emprego, que lhe sabia a esmola. Havia dias em que não fazia nada. Isolava-se num mutismo
obstinado. Mal respondia à mulher que, adivinhando o seu drama interior, tentava despertá-lo
com perguntas, com referências à filha, com sugestões para o futuro.

— Não dizes nada, querido?

— Que hei-de eu dizer?

— Precisamos de ganhar coragem — e o silêncio é depressivo.

— Tudo é depressivo nesta hora de abdicação.

— Porque usas tão feia palavra? Lembra-te de que temos uma filha!

— Se lembro...

E voltava ao silêncio, cada vez mais sucumbido.

Quando Rosa Coutinho chegou a Luanda, como presidente da Junta Governativa, a que
alguns chamaram o «Quinteto de Cordas», o ex-governador não quis almoçar.

— Não comes?! — admirou-se a mulher.

113
— Não tenho apetite.

— Precisas de te alimentar...

— Já não preciso de nada.

— Conheces esse almirante?

— Conheço: foi bem escolhido para coveiro de Angola.

— Porque és tão pessimista?

— Há alguma razão para optimismos?!...

Os dias foram passando. Soube-se que os guerrilheiros da FNLA estavam a ocupar todo o
Norte de Angola, que as nossas tropas abandonavam por ordem do almirante vermelho.

— Malvado! — rugia o ex-coronel do exército português com uma raiva concentrada.

Passava agora dias sem comer. Apenas fumava cigarros, acesos uns nos outros. Era cada
vez mais difícil arrancar-lhe uma palavra.
— Estás doente? — quis saber a mulher, preocupada e compadecida.

— Não.

— Porque não vais à Companhia?

— Não vale a pena.

— Não gosto de te ouvir falar assim — disse a mulher, tentando animá-lo. — Já


passámos coisas piores... Lembras-te daquela emboscada no caminho para Noqui, entre a
pista de aviação e a vila, quando tivemos de nos atirar para a valeta?

— Lembro.

— E escapámos vivos!

— Era aí que eu devia ter morrido... para não assistir a toda esta desgraça...
— Ouve...

Mas ele fugiu para o seu pequeno escritório e fechou a porta por dentro.

Uma hora mais tarde, ouviram-se dois tiros seguidos. Aos gritos da mulher apavorada
acudiram os vizinhos, arrombaram a porta e foram encontrar o ex-governador com a cabeça
esfacelada pelas balas da sua pistola de oficial do exército português.

A cabeça tombara direita, de queixo apoiado contra o tampo da secretária. E os seus


olhos, que ainda ninguém fechara, pareciam fitar o retraio da filha, colocado à sua frente, ao
lado da flâmula do seu distrito...

Lisboa, Junho de 1975 12.3

— Bilhete de Identidade

114
Naquele sábado de Fevereiro de 1974, o calor tórrido que asfixiava a cidade
moçambicana da Beira não lograva entrada no bonito living da moradia dos Vouzelas, situada
bem perto da catedral erguida há meio século pelo missionário franciscano, padre Rafael, que
mais tarde, já bispo, projectou também a nova Catedral de Lourenço Marques, deixando a
alegria da inauguração ao seu sucessor, cardeal Teodósio Gouveia. Uma boa instalação de ar
condicionado, bem afinado pelo dono da casa que era engenheiro electrotécnico,
assegurava um clima deliciosamente primaveril: 22 graus.
No entardecer, negras e pesadas nuvens acastelavam-se para os lados do farol, a
anunciar uma dessas trovoadas da -estação das chuvas, que desabam sobre a cidade com a
raiva feroz dum bombardeamento de artilharia pesada. E havia, naquela vivenda de meio
luxo, uma visita: o padre Anselmo, que pertencia a uma congregação espanhola e, dias antes,
tinha provocado um certo escândalo, impedindo que um grupo de escuteiros entrasse na sua
igreja com a Bandeira Portuguesa. Era mesmo disso que se falava.
— A igreja não deve servir para manifestações políticas — afirmava o missionário.

— Desculpe, senhor padre — interveio a senhora D. Guilhermina Vouzela —, mas não se


tratava de nenhuma manifestação política. É um velho costume dos escuteiros levarem a
Bandeira Nacional, quando assistem à missa em grupo fardado.

— Os maus costumes corrigem-se — sentenciou severamente o padre Anselmo.

— Não vejo onde está o mau costume — teimou a dona da casa. — A Bandeira é um
símbolo do nosso povo; e ao incliná-la no momento da elevação da Sagrada Hóstia, os
escuteiros apenas exprimem o preito cristão de Portugal.

— Não é com gestos desses que se presta culto ao Deus de todos os homens —
argumentou o padre. — Neste momento, há que respeitar os legítimos melindres do povo
moçambicano...
— Moçambique é Portugal — declarou o engenheiro Vousela com certa energia.
— Nem todos assim pensam — lembrou o padre Anselmo. — E um missionário católico
tem de atender a todos.

— Mesmo aos terroristas? — lançou o engenheiro com intenção.

— A que chama o senhor de terroristas? — contra-atacou o missionário. — Todos os povos


têm direito à autodeterminação. E, perante o espanto do casal, acrescentou:

— Eu sei que já me consideram um adepto da Frelimo. Sei ao que me arrisco, quando


afirmo que os portugueses estão a fazer uma guerra injusta. Mas o meu lugar é ao lado dos
humildes e oprimidos...

Pouco depois da independência de Moçambique, Samora Machel começou a atacar a


igreja católica, acusando-a de ter sido o suporte do colonialismo português. O padre Anselmo
reagiu corajosamente numa das suas homilias. E recebeu uma intimação para abandonar o
país no prazo de quarenta e oito horas.
Meses mais tarde, em fins de Outubro de 1975, foi ao aeroporto de Lisboa esperar um
colega, que também regressava após muitos sofrimentos e perseguições.
Mas o avião vinha atrasado e o padre Anselmo foi caminhando ao longo daquele parque
de sucata humana, que então era o salão onde os refugiados do Ultramar Português
aguardavam que lhes dessem destino.

115
Viu as crianças emagrecidas pela fome, famílias inteiras de guarda aos miseráveis
salvados das economias de muitos anos de trabalho, mulheres dormitando abraçadas aos
filhos pequeninos, homens de barba crescida olhando no vago, como que perdidos de si e do
mundo — apenas uma pequena amostra da chamada descolonização exemplar. E nem se
atrevia a tentar palavras de consolação naquela caverna de desespero quando, de repente,
parou diante duma pobre mulher que tiritava no seu vestido de tobralco leve. Estava sozinha,
silenciosa, com o rosto pálido apoiado nas mãos calejadas e de unhas sujas. Encontrou os seus
olhos em que brilhava um lume de loucura. E avançou para ela, de mãos estendidas:

— Que grande surpresa, minha senhora! Mas ela recuou,


como perante um inimigo...

— O senhor padre está enganado: eu já não sou quem julga...

— Mas não é a esposa do sr. eng.° Vousela, a senhora Dona Guilhermina Vousela?!

— Não senhor.

— Quem é, então?

A interpelada fitou-o durante longos segundos; pareceu decidida a não dar qualquer
resposta; mas, finalmente, tirou do seio um cartão manchado de suor e, oferecendo-o na mão
estendida, intimou bruscamente:
— Leia!

O missionário aceitou o documento e leu-o. Era um bilhete de identidade passado pela


Frelimo e dizia: «Guilhermïna Vousela — prostituta»

— Não é verdade! — balbuciou o missionário, estarrecido.

— É verdade, senhor padre; é inteiramente verdade, porque também me obrigaram a


exercer a profissão. Não só com um ou dois homens, mas com todos os soldados dum quartel
da Beira...
E como o sacerdote parecia interdito, com os lábios entreabertos sem lograr proferir
palavra, aquela pobre mulher teve para ele uma espécie de sorriso de compaixão e
perguntou-lhe:

— O senhor padre sempre era mesmo filiado na Frelimo?

— Para que o deseja saber?...

— Para lhe agradecer a sua boa colaboração nisto a que cheguei...

— Ó minha senhora!...

— Já lhe disse que deixei de ser uma senhora! — gritou ela com raiva. E logo,
dominando a voz até um sussurro trágico e terrível, continuou:
— Eu agora sou prostituta, senhor padre. Pros-ti-tu-ta! Mas deixe-me em paz, porque
hoje não estou de serviço...

Atingido em pleno rosto pela tremenda chicotada, sentindo-se alvo dois olhares
acusadores dos refugiados que assistiam à cena incrível, o padre Anselmo começou a
afastar-se lentamente, cheio de pena, de arrependimento, de amargura e de remorso...

116
12.4 — Desempregado

Saiu, de olhos em brasa,

fugiu!

Fugiu de casa

e dos olhos famintos de seus filhos,

tão tristes, maltrapilhos...

Fugiu!

À soleira da porta,

a mulher assistiu,

calada,

resignada,

como gelada e morta.

Não gritou.

Não chorou.

Não disse nada.

Assistiu

e ficou.

Era a hora febril do movimento,

quando abrem as lojas e os operários

desfilam, prisioneiros dos horários,

que os mandam trabalhar...

Triste como um suspiro


nas vagas do tormento,
aquele homem pensou:

«Já nada valho!


Nem o pão do meu lar,
nem o dom do trabalho,
nem o ar que respiro!
Grande inútil que eu sou!...»

117
Aos bordos pela rua,
caminhava de insólita maneira,
como um tonto...

E as mocinhas airosas, sorridentes,

e os marçanos passando, diligentes,

olhavam-no, sorriam e diziam:

«Vai na lua!
Que grande bebedeira!»

E pronto!

Vinha ao longe um Packard,

um Packard de alto preço,

enorme, niquelado, rebrilhante...

E, então, o homem murmurou baixinho:

«Eis o progresso!

Eis a vida que passa e eu não mereço!

Grande imbecil que eu sou!

Então, porque caminho?»

e parou.

O progresso passou. Um grito alucinante ... e para


sempre o honrem se calou.

À soleira da porta,

a mulher daquele homem que morreu,

calada, resignada

como um triste animal

a quem já nada importa,

sentiu-se de repente muito mal...

118
E dentro do seu ventre estremeceu o derradeiro filho do
casal...

Escrevi estes versos há 24 anos, numa fase cruel de desemprego.

Volto a senti-los com redobrada amargura; porque mais uma vez ando à procura de
emprego, agora mais velho, mais cansado, mais desiludido.

Respondi a alguns anúncios e ninguém me chamou, neste pequeno Portugal, onde há


mais de meio milhão de desempregados e eu não tenho diploma de antifascista.
Escrevi a amigos do Brasil. Esse grande coração, que é o deputado Cunha Bueno, respondeu-
me que fosse, que estaria à minha espera, mas emprego imediato não podia garantir.
Considerei que não devia arriscar os meus últimos escudos na viagem, deixando a família às
portas da fome, e não embarquei.
Por isso, neste frio Outono de 1976, continuo agarrado às apodrecidas tábuas desta
jangada de náufragos. E venho agora de Algés, encharcado até aos ossos pela maior carga de
água, que ainda vi cair em Portugal após o meu regresso de Angola.
Prometi esperar ali, na paragem dos autocarros, em frente do supermercado
«Expresso», - um amigo que me falou na eventual idade de algumas aulas num colégio
particular.
Tenho alvará para todas as disciplinas do antigo Curso Complementar de Letras. Ensinei-
as em Angola, durante muitos anos, a brancos, pretos e mestiços, incluindo a alguns dos
actuais governantes de Luanda.
Saía do meu modesto emprego na Câmara Municipal, onde comecei com o salário
mensal de 1.200$00, e dava aulas, das 17.30 às 19.30 horas, no Colégio-Liceu D. João II. Depois
ia jantar a casa (ao cirno da Rua Mouzinho de Albuquerque, já perto do Cemitério do Alto das
Cruzes) e voltava ao mesmo colégio, para outras duas aulas, das 21 às 23 horas. Nestas
andanças o meu percurso diário (sempre a pé) nunca -era inferior a dez quilómetros.

Da Câmara Municipal transitei para a Junta de Exportação e, mais tarde, para a


Companhia de Petróleos de Angola. Mas sempre, ao horário da minha actividade principal
acrescentei o ensino e uma assídua colaboração para o jornal A Província de Angola. E ainda
consegui arranjar tempo para publicar duas dúzias de livros, quase todos de temática ango-
lana. Posso afirmar sem receio de exagero, que, ao longo de 38 anos vividos no que então era
a maior província de Portugal, trabalhei sempre à cadência de 12 horas por dia.

Agora, nisto que resta de Portugal, com todo o tempo livre e tanta comédia e tragédia à
minha volta, vivo numa tensão angustiada que me não deixa escrever mais do que lamúrias de
homem findo. Tenho o espírito ressequido como as vides cortadas da cepa e abandonadas às
neves do Inverno.

Sei que esta terrível inibição só me passará, quando puder contar com algum salário
certo ao fim do mês, que afaste da porta de minha casa a raivosa cadela da fome. Por isso
aguentei a pé firme a bruta chuvada desta tarde, junto à paragem dos autocarros, em Algés.

Uma ou duas vezes, quando as cordas da água tocadas pelo vento me vergastavam com
mais fúria, ainda corri a abrigar-me no alpendre do supermercado. Mas logo voltava à
paragem, não fosse o meu amigo passar sem me ver.

Nesta cisma, acabei por não mais sair do combinado local de encontro, numa espécie
de raivoso desafio à chuva, que já me não podia molhar mais do que estava. O que estava era

119
mais fria, a malvada! Vinha oblíqua contra mim, em bátegas geladas e fustigantes como um
duche para loucos.

Louco, eu ainda não estava. Estava só profundamente infeliz. Reformado sem reforma
(que também a pensão de reforma me detiveram em Luanda pelo crime de não ser
comunista), preciso aflitivamente de trabalhar. Para ganhar o pão de cada dia, meu e da
família, e para recuperar a confiança em mim próprio.
E ali me via perdido nos arredores da grande Lisboa, abandonado e gelado no meio
duma chuva de temporal, já convencido de que o meu amigo se esquecera do combinado.
Afinal, o meu amigo chegou, mas para me dizer que a vaga de filosofia, em que pensara,
já estava preenchida.
— Porque não vai você ao FRAUL? — acrescentou, ao ler-me nos olhos o reflexo
inconfundível das grandes amarguras. — Não conhece o dr. Joaquim Mendes?
— Pertencemos ambos à Assembleia Legislativa e trabalhámos juntos na Comissão de
Redacção e Legislação...
— Pois, então, procure-o. Ele está a lutar bravamente pelos que vieram do Ultramar.
Talvez vá falar com esse colega nos trabalhos dum pequeno parlamento angolano,
onde ambos nos batemos pela resolução dos problemas de uma Angola em progresso
espectacular.

Talvez vá e talvez não vá...

Vivo numa hora de grande depressão e profunda angústia. Sinto-me sem iniciativa e
sem coragem. Sinto, acima de tudo, que os responsáveis pela desgraça que atingiu doze
milhões de brancos, pretos e mestiços do Ultramar português, e condenou à fome as
populações deste pequeno rectângulo europeu, e destruiu completamente esta Pátria quase
milenar — esses ignóbeis traidores não podem ficar impunes.

Pela minha parte, estou velho e cansado. Apetece-me desistir desta luta e mandar tudo
e todos para o inferno. Trabalhei em Angola durante cerca de quarenta anos, à cadência de 12
horas por dia. Utilizei as minhas horas de descanso a ensinar angolanos de todas as cores.
Publiquei duas dúzias de livros, quase todos sobre temas de Angola. Defendi essa terra o
melhor que soube e pude, porque sempre previ que a independência de Angola sob o signo da
ONU daria o resultado que hoje está à vista de todos. Investi em Luanda tudo o que lá ganhei,
mais o produto de uma pequena herança e até algum dinheiro dos meus vencimentos de
férias.

E aqui ando agora, nesta bonita e preguiçosa Lisboa, à procura de um emprego em que
ganhe que bonde para o pão de cada dia, meu e da minha família.
Mas não há nesta terra, um emprego para mim. E os que entregaram a russos e
cubanos, entre biliões de contos de valores portugueses de Angola, todas as minhas
economias de quarenta anos de trabalho, dizem que fui um «explorador».

É-me muito bem feito!

Lisboa, Novembro de 1976.

12.5 — O começo e o fim

Era a mais nova de uma família de oito filhos: três rapazes e cinco raparigas, sem contar
com os dois rapazes que não vingaram nos três primeiros meses de vida.
Já não conheceu o pai, que morreu quarenta e sete dias antes de ela nascer. Por isso
mesmo, a tia Adélia, bem casada e apenas com duas meninas, uma delas já crescidota, teve

120
pena da irmã viúva e ofereceu-se para tomar conta da sobrinha caçula, logo que estivesse des-
mamada.

Aos dezassete anos, contra a vontade de toda a família, casou com o Chico Monteiro e
nenhum deles descansou enquanto não embarcaram para Luanda, onde ela tinha um irmão
bem colocado, embora honesto demais para estar rico, e do género complicadinho nisto de
abrir caminho à família. Mas a verdade é que os recebeu em sua casa e os ajudou a demarcar
500 hectares de boa terra de café, nas margens do rio Luége, a poucos quilómetros da vila do
Quitexe.

Para lá partiu o marido, logo que pôde, com o desígnio de erguer uma casita, onde o
casal se pudesse juntar a breve prazo, com o filho mais novo e a primeira filha, que já andava
na escola infantil.
Talvez porque fosse fácil de contentar com tudo, menos com a prolongada ausência da
mulher, o Chico Monteiro não tardou muito a escrever que já tinham casa e que ela podia
partir.
— Eu, por mim, vou no primeiro transporte que me leve para aquelas bandas — disse
ela ao irmão. — Mas, antes de levar os filhos, gostava de ver primeiro como é...

— Claro que não deves levar os filhos por enquanto — aconselhou ele. — Nem tu
precisas de ir, enquanto lá não tiveres aceitáveis condições de vida. Ou não te sentes bem
nesta casa?...

— Bem sabes que me sinto bem em tua casa — declarou ela em tom de ofendida com a
insinuação. — Mas o meu lugar é junto de meu marido, principalmente agora que nos vamos
meter na aventura do café. Quanto aos miúdos, vou deixar-tos ainda algum tempo, se não te
importas. Mais tarde, venho buscá-los...

— Mais tarde poderás levar o pequenito — rectificou o irmão. — Não te esqueças de


que a menina já anda na escola. E, que me conste, não há disso perto da tua chitaca...

— É verdade! — murmurou ela — Há a questão da escola...

— Não há questão nenhuma — decidiu o dono da casa. — Tu vais quando quiseres,


porque teu marido tem todo o direito de te querer junto dele. Quando te sentires
verdadeiramente instalada, vens buscar o Carlitos. E a Ló vive connosco durante as aulas e vai
passar as férias com os pais. Certo?

— Tem de ser... — disse ela no seu modo resignado.

Partiu para a chitaca ao amanhecer de um dia de meados de Janeiro, na carrinha do sr.


Anacleto, que também tinha uma demarcação à beira do Luége. E dois meses mais tarde,
voltou, para levar com ela o filho mais novo.

— Então, que tal a casa? — perguntou-lhe a cunhada.

— É uma cubatita — respondeu ela, passando logo a falar de outra coisa.


Mas a cunhada não ligou importância à definição. Na Luanda de 1955, até os ricos
moradores do Bairro do Café gostavam de chamar cubatas às suas luxuosas vivendas...

121
Decorreram outros meses. E, numa tarde morrinhenta de cacimbo, a Ló veio da Escola
Infantil no grande automóvel dum médico que também lá trazia uma das filhas. Ao entregar a
menina, perguntou ao tio dela se sabia como estava a viver a irmã naqueles sertões do Uíge.
— Sei que teimaram em embarcar na aventura de começar uma plantação de café, a
uns vinte quilómetros do Quitexe, sem um pataco de economias. O Chico partiu primeiro,
para construir uma casita...

— Sabe como é essa casita?

— ?!

— É uma cubata, meu amigo, uma cubata tão miserável como a do preto mais
matumbo! — informou o médico, quase a gritar. — Sua irmã está a viver em condições
incríveis. Cose pão e cria galinhas para os pretos. Faz costura para os pretos. Trabalha mais do
que o preto mais trabalhador daquela área. Ela e o marido agarram-se a tudo para sobreviver,
enquanto não colhem os primeiros sacos de café. E eu compreendo-os... Mas olhe que sua
irmã e o menino... enfim: o meu amigo lá sabe...

— Eu não sabia nada do que me está a contar. Meu cunhado escreveu a dizer que já
tinham casa. Pensei que fosse coisa capaz. Vivi sempre em Luanda, mas dizem-me que lá para
o Uíge, com a alta do café, já se não vive mal...

— Vá ver! — recomendou o médico, quase zangado. E ele foi. E, depois de observar toda
aquela miséria, desatou a berrar com o cunhado:

— Então, é a isto que você chama casa?!

— Foi o que pude construir com as minhas próprias mãos, trabalhando de dia e de
noite.

— Porque não contratou um pedreiro?

— Porque não tinha com que lhe pagar.

— Pedia um empréstimo...

— A quem?! Eu sei que a você também lhe não sobra...

— Minha irmã e o pequenito estavam debaixo de telha. Deixava-os estar onde estavam,
enquanto não tivesse aqui melhores condições de vida.
— E eu?! — fez o homem com um riso amargo — Acha que se pode viver muito tempo
nestes ermos, sem a companhia da mulher com quem casámos?!...
O visitante ficou de olhos arregalados, sem resposta a dar.
E, precisamente nesse momento, a irmã chamava para o almoço, que era no chamado
«salão nobre»: uma rica sombra debaixo de uma frondosa mulemba que era o principal apoio
da cubata.
No meio de toda aquela pobreza, a caldeirada de cabrito estava de gritos. E o Paulo
(assim se chamava o cunhado do Chico Monteiro) reparou que a irmã acudia pelo marido e
não tinha perdido o seu feitio alegre.

— Deixa lá, que já foi pior! — disse ela para o irmão. — Nas últimas chuvas, esta palhota
metia água por todos os lados. Fazia frio de gelar. E um dia, ao levantar-me, apanhei um susto
danado: ao pé da cama do menino, encontrei uma cobra enrolada dentro das botas do pai.
Nem quero que me lembre!...

122
— Voltas comigo para minha casa — decidiu o Paulo.

— Não volto nada. O meu lugar é aqui.

— Nesse caso, levo ao menos o menino.

— O menino ainda precisa dos cuidados da mãe. E, como disse, o pior já passou. Pena
foi que não trouxesses a Ló, para a vermos...
— Não cabia no carro do Machado, em que vim. E, com toda a franqueza, também não
quis que se afligisse com a miséria em que vivem os pais.
— É assim que têm começado quase todos os pequenos agricultores em Angola — disse
o Chico Monteiro, saindo do seu mutismo. — Daqui a dois anos já colheremos os nossos
primeiros sacos de café.
E essa primeira colheita chegou. E outras lhe sucederam, cada vez maiores. A cubata de
pau-a-pique e cobertura de capim foi substituída por uma casa de alvenaria, ampla e
confortável.
Já viviam bem quando, em Março de 1961, fugiram a tempo para Luanda, antes que os
turras lhe ocupassem a fazenda, já com uma produção de mais de cem sacos de café por ano.
O Chico Monteiro voltou ao que era seu, logo que a tropa completou a reocupação
daquela área. Mas sua mulher passou então a viver em Luanda, para que os filhos pudessem
estudar.

Alguns anos mais tarde, o Chico Monteiro morreu. Mas a família continuou sem
dificuldades, porque a fazenda, mesmo arrendada, dava amplamente para todos viverem
bem. Toda a Angola estava num progresso espectacular, que naturalmente se reflectia nos
seus habitantes.
E veio o que ninguém podia imaginar, nem admitir, nem conceber: — veio a traição de
alguns portugueses, que sabiam que a vitória estava à vista e receberam de estrangeiros a
infame tarefa de a evitar...
Aquela mulher, ainda nova e já com netos, teve de regressar a Lisboa, só com a roupa
que trazia vestida.

Desta vez, a sua estupenda alegria não resistiu ao vendaval terrível da maior tragédia de
toda a história de Portugal.

E vive agora por aí, sabe Deus como, triste e apagada como a lareira de uma casa que
ruiu.

Quase não come. Quase não fala. Quando tentam acalmá-la ou simplesmente lhe perguntam
como tem passado, fica de olhos no longe, a olhar para ontem, talvez a pensar na sua fazenda
de café afogada pelo capim... E, misturando português e quimbundo, como outrora na sua
chitaca de à-beira-Luége, murmura em voz sumida, sibilada, raivosa: — Capitãezinhos da
tuge!...

Lisboa, Abril de 1976 12.6 — O grande «espada»

Foi uma espantação, quando entrei na Rua de S. Luís, pilotando um grande «espada»
que não tem igual na Metrópole.
É um Corvette-Stingway dos mais Luxuosos e egoístas, porque só tem dois lugares. Com
os inconvenientes da sua legenda de rico para um homem repentinamente esbulhado de

123
todas as economias de longos anos de trabalho, tem uma vantagem muito apreciável nestes
tempos de olho vê, pé vai e mão pilha: não é fácil de roubar.
E não só porque a chave de ignição bloqueia o volante, como acontece em muitos
outros carros: é principalmente porque a sua aparelhagem electrónica inclui vários
dispositivos de segurança que só os iniciados sabem manobrar. Quem os não conheça não
consegue nada deste automóvel.

De que me serve agora, que não tenho dinheiro para a gasolina?

Pois serve para demonstrar a mim próprio que não tenho culpa da miséria que me
acontece. E por isso é agora que mais gosto dele. Quando o comprei podia comprá-lo. E
paguei-o a pronto.
Embarquei para Angola com umas centenas de escudos na carteira. Mas encontrei
aquela terra na fase do após-guerra, quando o governador Silva Carvalho ali iniciava uma
época de grande progresso.

Comecei como caixeiro-viajante da firma Cirilo & Irmão. Era solteiro e recatado; vivia
com o mínimo possível e economizei quanto pude. Percorri Angola inteira, dormi muita vez na
estrada dentro de viaturas atoladas na lama, andei muitos quilómetros a pé, de noite e através
do capim, com milhares de mosquitos a fartarem-se do meu sangue.

Quando o meu depósito no Banco de Angola atingiu os cinquenta contos, arranjei umas
representações, despedi-me da firma e passei a trabalhar ainda mais. Durante o dia, fazia o
giro dos clientes, quase sempre a butes e às vezes de machibombo, porque ainda não podia
pensar nem mesmo num desses feios Volkswagens que então começavam a aparecer em
Luanda e se vendiam a 30 contos, se a memória me não falha.

Aos trinta anos casei com uma boa moça, que me saiu companheira fiel e dona de casa como
já se não fabricam. Dois anos mais tarde montei a minha primeira lojeca de acessórios de
automóvel. Acertei no negócio porque, logo a seguir, começou a crescer rapidamente o
parque automóvel da província. E eu não tinha mãos a medir...
Em pagamento de uma dívida, recebi uns terrenos, à razão de 4$00 por metro
quadrado. Vendi-os cinco anos mais tarde, a 200SOO, quando ali se começaram a construir
as primeiras vivendas do Bairro de Alvalade. E comprei o meu primeiro carrito: um Cônsul
com 25 mil quilómetros que era o carro de serviço do gerente da Robert Hudson. E também se
começou a beber vinho em minha casa.
Daí para a frente eu estava lançado e tudo passou a correr sobre esferas. Sempre fui
sério nos meus negócios, mas ganhei muito dinheiro. Construí uma boa moradia no Bairro de
Alvalade, junto da piscina e fiz outra compra de terrenos, também muito feliz.
Ao abrir de 1974, a compra do Corvette já foi para mim uma coisa trivial. Tinha um
negócio próspero, pessoal bom a quem pagava muito bem e um confortável depósito
bancário. Bebia uísque Whíte Horse, adorava as gambas grelhadas do Clube Naval e julgava-
me com um futuro completamente assegurado.
Enganava-me redondamente, porque os salteadores da descolonização exemplar já
estavam ao virar da esquina...
Deu-se a catástrofe, fartei-me de jurar que não saía de Angola, mas os factos são mais
fortes do que as palavras e tive de fugir, como tantos outros. De tudo o que era meu e já
valia para cima de cem mil contos, salvei o Corvette.
A primeira vez que o encostei ao passeio, ali na Rua de S. Luís, em Oeiras, quando aqui
cheguei e andava à procura de qualquer buraco onde me meter com a família, logo ouvi um
tipo de barbas, que rosnava:

— Fascista!...

124
— Isso é comigo? — perguntei.

— Com quem há-de ser?

— Então vá bardamerda. Já!

E ele foi, porque logo se esgueirou por um carreiro de emergência, que vai dar à sub-
estação de energia eléctrica.
Fui sempre um homem paciente mas, talvez por isso mesmo, acabou-se-me a reserva de
paciência. Coragem para a vida, ainda tenho, porque não aceito morrer de fome. Mas já não
consigo tolerar certas gracinhas de quem nos pretende julgar, a nós, refugiados, sem conhecer
patavina do que foi a nossa vida em Angola. Nem sequer sabem que estão a caminho da fome,
agora que já não existe o Ultramar para ires acudir com ajudas de toda a espécie. Mas não
tardará muito que o aprendam à sua custa...
Quem me conheceu nos últimos tempos de Angola, pasma de me ver servir à mesa,
neste pequeno snack-bar em que me aventurei com alguns amigos. Pasmam, porque me
conheceram já no tempo das vacas gordas. Ao princípio, também nessa vasta terra cumpri
tarefas ainda mais duras.
O trabalho nunca é vergonha. E nesta fileira de estabelecimentos, os homens que
ajudaram a construir a Angola moderna e lá deixaram tanta coisa feita, não podem
envergonhar-se dos calos nas mãos.
Mas não gostamos que nos humilhem. Não aceitamos lições de gente que se gasta em
comícios, greves e plenários. Ainda hoje, um destes calcinhas, presumidos de espertalhões, me
ia fazendo perder a calma.
Sentou-se a uma das mesas a pedir um copo de cerveja com um prego no pão.
Servi-o como podia, enquanto ele circundava os olhos pelo estabelecimento, com ares
de apreciador.

— Isto é novo, não é? — perguntou ao cabo da inspecção.

— Abrimos há três dias.

— Não está mau — sentenciou com superioridade. — Sabe de quem é aquele


estupendo «espada» estacionado ali na S. Luís?

— É meu.

— É seu?! — gritou de puro espanto.

— Foi a única coisa que trouxe de Angola e está à venda...

— Quanto custa?

— O que me custou: 750 contos.

— A prestações, dou-lhe 75.

— E eu dou-lhe dois murros no focinho, se continua a escarnecer da desgraça!

Os meus olhos deviam chispar lume, porque o malandrote recuou, ergueu-se e tentou
fugir. Mas eu deitei-lhe mão rija ao braço franzino.

125
— Calma, meu filho! Tem de pagar primeiro... E o homem pagou, tão trémulo de medo, que
acabei por sentir pena dele.

Porque ando assim tão irritadiço?!...

Junho de 1975.

12.7 — Cícero e a velha Senhora

Qualquer pessoa de média cultura conhece aquela famosa imprecação do Cícero:


«quousque tandem, Catilirta, abuteris patientia nostra?» — até quando Catilina, abusarás da
nossa paciência?
Mas não é essa a passagem mais impressionante dessa espantosa intervenção no
Senado Romano. Depois de enfrentar assim um dos homens mais poderosos de Roma, o
grande orador desmascarou toda a manobra conspiratória e, ao terminar o seu tremendo
libelo acusatório, apontou para o conspirador um dedo minaz e, virando-se para os senadores,
com a face irada e a voz trovejante, bradou:
«E esse homem teve o atrevimento de entrar nesta Casa dos Defensores do Povo
Romano. Está no meio de nós, como o lobo entre cordeiros. Nas cavernas do seu cérebro
criminoso, já congemina os pormenores da sua negra traição? Por debaixo da toga, aperta o
punhal ávido do nosso sangue.
«Esse homem está neste Senado. E está vivo!»
Isto passou-se há mais de dois mil anos, no ambiente austero do Senado Romano.
Há duas semanas, um amigo recebeu de Maputo (ex-Lourenço Marques) um apelo
aflitivo de certa senhora, sua conhecida: «Que fosse esperá-la ao Aeroporto de Lisboa, no dia
tantos de tal, à hora da chegada do avião dos TAP, pois viajava sem um tostão».
O meu amigo foi ao Aeroporto no seu grande carro Ford, esperou duas horas pelo
avião, que chegava atrasado, conseguiu encontrar a sua conhecida de Lourenço Marques e
deu-lhe alimentação e alojamento em casa de sua família, na formosa vila de Oeiras.
Dias mais tarde, passava eu, a pé e debaixo de chuva, para apanhar o comboio, quando
esse meu bom vizinho me ofereceu boleia no seu automóvel.
Entrei e deparei com uma velhinha, magra e pequena, de fino rosto apergaminhado,
que deveria ter sido muito belo na juventude.
— A senhora Dona X..., de quem lhe falei há dias — apresentou o vizinho, com
simplicidade.
— Como estão as coisas em Moçambique? — perguntei depois, já com o Ford a rodar
nas proximidades do Estádio do Jamor.

— Muito mal! — disse ela. — Eu consegui fugir...

— A senhora fugiu?

— Exactamente. E tive muita sorte. Uma sorte que a maior parte não consegue.

— Conte!

— Desculpe, mas não gosto de falar nisso. É tudo um horror!

— Deixou lá família?

126
— Deixei, infelizmente. Um filho, recentemente casado, que me ajudou nesta aventura,
mas ainda quer ver se pode salvar alguma coisa do que lá tem... Sabe? Eu vim com passagem
Beira-Lisboa-Beira.

— Quer dizer que vai regressar a Moçambique?

— Quero dizer que os enganei, àqueles patifes! O Samora Machel quer segurar lá os
brancos, para os humilhar e torturar...

— Não será tanto assim... Ele precisa dos brancos.

— Pote não é tanto assim, não: é muito mais do que eu lhe posso dizer, porque há cenas
que uma senhora não conta. O presidente da Frelimo, para ele, tem tudo quanto quer e pouco
se importa da miséria do povo. A sua grande distracção é humilhar os portugueses que lá fica-
ram. Sabe o que ele fez a um médico com quem trabalhou, como ajudante de enfermeiro,
antes de -entrar no terrorismo?

— A senhora contará...

— Foi ao hospital e assistiu a toda a operação que esse médico estava a fazer. No fim,
depois de levarem o doente, o operador tirou as luvas, desinfectou as mãos e encaminhou-se
para o presidente, para o cumprimentar.
— Tu ainda não acabaste o teu serviço! — observou arrogantemente Samora Machel,
conservando as mãos nos bolsos.

— Já não tenho hoje mais operações — esclareceu o cirurgião.

— Mas ainda não limpaste a sala. Toca a limpar, anda!


«E, enquanto o médico cumpria, esmerando-se naquela tarefa de limpeza como se fosse
a mais melindrosa das operações, o Samora malandro ria consoladamente, saboreando o
uísque que lhe tinham trazido, com rodinhas de lagosta. Mas não riu por muito tempo. O
médico, que era então o melhor cirurgião do Hospital Central de Lourenço Marques...»
— De Maputo — emendei eu.
— ...Eu digo lá essa porcaria! Para mim, a capital de Moçambique continua a chamar-se
Lourenço Marques... Pois, como ia dizendo, ao acabar o tal serviço da limpeza, o cirurgião
guardou o balde e o esfregão, voltou-se para o presidente da República Popular de
Moçambique e disse-Ihe com toda a calma:
— Repara neste trabalhinho, Machel. E confessa que ficou muito melhor do que no
tempo em que tu o fazias!...
O presidente engasgou-se com a sua golada de uísque, tossiu aflitivamente durante
alguns segundos, espirrou moncos e lagosta pelo nariz e só daí a um grande bocado é que
desatou a berrar esganicadamente:
— Estás despedido! Ficas já expulso de Moçambique! Tens 24 horas para ir embora!
— Não é preciso tanto tempo — respondeu-lhe o branco com um riso escarninho. — Já
tenho a mala feita.
«E o bandido amouchou — concluiu a velha senhora, com ar de grande satisfação».
— Mas isso aconteceu mesmo? — perguntei, só para a continuar a ouvir.
— Claro que sim — confirmou quase ofendida. — Contou-mo quem assistiu. E
acontece muito pior. O senhor sabe que as mulheres brancas são obrigadas a trabalhar, de
seios nus, nas «machambas» do povo? O senhor sabe quantas foram arroladas como
prostitutas, apesar de casadas e irrepreensíveis? O senhor sabe...
— Deixe lá, minha senhora! — aconselhei, notando a sua crescente irritação. —
Compreendo o seu ressentimento contra essa gente...

127
— Pois compreende mal — disse ela, aind'3 nervosa. — O meu ressentimento não é
contra os pretos: é contra certos brancos portugueses. Os grandes responsáveis estão aqui,
em Portugal!
Caiu entre nós um doloroso silêncio. E já entrávamos em Lisboa, quando ela retomou a
palavra:
— Sabe o senhor que nunca fui capaz de matar uma galinha? Não posso ver sangue.
Não quero mal a ninguém. Mas agora... Quando penso nesses cobardes, nesses traidores...
— Compreendo — intercalei, tentando acalmá-la. Mas talvez nem me tenha ouvido.
Continuou, de olhos perdidos na lonjura de outros horizontes, com uma voz que parecia
molhada em fel:
— Estragaram tudo... Bandearam-se com os nossos piores inimigos... Ajudaram a matar
os seus irmãos e os seus camaradas de armas... Desgraçaram milhões de portugueses
brancos, pretos e mulatos... Destruíram uma grande e nobre nação...
E continuam vivos!...
Assim se repetiu, a dois mil anos de distância no tempo, pela boca de uma velhinha que
nunca leu Cícero, a frase mais pungente, proferida pelo maior orador de Roma, antes do
nascimento de Cristo.

Lisboa, Fevereiro de 1976.

12.8 — Na Rua de Belém, em Oeiras

Ao findar do ano louco de 1975 — tempo português, quase todo dominado pela
perigosa demência de Vasco Gonçalves e da sua «muralha de aço», — começaram a aparecer
estranhas criaturas em Oeiras, nesta Rua de Belém, que mais parece um pequeno largo.
Agasalhadas em velhas gabardines ou sobretudos antiquados, tossicando sob as agulhas
geladas do Inverno que há longos anos desconheciam, caminhavam ao longo do passeio
fronteiro às lojas por arrendar. Passeavam num passo curto, rápido e febril, bem batido no
chão de paralelepípedos, não para encurtar distâncias mas somente para aquecer os pés
enregelados.
Com o ar inconfundível dos exilados, o rosto amarelento dos impaludados crónicos, os
olhos amargos de quem viu o ódio e a morte, pareciam possuídos de uma estranha timidez,
mantendo-se arredios dos naturais da terra, como elefantes velhos, que se afastam da
manada quando sentem a morte próxima.
Mas, com o correr dos dias, começaram a acontecer imprevistos reencontros.
— Você não é o Viegas, de Santa Comba?
— Até ver...
— Ó alma do diabo, então já me não conhece?! Eu sou o Moreira, da Petrangol!
Apertaram-se num abraço à antiga portuguesa, desses que incluem palmadinhas nas
costas e repetidas doses de mútua contemplação, com os olhos nos olhos e o rosto iluminado
por uma grande satisfação interior.
— Grande sacana, que já nem conheces os amigos! — disse o mais antigo na rua, em
benigna reprimenda.
— Já nem a mim me reconheço — ponderou o Viegas, retomando o ar sério.
— Pois é... — concordou o outro, vagamente.— Lixaram-nos ávida... Quando chegaste?

— Anteontem, de manhã.

— E onde estás agora?

128
— Em casa duns parentes, ali em Porto Salvo. Hoje, meti-me no machibombo...

— Aqui não se diz machibombo — emendou o Moreira.

— Sei lá como se diz! — refilou o recém-chegado. — Meti-me nessa carrinhola e vim


cheirar estes sítios, que tenho de pensar no futuro.

— Lixaram-nos a vida — repetiu o Moreira, baixando os olhos para o chão.


— Lixaram toda a gente — ampliou o Viegas — Rebentaram com Portugal!

E, enquanto os dois caíam num silêncio confrangido, da loja de pronto a vestir saiu um
homem alto e forte, de gabardine quase nova, muito bem engravatado, com o guarda-chuva
pendurado no braço esquerdo, como um senhor do antigamente. Avançou resoluto para os
dois e, com a mão estendida para os cumprimentos da praxe, afectando grande cerimónia,
como um diplomata que exibe as suas credenciais, apresentou-se:

— Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal...


— O meu primo José Meires — corrigiu serenamente o Moreira. — Este ainda consegue
brincar...
— É o melhor que se pode fazer nas presentes circunstâncias — desculpou-se o
adventício. — E, muito a sério, bem falta nos faz o marquês de Pombal, agora que o
terramoto foi muito maior que o de 1755.
— Já não há marquês que nos possa valer. Estamos lançados aos bichos — reforçou o
Moreira, compenetradamente. Depois apresentou o parceiro:

— Não conheces o Viegas? Chegou anteontem de Luanda.

— Muito prazer! — fez o Meires, correspondendo ao cumprimento. — Também deu à


costa?
— Não tive outro remédio. Angola acabou para os portugueses. Que vão agora para lá
os que a venderam aos russos!
— Esses não largam daqui, enquanto se não acabar o ouro da «pesada herança» —
afirmou o Meires.
— Bandalhos! — definiu rudemente o Moreira, disparando a palavra como se fosse uma
bala.
— «Bandalhos» ainda representa um elogio para os autores de tantos crimes —
declarou um sujeito de meia-idade, que entretanto se aproximara, com uma barbicha rala no
queixo magro e o pescoço abafado no cachecol de fabrico doméstico. — Venderam-nos como
a rezes de talho. Desgraçaram-nos a todos... E eu não aguento este frio!
— Temos de aguentar! — berrou o Viegas com uma bruta patada no empedrado do
passeio. — Olhem para estas lojas com escritos!
— Pois olhamos... — disse o que brincava a marquês de Pombal. — Olhamos todos, a pensar
no mesmo: arrendar um pedaço de chão coberto, tentar qualquer negócio, recomeçar a
vida. Mas onde está o dinheiro?
— Eu consegui trazer parte do recheio da minha oficina — informou o Viegas.

— E dizem que o IARN concede empréstimos — acrescentou outro.

— Dizem... — arremedou o Meires, terrivelmente escarninho.

— Bem! — declarou o Viegas com certo desabrimento — Se desistem de viver,


aconselho a ponte Salazar...
— Cautela, desgraçado! — uivou o Meires. — Agora chama-se ponte 25 de Abril...

129
— Ou isso... — concordou calmamente o invectivado. — Mas seja qual for o seu nome,
um saltinho dali para o Tejo resolve tudo em definitivo. De acordo?...
Ninguém lhe respondeu.
O grupo foi engrossando com novos «retornados», que acudiam a saber notícias pela
boca do último que chegara: um desses bravos camionistas que sabiam de cor todas as
estradas de Angola; o guarda--livros de uma grande empresa de Luanda, que magicava na
possibilidade de abrir um pequeno restaurante; um agente de viagens de Lourenço Marques,
que andava a instalar as estantes para uma papelaria; um casal ainda jovem, que vinha do
IARN, onde estivera durante cinco horas, numa bicha de quilómetros, à espera das senhas de
alimentação.
E a conversa generalizou-se. Histórias de arrepiar sobre o êxodo de Angola. Ansiosas
interrogações sobre o futuro. Palavras de incontável raiva contra os responsáveis pela grande
catástrofe...
Decorreu quase um ano. Naquela esquina que era um dos pontos de reunião dos
«retornados» da zona, o guarda-livros sempre abriu o seu sonhado restaurante. O dono da
papelaria, trabalhando no duro com a mulher e as filhas, revelou-se um mestre na conquista
da clientela e já não diz que o negócio não dá para pagar a renda do estabelecimento. O
Viegas começou por pequenas reparações nas viaturas dos residentes mais próximos,
conseguiu algumas ferramentas a crédito, readquiriu o seu -ar jovial e afirma «que ainda
havemos de ensinar a estes calaceirões de Lisboa como é que se trabalha». Na Casa das
Ferragens trabalham agora três gerações de brancos nascidos em Moçambique. O Meires está
para os lados de Santarém, a tomar conta duma quintarola onde cria coelhos e galinhas. E há
também uns chineses vindos de Moçambique que cozinham bons pitéus, e a casa dos
churrascos, e o homem da barbicha rala, que era um ricaço em Luanda e agora serve à mesa
no seu snack-bar com salão de bilhares anexo.

Na Rua de Belém, à Figueirinha, em Oeiras, já não há nenhuma loja com escritos...

130
Epílogo

131
UMA VOZ NA NOITE
Perdido o Império, as Quinas e os Castelos,
E os gestos belos
dos austeros e graves ancestrais,
regressando da terra e dos meus filhos,
procuro – não encontro – a Pátria de meus pais …

Tão perdido de mim


como longe de Abel se fez Caim,
vagueio à toa
pelas ruas e praças de Lisboa,
nestes dias tristíssimos do fim.

Minha gente de alegre romaria,


tão ingénua, tão boa e tão confiada,
tanta voz enganada,
onde estás ?
- Onde estás?
nesta hora vil de abjecta cobardia,
nesta acção conspirada
de Pilatos, de Herodes e Caifaz?

Quem foi que te matou?


desta morte matada,
no negrume da noite e da traição? …

Toupeiras de alma fétida e mesquinha,


Traidores vis da “Pátria amada minha”,
- Atenção! …

Não somos nós - sabei! – os retornados.


“Retornados” sois vós,
servis politiqueiros,
retornados aos mando de estrangeiros,
com a alma em leilão,
com o vosso coração envilecido,
apodrecido
nas infames tarefas da traição.

Aqui e agora,
nós, os sem pão, sem trabalho e sem casa,
marcados no espírito e na carne,
com a marca cruel, a ferro em brasa,
dos rebanhos do IARN,
- somos ainda restos , os “salvados”
da Pátria plena,
na sua grande, exacta dimensão:
grande demais para a vossa alma pequena,
insustentável para homens-não.

132
No vosso vil projecto de traidores,
uma coisa falhou:
não nos mataram todos em Moçambique e Angola,
como a vossa alma pútrida sonhou:
e nesta exígua terra que sobrou,
nesta pequena Casa que ainda não ruiu,
mesmo a pedir esmola,
nós somos o terror de quem nos traiu!

Mas somos nós também,


aqui e agora,
um testemunho e verdadeiro
e a força humana, a força criadora
do velho Portugal de corpo inteiro.

Deixamos no Ultramar
Uma obra sem par.
Construímos estradas, escolas, hospitais,
monumentos, palácios, catedrais,
arranha-céus, vivendas,
gigantescas barragens, e os portos e aeroportos,
e as belas pontes,

e as enormes fazendas
com mais terra que o Minho ou Trás-os-Montes,
e quase uma centena de cidades novas,
que são formosas, clamorosas provas
de como se engrandece uma Nação.

Não somos de alma estreita,


Nem de mesquinho ou frágil coração.
“Da obra ousada, é nossa a parte feita”
- o desfazer coube à traição.

E, se ao recomeçar da estaca zero,


ó traídos, deserdados, meus irmãos,
nós soubermos guardar
a dádiva da vontade forte,
que não cansa
e sabe rir da morte;

se ousarmos insultar o desespero,


atirando-lhe à cara a nossa esperança;

se impusermos silêncio aos gritos de amargura


que a alma nos pede na desolação
do Império assassinado
e abandonado,
sem paz nem sepultura;

133
se recusarmos ser um povo estrangulado
pela mais vil e torpe ditadura
- a do vilão com a vara na mão - ;

Se em nossos olhos perdurar a imagem


desse Ultramar gigante,
em que nós fomos ímpeto e coragem,
em cada dia, em cada hora, em cada instante;

Se os velhos derrotarem a fadiga,


obrigando ao trabalho os membros lassos
e os mais novos firmarem os seus passos
na terra firme da experiência antiga;

Se agora concentrarmos , na estreiteza


desta Pequena Casa Lusitana,
toda a energia forte vencedora,
com que fizemos grande e promissora
esta terra africana
que era a herança maior da Pátria Portuguesa;

Se perante as traições negociadas


da sórdida canalha
dos poltrões, desertores e ministros sem pasta,
que andam praí a rir de quem trabalha,
- transformarmos a raiva em gargalhadas,
até que, um dia, lhes gritemos:

BASTA!

Se nos dermos as mãos,


como bons companheiros de viagem,
nos transes mais difíceis e aflitivos
desta nova arrancada,
e oferecemos SÓ toda a nossa coragem,
com o empenho total
de quem não tem nada,
porque tudo perdeu no bruto vendaval,

então, irmãos, vamos manter-nos vivos,


vamos salvar da morte o velho Portugal.

134
Índice

Prefácio ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 2

Explicação necessária ... … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 3

1 — Os Sinos da Liberdade … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 8

2 — Os dias malditos .. … … ... ... ... ... ... ... ... . ... ... ... ... ... 23

3 — No rumo da Independência ... … … … ... ... ... ... ... ... ... 36

4 — As boas palavras . ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... 50

5 —O Acordo de Alvor … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 57

6 — Entre a esperança e o desespero … … … ...... ... ... ... ... 64

7 — Resvaladouro .. ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 70

8 —Guerra civil … ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 81

9 —A debandada ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 93

10 — O cerco de Luanda … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 99

11 — Pior que a morte ... … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... 103

12 — Jangada de náufragos ... ... ... … … … … ... ... ... ... ... 110

Epílogo ... ... ... ... ... ... … … … … ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 131

Do site: http://www.macua.org/livros/diasdavergonha.html

135

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