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DUNKER, C. I. L. - A Imagem entre o Olho e o Olhar In: Sobre Arte e Psicanálise ed.

São Paulo :
Escuta, 2006, v.1, p. 14-29.

A Imagem entre o Olho e o Olhar

Christian Ingo Lenz Dunker

1. Imagem e Sentido

Na primavera de 1898 Freud faz uma visita à costa do mar Adriático. Durante a
viagem de volta à Viena ele conversa com um passageiro. Falam sobre a vida e os costumes
dos muçulmanos habitantes da Bósnia Herrzegovina. Logo a conversa muda para a Itália e
sua arte e pintura. Neste ponto Freud quer recomendar vivamente a seu colega uma visita à
cidade de Orvieto, no norte da Itália, onde este deveria contemplar os afrescos de sua
catedral. Afrescos que versavam sobre o juízo final e o fim do mundo.

[figura 1 – imagem de conjunto da Capela de São Brisio]

Neste ponto o nome do pintor desaparece de sua memória. Freud se esforça, o nome
está na “ponta da língua”, mas em vez da lembrança ocorre-lhe um curioso fenômeno:

“Pude representar os quadros com maior vividez sensorial do que sou comumente
capaz, e com particular nitidez tinha ante meus olhos o auto-retrato do pintor – o
rosto severo, as mãos entrelaçadas – que ele havia realizado em um ângulo de um
dos quadros junto ao retrato de seu predecessor no trabalho: Fra Angélico.” 1

[figura 2 – detalhe autoretrato de A pregação do Anticristo]

1
Freud, S. – Sobre o mecanismo psíquico da desmemoria (1898), in Sigmund Freud Obras Completas V III,
Amorrortu, Buenos Aires, 1988:282.

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Escuta, 2006, v.1, p. 14-29.

Ou seja, o esquecimento do nome do autor dos afrescos nos leva a uma das formas
mais claras do inconsciente. Ele sabia que sabia o nome do autor, mas não podia lembrar
qual era. Além disso, lhe ocorrem dois nomes substitutivos, dois outros pintores
renascentistas: Boticelli e Boltraffio. A análise da trama associativa que leva destes dois
pintores até o nome do autor procurado é talvez um dos fragmentos mais comentados de
toda a obra de Freud. É um modelo para a decifração do inconsciente.
A repetição da sílaba Bo leva Freud ao país contíguo Bósnia Herrzegovina. País que
o leva à religião muçulmana e ao fato de ali os médicos se referirem aos pacientes com o
título de Herr (senhor em alemão) especialmente ao comunicar a morte de um paciente.
Também na Bósnia há um grande apreço pela sexualidade, sem qual a vida perderia o
sentido. Quando estes dois temas – sexualidade e morte - se juntam na série associativa, em
torno da expressão Herr, surge o nome do pintor: Signorelli. Signore em italiano, Herr em
alemão. O juízo final também reúne sexualidade e morte, daí a razão inconsciente para o
esquecimento. A reconstrução se completa pela lembrança de que na cidade de Trafoi –
nome próprio contido em Boltrafio, Freud recebera a notícia do suicídio de um paciente
acometido por uma perturbação sexual incurável.

[figura 3 – diagrama de Psicopatologia da Vida Cotidiana]

Uma parte menos comentada deste artigo diz respeito ao que acontece na
experiência subjetiva de Freud quando o nome de Signorelli é finalmente lembrado, não
pelo esforço de memória de Freud, mas pela indicação de um colega:

“Pude então agregar por mim mesmo o primeiro nome: Luca. A recordação
hipernítida dos traços faciais do mestre, pintada por ele sobre seu quadro,
empalideceu de imediato.” 2

Quero ressaltar estes dois movimentos: primeiro a imagem torna-se intensa,


carregada, quase a forçar a angústia sobre o esquecimento; depois a imagem torna-se

2
Op. Cit.:283.

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pálida, rarefeita à medida em que o nome próprio se completa: Luca Signorelli. A obstrução
do sentido é correlativa da intensificação da visualidade. Inversamente a retomada do
sentido, pela interpretação do esquecimento, corresponde a um decaimento da visualidade.
Este efeito já tinha sido observado por Freud em relação à partes hipernítidas do sonho 3 e
comentado por Lacan em relação à intensa visualidade da fórmula de trimetilamina,
verificada no sonho da injeção de Irmã 4 .
O que pudemos acompanhar é uma espécie de narrativa, a história da luta entre
esquecimento e lembrança, entre imagem e palavra, entre luz e sombra, entre sentido e
perda de sentido. A moral que fica é a da vitória da lembrança. O triunfo sobre o
recalcamento, o mesmo que procuramos no tratamento psicanalítico. Todavia nesta linha a
intensidade da imagem funciona a serviço do encobrimento e da deformação, o hipernítido
é feito para enganar o olhar.
Trinta e oito anos depois deste episódio Freud relata uma segunda experiência
estética atravessada por uma perturbação da memória. Depois de uma série de peripécias,
Freud e seu irmão conseguem chegar finalmente, e pela primeira vez, a Atenas. Do alto da
Acrópole lhe ocorre então um pensamento inusitado:

“Então tudo isso existe efetivamente tal como aprendemos na escola ?!” 5

Trata-se aqui de colocar em dúvida ou de desacreditar do que se vê. Um sentimento


de estranhamento (Entfremdung) e de despersonalização abala o juízo de existência. Não há
nenhuma distorção da percepção, ela não é mais nítida nem menos intensa. Não há
nenhuma obstrução da lembrança. Mesmo assim a experiência questiona o que vê, põe em
dúvida o estatuto de realidade da imagem que se tem pela frente. A experiência estética
poderia ser aproximada aqui de uma espécie de descrença no que se vê.

3
Freud, S. – A Interpretação dos Sonhos (1900) in Sigmund Freud Obras Completas V III, Amorrortu,
Buenos Aires, 1988:282.
4
Lacan, J. – O Seminário livro II o Eu na Teoria e na Técnica da Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1989.
5
Freud, S. – Carta a Romain Rolland (uma perturbação de recordação na Acrópole) (1936), in Sigmund Freud
Obras Completas XXII, Amorrortu, Buenos Aires, 1988:214.

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2. Ver e Olhar

Espero que estes dois fragmentos biográficos possam ilustrar uma diferença
importante para a relação entre psicanálise e arte. No esquecimento de Signorelli não há
nenhuma alteração qualitativa da visualidade. Freud vê muito bem, não há qualquer dúvida
sobre a experiência passada em Orvietto. O que lhe escapa é que ao ver ele é também
olhado. Olhado pelo juízo final, envolvido pela cena diante do Senhor. Inversamente, na
perturbação da Acrópole é o olhar que toma a frente e então ele não consegue mais ver, no
sentido do que Merleau Ponty chamou de fé perceptiva. Há um embaralhamento entre
memória e percepção. Há um turvamento da realidade, uma penumbra do mundo, como
descrevem pacientes tomados pela despersonalização.
Nessa diferença entre ver e olhar reside uma das teses mais interessantes
desenvolvida por Lacan 6 . Seu argumento é de que um quadro deve ser considerado como
uma espécie de armadilha para o olhar. O sujeito, para apreender a imagem, deve colocar-
se em uma dada distância da tela. Nesta posição ele reconstrói o caminho da perspectiva
proposta pelo quadro, as imagens ganham forma, o espaço se organiza segundo uma
geometria que permite incluir o ponto de vista do pintor.
Mas se o sujeito da representação, tal qual Freud na catedral de Orvietto,
organiza-se pelo caráter estável da visualidade, isso se faz às custas do esquecimento do
olhar que surge do quadro. Ver-se sendo visto é uma impossibilidade ótica e no entanto
uma experiência subjetiva própria da crença fantasmática. O olhar é organizado pela luz,
não pela linha ou pelo ponto.
Contrariamente à tese de Merleu-Ponty, que afirma um entrelaçamento entre o ver e
o ser visto, Lacan defende uma espécie de descompasso entre o que vemos e o que nos
olha. Não há dialética nem integração entre olhar e visão, mas esquize ou ruptura. Entre
estas duas formas de relação com a imagem e com o sentido Lacan postula a existência de
um objeto que divide duplamente o sujeito. No esquecimento de Signorelli há um sujeito
dividido pela visão, na experiência da Acrópole um sujeito dividido pelo olhar. A

6
Lacan, J. – O Seminário livro XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1988.

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armadilha proposta pelo quadro resume-se então ao enunciado: ” Não me vês de onde eu te
olho.” 7
Este objeto é de fundamental importância para o tratamento psicanalítico.
Poderíamos até mesmo resumir o conjunto de uma análise a esta operação de extração do
objeto, chamado por Lacan de objeto a. ocorre que ele é de difícil teorização justamente por
suas propriedades fundamentais:
(a) Ele não é especularizável, ou seja, dele não se pode formar uma imagem,
de certa maneira é ele que comanda a esfera do imaginário para um
determinado sujeito.
(b) Ele não é nomeável, ou seja, não pode ser reduzido a uma designação
permanente e estável, que corresponderia, por exemplo, a uma espécie de
fixação de sua significação.
(c) Ele é uma hipótese para explicar certos fenômenos da experiência
subjetiva, principalmente os fenômenos derivados da angústia e da
repetição.
Temos então um objeto de difícil apreensão. Ele não pode ser representado porque
não é da ordem da representação, mas da apresentação e da temporalidade. No fundo o
objeto a é uma espécie de conjectura necessária para compreender certos fenômenos
clínicos. Uma conjectura deste tipo, cujos atributos são remetetidos à negatividade, soa
perigosamente próxima de um objeto teológico ou metafísico.

3. Uma Negatividade para Além de Platão e Kant

De fato, esta teologia negativa se caracteriza por uma hipóstase das figuras da
negatividade, que faz com que a obra de arte seja abordada continuamente para além da
experiência sensível que a caracteriza. Junto com isso há uma espécie de desqualificação
da imagem como categoria relevante para a pesquisa psicanalítica. Essa assimilação, rápida
demais, entre imagem e imaginário, deriva de uma leitura platônica e kantiana de Lacan.
Nesta chave o sensível é reduzido ao ilusório (aparência) e ao fenômeno particular

7
Quinet, A. – Um Olhar a Mais – ver e ser visto na psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2002.

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(patológico, no sentido kantiano). Surge daí uma espécie de repúdio teórico à pensar
historicamente as relações entre psicanálise e a arte, um repúdio metodológico em admitir a
linguagem da arte como não inteiramente redutível à linguagem em psicanálise e
finalmente um repúdio epistemológico à praticar, com conseqüência, a tese freudiana de
que a arte precede a psicanálise no domínio da descoberta e investigação dos fatos
psíquicos. Como respondi à Vladimir Safatle, o antídoto para esta propensão à teologia
negativa - que diviniza a obra de arte ao mesmo tempo que desliga os conceitos da
experiência – passa por três estratégias possíveis e que deveriam ser empregadas de forma
combinada:

(a) Admitir que a arte é um diálogo histórico e que a historicidade da obra é irredutível
tanto do ponto de vista de seu contexto de produção, como de recepção. Esse parece ter
sido o corte empregado, por exemplo, por Regnault ao afirmar:
“Se quiséssemos ser esquemáticos, a história das artes estaria marcada, em Lacan,
por uma dupla escansão, as artes do vazio, e depois as artes da anamorfose. Primeiro
momento, o vaso. Segundo momento, o crânio. O vaso define a arte primitiva. O
crânio, a arte contemporânea da ciência.” 8
Independente do fato desta classificação parecer incompleta; pois teríamos que
acrescentar ainda a arte baseada no furo, ou seja, na ruptura da superfície e da continuidade;
a perspectiva que coloca a psicanálise em contato com o domínio específico da história da
arte parece-me incontornável, sem ela temos a hipóstase da criação e do artista em
detrimento da produção da significação da obra. Quanto a este aspecto a observação de
Stephane Huchet, de que os psicanalistas parecem se prender excessivamente aos temas
freudianos renascentistas, ignorando o percurso histórico e notadamente a arte
contemporânea, parece-me muito pertinente. Que isso seja parte da reverência ao mestre
fundador da disciplina não interfere no fato de que ainda está por se fazer uma história da
arte que esteja à altura dos propósitos da psicanálise. Esse parece ser exatamente o convite
deixado em aberto por um crítico como Didi-Huberman 9 .

8
Regnault, F. – Em Torno do Vazio – a arte à luz da psicanálise, Contra Capa, Rio de Janeiro, 2000:29.

9
Didi-Huberman, G. – O Que Vemos, o que nos Olha, 34, Campinas, 1998.

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(b) Admitir que o tipo de pré-formalização da linguagem corrente para a conceitografia


psicanalítica é insuficiente para abarcar todo o domínio da arte. Se entendemos que a arte se
define como uma pesquisa sobre um tipo de linguagem, e que esta pesquisa baseia-se na
invenção de novos modos de emprego e expressão linguageiros, fica claro que diversos
problemas internos à este campo foram sumariamente excluído pela psicanálise. O exemplo
maior disso pode ser apontado na literatura e o descaso psicanalítico com a noção de
narrativa. A pragmática da obra literária, o problema dos gêneros e mutualidade entre
crítica e obra são outros exemplos acintosos de como a psicanálise acaba absorvendo temas
da estética com pouquíssimo trabalho de mediação. Problemas formais como a ironia, a
paródia, a retórica dos argumentos, a diegética e a construção de personagens acabam
simplesmente elididos pelo desconhecimento de que a semiologia psicanalítica não é a
mesma semiologia da estética. É curioso que isso aconteça mesmo após a lição
metodológica deixada por Lacan, que caminha no sentido contrário. Exemplos: em vez do
problema filosófico em torno do que é a pintura, Lacan pergunta, no âmbito quase técnico
da visualidade: o que é um quadro ? Em vez da absorção imediata da narrativa de Sófocles
ou Ésquilo, Lacan pergunta: o que é o gênero trágico ? Em vez da alegoria sobre a
decepção amorosa de Lol V. Stein, Lacan pergunta: o que é uma escritura ? Finalmente,
em vez de tomar a arte como um campo pré-constituído ele procura distinguí-lo de outras
formas de lidar com o vazio. A arte se organizaria em torno do vazio, em afinidade com a
histeria e com a operação de recalque, a religião evita esse vazio, em afinidade com a
neurose obsessiva e com a operação de deslocamento e a ciência, por sua vez, não acredita
neste vazio, em acordo com a paranóia e com a estratégia da foraclusão 10 .

(c) Finalmente seria preciso admitir, como uma espécie de condição metodológica para
pensar as relações entre arte e psicanálise que a própria obra de Lacan tem por horizonte
uma espécie de tensão incontornável entre o matema e o poema. Como argumentou
11
persuasivamente Badiou , a arte é o contraponto necessário do desejo de formalização e

10
Regnault, F. – Em Torno do Vazio – a arte à luz da psicanálise, Contra Capa, Rio de Janeiro, 2000:16.

11
Badiou, A. – O Ser e o Evento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996.

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matematização que encontramos em Lacan. Sem a admissão desta equiparação entre dois
pólos de formalização é difícil pensar uma relação entre os dois campos sem que o poema
recaia no lugar de uma ilustração, uma “mera” imagem didática que nos forneceria a
“intuição sensível” abolida pelos conceitos e pelos matemas. Em outras palavras é preciso
romper com a hierarquia medieval que colocava na cúspide das ordens de saber a teologia,
abaixo desta a matemática e a filosofia e abaixo destas a música e as artes. Nisso é preciso
ponderar a posição diferencial de Freud e Lacan quanto ao lugar das artes na formação do
psicanalista. Para Freud estas deveriam ser parte integrante da Bildung do analista. Lacan -
ao contrário da própria ênfase de seu ensino, que sistematicamente toma as produções da
arte como que a ocupar o lugar do que em Freud corresponde aos casos clínicos – deixa de
lado a formação artística enfatizando a importância da lingüística, da lógica, da topologia e
da antifilosofia.

Há, no entanto, duas maneiras de abordar este objeto desta esfera: uma é a
matemática a outra é a arte. Isso é muito importante para pensar as relações entre arte e
psicanálise para além de uma relação hermenêutica, onde a psicanálise entraria como uma
espécie de chave de sentido para a obra, ou ainda de uma relação de soberania sobre a vida
do autor como se dessa se pudesse inferir o sentido da obra. Também não é o caso de uma
relação de ilustração de conceitos ou da transferência de noções da psicanálise para a crítica
ou para a história da arte. Lacan não se interessa apenas pela arte como um discurso entre
outros, que nos ajudaria a entender o laço social humano. A questão em torno da conjectura
do objeto a é de outra natureza: é uma questão de método.
Isso opera certas reduções. Significa tomar o campo da arte como uma espécie de
pesquisa do qual aguardamos certos resultados, porém sobre o qual teríamos pouca
ingerência. Em outras palavras esperamos da arte certos resultados, certas descobertas que
possam não apenas confirmar a conjectura que debatemos, mas fazê-la progredir. Isso muda
completamente o regime de relações entre psicanálise e arte. A arte pode nos levar a
introduzir certos traços ou possibilidades que ainda não podemos dirimir em torno do
objeto a. Ou seja, ela cria problemas legítimos para a psicanálise. A psicanálise não parasita
a arte como campo de ilustração. Não é uma relação onde sugamos o que podemos sem
nada dar em troca.
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3. Formas de Apresentação do Objeto a

Sumariamente podemos indicar três perspectivas para a exploração da conjectura do


objeto a. Três problemas que parecem ter uma história independente no campo das artes.
Nossa pergunta aos artistas é se eles podem encontrar uma solução comum e unificada para
estes três problemas.
O primeiro é o problema da deformação. A separação entre visualidade e olhar pode
ser apreendida em certas estratégias de composição como a anamorfose. Nela o objeto é
apresentado em uma combinação de perspectivas de tal modo que a luz e geometria se
separam. O exemplo clássico, neste caso, é a tela Os Embaixadores, de Holbein.

[figura 4 – Os Embaixadores de Holbein]


[figura 5 – Os Embaixadores de Holbein – detalhe do crânio]

O segundo problema é o problema do informe. Aqui a separação entre o ver e o


olhar passa pelos limites da formação da forma. Inclui-se aqui o tema do informe e da aura
da obra, como o abordaram Walter Benjamin e Didi-Huberman. Inclui-se neste caso
também o tema dos limites da obra, a separação entre o quadro e a janela, entre quadro e
moldura, como vemos na tela branca de Rauchenberg. Sua formulação contemporânea pode
ainda ser encontrada em Donald Judd:

“A principal qualidade das formas geométricas é não ser orgânica, como o é toda
outra forma de arte. Seria uma grande descoberta encontrar uma forma que não
fosse nem geométrica nem orgânica.” 12

[figura 6 - Donald Judd – Sem Título]

12
Judd, D. citado por Didi-Huberman – O que Vemos, o que nos Olha, Editora 34, São Paulo, 1998.

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O terceiro problema é mais genérico e inclui os anteriores. Trata-se da problemática


do vazio. Para Lacan, assim como para Heidegger, a obra de arte tem por modelo a olaria.
A obra contorna um vazio que deve ser inferido ou deduzido na experiência estética. É por
isso que a apreensão do vazio exige a noção de repetição e a referência ao tempo. Aqui
incluem-se as pesquisas em torno da subtração do objeto, como o trabalho de Waltércio
Caldas sobre As Meninas de Velásquez, os trabalhos de negativização do objeto como
vemos em Magritte e, principalmente, a experimentação em torno da relação entre o corpo
e nome próprio.

[figura 7 – As Meninas de Velásquez]


[figura 8 – As Meninas de Waltércio Caldas]

4. O Informe, a Deformação e o Vazio

Podemos voltar agora aos afrescos da catedral de Orvietto. Porque nos importa que
seja justamente o nome próprio de seu autor o objeto esquecido por Freud ? A presença do
elemento estético seria algo indiferente ? Por exemplo, Freud poderia ter nos dito a mesma
coisa a partir do esquecimento do nome do dono da lavanderia, ou do nome do treinador de
seu cão de estimação ? Formalmente sim, o exemplo é fortuito, daí seu valor de
generalização teórica como modelo para entender a gramática do inconsciente. Mas não
posso deixar de notar que nestes afrescos encontramos uma espécie de convergência
aproximativa, ou pelo menos figurativa, com as três formas de abordagem do objeto a pela
via da arte.
É assim que o crítico Eli Faure descreve os afrescos:

“E lá o corpo humano, estendido como um feixe de cordas, tornara-se uma


mecânica expressiva, onde os nervos quase desnudados lançavam a paixão nos
membros em jatos de chama curtos e repetidos (...) Eram os primeiros nus
anatômicos. A ciência italiana do corpo humano se revelava com precisão
intransigente. Exceto alguns arcanjos vestidos de ferro, que guardavam as portas do
céu o resto eram nus. Cadáveres esfolados, pintados diretamente, reanimados,
10
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relançados no curso da vida com inacreditável violência. Curiosas figuras reduzidas,


ossos quebrando, mandíbulas contraídas, tendões duros como cabos de metal,
homens e mulheres berrando.” 13

Está presente, portanto, a problemática da deformação. A deformação do corpo


humano que se reencarna para o juízo final. A deformação compensada pelo caráter ogival
da cúspide gótica onde os afrescos se instalam.

[figura 9 – A Reencarnação da Carne]

Está presente também o tema do informe e da mancha. É assim que Signorelli


representa o apocalipse: um portal aberto, absolutamente negro, de onde se pode intuir dois
olhos que nos olham.

[figura 10 – O portal do Apocalipse]

Está presente ainda a experiência do vazio, tanto pelo tema do fim do mundo e da
morte-vida, quanto pela estratégia do excesso, que polui a obra com milhares de
personagens, cenas e ações. O excesso indicando a falta, retórica inconsciente abordada
por Freud em torno da cabeça de medusa, que nos paralisa com seu olhar. Os afrescos são
pintura, mas que se realiza nesta grande experiência do vazio que é uma catedral gótica. É
pintura que questiona propositalmente a relação entre tela e moldura.

[figura 11 – Conjunto de Corpos]

Encontramos ainda esta estratégia de assinatura, a inclusão do autoretrato de


Signorelli, andando ao lado de Fra Angélico, em primeiro plano, na cena em que se retrata
a pregação do Anti-Cristo. Primeiro plano que reaparece na lembrança de Freud como
contrapartida do esquecimento do nome.

13
Faure, , Eli citado por Huot, H. – Do Sujeito à Imagem – uma história do olho em Freud, Escuta, São Paulo,
1991.

11
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Como se vê, o exemplo dos afrescos da capela de São Brisio refere-se pouco às
estratégias de construção, são mais referência semânticas do que propriamente
demonstrativas da separação que procuramos. Esta separação não se dá no plano da
significação, mas da possibilidade de organizar o vazio de significação, a falta de sentido.
Finalmente, a experiência estética de Freud, duplicada pelo posterior estranhamento
na Acrópole, mostra bem os limites entre o espaço da representação, formado pela
visualidade, e o espaço do sentido formado pela sua integração (falsa) ao olhar. Nesta
disjunção localiza-se uma falta de sentido, expressa tanto pelo esquecimento quanto pela
despersonalização. Uma falta de sentido, organizada pela obra de arte, que nos remete a
uma hipótese sobre o objeto a em Freud:

Signorelli = Sig.
Fra Angélico = Fr.
Sigmund Freud

[figura 12 – abreviação do nome de Freud]

12

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