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Contribuições da perspectiva histórico-cultural de

Luria para a pesquisa contemporânea

Marta Kohl de Oliveira


Teresa Cristina Rego
Universidade de São Paulo

Resumo

Este ensaio procura explorar a fecundidade dos postulados de


Alexander Romanovich Luria para a pesquisa contemporânea. Es-
pecificamente, busca explicitar o vigor das premissas, das ideias e
dos procedimentos investigativos adotados em seus estudos sobre
os processos mentais em sua relação com a cultura ao longo de
quase seis décadas de atividade. As contribuições da abordagem
luriana são ilustradas por meio da apresentação de algumas de
suas pesquisas realizadas ao longo do século passado. Foi salienta-
do o caráter promissor dessa abordagem para a investigação do
desenvolvimento humano, pois ela permite compreender os fenô-
menos em sua complexidade, a necessidade de criação de instru-
mentos e procedimentos de pesquisa capazes de assegurar essa
compreensão, assim como o papel ativo do pesquisador na formu-
lação de perguntas e na condução das pesquisas empíricas. A apre-
sentação e análise de traços representativos dos diversos temas
explorados pelo autor revelam um pesquisador obstinado em com-
preender o complexo processo de constituição humana por meio
da fecunda combinação de investigações sobre o enraizamento
biológico do funcionamento psicológico e sobre a constituição
histórica do psiquismo humano.

Palavras-chave

Luria — Pesquisa qualitativa — Psicologia histórico-cultural —


Correspondência: Neuropsicologia — Cultura e pensamento.
Teresa Cristina Rego e
Marta Khol de Oliveira
Faculdade de Educação - USP
Av. da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo – SP
e-mails: teresare@usp.br
mkdolive@usp.br

*
Parte das reflexões aqui apresen-
tadas estão relacionadas às pesqui-
sas desenvolvidas com apoio do
CNPq (Bolsa de Produtividade - Pro-
cesso n. 308242/2008-4)

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 107-121, 2010 105


Contributions to contemporary research of Luria’s
cultural-historical approach

Marta Kohl de Oliveira


Teresa Cristina Rego
Universidade de São Paulo

Abstract

This essay aims to explore the fecundity of the postulates of


Alexander Romanovich Luria to contemporary research. More
specifically, it will seek to elucidate the vigor of the premises,
ideas, and investigation procedures adopted in his studies on
mental processes in their relation to culture throughout a career
that spanned almost six decades. The contributions of the Lurian
approach are illustrated by the description of some of the
studies he carried out last century. The text places emphasis on
the promising nature of this approach for the investigation of
human development, since it makes it possible to understand
the phenomena in their complexity, the need to create research
instruments and procedures capable of ensuring this
understanding, and also the active role played by the researcher
in the formulation of questions and in the conduction of
empirical research. The presentation and analysis of features
representative of the various themes explored by the author
reveal a researcher determined to understand the complex
process of the human constitution through the fertile
combination of investigations on the biological roots of
psychological functioning and the historical making of the
human psyche.

Keywords

Luria — Qualitative research — Cultural-historical psychology —


Contact: Neuropsychology — Culture and thinking.
Teresa Cristina Rego e
Marta Khol de Oliveira
Faculdade de Educação - USP
Av. da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo – SP
e-mails: teresare@usp.br
mkdolive@usp.br

* Some of the ideas presented here


are related to research carried out
with support of CNPq (Bolsa
Productivity - Process n.308242/
2008-4)

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O neuropsicólogo russo Alexander é um monumento à tradição intelectual e
Romanovich Luria foi, indubitavelmente, um humanista, ápice da cultura humana, que ele
dos expoentes do século XX no estudo e na buscou entender e aperfeiçoar. (Cole, 1992, p.
compreensão dos processos psíquicos. Os tre- 11)
chos apresentados a seguir expressam o lugar
de prestígio que ele ocupa entre os autores Embora falecido há mais de 30 anos, os
contemporâneos interessados no estudo do de- estudos precursores que elaborou no campo da
senvolvimento humano: memória, da linguagem e do desenvolvimento
cognitivo – alguns já considerados clássicos –
Sou uma das pessoas que tiveram a sorte de continuam despertando grande atenção e interes-
examinar pacientes com o professor Luria no se. Sua criatividade como investigador, valorizada
Hospital Neurológico Budenko, em Moscou. na psicologia, neurologia e linguística, mas ainda
Foi uma experiência inesquecível, pois sua pouco conhecida entre os pesquisadores do cam-
extraordinária capacidade de trazer à luz o po educacional brasileiro, traz contribuições sig-
material importante, por meio de perguntas nificativas que ajudam a compreender a necessi-
engenhosas e procedimentos inovadores, era dade de preservar a riqueza da realidade humana
realmente notável. Sempre foi assim, desde na sua complexidade. Seus estudos expressavam
os anos 20, quando seus estudos começa- suas tentativas de construir uma metodologia de
ram. (Bruner, 2006, p. xxii) pesquisa capaz de romper com a artificialidade
que marcava as investigações psicológicas de sua
Foi o mais importante e fecundo neuropsi- época, de certa forma ainda presentes no cenário
cólogo de seu tempo, e alçou a neuropsi- atual. Como avalia Michael Cole (1992), Luria
cologia a um requinte e simplicidade ini-
magináveis cinquenta anos atrás. O que desde o [...] buscou um novo método, que sintético,
início distinguiu sua abordagem e constituiu reconciliasse a arte e ciência, descrição e ex-
uma linha constante em todos os seus estudos plicação. Afastaria a artificialidade do labo-
foi o senso que tinha de que até mesmo as fun- ratório, mantendo seu rigor analítico. Tendo
ções mais elementares do cérebro e da mente feito sua escolha, defrontou-se com uma sé-
não eram de natureza inteiramente biológica, rie de novas opções, relacionadas ao método
mas sim condicionadas pelas experiências, as e à teoria, que tornariam possível sua tenta-
interações, a cultura do individuo – sua crença tiva de síntese científica. (p. 11)
em que as faculdades humanas não podiam ser
estudadas ou compreendidas isoladamente, mas Por essa razão, no prefácio a uma das obras
tinham sempre de ser compreendidas em relação de Luria, Jerome Bruner (2006) o chama de “vi-
às influencias vivas e formativas. (Sacks, 2008, sitante do futuro”, um pesquisador que, contra-
p. 9-10) riando as tendências presentes na psicologia de
seu tempo, soube combinar “a sabedoria clínica do
Ao longo das primeiras seis décadas da psicolo- excelente médico com a sagacidade teórica do
gia soviética, Alexander Luria trabalhou para cientista” (p. xxii). Bruner enaltece em particular
torná-la mais próxima do sonho de seus funda- a agudeza das observações e dos insights de Luria
dores: um estudo marxista do homem, a serviço e o fato de ele ter criado não somente uma ex-
do povo de uma sociedade democrática e socia- pressiva obra, mas também um novo gênero de es-
lista. Luria viveu experiências pioneiras no crita (chamado por Luria de “ciência romântica”),
contato com problemas e insights acumulados que consegue ultrapassar os limites de um frio
pela psicologia em todo o mundo, desde o relato clinico para compreender o modo comple-
seu princípio, há cem anos atrás. Seu trabalho xo e singular como o sujeito vive sua condição

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humana: e centenas de artigos publicados em diversas lín-
Suspeito, na verdade, que a invenção do novo guas. Nossa intenção, bem mais modesta, é ana-
gênero também reflete uma mudança de lisar alguns traços representativos dos diversos
mentalidade em filosofia, um outro capítulo temas explorados pelo autor ao longo de seu
na luta para libertar as ciências humanas do percurso de pesquisa com o objetivo de exami-
enfadonho cativeiro do positivismo do século nar os referenciais nos quais suas formulações
XIX. A explicação de qualquer condição hu- teóricas estão firmados e, principalmente, apon-
mana está tão ligada ao contexto, é tão com- tar aspectos que a leitura direta de textos
plexamente interpretativa em tantos níveis, dispersos do autor nem sempre revela. Tomando
que não pode ser alcançada considerando-se como ponto de partida o contexto mais amplo
apenas segmentos isolados da vida in vitro, e em que suas inquietações e produções se inseri-
nunca chegará, mesmo no melhor dos casos, ram, procuramos explicitar aspectos que estão
a uma conclusão final para além da sombra implícitos ou pressupostos em suas proposições.
da dúvida humana. Pois o ser humano de fato
não é ‘uma ilha’. Ele vive numa trama de Luria e suas circunstâncias: um
transações, e suas possibilidades e tragédias homem complexo, vivendo num
originam-se em sua vida transacional. (p. xi- tempo complexo
xii)
Comecei minha carreira nos primeiros anos da
Entendemos que seu esforço e interes- grande Revolução Russa. Este acontecimento
se persistente em compreender o sujeito huma- único e importantíssimo influenciou decisiva-
no em sua plenitude e complexidade, assim mente a minha vida e a de todos que eu conhe-
como sua atitude como pesquisador — extre- cia. Comparando minhas experiências com as de
mamente ousada para os padrões de sua épo- psicólogos americanos e ocidentais, vejo uma
ca —, continuam atuais e parecem oferecer um importante diferença. [...] A diferença repousa
caminho alternativo profícuo para o nos fatores sociais e históricos que nos influen-
enfrentamento de dilemas e problemas que a ciaram. [...] Toda minha geração foi inspirada
ciência contemporânea ainda não conseguiu pela energia da mudança revolucionária —
equacionar. Com o objetivo de contribuir para aquela energia libertadora que as pessoas sen-
o conhecimento e a divulgação da fecunda tem quando fazem parte de uma sociedade que
abordagem luriana, neste ensaio, procuramos pode realizar um progresso tremendo num in-
analisar alguns traços de sua trajetória e do tervalo de tempo muito pequeno. (Luria, 1992,
programa científico que desenvolveu ao longo p. 23)
de aproximadamente seis décadas de trabalho
ininterrupto e intenso. Para explorar alguns Alexander Romanovich adorava a ironia amarga
tópicos por nós selecionados como centrais na de uma piada popular durante aqueles tempos:
obra de Luria, optamos pela remissão a seus ‘O que é felicidade? É viver na União Soviética.
textos publicados no Brasil com o objetivo de E o que é falta de sorte? É ter tal felicidade’.
propiciar ao leitor um mapeamento dos traba- Ele entendeu perfeitamente que sua própria
lhos disponíveis em português, ao mesmo tem- vida estava cheia de tais paradoxos. (Cole;
po em que neles localizamos as questões Levitin; Luria, 2005, p. 256)
temáticas, teóricas e metodológicas que carac-
terizam a obra do autor como um todo. Entre muitas produções instigantes,
Neste pequeno texto, não pretendemos Hannah Arendt (1987) elaborou textos biográ-
esgotar a apresentação de toda a extensa obra de ficos de personalidades de seu tempo e do
Luria, composta de mais de uma dúzia de livros passado. Em tais escritos, a autora contava

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histórias de pessoas que participaram de modo profissional, bem como dos pressupostos filo-
intenso das tensões, dos dilemas e das realiza- sóficos e epistemológicos subjacentes às suas
ções de seu tempo. Seu interesse era o de re- teses, confirmam essa definição.
fletir sobre como tais indivíduos se moveram Luria nasceu em 1902, em Kazan, uma
no mundo e como esse mundo influenciou pequena cidade universitária próxima a Moscou,
suas existências. Era, portanto, o entrelaça- e faleceu em 1977, em Moscou, de insuficiência
mento da vida com o contexto em que ela foi cardíaca. Filho de um médico de destaque e tam-
vivida que lhe interessava. Por meio dessas bém professor da escola de medicina de Kazan,
narrativas de vida, Arendt buscava não somen- especializado em doenças do estômago e interes-
te salvá-las do esquecimento (para ela, biogra- sado em medicina psicossomática, Luria teve
far era conferir imortalidade àquilo que, por acesso, desde cedo, às produções mais importan-
sua própria natureza, é fugaz e perecível: a tes na psicologia de sua época (como trabalhos
vida humana), mas também propiciar um ins- no campo da psicologia experimental, as teses de
tante de lucidez em meio a um mundo que Freud e de Jung). O fato de dominar o idioma
vivia “um tempo sombrio”, marcado por alemão e frequentar, com sua família, círculos in-
genocídios, práticas totalitárias e outras telectuais cujos membros estudavam fora da
barbáries. Ela acreditava que as biografias re- Rússia, deu a ele a oportunidade de não se res-
presentavam uma boa oportunidade de com- tringir às traduções russas (Cole, 1992).
preensão não somente do pensamento e das Luria passou sua infância em Kazan, con-
obras do biografado, como também dos mo- vivendo com as opressivas restrições do czarismo.
dos imprevisíveis pelos quais suas realizações Estava com 15 anos quando irrompeu a Revolu-
foram engendradas no embate com o contex- ção de 1917. Nessa época, a atmosfera era de
to em que viveram. entusiasmo com as profundas e promissoras
É com esse olhar que comentaremos aspec- transformações que ocorriam na sociedade sovi-
tos presentes na vida e obra de Luria, embora ética. Num texto autobiográfico escrito na déca-
reconhecendo, juntamente a outros autores da de 1970, Luria (1992) afirma:
(Dosse, 2009; Bourdieu, 1996, por exemplo), que
a vida de qualquer indivíduo está sempre em ex- Nosso conteúdo e estilo de vida mudaram
cesso com relação às palavras que falam sobre ela. imediatamente. [...] Os limites de nosso res-
Como gênero de discurso, toda a escrita trito mundo particular foram estilhaçados
(auto)biográfica objetiva estabelecer linearidade, pela Revolução, e novas paisagens abriram
coerência e continuidade para experiências e perante nossos olhos. Fomos arrebatados por
vivências que são sempre dispersas, multifacetadas, um grandioso movimento histórico. Nossos
fragmentárias e descontínuas. Nenhuma narrati- interesses pessoais foram consumidos em fa-
va (auto)biográfica — por melhor que seja — será vor de metas mais amplas de uma nova soci-
capaz de traduzir, em toda a sua riqueza, com- edade coletiva. (p. 25)
plexidade e multi-plicidade, a vida de uma pessoa.
Um homem complexo, vivendo num As novas condições sociais alteraram
tempo complexo. É assim que Michael Cole e também o rumo de sua formação. Em 1917,
Karl Levitin (2005) definem Alexander Luria. Po- havia completado seis anos de um curso gi-
demos ampliar essa definição: um homem com- nasial de oito. Em vez de completar o curso
plexo, vivendo um tempo complexo, cujo inte- regular, conseguiu seu diploma no ano se-
resse principal era o de desvendar a complexi-
dade da constituição dos processos psicológicos 1. Informações mais completas sobre a carreira científica de Luria e
das relações entre sua vida, seu trabalho e as condições do contexto
tipicamente humanos1. O exame de alguns tra- histórico e social do país em que viveu podem ser encontradas em
ços presentes em sua trajetória acadêmica e Cole; Levitin; Luria (2005) e Homskaya (2001).

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guinte, fazendo, assim como muitos de seus terrivelmente desinteressante, porque não via
colegas, um curso reduzido. Logo depois de se qualquer ligação entre a pesquisa e o lado de
formar, portanto com aproximadamente 17 fora do laboratório. Queria uma psicologia
anos, ingressou na Universidade de Kazan, na relevante, que conferisse alguma substância às
Faculdade de Ciências Sociais. Nessa época, as nossas discussões sobre a construção de uma
universidades viviam uma situação caótica, nova vida. (p. 27-28)
pois passaram a receber, sem nenhum tipo de
preparo, milhares de estudantes originários de Luria obteve seu diploma em 1921, em
diferentes escolas secundárias, com níveis de Ciências Sociais, aos 19 anos. Embora já estivesse
preparação muito distintos. Como relata Luria bastante atraído pelos temas relacionados à psi-
(1992), “havia escassez de todos os gêneros. cologia, no mesmo ano em que se formou, come-
Talvez a mais importante fosse a escassez de çou a cursar Medicina, incentivado por seu pai, e
professores preparados para ensinar sob as a fazer uma formação num instituto pedagógico:
novas condições” (p. 25). As discussões sobre
as necessidades de reformulação e atualização Naquela época, era possível estudar simulta-
do currículo e das dinâmicas adotadas nas neamente em mais de uma escola. Comecei
aulas se mesclavam a outros temas como po- então a ter aulas de medicina, e cheguei a
lítica e rumos da “nova sociedade” em cons- completar dois anos de escola médica antes
trução e envolviam não somente os professo- de interromper meus estudos, que só seriam
res, mas também os alunos. retomados muitos anos depois. Ao mesmo
Luria começa, então, a participar ativa- tempo, frequentava o Instituto Pedagógico e
mente dessas discussões e também de encon- o Hospital Psiquiátrico de Kazan. (p. 30)
tros de associações científicas. De acordo com
sua própria avaliação, é nesse período que Os estudos de Luria no campo da Medi-
começa a se interessar pelo socialismo utópi- cina foram retomados somente em 1936, ten-
co, com a intenção de compreender as vicissi- do ele se graduado em 1937. Ao mesmo tem-
tudes de seu tempo e particularmente as ques- po, fez um doutorado no Instituto de Psicolo-
tões relativas ao papel do homem na confor- gia de Tbilisi, sendo sua tese uma reescrita do
mação da sociedade. Começa aí, também, a se texto The nature of human conflicts, anterior-
delinear seu interesse pelo campo da psicolo- mente publicado (em 1932).
gia e a se definir, ainda que de modo embrio- Iniciou suas atividades de pesquisas no
nário, seu projeto de “desenvolver uma abor- final da década de 1920, trabalhando no Ins-
dagem psicológica concreta dos eventos da tituto de Psicologia de Moscou. Nessa época,
vida social” (Luria, 1992, p. 26). Esse interes- a Rússia estava passando por mudanças pro-
se aumentava na medida em que ele entrava fundas. Essa circunstância histórica impulsio-
em contato com as formulações da psicologia nou e marcou profundamente todas as suas
acadêmica pré-revolucionária que então preva- investidas científicas. Mais tarde, a partir de
lecia nas universidades (fortemente influenci- 1924, simultaneamente parceiro e discípulo de
adas pela filosofia e pela psicologia alemãs): Lev Seminovich Vygotsky (1896-1934), inte-
grou, com Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-
Deprimia-me constatar quão áridos, abstratos 1979), um grupo de intelectuais envolvido com
e afastados da realidade eram aqueles argu- a criação de “uma nova psicologia”, uma teo-
mentos. Eu queria uma psicologia que se apli- ria do funcionamento intelectual humano fun-
casse às pessoas de fato, na sua vida real, e damentada no materialismo dialético. O pro-
não uma abstração intelectual num laborató- grama de pesquisa do grupo, que anos depois
rio. A psicologia acadêmica era para mim deu origem à chamada psicologia histórico-

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cultural, traduzia, como avaliou Luria, as aspi- e Fundamentos de Neuropsicologia, os dois pri-
rações, o idealismo e a efervescência cultural meiros textos de Luria publicados no Brasil, em
de uma sociedade pós-revolucionaria: 1979 e 1981 respectivamente, ambos esgotados,
Com Vygotsky como líder reconhecido, em- informam-nos sobre uma dimensão muito cen-
preendemos uma revisão crítica da história e tral em seu trabalho e sobre a forma de pene-
da situação da psicologia na Rússia e no res- tração de suas ideias no Brasil. Tal dimensão diz
to do mundo. Nosso propósito, respeito à sua produção como neuropsicólogo,
superambicioso como tudo na época, era cri- pesquisador dedicado à compreensão das bases
ar um novo modo, mais abrangente, de estu- biológicas do funcionamento psicológico, e ex-
dar os processos psicológicos humanos. plica o fato de ele ter sido inicialmente conhe-
(Luria, 1988b, p. 22) cido por estudiosos brasileiros da área de ciên-
cias biológicas, medicina e fonoaudiologia.
Seus primeiros trabalhos foram, assim, A obra Curso de Psicologia Geral foi
elaborados nos primeiros anos da Revolução traduzida diretamente do russo por Paulo Be-
Russa. Depois, já mais maduro, coerentemente zerra e consiste numa espécie de manual
com o clima de entusiasmo de uma sociedade introdutório, em quatro pequenos volumes,
pós-revolucionária, dedicou-se mais intensa- originalmente destinado a alunos de psicolo-
mente ao projeto de construir uma nova psico- gia. Está organizado de modo a percorrer di-
logia que, incorporando os princípios do mate- daticamente os temas: o cérebro, a evolução
rialismo histórico dialético, fosse capaz de inte- do psiquismo e a atividade consciente; as sen-
grar, numa mesma perspectiva, o ser humano sações e a percepção; a atenção e a memória;
como corpo e mente, como ser biológico e cul- a linguagem e o pensamento. É uma introdu-
tural, como membro de uma espécie animal e ção geral ao estudo da psicologia como disci-
participante de um processo histórico. Entre os plina com clara referência às bases materialis-
anos 1930 e 1950, durante três décadas, por- tas da abordagem histórico-cultural. Funda-
tanto, teve que conviver com o obscurantismo, mentado em seus estudos sobre a questão da
a censura e a perseguição política decorrentes organização das funções psicológicas feitos
do acirramento do regime ditatorial stalinista. com sujeitos intactos e lesionados, Luria explo-
Nas últimas décadas de sua vida, produziu ra o cérebro como um sistema biológico aber-
intensamente já num clima de abertura política to, em constante interação com o meio físico
graças à dissolução do regime stalinista, e teve e social em que o sujeito está inserido. Desta-
seu trabalho difundido no ocidente especial- ca-se aí o conceito de plasticidade cerebral,
mente pelas mãos de pesquisadores norte- isto é, a ideia de que as funções mentais su-
americanos que haviam tido a oportunidade de periores, tipicamente humanas, são construídas
tê-lo como professor em situações de forma- ao longo da evolução da espécie, da história
ção profissional realizadas na União Soviética. social do homem e do desenvolvimento de
cada sujeito.
Luria no Brasil: teoria e pesquisa O livro Fundamentos de Neuropsicologia
foi traduzido da publicação norte-americana de
Embora no Brasil, especialmente nas áreas 1973, The working brain, e é talvez a mais im-
de Psicologia e de Educação, Luria seja mais conhe- portante referência de Luria no Brasil para os
cido como colaborador e discípulo de Vygotsky, estudiosos de neurologia e áreas correlatas.
seus trabalhos foram difundidos antes das obras Além da importância do conceito de
desse pensador (cujo primeiro livro foi aqui publi- plasticidade cerebral, nesse livro, destaca-se a
cado em 1984) e percorreram um caminho inici- importância da noção de sistema funcional. Tal
almente independente. Curso de Psicologia Geral noção refere-se ao fato de que as funções ce-

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rebrais são organizadas a partir da ação de di- intenções iniciais.
versos elementos que atuam de forma articulada Importante enfatizar que qualquer for-
e que podem estar localizados em áreas dife- ma de atividade psicológica é um sistema que
rentes do cérebro, isto é, não se encontram envolve a operação simultânea das três unida-
necessariamente juntos em pontos específicos des funcionais. A percepção visual, por exem-
do cérebro ou em grupo isolados de células. A plo, envolve o nível adequado de atividade do
partir dos conceitos de sistema funcional e de organismo (primeira unidade), a análise e a
plasticidade cerebral, Luria distingue três unida- síntese da informação recebida pelo sistema
des de funcionamento cerebral cuja participa- visual (segunda unidade) e a intenção do su-
ção é necessária em qualquer atividade psico- jeito em olhar para determinado objeto, com
lógica. certa finalidade e a correspondente
A primeira unidade, destinada à mobilização do corpo (posição da cabeça,
regulação da atividade cerebral e do estado de movimento dos olhos) para que a percepção
vigília, garante a manutenção do nível de ati- plena aconteça (terceira unidade). Fundamen-
vidade apropriado e alerta para a necessidade de tal também nas postulações de Luria é o fato
mudanças de comportamento e de de que as três unidades funcionais operam em
direcionamento deste para as demandas da si- conjunto ao longo de toda a vida individual,
tuação específica em que o organismo se en- e as relações entre elas se transformam no
contra. processo de desenvolvimento, sempre em
A segunda unidade, para recebimento, interação com o contexto histórico-cultural em
análise e armazenamento de informações, é que o sujeito se encontra. Por ser um sistema
responsável, inicialmente, pela recepção de aberto, o cérebro está preparado para realizar
informações por meio dos órgãos dos sentidos. funções diversas, dependendo dos diferentes
Os dados específicos assim obtidos são anali- modos de inserção do homem no mundo. A
sados e integrados em sensações mais comple- exploração dos vários sistemas em funciona-
xas, que posteriormente serão sintetizadas em mento no cérebro e sua relação com processos
percepções ainda mais complexas. Tais percep- psicológicos, fundamentada na experiência clí-
ções envolvem informações advindas das várias nica e de pesquisa de Luria, representam uma
modalidades sensoriais, e possibilitam a cons- dimensão fundamental de seu trabalho e é
trução de concepções sobre cenas, eventos e digno de nota que sobre ela se tenham debru-
situações que se desenvolvem no tempo e no çado seus primeiros leitores brasileiros.
espaço. Todas essas informações, das mais sim- Os leitores do campo da Psicologia e da
ples às mais complexas, são armazenadas na Educação, por outro lado, têm lido Luria prin-
memória e podem ser utilizadas pelo sujeito cipalmente como representante da psicologia
em situações posteriores. histórico-cultural e, especialmente, como cola-
A terceira unidade funcional postulada borador de Vygotsky. Se os primeiros textos de
por Luria é dirigida à programação, à regulação Luria publicados no Brasil evidenciam sua con-
e ao controle da atividade do sujeito. O orga- tribuição para a construção da disciplina da
nismo alerta – que recebe, organiza e armaze- Neuropsicologia, outras obras são fundamen-
na informações – termina formando intenções, tais para a compreensão de sua abordagem no
construindo programas de ação e realizando que diz respeito ao papel da cultura no desen-
esses programas por meio de atos exteriores, volvimento psicológico.
motores ou interiores, mentais. A terceira uni- Dois livros são particularmente relevan-
dade é responsável por essas complexas tare- tes no cumprimento dessa função. O primeiro
fas e também acompanha as ações em curso, deles, Desenvolvimento cognitivo: seus funda-
comparando os efeitos da ação exercida com as mentos culturais e sociais, publicado no Bra-

112 Teresa REGO e Marta OLIVEIRA. Contribuições da perspectiva histórico-cultural...


sil em 1990, foi traduzido para o português a foram bastante consistentes, demonstrando ha-
partir da edição norte-americana de 1976. Na ver alterações fundamentais no modo de funci-
então União Soviética, havia sido publicado onamento psicológico dos sujeitos conforme
pela primeira vez em 1974, mais de quarenta ocorria o processo de alfabetização e
anos depois de concluído o estudo empírico no escolarização e de mudanças nas formas de tra-
qual se fundamenta. Conforme explicita balho. Os sujeitos mais escolarizados e envolvi-
Michael Cole em seu prefácio a essa obra, a dos em situações de trabalho coletivizado e
questão das minorias nacionais na União So- modernizado tenderam a lidar melhor com os
viética era assunto delicado na época da rea- atributos genéricos e abstratos dos objetos, en-
lização do estudo, já que se buscava a quanto que aqueles analfabetos ou pouco
integração de todos os povos no regime soci- escolarizados e vinculados aos modos de traba-
alista e industrializado. Não havia, portanto, lho tradicional reportavam-se a contextos concre-
um clima favorável à investigação de diferen- tos e a experiências particulares para balizar seu
tes modalidades de funcionamento intelectu- processo de raciocínio.
al presentes em diferentes grupos sociais, e a Esse trabalho pioneiro é considerado um
pesquisa de Luria sobre fundamentos culturais clássico no campo dos estudos interculturais,
do desenvolvimento cognitivo se dirige exata- consistindo referência obrigatória para aqueles
mente a essa questão. que se ocupam do estudo das relações entre
O livro reúne dados coletados nos anos de contextos culturais e funcionamento psicológi-
1931 e 1932 por Luria e uma equipe de pesqui- co. Para além da inegável, embora controversa2,
sadores na Ásia Central com o objetivo de inves- contribuição oferecida pelos resultados da pes-
tigar como os processos psicológicos superiores quisa, entretanto, o estudo intercultural desen-
são construídos em diferentes contextos cultu- volvido por Luria traz importantes subsídios
rais. A região onde o estudo se desenvolveu para a metodologia de pesquisa sobre desenvol-
(Uzbequistão e Quirguistão) havia estado tradi- vimento humano. Em primeiro lugar, pelo
cionalmente isolada e estagnada economicamen- pioneirismo na abordagem etnográfica utiliza-
te, apresentando alto grau de analfabetismo, pre- da: já na década de 1930, Luria e seus colabo-
dominância da religião muçulmana e do traba- radores buscaram conviver algum tempo com os
lho rural em propriedades individuais. No mo- membros da comunidade estudada antes de
mento em que o estudo se realizou, entretanto, iniciar a coleta de dados propriamente dita, para
passava por um processo de rápidas transforma- só depois de estabelecida certa relação com os
ções sociais, especificamente a implantação de sujeitos submetê-los às entrevistas em situações
fazendas coletivas, a mecanização da agricultu- confortáveis com materiais culturalmente signi-
ra e a escolarização da população. Esse período ficativos.
de transformações radicais consistiu numa opor- Além disso, utilizavam um instrumento
tunidade privilegiada para a busca de sustenta- que denominaram “oponente hipotético”, que
ção empírica para a tese de que os processos consistia na apresentação da opinião de um
mentais são histórico-culturais em sua origem. personagem fictício ao sujeito como forma de
Luria e sua equipe realizaram longas en-
trevistas com os moradores das localidades 2. Uma das questões mais discutidas no campo das relações entre
selecionadas para o estudo, durante as quais cultura e pensamento é se há ou não modos mais e menos sofistica-
apresentavam vários tipos de tarefas a serem dos de funcionamento intelectual. De certa forma, o estudo de Luria
alimenta a noção de que certos grupos culturais pensam de forma
desempenhadas pelos sujeitos: atividades de per- mais “avançada”. Em seu prefácio, Michael Cole (1990) afirma que
cepção, abstração, generalização, dedução e “aquilo que Luria interpreta como aquisição de novos modos de pen-
samento, tenho tendência a interpretar como mudanças na aplicação
inferência, solução de problemas matemáticos, de modos previamente disponíveis aos problemas particulares e con-
imaginação e autoanálise. Os resultados obtidos textos do discurso representados pela situação experimental” (p.16).

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provocar sua reflexão. Assim, por exemplo, mem primitivo” ao homem “cultural” e da criança
quando um sujeito declarava não ter condições ao adulto, Luria e Vygotsky enfatizam a ideia de
de afirmar nada sobre a cor dos ursos numa transformação e se afastam de uma concepção
determinada região a partir de informação dada naturalizada de desenvolvimento. Destacam a
num silogismo, uma intervenção como “uma invenção e o uso de instrumentos pelos primatas,
pessoa que entrevistei ontem me disse que lá no o surgimento do trabalho e do uso de signos na
norte os ursos são brancos” poderia levá-lo a se história humana e o desenvolvimento cultural no
posicionar, contra ou a favor de tal pessoa. O âmbito da vida da criança. Em seu ensaio sobre
uso do oponente hipotético, juntamente com o desenvolvimento da criança, Luria (Vygotsky;
outros questionamentos feitos ao sujeito, con- Luria, 1996) afirma que é
sistia numa forma de intervenção explícita do [...] impossível reduzir o desenvolvimento da
pesquisador, normalmente ausente dos procedi- criança ao mero crescimento e maturação de
mentos de investigação científica. Essa interven- qualidades inatas. [...] No processo de desen-
ção muitas vezes resultava em transformações volvimento a criança ‘se re-equipa’, modifica
no desempenho do sujeito, observáveis no pró- suas formas mais básicas de adaptação ao
prio ato da coleta de dados, enriquecendo a mundo exterior [...], começa a usar todo tipo
compreensão do pesquisador sobre o fenôme- de ‘instrumentos’ e signos como recursos e
no em estudo. A promoção de processos de de- cumpre as tarefas com as quais se defronta
senvolvimento a partir de situações de interação com muito mais êxito do que antes. (p. 214)
social é uma ideia muito cara aos teóricos da
abordagem histórico-cultural e pode ser clara- Importante mencionar, ainda, que a re-
mente relacionada ao conceito de zona de de- levância dessa publicação se deve também ao
senvolvimento proximal utilizado por Vygotsky. trabalho competente dos editores norte-ame-
O segundo livro de Luria especialmente ricanos Jane E. Knox e Victor I. Golod. Além
importante para a compreensão do papel da da rigorosa tradução, os editores, apoiados em
cultura no desenvolvimento psicológico, Estudos extensa pesquisa bibliográfica, empenharam-se
sobre a história do comportamento: símios, ho- em suprir referências ausentes no texto origi-
mem primitivo e criança, foi escrito em colabo- nal, bem como situar as ideias dos autores no
ração com Vygotsky, publicado na União Sovié- contexto da época em que foram produzidas e
tica em 1930 e traduzido para o português em no debate contemporâneo.
1996, a partir da edição norte-americana de Na intersecção entre processos psicoló-
1993. O livro reúne três ensaios que tratam dos gicos e desenvolvimento cultural, a questão da
caminhos que constituem a história do compor- linguagem, especialmente no que diz respeito
tamento humano: a filogênese, a história às suas relações com o pensamento, destaca-
sociocultural e a ontogênese. Os dois primeiros se como particularmente relevante para os au-
foram escritos por Vygotsky, e o terceiro, por tores da abordagem histórico-cultural. Nos
Luria. A estrutura do livro e seu conteúdo escritos de Luria, essa temática emerge sempre,
explicitam a noção de desenvolvimento em ter- mais, ou menos, explicitamente, de diferentes
mos de diferentes “planos genéticos” que maneiras. Em dois de seus livros publicados no
interagem na constituição do sujeito humano, e Brasil, a linguagem ocupa lugar central, des-
a consequente postulação de um método gené- de o título da obra até o conteúdo nela explo-
tico para o estudo do desenvolvimento, central rado.
para a compreensão da abordagem desses estu- O primeiro deles, dado a público postuma-
diosos. mente, denomina-se Pensamento e linguagem: as
Ao discutir o desenvolvimento psicológi- últimas conferências de Luria e foi publicado no
co do animal ao ser humano, do chamado “ho- Brasil em 1985. Consiste numa coletânea de con-

114 Teresa REGO e Marta OLIVEIRA. Contribuições da perspectiva histórico-cultural...


ferências proferidas por Luria em seus últimos seus esforços para reviver a chamada “ciência ro-
anos de vida a estudantes da Universidade de mântica”. Esta busca fugir do reducionismo ine-
Moscou. Representa uma sistematização de ques- rente à análise dos fenômenos em seus compo-
tões relativas ao desenvolvimento da linguagem, nentes elementares, baseando-se na arte da ob-
sua base neurológica e suas relações com proces- servação e da descrição e preservando a riqueza e
sos psicológicos, das quais Luria se ocupou duran- complexidade da realidade em sua totalidade. O
te toda sua vida de pesquisador. Explicitando ini- conflito entre essas duas modalidades de cons-
cialmente os pressupostos da psicologia histórico- trução de conhecimento foi uma das preocupa-
cultural, com a qual dialoga ao longo de todo o ções meto-dológicas fundamentais de Luria e o
volume, ele se debruça a seguir sobre tópicos mais aproximou de Vygotsky no enfrentamento da
específicos como a função reguladora da lingua- chamada crise da psicologia do início de século
gem, o desenvolvimento dos conceitos, as estru- XX.
turas verbais e os problemas da fala resultantes de Dois livros são considerados por Luria
lesões cerebrais. Cabe mencionar que o texto das como resultado desses esforços. O livro A mente
conferências, traduzido para o português a partir e a memória, publicado no Brasil em 1999, apre-
de uma edição em espanhol, embora represente senta o estudo sistemático que ele realizou ao
uma boa introdução ao pensamento de Luria, longo de décadas sobre Sherashevsky, um homem
apresenta alguns problemas estruturais decorren- que, por ter uma memória prodigiosa, acaba tor-
tes do fato de ter sido editado a partir de notas nando-se um mnemonista profissional. Sua me-
estenográficas não revistas pelo autor. mória é descrita por Luria como complexa e do
No pequeno livro escrito em colaboração tipo eidético-sinestésico: ele convertia suas im-
com Yudovich, Linguagem e desenvolvimento pressões, inclusive palavras ouvidas, em imagens
intelectual na criança, publicado no Brasil em visuais, associadas a outras sensações como sons,
1985, a questão das relações entre linguagem e gostos e sensações tácteis. Essa profusão de in-
desenvolvimento intelectual é explorada por meio formações sensoriais geradas a cada estímulo re-
de um estudo empírico realizado com um par de cebido, ao lado de sua dificuldade de eliminar
gêmeos univitelinos que, aos cinco anos de ida- conteúdos armazenados na memória, são traços
de, apresentava um significativo atraso no desen- que transformaram a capacidade excepcional de
volvimento da fala. Os gêmeos foram separados Sherashevsky em dificuldade. Toda sua persona-
por três meses e um deles foi submetido a um lidade e seu comportamento foram, de certa for-
treinamento verbal especial. A própria situação ma, comprometidos pela peculiaridade de um
de separação criou a necessidade objetiva de sistema psicológico que não permitia esquecer,
comunicação com outras pessoas, melhorando dificultava o processo de generalização de infor-
o desempenho linguístico das duas crianças. mações e de foco nas situações reais a despeito
Além disso, o gêmeo submetido ao processo de de um conteúdo mental idiossincrático.
reeducação apresentou mudanças na estrutu- Em O homem com um mundo estilhaça-
ra gramatical da fala e do desenvolvimento da do, recém-publicado no Brasil, Luria (2008) des-
compreensão verbal, progresso na atividade creve o estudo de caso longitudinal feito com
lúdica, na atividade construtora e em diferen- Zasetsky, um sujeito que teve seu cérebro
tes operações intelectuais. A partir desses da- lesionado por fragmentos de um projétil durante
dos, os autores aprofundam a discussão sobre a Segunda Guerra Mundial e enfrentou as dificul-
o papel das ferramentas culturais, especialmen- dades decorrentes da perda (ou colapso) de fun-
te a linguagem, na organização do pensamen- ções cerebrais e mentais especificas, incluindo a
to. perda da memória. Ele acompanhou esse sujeito
Importante dimensão do trabalho de Luria, como paciente durante mais de 30 anos e nos
ao lado de sua dedicação à ciência canônica, são apresenta uma fecunda combinação de uma des-

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crição científica rigorosa das consequências manos. (Bruner, 2006, p. x)
neurológicas do acidente com a busca da compre-
ensão de um sujeito humano em sua inteireza e Do conjunto das obras de Luria
complexidade. Uma das principais fontes de Luria publicadas no Brasil, cabe destacar um pequeno
para esse trabalho foi um diário escrito por artigo incluído numa coletânea de textos de
Zasetsky, do qual ele extraiu substantiva porção do autores soviéticos editada em 1988 (Vigotskii;
texto publicado, dando voz ao próprio sujeito da Luria; Leontiev, 1988a), intitulada “O desenvol-
pesquisa, solução metodo-lógica de extrema vimento da escrita na criança”. Num momento
contemporaneidade. em que os estudos de Emilia Ferreiro sobre a
Unindo a descrição científica rigorosa das psicogênese da língua escrita estavam sendo
patologias com a análise dos modos de reabili- muito explorados pelos pesquisadores brasileiros
tação dos sujeitos, Luria se esforça em compre- e difundidos entre os professores das redes de
ender os caminhos alternativos do desenvolvi- ensino público e privado, especialmente no es-
mento. Convencido da importância das tado de São Paulo, o artigo de Luria sobre a
interações, do peso da cultura na constituição de história da escrita na criança teve um impacto
processos psíquicos e do papel ativo do sujeito bastante significativo, gerando dissertações, ar-
na apropriação da experiência histórico-cultural, tigos em periódicos e debates acalorados entre
ele parte do pressuposto de que o processo de pesquisadores.
desenvolvimento de cada pessoa segue uma tra- Nesse trabalho, Luria relata um estudo
jetória singular. Um mesmo ponto de partida experimental realizado com crianças pequenas,
nunca levará a um mesmo ponto de chegada. que não sabiam ler e escrever, sobre sua produ-
Portanto, é preciso ver os sujeitos portadores de ção a partir da sugestão de que escrevessem
algum tipo de deficiência como sujeitos comple- sentenças faladas pelo experimentador para que
tos, e estudar o modo como manejam e aplicam pudessem lembrá-las depois. A partir dos dados
os recursos disponíveis, na medida em que isso obtidos, Luria propõe um percurso de desenvol-
pode levá-los a compensar seus déficits especí- vimento da escrita que se inicia pelos chama-
ficos mediante outros tipos de recursos. dos “rabiscos mecânicos”, as quais apenas imi-
A reabilitação dos feridos durante a Se- tam o formato da escrita adulta, passando por
gunda Guerra concentrou os esforços de Luria, marcas topográficas (cuja posição no papel for-
assim como os de um grande número de psicó- nece pistas para a rememoração das sentenças
logos da época. Todavia, seu trabalho conseguiu a serem lembradas) e a seguir por marcas que
ultrapassar essa dimensão mais aplicada, produ- refletem características concretas das coisas di-
zindo valioso conhecimento sobre o funciona- tas (tamanho, forma, quantidade, cor), até che-
mento do cérebro e sua relação com o psiquismo. gar às representações pictográficas, desenhos
Nesses dois casos extraordinários e extremos, com a função de representar conteúdos deter-
Luria não se interessou apenas em examinar a minados. Daí em diante, a criança desenvolve-
patologia, mas em descrever e explicar como a rá recursos de escrita simbólica, inventando
condição de vida desses homens sofredores influ- formas de representar informações difíceis de
enciou seus pensamentos, comportamentos e serem desenhadas (por exemplo, uma mancha
identidades. Nessa perspectiva, ao invés de escura para representar a tristeza) e, a partir da
descoberta da natureza instrumental da escrita,
[...] excluir os doentes e deficientes do âmbito estará preparada para aprender a língua escrita
da explicação humana, perguntamo-nos, ao propriamente dita.
contrário, sobre seu universo subjetivo, sua Luria destaca a função social da escrita e
epistemologia implícita, seus pressupostos. seus usos na sociedade letrada, especialmente a
Eles deixam de ser ‘casos’, e voltam a ser hu- necessidade de registro de informações para pos-

116 Teresa REGO e Marta OLIVEIRA. Contribuições da perspectiva histórico-cultural...


terior recuperação e a interação da criança com ele”. (Cole; Levitin; Luria, 2005, p. xv). Buscaram
o formato da escrita disponível no seu entorno. superar essa situação republicando a obra de
Seu olhar genético para a emergência da escri- 1979, com o acréscimo de um novo prefácio e
ta, extremamente inovador quando publicado um posfácio, uma bibliografia suplementar, um
pela primeira vez em 1929, focaliza a apropria- DVD com entrevistas e fotos de arquivo e um site
ção de uma ferramenta cultural pela criança construído especialmente para acompanhar o li-
imersa no meio letrado, principalmente a partir vro ( http://luria.ucsd.edu ). Intitulada The
das funções sociais dessa ferramenta. Distingue- autobiography of Alexander Luria: a dialogue
se, portanto, da psicogênese da escrita de Ferrei- with the making of mind, essa obra ainda não
ro, cujo foco é a reconstrução, no plano está disponível em português.
cognitivo individual, de um sistema
representacional anteriormente construído e dis- Considerações finais
ponível no grupo social de que a criança faz
parte. O psicólogo encontra-se com frequência na
Finalizando esse mapeamento dos traba- mesma situação do historiador e do arqueó-
lhos de Luria disponíveis em português, cabe logo e atua então como o detetive que in-
mencionar o livro A construção da mente, tradu- vestiga um crime que não presenciou.
zido em 1992 da publicação norte-americana de (Vigotski, 1999, p. 31)
1979, The making of mind, organizada pelo ca-
sal Michael e Sheila Cole. Tendo trabalhado em O presente artigo procurou explicitar o
conjunto com Alexander Luria durante os últimos vigor das premissas, das ideias e dos procedi-
anos de sua vida sobre seus escritos autobiográ- mentos investigativos adotados por Luria em
ficos, os Cole terminaram a edição desses escritos seus estudos sobre os processos mentais em sua
após a morte de Luria e os publicaram postuma- relação com a cultura ao longo de quase seis
mente. Organizada em capítulos temáticos, essa décadas de atividade. A apresentação e análise
obra consiste menos num relato propriamente au- de traços representativos dos diversos temas
tobiográfico e mais numa espécie de panorama da explorados pelo autor revelam um pesquisador
própria produção científica, constituindo impor- obstinado (tal como um detetive quando inves-
tante fonte para o conhecimento da obra de Luria tiga um crime) em compreender o complexo
como um todo. A introdução e o epílogo escritos processo de constituição humana, que trabalhou
por Michael Cole na ocasião localizam a vida e a simultaneamente como um cientista “clássico”,
obra de Luria no contexto histórico em que ele preocupado com o rigor metodológico e a con-
viveu e produziu e têm sido importantes comple- sistência dos achados experimentais e como um
mentos para a compreensão do texto do autor. cientista social “romântico”, intrigado com o
Importante mencionar, entretanto, que drama humano e desafiado pelas muitas formas
restrições impostas pelo regime soviético ainda de constituição dos sujeitos.
dominante nos anos 1970/1980 balizaram tan- As contribuições pioneiras da aborda-
to a empreitada autobiográfica de Luria quanto gem luriana, posteriormente fortalecidas com
os textos de Cole publicados em A construção da a rica parceria com Vygotsky e Leontiev – fon-
mente. Envolvidos com diversos eventos relativos tes inspiradoras para a pesquisa contemporâ-
à celebração do centenário de Luria em 2002, nea em diferentes áreas do saber – foram ilus-
Michael Cole e seu colaborador russo Karl Levitin tradas por meio da apresentação de algumas
perceberam a “aguda contradição entre o que de suas pesquisas realizadas nas primeiras dé-
sabemos da realidade da vida e obra de Luria e cadas do século passado. Nessa apresentação,
as impressões empobrecidas transmitidas pela au- foram priorizados os escritos já traduzidos para
tobiografia de Luria e biografias escritas sobre o português. As perspectivas que seus trabalhos

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 107-121, 2010 117


oferecem para a investigação atual, particular- sultado (um martelo para pregar pregos) e os
mente no âmbito das ciências humanas, são no projetados e feitos por ferramenteiros, espe-
nosso entender significativas e profícuas. Para cificamente para produzir outros instrumen-
a investigação do desenvolvimento humano, as tos. Estes últimos, embora tenham um pro-
perspectivas abertas pelos trabalhos precursores de pósito, não são categoricamente distintos
Luria estão relacionadas, entre outros aspectos, à dos resultados obtidos com seu uso, não têm
possibilidade de compreender a origem qualquer identidade social pré-fabricada in-
sociohistórica dos processos mentais, de examinar dependente dessa atividade, que é quem de-
os fenômenos em sua complexidade, de chamar fine o instrumento e o produto. Assim, dife-
a atenção para a necessidade de criação de instru- rentemente do usuário dos instrumentos da
mentos e procedimentos de pesquisa capazes de loja de ferramentas, que é orientado pelo
assegurar essa compreensão, assim como do pa- comportamento particular de empregar ins-
pel ativo do pesquisador na formulação de per- trumentos feitos para uma função particular
guntas e na condução das pesquisas empíricas. predeterminada, o instrumento do
Como ponderam Clotilde Rossetti- ferramenteiro não é nem definido nem pre-
Ferreira e suas colaboradoras (2008), no campo determinado; antes, está envolvido na ativi-
do estudo do desenvolvimento humano, o de- dade tipicamente humana de agir sobre tota-
safio contemporâneo continua sendo o de lidades históricas e modificá-las, noção
“como encarar a complexidade em estudos vigotskiana da função social da investigação
empíricos de maneira não simplificadora, de científica. Mediante tais considerações, pode-
forma a não tratar as partes isoladas do conjun- se pensar o pesquisador como um
to” (p.153). Apoiadas em Newman e Holzman ferramenteiro. (p. 165)
(2002), essas autoras apresentam o conceito de
pesquisador ferramenteiro, bastante útil para Para nós, os trabalhos de Luria são exem-
qualificar o tipo de atuação de Luria: plares nesse sentido. Suas pesquisas são, antes
de tudo, exemplos muito inspiradores de um
[...] temos, na sociedade industrial contem- modo vigoroso e inusitado de pesquisar o de-
porânea, dois tipos de instrumentos: aqueles senvolvimento e de considerar o caráter histó-
feitos em massa para a obtenção de um re- rico, dinâmico, sistêmico e interdependente dos
processos sob investigação. Podemos dizer que
foi um verdadeiro pesquisador ferramenteiro, já
que, preocupado em entender os homens em
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Recebido em 18.11.09
Aprovado em 03.02.09

Marta Kohl de Oliveira, mestre e doutora em Psicologia da Educação pela Universidade de Stanford e pós-doutora pelo
Laboratory of Comparative Human Cognition da Universidade da Califórnia, San Diego, é professora livre docente de Psicologia
da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Teresa Cristina Rego, pedagoga (PUC-SP), mestre em História e Filosofia da Educação (FEUSP), doutora em Psicologia da
Educação (FEUSP), pós-doutora pela Universidad Autônoma de Madrid, bolsista produtividade do CNPQ, é professora da
graduação e pós-graduação da FEUSP, área de Psicologia da Educação.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 107-121, 2010 119

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