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FLÁVIO DESGRANGES

A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR

EDITORA HUCITEC
São Paulo ; 2003 .
-Díreltos.autorais, 2002, de Flávio Desgranges .
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SIndicato NacIonal dos Editores de LIvro, RJ

D486p

Desgranges, Flávio
A pedagogia do espectador
/ Flávio Desgranges. • São Paulo: Hucltec, 2003.
11. ; . - (Teatro ; 46)
Inclui bibliografia
ISBN 85·271-062()-5

1. Teatro e sociedade. 2. Platéias de teatro. 3. Teatro -


História.
I. Título. n. Série.

03·2268. CDD 792.ol


CDU 792Jl67
's UMÁ RIO
pág.
Capítulo 1
Ao encontro do mundo lá fora. 13
Capítulo 2
A arte do espectador: contexto de uma formação 19
Capítulo 3
Práticas teatrais e formação de espectadores . 45
Capítulo 4
O espectador épico: pedagogia para um teatro de
espetáculo 91
Capítulo 5
O teatro épico moderno e a contemporaneidade 135
Capítulo 6
A descoberta do prazer da análise 171
Bibliografia 179
1
AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA

Numa visita ao Musée D'Orsay, na cidade de Paris , local onde ,


me contaram, teria funcionado, outrora, uma estação de trem,
eu percorria as grandes galerias do segundo andar, de pé-direi-
to bastante alto e paredes de concreto. Passeava por um dos
setores dedicados à exposição permanente do museu , onde esta-
vam localizadas diversas pinturas impressionistas. Uma profu-
são delirante de quadros de Gauguln , Cézanne, Van Gogh, Seurat,
que .exploravam as qualidades 6tlcas da luz e da cor, e desperta-
vam intensas emoções . As telas pareciam exalar os perfumes das
paisagens que retratavam . Um pequeno descuido já nos deixava
ouvir o cantar das cigarras nos campos de sol escaldante, ou o
ruído silencioso dos rios rnargeados por arbustos em variados
tons de verde e leves pinceladas de violeta.
A visitação seguia pelas muitas galerias fechadas, quando , no
meio de uma das salas surge, surpreendente, uma janela que nos
deixava ver, lá fora, o entardecer da cidade, tendo como fundo
um céu azul cravejado por nuvens esparsas, recortado pelos pe-
quenos' prédios parisienses. Postei-me diante da janela durante
longo tempo e percebi que não estava s6. Vários dos visitantes
permaneciam estáticos diante dela, olhando para aquela paisagem
13
14 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA 15
como se observassem uma pintura, uma obra de arte . Afastei-
me da janela, sentei-me em um dos bancos próximos e me ative
à reação das pessoas , à relação que estabeleciam com a paisa-
gem que surgia pela vidraça, enquanto pensava na faculdade da
arte de nos sensibilizar, em como a contemplação daquela se-
qüência de quadros havia provavelmente estimulado os visitan-
tes a lançar um olhar estetizado para o mundo lá fora, em como a
relação com as obras propiciava, ainda que por instantes, que os
contempladores fruíssem a existência como uma experiência ar-
tística . Os visitantes entravam e saíam daquela, galeria; o movi-
mento em direção à janela ea.relação com a paisagem parisiense
repetiu-se por longo período , até que me retirei da sala e do
museu , não sem guardar cuidadosamente na memória aqueles
que para mim foram intensos e raros momentos .
N~ ano seguinte, em 1996 , na época em que fazia um estágio
no T.J.A. (Théâtre des Jeunes Années), na cidade de Lião, tive
oportunidade de retornar a Paris. O impulso me levou de volta
ao D'Orsay e, depois de rápida visita aos impressionistas, ohe-
Vincent Van Gogh (1853-1890). La Méridienne (d'apr ês Miliet),
guei à galeria em que se encontrava a tal janela. Para meu espan-
1889-1890. Musée d'Orsay.
to, nada acontecia. Não havia ninguém diante dela, os visitantes
passavam pela sala sem o menor interesse pela paisagem pa-
risiense que a vidraça descortinava. Sentei-me no mesmo banco
em que observara as pessoas no ano anterior e aguardei. Alguma
reação tinha de acontecer, não poderia ser possível que a mes-
ma exposição, a mesma seqüência de quadros , as mesmas obras
de arte que pro vocaram os contempladores na vez anterior, não
estimulassem os passantes a lançar um olhar ~urioso em dire -
ção à paisagem da janela. Os visitantes não eram os mesmos,
pensei, mas isso não explicava o desinteresse, pois no ano ante-
rior dezenas de pessoas, das mais diferentes nacionalidades, seno
tiram-se estimuladas a travar um diálogo corri o mundo lá fora.
16 AO ENCO NTRO DO MUNDO LÁ FORA AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA 17
E, além do mais, as obras eram exatamente as mesmas , ordena- Outras respostas poderiam ser formuladas , não há dúvida , mas
das da mesma maneira. A única variável encontrava-se, portan- foi essa a que mais me satisfez. Contudo, independente das múl-
to.no céu, na paisagem vista através da janela; como em qual- tiplas possíveis soluções para este problema específico, carrego
quer canto, as tardes em Paris, naturalmente, nunca se repetem. a questão comígo, a qual ainda me inquieta, pois sugere outros
A resposta s6 poderia ser esta: a janela não provocava os obser- desdobramentos, tanto acerca da compreensão de como se esta-
vadorescomo fizera naquela vez. Mas o que, efetivamente, havia belece a relação do contemplador com a obra de arte, quanto .
de diferente na .paísagern? Por que 'aquele entardecer teria sido sobre as possibilidades pedagógicas da experiência artística.
provocatívo e.este não? . Este trabalho é, em certo sentido, o desdobramento das inter-
.' Levei . ~. ques~ão comigo , as soluções que consegui formular rogações suscitadas pelas visitas ao Musée D'Orsay. A experiên-
no dia l1,ão'me satisfizeram, até porque muitas respostas seriam cia da janela perpassa, assim, diversas das questões abordadas
posefvelsra beleza especial da.primeira paisagem teria catívado nas partes seguintes deste livro. Como se estabelece a relação
os visitantes, oua pr~sença do sol naquele dia em Paris poderia do espectador com a obra teatral? Essa recepção pode ser dina-
ter chamado 'atenção das pessoas, já que no segundo dia o 'céu mizada? Que procedimentos utilizar visando provocar estetica-
a
estava hastant~ n~bla·d~. Mas atitude dos observadores diante mente a recepção? Como estimular o espectador a empreender
da.janela me Indicavaurna resposta diferente, que não se resu- uma atitude artística, produtiva, em sua relação com O mundo lá
misse à própria, beleza da vista da primeira visita, mas quede fora? Qual a importância atual de se pensar uma pedagogia do
alguma maneira relacionasse algo presente na seqüência de qua- espectador? Como se estruturaria essa pedagogia na oonternpo-
dros observados com elementos daquela paisagem. E foi nesse rapeidade? Como compreender o processo de formação de es-
sentido que formulei minha resposta: pareceu-me que, no pri- pectadores? Formar para quê , afinal?
meiro entardecer, o céu parisiense, pontuado por algumas nu- Trata-se aqui, portanto, de investigar a relação há muito aca-
vens e entrecortado pelos pequenos prédios, apresentava-se com lentada entre o teatro e a educação , sem a pretensão de esgotar
uma variação de luz e sombra, ressaltando intensos reflexos da as questões levantadas, porém na tentativa de traçar algumas
luminosidade do sol e das vibrações do ar, que de algum modo linhas de reflexão que possibilitem, não só afirmar, 'mas ampliar
poderia ser relacionado com as investigações pictóricas dos o entendimento do teatro como importante instrumento educa-
impressionistas. A janela, dessa maneira, provocava os observa- cional. Para isso, foram apontadas algumas reflexões possíveis
dores por apresentar relações, afinidades estéticas entre a seqüên- acerca da relação entre teatro e sociedade , com intuito de inves-
cia de obras de arte vistas e o entardecer da cidade; a paisagem tigar a necessidade de teatro que a vida contemporânea permite
como que problematizava a experiência artística, propondo aos supor, e assinalar a relevância de unia pedagogia do espectador
~os dias que correm. .
contempladores que estancassem o curso da visita e se debru-
çassem reflexivamente sobre o parapeito da vidraça para anali- O livro trata , ainda, das diversas práticas teatrais que visam a
sar o mundo lá fora. formação de espectadores, enfocando tanto atividades pedagógicas
18 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA

propostas antes ou depois do espetáculo, que objetivam dinami-


zar a recepção, quanto procedimentos artísticos utilizados na
própria constituição do espetáculo teatral visando provocar es-
teticamente a platéia. E, aqui, tomou-se, por base a teoria de
teatro épico, concebida por Bertolt Brecht. Ninguém, talvez, te-
nha pensado, teorizado, experimentado/tanto sobre o assunto
~ .. 2
quanto o teatrólogo alemão, que é figura-chave do 'teatro no se-
culo XX; seus ensaios nos oferecem pistas quase obrigatórias em A ARTE DO ESPECTADOR:
qualquer tentativa de estabelec~r as bases de uma pedagogia do
espectador.
CONrEXTO DE UMA FORMAÇÃO
Com intuito de compreender o caráter educacional do teatro
brechtiano, estabeleceram-se alguns pontos de contato entre: a o centro de gravidade da atividade tea-
atitude proposta ao espectador do teatro épico; a atitude do tral mudou: ele não está mais na cena ou
a
contemplador em sua relação com obra de arte, segundo as
na obra somente, ele se situa de alguma
maneira no ponto de intersecção da cena
definições de Mik.hail Bakhtin; a atitude do historiador no diálogo com a sala, ou melhor ainda, no encon-
travado com o,passado histórico e a atitude da criança diante do tro do teatro com o inundo.
brinquedo, tal como compreendidas por Walter Benjamin. - BERNARD DORT
Em seguida, com base nas teorias que fundamentam a arte
contemporânea, investigou-se a atualidade do teatro épico con-
cebido por Brecht na primeira metade do século XX, questio-
o esvaziamento das salas
No início dos anos 1970, Anatol Rosenfeld, filósofo alemão
nando a atual: aplicabilidade dos procedimentos artísticos da
refugiado no Brasil, talvez um dós maiores te6ricos de teatro que
modernidade, tendo em vista as recentes transformações no
já tenha escrito em língua portuguesa, debitava a propalada cri-
modo de vida, que solicitam um redimensionamento das pro-
se do teatro nacional à falta de público nas salas de espetáculo,
postas estéticas formuladas no. período.

Fala-se atualmente com insistência de uma crise do tea-


tro brasileiro. Empresários, diretores, autores, atores reú-
nem-se, debatem a crise, fazemlevantamentos, analisam a
situação, encontram-se assiduamente, com o ministro de
Educação e Cultura para apresentar reclamações, propostas,
reivindicações, pedidos. A crise de que se fala quase exclusi-
vamente é de público: uma encenação normal raramente
19
20 A ARTE DO ESPECTADOR
A ARTE DO ESPECTADOR 21
consegue atrair, nos dias comuns, mais que cinqüenta ou do' mundo moderno. Outro motivo apontado na época 'por al-
setenta espectadores, se é que consegue tanto (Rosenfeld, guns homens de teatro para o esvaziamento das salas era o mo-
1993, p . 43). . mento político-social, apoiado na falta de liberdade de expres-
são que lançava toda a cultura nacional em um círculo de silêncio.
Mais adiante, dando seqüência à sua análise, afirmava que, em No final dos anos '1990, segundo a reportagem, as principais
nosso país, se os teatros fossem fechados, não apenas uma por- causas da falta de público , apontadas por artistas e produtores,
centagem do público não tomaria conhecimento disso durante dizem respeito ao aumento do preço dos ingressos , motivado
algumas semanas, como disse Grotowski , referindo-se ao públi- pelo alto custo das produções, à violência nas grandes cidades
co europeu, mas que também grande parcela da população bra- que, somada à falta de segurança pública e à inexistência de
sileira, provavelmente, nunca se daria conta do ocorrido. estacionamento próprio nos teatros, deixando os espectadores
Atualmente, no início do século XXI, e lá se vão'trinta anos , a temerosos de saírem de casa duran te a noite , à carência de tex-
dita crise prossegue quase inalterada, pelo menos no que se refere tos que despertem interesse na platéia, à "vírulêncía" com que a
ao público; e, se há alguma mudança, não parece ser muito ani- crítica tem tratado os espetáculos, além da ausência de campa-
madora. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal do Brasil há nhas de formação de platéia e de uma lei de incentivo às artes
poucos anos, cresce o I}úmero de poltronas vazias nos teatros das cênicas.
cidades do Rio.de Janeiro e de São Paulo, tendo as salas uma média Épocas dlstíntas, contextos diferentes, outras abordagens do
de ocupação de, respectivamente, 21% e 22,7% (Oliveira, 1997). mesmo problema. Alguns dos motivos levantados por Rosenfeld,
Se a crise se anuncia de forma semelhante em duas épocas, o . como a concorrência .da televisão e do cinema, em virtude de
debate, no entanto, parece ganhar COntornos diferentes. No iní- seu caráter industrial, poderiam ainda estar presentes nas análi-
cio dos anos 1970, indica Rosenfeld , ao comentar os motivos ses atuais, bem como a discussão acerca da obsolescência da
apontados, então, por empresários e artistas para a falta de pú- arte teatral , Os' motivos apontados" de importância inques-
blico nas salas, a concorrência da televisão merecia grande des- tionável, entretanto, não conseguem esgotar a densidade da ques-
taque, pois o teatro perdia não só espectadores, mas também tão, que abrange desde as possibilidades e dificuldades da relação
atores que, seduzidos pela vantagem econômíoa por ela ofereci- travada entre teatro e sociedade nos dias atuais até tentativas de
da , não mais se in teressavam pelas produções teatrais. A dispu- apreender a relevância e a necessidade que o teatro tem, ou
ta cada vez maior com O cinema estrangeiro era outro fator. poderia ter, na sociedade contemporânea. Aliás, apesar de ga-
Apoiada em uma produção artesanal, a dificuldade da arte tea- nhar contornos bastante específicos em nosso país, esse tema
tral em competir com espetáculos industrializados a tornava um não é exclusivament~ brasileiro, mas também mundial.
evento em franca decadência. Discordando fortemente de O esvaziamento das salas teatrais reflete , possivelmente, o de
Rosenfeld, alguns julgavam mesmo obsoleto o palco , argumen- uma arte essencialmente coletiva que se vê em confronto com a
tando que ele não seria mais capaz de retratar a complexidade solidão da era moderna. O individualismo, marca da modernidade,
22 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 23
ganha expressivas tonalidades nessa virada de século e talvez trans- Isoladas do mundo, as consciências individuais entram
forme o teatro em evento muito pouco sedutor. em contato espiritual com profissionais da oferta - oferta
de arte, oferta política - com a condição de que esta lntírní-
A coisa mais importante dos anos 70 e do início dos anos . dade não ofereça riscos (Saez, 1989, p. 27) .
80 foi a escalada do individualismo , tanto no aspecto com-
portamental quanto na vida política. E, com esse indivi- E se a arte teatral deixou de oferecer riscos, é porque .deixou
dualismo , a crise das formas políticas ligadas a uma pro- de se colocar em risco, o teatro propõe à platéia aquilo que se
moção coletiva dos cidadãos ou da comunidade. O que nós espera dele , que o espectador seja o modelo do cidadão ideal,
chamamos de "neolíberalísmo" foi a crítica a qualquer for- aquele que 'apenas aguarda a cena seguinte. O dito teatro de arte
ma de promoção 'ou de vontade coletiva de criar algo. Eu não é mais um movimento de guerra e, sim, de resistência, tal a
penso , efetivamente, que nós estamos em vias de retornar indiferença a que foi relegado .
(Saez, 1989, p. 34).
Em todos os lugares do mundo, o público de teatro se
O cinema, provavelmente a atividade artística mais freqüenta- tornou rarefeito. Existem aqui e ali tentativas de renova-
da nos dias atuais, é um bom exemplo desse primado dos even- ção , mas, em seu conjunto, o teatro não consegue nem exal-
tos individuais, das coletividades solitárias. Normalmente, ir ao tar, nem instruir; e muito freqüentemente, não consegue
cinema sozinho, ou em uma sala vazia, é tão ou mais divertido .nem mesmo divertir. .. Na Broadway, em Paris, em Lon-
do que com a sala cheia. O filme está lá, pouco se altera. Pode-se dres', a crise é exatamente a mesma. Não temos necessída-
até mesmo pegar uma fita de vídeo e vê-la em casa. Com o tea- de de ouvir as queixas das agências de locação para saber
tro , evento que requer a participação do público, acontece o que o .teatro se tornou uma empresa funerária e que o pú-
contrário: sem levarmos em conta as questões de conforto, uma blico já compreendeu isso (Brook, 1977, p. 24).
sala cheia ou a presença de um bom número de espectadores
incendeia o espetáculo , tornando-o mais prazeroso. E se o assunto não pode ficar circunscrito às particularidades
Abdicando de seu caráter marcadamente díalógíco, o teatro, nacionais, tampouco pode ser visto como um tema recente. "Se-
por sua vez , na tentativa de se adequar aos padrões de compor- ria ingênuo ficarmos abatidos pOI; algo que é óbvio há um sécu-
tamento , vem procurando cada vez mais .constrtrír espetáculos lo: o teatro é uma atividade artística em busca de sentido" , as
para as individualidades. As peças são encenadas de tal forma ' palavras são do encenador Eugênio Barba, escritas no progra-
que pouco se alteram com a presença do pú.blico, parecem indi- ma de sua peça Kaosmos, o ritual: da porta, encenada recente-
ferentes aos espectadores. Contrariando a si próprio, o teatro mente no Brasil. Uma atividade que busca o próprio sentido, no
(ou parcela significativa das produções teatrais) propõe a au- entanto, necessita manter-se viva, atuante, para que possa conti-
sência do público presente. nuar dialogando com a experiência contemporânea. Talvez a crise
24 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 25
secular do teatro venha sendo mesmo sua própria forma de Em nossas sociedades contemporâneas, sociedades espetaculari-
vida, a razão de existência de uma arte que, tragicômica, volta zadas, de indivíduos viciados em imagem , especialmente na ima-
eme ía se lança ao fundo de si mesma e que, durante a queda, gem da própria imagem , sociedade que vive sob monopólio da
reínventa maneiras de 'pairar e sobrevoar prazerosamente o aparência, em que "só aquele que aparece é bom ", o artista da
próprio abismo. arte do espetáculo vive um dilema: trabalhar para a qualidade
Não há dúvida de que a falta de um público especializado em de seu fazer artístico ou para aparecer e fazer parecer que sua
nosso país agrava a dita crise: o esvaziamento das salas de espe- arte é de qualidade?
táculo emudece o debate. No Brasil, a situação torna-se mais O narcisismo dos artistas e o mercantilismo dos empreendi-
dramática, pois o hábito de freq üentar teatro nunca se arraigou mentos teatrais fazem que os produtores se preocupem mais
de fato na alma de nosso povo. com a difusão de seu trabalho nos media do que no contato
fundamental entre autor e espectador. Interessados sobretudo
As indústrias culturais, sobretudo a televisão e o cine- na divulgação e comercialização de sua mercadoria, deixam de
ma, naturalmente são uma concorrência poderosa, favore- prezar a efetiva presença e participação do público, esquecendo-
cida pelo fato de no Brasil, antes da expansão desses meios se de um companheiro fundamental nesse jogo: o espectador. Tudo
e artes, não se ter constituído um amplo público habituado isso leva alguns espectadores habituados e interessados nos rumos
a freqUent~r teatros e por isso mesmo capaz de transmitir da arte teatral a se perguntarem:
esse hábito em larga medida. às próximas gerações (Rosen-
feld, 1993, p. 245)., Nestas condições, por que ir ao teatro hoje? É preciso
aceitar esse primado absoluto da cena sobre a sala ? É pre-
Nos dias atuais, entretanto, a busca de sentido para a crise do ciso aceitar o estatuto de consumidor de produto teatral,
teatro apresenta características bastante esp~'cíficas. Uma dife- em vezdeespectador.crítíoo de uma obra, ou melhor, ob-
rença marcante da década de 1970 para esse início de século servador de uma proposição teatral? Na verdade , vários
consiste na ampla expansão e no predomínio de uma cultura espectadores potenciais respondem a tais questões de ma-
audiovisual estandardizada. Além disso, no decorrer desses anos , neira negativa: não vão ao teatro , ou vão menos ao teatro .
o teatro se tornou menos uma experiência artística para se com- Devo confessar que sou um deles (Carrasso , 1995 , p. 15).
partilhar e mais um mercado a se conquistar, um produto a ser
vendido para um espectador que se transformou em "consurn í- A saída para o esvaziamento das salas, portanto, não se resu-
dor-alvo". Isso faz que os produtores culturais cada vez mais me em facilitar o acesso do público 'a esse produto, mas consiste
voltem seus esforços para a veiculação de sua imagem e da ima- também em fazer os produtores teatrais perceberem a impor-
gem de seu trabalho pelos meios de comunicação de massa, COn- tância do espectador no evento. Não somente como alguém que
centrando atenção na divulgação e venda de seus produtos. sustenta financeiramente 01;1 cobre de aplausos os espetáculos ,
26 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 27
mas como o outro imprescindível em um diálogo.''Da mesma, Não existe teatro sem platéia e a importância da presença do
maneira como o público se pergunta "por que ir ao teatro hoje espectador no teatro precisa ser vista não somente por uma ra-
em dia?", talvez seja imprescindível que os artistas de teatro zão econômica, de sustentação financeira das produções. É eví-
levantem questões semelhantes: Por que ir ao público hoje? Para dente que o fator econômico é vital e não pode ser esquecido,
fazer o quê? Dizer o quê? Para quem? Qual a necessidade disso, até porque o preço do ingresso torna o acesso inviável, excluín-
afinal? Somente respostas muito claras dos artistas podem sus- do das salas uma parcela do público que talvez fosse a mais ínte-
citar a contra-resposta dos espectadores. ressada. Como um livro que só existe quando alguém o abre, o
teatro não existe sem a presença desse outro com o qual ele
A obsessão de todos os grandes reformadores do teatro dialoga sobre o mundo e sobre si. Sem espectadores interessa-
foi a pesquisa não' das técnicas mas do sentido. Todas as dos nesse debate, o teatro perde conexão com a realidade que
grandes reformas tiveram que passar por esta questão: por se propõe a refletir e; sem a referência desse outro, seu discurso
que fazer teatro? (Barba, 1996, p. 60). se torna ensimesmado, desencontrado, estéril. Não há evolução
ou transformação do teatro que se dê sem a efetiva participação
Talvez fosse necessário empreender uma luta para que artis- dos espectadores.
tas e produtores abram as salas para os espectadores. E não se
trata somente de facilitar o acesso financeiro de todas as cama- O teatro que a getuefas: tem a necessidade de jogadores,
das da população, mas também de convidar o público a tornar- estamos assim chamando os companheiros de jogo que são
se parceiro de empreendimentos culturais. Abrir o teatro, de os espectadores. Assim, do lado da platéia', precisamos tam-
fato, de maneira que o espectador se sinta participante efetivo de bém de jogadores [... ] (Guénoun, 1997, p. 164).
um movimento artístico, fazendo da Instituíção teatral um espaço
comunitário, de todos e aberto a todos. E não um espaço restrito, o olhar do observador sobre o espetáculo sustenta o próprio
reservado ao desfile de alguns poucos e inflados egos. jogo do teatro: A necessidade de companheiros de jogo, de crla-
O que não significa dizer que não haja artistas e projetos tea- ção, anima o movimento de formação de público. Uma pedago-
trais que marchem na contramão dessa tendência dominante, gia do espectador se justifica, assim, pela necessária presença
que se contrapõem ao consenso estético e à lógica mercantilista de um outro que exija diálogo, pela fundamental participação
das produções. Artistas que se negam a reproduzir as proposi- criativa desse jogador no evento teatral, participação que se efe-
ções perceptivas veiculadas pelos meios audiovisuais de massa. tiva na sua resposta às proposições cênicas, em sua capacidade
A formação de espectadores possibilita ampliar seu campo de de elaborar os signos trazidos à cena e 'formular um juízo pró-
questionamento, pois, uma vez especializado, habituado, não se prio dos sentidos.
pergunta apenas "por que ir ao teatro?", mas passa a indagar A luta por um teatro que responda aos anseios de nosso tem-
também: "a qual teatro ir?". po, teatro de qualidade (e por que não?) q~e não deve ser me-
28 A A~TE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR' 29
dida pelo bom acabamento da produção ou pelas críticas que um tom demagógico do tipo "a pessoa mais importante do tea-
recebe em jornais e revistas ou pela quantidade de espectadores tro é você" ou investidas esporádicas, que mais lembram campa-
.9ue consegue seduzir ou ainda' pelo índice de aplausos ao final nhas de vacinação, do tipo "vá ao teatro" , corno se dissessem:
da encenação não pode acontecer sem a voz da platéia. Os es- "vacine-se contra a ignorância" . Pode-se aprender a gostar de
pectadores, partícípantes interessados, precisam constituir par- teatro, o difícil é ser convencido a fazê-lo (ou ser convencido a
te atuante no processo. ,A qualidade do trabalho de um ator, de gostar de qualquer coisa). O prazer advérn .da experiência, o
um encenador, ou de um dramaturgo não pode ser avaliada ape- gosto pela fruição artística precisa ser estimulado, pro vocado ,
nas por sua capacidade técnica e inventiva de realização , mas vivenciado, o que não se resume a uma questão de marketing ,
está fortemente ligada à franqueza, vigor, e interesse com que , O despertar do interesse do espectador não pode acontecer
em sua prática, se depara e responde à questão central, aquela sema implementação de medidas e procedimentos que tornem
que o move: Por que fazer teatro? Por que ir ao público hoje? viáveis seu acesso ao teatro. Na verdade, duplo acesso: físico e
A pedagogia do espectador não é questão somente para peda- Iíng üístíco. Ou seja, tanto a possibilidade de o indivíduo freqüen-
gogos. A capacitação do público para participar ativamente do tar espetáculos quanto a sua aptidão para a leitura de obras tea-
evento teatral está fundamentalmente vinculada à proposição trais. Antes disso , é fato , torna-se necessário que tenhamos boas
artística que lhe é dirigida, e se estabelece também pela ma - condições de produção para um oferecimento quantitativo e qua-
neira corno o artista trabalha e compreende o ponto de Inter- litativo de espetáculos teatrais. No entanto, não é suficiente ter
secção entre a cena e a sala. A atuação do espectador não se oferta de peças em cartaz, é preciso mediaresse encontro entre
efetiva sem o reconhecimento de sua presença. A voz desse ou- palco e platéia. Primeiramente, é necessário criar condições para
tro integrante do diálogo situado na platéia só pode ser ouvida o espectador ir ao teatro , o que envolve uma série de medidas
se a palavra lhe for aberta. Seu interesse em enfrentar o debate para favorecer a freqüentação, tais como: divulgação competente
estético proposto na obra está diretamente lígadoàmaneíra como das peças em cartaz, que atinja públicos de diversas regiões e
o artista o convida, provoca e desafia a se lançar no diálogo. classes sociais; promoções e incentivos que viabilizem financeira-
mente o acesso de diferentes faixas de público; condições de se-
O acesso ao teatro gurança; rede de transportes eficiente; e tantas outras atitudes de
No entanto, como promover de fato a atuação do espectador apoio e incentivo que façam, em última instância, colocar o es-
na evolução e nas transformações da arte teatral? Como tornar pectador diante do espetáculo (ou vice-versa) . O acesso ao tea-
efetiva sua participação no evento? Corno levá-lo à sala de espe- tro " porém não se resume a possibilitar a ida às salas (ou a levar
,
táculo? Como despertar seu interesse em freqüentá-la? espetáculos itinerantes a regiões menos favorecidas). Formar es-
Qualquer iniciativa de formação de espectadores não pode pectadores não se restringe a apoiar e estimular a fre-q üentação ,
ser reduzida, como ternos visto nos últimos anos no Brasil, a é preciso capacitar o espectador para um rico e intenso diálo-
campanhas de convencimento que , às veze~ , escorregam para go com a obra, criando, assim, o desejo pela experiê~cia artística.

,0
30 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 31
Portanto, a pedagogia do espectador está calcada fundamen- tro, esse diálogo acontece no instante exato em que o ato artís-
talmente em' procedimentos adotados para criar o gosto pelo tico, efetivamente, se realiza. Se isso revela seu caráter efêmero,
debate estético, para estimular no espectador o desejo de lançar ' caracteriza também a intensidade de sua relação com o especta-
um olhar particular à peça teatral, de empreender uma pesquisa dor e a importância do público numa encenação, nesse contato
pessoal na interpretação que se faz da obra, despertando seu vivo que se dá entre palco e platéia.
interesse para uma batalha que se trava nos campos da lingua-
gem, Assim se contribui para formar espectadores que estejam [. . .] o tão exaltado privilégio da realimentação Criativa com
aptos a decifrar os signos propostos, a elaborar um percurso que um 'pú blico ativo inspira o elenco (quando não o desa-
próprio no ato de leitura da encenação, pondo em jogo sua sub- limenta pela apatia), a ponto de o espetáculo estar se fa-
jetividade, seu ponto de vista, partindo de s~a~ experiências, zendo em cada sessão, como fenômeno irrepetível ("eis a
sua posição, do lugar que ocupa na sociedade. A experiência verdadeíraobra aberta!") (Rosenfeld, 1993, p. 251).
teatral é única e cada espectador descobrirá sua forma de abor-
dar a obra ede estar disponível para o evento. Público partícípatívo é aquele que, durante o ato da represen-
Ir ao teatro não quer dizer rigorosamente ser espectador da tação, exige que cada instante do espetáculo não seja gratuito, o
peça que está sendo apresentada, da mesma forma que ir ao que não significa que seja necessário, portanto, manifestar-se ou
museu não sígníftca necessariamente participar de um evento intervir diretamente para participar do evento. Sua presença
estético, já que, segundo Bakhtin, o fato artístico s6 se completa efetiva-se na cumplicidade que ele estabelece com o palco, na
no momento em que o receptor se distancia da obra, retoma à vontade de compactuar com o evento, na atenção às proposi-
sua própria consciência e, recorrendo ao seu patrimônio vivencial, ções cênicas, na atitude desperta, olhar aceso. E essa presença
elabora a sua compreensão dela (Bakhtin, 1993).1 É preciso, por- deve ser encarada pelos atores "como um desafio positivo, tal
tanto, em um museu, por exemplo, que o visitante esteja dispo- qual um amante diante do qual não nos apresentamos de qual-
nível para se colocar em diálogo com a obra (e o artista), debru- quer maneira" (Brook, 1991, p. 27). Esse espectador crítico,
çando-se diante da pintura ou da escultura para, a seu modo, exigente e participativo é aliado fundamental nos diálogos trava-
apreendê-Ia e compreendê-Ia. Da mesma maneira, o espectador dos acerca dos rumos da arte teatral.
de teatro precisa travar diálogo com a peça. Ser espectador re- Figura-chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação,
quer esforço , não há saída, um esforço criativo. Brecht afirmava que a leitura crítica, a capacidade de compreen-
Se levarmos em consideração um quadro, uma pintura, o diá- são de uma obra de arte, no entanto , pode e precisa ser traba-
logo que se estabelece entre receptor e obra d.e arte pode dar-se lhada. A capacidade de elaboração estética é uma conquista e
anos ou séculos depois do momento da sua realização; no tea- não somente um talento natural.
1 Estudaremos mais detalhadarnente o conceito de fato artístico, tal como É uma opinião antiga e fundamental que uma obra de
foi compreendido por Mikhail Bakhtin, na Parte IV deste livro. arte deve influenciar todas as pessoas, independente da ida-
32 . A . ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 33
de, status ou educação [... ]. Todas as pessoas podem en- mecanismos utilizados em uma encenação, e os efeitos que pro-
tender e sentir prazer com uma ob~a de arte porque todas duzem, o espectador ganha distância para melhor apreciar como
têm algo artístico dentro de si [. .. l. Existem muitos artis- tais elementos estão sendo apresentados em um determinado
tas dispostos a não fazer arte apenas para um pequeno cír- espetáculo. A aquisição desses conhecimentos permite que o
culo de iniciados, que querem criar para o povo. Isso soa observador esteja em melhores condições para traçar linhas de
democrático, mas, na minha opíníão, não é totalmente de- reflexão acerca da obra e elaborar um juízo de valor sobre ela .
mocrático. Democrático é transformar o pequeno círculo A distância possibilita que o espectador problematize a ence-
de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a arte nação, faça perguntas à cena, tais como: Que temas este espetá-
necessita de conhecimentos. A observação da arte s6 pode- culo aborda? De que maneira isto se relaciona com a vida lá
rá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte da ob- fora? Que signos e símbolos o artista se utiliza para apresentá-
servação. Assim como é verdade que em todo homem exis- las? Eujá vi algo parecido? Como eu faria? De que outras manei-
te um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os ras esta mesma idéia poderia ser encenada? O prazer de assistir
animais, também é certo que essa inclinação pode ser de- a espetáculos teatrais advém justamente do domínio da lingua-
senvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um gem, que amplia o interesse pelo teatro à proporção que possi-
saber conquistado através do trabalho (Brecht, apud Kou- bilita uma compreensão mais aguda, uma percepção cada vez
dela , 1991, p. 110). mais apurada das encenações.

A especialização do espectador se efetiva na aquisição de co- No teatro como nos campos esportivos .
nhecimentos de teatro , o prazer que ele experimenta em uma Ir ao teatro ou gostar de teatro, também se aprende. E nin-
encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem teatral. guém gosta de algo sem conhecê-lo. De que man~ira se pode
O prazer estético, portanto, solicita aprendizado. A arte do es- considerar relevante, e até mesmo imprescindível, aquilo que
pectador é um saber que se conquista com trabalho. não conhecemos em todas as suas possibilidades? O apreço está
Familiarizado com os códigos teatrais , esse espectador inicia- diretamente ligado ao grau de intimidade e, apenas entrando
do descobre pistas próprias de como se relacionar com a obra, em contato com o teatro, seus meandros, técnicas e história, o
percebendo-se, no atada.' recepção , capaz de dar un idade ao espectador pode reconhecer nele importante espaço de debate
conjunto de signos utilizados ria encenação e estabelecer cone- .. . das nossas questões e, principalmente, perceber o quão prazerosa
xões entre os elementos apresentados e a realidade exterior. A e gratificante pode ser essa relação.,
conquista da linguagem teatral propicia ao espectador uma ati- O gosto por uma cultura artística, contudo, se constrói desde
tude não submissa diante do fato narrado e das opções cênicas a infância. Aproximar crianças e adolescentes das atividades tea-
propostas. Conhecendo os signos que vêm sendo estabelecidos trais é de fundamental importância, se quisermos pensar em for-
ao longo da história do teatro, bem como o funcionamento dos mar espectadores. .
34 A ARTE DO ESPECTADOR . A ARTE DO ESPECTADOR 35
Evoco um estudo do sociólogo holandês T. Karnphorst, Brecht sonhava com uma platéia constituída de iniciados, es-
que investigou a maneira pela qual o público adulto tinha pectadores aptos a avaliar propostas trazidas à cena, prontos a
sido sensibilizado pela primeira vez para diversos eventos. elaborar um juízo acerca dos significados presentes nos elemen-
Ele calculou, em seguida, as chances de um adulto ir "x" tos cênicos. O autor alemão queria que os espectadores de teatro
vezes ao concerto ou ao teatro, em função da idade em que fossem especializados como a platéia de um evento esportivo,
havia sido socializado para esse evento. Os resultados são bas- que conhece as regras do jogo, sua história, meandros e funda-
tante interessantes. Em se tratando de um concerto, ele mentos técnicos. O conhecimento tático e técnico do jogo per-
mostra que, se não tivermos adquirido o hábito entre os mite que o espectador esportivo, mesmo emocionalmente en-
cinco' e os oito anos, tElremos muita dificuldade em ir a um volvido com a partida, identificado com os "heróís" em cam-
concerto de música ,clássica mais tarde.' No que concerne , po, questione a atuação dos jogadores. Nas partidas de futebol,
aos museus, [o hábito se adquire] entre oito e doze anos; podemos perceber Com clareza essa atitude do iniciado em face de
no que se refere ao teatro, entre doze e quinze anos. [... ] um espetáculo esportivo, que reúne tanto o profundo envolvimento
mesmo sabendo que não há idade precisa para estarmos emocional quanto a postura .crítíca acerca do evento.
mais abertos , existem determinados períodos em que
estamos mais receptivos que outros (Saez, 1989, p. 33). A isso [a identificação íntima do torcedor com o jogo e
os jogadores 1 se liga, a despeito de toda a ídentífícação, a
Um dos eixos da formação que se pode oferecer à criança possibilidade de distanciamento crítico ("Eu não teria chu-
espectadora consiste em fornecer os instrumentos conceituais tado para fora"), em virtude do que, por outro lado, é esti-
necessários ao despertar de seu espírito crítico. De simples con- mulada uma co-participação ainda mais apaixonada (Rosen-
sumidor de espetáculos, ela pode tornar-se capaz de formular e feld, 1993, p. 95).
sustentar suas apreciações. Trata-se de iniciar o público infantil
na linguagem específica da criação teatral, a fim de fomentar, , A conclusão do espectador da partida de futebol- espetácu-
por meio do espetáculo, sua reflexão. Compreende-se, assim , a lo para o qual os brasileiros em geral são, desde a infância,
formação de espectadores como a:aplicação de procedimentos especíalmente formados - de que não teria errado o chute para
destinados a criar o gosto 'pelo teatro e ressaltar a necessidade e o gol, se dá 'p elo conhecimento técnico adquirido. O domínio
importância da arte, quanto como uma proposição educativa dos meandros da atividade futebolística advém tanto das brin-
cujo objetivo está voltado para a formação delndívíduos capazes cadeiras em que participou como j?gador quanto da experlên-
de olhar, observar e se espantar. A apropríação da linguagem . cía como espectador, apurada especialmente nos debates tra-
teatral tem o intuito de contribuir para a sensibilidade e para vados COm outros torcedores e nas análises de comentaristas
uma experiência de prazer e comunicação, além de contribuir esportivos. A apreensão de regras e o amplo conhecimento tá-
para sua afirmação como sujeito nos rituais coletivos. tico e técnico das jogadas, como ressalta Rosenfeld, estimula a
36 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 37
co-participação do espectador, intensifica o prazer na sua rela- se contente em ser apenas o receptáculo de um discurso que lhe
ção com o evento. proponha um silêncio passivo. A formação do olhar e a aquisi-
No entanto, diferentemente do que acontece com o futebol, a ção de instrumentos lingüísticos capacitam o espectador para o
impossibilidade (não apenas financeira) da grande maioria das diálogo que se estabelece nas salas de espetáculo, além de lhe
crianças e jovens brasileiros de ir ao teatro ou mesmo de rece- fornecer instrumentos para enfrentar o duelo que se trava no
ber a visita de uma trupe teatral é um fato. Criar condições para dia-a-dia. O olhar armado busca urna interpretação aguda dos
que eles possam ir ver um espetáculo talvez seja o primeiro pas- signos utilizados nos espetáculos diários, da propaganda aos pro-
so a ser dado . Mas a questão não se encerra aí, pois possibilitar gramas eleitorais. Com um senso crítico apurado, esse oldadão-
o acesso ao teatro não significa, como já apontamos, apenas espectador, consumidor-espectador, eleitor-espectador procura
colocar o espectador infanto-juvenil diante de uma peça, mas estabelecer novas relações com o entorno e as diferentes mani-
também fornecer ferramentas para que ele disseque e interprete .festações espetaculares que buscam retratá-lo.
o evento. Tornar o espectador iniciante mais íntimo da arte tea- Se nessa sociedade "a linguagem do espetáculo é constituída
tral e estimulá-lo para um mergulho divertido amplia sua capa- pelos signos da -produção reinante " (Debord, 1992, p. 18), to-
cidade de apreender o espetáculo e favorece sua socialização, mar conhecimento dos mecanismos que envolvem uma encena-
seu acesso ao debate contemporâneo, sua Integração e partici- ção, desvendar e apreender a lógica da teatralidade significam
pação sociais.' conquistar instrumentos que viabilizem a reflexão acerca dos
Democratizar o acessode criançase jovensao teatrose constitui,en· procedimentos utilizados em diferentes produções espetacula-
tão, em viabilizar a ida aos espetáculos e, concomitantemente, ofere- res . O espectador instrumentalizado encontra-se em condições
cer os instrumentos de compreensão e de recepção que condicionam de decodificar os signos e questionar os significados produzidos,
esse acesso, oferecendo meios necessários paraque o espectador seja no palco, seja fora dele.
infanto-juvenil tenha possibilidade e vontade de apropriá-los. Os métodos e procedimentos propostos pejos meios comu-
nicacionais contemporâneos
. influenciam e condicionam asensi-
,

A posição de espectador bilidade e percepção dos espectadores. Se quisermos destacar


Na sociedade baseada na espetacularidade dos acontecimen- exemplos das opções éticas e estéticas de algumas dessas produ-
tos e apoiada na indústria moderna, que "não é fortuitamente ções espetaculares, podemos abordar diversos fatos recentes .
ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente 'espe-
tacularista'", onde o espetáculo é "o sol que não se esconde ja- [... ] se queremos um emblema para a educação mundial
mais' sobre o império da passividade moderna" (Debord, 1992, em prol da Insensíbíl ídade , não serã difícil descobri-lo: ele
p.21) , formar espectadores consiste também em estimular os está na cobertura televisiva de alguns anos atrás da Guerra
indivíduos (de todas as 'idades) a ocupar O seu lugar não somen- do Golfo (Costa Lima, 2001, p. 15) .
te no teatro , mas no mundo. Educar o espectador para que não
: ',

38 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 39


Assim, a pedagogia do espectador se justifica também pela É muito comum o espectador assistir a programas televisivos
urgência de 'uma tomada de posição crítica diante das represen- de maneira fortuita, acompanhando vários programas ao mes-
. rações dominantes, pela necessária capacitação do indivíduo- mo tempo ou desenvolvendo outras atividades simultaneamen-
espectador para questionar procedimentos e desmistificar códi- te, interrompendo freqüentemente a recepção para comer alguma
gos espetaculares hegernônlcos. coisa ou atender ao telefone. Desse modo, a televisão, principal
Em casa ou nas ruas , o indivíduo contemporâneo encontra- veículo de comunicação da contemporaneidade, cria um hábito
se invadido por um entulho de signos de todas as espécies - mental fundado na ruptura e na segmentação, um hábito calca-
talvez hoje devêssemos lutar pelo livre direito de ir e ver. As do na sedução imediata, desencorajando, quando o flash deixa
mídias eletrônicas produzem ficção a um ritmo alucínante, ima- de ser fascinante . Isso leva os criadores de programas televisivos
gens já fazem parte da 'cesta básica de famílias de todas as clas- a acelerar consideravelmente as rupturas de imagens e modificar .
ses so-ciais: Para se ter uma idéia vertiginosa dessa produção, a estrutura da.montagem- das emissões para não deixar .escapar
se nos detivermos somente nas imagens televisivas, estima-se a atenção do espectador. Buscando capturar o olhar do espeota-
que se consuma em nosso país cerca de 200 milhões de horas dor-consumídor, esses mesmos criadores promovem, assim', uma
de imagens, mostradas em cerca de 40 milhões de aparelhos multiplicação dos planos, propondo a justaposição artífíoíal de
televisores instalados nos lares (Barreto , 1996, p. 9). Os es- imagens que não fazem nenhum sentido que não seja o da busca
pectadores consomem uma quantidade e uma variedade de da sedução imediata.
imagens , narrativas e fragmentos narrativos que, apesar da apa- O hábito mental de segmentação e ruptura proposto pela
rente facilidade de decodificação , impõem uma fruição super- televisão agrava-se, quando se trata de crianças, pela freqüên-
ficial , desestimulam a atitude interpretativa, o esforço criativo cia assídua diante do aparelho . Uma recente pesquisa indica
é a elaboração de juízos de valor, propondo uma recepção des- que uma criança francesa, por exemplo, durante um ano, che-
provida de exigência estética. A indigestão de signos empurra- ga a passar uma vez e meia mais tempo diante da televisão do
dos goela abaixo, o abuso e banalização da ficcionalidade , o que na escola (Meirieu, 1994). Além disso , antes de ingressar
estílhaçarnento visual, a híper-fragrnentação narrativa m~difi­ na escola, qualquer criança já assistiu a milhares de horas de
carn ainda o campo de percepção do espectador, influenciando televisão.
seu modo de relação com a espetacularidade e seu horizonte Os valores da televisão são os do mercado, tendo em vista que
de expectativa. seu objetivo principal é fazer vender produtos e serviços, de
maneira que, regida pelo máximo lucro , pouco ou nada avalia os
Deixar a televisão para ir ao teatro .ver televisão: assim conteúdos e procedimentos estéticos utilizados para manter a
é, em breve resumo , a expectativa do grande público (Del- atenção do espectador. Se prestarmos especial atenção, obser-
dírne , 1993, p. 111) . varemos que as estruturas narrativas dos programas, pressiona-
dos pelos repetidos intervalos comerciais, geralmente abando-
40 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 41
nam nuanças e sutilezas, propondo uma abordagem superficial Não seria exagero supor que a arte teatral possa ser encarada
dos fatos e questões tratadas. como uma proposição espetacular pouco habitual , ou mesmo
frustrante, para esse superestimulado espectador contemporâ-
Ao final de uma emissão, todas as intrigas devem estar neo. Ao pensar a pedagogia do espectador, portanto , não se pode
resolvidas, e as incertezas desaparecidas. Está na hora de desprezar o anseio, o hábito , a expectativa que condiciona o
vender os produtos (Condry, 196, p. 56). indivíduo-espectador de nosso tempo em sua relação com os va-
riados meios comunicacionais ; meios esses que detêm a
Essa constante necessidade de chamar a atenção do especta- hegemonia dos procedimentos estéticos espetaculares e da pro-
dor faz que a televísão, ligada a índices diários de audiência, viva dução de sentidos.
absolutamente no presente , atropelando o passado e mostrando
pouco interesse pelo futuro coletivo. O espectador infantil rece- Na boca do povo
be , assim, grande e importante quantidade de informações (e A busca por um teatro aberto , particípatívo , que comova,
sentidos produzidos) acerca do mundo que o envolve e dele movi~ente, apaixone e faça pensar é um desejo expresso em '
mesmo, e a televisão acaba desempenhando, com a família e a várias línguas. Sua crise não é s6 nossa. Talvez tenhamos de nos
escola, papel destacado na socialização da criança. h.abituar ao fato de que o teatro é, hoje , um evento para poucos
Assim, projetos artísticos e pedagógicos que têm por objetivo ' e, por isso, não podemos mais alimentar a visão .antiga e român-
propor a espectadores iniciantes uma descoberta ativa do teatro tica desse gênero como uma instituição de educação e reunião
não suscitam evidências tranqüilas nem facilidades inesperadas. de todo o povo.
O teatro, em seu estágio contemporâneo, pode ser percebido
pelos espectadores , crianças e adultos, habituados às produções . Em alguns lugares, há uma minoria de pessoas que pre-
audiovisuais dominantes , como um espaço totalmente estranho, cisam de algo diferente, algo mais humano , que s6 pode'
diante do qual pode ser extremamente difícil se situar. Gestos, ocorrer numa escala menor. E, então, teatro será sempre para
movimentos , intenções sutis dos atores, um mosaico complexo um porcentual pequeno de pessoas. Isso não o toma elitista,
de signos e códigos específicos propõem um modo de relação e apenas faz algo que está lá para gente que realmehte tem inte-
comunicação fundado na participação sensível e reflexiva do resse (Brook, 2000, p. 1).
público, uma atitude concentrada de observação. É cornpreen-
sível (e mesmo desejável) que o teatro possa desorientar, provo- Todas as lutas pela democratização do teatro , pela prática de
car e incomodar os espectadores que estabelecem as primeiras projetos de formação de espectadores, por àflrm ã-Io como ins-
relações de conhecimento dessa arte . O prazer do teatro talvez trumento de transformação social, pelo livre entendimento en-
não seja mesmo uma aquisição fácil, mas um prazer que requer tre atores e espectadores, tudo isso talvez seja uma dessas uto-
disponibilidade e esforço do espectador. pias que se vive sem realizar, ma s que, ao mesmo tempo , não há
42 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADÓR ,43
como sentir-se realizado sem a tentativa de vivê-las. Será mes- juntos? Ou será que o teatro, da maneira como suas formas es-
mo assim? tão estabelecidas, não oferece respostas para a necessidade de
No Brasil, contudo, o enfraquecimento do debate acerca do teatro que a vida contemporânea produz ou permite supor? O
'redímensionamen to da relação do teatro com 'a sociedade con- fato é que para que se possa almejar o nascimento de uma forma
temporânea se acentua em virtude da inexistência de uma pla- teatral genuinamente brasileira, como sonhava Ziembinski, é
téia devidamente formada, habituada a freqüentar as salas de preciso que haja uma intimidade nacional com essa arte, colocá-
espetáculo, Com gosto e alma despertados para essa arte. Será Ia na boca (e olhos) do povo.
que, como dizia Ziembinski, a arte do teatro, tal qual a conhece- A iniciação de espectadores, contudo, requer organização e
mos, não se afeiçoa à nossa personalidade? aplicação de métodos e procedimentos específicos destinados a
sua formação. A leitura do teatro, passeio interpretativo pelos
Será que nós brasileiros realmente gostamos do teatro e signos que constituem uma encenação, como afirmava Brecht,
precisamos dele? Qual deveria ser esta arte para que o povo não é atitude evidente, mas adquirida. A capacitação estética
se interessasse por ela? [.. .] O conflito, a situação de co- não é somente aptidão natural, mas conquista cultural. Demo-
moção interna, o jogo de contrastes entre o preto e o bran- cratizar o acesso ao teatro consiste, portanto, em preparar esse
. co, todos estes elementos que caracterizam o fenômeno espectador ín íclan te, instrumentalizando-o, tornando-o apto ao
dramático não parecem ser o forte do nosso temperamen- diálogo com a obra.
to nacional. Não existe vontade de se envolver no conflíto' Mas que projetos de formação adotar para uma efetiva demo-
dos outros; há vontade, isto sim, de ficar na praia, nos cam- cratização do acesso à arte teatral? Que práticas artísticas e pe-
pos, numa atitude contemplativa. l...] O que acontece é dagógicas implementar? Que procedimentos espetaculares e
que esta nação ainda se prepara para encontrar sua pró- extra-espetaculares podem ser utilizados para tornar o especta-
pria forma daquilo que seria o espetáculo teatral, embora dor estimulado e capacitado para enfrentar o embate lingüístico?
. talvez não se chame mais de espetáculo teatral, mas no qual
a nação se realizaria através de conceitos afins ao drama, e
adaptação ao seu temperamento, seu sangue, sua paisagem
e sua sensibilidade melódica. [... ] Então não será mais ne-
cessário escrever "Vamos ao teatro" , porque o povo irá es-
pontaneamente (Ziembinski, apud Michalski, 1996).

Será mesmo uma questão de personalidade da nossa gente e


não uma 'falia de incentivo a projetos democratizadores , que
busquem a formação de uma platéia nacional? Talvez os dois
3
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE
ESPECTADORES

A leitura obrigatória é uma coisa tão absur-


da quanto se falar em fellcldade 'obriga tória,
- JORG E LUIS BORGES

A conscientização por meio do teatro


Desde os anos 1960 até meados de 1970 , artistas e educado-
res, movidos pela Idéia de democratização cultural, estruturaram
variadas práticas destinadas à ampliação social e geográfica do
público de teatro, quanto à difusão da experiência artística em
geral. Essas iniciativas se efetivaram com grande vitalidade em
países europeus, como França, Itália , Bélgica e Portugal; realiza-
ram-seímportantes movimentos também em outros países, como
Estados Unidos e,também, Brasil. Dentre as diversas atividades
artístico-culturais implementadas nesse período, destacam-se:
a apresentação de espetáculos teatrais nas ruas, metrôs, praças,
bares e outros lugares pouco habituais; a proposta de oficinas
de teatro em escolas e universidades; :a promoção de festivais de
arte; a criação e difusão de bibliotecas ambulantes; as projeções
cinematográficas em praças públicas de pequenas cidades ou em
bairros de periferia; entre tantas outras.
~~
46 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 47

OS agentes culturais de então almejavam estreitar relaciona- produção marcada por forte teor ideológico, concentraram seus
mento com uma parcela do público que se encontrava fora do esforços na difusão de espetáculos para um público o mais am-
circuito comercial de arte, articulando uma luta para abrir as plo possível, com o objetivo de não somente manter a sobrevi-
instituições culturais a todos, bem como para levar espetáculos vência. do próprio teatro, mas também, e especialmente, de
teatrais e promover práticas artísticas, tanto em localidades dis- implementar urna ação política de conscientização por meio da
tantes dos centros urbanos, quanto nos mais diferentes espaços : arte teatral. Os grupos buscavam a utilização do palco como espaço pa-
fábricas, sindicatos, igrejas , escolas , universidades, empresas e ra à discussão de questões que afligiam nossas sociedades, convidan-
hospitais. As atividades aplicadas tinham, por vezes, o objetivo do os espectadores a participarem desses debates .
de rever as relações sociais existentes na comunidade ou no in- Esses artistas, impulsionados pelo cansaço diante de práticas
terior das próprias instituições onde acontecia o evento . teatrais conhecidas e pelo desejo de extinguir o fosso que sepa-
Esse movimento baseava-se na convicção de que todas as pes- rava o palco da platéia, conceberam métodos bastante particu-
soas têm plena capacidade e direito de ver e fazer arte. A difusão lares que tinham oobjetívo de provocar a. atitude do público
das práticas artísticas ao mesmo tempo que ampliava o círculo de diante dos fatos trazidos à cena. Essas formas dramáticas contí-
conhecedores,' tinha por Objetivo subverter a ordem estabe-' nham, assim, urna proposta pedagógica atrelada ao interesse
lecida. A arte - e o teatro funcionava como um dos principais inst- artístico e estavam calcadas, em grande parte, na intervenção
rumentos de açã? cultural- era veículo primordial de questiona- direta da platéia no evento artístico . E~ses experimentos permi-
mento e transformação da sociedade. A proposta de atividades tiram o redimensionamento da posição do espectador em sua
artísticas para um grande público se estruturava como: relação com a obra teatral.'

I Dentre os relevantes movimentos teatrais que surgiram neste período,


uma das respostas à crise que conhecem as nossas socieda- voltados para a especíalízação de espectadores com O objetivo de estimu-
des ocidentais, marcadas pela industrialização, o desenvol- lar a platéiapara uma tomadade posição críticaante as questões apresen-
vimento tecnológico e a urbanização, a cultura de massa, o tadas, destacam-se: as experiências do Lívíng Theatre, realizadas nos
Estados Unidos, e que exerceram forte influência em muitos outros paí-
questionamento de valores tradicionais corno os da famí- ses: as técnicas do Teatro do Oprimido, que foram aplicadas primordial-
lia, as dificuldades de comunicação, a desestabilização de mente na França e no Brasll, e alcançaramreconhecimento em diversas
instituições sólidas corno a escola, o desemprego, a infla- nações, a revisão da peçadidática,que provocou a retomada deste teatro
brechtiano, possibilitando o desenvolvimento de ricas experiências de
ção, a aspiração à "qualidade de vida" , a tomada de cons- formação emnosso país; entre outros. Para melhorconhecimentodesses
ciência ecológica, a vontade de ver reconhecido o direito à dife- experimentos, pode-se consultar as seguintes obras: sobreo LívíngTheatre
ver JeanJacquot.The Lívíng Theatre. In: ~ .Lessioies de la cr éatum
rença, o direito de ser você mesmo (Gourdon, 1986 , p. 27). th éãtrale (Paris, CNR8. v. 1/1970); sobre o Teatro doOprimido , Augusto
Boal. Teatro do Oprimido (Rlo de Janeiro, Cívíhzação Brasileira, 1988);
Na esteira dos movimentos contraculturais que eclodiram no sobre a revisão da peça didática, Ingríd Dormien Koudela. Breclu. um
jogo de aprendizagem (São Paulo, Perspectiva, 1991). .
período , nos países há pouco citados, várias trupes, com uma
48 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS ,T EAT RAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 49
Propondo uma nova maneira de compreender a atuação polí- O crescimento de produções teatrais para a infância aconte-
tica, a ação por meio do teatro , um instrumento revolucionário, ceu em concomitância com o estreitamento das relações do tea-
provocaria a potência imaginativa e transformadora do público. tro com a escola. Motivadas pela possibilidade de alcançar todas
. As formas artísticas 'mais surpreendentes e contraditórias surgi- as crianças, de todas as classes sociais, uma grande quantidade
ram neste período, todas encaixadas em um movimento comum, e variedade .de espetáculos e oficinas teatrais passaram a ser
de um radicalismo COm grande vitalidade, em permanente con- realizados em instituições educacionais. Havia também nessa
testação à sociedade e cultura dominantes, que desconstruía os iniciativa um anseio de modificar o próprio sistema escolar, con-
espaços teatrais tradicionais e transbordava pelas ruas e outros siderado esclerosado, abrindo-o à arte e aos artistas.
locais à procura de espectadores, diminuindo a distância entre
vida teatral e vida social. DINAMIZANDO A RECEPÇÃO TEATRAL
As trupes passaram, assim, a visitar com maior freqüência as es-
Os espectadores do futuro colas, propondo diversas atividades de expressão dramática, com o
Nesse período, surgiram também importantes experimentos que objetivo de sensibilizar crianças e jovens para o teatro. Essas práti-
tinham em seu horizonte a criança como alvo predileto para reno- cas,que passaram a ser conceituadas como animações teai:rais,2 tanto
vação do público teatral. Em um contextosocial marcado pela afir- podiam organizar-se em tomo de um espetáculo teatral, dinamizan-
mação do direito de parcelas desprívílegíadas da popu-lação de ver do a compreensão da encenação vista pelos alunos , quanto se
e .fazer arte , àssiste-se a uma explosão sem p~eceden-tes da cria- estruturar como oficinas teatrais autônomas que, trabalhando a
ção teatral dirigida ao público infantil. O então denominado "teatro expressividade e criatividade dos participantes, não tinham ne-
para crianças" alcança enorme sucesso, especialmente em alguns cessariamente ligação com uma determinada peça de teatro .
países da Europa, como França, Bélgica, Espanha, Portugal, entre As animações teatrais autônomas.' que não estavam vincula-
outros; e tem também grande expansão em outros países: Estados das a um espetáculo teatral, estruturavam-se como oficinas in-
Unidos, Canadá, Austrália e Brasil. Trata-se de um movimento que
defendia o direltoda criança de possuir uma produção cultural o conceito de animação teatral (animation théêttrale) nasce na França ,
que lhe fosse.espe-cialmente dirigida e seu direito à prática artís- país que tem papel preponderante nessas experiências realizadas visan-
do à formação de crianças ejovens espectadores. As práticas de animação
tica, além de objetivar também a sustentação e a transformação da teatral foram também aplicadas em outros países europeus, tais como:
própria arte teatral. Ou seja, as companhias que produziam teatro Bélgica, especialmente, além de Itália, Espanha, Portugal , entre outros.
No Brasil, nos anos 1970 e início dos 1980, alguns grupos de teatro reali-
para crianças acreditavam que, aofonnarem espectadores infantis, zaram, de maneira esporádica, práticas de animação teatral nas escolas.
estariam preparando os espectadores do futuro - que, ao se tor- J O sociólogodo teatro Reger Deld írne, belga, reconhece duas maneiras pos-
narem adultos, estariam capacitados a ditar os novos rumos dessa síveis de aplicação das anlmaçõesteatraís: aquelas que estão vinculadas
a um espetáculo teatral, as quais definiu como animações teatrais peri-
arte , e, futuramente, resolveriam a questão do esvaziamento das féricas, e as que acontecem independentes' de qualquer espetáculo, as
salas, pois já estariam habituados a freqüentar os teatros. quais denominou animações teatrais atLtónomas (Deldime , 1990).
50 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 51
dependentes e estavam fundamentadas na aplicação de jogos e mais bem observados pelos alunos no ato de recepção da obra.
exercícios que proporcionassem a ampliação do domínio da lin- Essas animações, por vezes, ensinavam aos participantes o fun-
guagem teatral pelos participantes. Algumas dessas oficinas pro- cionamento de alguns artifícios e elementos de cena do espetá-
' piciavam aos alunos a apreensão de diferentes técnicas, como culo, tais como: utilização dos refletores, criação da sonoplastia,
teatro de sombras, teatro de bonecos, confecção e utilização de construção de determinados materiais cenogr áflcos, etc. Com
máscaras, entre outras. esse procedimento, os animadores queriam desmistificar a máqui-
Aplicavam-se animações autônomas tanto nas escolas quanto na teatral, estimulando os alunos a lançar um olhar distanciado ,
em fábricas, sindicatos, associações de moradores, etc. Estas crítico, à encenação que seria posteriormente apresentada.
animações teatrais foram também muito utilizadas por grupos Alguns artistas e educadores dos diferentes países em que es-
itinerantes que se deslocavam até regiões afastadas dos grandes sas práticas foram implementadas manifestaram-se contrári-
centros urbanos ou bairros da periferia, com o" intuito de pro- os à utilização de animações teatrais antes do espetáculo , por
mover práticas teatrais, inserindo essa arte na vida cultural da entenderem que, ao revelar previamente elementos da peça, os
região . Por meio de atividades dramáticas propostas, esses gru- exercíciós de animação corriam o risco de romper a "magia" da
pos queriam tornar os participantes capazes de questionar suas encenação, diminuindo o envolvimento dos espectadores. Além
condições de vida, manifestar suas idéias e anseios e transfor- disso, argumentavam que as atividades aplicadas antes do espe-
mar o ambiente pessoal e social. táculo poderiam influenciar e condicionar de maneira definitiva
. As animações que se organizavam em tomo de um espetácu- a leitura dos alunos, impedindo-os de realizar uma interpreta-
lo, sendo por esse motivo conhecidas como animações teatrais ção livre da obra.
periféricas', tinham por bjetivo principal a formação de especta- As animações teatrais propostas depois da apresentação do
dores. Elas se estruturavam tanto com base em atividades que espetáculo tinham o objetivo de explorar pedagogicamente a
forneciam informações complementares a respeito do espetácu- experíêncla artística, por meio da aplicação de variados jogos e
lo que seria visto pelos partícípantes , quanto pela aplicação de exercícios.
exercícios que, explorando a linguagem teatral, se destinavam a Os próprios artistas dos grupos, preferencialmente, ou os pro-
capacitar o espectador iniciante a urna leitura mais aguda da fessores das escolas organizavam e aplicavam essas práticas de
encenação. Eram também utilizadas para avaliar o grau de com- formação de espectadores. Considerando suas principais ten-
preensão e interesse do público sobre o espetáculo em questão . dências, definidas em função de variados objetivos, pode-se
As animações teatrais periféricas aconteciam antes ou depois categorizar as animações teatrais que aconteciam em torno de
da apresentação do espetáculo. As atívidades'propostas antes da um espetáculo da seguinte maneira.' animações de integração
peça tinham o intuito de preparar os alunos-espectadores para a escolar, animações de expressão e animações de leitura.~
leitura da peça que seria vista e, quase sempre, sublinhavam al- As animações teatrais de integração escolar, como o próprio
guns aspectos artísticos do espetáculo que, assim, poderiam ser termo sugere, buscavam integrar a obra teatral ao processo de
52 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 53
aprendizagem escolar. O espetáculo motivava atividades múlti- As animações de integração escolar aconteciam, normalmen-
plas, tornava-se pivô de um estudo que podia interligar diversas te, após o espetáculo e estabeleciam relações entre a encenação
disciplinas do currículo escolar, sendo utili~ado como atividade vista pelos alunos e diversas áreas do conhecimento. As atividades
.. d~ reforço. A peça propiciava, assim, a aplicação de exercícios , de desdobramento.da peça enfocavam, por exemplo: noções de
visando a uma dinamização do aprendizado em diversas áreas matemática (exercícios de conjunto, dividiam-se os personagens
do conhecimento. em grupos); abordagens históricas; exercícios de expressão escri-
Alguns grupos, especialmente na França e na Bélgica, distri- ta (redações sobre a peça ou aplicação de ditados); atividades
buíam nas escolas fichas pedagógicas relativas a cada espetáculo, de artes plásticas (a criação de cartazes para a peça ou de dese-
com o objetivo de indicar aos professores sugestões de desdo- nhos animados que retratassem a história contada) . Havia ainda
bramentos escolares para a peça teatral. Essas fichas, que po- outras tantas atividadesque variavam em função das possíveis abor-
diam vir acompanhadas de fotos ilustrativas, slides ou gravações da~en.s suscitadas pelo espetáculo e da faixa etária dos alunos.
em fita cassete de músicas, geralmente traziam as seguintes in- Essas animações , bastante freqüentes nos países acima cita-
formações: 1) apresentação da peça, incluindo um resumo e co- dos, na década de 1970, foram muito criticadas nos anos sub-
mentários sobre a temática abordada; 2) análise formal do espe- seqüentes,consideradas "escolarizantes" e acusadas de "pedagogizar"
táculo; 3) sugestões de exercícios de preparação das crianças o teatro pelo fato de o espetáculo teatral ser utilizado como
para o espetápulo; 4) exercícios de desdobramento aplicáveis às instrumento de aprendizagem de determinadas díscíplínas da gra-
diferentes disciplinas escolares; 5) referências biblio-gráficas, de curricular ou como mero pretexto para atividades normal-
úteis aos professores para melhor compreensão da peça e me- mente aplicadas no cotidiano .escolar. A arte teatral acabaria,
lhor aproveitamento dessas atividades. deste modo, por ser "fagooítada" pelo sistema de ensino, em que
vigorava o "dídatísmo" e o "dlrtgísrno". A utilização do teatro
4 As categorias de animação teatral apresentadas neste trabalho foram como ferramenta para a apreensão de conteúdos disciplinares
livremente concebidas com base nas determinadas por Reger Deldime empobrecia o diálogo do aluno-espectador (e os desdobramen-
em seu vasto estudo sobre o assunto . Embora as definidas por esse soció-
logo do teatro tenham sido particulannente recolhidas das práticas tea - tos desse díãlogo) com a peça , tornava a experiência estética
trais de seu país, a Bélgica , sua ampla pesquisa acerca do tema nos pode padronizada, atrelando a recepção às necessidades da' escola.
auxiliar no entendimento da estruturação das animações teatrais nos d í- As animações teatrais de expressão constituíam-se funda-
ferentes países em que foram (ou são) aplicadas, mesmo no Brasil. Reger
Deldlme organiza as animações teatrais nas seguintes categorias: les mentalmente de oficinas e atividades teatrais, de curta ou longa
animations pédagogiques, les animations id éologiques, les animations- duração, propostas às escolas vincula~as à apresentação de um
implantations regionales, les animations-décodages, les animacions-
espetáculo. Nas animações de expressão, utilizava-se, preferen-
expressions, les animations culturalistes. As definições de cada uma
dessas categorias podem ser encontradas nas seguintes obras do sociólo- cialmente, a aplicação de jogos de improvisação, centrando o
go: Animation et théãtre pour enfants (Bruxelas, Instítut de Socíologíe foco do trabalho no aprimoramento da expressividade dramáti-
de l'Uníverslt é Líbre de Bruxelles, 1985) eLe ouatriême muroRegards
sociologiques sur la re~ation théátrale. (Carniêres, Lansrnan, 1990). ca dos participantes. Por vezes , propunha-se a montagem de
54 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇAO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇAo DE ESPECTAÚOReS SS
pequenos espetáculos, que podiam ser inventados pelos próprios corno a encenação lidava com tais questões e que técnicas tea-
alunos, responsáveis por conceber eoletívamente trama, perso- trais eram utilizadas nessa abordagem. As animações de leitura
nagens, cenário, figurinos e adereços; dessa maneira, proporcio- horizontal focalizavam elementos de texto e de cena sempre
, na-se aos alunos o contato com diversos aspectos da arte tea- ilustrativos, que propunham uma leitura imediata. .
tral. Em alguns casos, aplicavam-se ainda atividades de escrita, Essas atividades, que enfocavam primordialmente a temática
em que a prática drarnatúrgica era exercitada com os partici- da peça, podiam, por exemplo, ser estruturadas com base nas
pantes; ou ateliês de criação plástica, para trabalharem a con- seguintes práticas: 1) exposição sobre a vida do autor, de seu
fecção de elementos cenográflcos; ou oficinas de iluminação, tempo (em se tratando de uma peça de época) e do conteúdo do
e
direcionadas à construção à exploração criativa de refletores. texto; 2) interpretação pelos atores de uma cena representativa
A aprendizagem daIlnguagern teatral, em seus diferentes dorní- do espetáculo; 3) curto debate sobre a atualidade da situação en-
nios , buscava oferecer instrumentos aos partícípantes para um cenada; 4) aplicação de exercício dramático em que Os alunos
diálogo mais intenso com os espetáculos. transpunham a cena montada pelos atores para acontecimentos
As animações teatrais de leitura pretendiam dinamizar a re- contemporâneos ou para situações outras que, de algum modo,
cepção do aluno-espectador, propondo atividades que possibili- estivessem relacionadas às apresentadas pelos atores.
tassem urna leitura mais apurada da obra. Fichas pedagógicas, Nas animações de leitura transversal, que tinham corno ob-
co.ntendo informações sobre a peça e sugestões de atividades jetivo capacitar alunos-espectadores para a decodificação dos
para serem aplicadas pelos professores, antes ou depois do es- signos do espetáculo, o enfoque dado às atividades propostas
petáculo, também eram utilizadas pelos grupos teatrais que pro- reduzia a importância da percepção imediata provocando o
moviam essas animações. Eram apresentadas em duas verten- espectador a empreender uma interpretação da encenação, es-
tes: animações de leitura horizontal, que procuravam destacar timulando-o a efetivar sua compreensão dos significados conti-
e pôr em debate o tema da peça, ressaltando o conteúdo veicu- dos nas concepções dramatúrgícas, intenções gestuaís, opções
lado pelo espetáculo; e animações de leitura transoersal, que bus- cenográ-fioas e demais' criações dos realizadores do espetáculo.
cavam propor atividades que capacitassem os espectadores Propiciar aos alunos a compreensão do espetáculo não se redu-
íníolantes a decodificar os signos que constituíam a encenação. zia à trama, mas se constituía de uma totalidade de signos, pois
Nas animações de leitura horizontal, em que o conteúdo da ensinava-se a 'reconhecer a especificidade da arte teatral e ela-
peça era prioritariamente abordado nos exercícios propostos, borar os elementos semi6ticos presentes na encenação. Essas
os animadores estimulavam o grupo de alunos a debater o as- animações foram fundamentalmente implementadas por com-
sunto em questão e a improvisar cenas que se relacionassem panhias teatrais que construíam os seus éspetáculos buscando
com o tema da peça. Essas animações chamavam a atenção dos uma escritura cênica provooaríva, nem sempre evidente, que va-
participantes para O discurso da obra, para a atualidade dos te- lorizava a atitude do espectador diante da obra, incitando-o a
rnas tratados, além de provocar a observação dos alunos para engendrar uma leitura pr6pria dos signos propostos,
56 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇ ÃO D E ESPECTADORES 57
Partindo do princípio .de que a capacidade de ler os signos não utilização de recursos de expressividade e comunicação próprios
é umfenômeno natural , mas cultural, essas animações de leitu- do teatro.
ra tinham o intuito .de preparar os espectadores para a decifra- As animações de leitura transversal queriam oferecer pistas
.. ção dos códigos, realizando uma leitura plural dos espetáculos. ao aluno para uma;ampla leitura do espetáculo, fornecendo ins-
trumentos que o auxiliassem a lançar questões à peça, propon-
o modo tradicional de recepção do espectador tem como do que o espectador construísse as próprias respostas, distantes
elemento preponderante a espera ansiosa pelo final (ohappy de respostas dogmáticas, preestabelecidas. Assim , o leitor ad-
end), acompanhado de um forte envolvimento na ação. Nesse quiriria o hábito de analisar os signos constitutivos da represen-
caso, a atenção do espectador está essencialmente centrada tação teatral, compreendendo o funcionamento do espetáculo e
na anedota: nas peripécias, nos seus .encadeamentos [.. .] percebendo como se articulam elementos escolhidos e trazidos
A essa leitura horizontal da obra, Richard Demarcy (So- à cena pela equipe de criação. Essas animações de leitura efeti-
ciologie du spectacle) opõe a leitura transversal, fundada vavam-se , portanto, a partir de exercícios que estimulassem os
em um modo de recepção em que o espectador não se detém alunos-espectadores a compreenderem os elementos cênicos
essencialmente na fábula. Observador, ele coloca sobre todos utilizados no espetáculo em questão. Para isso, os animadores
os elementos de significação contidos no espetáculo teatral, utilizavam slides, fotos, gravações de músicas da peça ou mesmo
a medida de seu aparecimento em cena, a questão: "o que é a representação de cenas do espetáculo pelos atores, visando
isto?", i~ediatamente seguida da questão: "o quê isto signifi- provocar os participantes da atividade a se questionarem e res-
ca?" (Deldime, 1990b , p. 96) . ponderem criativamente acerca do significado de cenários,
maquíagens , gestos, atitudes, etc. Os alunos debatiam os signos
As animações de leitura transversal sobrepunham-se, assim, produzidos pelos autores do espetáculo e, em seguida, criavam
às animações de leitura horizontal, mais explicativas e nas quais seus próprios signos, explorando elementos da linguagem tea-
o espectador se detinha nas perípéclas, na ação dos personagens tral e elaborando cenas sobre temáticas diversas .
e no conteúdo veiculado pela peça. Essas atividades levavam os As animações em torno de um espetáculo (de qualquer estilo )
participantes a perceber, como sugeria Ionesco, que tudo é lin- eram concebidas principalmente em função de características
guagem no teatro, palavras, gestos, objetos, já que tudo tem a da peça, do grupo com o qual se iria trabalhar e dos objetivos
função de exprimir, significar (Ionesco, 1962). As animações de dos promotores, Não havia (ou não deveria haver) , portanto , fór-
leitura transversal queriam sensibilizar os alunos-espectadores mulas a serem seguidas , os jogos e exercícios implemen tados eram
tanto para a compreensão do argumento e a apreciação da his- preferencialmente uma criação dos : animadores. Um procedi-
tóría. vquanto para a observação dos elementos especificamente mento educacional que se propunha, entre outras coisas, a de-
teatrais , chamando sua atenção para a expressão teatral de um senvolver a criatividade e o espírito crítico não deveria justa-
argumento , e a maneira como a temática foi tratada a partir da mente abrir mão desses valores.
58 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
P!3-ÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 59
gens , atuando diretamente na ação dramática, sendo divididos
o ESPETÁCULO ANIMAÇÃO
em três grupos de integrantes do clã dos inuits: os pais, os av6s
Algumas companhias de teatro - espeolalmente nos países em e as crianças, cada grupo carregando um adereço específico de
.que as animações foram usualmente aplicadas - conceberam , Identificação. Alguns animadores conduziam a participação dos
em experimentos realizados na década de 1970 e início da de espectadores que, logo que entravam no palco, dividiam-se es-
1980, o que pode ser denominado de espetáculo-animação. 5 pacialmente e cada grupo de personagem se colocava em seu
Como sugere o próprio conceito, essas práticas teatrais alia- iglu ; Em determinados momentos da peça, propunha-se a parti-
vam, na mesmaatividade artística, momentos em que o público cipação direta da platéia na ação dramática, como, por exem-
assistia à representação corri outros em que ele adentrava a área plo, quando os animadores distribuíam um peixe seco para cada
de jogo, sendo convidado alntervtr.na const~uçãb da cena ou a iglu; sugerindo que os espectadores , ao ritmo rítualístíco de um
participar de jogos relacionados com a peça. Artistas e educa- tambor, partilhassem o alimento entre eles, propondo, assim , a
dores propunham , assim, que os espectadores vivenciassem, no partir de um envolvimento tátil, olfativo e gustativo do público,
mesmo evento , tanto o ato de recepção quanto a participação uma vivência dos hábitos desse povo. Nos momentos importan-
em atividades dramáticas integradas à ação da peça. Em tais prá- tes , em que :decisões precisavam ser tomadas para a continua-
ticas, portanto, as animações teatrais não aconteciam antes ou ção da história, respeitando os costumes dessas comunidades , o
depois da peça, mas faziam parte do próprio espetáculo. grupo dos anciãos era sempre consultado em primeiro lugar, "pois
Como exemplo de espetáculo-animação, pode-se destacar o as pessoas idosas são consideradas as mais sábias e instruídas
trabalho realizado pelo grupo canadense Thé ãtre de la Mamaille . acerca das coisas da vida, conhecendo bem a natureza e os en-
Na década de 1980, os artistas da trupe viajaram para as regiões sinamentos de seus ancestrais" (Camirand et alii, 1984, p. 49);
geladas do Canadá, travando contato com o povo inuit,pàra mas todos os que participavam das decisões, eram sempre esti-
conhecer brincadeiras, histórias e costumes da população local. mulados a justificar as posições que estavam defendendo . Outra
Depois dessa vivência e das trocas de experiências, foi criado forma de participação acontecia quando Luckasi, o herói da tra-
um espetáculo com base em lendas da região, que foi posterior- ma , entrava numa região escura, sendo proposto, então, que os
mente apresentado no Qu ébec e em outras cidades canadenses. espectadores-participantes colocassem vendas nos olhos, assu-
EmL'Umiak (barco típico feito com pele de foca, e que deu nome mindo a posição do protagonista, e, de mãos dadas, empreendes-
à peça), os artistas queriam mergulhar os espectadores nos há- sem uma caminhada pelo palco durante a qual jogos sensoriais
bitos, costumes, ritos , mitos dessas comunidades isoladas nas lhes eram propostos (a sensação do vento, respingos de gotas
regiões polares. Os espectadores particípavam como persona- d'água, etc.) . No final da peça, no foy& do teatro, músicas e fotos
contemporâneas dos Inuit ilustravam o modo de vida dessa
" No Brasil, o encenador Ilo Krugll, por exemplo , realizou diversas expe- população.
riências nesse sentido.
60 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 61
Os efeitos das práticas de animação sobre os espectadores
OS PROCEDIMENTOS UTILIZADOS ALCANÇAVAM passaram a ser mais amplamente compreendidos a partir da in-
SEUS OBJETIVOS? vestigação realízada pelos sociólogos Reger Deldime e Jeanne
Havia dúvidas sobre os efeitos das animações teatrais , espe- Pígeon" que, no final dos anos 1980, publícararn uma pesquisa
cialmente pela dificuldade de obter um retorno a respeito da em que foram entrevistados diversos adultos que haviam assis-
eficácia dos procedimentos empregados, Artistas e educadores tido em períodos escolares, em finais dos anos 1960 e inícios
estavam divididos sobre o risco de as animações serem mera dos 1970, a espetáculos teatrais encenados pelo T.J.A. (Théãtre
perda de tempo, ou mesmo de funcionarem no sentido inverso , des Jeunes Années), instalado na cidade de Lião, França. As en -
enfraquecendo o desejo das crianças de irem ao teatro, ou ainda trevistas e encontros com esses espectadores, em que dinâmi-
se essas atividades de formação ' poderiam de fato tocar, fazer. c~s foram propostas para provocar a lembrança da.s peças que
refletir e auxiliar os espectadores iniciantes a compreenderem tinham sido vistas quando eram crianças, possibilitaram que se
melhor a arte teatral. constatasse que estavam mais fortemente presentes em sua me-
As incertezas acerca da eficácia dessas animações ficam bem mória aqueles espetáculos que , na época, haviam sido "anima-
evidentes no depoimento do diretor teatral português João Brítes: dos" e trabalhados com os alunos pelos professores ou pelos
próprios artistas, antes ou depois da representação .i
Catorze anos depois temos mais certezas sobre a influên- A Investigação indicou ainda, entre outras constatações, que
cia que essa prática exerceu sobre nós como artistas do as animações teatrais tinham eficácia marcadamente relevan-
que a permanência do contágio que exercemos tão tempo- te, quando aplicadas em torno dos espetáculos que possuíam
rariamente sobre os outros. O que 'terá ficado nas centenas uma linguagem considerada de difícil compreensão.
de crianças que entre 1974 e 1976 participaram das anima-
ções semanais que orientamos? E nos professores, animado- De maneira geral , a animaçãodesempenhou papel parti-
res culturais, assistentes sociais que freqüentaram os nossos cularmente positivo no caso dos espetáculos que apresen-
seminários? E, por último, que contribuições se terão fixado tavam problemas de legibilidade, contribuindo bastante para
nas gentes transmontanas que conhecemos em 1977? sua compreensão. Podemos citar o exemplo deBaladar !uma
das peças investigadas l, em que a diferença entre a lem-
Muito pouco podemos saber do que terá ficado nos ou- brança dos espectadores "n ão-an imados" e a dos espectado-
tros e contribuído para manter vivo e acutilante o seu sen- res "animados" é gigantesca (Deldime & Pígeon, 1988, p. 128).
tido crítico, a disponibilidade solidária, o gosto pela cria-
ção, pela comunicação, pelo associativismo cultural, que b Reger Deldime & Jeanne Pígeon, La mémoire du jeune spectateur (Paris!
Bruxelles: De Boeck Uníversíté/Edltíons Unlversítaíres, 1988).
foram e são os objetivos da nossa atividade no campo da 7 Nenhuma das peças investigadas propunha animações integradas ao
"expressão dramática" (Brites, 1989, p. 98) , espetáculo.
62 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 63
A pesquisa permite supor que as animações propostas em torno nas práticas de formação de espectadores, que passam a ser en-
de um espetáculo teatral auxiliem a capacitação dos espectado- quadradas de maneira diferente no cotidiano, dos grupos de tea-
res iniciantes, possibilitando uma compreensão mais aguda da tro , alterando o funcionamento das práticas pedagógicas que
encenação. Além disso, essas atividades criavam também inti- vinham sendo implementadas até esse período . As companhias
midade maior, ao aproximar os espectadores do universo da teatrais procuram adequar suas atividades aos sistemas de co-
obra , deixando a experiência artística mais fortemente marcada municação e ao mercado de consumo cultural, e vão, progressi-
em suas memórias e presente em suas recordações. vamente, estruturando seu funcionamento em torno de novas
O resultado dessa pesquisa, entr-etanto, não constituiu res- ocupações, tais como: relação com a mídia , que se torna espaço
posta definitiva sobre o assunto. Porém, além de fornecer um fundamental para a sobrevivência do teatro; contatos com em-
importante retorno acerca dos caminhos percorridos até aquele presas patrocinadoras e instituições governamentais financia-
momento, foi recebida com alívio, um consolo, especialmente doras das produções; preocupações com sua constituição legal
em países europeus, após tantos anos, mais de vinte (à época), como empresa (trâmites burocráticos, impostos, etc.); relação
da implementação intensiva de animações teatrais no trabalho com possíveis compradores; entre outros serviços. A criação e
de formação de espectadores. difusão de espetáculos passa a tomar longo tempo das empresas
teatrais, sobrando muito pouco para a implementação das prá-
T~ANSIÇÓES PARA UMA NOVA ORDEM ticas de formação, como acontecia anteriormente. As aplicações
A partir de meados dos anos 1980, essas práticas teatrais de de exercícios de animação nas escolas são consideradas, a par-
que vínhamos tratando ganham novo contexto global. O cres- tir de então, atividades pouco lucrativas , especialmente
cente ímpeto mercantil leva trupes a se constituírem como empre- asrealizadas pelos próprios artistas, que precisavam deslocar-se
sas e, desse modo, precisam aprender a cuidar da saúde finan- até as instituições. As companhias especializam-se em produzir
ceira de seus investimentos, mostrar resultados - financeiros, e ~ender espetáculos, deixando, pouco a pouco, de oferecer ani-
evidentemente. Mais do que nunca as companhias de teatro se mações teatrais, tanto periféricas quanto autônomas.
orientam para o lucro . E, assim, distantes dos ideais que susten- Se, nas décadas de 1960 e 1970, a formação de espectadores
tavam as atividades teatrais nos anos 1960 e 1970, longe do estava calcada numa vontade de subversão por meio de prece-
voluntarísrno revolucionário que movimentava os integrantes dos dimentos pontuais que buscavam transformações imediatas, a
grupos , os empreendimentos abandonam cada vez mais o cará- partir desse período, artistas e educadores almejam proposições
ter ideológico que animava as produções de anos anteriores . estruturais. As práticas esporádicas ~e animação implementadas
As transformações processadas em todos ps âmbitos da vida pelas trupes passam a ser criticadas por 's empre recomeçarem
econômica e social operam profundas modificações na relação do zero , sem deixar rastros e começam a ser substituídas por
do teatro com a sociedade contemporânea. Essa reestruturação projetos educacionais de longo alcance; o experirnentalismo é
do papel da arte teatral em nossas sociedades influi diretamente substituído pela organização de práticas pedagógicas. Artistas e
64 PRÁTICAS TEATRÁIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTIéAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 6S
educadores, movidos pelo intuito de realizar um trabalho conti- nhum tipo de apoio governamental, dependendo fundamental-
nuadode formação, em vez de procedimentos implementados mente da boa vontade de alguns professores e. artistas . Essas
de maneira dispersae irregular, querem estruturar projetos de iniciativas isoladas de formação, portanto, começam a ser subs-
iniciação de espectadores de longa duração, com objetivos e apli- tituídas por projetos que, englobando a participação de várias
cações pedagógicas bem-definidos. instituições mediadoras (imprensa, instituições culturais e edu-
Em alguns países, como França, Bélgica, Espanha, Suíça, Ca- cacionais, companhias de teatro, órgãos governamentais, em-
nadá, entre outros, os agentes culturais idealizadores dos proje- presas privadas, etc.), podem criar novos dispositivos para faci-
tos de formação de espectadores, especialmente os voltados às litar o acesso e melhorar a qualidade do encontro dós especta-
crianças e jovens, a partir dos anos 1980, conseguem organizar dores com a arte teatral. A partir de então, destaca-se a impor-
uma estrutura material e operacional que muito se distancia das tância de se conceber uma criteriosa políticacultural de acesso
práticas, ainda esporádicas, quando não inexistentes, imple- ao teatro, política esta que defina com clareza, primeiramente,
mentadas em países como o nosso. Na França, foram construídos prioridades educacionais e ações culturais a serem
teatros especialmente voltados para a infância e juventude que, implementadas, .buscando, posteriormente, meios próprios (re-
em parceria com escolas, desenvolvem atividades de formação cursos, parceiros institucionais, eto.) à efetivação de projetos.
bem-estruturadas, como, por exemplo, o T.J.A. (Théãtre des Para isso, estruturam-se medidas e procedimentos que contem-
Jeunes Années), em Lião,e o T.J.s. (Théâtre des Jeunes Spectateurs), plem tanto a ampliação da quantidade do público quanto a
em Montreuil. Na Bélgica, nos anos 1990, foi construído o Théâtre capacitação de espectadores.
la Montagne Magíque, em Bruxelas, espaço de mediação que pro- No decorrer dos anos 1990, a noção de animação teatral vai
move O encontro entre grupos teatrais e instituições escolares. sendo substituída, nas experiências pioneiras realizadas na Fran-
No Canadá, foi também inaugurado um hem-equipado espaço ça e na Bélgica; pelo conceito de mediação teatral, m~is abran-
de mediação denominado La Maison Théãtre, no Québec. gente e que engloba, também, as próprias atividades de animação
A profissionalização das companhias e dos meios de produ- que eram aplicadas em anos anteriores. As práticas de mediação
ção, por sua vez, cria condições, especialmente nos países cita- teatral compreendem, assim, não somente procedimentos artís-
dos, para a organização duradoura de projetos de formação, subs- tlcos e pedagógicos propostos diretamente aos espectadores
tituindo as iniciativas sazonais por uma educação permanente Iníclantes, mas abordam a formação de espectadores como uma
de espectadores. A continuidade dos procedimentos e o acom- questão que abrange as diversas etapas do evento teatral , desde
panhamento dos espectadores em formação favorecem o me- a concepção artística até sua recepção pelo público. É conside-
lhor desenvolvimento de projetos, que são constantemente ade- rado procedimento de mediação toda e qualquer ação que se
quados à especificidade e necessidade de cada público. interponha, situando-se no espaço existente entre o palco e a
Em geral, as práticas de animação teatral se sustentavam, em platéia, buscando possibilitar ou qualificar a relação do especta-
anos anteriores, por iniciativas próprias, espontâneas, sem ne- dor com a obra teatral, tais como: divulgação (ocupação de es-
66 PRATICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 67
paços na mídia, propagandas, resenhas, críticas); difusão e pro- ênoía, porque, quando o encontro com o teatro é encarado como
moção (vendas, festivais, concursos) ; produção (leis de incenti- um dever, uma obrigação escolar, essa aproximação pode tornar-
vo , apoios, patrocínios); atividades pedagógicas de formação ; se um momento profundamente desinteressante. É fundamental
entre tantas outras. que a relação do espectador em formação COm o teatro não seja a
. No entanto, apesar de a participação conjunta de diversas insti- do aluno que cumpre uma tarefa imposta, mas a do sujeito que
tuições, permitindo melhor estruturação de projetos , ser, desde dialoga livremente com a obra , elabora suas interrogações e formu-
então, considerada fundamental, a instítucíorialização das ativi- la suas respostas. Isso faz que os mediadores culturais estejam cada
dades corre também o risco de esolerosã-los, seja pela excessiva vez mais preocupados em tomar (ou simplesmente manter) a ida
burocratização e desencontros das relações ins-titucionais , seja ao teatro uma atividade que seja, antes de tudo, prazerosa.
pela proposição repetida, irrefletida de procedimentos de for-
mação . Em outras palavras , mesmo que se viabilize a Não por vontade de inovar a qualquer preço, mas por-
implementação de grandiosos projetos, sem a vontade consciente que uma necessidade imediata se impunha: encontrar uma
dos agentes culturais , sem uma prática viva e auto-reflexiva, sem solução para o fracasso cada vez mais evidente dos espetá-
anima , sem a motivação e o desejo de transformação que trans- culos apresentados diante de públicos escolares "ca tivos ",
bordavam nas iniciativas vistas em épocas anteriores, nada feito . pouco preparados e pouco motivados . Essas matínês clás-
As relações-do teatro com a escola sofrem também profundas sicas, organizadas em condições pouco favoráveis para uma
alterações nesse período. Os projetos mais recentes não deixam real emoção artística, que redundavam, em numerosos ca-
de priorizar, entretanto , a instituição escolar como agente fun- sos, em um resultado diametralmente oposto ao procura-
damental na efetivação de procedimentos de formação , ressal- . do e poderiam para sempre causar aversão ao teatro em
tando ainda O' enriquecimento proporcionado às crianças e jo- alguns jovens (Lansman, 1998, p. lOS).
vens quando a escola abre suas portas e promove o diálogo dos
alunos com a produção teatral contemporânea, permitindo que Por esse motivo, alguns autores combatem a hegemonia abso-
desenvolvam um outro modo de apreensão da arte e do mundo. luta da escola como detentora do papel de iniciação dos espec-
Pesquisas demonstram que a maior parte das crianças , na tadores , reivindicando maior amplitude às ações educativas , de
França, especialmente as de baixa renda, travam o primeiro con- maneira que sê incremente a possibilidade de crianças e jovens
tato com o teatro na escola," o que torna relevante a atuação de todas as classes sociais terem acesso direto ao teatro , e, até
dessa instituição na mediação desse importante contato, especi- mesmo, com o direito de escolherem por si os espetáculos a que
almente sua responsabilidade acerca da qualidade dessa experí-
QNa pesquisa realizada por Deldime e Pígeon sobre a memória do espec-
HNão temos conhecimento de pesquisa sobre o assunto em nosso país, mas tador infanto-juvenil, referida anteriormente, um dos ternas recorrentes
pode-se supor que também no Brasil a escola seja a principal med iadora é a manifesta Insatisfação dos alunos com a obrigatoriedade de assistirem
do encontro das crianças e jovens com o teatro. a espetãoulos escolhidos pela escola.
68 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 69
irão assístír;? Argumentando ainda que, se as apresentações es- responsabilidade pela mediação de acesso à linguagem teatral,
colares têm o mérito de fazer os alunos descobrirem o teatro, as pela preparação dos alunos, pela proposição de exercícios de
crianças que só freqüentam o teatro em horário escolar associam, dinamização da recepção implementados antes ou depois dos
inevitavelmente, o tempo da representação ao tempo escolar, o espetáculos. Ao mesmo tempo, porém, observa-se a grande difi-
que acaba por oferecer uma imagem redutora da arte teatral. culdade docente em conduzir essas práticas, ocasionada pela
enorme carência em formação artística desses educadores. Por-
Projetos contemporâneos de formação de espectadores tanto, torna-se fundamental a organização de projetos perma-
nentes de formação em teatro para educadores. Projetos que,
FORMAR OS FORMADORES além de instrumentalizá-los para a leitura de espetáculos, moti-
Em todos os lados, é possível ouvir alguém gritando que pre- vem-nos também a tomar iniciativas, correr riscos, inventar, que-
cisamos de professores apaixonados por arte, doidos por teatro, brar a rotina escolar; que possam reunir escolas e grupos de
loucos pelo prazer díalõgíco, imaginativo, estético, pois a exis- teatro, aproximem artistas e professores, tirando-os do abando-
tência de um relacionamentO positivo das crianças e jovens com no das iniciativas solitárias que podem facilmente tornar-se
a arte teatral depende, em larga medida, da formação desses desestimulantes.
educadores; além disso, um professor que não se interessa por A formação dos professores de teatro tem também o intuito
teatro não consegue despertar tal interesse. Contudo, definiti- de multiplicar o número de mediadores capacitados, de modo
vamente, professores não se tornam apaixonados por teatro por que, em vez de artistas e educadores especializados proporem
.
meio do convencímento: " . teatro " , "vá ao tea t""
veja ro , voe .pre-
ê atividades de formação diretamente aos alunos, elas passem a
cisa gostar de teatro, professor, porque teatro faz bem, teatro é ser oferecidas aos professores, para que estes, então, passem
cultura", etc. Como afirmava Walter Benjamin, "convencer é sua experiência e conhecimento adquiridos. Cada professor for-
infrutífero". 1t preciso educar, formar os formadores, propiciar mado multíplloaria a quantidade e a qualidade dessas práticas.
experiência para se criar gosto por essa experiência, propor pro- Como mediador fundamental no processo de iniciação de
cessos apaixonantes para formar apaixonados. espectadores, pode-se esperar que um educador sensibiliza-
Sendo a escola um espaço privilegiado para projetos de for- do para a arte teatral: 1) tenha interesse em conduzir seus alu-
mação de espectadores, não se pode tratar a iniciação de alunos nos a espetáculos teatrais; 2) saiba escolher bem esses espetá-
sem abordar a iniciação dos professores. Ao apontar o direito culos;3) trate crianças e jovens como espectadores plenamente
dos alunos à criação e expressão, é preciso pensar também no capazes; 4) compartilhe as próprias emoções e reflexões acerca
direito dos professores, direitO de acesso ao teatro, à possibilida- da peça, conservando, entretanto, a liberdade interpretativa dos
de de ver e de praticar e à capacitação para ler os espetáculos. alunos-espectadores; 5) auxilie-os na decodificação dos signos
A diminuição das animações teatrais aplicadas pelos artistas cênicos, fazendo ver o que pode escapar a um olhar com pouco
nas escolas deixa prioritariamente nas mãos dos professores a treino; 6) promova jogos e atividades dramáticas, relacionadas
70 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES ~RÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 71
ou não Com o espetáculo visto , que lhes favoreçam a apreensão No Brasil, o papel desempenhado pelo professor de teatro
da linguagem' teatral , fazendo-os perceber também o valor da- nas escolas - o que não existe no sistema educacional de vários
quilo que eles próprios criam e que por vezes parece escapar- outros países -, aliado à formação em teatro de educadores de
lhes ; 7) esteja capacitado para trabalhar a partir de fichas técnicas todos os níveis escolares, pode ser bastante positivo para o de-
e pedagógicas , ou demais materiais , possivelmente oferecidos pe- senvolvimento de projetos de formação de espectadores. A pre-
los grupos de teatro para dinamizar a recepção dos espetáculos. sença de um professor formado em teatro , que vai conduzir as
Algumas instituições francesas, como o Théâtre des Jeunes práticas de expressão e leitura, estreitando laços afetivos e com-
Spectateurs, de Montreuil, em relevante procedimento de media- preensivos com essa arte, pode ser de grande valia. Porém,
ção , convidam professores de diversas instituições escolares para torna-se bastante difícil o trabalho desse professor numa escola
que assistam previamente ao espetáculo que serãvísto por seus em que os demais colegas, assim como diretores e coordenado-
alunos. Nesse encontro , travam-se debates com os artistas, que res (que geralmente decidem pela compra de espetáculos ou par-
explicitam as proposições estéticas da encenação, e promovem- cerias com instituições culturais) não estejam sensibilizados para
se jogos de expressão dramática, com o objetivo de intensificar a arte teatral e não consigam estabelecer claros objetivos peda-
a apreensão da peça, além de motivar e instrumentalizar os pro- gógicos e critérios de qualidade artística em seus projetos. É
fessores para que possam, posteriormente, preparar e estimular necessário, portanto, que todos os educadores de uma escola
seus alunos, criando o desejo pela experiência artística que irão estejam sensibilizados para a experiência artística, para que o
vivenciar. acesso dos alunos à linguagem teatral não seja uma luta isolada
A integração entre professores de diferentes escolas, que en- do professor de teatro no interior da própria instituição escolar,
frentam des afios semelhantes com seus alunos, possibilita um como um dever que competiria somente a esse professor. Ao
rico intercâmbio de experiências e informações. Nessas ativida- contrário, é desejável que os projetos de formação de espectadores,
des , podem estar presentes tanto professores que: já possuem bem como o de.freq üentação de museus, cinemas, e incentivo à
larga experiência, como outros que pouquíssimo contato tive- leitura não sejam iniciativas individuais, heróicas, desprovidas
ram com a arte teatral. de apoio institucional.
Em nossas instituições, tornam-se fundamentais os seguintes
o conhecimento do teatro e sua prática variam de acor- requisitos : a presença do professor de teatro e a inclusão da
do com os participantes: alguns descobrem pela primeira disciplina no currículo não sejam para "escolarizar" o teatro ,
vez este domínio artístico, enquanto outros trazem um per- aprisionando este àquele; as aulas de teatro nas escolas sejam
curso já rico em experiências, mas todos estão abertos para um espaço de respiro, de diversão sim' (mas' não necessariamen-
um objetivo comum , que é o de colocar em ação uma es- te de recreação); os espaços oferecidos para essas aulas e a quan-
tratégia original para melhor auxiliar a criança em seu acesso tidade de alunos por sala ofereçam mínimas condições de traba-
à arte do espetáculo (Bertin & Giros, 1997, p. 87). lho aos educadores; os professores de teatro não sejam somente
72 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTIC!>S TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 73

transmissores de conteúdos ou meros repetidores de jogos co- A prática teatral, porém, não se resume à montagem de espe-
nhecidos, mas principàlmente "despertadores" ou propositores táculos. O exercício do teatro pode também ocorrer por meio
de efetivas experiências artísticas; as aulas de teatro sejam uma de jogos de improvisação dramática, em que o participante brinca
porta aberta, tanto para o teatro contemporâneo como para o para aprender o prazer do teatro como elemento lúdico e co-
mundo lá fora, um espaço imaginativo e reflexivo, em que se pen- nhecer os mecanismos que o constituem. Alguns projetos de for- .
sem e inventem novas relações sociais, dentro e fora da escola. mação, nos diferentes países citados há pouco, procuram, assim,
reunir as idas ao teatro com a prática de jogos lmprovísacíonaís. 10 A
VER E PRATICAR: UMA VIA DE MÃO DUPLA integração das atividades propostas nas salas de aula com a ida
A prática continuada do teatro por crianças e jovens, aliada à . aos espetáculos teatrais possibilita à criança e ao ad;lescente o
freqüentação aos espetáculos, cria uma via de mão de dupla que desenvolvimento da capacidade expressiva e maior domínio da lin-
favorece a compreensão do fenômeno' teatral. O exercício dra- guagem teatral, ampliando sua compreensão do jogo de cena e
mático sensibiliza para uma recepção mais atenta, crítica, e aberta aprofundando sua capacidade de entendimento da obra.
a concepções cênicas novas e divergentes, ao mesmo tempo que Nos jogos de ímprovlsação dramática, o participante pode
a ida ao teatro, o diálogo com as obras contemporâneas, possí- exercer todas, ou. quase todas, as funções artísticas da criação
bilita melhor aproveitamento dessas atividades em sala de aula. teatral, podendo desempenhar, na criação de suas pr6prias ce-
A prática teatral pode ser incentivada tanto por meio de jogos nas, ao mesmo tempo, a função de dramaturgo, ator, diretor,
de expressão dramática propostos nas aulas, como também pela cenógrafo, etc. A exploração das infindáveis possibilidades de
montagem de espetáculos com alunos que, nesse caso, podem construção de uma cena favorece o aprendizado da linguagem,
participar de todo o processo de construção de uma peça, ga- assim como a acuidade da observação acerca das particularidades
nhando intimidade com os meandros dá arte teatral. de cada encenação, chamando a atenção do aluno-espectador
Entretanto, estar em cena ou transitar por ela, ao participar para as opções estéticas dos diversos artistas da criação teatral.
de uma montagem, por si só, não oferece instrumentos ao aluno; O jogador exerce também nesses exercícios dramáticos a fun-
estratégias específicas precisam ser postas em ação para que essa ção de espectador, ao observar as improvisações dos outros gru-
vivência proporcione uma apreensão que, de fato, contribua para pos enquanto espera para apresentar a sua, Ou ap6s tê-la apresen-
sua formação como espectador. O processo de construção pre- tado. Embora o objetivo, em geral, dos participantes seja "fazer
cisa carregar uma tensão e um interesse ínvestígatívo que susten- teatro", ver os outros jogadores em cena também faz parte do jogo,
tem essa prática, possibilitando uma rica experiência artística e
efetiva apreensão da linguagem. Evita-se assim, que a experiên- 10 Em nosso pais, três principais vertentes de jogos improvisacionais vêm
sendo aplicadas: o jogo dramático, o jogo teatral e o drama. Paramelhor
cia teatral dos alunos tenha um fim em si mesma, resumida a
conhecimento destas práticas, que têm tradições francesa, norte-amerí-
uma cópia estereotipada do teatro profissional, tornada não mais cana e inglesa, respectivamente, pode-se consultar as seguintes obras:
que um incentivo ao cabotinismo de pais, alunos e professores. sobre jogo dramático ver Jean-Píerre Ryngaert, Jouer; représenter
i ~ .

74 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 7S


Em um ateliê, todo mundo não está simultaneamente de outra maneira por outro grupo . A aquisição da linguagem te-
em atividade , e a natureza e função dos olhares lançados atral permite seu questionamento . .
sobre aqueles que jogam determinam as práticas. Nós joga- A atenção e o pensamento do jogador-espectador acerca das
mos para nós mesmos diante dos outros, e os retornos in- improvisações dos jogadores-atores dina.mizam sua relação com
cessantes dos olhares caracterizam as atividades. Eu não a cena teatral, armam seu olhar, o capacitam a empreender uma
me referia, portanto, à representação teatral tal qual a com- atitude interpretativa, desempenhando o papel que lhe cabe no
preendemos tradicionalmente, que estabelece estatutos di- jogo naquele momento, estando apto a realizar seu lance corno
ferentes para atores e espectadores. No círculo da formação, espectador. O jogador-espectador compreende o jogo da cena e
considero indispensável que essas funções sejam, vez a vez, sua função nele, observa a resposta criativa dos demais às pro-
ocupadas por todos os participantes (RYD:~aert, 1985, p. 13). postas levantadas pelo professor, ao mesmo tempo que as Com-
para com sua criação e atuação. O participante aprende, assim,
Os exercícios de improvisação resultam em uma pluralidade a gostar de ser espectador e percebe a importância fundamental
e diversidade de respostas , os grupos apresentam, por vezes, de sua atenção ao outro que está em cena, a importância de sua
situações semelhantes e , ao mesmo tempo, marcadamente dife- participação crítico-criativa. Ao compreender o jogo de cena e
rentes. A observação da realização cênica dos outros partici- suas regras, o aluno adquire consciência de que , se o espectador
pantes é de suma importância para o aprimoramento do olhar; não faz seu papel, não há jogo.
o jogador, que elabora a própria realização para a proposta dada Permitindo a exploração e a descoberta do processo dramáti-
pelo coordenador da atividade, enriquece-se "ao deparar com co, os jogos ímprovisaclonaís não impõem urna estética e não
realizações completamente diferentes da sua, surpreende-se com reproduzem, necessariamente, as formas do teatro tradicional,
a infinidade de possibilidades de criação cênica para a mesma encarregando-se, ao contrário, de interrogá-las, subvertê-las,
proposta. Após os exercícios, geralmente, promovem-se deba- exagerá-las, às vezes até mesmo negá-las , propondo, assim, um
tes entre os participantes sobre as apresentações dos grupos , questlonamento permanente dos espetáculos contemporâneos.
em que sugestões e comentários são feitos com 6 intuito de ana- Os jogos de improvisação, em suas diferentes vertentes, permi-
lisar as cenas, visando propiciar aos jogadores, entre outras aqui- tem u!ll conhecimento geral do fenômeno teatral em sua riqueza
sições, a consciência de que , na criação teatral, não existe ver- e liberdade expressiva, que fornecem múltiplas pistas de inves-
dade cênica absoluta; se uma cena foi assim criada, assim apre- tigações cênicas. Mais do que espectadores, os jogos de expres-
sentada pelos artistas, poderia, no entanto , ter sido elaborada são dramática, talvez, formem apaixonados por teatro.
Ao pensar a formação de espectadores, entretanto, não se pode
(Paris. CEDIC, 1985); sobre jogos teatrais Viola Spolin: Improoisaçõ» para deixar de priorizar a freqüentação a espetáculos profissionais,
o teatro (São Paulo: Perspectiva, 1992 ); sobre drama ver Beatriz Cabral associando a prática teatral nas escolas à id~ aos teatros. E ir ao
(org.) . Ensino do teatro: experiéndas inierculturais (Florianópolis: Imprensa
Universitária, 1999). " teatro não é uma atitude evidente , criar o gosto por essa arte
76 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 77
tampouco, não por falta de atrativos e interesses intrínsecos à por vezes, nem mesmo aonde estão indo , ou a que peça irão
experiência, mas pelas dificuldades encontradas pelo especta- assistir; as saídas, assim, não ultrapassam a mera recreação ,
dor ínícíante para estabelecer os primeiros contatos. O profes- perdendo-se de vist.a o objeto principal do passeio: o teatro.
sor-mediador vai justamente criar pistas para aproximar o alu-
no do teatro, auxiliá-lo a travar conversas iniciais, propor ativi- Por ocasião das representações escolares , lamentamos
dades que o tornem apto a ler uma encenação, que "é um pouco com freqüência o fato das crianças não disporem das míni-
corno uma página e;crÚa no espaço, um conjunto de signos com- mas informações contidas no programa e indispensáveis a
plexos para decifrar e analisar" (Besnehard, 1996, p. 8), possibi- todos os espectadores: saber o título e a natureza do espe-
litando que o aluno conquiste o prazer do diálogo possível e táculo, o nome do autor e do diretor; por vezes , elas ígno-
compreenda a linguagem que vigora neste universo particular. ram até mesmo o fato de estarem indo ao teatro e acham
que estão no cinema (Bertin & Giros, 1997, p. 47).
Uma imagem dramática, por mais sóbria que seja, pos-
sui uma grande complexidade: o gestual dos atores, os figu- Aiguns educadores acreditam que, na preparação dos alunos
rinos, cenários, acessórios , luzes, ao que se juntam o som, para ir ao teatro, devem ser incluídas também algumas reco-
as máscaras, os barulhos, vozes, palavras freqüentemente; mendações concernentes a como se comportar em uma sala de
cada elemento carregando um sentido em si, aumentado e espetáculos, fazendo o aluno ver que assistir a uma peça teatral
modificado pelas inter-relações dos diversos elementos; o exige um comportamento cívico e social, uma atitude de respeito
todo superposto propõe, a cada momento da representa- ao trabalho dos artistas e aos demais espectadores. Entretanto,
ção, um significado a este contexto espetacular (Fayard, essas recomendações, se exageradas, podem acabar estabele-
apud Deldime, 1987 , p. 171). cendo algumas regras de conduta, ou normas de comportamen-
to do "bom espectador" que terminam por tolher uma relação
Para abriras portas do teatro, adentrar nesse universo pró- de livre descoberta das crianças e adolescentes com o teatro , ao
prio, aprendendo a ler essas páginas cravadas no espaço, é bas- sugerir determinadas atitudes, como, por exemplo: que os aplau-
tante positivo o auxílio de intermediário, que pode ser, além de sos sejam dados somente ao final do espetáculo e com come-
um professor, um amigo , um familiar, um artista. E essas inter- dimento , sem gritos ou assobios ; ou que não haja manifestações
venções de mediação, que visam dinamizar a apreensão de um . sonoras durante a peça; nem reações exageradas se os atores
espetáculo, podem tomar formas bastante diversas. Aprópria aparecerem nus ou com pouca roupa; entre outras. Alguns artis-
maneira de anunciar um espetáculo, de convidar alunos (ou fi- tas , em espetáculos oferecidos às escolas , criticam o fato de
lhos) , de criar o desejo do que se v àí encontrar, pode ser o pri- que , muitas vezes durante a representação , ao chamar a atenção
meiro detonador favorável a uma recepção de qualidade. As crian- de seus alunos para que fiquem atentos e em silêncio, os pro fes-
ças, quando vão com os pais ou a escola ao teatro, não sabem, sores acabam atrapalhando mais o desenrolar do espetáculo
78 PR ÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 79

do que as crianças em suas manifestações espontâneas. Não se- ta utiliza para abordá-los? Eu já vi algo parecido? De que outras
ria melhor-deixar, por vezes , que os pr6prios artistas estejam no maneiras essa idéia poderia ser encenada? Corno eu faria? De
comando da situação? que modo isso se relaciona com a minha vida?
Assim, como é importante preparar os alunos para ir ao tea- Nem sempre é óbvio definir quais são as melhores atividades
tro , a recíproca é verdadeira, o teatro também precisa estar pre- a serem aplicadas para qualificar a recepção de um espetáculo,
parado para receber as escolas; as estratégias traçadas pelas e até mesmo quando se deve ou não utilizar esses recursos de
trupes ou responsáveis pela programação cultural para recebe- mediação. Que critérios, afinal , podem ser estabelecidos para
rem os espectadores no teatro são de fundamental importância auxiliar a decisão do professor de aplicar ou não exercícios de
para o bom desdobramento do evento artístico. Uma das res- desdobramento? Deve-se utilizar a prática de animação em to-
ponsabilidades dos organizadores do evento que pode ser desta- dos os espetáculos? É melhor propor atividades antes ou depois
cada é a maneira de acolher os grupos escolares, deixando-os da peça? Os. desdobramentos sistemáticos dos espetáculos não
bem instalados enquanto aguardam o início da sessão. Outra inici- correm o risco de orlar efeitos perversos, diminuindo o prazer
ativa, que alguns mediadores entendem ser proveitosa para intro- espontâneo dos espectadores iniciantes? Se mal-aplicadas, es-
duzir o espetáculo, estabelecendo uma transição do burburinho da sas práticas não 'c orrem o risco de prestar um desservíço ao
chegada para o início da representação, é que algumas palavras de teatro? Como definir opções e estratégias? Que meios , jogos e
apresen tação .da peça que será vista sejam proferidas por um práticas de mediação propor? De novo (infelizmente, ou feliz-
artista ou educador instantes antes do início da encenação, quan- mente!), não há fórmulas e nem procedimentos milagrosos , é
do os alunos já estão acomodados na sala de espetáculos, cen- preciso capacitar e manter a autonomia dos professores na ava-
trando a atenção dos espectadores para o que verão. liação e definição dos exercícios, não há como padronizar as
atividades que têm de estar em consonância com cada espetácu-
PROCEDIMENTOS PEDAGÓGICOS DE MEDIAÇÃO TEATRAL
lo, os objetivos dos educadores e o projeto de formação organi-
Na preparação dos alunos para a experiência artística, ativi- zado e desenvolvido pela instituição.
dades teatrais propostas pelos professores, seguindo a mesma Dentre os muitos procedimentos pedagógicos de mediação que
linha das práticas desenvolvidas na década de 1970 , continuam vêm sendo postos em prática, especialmente em países euro-
atualmente sendo consideradas, se bem-aplicadas, um valioso peus - onde.normalmente, os custos dos projetos (ingressos, tran-
instrumento de mediação . As atividades pedagógicas de media- sportes, eto.) são subvencionados por órgãos públicos - podemos
destacar o projeto francês denominado Journée au Théâtre que ,
ção teatral, como vimos, podem estimular o aluno-espectador a
como o próprio nome diz, convida o:aluno a passar o dia no
ret1etir acerca das questões contemporâneas que o espetáculo
teatro. Antes (ou depois) de assistir à representação de uma peça,
aborda, auxiliando-o a criar seu percurso no diálogo com a obra,
o espectador vai visitar o espaço teatral, conhecer suas depen-
formular suas perguntas para a encenação, tais como: De que
dências, o camarim, a cabine de operação dê luz e som, entre
problemas tratá esse espetáculo? Que símbolos e signos o artis-
80 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO 'DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇ ÃO DE ESPECTADORES 81
outros ambientes, além de observar demonstrações e receber utilizando um teatro munido dos aparatos técnicos necessários
explicações sobre a utilização e funcionamento dos mecanis- e com auxílio de profissionais do espetáculo , apresentarem as
mos e. aparatos técnicos de uma sala de espetáculos. A atividade cenas criadas pelos alunos das diferentes escolas que participa-
tem o objetivo de despertar o olhar do aluno-espectador para ram do projeto.
curiosidades e particularidades da vida teatral, promovendo um Atualmente, o Thé âtre des Jeunes Speotateurs, de Montreuil ,
encontro inicial com instrumentos utilizados em cena e maior destaca em seu trabalho de formação de espectadores a impor-
intimidade com o trabalho exercido pelos artistas, funcio-nários tânc ía de integrar os pais de alunos nos projetos, aproximando-
da administração e técnicos do espetáculo. O projeto propõe, assim ) os do processo de aprendizagem. Em parceria com companhias
que crianças e jovens descortinem esse universo atípico para eles, teatrais e instituições escolares, o T.J.S. promove eventos cultu-
se comparado com a televisão ou o cinema. A idéia é promover rais (que não são caracterizados como atividades escolares), à
uma espécie de ritual de passagem, criar um percurso de inicia- noite ou nos finais de semana, em que as famílias dos alunos são
ção que apresente os mistérios do teatro) que revele todos os convidadas, juntamente com os professores daquela escola, a
segredos dos bastidores. Após terem conhecido o teatro pelo assistirem a apresentação pública de uma determinada peça; os
lado do avesso, os refletores do palco são acesos e os alunos são 'pais são, assim, convocados a participar ativamente da forma-
convidados a tomar a cena) participando de jogos de expressão ção artística de seus filhos. A aprovação, o apoio e o incentivo
dramática inspirados naqueleespetáculo, que foi ou será visto. do meio familiar são importantes para que a criança integre o
O Théâtre la Montagne Magíque, 11 espaço belga voltado para a teatro como rico e prazeroso hábito cultural. Embora o profes-
formação de espectadores, em um de seus projetos de media- sor seja um mediador privilegiado, está claro que ele não deve
ção, intitulado classes artistiques d'initiatioti théãtrale, convida ser o único a assumir esse papel. Essa iniciativa possibilita, ain-
professores de diferentes escolas, após terem levado seus alunos da, que muitos adultos que nunca foram ao teatro travem um
para assistirem a uma peça de teatro de sombras, por exemplo , primeiro contato com essapràtioa artística.
a participarem de oficinas em que aprendem com os artistas Outra estratégia de mediação que deve ser observada é o pro-
daquele espetáculo esta técnica teatral específica. Posteriormen- jeto francês conhecido por Leoer des Rideaux (levantar as corti-
te, esses professores transferem o aprendizado aos seus alunos nas), em que várias salas, em um mesmo dia, em sessões de apre-
e cada ' classe desenvolve, durante um período determinado, a sentação pública, abrem as portas para os alunos das escolas ou
criação de suas próprias peças com a técnica aplicada. Em um un iversidades, cedendo o palco para que os próprios estudantes
dia previamente combinado, todas as classes se encontram para, apresentem seus trabalhos , com duração de 5 a 10 minutos , não
necessariamente uma cena teatral , mas que seja um "eco" , uma
11 Este espaço teatral foi criado e é coordenado pelos socíõlogos do teatro
"ressonância" do espetáculo que será visto em seguida. Muitas
Reger Deldime e Jeanne Pígeon que, ap6s mais de vinte anos de pesquisas
de recepção teatral e formação de espectadores, resolveram pôr em práti- vezes, nesse dia, é lida uma "carta aos pais ", escríta por artista
cas as suas conclusões. : de renome, enfocando a importância da formação teatral em

_,i
82 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 83
todas as suas dimensões. Em 1998 , 176 teatros participaram do
Há sempre o que inventar no que diz respeito às práticas que
projeto, que mantém um tom festivo e espetacular e visa sensi-
bus~am a especialização de espectadores, e é até mes-mo desejá-
bilizar pais , professores, artistas, profissionais da mídia, etc .
vel que assim seja, pois projetos aplicados, e que funcionam muito
Asocialização do espectador iniciante, aliada ao conhecimento
bem em um país (ou região), não funcionarão necessariamente
técnico do teatro e a doses de criação artística, são ingredientes
em outro, e mesmo procedimentos pedagógicos que possibili-
presentes em diferentes projetos de formação, cujo objetivo é,
tam excelente resultado na apreensão de uma determinada peça ,
além de instaurar o hábito , proporcionar ao espectador a apro-
podem oferecer respostas absolutamente decepcíonantes quan-
priação do fenômeno teatral e o desenvolvimento de sua po-
do aplicados em outro texto, ou até em diferente contexto.
tencialidade criativa. No entanto, diversas são as possibilidades
de incentivar e facilitar o acesso ao teatro, assim como variados Espectador ínícíante ou espectador "café-com-leíte"?
são os procedimentos que podem ser aplicados para proporcio-
As lutas para a modificação do estatuto da criança na socie-
nar a apreensão das técnicas teatrais e que estimulam a capaci-
dade estão estreitamente ligadas aos combates travados pelos
dade inventiva do espectador iniciante. As práticas de forma-
direitos de parcelas desprivilegiadas da sociedade. A primeira
ção , portanto. jpodern tomar inúmeras direções , O que torna
tomada de consciência coletiva, no que diz respeito à situação
fundamental a necessidade de se definir um eixo ao projeto
das crianças, ocorreu na época da Revolução Industrial, em fins
implementado e objetivos claros para intervenções formadoras. do século XIX, tendo por base uma visão em princípio econômí-
Para isso, é preciso estabelecer prioridades, escapando da pre-
ca. Uma batalha que se iniciava, à época; contra a exploração da
tensão de formular um programa que cubra, ao mesmo tempo ,
mão-de-obra infantil e vinculava a luta pela emancipação da
todos os-aspectos do teatro , o que pode resultar numa série de
criança com aquela implementada pelo proletariado por melho-
experiências incompletas e desencontradas. Tudo é possível, des-
res condições de trabalho e vida. A partir desse período, em
de que prioridades e os objetivos sejam estabelecidos, cumpri-
consonância com o crescente debate acerca do lugar estabeleci-
dos e avaliados, para que um novo patamar possa ser alcançado. do para a criança em nossas sociedades, a construção de espetá-
Afinal, quais os objetivos gerais e específicos do projeto de culos teatrais, bem como de obras de arte em geral , notadamente
formação? Qual o ângulo de ataque escolhido? Aprender as re-
obras literárias, destinadas ao público infantil, intensifica-se pou-
gras , aplicando jogos improvisacionais? Experimentar a monta-
co a pouco. Ai-informações que nos chegam das peças ofereci-
gem de um espetáculo? Aprofundar o conhecimento técnico do _
das ao público infantil nessa época, contudo, dão notícias de
maquinário teatral? Formar professores? Convidar artistas para
uma produção dotada de qualidade artística duvidosa, apoiada
organizarem oficinas nas escolas? Desenvolver a prática de ator?
em uma linguagem pobre e éxcessivamente 'açucarada. A produ-
Conhecer os meandros da produção? Explorar recursos de en-
ção teatral direcionada ao espectador infantil começa a ganhar
cenação? Que aspectos do fenômeno teatral serão trabalhados
COntornos mais definidos, aprimoramento da linguagem e de pes-
no primeiro momento? Quais serão os próximos passos> .
quisa estética, no início do século )LX, especialmente em países
84 PRATICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 85
europeus, e, desde então, vem desenvolvendo-se continuamen- criança", ou -melhor, na necessidade de agradar aos adultos, aos
te por todo o mundo. : responsáveis, em suas diferentes instâncias, de satisfazer as ex-
- ' Por volta de 1970, o então chamado "teatro para crianças" pectativas de quem possui, no fim das contas , o poder de com-
' - gánha força jamais vista. A prática teatral dirigida ao público pra (responsáveis eulruraís, professores , pais ) ou o poder de
infantil desenvolve-se intensamente nos mais diversos países; um determinar o bom desdobramento de uma produção (críticos
movimento que estava calcado, como vimos, na urgência de re- de jornais e revistas, jurados de prêmios , etc.). Tudo isso acaba
alizar produtos artísticos para espectadores privados de acesso por definir um padrão estético para o dito "teatro infantil", le-
aos bens culturais. vando os produtores a não se contraporem ao conceito de infân-
A partir dos anos 1980, á quantidade de espetáculos teatrais cia estabelecido, construindo espetáculos que não incomodem
oferecidos às crianças começa a ser contraposta a um deoréscí- ou choquem, adequando seus trabalhos ao consenso estético
mo em sua qualidade. A discussão acerca da qualidade do teatro em vigor, que determina o que é "bom para a criança".
dirigido ao público infantil passou a ser preponderante, não bas- Escrever e encenar espetáculos para o público infantil supõe,
tava mais montar peças para crianças e jovens, era preciso, en· então,' que a negociação com os representantes desse mercado
tão, oferecer a esse público bons espetáculos. Esse debate se se faça implicitamente, e as margens dessa negociação são es-
prolonga até os dias atuais, neles vigorando, entretanto, uma treitas, situando-s.e entre o "bom gosto" , uma certa idéia positi-
produção de baixa qualidade. va do mundo , e umdidatismo cada vez mais sutil. Essas condi-
ções são pouco desejáveis para a criação artística, desviando o
Conhecendo bem a evolução do teatro infanto-juvenil, teatro aberto a crianças do que deveria ser seu principal objeti-
n6s todos sabemos que algumas trupes desenvolvem proje- vo: constituir-se, antes de tudo , como teatro , ponto. Um teatro
tos fabulosos, tendo uma intransigência extrema acerca da em que a exigência seja fundamentalmente artística, com tudo o
qualidade de suas produções , mas a proliferação de espetá- que a arte pode 'oferecer de incômodo e desestruturador. É de-
culos medíocres s- e que se -vendem muito bem nas escolas , sejável, portanto, que os produtores culturais lutem pela liber-
apreços baratos - contribui para manter na opinião públi - dade de conceber espetáculos dotados da capacidade, inerente ,
ca a imagem tradicional, um pouco débil, que decididamen- à obra de arte, de abalar as certezas e costumes dos espectado-
te está colada à pele do teatro infanto-juvenil. O fenômeno res (tanto crianças, quanto adultos) quanto a teatro ou vivência
existe também na França, no Québec , e um pouco por todos cultural. A busca de uma criação adaptada a determinada com-
os lugares, eu creio (Deldime, 1990a, p. 69). preensão, de um teatro específico, de uma linguagem adequada
"para crianças" deixa nebulosa a dimensão estética da obra.
A baixa qualidade artística das produções teatrais destinadas Nossos palcos, no entanto, nas ofertas feitas ao público infantil,
às crianças está, em grande parte, fundada na pr6pria necessida- estão entulhados (ainda hoje, apesar de tanta reflexão e tanto
de de adequar a linguagem do espetáculo ao pretenso "gosto da palavr6rio sobre o assunto) de! um teatro que não conhece a
86 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 87
dúvida, não interroga sua função nem seus modos de escrita e tinuam sendo, como produtos dotados de linguagem específica,
encenação, buscando adequar-se a um pretenso gosto, fechan- práticas marginais, considerados subprodutos artísticos, não
do-se na estética do consenso. Um teatro dócil, que visa não participando efetivamente do movimento teatral global.
. desagradar ninguém, trazendo uma "mensagem" obrigatoriamen- A luta para acabar com sua especificidade, portanto, é tam-
te positiva e otimista, submisso e que abaixa a cabeça para nor- bém para que saia da marginalidade; trata-se, fundamentalmen-
mas de pensamento e percepção. te, hoje, de lutar para tirar a criança (e os produtos culturais
"Assumir a exceção contra a regra: esta é, de fato, a respon- que lhe dizem respeito) do gueto cultural ao qual está submeti-
sabilidade ética do 'théâtre jeune publíc';'! é a única condição da; uma batalha, portanto, contra a segregação cultural e O em-
de emancipação de seus espectadores" (Pígeon, 1991, p. 78). pobrecimento artístico da produção teatral dirigida ao público
Abrir as portas das salas de teatro ao público infantil, convi- infantil. O que significa, em última análise, afirmando o teatro
dando a criança espectadora ao diálogo estético, não significa como espaço privilegiado de debate das nossas questões, incluir
construir determinada forma de teatro, tendo por base a busca efetivamente a criança nos diálogos travados acerca dos fatos da
de uma linguagem "específica", adequada a seu gosto e capa- atualidade.
cidade compreensiva, mas tão-somente fazer teatro, com a Afinal de contas, a vida está aí, aberta para a criança, em toda
liberdade, inquietude e investigação de linguagem próprias ao sua intensidade, como estão abertos os meios de comunicação
fazer artístico, estimulando um debate em que o espectador contemporâneos. Portanto, torna-se fundamental que o teatro seja
infantil também participe, estabelecendo um diálogo, encontro também oferecido a ela em todo seu vigor, principalmente se le-
entre adultos e crianças, convidando todos a refletir sobre os varmos em consideração que "teatro é vida condensada" (Brook,
problemas do mundo contemporâneo, nossos questionamentos, 1991).
a partir de diferentes pontos de vista, diversos enfoques. A noção de infância é construção histórica, conceito que se
faz e refaz ao sabor das transformações sociais no decorrer dos
Pontos de vista que permitam às crianças e aos jovens tempos. A concepção "infantilizada" que se tem doteatro feito
esta atividade sensível e intelectual de espectadores ple- "para crianças" reflexo da própria visão de infância estabelecida
é

nos.[ ... ] se colocarem como indivíduos pensantes e respon- por nossas sociedades, concebendo a criança como ser incomple-
sáveis ante as grandes questões de sua época, aos debates to, alguém que está em vias de, em estado de aperfeiçoamento.
urgentes de nossas diferentes sociedades (Yendt, 1989, p.66). O adulto, nesse caso, é modelo de bom acabamento e perfeição.

Reconhecidos como "teatro para crianças", "teatro infantil" Supõe-se, assim, que a ínfânoía deva ser vista como mero
ou "teatro jovem", os espetáculos oferecidos a esse público con- estado de passagem, precário e efêmero, que caminha para
a sua resolução posterior na idade adulta, por meio da acu-
IJ Designação francesa que vem, recentemente, sendo aplicada ao teatro
oferecido às crianças e jovens. mulação de experiências e conhecimento. A linearidade do
88 PRÁTICAS TEATR~IS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 89
tempo cronológico autoriza uma compreensão da infância experimentos teatrais por ele realizados em escolas na Alerna-
" que lhe atribui uma qualidade de menoridade e, conseqüen- nha, Brecht escreveu: "a experiência demonstrá que as crianças
temente, sua r.elativa desqualificação como estado transi- compreendem, tão. bem quanto os adultos, tudo o que merece
tório, Inacabado e imperfeito. Essa concepção vai marcar ser compreendido" (Brecht, 1977, p. 217). Enfim, a intensidade
de forma profunda a compreensão do que é ser criança nas do prazer teatral e a pertinência da leitura dos signos das obras
sociedades complexas modernas, definindo padrões de nor- não estão diretamente ligadas à faixa etária do espectador.
malidade e deficiência, além de legitimar todo tipo de tra-
tamento infligido sobre as crianças pelos "especialistas"
(Jobim e Souza, 1996, p. 44).

Cada vez mais cedo (hoje a partir dos nove, dez anos), as
crianças deixam de querer ver o teatro que lhes é oferecido pois,
argumentam, "teatro infantil é coisa de criança". E elas têm ra-
zão mesmo , pois se é para a tal da "criança" que se deve mostrar
um tal tratamento "infantíllzador", quanto antes ela se emanci-
par e deixar ~e ser cons iderada "criança", melhor será.

Ainda um último ponto. Porque isto preocupa a vocês ,


eu sei. Após um espetáculo, uma idéia atormenta, incomo-
da: "Será que meus alunos compreenderam tudo?" . É na-
tural este temor quando se é um bom professor. Mas fi-
quem tranqüilos, no teatro não é como na escola: não é
preciso compreender tudo . O bom teatro deixa zonas de
sombra, de incerteza, provoca questões e dúvidas [. . .]
(Pígeon, 1991, p.180).

Até quando trataremos a criança espectadora como partici-


pante "oafé-corn-leíte" do evento teatral, alguém que está pre-
sente na brincadeira, mas não é convidado a brincar de fato? E
como formar espectadores, sem lhes oferecer um desafio estéti-
co efetivo? Em seu diário de trabalho, com base nos diversos
4
O ESPECTADOR ÉPICO:
PEDAGOGIA PARA UM TEATRO DE
ESPETÁCULO

o épico e a modernidade
O surgimento do teatro moderno, em fins do século XIX e
início do XX, é proveniente de dois fatores fundamentais: o de-
senvolvimento científico eas mudanças na estrutura social, políti-
ca e econômica. Assim como as ciências naturais aprofundaram,
como nunca, os seus conhecimentos sobre as condições de vida
do homem neste planeta, a realidade político-social foi dissecada
e compreendida pelas ciências humanas . A compreensão das en-
grenagens sociais ampliou a consciência da sociedade sobre seus
processos. Movimentos artísticos, entre os quais o teatro, entra-
ram em consonância com este momento histórico. O conheci-
mento dos, agora aparentes, mecanismos sociais requeria a for-
mulação de novas concepções teatrais; a cena passou a investigar
suas configurações internas, buscando linguagens que possibili-
tassem um diálogo efetivo com a realidade em transformação.
As novidades científicas e o desen~olvimento tecnológico do
final do século XIX acrescentaram ingredientes de grande im-
portância para as transformações teatrais, proporcionando uma
verdadeira revolução cênica. A tecnologia permitiu redimensionar
91
92 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 93
o palco, iluminando a cena, inventando sonoridades, tonalidades, nha, e do daquele que ele chamava de ilusionista, ao qual se
profundidades, multiplicando sensações. O palco, corno nunca opunha fortemente, pois utilizava algumas Inovações científicas
antes, torna-se capaz de levar ao espectador a ilusão de estar da época, em especial a iluminação elétrica, para susc itar no
diante da própria vida. espectador a ilusão de estar diante da realidade, um teatro da
É neste contexto histórico que Brecht vai começar a pensar a burguesia que criticava por deixar a consciência, junto com o
criação de seu teatro épico, urna teoria que foi desenvolvida du- chapéu, no foyer das salas de espetáculo. O teatro brechtiano
rante mais de trinta anos em textos e anotações muito numero- tentava superar estas posições , marcando um questionamento
sas, por vezes até contraditórias. há muito presente nos debates acerca da arte da encenação: Qual
Contrário à passividade proposta para o espectador do teatro a finalidade do teatro, divertir ou instruir? E, para isso, ut ilizava:
burguês que , imobilizado diante da ilusão de realidade, estava
impedido de raciocinar, Brecht sugere uma linguagem aberta- Por um lado, a técnica do teatro burguês (teatro que
mente teatralizada. O palco não poderia manter-se fechado, aban- alcançou desenvolvimento pleno) e, por outro lado, a dos
donando o espectador ao silêncio solitário e hipnótico das salas pequenos agrupamentos teatrais proletários que na Alerna-
escuras, ao contrário, deveria assumir a presença do espectador nha, após a Revolução, elaboraram um estilo próprio , mo-
no evento, apresentando-se como teatro, não ilusão da vida. A derno, ao serviço dos seus objetivos proletários (Brecht,
ruptura da função usual do teatro tornava-se fundamental para 1978, p. 37).
'Brecht que, não sem urna dose da ironia que lhe era peculiar,
classificava os espetáculos burgueses corno pertencentes ao ramo O teatro brechtiano pretendia aliar à emoção um forte teor
do comércio de entorpecentes. O autor questiona, assim, a fun- reflexivo, o que não levaria a um resultado cênico menos pra-
ção social da arte teatral e busca construir um teatro que revele, zeroso . Para ele, no entanto, o prazer também precisaria ser posto
interrogue e contribua para transformar aestrutura social. Por em questão. O teatro épico deveria ter como objetivo maior a di-
meio da revolução do processo teatral se ,chegaria à crítica e à versão, nisto não se distinguia do teatro burguês. Mas o que seria
reforma do aparato social. Era preciso destruir o velho teatro e verdadeiramente divertido ou prazeroso? A seu ver, "deveria se
reconstruí-lo em outras bases . "As inovações autênticas atacam tornar o prazer objeto de uma análise, já que se tinha de tornar
o mal pela raiz" (Brecht, 1978, p. 22). a análise um objeto de prazer" (Brecht, 1978 , p. 15).
O gênero por ele criado procurava manter a tensão entre dois Os recursos cênicos utilizados dessa forma têm o intuito de
teatros: o burguês e o proletário; surgia da tentativa de relação afastar o espectador da ação dramática" interrompendo a corrente
entre estas duas formas dramáticas, do diálogo entre um teatro hipnótica e possibilitando a sua atitude crítica. "O espectador
com forte tom emocional e outro marcadamente racional. Tra- não deve viver o que vivem os personagens, e sim ques tioná-los "
zia para o mesmo palco elementos do teatro conscientizador do (Brecht, 1989, p.131). O encenador propõe , assim, que o especta-
proletariado, em desenvolvimento naquele momento na Alerna- dor se distancie e reflita sobre o que vê, em vez de entregar-se a
,'..

94 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 95


um envolvimento emocional que Inviabíllza o raciocínio. Este saria no espectador uma sensação de assombro diante da reali-
efeito de distanciamento é a viga mestra do teatro brechtiano. dade cotidiana.
O assombro é a tomada de consciência, a percepção da dimen-
o teatro "dramático" não mantém esta atitude distante são social do acontecimento, a descoberta das muitas possibilida-
[. . .], precipitando-se com terrível tensão para o desfecho, des de desdobramento e desfecho para o mesmo fato . É o senti-
a ponto de sugar o espectador para o vórtice do seu moví- mento de prazer que provoca esta descoberta (Benjamin, 1993a).
menta inexorável, sem lhe dar folga para,observar, criticar,
estudar (Rosenfeld, 1985 , p. 156). ASPECTOS DO TEATRO ~PICO

O épico é o gênero literário em que a história é contada tanto


As arfes da cena, afirmava Brecht, deveriam encarar o desafio por um narrador, em sua descrição dos acontecimentos, quan-
de elaborar uma nova forma de transmissão do produto artístico to pelos personagens, em diálogos que interrompem a narrativa.
ao público. O teatro precisava renunciar à sua tarefa de guia de Tem, portanto, caráter fortemente narrativo, ao contrário do
espectadores , exercida sem tolerar contradições e críticas, e gênero dramático, em que a história vai sendo contada somente
buscar oferecer, representações da vida social dos homens que por meio do diálogo dos personagens entre si, sem interferência
permitissem à platéia, ao ver-se diante de situações contraditó- direta de um narrador (autor).
rias , adotar uma
. atitude crítica, tanto acerca dos processos sociais No épícovo autor relata uma história já ocorrida e que, em
representados como do próprio espetáculo teatral. geral, aconteceu com outra pessoa. Portanto, ele fala no pretérito
Brecht pretendia construir um teatro dialético, que funcionas- (a história foi assim) e na terceira pessoa do singular (aconteceu
se como a negação da negação. Ao nos alienarmos de nossa força com ele); "isto cria uma certa distância entre o narrador e o
produtiva, de nossas possibilidades criativas, não nos sentimos mundo narrado" (Rosenfeld, 1985, p. 25) . Se a história já acon-
capazes de transformar. O teatro deveria apresentar situações teceu e quem a conta conhece bem todo seu desenrolar, não há
de maneira tal que proporcionassem ao espectador o estranha- o mesmo envolvimento emocional do autor dramático, que apre-
rnento da situação habitual , a percepção de uma vivência alie- senta o fato no tempo presente, como se o estivesse conhecendo
nada, e despertassem nele a vontade de intervir, de tomar para pela primeira- . . . vez. Da mesma maneira, o leitor que .entra em
~~ .

si a condução de suas atitudes. Distanciado e alienado da aliena- contato com um texto épico, uma história já ocorrida, e que lhe
ção , o espectador poderia, então , tomar consciência de sua não . é narrada, mantém certa distância do fato e não tem o mesmo
refletida alienação cotidiana e retomar sua plenitude, sua poten- envolvimento que o leitor do texto dramátíco , ao qual os fatos ,
cialidade transformadora. Distanciado do habitual, o espectador mesmo quando se trata de um acontecimento histórico, são apre-
descobriria a verdadeira face do familiar, reconhecendo o c~nhe­ sentados como se estivessem acontecendo naquele momento .
cído. O estranhamento do cotidiano, o questionamento ' do que O texto no teatr? épico, portanto, procura apresentar as situa-
antes parecia normal e que se mostra agora surpreendente, cau- ções de forma narrativa, tratando os fatos como históricos -
96 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 97
fatos já ocorridos e que têm relevância histórica. Essa distância No épico, como vimos, não há encadeamento rigoroso entre
que se 'estabelece entre o espectador que assiste no presente a as cenas, não há um crescendo para o clímax, o espetáculo é
um fato ocorrido no .passado permite que ele mantenha a atítu- composto por diversos fragmentos , cabendo ao espectador es-
.'de reflexiva acerca do assunto narrado. No texto do teatro dra- truturar a totalidade, elaborar uma compreensão do todo , rela-
mático, o autor ausenta-se da história, que parece ganhar vida cionar cada:situação particular, cada cena, com o tema geral.
própria; o espectador vívenoía a história que acontece diante A evolução linear da trama é quebrada, rompendo com a pro-
dele no tempo presente. Vinculado emocionalmente à trama, o gressão dramática em direção ao desfecho , deixando a obra
espectador teria diminuída sua capacidade de sobre ela reflet ír, suspensa e a conclusão final a cargo do espectador.
No gênero dramático, a história desenrola-se diante do es-
pectador, que fica "parado", assistindo à sucessão dos fatos inter- É que se trata de ,mostrar não uma evolução fatal, irre-
ligados. O épico abrange um conteúdo mais vasto, o autor sele- sistível, mas uma série de possibilidades, e paraisso, é neces-
ciona os acontecimentos a serem narrados e os apresenta .ao sário decompor uma situação em outros tantos elementos
espectador; a história progride aos saltos e o espectador tem de particulares que o espectador "remontará" em seguida [, . ,J.
se "movimentar". para acompanhar os fatos, que não têm uma Cabe ao espectador determinar, deduzir do espetáculo este
necessária relação causal. sentido global: em nenhum momento, este sentido é ex-
A forma épica de teatro tem caráter fragmentário . Por haver presso claramente, ele não se realiza em uma cena-ch ave
autonomia entre as partes da peça, cada cena tem seu valor e (Dort, 1977,p. 289) .
cada parte contém. o todo, cada cena tem unidade própria e está
ligada às outras pela idéia do todo que traz em si. "Ao contrário Assim, o espectador do teatro épico passa de uma cena a outra,
da obra dramática, uma obra épica se deixa recortar, como por mantendo-se distante do fato apresentado, analisando seus aspec-
uma tesoura, em partes capazes de conti!1Uar uma vida própria" tos e construindo 'sua compreensão da história narrada . Já que :
(Brecht, 1989, p. 258). As cenas são independentes e não se vin-
culam por uma relação de causa e conseqüência. Cada cena tem Seu fim repousa desde logo em cada ponto do seu movi-
importância própria, tem começo, meio e fim, como várias pe- mento; por isto não corremos impacientes para um alvo,
ças dentro da peça. Essa est,rutura fragmentária das cenas resul- mas demoramo-nos com amor a cada passo (Schiller, apud
ta na ação dramática constantemente interrompida, da qual o Rosenfeld , 1985, p. 32).
espectador fica desvinculando e, assim, evita-se apresentar a his-
tória de forma determinista, já que o que aconteceu antes não Como o texto, os elementos cênicos do teatro épico também
determinaria, necessariamente, o que acontece. O mundo se mos- têm caráter fragmentário ; o palco se mostra desconstruído e
tra passível de modificação e afirma-se a possibilidade do homem cada pedaço que o constitui está à vista , O encenador deixa ela-
de surpreender, de mudar o curso dos acontecimentos históricos. ro para o espectador os recursos que utiliza em cena: a luz, o
"

98 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 99


cenário, as músicas têm independência dos outros elementos, na peça de críticas e comentários do autor que, por vezes, se
possuem vo~ própria. Ou seja, Brecht apresenta um teatro des- assemelhavam a notas de pé de pãgína:
. nudado, que revela os mecanismos utiÍizados, tais como refle- A cena começa, assim, a exercer uma função pedagógica. O
tores de luz , maquinário cenográfíoo, etc., retirando as tapadeiras, petróleo, a inflação, as lutas sociais, a família, a religião, a man-
. rotundas e tudo que possa esconder a construção e o funcio- teiga e o pão, o comércio de carnes devem ser objetos de repre-
namento dos objetos que constituem a cena, evitando o ilusio- sentação teatral. A intenção era trazer o pano de fundo social
nismo e assumindo a teatralidade da encenação. O palco rasga para a cena, afirmando a dimensão histórica do acontecimento
as cortinas, porque qu~r revelar as engrenagens teatrais e so- apresentado por meio dos elementos narrativos que a golpeiam,
ciais. interrompendo a corrente dramática e afirmando a atitude críti-
Embora a fábula ~ej~ considerada o coração do teatro épíco , ca do espectador. Brecht elaborou uma série de técnicas e re-
pois é ela que revela as vicissitudes sociais que enredam os per- cursos cênicos com esta finalidade; entre eles se destacam, por
sonagens, na concepção brechtiana, no entanto, não apenas o exemplo: jornaleiros que percorrem a sala, anunciando mano
texto, mas a encenação como um todo assume o papel narrati- chetesque caracterizam o clima social, ouslides com fotos histó -
vo; o palco conta de maneira crítica a história. Todos os recur- ricas , ou ainda canções (songs) e cartazes com dizeres que propu-
sos cênicos -aluz, o cenário, os figurinos e adereços - podem nham uma visão crítica acerca do fato representado .
desempenhar, função narrativa, comentando a ação , tomando
posição em face dos acontecimentos. O palco assume urna função [... I·oteatro épico progride movido a golpes . Sua forma
narrativa. A quarta parede não esconde mais o autor, graças a essencial éa do choque, por meio da qual as diversas e
grandes telas - em que se projetavam documentos com cifras distintas situações da peça se chocam umas às outras. As
concretas, ou fotos Ou citações - que permitiam trazer à memó- songs, os títulos das cenas, as convenções "gestuaís" dos
ria outros processos que se desenrolavam simultaneamente em atores distinguem cada situação das outras. Dessa manei-
outros lugares e que contradiziam ou comentavam as palavras e ra, são criados intervalos que comprometem, primeiramen-
atitudes de alguns personagens. te, a ilusão do público. Estes intervalos são reservados a
Essa postura narrativa do palco diante dos fatos trazidos à sua tomada de posição crítica, a suas reflexões (Benjamin ,
cena, ressalte-se, somente se tornou viável graças a certas con- 1969, p.""S2).
quistas técnicas do período. A partir de então', para efetivar esta .
postura, podia-se contar com as projeções ?e slides e recursos Ao se deparar com o caráter histórico e os aspectos sociais
cinematográficos, além de um maquinário motorizado, que au- dos acontecimentos e ao perceber as dificuldades do protago-
mentou as possibilidades de transformação do palco. Essas ino- nista "de enxergar estes mecanismos sociais que induzem suas
vações permitiram ao teatro incorporar elementos oenográflcos , atitudes, o espectador questiona-se a respeito da sua existência
que dando à encenação um caráter quase literário, com a inclusão cotidiana e de como ele próprio se relaciona com estas forças
100 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 101
invisíveis, tomando consciência da própria alienação. Assim, o O teatro épico quer estabelecer a relação do homem com o
autor trabalha com a idéia de que o homem, mesmo envolvido universo que o circunda, do homem com a história dos homens .
pelas situações, tem. condição de determiná-Ias; de que ele não Move-se do partícular para o universal, parte da representação
está entregue à história, mas pode construí-la. "O desejo é de de um indivíduo para alcançar toda a comunidade em que ele
não apresentar apenas relações inter-humanas, mas também as está inserido. O homem é revelado em seu rastro social e histó-
determinantes sociais destas relações " (Rosenfeld, 1977 , p. 149). rico. O gesto de um homem está vinculado ao gesto da comuni-
O homem para ser compreendido precisa estar vinculado aos dade humana.' Brecht vai, assim , conceber o que denomina de
processos que o condicionam, o fato não pode estar restrito aos gesto social (gestus), o gesto ou o conjunto de gestos que revelam
aspectos psicológicos , às relações entre indivíduos, ignorando a a determinação h ístórlca das atitudes humanas. O gesto em seu
voz do ambiente em que eles estão situados. Essas forças invisí- enfoque social e não psicológico , crítico e criticável. Como, por
veis determinam as relações individuais e, por isso, não podem exemplo, em Mãe Coragem e seus filhos: comerciante que vive
estar ausentes da trama. da guerra, o personagem morde uma moeda para conferir a legi-
Distanciar é, para Brecht, portanto, "historicizar", represen- timidade do metal, revelando excessivo zelo financeiro num con-
tar as situações como sendo históricas. Para isso, não é necessário flito que lhe rouba, um a um, todos os filhos. O gesto comenta e
que sejam levados à cena somente acontecimentos do passado, denuncia a situação, sua contradição é patética, assombrosa.
o encenador épico pode proceder da mesma' maneira com pro- Todo o palco épico gesticula. O gestus, em -que se pode ler
cessos e personagens contemporâneos, mostrando suas atitudes toda uma situação social , pode ser encontrado em vários ele-
como estando ligadas a uma época, portanto, históricas; mentos da encenação, na própria língua, inclusive.
Os atores do teatro épico, por sua vez, não se metamorfoseiam
completamente, mas guardam certa distância em relação ao papel Uma língua pode ser gestual, diz Brecht, quando indica
que representam, deixando visíveis as suas críticas aos persona- certas atitudes de quem fala para, com os outros: "se seu
gens e à situação mostrada. O ator apresenta o personagem como olho dói, arranque-o", é mais gestual do que "arranque o
se falasse na terceira pessoa do singular: vejam como ele é! O olho que lhe dói", porque a ordem da frase , o assíndeto
que ele fala! Reparem suas atitudes! Não é permitido, assim, ao que domina remetem a uma situação profética e vingativa
espectador identificar-se ingenuamente com os personagens, (Barthes, 1982 , p, 89).
abandonando-se às emoções vivenciadas sem criticá-las e sem
tirar da representação alguma conseqüência de ordem prática. Brecht reconhecia que, à primeira vista, o teatro épico pode-
É necessário que os fatos apresentados, considerados "naturais", ria ser tomado por uma obra de arte reservada a um círculo
recebam a marca do ínsôllto, sendo tratados como acontecimen-
tos estranháveis. Somente dessa maneira poderiam vir à tona as I Brecht possuía, em seus arquivos, dezenas de fotos de Hitler, recolh idas de
jornais e revistas, nas quais Investígava a atitude corporal, o gesto do líder
leis que regem as causas e os efeitos dos mecanismos sociais. ' nazista. '
102 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 103
restrito de eruditos, de iniciados. No entanto, afirmava tratar- No final da guerra, observou-se que os combatentes vol-
se, efetivamente, de um teatro compreendido pelas grandes tavam mudos dos campos de batalha, nãomaís ricos, e sim
massas populares, capaz de oferecer múltiplas propostas e apto mais pobres em experiência comunicável. E o que se difun-
a exigir e produzir uma arte do espectador, arte que deve ser diu dez anos depois, na enxurrada de livros 'sobre a guerra,
aprendida, aperfeiçoada e constantemente exercida no evento nada tinha em comum com uma experiência transmitida
teatral. de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque
nunca houve experiência mais radicalmente desmoralizada
Memória: a mais épica das faculdades do que a experiência da guerra de trincheiras, a experiência
Benjamin considerava a obra de Brecht uma confirmação práti- econômica da inflação, a experiência do corpo pela guerra
ca de suas teorias estéticas. Em uma de sua.'> cartas a amigos, de material e a experiência ética dos governantes (Benja-
escreveu: min, 1993a, p.198).

A concordância com a produção de Brecht expressa um o absurdo e o horror da guerra não constituíam experiência
dos pontos mais valiosos e importantes da minha posição capaz de ser transmitida. O desmoronamento do mundo exterior
entendida como um todo (Benjamin apud Konder, 1989, parecia ter petrificado o mundo interior. A linguagem mostrava-
p.63). se insuficiente, talvez inadequada, não conseguia dar conta
dos acontecimentos, traduzi-los em algo comunicável. A palavra
Os pontos de encontro entre as teorias de Benjamin e Brecht não podlaproduzír significados diante da situação; a intensida-
são bastante significativos. A investigação das proposições teóri- de da experiência sufocava qualquer possibilidade de narrá-la.
cas de Benjamin, fundamentadas em sua filosofia da história, "Em meio à destrutividade cósmica, a língua não era mais lu-
permite ampliar o entendimento dos ensaios de Brecht. Aliás, as gar de origem e pertencimento, referência e proteção" (Matos,
afinidades entre eles não param aí; eram amigos, companheiros 1995, p. 3).
de exílio, e mais, companheiros de catástrofe. As lutas de hoje estão sempre em relação com as de ontem.
Os dois articulam em suas obras um pensamento do presente, Se mantivermos um abismo separando presente e passado, mun-
acentuando a experiência do horror que vinha tomando conta da do dos vivos e mundo dos mortos, as lutas se repetirão ao longo
Europa e abordando as terríveis conseqüências que aqueles acon- da história, sem novas conquistas; para nos livrarmos desse pe-
tecimentos produziam nos indivíduos. Em nota sobre Mãe Co- rigo, comentava Benjamin na primeira metade do século XX, é
ragem e seusfilhos, Brecht escreveu que, da mesma maneira que preciso que nos apropriemos das reminiscências, cada vez mais
uma cobaia não aprende biologia, as vítimas de uma catástrofe assunto raro. A memória está, aos poucos, se esvaindo, pois está
não aprendem nada. Sua percepção dos estragos provocados pelos desaparecendo o dom de contar e de ouvir histórias, e isso por-
atos de barbárie encontrava ressonância na voz de Benjamin: que ninguém se interessa mais em trocar experiências, que estão
104 O ' ESPECTADOR !tPICO o ESPECTADOR ÉPICO 105
se tornando cada vez mais pobres e, com isso, desinteressantes propriedade morta" (Benjamin, 1993a, p. 172) e que , no entanto,
e incomunicáveis (Benjamin, 1993a). Quase nada pode " efeti- se acredita plenamente integrado ao processo histórico, O
vamente, ser traduzido em experiência em um dia do homem da homem não percebe que o passado se repete porque está esque-
, era modernaa pobreza das experiências faz que a vida diária se cido dele, pois "rompeu com a cultura e a tradição , e está proibido
transforme em vivências de situações sem importância. Os cho- de construir a história porque se demitiu da história" (Rouanet,
ques do cotidiano, os riscos da selva das cidades consomem as 1990, p. 97)
experiências possíveis, condenando o indivíduo auma vivência Expulso da esfera do discurso vivo, incapaz de criar o presente,
repetitiva e desmemoriada, rompendo os laços da comunicabili- pois se perdeu do passado, continua ansioso pelas novidades
dade capazes de manter vivas a tradição e a história da comu- sempre iguais. Certo de estar renovando o presente, na verdade,
nidade; pois tradição é memória que se passa de mão em mão. soterra a possibilidade do novo, ao desvincular-se da história. O
E, se não há memória para ser transmitida de uma geração a novo, como afirma Benjamin (1993a), não surge do vazio, não
outra, está rompida a cadeia da tradição. surge do movimento aleatório, não surge de gestos sem vínculos
com a memória. O novo tem história, adv érn da tradição , mas
Exposto a perigos multiformes, e obrigado a concentrar não de uma tradição irrefletida, apoderada pelo conformismo e,
todas as 'suas energias na tarefa de proteger-se con tra o sim, da tradição libertada pelo presente, da relação dialética do
choque, p homem moderno vai perdendo a memória indi- presente despertado com os sonhos do passado .
vidual e coletiva. O homem privado de experiência é o ho- Sem ter experiências para contar, o homem moderno está
mem privado de história, e da capacidade de integrar-se entregue ao vazio da própria linguagem que, superficial e in-
numatradlçãofRouanet, 1990, p. 49). formativa, nada acrescenta. Tão bem retratado pelo teatro do
". ' . . ' - absurdo, ele se assemelha a um personagem que, encontrando-
A concentração de esforços para aparar ou desviar-se dos cho- se sobre um chão movediço no qual vai afundando aos poucos e
quesempobrece as potencialidades mentais. A capacidade que incessantemente, parece alheio à situação e continua a monologar
antes era empregada para absorver e memorizar as situações do banalidades. Acostumado a uma linguagem jornalística, preo-
cotidiano, para, posteriormente, revertê-las em experiência, ago- cupada em notícias de assimilação imediata, "o homem de hoje
ra trabalha sob tensão nos combates da vida diária. E a memória, não cultiva o que não pode ser abreviado "; com isso, "a arte de
lia mais épica de todas as faculdades" (Benjamin, 1993a, p. 210), narrar está em vias de extinção" (Benjamin, 1993a, p. 197).
não resistindo aos choques constantes, foi a nocaute; jaz estirada Se a arte da narração é hoje rara, a difusão da informação é
no asfalto das ruas , espalhada na sujeira dos becos, esfacelada decisivamente responsável por este declínio,
nos cacos dos canteiros de obras . . .
Esta mera vivência dos eventos cotidianos "sedimenta a auto- Cada manhã recebemos notícias de todo' o mundo. E, no
alienação do ser humano que inventariou o seu passado como entanto, somos pobres em histórias surpreenden teso A razão
106 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 107
é que os fatos já nos chegam acompanhados de explica. história assim, sabe continuar outra. Ou seja, quem sabe contar
ções. Em outras palavras: quase tudo está a serviço da ín- sabe ouvir, e a recíproca aqui é verdadeira.
formação. Metade da arte narrativa está em evitar explica- Se o abandono da memória individual e coletiva dá-se pela
ções [. . .], o contexto psicológico da ação não é imposto incapacidade de narrar, é .na linguagem que se localiza esta fa-
ao leitor. Ele está livre para interpretar a história como lência e é nela que se encontram as possibilidades de sua pró-
quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma ampli- pria transformação. O mergulho na corrente viva da linguagem
tude que não existe na informação (Benjamin, 1993a, p. acende a capacidade transformadora, pois a tomada de oons-
203). cí êncía é uma leitura de mundo . Apropriar-se da linguagem é
ganhar condições para essa leitura. Na linguagem, o passado, o
Benjamin toma como exemplo, em sua críticaàmaneira como presente e o futuro se interpenetram e se transformam; revê-la é
os veículos de comunicação de massa abordam os acontecimen- rever a história, ' pois esta existe na linguagem; a história está
tos cotidianos, a peça Um Vôo sobre o Oceano; escrita por Brecht viva no discurso vivo.
a partir de um fato verídico: o audacioso e solitário vôo de Char-
les Líndbergh , primeiro piloto de avião a atravessar o Atlântico. Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o
Acontecimento que provocou grande entusiasmo e foi ampla. discurso histórico é sempre uma narrativa [... ] Fazer
mente notlcíado por revistas, jornais e rádios da época. A obra, história é contar história [.. .] Pois, na medida em que o
porém, ressalta Benjamin, diferente dos bombásticos noticiá- homem só pode recebera história numa transmissão, a hís-
rios , que explodiram em sensacionalismo, "se preocupa em de- tória condiciona e mediatiza o acesso à linguagem (Kramer,
compor o espectro da «vivência» para obter por decantação as 1993, p. 65).
cores da «experiência». Experiência que só poderia ser extraída
do trabalho de Lindbergh e não da excitação do público" (Ben- A linguagem revela-se instrumento precioso, não se limita
jamin, 1991, p. 216). O mesmo acontecimento fora, assim, tra- apenas a ser veículo da história, mas a faz. Para reconstruir a
tado, ora como mero evento, ora como fato histórico. história, portanto, é preciso reconstruir a linguagem.
A falência da capacidade de adquirir e transmitir experiências
está extinguindo a sabedoria, que Benjamin define como "o lado o HISTORIADOR PARALISA O TEMPO PRESENTE
épico da verdade", forjada a partir do enredamento dos fios da Cabe ao presente abrir diálogo com o passado , uma vez que o
experiência diária, aperfeiçoando sua trama na comunicabi~ida­ ontem não se cansa de gesticular em, direção ao hoje. Cabe ao
de , na relação viva com o tecido social. Ríço em experiências sujeito revolucionário o gesto de fazer e refazer a história, para
transmissíveis , aquele que sabe narrar uma história sabe "fazer que nossos mortos, e seus sonhos, não fiquem entregues ao ini-
uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sen- migo. Trata-se de reconhecer os momentos de tensão, de perigo ,
do riarrada" (Benjamin , 1993a, p. 200). Quem sabe contar uma . e retirar deles as centelhas de esperança contidas em cada uma
108 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 109
das situações, para que estas centelhas se libertem e iluminem o o pêlo escovado ao contrário é revolvido, mostrando o que
presente. A reflexão sobre o que está acontecendo está vincula- está escondido no couro; além de alterar o seu curso normal, a
da àquela sobre o que aconteceu, e a verdade continuará sem- sua disposição pr~visível, o seu irretocável penteado. Os fatos
o pre a nos escapar enquanto o presente, em sua ânsia de progres- históricos podem :Ser reordenados, não se relacionam continua-
so, abortar o passado em busca do futuro. O presente não é mente, ligados por uma sucessão de causas e conseqüências. A
mera passagem para o futuro, mas o tempo que o historiador história não é um continuum vazio e homogêneo, mas tempo,
deve paralisar para escrever a história. saturado de agoras, que constituem fragmentos brotados da ex-
O passado não pode ser encarado de forma definitiva, incon- plosão do continuum. A cadeia da história não se estabelece
testável, é preciso desencantá-lo, deixando-o em aberta relação pela sucessão de fatos, mas pela sucessão de idéias, desejos,
com o hoje, capturando, no dito, o não-dito, e, no feito, o não sonhos, necessidades... A história é composta por pedaços
realizado, aquilo que foi desejado, mas reprimido; despertando descontínuos, em que cada fragmento é um agora, uma mônada,
os sonhos adormecidos pelo véu da história, sonhos realizados uma parte que contém o todo, como uma constelação formada
anteriormente e que foram sufocados; oxigenando-os para que por diversos sóis, diversos centros. Cada parte tem luz própria
venham à tona, invadam e impulsionem o presente e o futuro. e traz em si a idéia do todo.
"Cada época não somente sonha a seguinte, mas ao sonhá-la a Pa~a Benjamin, simplesmente por ser causa, um fato não pode
força a despertar" (Benjamin, apud Rouanet, 1990, p. 91). Os ser considerado histórico, "se transforma em fatohistéríco postu-
sonhos coletivos de ontem não cessam de esperar respostas da mamente, graças a acontecimentos que podem estar dele sepa-
atualidade; frustrados historicamente buscam incessantemente rados por milênios" (Benjamin, 1993a, p. 232). Ele se torna histó-
serem revítalízados, trazendo seu potencial transformador. rico, quando é retirado do continuum do tempo pelo historiador,
que capta o seu momento e o põe em relação com o presente.
A história, tal qual os homens a fazem, não éum movi- Abramos, aqui, um pequeno parêntesís e retornemos ao tea-
mento contínuo, linear: ela é marcada por rupturas e se tro épico. Brecht propõe a apresentação dos acontecimentos
realiza através de lances que, em princípio, poderiam sem- corno fatos históricos, tenham acontecido ou não. A partir da
pre ter sido diferentes... O sujeito dispõe da possibilidade definição de Benjamin, dar a um acontecimento o tratamento de
de surpreender. E o sujeito revolúcionário precisa se em- fato histórico significa, para o encenador épico, perceber o
penhar no aproveitamento dessa possibilidade, para se contexto social de sua época e pôr os fatos (reais ou não) que
contrapor não só ao quadro institucionalizado como ao teriam ocorrido em outra época, e/ou relacionados a um outro
movimento que resultou na. institucionalização. Por ter contexto social, em contato com o agora recolhido do momento
plena consciência desse imperativo é que Benjamin exige atual. Ele se torna fato histórico à proporção que traga em si
do marxista que este trate sempre de "escovar a história a tensões que se liguem às vividas no momentO vivido, subvertendo
contrapelo" (Konder, 1989, p. 7). a ordem do tempo e se fazendo presente em outro contexto.
110 o ESPECTADOR ÉPICO o ESPECTADOR ÉPICO 111
A ligação viva dos acontecimentos do passado com os de hoje Quando o fluxo real da vida é represado, imobilizando-
torna-se possível justamente pela tensão que relaciona fatos ocor- se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o
ridos em épocas anteriores com os atuais; que se vinculam pela assombro é esse refluxo . O objeto mais autêntico desse
descontinuidade contínua dos sonhos e desejos, pelas centelhas assombro a dialética em estado de repouso (Benjamin ,
é

de esperança contidas nas experiências anteriores que penetram 1993a, p. 89) .


as situações que estão sendo e que serão vividas; quebrando .o
coruinuum histórico em pedaços vivos, entrecruzando passado , A estrutura fragmentária da história, como Benjamin a conce-
presente e futuro no agora do sonho, que jamais perde o viço be, muito se assemelha à estrutura dramatúrglca das peças épicas
revolucionário. Os sonhos coletivos de ontem não cessam de que, como já foi dito, apresentam uma história constituída de
esperar resposta dohoje.ros sonhos do passado buscam, inces- partes descontínuas, calcada em várias cenas fechadas, em que
santemente, despertar e transformar o presente e o futuro . Daí a cada uma terno próprio centro, carrega consigo uma idéia pró-
necessidade de analisá-los, perceber os que foram frustrados his- pria. A peça, poderíamos assim dizer, utilizando uma imagem
toricamente e deixar que se revitalizem e invadam o presente, benjaminiana, é uma constelação e cada cena é um sol em si.
trazendo seu potencial transformador. Os sonhos de porvir, so- Na visão de uma história fragmentária, cada pedaço tem valor
nhados e sufocados no passado, vêm à tona e, a plenos pulmões, próprio e não se liga aos demais por uma relação determinista,
gritam seus desejos e anseios reprimidos, buscando ressonância de causa e conseqüência, como se o correr da história não pudes-
na voz do presente. se ser alterado, como se o presente e o futuro fossem mera
Não se trata de o historiador lançar-se de volta ao passado , seqüência do passado, e o mundo não fosse suscetível de trans-
mas averiguá-lo paralisando o tempo presente. Não é, portanto , formações. .
um sentimento nostálgico que o move, mas um movimento . Como o universo para o Galileu de Brecht, a história pode
dinamizador do presente que, para se libertar, precisa reaver o ser revista, colocada em dúvida. Não há uma forma fixa, segura,
seu passado. Os fatos históricos são encarados, assim, do ponto linear; como o universo, ela perdeu o seu centro. Explodido em
de vista do momento histórico atual e propõe ao historiador (e diversos fragmentos, o centro pode estar em qualquer lugar, ou
ao encenador) gestos contemporâneos de compreensão. em nenhum, pois tudo se move, e pode ser modificado.
Lançando um golpe, aplicando um choque, o historiador in-
terrompe , paralisa o tempo, buscando frear o fluxo da vida-ri 0- GA~ILEU -Mas veja o que se diz agora: se as coisas são assim,
que-corre, no qual está imerso, para se retirar da água e repousar . assim não ficam. Tudo se move , meu amigo [... J. As verda-
sobre as pedras para observar melhor opercurso do rio , as des mais consagradas são tratadas sem cerimônia; o que
peripécias da água que passa, e, depois desse momento de era indubitável agora é posto em dúvida [. .. J. Uma noite
reflexão; retornar num novo mergulho. bastou para que o universo perdesse o seu ponto central,
na manhã seguinte, tinha uma infinid~de deles. De modo
112 o ESPECTADOR tPICO o ESPECTADOR tPICO 113
que agora O centro pode ser qualquer um, ou nenhum . carimbo de mercadoria. A concepção benjaminiana de infân cia
Subitamente há muito lugar (Brecht, 1991, p. 57). nos oferece um rico material a ser utilizado nesse esforço de me-
lhor compreender o ?lhar proposto ao espectador do teatro épico .
'A forma épica proposta por Breoht apresenta uma sucessão Sempre que uma arrumação é feita no quarto da criança e
de cenas que progridem aos golpes , umas se chocando contra que brinquedos são jogados fora ou doados , é invariavelmente o
as outras, interrompendo constantemente o fluxo da ação dra- velho brinquedo que sai, dando lugar aos novos . Mantendo o
mática. Os fatos , dessa maneira, são destacados para fora do quarto bem "bonitinho", che irando a novidade. Mas por que logo
continuum do processo da história narrada, sublinhando os ago- o velho? Quanto mais cheia de brincadeiras, de investigações
ras que constituem cada fragmento. A interrupção, que se efetiva for a relação da criança com o brinquedo, quanto maior a inti-
quando uma cena se choca com a outra, paralisando abrupta- midade, a mem6ria afetiva dos dois parceiros de brincadeira,
mente o fluxo da ação, instaura um refluxo que ressalta a situação com maior fluência surgirão novas aventuras , maior a facilida-
cênica e propõe ao espectador um movimento reflexivo, uma de de construir novas histórias. Por que, então , jogar o velho
tomada de posição crítica em face dos acontecimentos históricos fora, se é justamente da relação com o velho que pode surgir o
apresen tados. novo?

A reflexão inclui não somente a mobilidade do pensa- Os pais que se lamentam porque um brínquedo foi es-
mento corno sua paralisação. Quando o pensamento pára, cangalhado cometem um erro considerável, que demons-
subitamente, numa constelação saturada de tensões, trans- tra a sua ignorância acerca de um fenômeno importante: os
mite-lhe um choque, e ela se cristaliza enquanto rriônada bocados dos brinquedos escangalhados têm ainda. mais
(Rouanet, 199ü,p. 25) . valor para a criança do que os brinquedos inteiros, são-lhe
muito úteis durante muito tempo . De momento , na verda-
Na interrupção da cena épica, o tempo é imobilizado para de, não se utilizará deles , mas dois ou três dias depois re-
que se reflita sobre a história, paralisando o pensamento que se correrá a eles para construir novos jogos , e esses bocados
debruça sobre a situação, buscando interpretá-la. O espectador desempenharão uma função nova no seu imaginário . ..
distaricia-se da corrente da ação dramática, em atitude crítica e, O mesmo acontece quando [os pais l incitamos filhos a
posteriormente, em novo mergulho, retoma ao curso da trama. oferecera um menino pobre brinquedos velhos de que ele
gostou. É preferível dar um brinquedo novo a que ainda
o OLHAR 'tPICO DA CRIANÇA não se criou afeição: primeiro, porque o menino pobre
Nos ensaios acerca da infância, Benjamin compara o olhar da gostará mais de um brinquedo novo e em seguida isso não
criança ao do artista, que inventa possibilidades, ou ao do cole- privará a criança de nada (Dolto, apud Leenhardt, 1973 ,
cionador; que , em sua relação afetiva com os objetos, lhes tira o p.52).
114 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 11S
A criança, em geral, desmonta o brinquedo para se apropriar infância se encontra no centro da concepção benjaminiana de
dele , para conhecer o que há por trás, estabelecer uma relação história" (Lehman, 1986, p. 83) .
de in timidade, de aproximação, de afetividade mesmo. E é aí
que mora o lado épico da brincadeira, na re-sígnífícação dos É aí que o tema da infância assumia um papel fundamen-
cacos. Assim como o espetáculo épico na concepção de Brecht, tal: cada um denós tem a possibilidade de rememorar sua
com o mesmo espírito científico, a criança desconstrói para des- própria infância, que é uma história que lhe é íntima, que
cobrir, dominar e tornar a construir a partir de significados pró- pode lhe abrir segredos preciosos, que pode funcionar como
prios ; por mais que a sua remontagem efetiva possa dei~ar o um centro especial de treinamento para o sujeito desenvolver
brinquedo um tanto diferente do que era antes e, para 'os pais, sua sensibilidade e sua capacidade de resgatar significações
com um certo ar de escangalhado. . obscurecidas que ficaram no passado (Konder, 1989 , p. 56) .

E a criança também escolhe os seus brinquedos por con- Esta reflexão sobre o passado visto através do presente en-
ta própria, não raramente entre os objetos que os adultos contra .na infância sinais que o presente deve .decifrar: trilhas
jogam fora. As crianças "fazem história a partir do lixo da abandonadas, desejos frustrados , idéias não realizadas. Alem·
história;'. É o que as aproxima dos "inúteis", dos "inadapta- brança da infância, nesse sentido, não se dá como idealização,
dos" e dos marginalizados (Benjamin, 1984, p. 14) . mas como realização possível dos sonhos sufocados, leitura crítica
do presente da vida adulta. Não se trata, porém, de uma preo-
A atenção ao olhar da criança em Benjamin, retorno à pró- cupação restrita à infância individual do historiador, mas da
pria infância, a lembrança e o relato de várias passagens de suas infância como modalidade de experiência e percepção do passa-
experiências de menino , estão vinculados a sua reflexão sobre a do. A infância compreendida de maneira coletiva e não individual
história. A volta à infância é a volta ao passado, farejando os so- é a chave do entendimento de uma época a partir de sua face
nhos, os desejos, as idéias, que foram então formuladas, mas criança. Este retorno, portanto, não se encerr~ em uma pers-
que não chegaram a se expressar em realidades objetivas pectiva psicológica, ele se estende ao plano da história; a necessi-
duradouras , embora estivessem prenhes de significação histórica, dade de rever a infância reside na necessidade de refazer a
tanto pessoal, do adulto que revê sua infância, quanto coletiva, memória hlstôríca.
vinculada às experiências do menino . O maior revela-se no me- Benjamin retoma à infância, vivida em Berlim, buscando com-
nor. Ao abordar suas recordações de infância, é de um momento preender a realidade daquela época com base em sua visão in-
histórico que Benjamin está tratando. fantil, indo ao encontro do olhar espeoífíoo da criança para os
A infância de um homem está relacionada à infância dos ho- objetos e situações, partindo do olhar do menino de então que ,
mens , a memória individual ligada à coletiva. Os sonhos de como os demais, era tido pelos adultos como ingênuo , desatento,
infância vão ao encontro dos sonhos da coletividade. "A idéia de desajeitado...
116 o' ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 117
Essas aberturas mal davam para o lado de fora; abriam- "o mal-entendido, longe de ser um simples não entender, se re·
se para o subterrâneo. Daí a curiosidade com que olhava vela como entendimento do não-entendido nos objetos" (Anna
"p ara baixo através das barras de cada gradeado que pisava Stussi , apud Gag~bin, 1994, p. 93).
a fim de ganhar do subterrâneo a visão de um canário, de Esse olhar inseguro da criança tem características épicas em
uma lâmpada ou de um morador. Nem sempre era possí- sua relação com fatos e coisas: a percepção de quem está sempre
vel. Mas, se durante o dia fossem vãs minhas tentativas, disposto a olhar outra vez; olhar curioso, científico ; sempre pron-
poderia acontecer que, à noite, a coisa se invertesse, e eu to para se assombrar, como o de Galileu diante da lâmpada.
mesmo me tornasse presa em sonhos de olhares que apon-
tavam para mim de tais aberturas. Eram gnomos de gorros [. . .] um olhar de estranheza idêntico àquele com que o
pontudos que os lançavam. Porém, mal me haviam assus- grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscila-
tado até a medula, já desapareciam [.. ·l· ções surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado
O corcundinha era da mesma espécie. Contudo , não se que fossem dessa forma , como se não entendesse nada do
aproximou de mim. Só hoje sei como se chamava. Minha que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do
mãe me revelou seu nome sem que o soubesse. "Sem jeito pêndulo. O teatro [ ] tem de suscitar no público uma
mandou lembranças" era o que sempre me diziam quando visão semelhante [ ]. Tem de fazer que o público fique
eu quebrava ou deixava cair alguma coisa. E agora entendo assombrado [... ] (Brecht, 1978, p. 117).
do que falava. Falava do corcundinha que me havia olhado.
Aquele que é olhado pelo corcundinha não sabe prestar A estrutura temporal deste método do "d esvio deve ser
atenção (Benjamin, 1993b, p. 142). ressaltada: o pensamento pára, volta para trás, vem de novo ,
espera, hesita, toma fôlego. É o exato contrário de uma
A criança, ao ser olhada pelo "corcundínha", o que caracteri- consciência segura de si(Gagnebin, 1994, p. 99).
za a sua maneira particular de ver o mundo, torna-se um "sem
jeito" que "manda lembranças" cada vez que não se porta como O pensamento inseguro, que titubeia e quer ver de novo , que
adulto, ou como quer o adulto. O "coroundínha" representa a paralisa o tempo, cristaliza o agora e se detém no objeto, é a
inabilidade, o fracasso, a insegurança da criança diante das "cer- percepção da criança benjamínlana, percepção de colecionador,
tezas" dos adultos. É justamente esse olhar próprio , desajeita- " de artista. . . Segundo Benjamin, "como nenhum outro , Brecht
do, aberto a diferentes significados, que estranha um objeto com recomeça, sempre, do princípio. E é nisso, diga-se de passagem,
intuito de assimilá-lo a sua maneira e está apto a novas associa- que se reconhece o dialético" (Konder, 1989, p. 64) .
ções , que vai tocar o interesse de Benjamin. O jeito singular como Esta percepção proposta ao espectador do teatro épico traz
a criança se relaciona com a realidade, que pode ser tornado o mesmo teor de investigação contido nas crianças da pintu-
como um sem jeito, seria, na verdade, um jeito próprio , já que ra flamenga localizada na pãg. 119 (Berthold, 2000, p. 260),
, '.

118 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO I 19


que retrata um auto farsesco numa quermesse camponesa do
século XVI . No detalhe, a percepção infantil. O teatro está na
praça, aberto a todos, os adultos se mostram atentos à repre-
sentação; as crianç-as, no fundo do palco, buscam, através de
uma brecha, um ponto de vista próprio, que descobre, desven-
da, revela, quebra a ilusão, apreende a técnica, recriando, a seu
modo, a história... Um ponto de vista épico . . .
O olhar do espectador épico , como nos permite apontar Ben-
jamin, se aproxima da maneira como a criança se relaciona com
o cotidiano, distaritede uma percepção-lugar-comum, olhar de
um tal "sem jeito" que não se cansa de mandarlembranças, tal
qual o do menino que desmonta o brinquedo e faz história dos
cacos , ou o das crianças da pintura, que escangalham o teatro
para dele. se apropriarem, lançando um olhar ao contrário, pelo
avesso, que tem método próprio. Olhar inseguro que incansavel-
mente começa sempre de novo e volta minuciosamente ao mes-
mo ponto. "Este incessante tomar fôlego é a mais autêntica forma
de contemplação" (Benjamin, apud Gagnebín, 1994, p. 99).

O ESPECTADOR DAS RUAS

Inspirado em Baudelaire, admirável sonhador das ruas da Paris


da virada do século XIX para o XX, Benjamin traçou as carac-
terísticas dojlâneur, este artista das ruas, que passeia pelas ave-
nidas disfarçado de passante, se mistura e some na multidão,
sem jamais perder, contudo, a individualidade e a autoria de seus
passos e seu olhar; injetando seu espírito nas coisas sem, no
entanto, se transformar em coisa. Sem direção precisa, esté ob-
servador da cidade passeia pelas ruínas deixadas pelo proces-
so civilizatório, criando novos significados para os pedaços que
encontra, para os restos que recolhe enquanto passa; visitando
construções que retratam uma memória em destroços, pois
120 o . ESPECTADOR ÉPICO o ESPECTADOR ÉPICO 121
"abandonam os, fragmento por fragmento , o patrimônio heredl- sua biblioteca, e os terraços de café são balcões" (Benjamin , apud
tárlo.da humanidade, empenhando-o, às vezes, a um centésimo Rouanet, 1990, p. 129).
dó'seu valor, para obter em troca a pequena moeda da atualída- Espectador urbano, coloca-se na platéia sem estar alheio ao
'd~" (Rouanet, 1990,' p. 53). Os objetos, ao seu olhar, ganham que acontece, mantendo-se na zona do despertar, intermediária
valor próprio; as vitrines, como espelhos da vida, perdem seu entre sono e vigília, estado em que a consciência está acordada,
caráter unicamente mercadológico e conquistam uma dimen- mas ainda não se esqueceu dos próprios sonhos. "A 'flãmerie o
são poética. conduz para um tempo desaparecido . Cada rua para ele é uma
Ofiâneur é um espectador em plena atividade, que não perde ladeira que desce em direção ao passado - o dele e o da cidade "
a autoria da história que escreve enquanto passa. Estranha o (Rouanet, 1992, p. 50) . O passante, ao contrário dofiâneur, aban-
dia-a-dia, distancia-se e reflete sobre as atitudes dos passantes e donou a memória e, tal qual o espectador ingênuo , se lança na
sobre a sua. É um coletor da tradição esfacelada, que cata e corrente da vida diária, sem empreender uma atitude crítica e
transforma em poesia a memória espalhada pelo chão, que transformadora aos fatos que se sucedem, condenando-se à
reconstrói o presente a partir dos seus restos. "Com a ajuda de reprodução de um passado não revisitado , sendo arrastado em
uma palavra que escuto ao passar, refaço toda uma conversa, direção, a um futuro que ele não consegue evitar.
toda uma vida" (Foumel apud Benjamin,.1993c, p. 204). , O espectador épico, como umfiâneur das salas de espetácu-
lo, passeia pela açãc dramática, observando personagens e si-
Para oflâneur, o mundo da experiência não se extinguiu tuações, embarca na corrente da trama, sem perder, no entanto ,
de todo. Perambulando pela cidade, ele recorre às memórias a capacidade de empreender uma atitude autoral, criativa. Como
nela depositadas, e recorda-se do seu próprio passado. O este sujeito das ruas, ele não se mantém parado, estático, vendo
flãneur .ainda tem a capacidade de narrar, e o que narra é o os fatos se sucederem, uns depois dos outros, mas passeia pela
que ouviu da cidade. Por,um instante efêmero, a memória história, construírido-a.
individual e coletiva volta'a convergir (Rouanet, 1990, p. 65) .
O ir e vlr do contemplador diante da obra
O flãneur arrisca-se nas vivências diárias, dispondo-se a ex- Em suas reflexões acerca da criação artística, particularmente
perimentar situações, não delega a ninguém a autoria da história no ensaio O autor eo herói, Bakhtin (1992), definindo a atitude
que constrói aos pedaços. Constituindo-se, nesse sentido , num do contemplador diante da obra de arte, nos oferece possibili-
espectador épico das ruas , que se abandona ao sabor da corren- dades de melhor compreender o movimento do espectador em
teza para, a qualquer momento, retirar-se do curso para observá- sua relação com a obra teatral, ampliando-nos o entendimento
lo , imobilizando o pensamento ao debruçar o olhar reflexivo acerca da atitude proposta ao espectador do teatro épico .
sobre os passantes. Para ele, "os muros são a escrivaninha em Para ele , toda obra de arte é composta de signos (palavras,
que apói a seu livro de apontamentos, os quiosques de jornal são gestos, etc.): o receptor da obra, ao se relacionar com os signos

\ .
,..

122 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 123


que a constituem, elabora uma compreensão do sentido neles no objeto, nem no psiquismo do criador, nem no do receptor,
encarnado, construindo, assim, o significado da obra. Para efe- mas na relação destes três aspectos.
tuar essa compreensão, respondendo aos signos, interpretando- A atitude do espectador diante de uma peça teatral pode ser
os, o contemplador trava um diálogo tanto com o autor daquela compreendida, segundo Bakhtin, como uma tensão constante
obra quanto com as vozes coletivas que nela ecoam. O sujeito entre elee a obra: no primeiro movimento, o espectador se apro-
da contemplação, comenta Bakhtin, ocupa lugar único na exis- xima da obra, vivenoiando-a, para, no segundo movimento; afas-
tência, o seu pontO de vista é singular e intransferível. A insubs- tar-se dela e refletir sobre ela, compreendendo-a. Ou seja, ao se
tituibilidade do meu olhar, do meu lugar no mundo, me permite relacionar com a obra -teatral, no momentO dos "atos de contem-
uma produção única, "porque neste lugar, neste tempo, nestas plação - atos, pois a contemplação é algo ativo e produtivo"
circunstâncias, eu sou à único que me coloco alí, todos os outros (Bakhtin, 1992, p. 44) -, o contemplador aproxima-se do mundo .
estão fora de mim" (Bakhtin,apud Zoppí-Fontana, 1997, p. 117) . vivido pelos personagens de determinada história, identifica-se
Ou seja, cada contemplador da obra participa do diálogo com o com o herói e vivifica situações de sua vida, vendo o mundo atra-
autor e o grupo social, e compreende os signos apresentados de vés do seu sistema de valores, tal como ele (herói) o vê; coloca-
maneira própria; de acordo com a sua experiência pessoal, com se no lugar do herói e, depois, retoma a si, à sua consciência, a
seu ponto de vista. Assim sendo, o sentido de uma obra é ines- seu lugar na poltrona, para completar o horizonte com tudo o
gotável. que descobre do lugar que ocupa, baseado na sua ótica, no seu
Essa concepção particular da obra, quando elabora uma in- saber, no seu desejo, no seu sofrimento pessoal, na sua experiência.
terpretação, seu ato de compreensão do sentido presente nos Assim, a fusão com o horizonte interno da obra não constitui
signos utilizados, é criativo; desse modo, o contemplador pode o objetivo principal da experiência artística; neste primeiro mo-
ser visto como um co-autor daquela obra. vimento do espectador, em direção ao universo interior da obra ;
a atividade propriamente estética nem sequer começou. O
A compreensão, além de ser um processo ativo, é também contemplador engendra um ato estético, quando compreende o
um processo criativo. Bakhtin afirma que aquele que com- todo do acontecimento representado - que implica um ponto de
preende participa do diálogo, continuando a criação de seu vista externo a cada um dos personagens em particular e ao con-
interlocutor (Jobim e Souza, 1994, p. 109). junto que constituem -, retomando seu ponto de vista, que lhe
possibilita uma dimensão única do acontecimento, e efetuando
O acontecimento artístico completa-se quando o contem- uma interpretação própria do mundo narrado.
plador elabora sua compreensão da obra. li totalidade do fato A tensão que se estabelece neste if e vírdo espectador, nessa
artístico, 'portanto, inclui a criação do contemplador; na relação relação entre identificação com o personagem e o retorno a si
entre os três elementos - autor, contemplador e obra -, reside o mesmo, constitui o movimento do espectador em sua relação
evento estético. O fato artístico não está contido completamente com a obra, quando ele vive as peripécias por que passa o herói
124 o ESPECTADOR tPlcO o ESPECTADOR ÉPICO 125
aí representado, compartilhando suas agruras, e retoma à sua posição que me coloque fora dessa alma [.. .] que a vida
consciência, situada fora do mundo-palco, externa à obra, para dessa alma me aparecerá numa luz trágica, assumirá uma
elaborar sua compreensão do todo do espetáculo. expressão cômica, tornar-se-á bela e sublime [... ]. Se eu
me fundo com Édipo , se perco o lugar que ocupofora dele ,
Abrimos as fronte iras do herói quando o vívencíarnos do deixo de enriquecer o acontecimento de. sua vida, pois
interior e as fechamos quando, do exterior, asseguramos abandono esse novo ponto de vista que lhe é inacessível a
seu acabamento estético. Se no primeiro movimento , inter- partir do lugar que ele é o único a ocupar, deixo de enri-
no , somos passivos, no segundo movimento, externo, [... ] quecer o acontecimento da sua vida. da qual já não serei
somos atívos, edificamos algo absolutamente novo , exce- autor-conternplador (Bakhtin, 1992, p. 86) .
dente (Bakhtin, 1992, p. 106).
Ao-afastar-se da obra, olhando-a do exterior, o sujeito da con-
Para compreender esteticamente os questionamentos do templação adquire condições para uma abordagem estética da
personagem, sua vida, seu mundo, o espectador afasta-se da obra, existência interior da peça e para estruturar seu entendimento
retoma à poltrona, assumindo a condição de consciência exter- do todo. Distante dela, o espectador pode completar seu ato , que
na, de autor (co-autor) diante da obra de arte. é necessariamente subjetivo, criativo. O espectador qtie se deixa
Bakhtin, tornando como exemplo a tragédia Édipo Rei, de conduzir pelo ritmo da obra, que se perde no ato de empatia, vi-
Sófocles, afirma que a compreensão do todo dessa obra, a per- ve as situações e circunstâncias experimentadas pelo protagonis-
cepção de seu caráter trágico, não pode dar-se na identificação ta, O espectador "ingênuo" que, sensibilizado pelas agruras ou
com Édipo, inas justamente no retorno do espectador a si, quando envolvido nas peripécias por que passa o herói, compartilha dores
ele se afasta do herói e apreende, situado emsua consciência de e alegrias sem ,no entanto, retornar a si para obter uma visão do
contemplador, a dimensão da obra. todo, abandona apossíbíl ídade estética do seu ato (a atitude re-
flexiva), ao lírnítar-se a uma atitude ética (o envolvimento emo-
Se começarmos a coincidir interiormente com Édipo, cional com o herói). A completa adesão à obra - a vlvencíação ,
perderemos de imediato a categoria estética do trágico. No ao lado de Édipo, de seu destino arrebatador, suas dores , que
interior do contexto dos valores e do sentido em que Édipo despertam a compaixão do espectador pelo sofrimento do herói
vive a sua vida , não há nada que possa estruturar a forma - não passa, portanto, de um ato ético, não podendo ser vis to
da tragédia. Dentro de si mesma, uma vida não é nem como ato estético, em que há relaç~o ativa do contemplado r
trágica, nem cômica, nem bela, nem sublime para quem com a obra, um ato de criação , pois "o todo estético não é algo
vive pessoalmente e para quem a vive através do ato de para ser vivido, mas algo para ser criado" (Bakhtín , 1992 , p. 83).
empatia. É somente com a condição de eu ficar fora dos No teatro, ao interromper a identificação com o herói, a vi-
limites em cujo interior a alma vive a vida , de ocupar uma vifícação do personagem , e retornar a .si para elaborar sua in-
126 O. ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 127
terpretação da cena, o espectador está criando um ritmo próprio, o autor da obra (ou mesmo o herói) pode ser entendido como
em vez de se abandonar ao ritmo proposto pela encenação. Para o outro do espectador, que re-sígnífíca a realidade social, base
criar, para regressar à sua consciência de espectador, exterior comum a todos, possibilitando que ele (espectador) 'veja o seu
ao mundo narrado, conquistando a autoria da obra de arte, o meio social (e a si mesmo) "pelos olhos dos outros" para, em
oonternplador precisa imprimir uma atitude rítmica que quebre seguida, regressar à consciência e elaborar esteticamente res-
e descompasse o ritmo do espetáculo, desvencilhando-o da obra postas que dêem uma visão do todo contido naquele olhar. O
e lançando-o de volta a si, paralisando, assim, o tempo pr~sente contemplador capta na obra a realidade (na qual está inserido)
para debruçar O pensamento sobre as situações apresentadas. vista pelos olhos ,do autor e, posteriormente, retorna a si para o
"acontecimento último", a concepção refletida de um juízo de
o ato criador (a vivência, a tensão, o ato) que enriquece valor acerca da obra.
o acontecimento existencial, que Inícía o novo, é por prin- E o ator, em que fase de seu trabalho executa um ato de criação
cípio um ato extra-rítmico... A existência ritmada tem uma estética? Não é, aponta Bakhtín, na fase em que vive o herói, em
"finalidade sem finalidade" (gratuidade), umafinalidade que que se exprime pelo interior do personagem, vivendo por dentro
não emana de uma escolha, de um julgamento, que não im- esta ou aquela atitude. O ator pratica ato de criação quando, de
plica responsabilidade (Bakhtin, 1992, p. 133). fora (ao tratar o personagem na terceira pessoa do singular),
com base em sua experiência externa, cria e dá forma à imagem
o espectador diante de uma encenação, bem como o sujeito do her6i, concebendo o personagem como um todo que não pode
diante de um fato existencial, um acontecimento cotidiano, ne- ser considerado isoladamente, mas que se insere como elemento
cessita, para interpretá-lo, imprimir um ritmo próprio, inter- no todo da obra.
rompendo o movimento ritmado, tanto da obra quanto da vida.
Todo ato de compreensão, portanto, implica atitude rítmica, Por conseguinte, o todo da peça será percebido não de
criativa. A compreensão estética de algo que nos diga respeito dentro do her6i - enquanto acontecímento de sua vida -,
na vida, aponta Bakhtin, se assemelha ao movimento último do não enquanto horizonte de sua vida, mas do ponto de vista
contemplador na arte. exot6pico do autor-contemplador dotado de sua própria
atividade estética [... ] (Bakhtin, 1992, p. 93).
Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos dos
outros, sempre regressamos a nós mesmos; e o aconteci- Em outras palavras, o ator executa, um ato estético quando é
mento último, aquele que nos parece resumir o todo, realiza- autor, ao mesmo tempo que espectador ativo, do personagem
se sempre nas categorias de nossa própria vida (Bakhtin, que representa.
1992, p. 37).
128 o ESPECTADOR tPICO O ESPECTADOR tPICO 129
[. • .J se me restrinjo a identificar-me com ele [o herói], não
.9 espectador breohtíano, o historiador benjaminiano posso intervir em sua vida, pois essa intervenção supõe
e o contemplador bakhtlníano minha exotopia em relação a ele - era o caso de nosso bom
O teatro épico foi criado tendo em vista o espectador da era homem (Bakhtín, ibidem, p. 95)
moderna; esse indivíduo, tal qual definido por Benjamin, expul-
so da esfera do discurso vivo, que abandonou o seu passado e , A empatia, a identificação com o protagonista, bem como a
com ele, as possibilidades de transformar o presente; esse es- dramaticidade, não estão ausentes do teatro épico. Brecht, no
pectador passivo das salas e ruas -que, solitário em sua vida coti- entanto , quer interromper aquilo que considera empatia por
diana, totalmente desprovido de experiências comunicáveis e abandono : o passivo deixar-se levar da platéia. Propõe-se que o
ausente da história, se lança por inteiro na identificação com o espectador se aproxime e viva o mundo narrado , mas não se
herói da história narrada, abandona-se na empatia com o prota- abandone nesta vivência, esquecendo-se de si, de sua capacida-
gonista e, em "devaneio passivo", como o leitor ingênuo de um de reflexiva, da sua potencialidade criativa e transformadora .
romance, transfere a outro a criação que lhe cabe, abdicando de A atitude proposta ao espectador brechtiano - a quem se apre-
seu ponto de vista. senta uma narrativa que avança aos golpes, interrompendo a
identificação deste espectador com o protagonista, distancian-
Por vezes, à leitura primária de um romance , o leitor in- do-o da ação - pode ter seu entendimento ampliado a partir da
gênuo substitui a percepção pelo devaneio , um devaneio relação que o contemplador bakhtiniano estabelece com a obra.
. que não é mais seu devaneio livre, e sim o devaneio passivo, Ou seja, tal como o movimento proposto ao espectador do tea-
determinado pelo romance, que o leva a identificar-se com tro épico, o movimento de ir e vir do contemplado r em relação
o protagonista... cuja vida vivenciarácomo se ele próprio ao herói é , primeiramente, o de se aproximar, quando ele vívencla
fosse o herói (Bakhtín, 1992, p. 49) . as peripécias do herói , partilha seus sentimentos , suas emoções,
A atitude ingênua do bom homem para com o herói, iden- e, posteriormente, o movimento de retorno a si, quando o con-
tificando-se com o personagem e compartilhando suas agru- ternplador se afasta do herói , reassumindo seu lugar na poltrona
ras, se efetivapelo fato do espectador não saber encontrar e, daí , de um ponto de vista externo, elabora seu entendimento
uma posição fora do acontecimento representado que pu- da obra, sua compreensão do todo .
desse transformar a sua atividade em um sentido estético e Brecht queria construir um teatro que revisse não somente a
não ético . O espectador ingênuo passou para o outro lado arte do encenador, mas também, e especialmente, a do especta-
do fosso, colocou-se ao lado do herói e, com isso, "destruiu dor. "Um dos princípios essenciais da teoria do. teatro épico é
o acontecimento estético de que deixou de ser o espectador- que a atitude crítica pode ser uma atitude artística" (Brech t,
autor" (Bakhtln, ibidem, p. 95). 1989, p. 366).

~ .
"

o ESPECTADOR ÉPICO 131


130 o ESPECTADOR ÉPICO
reflexivamente sobre o agora que salta docontinuum da história.
Esta atitude crítica [adotada pelo espectador épico] não
Atitude semelhante à proposta ao espectador épico que, distante
deve ser considerada como uma atitude científica puramente
da cena que lhe é narrada no pretérito , a cada interrupção, é
racional, feita de cálculo e neutralidade. Ela deve ser uma
convidado a refletir sobre a dimensão social do acontecimentO
atitude artística, produtiva, cheia de prazer (Brecht, ibi-
apresentado. Estancar a vida-rio-que-corre, a linearidade factual
dem, p. 270). da história (ou da ação dramática) , para, num ato extra-rítmico
.. .. . ,
impnrmr uma atitude críatíva. Pois a existência ritmada se torna
Utilizando os conceitos de Bakhtin, podemos dizer que Brecht
gratuita, dotada de "uma finalidade que não emana de uma es-
almejava um teatro que afírmasse a autoria do contemplador,
colha, de uqI julgamento, que não implica responsabilidade"
autoria que se via ameaçada numa relação entre espectador e
(Bakhtin , ibidem , p. 133).
obra, marcada, de um lado, pelo indivíduo moderno incapaz de
realizar experiências próprias e disposto a se lançar por inteiro
°
Como historiador benjaminiano , o espectador do teatro
épico, em diálogo com o passado, paralisa o tempo presente para
numa empatia sem retorno, sem finalidade estética, e, de outro ,
escrevera história, para, tal como o contemplador bakhtlníano ,
em espetáculos marcados por certo monologismo, fechados ao
elaborar uma compreensão própria da história narrada; impri-
diálogo , tratando o espectador como objeto e não como sujeito
mindo uma atitude criativa e afirmando a sua autoria diante do
da contemplação . fato. Assumindo a função q?e lhe cabe no evento, de (co- )autor
De forma ' semelhante , podemos aprofundar o entendimento
da obra de arte, o espectador teatral pode ser definido como
da atitude proposta ao espectador brechtiano, na relação com o
produtor de conhecimentos , já que o ato de compreender de-
fato histórico trazido à cena, se o compararmos com o movimento
manda elaboração.
do historiador benjaminiano em direção ao passado histórico .
O caráter pedagógico do teatro épico, portanto, estaria cen-
trado justamente nesta resposta criativa do espectador às nar-
ATOR- Poderia me dizer o que você entende por historiador?
rativas apresentadas, na sua interpretação do evento, na com-
[ . . .] preensão própria .dos fatos trazidos à cena, na sua elaboração
ESPECTADOR - O historiador se interessa pela. mudança das
estética dos signos utilizados. Um teatro que afirmava a própria
coisas. [. .. ] característica d íalóglca do evento artístico , característica que
ATOR _ O espectador é , então, um historiador da sociedade?
lhe é inerente; que se manifestava contra o monologlsmo de qual-
ESPECTADOR - Sim. quer evento, contra qualquer imposição de determinada narrativa
(Brecht, ibidem , p. 405). como verdade inquestionável; que propunha ao espectador a
construção de uma resposta particular à história contada.
O historiador, na concepção de Benjamin, estanca o momento
Não podemos esquecer que Brecht convivia (mesmo no exílio)
presente para refletir sobre o acontecimento histórico, interrom-
com o movimento nazista que, calcado em fest ividades cívicas e
pendo o fluxo da vida, paralisando o pensamento e se debruçando
132 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 133
outros eventos populares, queria legitimar uma narrativa tota- ordenação do imaginário que lhe está sendo proposto. Estabe-
lízante-e totalitária: o mito da superioridade ariana. lece, assim, uma relação entre a história narrada e a sua, experi-
mentada no seu cotidiano. É com base na própria experiência
Fez-se notar freqüentemente a importância insólita con- que o ouvinte vai éons tru ír o entendimento da que lhe é contada,
cedida à encenação na política nazi. A estética, nomeada- é no cruzamento dos fatos narrados com as experiências pessoais
mente a da "obra de arte total", elaborada pelopós-roman- que ele produz as reflexões acerca do que ouve (e doque houve).
tísmo e Wagner, que privilegia a ópera e o cinema, artes Ao rever suas experiências, à luz da narrativa, o ouvinte as choca,
"completas", é posta ao serviço do despotismo, derrubando fazendo nascer o pensamento crítico.
toda a economia do projeto schilleriano. Muito longe de A narrativa permite diversas elaborações. Cada pessoa que
educar a humanidade e de a tornar ma is apta às Idéias , a ouve produz uma interpretação própria do fato narrado. Livre
representação sensível do povo para si mesmo favorece a das sutilezas psicológicas que o prendem à ação dramática, o
sua própria identificação como singularidade de exceção. espectador épico, ouvinte da narrativa, distancia-se, retoma a
As "festas" nazi , monumentais ou familiares, exaltam a iden- seu universo pessoal e estabelece vínculos entre as experiên-
tidade germânica tornando sensíveis aos olhos e aos ouvidos cias vividas e as narradas, elaborando um juízo de valor sobre
as figuras simbólicas da mitologia ariana. Trata-se de uma situações que lhe são apresentadas, recriando tanto a história
arte da persuasão, que só conseguiu lugar eliminando as contada quanto a sua, chocando, assim, os ' ovos da própria
correntes vanguardistas orientadas para a reflexão (Lyo- experiência. Autor das histórias que lhe foram contadas, o
tard, 1986, p. 66). espectador assume também a autoria da sua história pessoal e
coletiva.
o teatro de Brecht tinha uma vontade educacional, a de afir- Os sonhos do passado narrado buscam comunicação com a
mar ao espectador a possíbllídade estética,portanto, reflexiva, atualidade. O espectador lhes fornece o oxigênio das próprias
de seu ato, estimulando uma atitude responsiva, autoral, deste experiências, entrecruzando os fatos no coruiriuurri do tempo e
espectador diante dos eventos cotidianos e das narrativas que fazendo saltar deles o agora revolucionário , libertando os sonhos
lhe eram propostas. para que , com seu potencial transformador, invadam e despertem
o presente e o futuro. A narrativa deixa o espectador entre a
A ESCUTA, O SONHO EA COLETA zona do sonho e a zona do despertar, lançando-o na corrente do
enquanto escuta a narrativa e sonha com a história que lhe tempo, em que os fatos estão desprovidos de sucessão linear,
vai sendo contada , o ouvinte " c 1toca os ovos daa expen
exoeriê nci'a " em que passado, presente e futuro sé cruzam, e a história é uma
(Benjam in, 1993a, p. 204). Quem ouve a narrativa, tal como o construçãoque se faz pela sucessão de idéias, desejos e necessi-
contemplador bakhtlniano , entrecruza a história que está sen- dades. Assim , o espectador épico escuta, sonha e coleta. Escuta,
do contada com a sua, em um movimento de compreensão e sonha e desperta.
134 o ESPECTADOR ÉPICO

O "desper tar " constituía uma "zona" privilegiada, na qual


o sonho já não prevalecia e no entanto continuava próximo,
o sujeito podia aproveitá-lo, extrair dele significações pre- .
ciosas [; .. ]. Em estado de vigília, quando está plenamente
acordado, o sujeito paga um preço muito alto pela eficácia:
sua consciência se articula em moldes inevitavelmente
5
utilitários, sua razão tende a se enrijecer, perde algo de sua
capacidade de rejuvenescer no contato com o . novo. O O TEATRO ÉPICO MODERNO
"despertar" é uma vigorosa experiência dialética: ele cri a E A CONTEMPORANEIDADE
condições para quearazão -astuciosame,n.te.;;.. se renove e
amplie seus horizontes. ((O novo método dialético na história o meu barraco
Hoje está valorizado,
se apresenta como a arte de compreender o presente como S6 por causa de uma antena
O mundo no despertar, um mundo ao qual se liga, verda- Que eu instalei no telhado.
A parabólica
deiramente, esse sonho que chamamos de ,pas sado" (Kon- Foi trazida por um temporal,
der, 1989,p.82 ) Eu achei no mato
E botei no barraco
Na cara-de-pau.
o pensamento crítico irrompe dos ovos da experiência que Quando tem blits: no morro
vão sendo chocados. Os acontecimentos históricos redlrnen- O primeiro barraco
A levar a geral é o meu,
sionam os fatos cotidianos. O passado força o presente a des-
Pois está sempre lotado
pertar. E todos pensam
Que estou no apogeu.

Barbeirínho do Jaearezinho
Marcos Diniz & Luiz Grande

As alterações no modo de vida contemporâneo


Desde o surgimento do teatro moderno, na virada do século
XIX para o XX, até Os dias atuais, a relação do espectador com a
obra teatral vem sofrendo modíflcações significativas, e isso por-
que a vida moderna - e a própria maneira de representá-la - é
bastante mutável. Essa arte busca, assim , rever ocncínuamente
suas propostas para manter um diálogo profícuo com a SOCiedade.
1J5
136 o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPOR:ANEIDADE 137
As transformações na vida social contemporânea podem ser busca narcisista da sua identidade" (Tourraine , 1997, p. 198).
percebidas, por exemplo, a partir da infinidade de novos prece- Contudo, se cada qual, em suas investigações particulares, bus-.
dírnentos espetaculares que imprimem um tom Iíccíonal ao dia- ca u~a maneira. própria de ser, fugindo de qualquer modelo
.a-día e nos deixam expostos a um turbilhão de informações que comum, essa procura pela diferenciação dos estereótipos , por
se renovam a cada instante. A expansão dos meios de comunica- vezes, resulta em outra estandardízação, que leva todos a agi-
ção de massa, que ampliam incessantemente sua capilaridade rem do mesmo modo ao se proporem diferentes, estabelecendo-
no tecido social, incrementada pela multiplicação de máquinas se uma conduta comum de tentar ser particular. O subtexto des-
e eventos, e a criação constante de diferentes canais de aproxi- ta sedução ao personalismo poderia ser algo como "seja você
mação suscitam no indivíduo contemporâneo sensações e estí- mesmo, sendo igual a todo mundo ".
mulos diversos , provocam e interrompem raciocínios e estabe- A interação proposta ao indivíduo contemporâneo nos diver-
lecem profundas alterações nos valores éticos e nos conceitos sos eventos das mídias - seja 'por meio de ligações telefônicas
estéticos. A complexidade das redes de comunicação engendra- para programas de rádio e de televisão , ou de cartas e e-mails
das no século XX requisita, assim, maneiras próprias de perce- para jornais e revístas, etc. - em que os sistemas de comunica-
ber e compreender os acontecimentos sociais. ção se abrem democraticamente para a participação do público ,
A espetacularidade dos informes pode ser observada em dife- torna-se cada vez mais freqüente. O que está em jogo, entretan-
rentes instâncias, desde os anúncios de produtos para consumo to, nessa lnterativldade, é muito menos a relevância da expres-
até a apresentação dos fatos sociais. A própria atividade política são do participante e, sim, lI O direito e o prazer narc íslco do .
vê-se transformada, vivendo sob a égide do espetacular; A cons- indivíduo que se exprime para nada, para si apenas, mas veicula-
tituição da imagem do homem público, com suas exigências éti- do e amplificado por um médium" (Lipovetsky, 1983 , p. 16).
cas, torna-se espetacularizada, podemos até dizer estetizada. O Esta pseudo-interação, já que a intervenção do espectador não
indivíduo do final do século ~ deu-se conta de que a única constitui uma participação efetíva que, de fato , influencie e mude
maneira de destacar-se perante os demais é ter sua imagem vei- os rumos do que foi previamente programado, pode ser compa-
culada pelas redes e que não se deve dar atenção a quem não rada à crise de participação que se manifesta no jogo político
circule por esses canais. das democracias representativas, em que é oferecida aos cida-
A falta de crédito nos projetos globais de reestruturação da dãos ampla liberdade de escolher seus candidatos , contanto que
vida humana, motivada pela sensação de sua falência, pro voca optem entre A ou B. O .papel proposto ao cidadão-espectador,
desconfiança acerca de qualquer proposição de novos projetos, em qualquer dos casos, parece ser o de dar legitimidade a um
ou mesmo da retomada dos antigos. E como as reformas coleti- processo que corre à sua revelia.
vas situam-se num impasse, volta-se para o âmbito individual , As alte rações no modo de vida contemporâneo podem ser
para descobertas de experiências e transformações pessoais. "Os mais bem compreendidas valendo-se da análise da complexida-
atores deixam de ser sociais e voltam-se para si mesmos, para a de que atingiu o sistema capitalista mundial, diante do qual nos
138 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 139
vemos embaraçados pela dificuldade de compreender na totali- alterações nas relações econômicas, políticas e sociais se com-
dade a sua forma . As transformações que evidenciam o advento paradas às engendradas na modernidade, e requisita novos pro-
da sociedade pós-industrial constituem sinais culturais marcantes cedimentos estéticos que possam estabelecer um diálogo efetivo
'de um novo estágio na história do modo de produção, que po- com os espectadores deste tempo.
dem ser observados nos seguintes fenômenos atuais: a explosão
tecnológica que , com seus inventos e serviços, desempenha o O fato é que a sensibilidade atual é claramente distinta
papel de principal fonte de lucro empresarial; o.predornínlo glo- da que vigorou até o início da Segunda Guerra Mundial ou,
bal das corporaçõesmulttnacíonats, diminuindo o poder de de- para procurar outros marcos , diversa da que orientou a
cisão dos Estados nacionais; e a ascensão e amplo domínio dos percepção, a emoção e a reflexão até o advento da bomba.
conglomerados de comunicação, que ultrapassálIl fronteiras. Fenô- atômica, o desenvolvimento da .televísão e a formulação do
menos que provocaram profundas conseqüências pelos quatro novo pensamento científico que, iniciado com Einsteín na
cantos do planeta, alterando interesses políticos nacionais e in- primeira metade do século, foi (e vai) lentamente penetrando
ternacionais, o ciclo de negócios, padrões de emprego e até o-cotídíano . Depois de Hiroshima e Nagasakí, da Guerra
mesmo relações de classe. Fria, da invasão da Hungria pela URSS, da Guerra do Vietnã,
da rebelião dos jovens em 1968, da Primavera de Praga, do
o capitalismo avançado continuava sendo uma socieda- choque do petróleo, da queda do muro de Berlim, do esfa-
de de classes, mas nenhuma classe dentro do sistema era celamento da antiga URSS e da inquietante ascensão dos
exatamente a mesma de antes [. ; .], À medida que foi re- pré-modernos fundamentalismos religiosos em todos os
volvida uma ordem industrial mais antiga, as tradicionais .seus modos e versões, a sensibilidade humana não pode
formações de classe se enfraqueceram, como identidades mais ser a mesma e não pode mais ser estimulada ou atingi-
segmentadas e grupos localizados, tipicamente baseados em da pelas propostas que, de um modo Ou de outro, puderam
diferenças étnicas ou sexuais, se multiplicam. Em escala ser chamadas de modernas (Teixeira Coelho, 1995, p. 7).
mundial- na era Pós-Moderna, a arena decisiva - nenhuma
estrutura estável de classe comparável à do capitalismo Pode-se observar, nas últimas décadas do século XX, um es-
anterior cristalizou-se ainda. Os que estão acima têm a coe- maecimento-da perspectiva revolucionária da modernidade , não
rência do privilégio; os que estão embaixo carecem de uni- apenas em suas inovações artísticas, mas no questionamento a
dade e solidariedade. Um novo "trabalhador coletivo" tem seus principais valores constitutivos, que são: a aposta na exis-
ainda que surgir (Anderson, 1999, p. 7~). tência de uma razão universal capaz de defínír com segurança os
rumos da coletividade, a valorização da idéia de pátria e a busca
Esse multífacetado modo de vida contemporâneo, composto pelo incessante progresso da humanidade. Um conjunto de va-
por ingredientes bastante específicos, marca, assim, profundas lores que se revelam desgastados, o que indica a busca de novas
140 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORA NEIDADE 141
direções, já que o investimento nesses valores nãosígníflcou nem reformulação d~ vida humana, encontra condições bastante difí-
de longe, e a história o demonstra, a prometida conquista da ceis para um diálogo efetivo com a experiência contemporânea.
/

felícídade pelos homens .


.' Define-se a dita "falê ncia" dos projetos iluministas, em espe- Tudo no ar parece confirmar a sensação generalizada de
cial o liberalismo e o socialismo, que alimentaram a utopia da que "os tempos modernos agora terminaram" e que algu-
modernidade - apoiados na idéia gerada no Iluminismo de uma ma divisão , algum corte fundamental ou salto qualitativo,
razão libertadora, voltada para a concretização dos anseios de agora nos separa decididamente daquele que foi o novo
justiça social e autonomia do homem -, a partir do momento em mundo do início do século XX, o do modernismo triunfan-
que se percebe que a universalidade da razão pode não ser um te (Jameson, apud Anderson, 1999, p. 60).
parâmetro eficaz para qualquer grande projeto de transforma-
ção, tomando-se como exemplo os atos de barbárie desencadea- As profundas alterações no modo de vida trazidas pela con-
dos em nossa história recente em nome da razão. temporaneidade põem em xeque as proposições artísticas mo-
dernas e requisitam aos artistas de teatro novos procedimentos
Nem o liberalismo, econômico ou político, nem os diver- estéticos, em consonância com a percepção e a sensibilidade do
sos marxismos saem destes dois séculos sangrentos sem espectador de nossos dias , solicitando a elaboração de propostas
Incorrerem na acusação de crime contra a humanidade. artísticas que tomem posição diante do horizonte deexpeotatl-
Podemos enumerar uma série de nomes próprios, nomes va do receptor contemporâneo, que apresenta feições particula-
de lugares, de ·pessoas, datas, capaz de ilustrar e de fundar res. Assim, estando estruturado com base nos critérios estéticos
nossa suspeita. Depois de Theodor Adorno, usei o termo modernos, questiona-se a atualidade do teatro épico , que teve em
"Auschwitz" para significar quanto a matéria da história Bertolt Brecht seu principal teórico e é, sem sombra de dúvi-da,
ocidental recente parece Inconslstente relativamente ao um marco fundamental nacriaçãoteatral do século XX. Porém,
projeto "moderno". de emancipação da humanidade (Lyo- de que maneira essas transformações no modo de vida inviabi-
tard, 1993, p. 95). llzarlam propostas ditas "modernas"? Por que as proposições artís-
ticas não provocariam as mesmas reações de antes? Em que pro-
A arte moderna estava, de uma ou outra maneira, vinculada a porção as modificações na relação do indivíduo com a socieda-de
esse projeto revolucionário de transformação da vida social, ins- poriam em questão os procedimentos do teatro épico moderno?
pirada pela visão utópica de um novo mundo possível. Atual-
mente, esse novo mundo parece inconcebível ou, ao menos, As implicações estéticas da vida contemporânea
não se conseguem formular opções consensuais sobre que ca- O projeto moderno de reformulação social pretendia destruir o
minhos trilhar para alcançá-lo. Assim, uma proposição estéti- mundo velho einstaurar um novo, modificando totalmente as estru-
ca ancorada em qualquer síntese coletiva, ou grande proposta de turas com suas propostas revolucionárias. Os artistas modernos ,
142 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANErDADE
o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 143
por sua vez, imbuídos desse espírito, buscavam; com suas obras , forma impossível, associado a um desejo chamado inovação ou
explorar a experiência do choque, da ruptura, quebrando con- simplesmente Novo" (Jameson, 1996, p. 138).
ceitos que tradicionalmente sustentavam as bases da cultura A efetivação de uma grande proposta de renovação social es-
'européia. Entretanto , à proporção em que se sucedem no sécu- barra atualmente, tanto no descrédito de movimentos coletivos
lo XX experi ências modernas , também seu potencial revolucio- já substituídos pelas iniciativas individuais e privadas , quanto
nário vai esmaecendo. Como os eventos artísticos em geral, o na própria impossibilidade de obter-se uma visão totalizante, de
teatro perde o seu poder de negação, rebeldia, transgressão. A conjunto, e que abarque o multifacetado modo de vida contem-
arte não produz mais rupturas como antes , não surpreende nem porâneo. O capitalismo de mercado, em seu terceiro estágio,
choca o público. O choque éuma experiência já consumida pelo penetrou todos os recantos, não há como sair da cultura, colo-
indivíduo contemporân'eo,as revoluções estéticas estão com- car-se fora dela, seja para evitá-la Ou para estar distante e ga-
pletamente diluídas em sua percepção. O teatro, em seus proce- nhar condições para melhor refletir sobre sua totalidade, pois:
dimentos recentes, não causa mais, como a experiência artística
em geral, espanto pela quebra das regras, das convenções. As [... ] não ~á mais lugar pré-moderno nem bons selvagens,
técnicas utilizadas pelo teatro épico moderno não conseguem somente reservatórios de matérias-primas ou de mão-de-
atualmente,' por exemplo , ser tão provocantes quanto outrora, obra, terrenos para exercícios militares ou lixeiras entulhadas
nem podem mais arrancar reações como as descritas abaixo na de latas de conservas e de programas de televisão (Tourraine,
ocasião da estréia de Mahagonny: 1997, p. 100). .

Um dígníss írno cavalheiro, de faces congestionadas, em- O capitalismo de consumo preenche todos os espaços, pene-
punhava um molho de chaves e arremetia triunfante, con- trando e colonizando tanto e Naturesa quanto o Inconsciente, Q
tra o teatro épico. A mulher não o abandonava nesse tran- que pode ser percebido na "destruição da agricultura pré-capi-
se. A digna senhora tinha dois dedos enfiados pela boca talista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e a ascensão das
adentro, os olhos semicerrados em fenda, as faces balofas. mídias e da indústria da propaganda" (Jameson, 1996, p. 61).1
Soprava pela extremidade da chave do cofre como num as-
sobio (Folgar, apud Brecht, 1978, p. 15). 1 Como exemplo da poluição (e colonização) do im aginário pela cultura de
mercado, posso citar um exercício teatral realizado com meus alunos no
Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, 110 qual
A arte moderna, em suas diferentes configurações, estava propus que ouvissem As quatro estações, de Vlvaldí, e construíssem
marcada pela vontade da quebra absoluta com tudo que vigora- cenas a partir da livre composição das imagens 'suscitadas pela música. A
grande maioria dos participantes apresentou elaborações cênicas que, de
va até então, vontade de abarcar o todo social e transformá-lo
uma ou outra maneira, estavam relacionadas a uma recente propaganda
completamente, mostrando-se imbuída de uma espécie de "im- de sabonete que utilizava esta música em seus comerciais de TV. Daí a
pulso demíúrgico no qual um desejo chamado totalidade é, de importância de um trabalho destinado à descolon ízação do imaginário.
144 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 145
Se partirmos do pressuposto de que não há mais refúgio seguro o sistema não mapeável do capitalismo avançado anula aopo-
para onde se possa retirar, de que não há mais lugar em que se síção entre interno e externo e gera um todo sem perfil , irre-
possaestar fora da cultura para sobre ela refletir, o que define a presentável, que se caracteriza por uma totalidade diferente-
ausência de um ponto de vista que englobe a totalidade do modo mente constituída ~- solicita novo mapeamento , novas represen-
de produção contemporâneo em suas diferentes manifestações, tações .
a elaboração de um projeto un íversalízante de renovação social MaS como representar a vida em seu modo contemporâneo,
se torna uma tarefa de difícil realização, ou que requer redi- concebendo-a como síntese orgânica, se estamos imersos full
mensionamento. time, condicionados à cultura capitalista de consumo, impossi-
A impossibilidade de uma visão global da cultura prejudica a bilitados da visão do t~.do , condenados a estilhaços, se nosso
formulação de qualquer síntese que se proponha a dar conta do ponto de vista está cada vez mais submetido à contemplação de
todo social, pois não há ponto de vista que permita um olhar frações do mundo, e a impossibilidade de uma visão de conjunto
suficientemente abrangente, que alcance todos os aspectos da se torna radical por uma realidade cada vez mais ficcionalizada,
vida humana neste momento histórico. Nenhuma narrativa virtualizada?
totalizante oferece, portanto, consenso, nenhum grande projeto A incapacidade de abranger o ambiente social em todas as
de transformação consegue abarcar todas as reivindicações, sa- suas dimensões e complexidades e de estruturar um projeto que
tisfazer todos os desejos, reunir múltiplos ideais. Não havendo responda aos anseios e necessidades das sociedades moderniza-
condições para que vigore qualquer proposta de salvação da das é um dilema contemporâneo. Em suas divers idades e varia-
coletividade cada vez mais explodida em átomos dessocializados. bilidades, essas sociedades "ultrapassam as dimensões das con-
dições 'de vida que poderiam ser calculadas pela imaginação do
A síndrome Blade Runner é apenas isto: a interfusão de projetista" (Habermas apud Anderson, 1999, p. 50) . E se a im-
multidões num bazar de alta tecnologia' com seus múlti- possibilidade de formulação de projetos é fato, a construção de
plos pontos nodais, tudo selado num interior sem exterior, modelos que funcionem como sínteses das sociedades moderní-
que por isso intensifica o anteriormente urbano a ponto de zadas apresenta as mesmas dificuldades. E aqui poderia ser apon-
ele se tornar o sistema não mapeável do próprio capitalis- tado um problema pelo qual passa o teatro épico moderno, se o
mo tardio . Agora é o sistema abstrato e as suas inter-rela- relacionarmos aos aspectos da vida no período em que .vivemos.
ções que estão de fora: O antigo domo , a antiga cidade, além A idéia , concebida por Brecht, de construção de uma peça que
da qual não há nenhuma posição individual disponível , de funcione como modelo científico, como narrativa sintética que
forma que ele não pode ser inspecionado coma uma coisa demonstre o funciona~ento do aparato social capitalista, em
em seu próprio direito, apesar de ser, certamente, uma to- que as contradições sistêmlcas são reconhecidas e a solução
talidade (Jameson , 1996, p. 162). direciona para uma transformação radical do sistema, indican-
do a revolução socíalísta com o. saída necessárl a, esbarra nas
146 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 147
mesmas dificuldades dos projetistas contemporâneos. Dificul-
Propondo-se a dialogar com o passivo sujeito da modernidade,
dades manifestas tanto na representação de um todo social or-
alheio ao funcionamento das engrenagens do sistema capitalista,
gânico, quanto na resolução de problemas sistêmicos. Não há
e alienado de sua capacidade produtiva e sua potencialidade
condições, neste início de século XXI, para se formular uma sín-
transformadora, o teatro épico quer implementar um procedi-
tese do todo social, nem para apontar a conclusão da parábola
mento estético que produza no espectador um efeito desalienador,
para a revolução do sistema capitalista, indicando o socialismo
e o leve a perceberas forças sociais que o mantêm afastado do
como caminho efetivo, concreto..
processo histórico. O teatro funcionaria como instrumento de
As saídas possíveis deparam com indicadores de caminhos um
denúncia, revelando bastidores da cena e da vida, possibilitando
tanto confusos e incertos, o que dificulta a formulação de uma
ao espectador perceber, negar e modificar sua conduta alienada.
proposta estética que se estruture como expressão COletiva.
Mas como compreender alienação nos dias atuais, época em
que a informaçãose desloca ainda mais rápido que os dias? Como
[... ] se programas estéticos podem ainda com certeza ser
dizer que está alienado o indivíduo superinformado? Como jul-
encontrados - embora hoje mais como expressão indivi-
gar que' alguém esteja alheio aos diversos aspectos dos fatos
dual que coletiva -, o que indubitavelmente falta é uma
atuais? Como pensar em propor procedimentos estéticos de-
visão revolucionária do tipo articulado pelas vanguardas
salienadores a indivíduos plugados, de um modo ou de outro, na
históricas (Anderson, 1999, p. 134).
híper-ramífícada rede comunicacional? Para que propor-se a
denunciar, a revelar os bastidores do que está superdenunciado
A tomada de consciência proposta ao espectador do épico
e revelado pela mídia? Não estaria a desalíenação, hoje, já incor-
moderno consistia em levá-lo a perceber mecanismos de um sis-
porada ao discurso tanto da mídia quanto da mercadoria?
tema opressor e, ao mesmo tempo, apontar uma saída prática: a
Diversamente da época em que foi proposta, quando destruía
revolução socialista. No entanto, é de difícil aplicabilidade pro-
uma tradição teatral que chamava de "ilusionista", tradição essa
duzir, atualmente, no espectador este efeito ideológico, tornan-
que tinha por objetivo convencer o espectador de estar diante
do-se necessário que nos interroguemos acerca de como com-
da própria vida, em vez de assumir a teatralidade do evento, a
preender a tomada de consciência nos dias de hoje. Tomada de
proposição desalienadora do teatro épico moderno está disse-
que consciência? Consciência revolucionária, quando estão des-
minada nos media, de maneira que a denúncia de um sistema
feitas as condições político-sociais que sustentavam o engaja-
opressor e alienante não produz nenhum choque, não propõe
mento em 'qualquer grande proposta de reformulação social?
qualquer olhar de estranheza, para ~m indivíduo ligado à rede
Consciência de classe, quando a luta de classes, ou a base social
de informação e com a percepção acostumada aos procedimen-
da divisão de classes, em seus padrões modernos, tal como for-
tos estéticos modernos. A revelação da teatralidade da encena-
jada na SOCiedade industrial, está enevoada "a ponto de perder
ção, O desvendamento do próprio veículo teatral, estava em con-
toda a sua radicalidade"? (Lyotard, 1989, p, 36).
sonância com a vontade de desnudar os mecanismos do aparato
148 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 149
social, os bastidores de todos os eventos. Atualmente, podemos ao fascismo - a não ser a alegação debilmente pragmática
observar essa estética da revelação tanto em comerciais de TV, de que o fascismo não é o modo como as coisas funcionam
quedeixam propositalmente à vista do telespectador os proce- em Sus-sex ou em Sacramento (Eagleton, 1999, p. 30),
dimentos de criação e gravação, quanto - e aqui em outro senti-
do sobre ela - em embalagens de produtos alimentícios, que Ao dar a guinada, visando escapar do discurso Ideologizante,
revelam ao consumidor quais são os ingredientes e nutrientes o pós-modernismo, ou parcela significativa de sua produção, es-
que compõem aquele produto; sem falar nos artigos de jornais e correga para a absoluta ineficácia. O tratamento jocoso a qualquer
revistas e nos noticiários televisivos que estão sempre em busca esboço de vontade crítica faz, por vezes , o sorriso gelar nos lábios .
de revelar os mais diversos bastidores: A informação acerca da A arte contemporânea não está, contudo, restrita a essas pro-
produção é cada vez mais um procedimento estimulado pelos duções paralisantes, sendo, de fato, empurrada em duas dire-
veículos de comunicação e exigido pelo consumidor. ções: uma vontade de rever criticamente as propostas modernis-
tas e reincorporar elementos ao ambiente atual, e um ímpeto de
A negação pós-moderna "se lançar de cabeça no novo mundo sedutor da fama, do comer-
Como oposição às utópicas propostas do período anterior cialismo e do sensacionalismo" (Wollen apud Anderson, 1999,
e sugerindo um tipo diferente de relação entre arte e socieda- p. 124). Essas proposições que, em geral, ajustam-se ou fazem
de, a cultura pós-moderna, a partir das últimas décadas do sécu- apelo ao espetacular e estão apoiadas no abastecírnento maciço
lo XX, expõe a crise de muitas certezas confortáveis, subver- do mercado, têm predomínio absoluto no período.
tendo, até ironicamente, as altivas verdades do modernismo, Todavia, além das tendências pós-modernas que pretendiam
do evolucionismo e até mesmo dos modelos críticos. Os pós- instalar um produto cultural de acesso mais fácil, geralmente
modernos, em sua negação ao movimento anterior, relativizam associado à utilização dos novos media, há também , por parte
.a crítica social e tendem a render-se a uma resignação aco- de produtores culturais, a busca de um além do modernismo ,
modada: pela radicalização de suas negações da lnteliglbílídade imediata
e da proposição autoral feita ao receptor.
[... ] a um ceticismo politicamente paralisante, a um A modernidade inaugurou a participação em todas as instâncias
populismo vistoso, a um relativismo .moral bem desenvol- sociais. A arte desse período, imbuída desse espírito, pretendia
vido e a uma marca de sofismá segundo o qual, uma vez que provocar o espectador, propondo-lhe que raciocinasse critica-
todas as convenções são, de qualquer maneira, arbttrérías, mente acerca da obra e elaborasse ínterprecações próprias so-
podemos perfeitamente nos adequar às do mundo livre. Ao bre ela. Os artistas modernos promovem, assim, a pluralidade
puxar o tapete das certezas de seus adversários políticos, interpretativa, construindo uma obra de arte aberta, elaborada
essa cultura Pós-Moderna freqüentemente se deixou sem com a participação do espectador, instaurando uma forma artís-
chão também, não havendo mais razões para resistirmos tica em que o espectador se tornaria co-autor. "A própria recep-
150 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 151

ção das obras se personaliza, torna-se uma experiência estética ser contemplado e analisado a partir do ponto de vista próprio
'não amarrada' (Kandinsky), polivalente, fluida" (Lipovetsky, do espectador. Não se propõe ao espectador uma reflexão con-
1983, p. 95). A arte contemporânea, por sua vez, em sua tendên- clusiva, com base em uma síntese, mas uma reflexão analítica, a
cia de análise e especificação do modernismo , vai levar ao extre-
. ser elaborada valendo-se de uma disjunção estética apresenta-
mo esta proposição de autoria feita ao espectador, de maneira da. O artista trabalha recortando e definindo as frações de vida
que não s6 a significação fica aseu encargo, mas, em certo sen- sobre as quais irá debruçar-se, mas os pedaços recortados não
tido, a pr6pria "escritura" artística - o que se' traduz por uma formam necessariamente um todo orgânico. Em oposição aos
radicalização da abertura da forma e da significação. projetos modernos, a contemporaneidade implementa uma guerra
A estética da destruição-construção do moderno - e a descons- contra totalidades, pois a relatividade ganhou o cotidiano, e pon-
trução da cena apresentada pelo teatro épico.• com a interde- tos de vista possíveis estão multiplicados.
pendência dos elementos, é bom exemplo disso ... deixa a obra Se a noção de totalidade associada à construção do.novo está
aberta para que o espectador elabore outras construções, ou- prejudicada, os artistas contemporâneos retratam em suas obras
tras montagens possíveis. não mais uma harmonia orgânica, como a da arte moderna, em
O teatro precisava apresentar um mundo passível de trans- que as partes formavam um todo, por mais que cada fragmento
formação e, como o mundo, a obra teatral poderia ser construída pudesse ser radicalmente diferente do outro. A arte recente se
de outras maneiras pelo espectador. A experiência artística con- constitui, diferentemente, de um hibridismo desconexo, calca-
temporânea vai levar ao extremo essa idéia, apresentando não do na justaposição de elementos que não se harmonizam, ou
mais uma obra aberta, mas uma obra explodida. A realidade não então de partes que soam desnecessárias ao todo funcional da
se mostra mais desconstruída, transformável, e sim dessubs- obra. O que contraria a noção de organícídade observada no
tancializada, necessária de ser concebida. Ou seja, não há mais período anterior ou, ao menos, pressiona essa noção para além
uma realidade, esta não é maisfacilmente apreendida, portanto, dos seus limites.
não há uma obra, mas possíveis obras a serem concebidas pelo A disjunção das partes, a multiplicidade de estilos que defi-
receptor. Assim, a elaboração da obra teatral efetuada pelo es- nem uma descontinuidade lingüística, vai propor, por sua vez,
pectador vai estar necessariamente vinculada à sua construção uma atitude criativa ao interlocutor. Porém, não mais como su-
de realidade. geria a arte moderna, como obra aberta a esperar uma conclu-
A arte na contemporaneidade tenta, desse modo, resolver o são, mas obra interrogativa que espera uma resposta. A arte con-
impasse gerado pela impossibilidade de conce~er um todo orgâ- temporânea formula, nesse sentido, uma releitura da moderna,
nico, uma narrativa que abarque a totalidade, propondo não uma radicalizando suas propostas. Não se trata mais de uma obra
síntese aberta à conclusão e, sim, recortes que proponham uma desconstruída, pronta para ser remontada, e sim de uma obra
atitude analítica ao espectador. Não mais a busca de construir explodida, que provoca O receptor a concebê-la. Se a arte moder-
um consenso acerca da leitura do mundo, mas algo que possa na propõe uma elaboração conclusiva, a da contemporaneídade
152 o TEATRO !tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANElDADE 153
propõe leituras plurais, dissensuais. A compreensão formulada -, o espectador desloca-se de uma narrativa para outra, onde
pelo espectador vai estar mais extremadamente vinculada a lei- cada uma suscita a "renarratlvízação" das anteriores, estabele-
turassíngularízadas ~e mundo, já que não há uma visão de mun- cendo uma tensão entre as diversas narrativas. Um pedaço
do consensual proposta na obra. redimensiona, reéontextuallza outro. Cada retorno reflexivo não
A falta de condições para o "novo", já que tudo foi dito e possibilita uma visão do todo, a elaboração de uma síntese, mas
experimentado, lança-nos numa atitude analítica em direção ao uma visão sempre parcial de quem analisa pedaços que não
passado, ao contrário da modernidade que apontava para um estruturam uma totalidade.
futuro utópico. Mas "o recurso à historiografia dá-se como ins- Soma-se à superposição de narrativas o ajuntamento de esti-
trumento de alteração do passado, não como sua reconstrução los diversos, o entrecruzamento de textos e estilos que se suce-
e preservação" (Teixeira Coelho, 1995,94). Sem encontrar con- dem aos golpes e não se ligam necessariamente por relações
dições que permitam vislumbrar novos caminhos, a contem- causais ou evidências fatuaís, mas por livre associação ou rela-
poraneldade está investida em um movimento de análise da his- ção de necessidades, desejos, vontades, etc. Uma seqüência de
tória. Esse diálogo aberto com o passado pode ser percebido pedaços que redírnensiona o sentido de cada um deles isolada-
nas diversas formas de arte, que utilizam elementos de todas as mente. Esses fragmentos narrativos não se juntam tampouco
épocas, mesclando variados estilos. como colagem aleatória e constituem proposição que só se jus-
A multiplicidade de estilos ajuntados se dá assumídarnente, tifica como revisão dos procedimentos estéticos da modernidade.
deixando-os evidenciados, sem preocupação de criar uma uni- Ou seja, a explosão das narrativas e a tensão estabelecida entre
dade entre eles, de torná-los orgânicos, integrados, apresen- os fragmentos narrativos vão radicalizar o desmembramento de
tando-os como diferentes textos, diferentes narrativas uma narrativa em várias cenas, levando ao extremo o procedi-
desencontradas, decompostas. Procura-se, assim, manter a ten- mento proposto pelo teatro épico brechtiano.
são entre os variados pedaços. O que antes era compreendido
por unicidade agora o é por diferenciação, em vez de relacionar [.... ] uma tensão que é nota dominante entre todas as partes
a parte, o fragmento, com o todo, o espectador relaciona partes distintas de que se compõe e que as "carrega" reciprocamen-
entre si, pedaços que não se encaixam e não compõem necessa- .te. Esta forma é, assim, tudo, menos um conjunto de fatos
riamente uma totalidade. simplesmente alinhados em seqüência (Brecht, 1978, p. 29).
Ao espectador contemporâneo é proposto, assim, que se mo-
vimente pelos vários fragmentos de uma não-obra, pedaços que, Essa característica da produção artística contemporânea,
mesmo em suasoma, não constituem um todo. Lançado em uma marcada pela multiplicidade e heterogeneidade, que se apre-
seqüência de recortes, pedaços decompostos - que se diferen- senta como proposição radical de autoria ao espectador, pode
ciam da seqüência das cenas épicas modernas, pertencentes a. ser compreendida como a suposta existência de uma obra au-
uma mesma narrativa e desconstruídas como partes de um todo sente, que será escrita pelo receptor, um evento inexistente que
154 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEID ADE 155
será criado pelo contemplador. Um exemplo explícito e extre- China, comprado em uma papelaria no bairro de Chínatown,
mado dessa proposição criativa pode ser observado no poema em Nova York. Para cada foto, .o autor criou uma legenda, o
China , transcrito abaixo: poema éo ajuntamento dessas legendas. O sentido primeiro das
frases está vinculado a esse livro ausente, a imagens fotográficas
Moramos no terceiro mundo a contar do sol. Número três. Ninguém nos que estão fora do alcance do leitor do poema. Ao leitor cabe
diz o que fazer. preencher o vazio criado pela retirada das fotos. Ele pode , quem
As pessoas que nos ensinaram a contar estavam sendo muito boazi-
nhas
sabe, criar outro livro, de fotos imaginárias, outro sentido possí-
Sempre é hora de ir embora. vel para essas narrativas desencontradas, outra obra. À profu-
Se chover, você ou tem ou não tem um guarda-chuva. são de narrativas, segue-se uma profusão de silêncios que se in-
O vento faz voar o seu chapéu. .
O sol também se levanta. . terpõem entre uma frase e outra, ou o leitor se aventura por
Preferia que as estrelas não nos descrevessem uns aos outros, gostaria esse vácuo que se estabelece ou pode simplesmente se retirar
quen6smesmos o fizéssemos .
sem nenhuma iniciativa autoral, criadora. Opoema, como é ca-
Corra na frente de sua sombra.
Uma irmã que aponta para o céu pelo menos uma vez a cada década é racterística da arte recente, não tem moral nem aponta conclu-
uma boa irmã. sões, apenas põe na bandeja opções para o self-seroiee analítico
A paisagem é motorizada.
oferecido aos leitores, cabendo ao receptor desvendar um possí-
O trem leva você para onde ele for.
Pontes no meio da água . vel banquete oculto.'
Pessoas desgarradas em grandes vias de concreto, indo para o avião.
Não se esqueça de como vão parecer seu sapato e seu chapéu quando
você tiver desaparecido. o DESCENTRAMENTO DO HERÓI
Até as palavras flutuando no ar fazem sombras azuis. Se no teatro épico moderno, além dos atores, o palco também
Se o gosto for bom, nós comemos. fala, e os diversos aspectos da encenação - cenários, figurinos ,
As folhas estão caindo. Chame a atenção para as coisas.
Escolha as coisas certas. . adereços, iluminação, sonoplastia, etc. - participam da narração
Oi, ad'rJinhe o que aconteceu? O q'uê? Aprendi afalar. Fantástico. da história, o teatro contemporâneo, em seu redimen-sionamento
A pessoa cuja cabeça estava incompleta começou a chorar. da arte teatral do início do século XX, radicaliza essa tendência,
Enquanto caía, o que a boneca podia fazer? Nada.
Vá dormir. . fazendo gritar as múltiplas vozes emitidas pelos elementos cêni-
Você fica superbem de shorts . E a bandeira parece estar muito bem cos , que agora conquistam independência total uns dos outros.
também.
Todos se divertiram com as explosões.
Hora de acordar. A ênfase na diferença e no incomensurável, que tantalízarn
Masé melhor nos acostumarmos com os sonhos. a. experiência contemporânea, aparece, na problematiza-
(Perelrnan, apud Jarneson, 1996, p. 55).
ção da história, na teoria, na cultura e na arte, através de
expressões que são verdadeiras personagens conceituais:
O poema, conta-nos Jameson, e aqui estaria sua relevância,
indeterminado, heterogeneidade, hibridismo, deslegí -
foi concebido pelo autor a partir de um livro de fotos sobre a
156 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 157
tímação, desenraízamento, etc. Todas indiciam, pretendem do palco. No teatro contemporâneo , não se abandona, neces-
significar, o proceso de fuga do consensual, a dificuldade de sariamente, a importância da trajetória do personagem, mas , ao
unificar e to tal ízar, valorizando descontinuidades, contrário do teatro moderno, ele pode não ser mais a linha fun-
desterritorialização , descentramento: mul-tiplicidade damental da proposição espetacular, tornando-se um dos aspec-
(Favaretto, 1995 , p. 29). tos da encenação, dentro de diversas outras possibilidades de
provocação estética presentes no jogo de linguagem que os cri-
Os diversos aspectos da cena podem, agora, contar cada qual adores propõem ao espectador. O sentido desse jogo não está
uma narrativa diferente, ou mesmo manifestar-se em diversos mais restrito à vida do protagonista, os elementos cênicos não
estilos, línguas e linguagens. Polífôníco, o palco contemporâneo giram mais em torno do herói, que foi retirado de seu lugar
comunica-se por meio de várias vozes autônomas, propondo ao central e tratado como um dos muitos elementos de linguagem
espectador uma espécie de jogo de armar, um "faça você mes- trazidos à cena.
mo", monte sua peça teatral a partir de suas preferências, privi- Se o personagem é removido do seu lugar central, a identifi-
legie o elemento e a proposição que mais lhe convir na elabora- cação com o herói (e a quebra dessa identificação) perde tam-
ção criativa de sua encenação. bém sua função de proposição primordial feita ao espectador e
Até mesmo o trabalho do ator, levando ao extremo a tendên- deixa de ser categoria fundamental na análise do' teatro con-
cia modernista, se vê partido em sua multiplicidade de elemen- temporâneo. Constitui-se, desse modo , outro aspecto da en-
tos constituintes, cada palavra passa a ter um valor em si, desta- cenação contemporânea, radicalizando uma tendência do tea-
cada e independente do texto , um gesto pode ganhar autono- tro épico moderno, que buscava não evitar a identificação, mas
mia , desprendendo-se do movimento, e assim por diante. O tra- descolar o espectador de sua vivência das peripécias do herói,
balho do ator; e Brechtjá anunciava isso; nãoserestringe mais a impedindo a empatia por abandono .
compor, dar vida a um personagem, mas se expande na explora-
ção das variadas possibilidades lingüísticas que estão a seu al- Produzem-se ainda efeitos de 'iden tificação, passageiros,
cance e podem ser ampliadas em relações estabelecidas com os fugazes, como uma espécie de espuma da representação .
demais elementos de cena. Formam-se identificações menores , residuais: fios, franzi-
Levada ao extremo a proposta épica de independência dos dos , ou traços, de uma experiência antiga que retoma aqui
diversos elementos da encenação, o palco agora não apenas fala, e lá. Além de surgirem outros tipos de identificação em lo-
como também é protagonista do espetáculo. O personagem (he- cais diferentes, mais intensos, que atravessam o teatro. Mas
rói) perde , dessa maneira, sua posição central no evento. Não não se pode mais pensar a arte teatral valendo-se da iden-
há mais história, peripécia, trajetória, mas múltiplas narrativas tificação com. o personagem. como categoria. determinante
a serem contadas, não mais uma voz centralizando as atenções , de análise (Gu énoun, 1997 , p. 106).
mas variadas emissões de significantes vindas de todos os lados
r'.

158 o TE ATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE


O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 159
O perder-se, lançar-se no universo interior do personagem ,
colando-se diante de su as peripécias e compartilhando seus
A PROPOSIÇÃO PEDAGÓGICA DA ARTE CONTEMPORÃN~A
sentimentos e agruras, deixa de ter força !lO teatro contempo-
O caráter estético do fato artístico, em que se inscreve seu
râneo. Fato que se dá motivado, em .grande parte, pela mudan-
caráter educacional, está diretamente relacionado com sua pro-
ça no campo perceptivo da platéia, habituada aos espetáculos
posição díalógíca, com a efetiva participação do contemplador
diários da mídia eletrônica e, principalmente, à estética cine-
como co-criador do evento. Qualquer anál ise do aspecto peda-
matográfica. A identificação ilusionista abandona o teatro, pois
gógico do teatro de espetáculo, portanto, não pode estar
tornou-se inviável numa produção crua e artesanal, que se efe-
desvinculada da própria busca do 'sentido dessa arte, de sua ca-
tiva em face de espectadores acostumados com recursos
pacidade de dar conta da experiência de seu tempo, já que a sua
tecnológicos capazes de produzir um alto teor,de sensaciona-
possibilidade pedagógica se inscreve em sua viabilidade estética.
lismo.
Uma das importantes características da arte m~derna foi o
Não se vai mais ao teatro para ver (vivenciar) um persona-
estímulo à participação do receptor, convidando-o a estabelecer
gem ou acompanhar um drama, mas para ver o teatro, um es-
uma reÍação co-autoral com o evento, especialmente em uma
petáculo, uma encenação. Não se vai mais ao teatro na espe-
atitude responsiva, de quem formula interpretações para ques-
, rança de ser capturado ou iludido; do teatro não se espera mais
tões apresentadas pelo autor. A arte contemporânea, por sua
que ofe-reça envolvimento irrestrito como herói nem respira-
vez, pretende levar ao extremo essa atitude proposta.
ção ofegante. Quem busca situações dramáticas e identifica-
O teatro épíco moderno funcionava como modelo científico
ções por abandono encontra atualmente no cinema melhor
exposto ao espectador, apresentado érn diálogo aberto com a
endereço.
platéia, convidando-a a refletir sobre aquele sistema, que funcio-
A identificação com o herói perde, assim! sua força na experi-
nava como uma tradução sintética da vida social. Um modelo
ência proposta ao espectador teatral. O mergulho no horizonte
desmontado que era (re)montado na frente do espectador, reve-
interno da obra não se dá mais primordialmente conduzido sob
lando todos os seus mecanismos, seus meandros , já que estava
a perspectiva do personagem, outros elementos o convidam a
inserido na lógica estética da construção-desconstrução que ins-
adentrar no universo da obra. No trabalho do ator, por sua vez,
pirava a arte moderna. Nas últimas décadas, nenhuma narrativa
a identificação com o personagem também deixa de ser o obje-
se acha em condições de sintetizar a vida social contemporânea,
tivo principal, sua função não se restringe mais à construção
pela faÚa de visão de conjunto, pela impossibilidade de abran-
psicológica do personagem, suas possibilidades de proposição
ger os múltiplos pontos de vista possívels, múltiplas interroga-
lingüística estão multiplicadas. Ou seja, para ~: ator contempo-
ções. As grandes narrativas estão explodidas em elementos de
râneo , a ativa participação na lógica do .logo de linguagem pro-
linguagem, com os quais cada qual elabora combinações nem
posto pela encenação se torna uma ocupação tão ou mais im-
sempre estáveis, ou seja, a "falência" dos projetos de renovação
portante que a de fazer viver o personagem.
leva a uma. decomposição ; um sucateamento desses projetos ,
160 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 161
produzindo vários elementos de linguagem, fragmentos de lín- suprimem a reflexividade. A proposição participativa e, nesse
guagemnarratíva que advêrn dessa pulverização e se prestam a sentido, pedagógica, é não apenas conservada, mas radicalizada.
explicações localizadas e não mais globais. No teatro contempo-
râneo, em sua tendência de análise e redimensionamento do épico A caraoterfstíca talvez mais importante de toda a arte
moderno, cada espectador trabalha com esses e outros elemen- recente, mas que já era fundamental na arte de vanguarda,
tos de linguagem a seu modo; formulando sua interpretação do é a reflexividade. A obra não s6 reflete sobre si mesma - é
evento. auto-referente, metalíngüístlca, em termos semi óticos -,
O teatro recente não se encontra mais em condições de se mas é reflexiva porque o prazer e a significação que dela
apoiar na proposição concreta de um movimento coletivo, sus- derivam só podem ser encontrados na reflexão (Favaretto,
tentado por uma grande narrativa, na proposta de engajamento 1997, p. 29).
político, fundamentando-se, portanto, na provocação aos espec-
tadores, formulando um raciocínio estético em que caberia ao Em vez de propor que o espectador feche a obra que se apre-
espectador a elaboração de questões que lhe pareçam pertinen- senta aberta, com uma elaboração responsíva, definindo signifi-
tes, a partir de sua concepção do evento, sua leitura de mundo. cados para os signos propostos, o teatro contemporâneo pre-
A vontade educacional encontrada em tendências da arte tende que a platéia participe, acrescentando significantes ao jogo
moderna efetivava-se, assim, na instauração de uma atitude de linguagem. Menos interessada em formular a compreensão, o
particípatíva, no convite ao receptor para exercer a autoria que fechamento, a sintetízação da obra, ou criar uma u~idade para
lhe cabe, para elaborar uma compreensão pr6pria do evento. as partes, a arte da contemporaneidade quer propor ao especta-
Nessa proposição reflexiva estava estruturado o caráter pedagó- dor que teça análises, elabore outros significantes, empreenden-
gico do teatro épico, disposto a sacudir o espectador refastelado do, assim, uma atitude mais extremadamente autoral. O artista
na poltrona e abandonado à corrente da narrativa que lhe era está menos preocupado com o entendimento que a obra suscita
apresentada. O teatro brechtiano se propunha, assim, a poten- no espectador do que com a provocação que lhe faz.
cializar o caráter pedagógico da atividade artística, "cíentí- A reflexividade suscitada pelo teatro recente se depara com
fícízando" a criação teatral, potencializando seu caráter estéti- condições específicas, que requerem propostas estéticas conso-
co, a reflexividade da obra. A dinamização da recepção, contu- nantes com as alterações no modo de vida contemporâneo. A
do, precisa estar sempre vinculada a padrões estéticos contem- arte teatral dialoga, atualmente, com um indivíduo bem infor-
porâneos, em diálogo com as questões de seu tempo. Essa atitu- mado, participante incondicional da híper-ramificada rede de
de reflexiva proposta ao espectador pode também ser percebida comunicação. Porém, se a espetacularidade do cotidiano pro-
na arte recente, que mantém, não sem transformá-la, a vontade movida pelos media, associada aos múltiplos informes, propor-
pedagógica presente na arte moderna. As recentes transforma- ciona amplo conhecimento acerca dos fatos sociais, "a infor-
ções na recepção alteram os procedimentos artísticos, mas não mação excessiva, afírma-se, é uma das melhores induções ao
162 o TEATRO ÉPICO MODERNO ' E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 163

esquecimento" (Harvey, 1992, p, 315). E isso porque na superdo- dentes. Pode-se chamar imaginação a esta capacidade de
sagern informativa não há espaço e tempo para reflexão , com a articular juntamente o.que não estava. A velocidade é uma
mesma velocidade que entra na rede, a notícia desaparece, qual- propriedade da imaginação (Lyotard, 1989, p. 106).
quer história veiculada é rapidamente relegada ao caráter de
passado distante, sem ao menos ser dígerída, Os indivíduos vêem- O teatro recente, assim, calcado no estímulo à reflexividade ,
se, assim , sedados por uma overdose de informação. Observado- provocaria essa capacidade inventiva, ativando uma melhor
res "conscientizados" mas desmobilizados; em lugar de passivi- performatividade, estimulando a "'imaginação' , que permite ou
dade alienada, apatia bem informada. realizar um novo lance , ou mudar as regras do jogo" (Lyotard ,
Talvez se possa conoeber que o teatro contemporâneo pre- 1989, p. 106).
tenda suscitar no espectador habituado a fragmentos narrativos
descontínuos a formulação de contralances inesperados , pro- A negação · da negação
vocando-o a elaborar leituras próprias, surpreendentes, esti- O teatro épico moderno queria propor à platéia um olhar cien -
mulando-o a fazer jogadas inventivas. O caráter pedagógico do tífico, Interrogatlvo, como o do grande Galileu diante da lâmpa-
tea-tro de espetáculo deixaria, dessa maneira, de ter valor for- da, como afirmava Brecht. E para isso, provocava o espectador a
mador para ter valorperformático. O conceito de performance, lançar questões à vida lá fora, a estranhar o estranhável e a bus-
aqui aplicado , não tem o sentido atribuído ao melhoramento da car soluções para situações apresentadas. A peça teatral A Alma
capacidade competitiva, de gerar lucros, a valor de mercado, Boa de Setsuan pode servir como exemplo desse exercício críti-
mas , sim, à capacidade de desferir golpes, produzir elaborações co proposto ao espectador brechtiano. O texto narra as peripé-
estéticas próprias, inesperadas. A idéia de formar espectado- cias do personagem Chen Te, uma prostituta que se vê em dúv í-
res , que pressupõe um patamar a ser atingido , seria substituí- das acerca da melhor maneira de agir, já que, tendo recebido
da pela idéia de processo , de provocação dlalógíca, Um teatro uma ajuda financeira dos deuses, resolve abandonar a prostitui.
interessado tanto na capacidade performática do espectador, de ção e adquirir uma tabacaria. Ela começa a administrar o novo
reagir aos lances propostos, de desferir golpes surpreen-den- empreendimento seguindo sua índole generosa, sua tentativa de
tes, quanto na performance da própria atividade artística, em ser uma pessoa correta, honesta, uma alma boa , enfim . No en-
sua capacidade provocativa, de formuiar novos lances, novos tanto, Chen Te é constantemente incompreendida pelos demais,
jogos de linguagem . que não perdem a oportunidade de tirar proveito de sua bonda-
de. Vendo sua tabacaria ir à falência , já que seus atos de carida-
Ela (a melhor performatividade) resulta de um novo ar- de são tão bem intencionados quanto P0!lCO lucrativos, ela re·
ranjo dos dados, que constituem propriamente um "lance" . solve disfarçar-se em um primo imaginário, para quem inventa o
Este novo arranjo obtém-se , a maioria das vezes, pondo nome de Chui Ta, que sempre aparece na hora em que se preci-
em conexão séries de dados tidos até então como indepen- sa tomar atitudes duras e nem sempre honestas, atitudes que
164 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 165
estão em total discordância com o caráter humanitário de Chen necessário mudar o mundo , é preciso reformular o sistema eco-
Te,!J1as necessárias ao sucesso do empreendimento comercial. nômico, político e social.
K questão está formulada: é possível ser uma boa alma nos dias
de hoje? Cabe ao espectador respondê-la. No epílogo , dire- (. ..] se tratando de um rio, "criticar" é regularizar o seu
cionado à platéia, esta' idéia está explicitada: curso ,· se tratando de uma árvore frutífera, enxertá-la; se
tratando de problemas nos transportes, construir novos veí-
E agora, público amigo, não nos interprete mal:
Sabemos que este não foi um excelente final! culos terrestres, marítimos e aéreos; se tratando da socie-
Nós fazíamos idéia de uma lenda cor de ouro dade, fazer a revolução (Brecht, 1989, p. 270) .
E ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro .
Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado,
Tanto problema em aberto e o pano de boca fechado. Assim, o teatro épico moderno apresenta interrogações para
Qualquer sugestão, portanto, acatamos com respeito: que o espectador formule exclamações, treinando-o para o ra-
Recolham-se às suas casas e disto tirem proveito! ciocínio investígatívo, instigando-o a lançar um olhar de curiosid a-
Não poderíamos ter maior mágoa em confessar
O nosso maior fracasso, se alguém não nos ajudar. de , travar uma relação de estranhamento com a realidade so-
Thlvez nada nos ocorra, agora, de puro medo: cial, para que ele elabore suas descobertas conclusivas, deixan-
Isso acontece ! Entretanto, como encerrar este enredo?
do subentendida uma sugestão de saída possível.
Já batemos o bestunto e nada achamos no fundo :
Se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, Se a indicação de saída está inviabilizada, e não se achem atual-
Ou se os Deuses fossem outros ou nenhum - como seria? mente condições para a efetivação de grandes projetos de reno-
Nós é que ficamos mal sem nenhuma fantasia!
Para esse horrível impasse, a solução no momento
vação, não significa dizer que a proposta brechtiana não encon-
ThJvez Iosse vocês mesmos darem trato ao pensamento treressonância na atualidade . O necessário redlmens íonamento
Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente do teatro épico moderno não significa negar Brecht. Ou melhor,
Ajudar uma alma boa a acabar decentemente....
Prezado público, vamos: busque sem esmorecer! . ta·lvez seja preciso negar o teatro épico brechtiano, e negar tam-
Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver! bém a negação que se faz, efetivando a negação da negação, que
(Brecht, 1992, p. 184). certamente não faz o pensamento retornar a seu ponto de parti-
da. Ou seja, a negação do moderno, ou a necessária análise das
No texto, o que se questiona é a impossibilidade de viver dig- propostas estéticas desse período, nas quais o teatro épico se
namente sob a égide do sistema capitalista, em que todos se co- insere, não significa negar sua proposição crítica.
locam contra todos, o que acaba determinando que o homem O redimensionamento do teatro épico moderno se efetiva-se
tome atitudes que contrariam a si próprio, fazendo que abando- em conson ânciacorn o modo de produção da contempo-
ne gestos humanitários , sendo forçado a optar, inevitavelmente, raneidade, pela radicalização de suas proposições estéticas , re-
por uma maneira de agir impiedosa para que alcance o tão alme- flexivas, e não por seu abandono. Assim, a tendência pós-mo-
jado lucro. No que está dito, se pode perceber o não-dito : é derna de ridicularizar qualquer proposição crítica precisa ser
166 o 'tEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 167
negada com a mesma disposição que é necessário negar (e estra- Talvez possamos considerar que o teatro de Brecht somente
nhar) o tratamento de "normalidade" que é dado a alguns fatos perderá seu vigor contemporâneo, quando o sistema capitalista,
de nosso tempo: o desemprego estrutural permanente, a especu- contra o qual ele engendrou sua proposta estética, esteja extin-
lação financeira, os desastres ecológicos, a miséria nos países to como sistema autoritário e criador de desigualdades.
pobres, etc. Bem como a necessária negação da "normalidade" que A condição irreflexiva da consciência cotidiana agrava-se pela
é atualmente conferida ao comportamento do primo Chui Ta. ausência de um projeto que conduza a sociedade a um desen-
O indivíduo, no capitalismo pós-industrial, incapaz de criti- volvimento positivo. A perda de objetivos e parâmetros leva ao
car (mesmo reconhecendo) a lógica mercantilista que o conduz completo abandono da atitude crítica, que é substituída pelo
e que determina suas atitudes, atribui a outros, quando não a si, jogo Intelectual descompromissado, nos lançando ao encontro
a razão de suas mazelas. Quando algo sai errado em grande es- de um pragmatismo livre de ilusões reformistas, recusante de
cala, quase nunca se permite que o fato seja posto em questão, a qualquer pensamento que não proponha aplicações práticas
responsabilidade recai com freqüência sobre a falta de compe- imediatas. Predomina, assim, um silêncio sorrateiro, que anun-
tência e mesmo sobre a má-fé das pessoas. E isso porque "a cia o fim de qualquer crítica social que contrarie esse prag-
ordem reinante do sistema social lhe foi alçada a dogma de uma matismo desiludido.
legitimidade natural, alheia a qualquer possibilidade de valoração" Contra a desesperança, é preciso reagir, negar o estranho que
(Kurz, 2001, p'o12). Os vilões alternam-se como responsáveis se tornou normal, reacendendo a importância de imaginar e con-
pelos retumbantes fracassos dos acontecimentos nos diferentes cretizar mudanças que nos afastem da mera administração de
setores da vida social. Na seqüência infindável de crises, os res- uma crise permanente, mas que possamos formular maneiras de
ponsáveis vão para o olho da rua, sendo trocados por outros suprimi-la. Quem sabe numa nova forma de movimento so-cial,
que melhor não se saem. que surja da necessária elaboração de uma alternativa coletiva
O estranhamento de uma situação propõe o despertar da per- global e rompa com o domínío sem sujeito do valor econômico
cepção adormecida. Em Brecht, a situação estranháoel é dada abstrato. E que a arte teatral, porque não, reassumindo seu diá-
como histórica, construída, podendo, portanto, ser reconstruída. logo com a sociedade, possa provocar o espectador, como histo-
riador da sociedade, a formular saídas, mesmo que seja somente
Aqui, o familiar ou o habitual é novamente identificado a possibilidade de formara idéia da própria possibilidade de
como o "natural", e seu estranhamento desvela aquela apa- inovação, ainda que pontual e estratégica. O teatro, assim, aju-
rência, que sugere o imutável e o eterno, e mostra que o daria a criar perspectivas no retorno da vontade de criação de
objeto é "histórico". A isso deve-se aorescentar, como um novo sistema possível, vontade de superar a saturação atu-
corolário político, que é feito ou construído por seres hu- al. Afinal de contas, os anseios utópicos não são facilmente re-
manos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles primidos e podem ser reacesos com os mais imprevisíveis pre-
ou completamente destruído (Jameson, 1999, p. 65). textos.
168 o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE . o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CO NTEMPORA NEIDADE 169
Se a época não permite que se apontem caminhos consensuais , do teatro épico moderno, não propondo COm ele uma ruptura
e nãohá nenhuma síntese que consiga dar conta da estruturação total, mas sua revisão incontornável.
deum projeto revolucionário que transforme efetivamente a Mais do que formular questões definidoras ou oferecer res-
realidade social, tendo em vista que a própria realidade não se postas, ao teatro recente cabe pôr em cena indefinições e
apresenta mais estática, facilmente delimitada, a arte contem- questionamentos do momento histórico, oferecendo o palco às
porânea, em algumas de suas tendências, quer arremessar esse ambigüidades, os diversos enfoques.
indivíduo, afastado dos movimentos sociais, ao encontro de si
mesmo, propondo que elabore uma análise própria do momen- É um momento, uma passagem da Modernidade a qual-
to histórico, formule suas questões .e defina, segundo seus cri- quer coisa que, para apreendermos , é preciso saber buscar
térios, a melhor atitude li tomar. O teatro, seguindo essa tendência, no substrato sensível dos dados sociais: Buscar o sensível,
mostra-se desajeitado, calcado numa desconcatenação provoca- mas' que seja possível de se interpretar racionalmente. Uma
tiva, em que os fragmentos não propõem . uma totalidade , mas se "razão sensível", isto é, capaz de elaborar sobre os dados
mantêm como partes fissuradas, num ajuntamento que não evo- da sensibilidade intuitiva (Maffesoli, 1994, p. 22) .
ca unidade possível, mas destaca os pedaços, numa mistura as-
sumida e heterogênea. Um teatro que propõe ao espectador que O teatro contemporâneo talvez precise colocar-se, positiva-
rearrume os pedaços, fazendo suas escolhas, e monte o jogo de mente, em diálogo com esse momento, participar desse debate,
peças em função de suas posições críticas, estimulando-o , trabalhar sobre uma revolução sem projeto (que seja!), mas que
assim, a produzir conhecimento. Pois, "o conhecimento é des- nem por isso é menos necessária. A busca de caminhos para a
coberta de relações entre signos" (Favaretto, 1995,' p. 33). concretização do nosso anseio de felicidade persiste, apesar do
A invenção de um ponto de vista unificador não pode ser imposta, ~escrédito nos projetos conhecidos , que nos levaram a situa-
mas precisa surgir justamente da própria produção de oonhecí- ções e condíções bastante diversas da orientação inicial.
mentos, da atitude de análise em direção ao passado, que pos- Nesse momento em que a capacidade da arte teatral de tradu-
sibilitará a redeflníção de metas e estratégias para o presente e zir a experiência contemporânea está em questão, podemos cons-
o futuro. tatar que as conquistas e inovações estéticas do teatro épico
O redimensionamento do teatro épico, nesse contexto , defi- moderno foram inegáveis, como o é também a necessidade de
ne-se como prática teatral que provoca o espectador a uma ati- revê-las . Assim, ao contrário do pensamento sintético da arte
tude reflexiva acerca da relação entre ético e estético na atuali- moderna, a produção contemporânea propõe que cada espec-
dade , marcada pela espetacularidade da ~ida social. Um teatro tador elabore seu pensamento crítico e formule coruralances,
que desafia a platéia a um movimento analítico dos fatos que se resoluções possíveis para questões do presente histórico , traçan-
apresentam aos montes e de maneira totalmente desordenada', do caminhos, estratégias pessoais e sociais possíveis para a constru-
que , calcado na retlexividade, mantenha a vontade pedagógica ção de uma vida coletiva mais digna e justa. E desembarace os
170 o TEATRO !tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE

infindáveis n6s, solte as tantas amarras que nos prendem ao ci-


clo hist6rico de atitudes sempre-iguais, que nos fazem repetir
uma história esquecida, e sufoca os sonhos do presente, liberan-
.do-os para que se aliem aos dos nossos antepassados.

6
A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE

o espectador espeoialista
As .ínvestígações acerca da formação de espectadores para o
teatro estão em pleno curso. Embora algumas respostas tenham
sido encontradas, outras questões surgiram, de modo que o de-
bate continua. Nenhuma das práticas citadas, ou mesmo outras
que não tenham sido referidas neste trabalho, pode ser julgada
detentora do verdadeiro e definitivo método de formação, pois
essa é mais uma experiência e uma conquista pessoal do que um
conteúdo adquirido. Não se pode ainda esperar que a atuação
dos projetos de formação vá resolver a dita crise do teatro, seria
pretensão desmedida para questão tão complexa. Por outro lado,
é reconhecível a relevância e a pertinência dessas práticas na
tentativa de pensar as relações entre teatro e sociedade. A trans-
formação do teatro passa, necessariamente, por sua democrati-
zação, e esta pelo convite aos espectadores a participar efetiva-
mente do evento artístico.
Quando idealizou seu teatro épico - calcado na desconstrução
do palco, no desnudamento da cena, assumindo a teatralidade
do evento - Brecht pretendia, justamente, que o espectador ga-
nhasse intimidade com a linguagem teatral. Ao se apropriar dos
171
172 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE A DESCOBERTA DO PRAZER DA A NÁ L I SE 173
recursos e mecanismos utilizados no teatro, o espectador se tor- em minha vida que aconteceu isto e me levou a decidir isto', 'eu
naria especialista, ampliando sua capacidade de compreender a descobri que', etc." (Ibidem, p. 15). A pesquisa ressalta ainda o
cena, ao perceber ~s inúmeras possibilidades de concepção e fato de que, dentre as crianças entrevistadas, as habituadas a
'interpretação da obra, sentindo-se então apto a elaborar signifi- freqüentar salas dé teatro e cinema revelavam maior facilidade
cados para os signos propostos, criar um ou mais sentidos para em utilizar esse tipo de discurso narrativo , apontando para a
a encenação. conclusão de que aprender a assistir e interpretar uma história
A conquista da lin~uagem teatral pelo espectador implica o é aprender a contar e construir a própria história.
desenvolvimento de um senso estético e um olhar crítico - olhar O mergulho na corrente viva da linguagem abre a consciência
armado, exigente , atento à qualidade do espetáculo, que reflete para uma ativa atuação e transformação da vida pessoal e social.
sobre os fatos apresentados e não se contenta em ser apenas O A tomada de consciência oonstítuí.rassírn, uma leitura de mun-
receptáculo de um discurso rnonolõgíco, que impõe um silêncio do, ou melhor, aptidão para empreender uma leitura própria do
passivo. A aquisição da linguagem teatral capacita o espectador mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa
a interpretar a obra, desempenhando uma efetiva participação leitura, essa tomada de posição diante da realidade. A conquista
no fato artístico e assumindo a autoria da narrativa apresentada, da linguagem viabiliza o diálogo com a vida e possibilita a (re)
mantendo viva sua possibilidade de-construção e reconstrução formulação de projetos e a concretização de mudanças .
da história. A arte lança o oonternplador ao encontro da vida, sempre de
Unia pesquisa realizada, na década de 1990, com crianças maneira surpreendente, inesperada. A compreensão da obra
extremamente desfavorecidas do subúrbio da cidade deLlão , na passa pelo necessário diálogo com a experiência cotidiana; essa
França, mostrou que uma das principais características dessas elaboração reflexiva não se processa, contudo , sem esforço. Des-
crianças, que' se sentiam fracassadas pessoal ,e socialmente, era cobrir o prazer dessa análise é aprender a ser espectador, a tor-
a absoluta incapacidade de pensar uma história, a sua história nar-se autor de ' histórias, fazedor de cultura. Um prazer que ,
(Meíríeu, 1993). A investigação ressalta ainda que nas conversas como experiência pessoal, única e íntransfertvel, pode ser apren-
travadas com essas crianças, que tinham entre seis e doze anos , dido, mas não ensinado. Assim, formar espectadores consiste
em que lhes foi pedido para contar a própria vida, a própria em provocar a descoberta do prazer do ato artístico mediante o
história, pôde-se perceber a grande dificuldade que demonstra- prazer da análise . A especlallzação do espectador constitui-se
vam em se referir ao passado, mesmo recente. Foi possível per- não tanto em ensinar como pensar, dialogar, ler, gostar, mas sim
ceber que elas utilizavam constantemente o "você" e o "a gen- em propor experiências que estimulem o espectador a construir
te", e quase nunca o pronome "eu", e que se mostravam incapa- os percursos próprios, O próprio saber, o próprio prazer, dei-
zes, mesmo as mais velhas, de utilizar "estas pequenas expres- xando que cada qual vá descobrindo laços e afinidades, tornan-
sões tão fundamentais para dar sentido à vida, que são: 'fOi a do-se íntimo a seu modo, relacionando-se e gostando de teatro
partir deste momento que eu compreendi', 'teve um momento do seu jeito.
174 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE
A DESCOBERTA . DO PRAZER DA ANÁLISE 175

·0 espectador especialista deseja o ato estético. Como os visi- do passado. O palco ressalta, dessa maneira, a condição históri-
tantes do Museu D'Orsay, lançados pela janela ao encontro do ca dos acontecimentos e a capacidade do homem de refazê-los
mundo lá fora, esse espectador descobre o gozo de emp~eender socialmente. O teatro reafirma, assim, a idéia brechtiana de que
uma atitude própriaem face da realidade, o prazer de fruir a não há oposição entre ação e contemplação,' propondo ao es-
vida, analisá-la e concebê-la de outra maneira, à sua m~neira. pectador que efetive o ato criativo, artístico, produtivo .
O redimensionamento do teatro épico mantém, portanto, o
Procedimentos espetaculares e extra-espetaculares caráter pedagógico do teatro de espetáculo, calcado na atitude
As transformações no modo de vida ocorridas nas últimas observadora, .crít íca, na reflexividade proposta à platéia. O tea-
décadas do século XX, como vimos, ocasionaram modificações tro recente, radicalizando a proposição autoral característica
na percepção e na sensibilidade dos indivíduos. Com isso, al- da arte moderna, propõe-se a tratar o espectador como um igual,
gumas das propostas e recursos cênicos que fundamentavam a o outro necessário ao diálogo, que é reconhecido pelo autor como
. . I

teoria do teatro épico moderno não causam a mesma reação de um outro autor, estabelecendo um diálogo franco, onde ambos
outrora, a mesma atitude no espectador - '0 que demanda outras estejam igualmente implicados.
premissas para se pensar como a arte teatral pode dar sentido à Para se pensar uma pedagogia do espectador torna-se rele-
experiência contemporânea, e solicita outros procedimentos vante, entretanto, considerar não apenas a proposta estética que
estético-pedagógicos para dinamizar a recepção do especta- constitui O espetáculo, mas também os procedimentos extra-es-
dor. -Para a percepção do indivíduo contemporâneo, acostuma- petaculares que podem fornecer instrumentos preciosos para
do às fibras óticas e telas de cristal líquido, o teatro talvez seja uma recepção mais apurada. Na vertícalízação da pesquisa nes-
ses dois sentidos da especialização do olhar, na tensão entre es-
um evento insuportavelmente antiilusionista, incapaz de provo-
sas duas experiências estético-pedagógicas - a espetacular e a
car adesão , capturá-lo, deixando-o incomodamente distanciado
da ação. extra-espetacular - podem constituir-se efetivos projetos de es-
As reflexões e experimentos de Brecht, no entanto , estão lon- pecialização de espectadores de teatro.
ge de serem irrelevantes e seus ensaios são incontornáveis se Inspirados nas teorias de Brecht, os exercícios de mediação
quisermos investigar as possíveis relações do teatro com a soci- pretendem descortinar o espetáculo, apontara dimensão coti-
diana do que está sendo apresentado, e afirmar o espectador
edade nos dias que correm. A análise da atualidade do teatro
como participante ativo do evento. O teatro, nas atlvidades pe-
épico moderno não pode dar-se, contudo, sem a reaftrrnação da
dagógicas , é apresentado como jogo que aguarda a intervenção
viga mestra desse teatro: o efeito distanciamento . O teatro épico
está fundamentado na proposta feita ao espectador de estranhar
I Sobre esta questão, o encenador alemão afirmava: "os filósofos burgueses
o estranhável: de não tomar como normal os absurdos cotidi- insistem na distinção fundamental entre ação e contemplação. Mas o pen-
anos, não aceitar os valores como provenientes de uma valida- sador verdadeiro (o dialético) não faz esta dist inção {.. . J" (13recht, apud
ção consensual, nem conformar-se com a repetição irrefletida Jameson, 1999, p. 1(1)
176 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE A DESCOBERTA DO .PRAZER DA AN ÁLISE 177
do espectador; a cena solicita novas soluções, outras resoluções, to da existência de uma arte dá observação , arte do espectador
tornando maleável o mundo que se constrói no jogo. Os proce- - que pode (e precisa) ser trabalhada e desenvolvida ..
dírnentos de mediação visam ressaltar o caráter vital da experi- Importa ainda destacar que a relevância de uma formação
. ência artística, associado à dúvida, à incerteza, à questões sem a
continuada desde infância não precisa estar vinculada à idéia
resposta ou com mult~plicidade de respostas. de formação dos espectadores dofuturo , calcada no objetivo de
A educação artísticf\., no entanto, não pode existir sem a fre- depositar nas mãos de crianças e jovens a responsabilidade ou
quentação da arte. Como pensar em uma pedagogia do especta- esperança de urna revolução teatral vindoura . A tarefa dos for-
dor sem o necessário incentivo à produção teatral e a projetos madores nos anos 1970, período em que essa idéia vigora va ,
que facilitem e estimulem o acesso às salas? De que valem espe- passou a ser a de transformar a criança para a sociedade , ou
táculos de qualidade ~e o público não tem acesso a eles? Ou de melhor, a de transformar a criança para que ela transformasse a
que adianta espectadores motivados sem uma ~rodução teatral sociedade. Ela se via assim carregada de tod~ uma expectativa
provida de recursos que viabilizem sua execuçao? Para ~ con- de pais , educadores e artistas como sendo potencialmente ap ta
uísta da linguagem teatral é importante que se pense, conjunta- a realizar seus sonhos. Atualmente, não se trata mais de prepa-
q ente sobre condições de acesso físico do espectador às salas rar o público de amanhã mas de formar o espectador de hoje,
m " .
de espetáculo, porque é na própria experiência artlstlCa que o sujeito que reflete sobre as questões que lhe dizem absoluto res-
espectador vai descobrir o prazer do ato que lhe cabe. peito. .
A atitude do espectador no evento teatral, seu interesse em se Na sociedade espetacularizada, em que o show da realidade ,
lançar ao embate estético, efetiva-se, assim, primordialmente, a por. vezes, substitui a própria realidade , o olhar aguçado aliado
partir do desafio estabelecido pelas proposições artísti~as com ao senso crítico apurado procura estabelecer novas relações com
que se depara, e que podem ser dinamizadas por procedl~entos a vida social e com diferentes manifestações espetaculares que
pedagógicos de mediação, que aprofundem seu conheCImento buscam retratá-la: O olhar crítico busca urna interpretação apu-
da linguagem teatral, intensifiquem seu diálogo co~ a obra e rada dos signos utilizados nos espetáculos diários. A aquisição
agudizem formulações estéticas. A reunião desses dOIS aspectos de instrumentos lingüísticos, arma o espectador para um deba-
da formação torna-se relevante na formulação de projetos de te que se trava, justamente, nos terrenos da linguagem. Porque ,
especialização de espectadores. . . mesmo em uma época em que satélites e computadores dão o
Faz-se necessário ressaltar'que esses proJetos, motivados pela tom, a palavra ainda constitui o mais valioso instru men to revo-
crise financeira ocasionada pelo esvaziamento das salas, não re- lucionário. Com a linguagem afiada, o espectador do cotidiano
sumam suas práticas e objetivos à mera formação de freqüen- não se resigna em ser mero receptor "de uma leitura do mundo
tadores de teatro. Pois não é suficiente criar o hábito de ir ao feita por terc~iros, ou então por uma máquina anônima especia-
teatro' deseja-se especialmente fomentar a vontade crítica, a lizada em selecionar, entre a poeira infinita dos eventos , aqueles
exígêncta dialógica, que se traduz no necessário reconhecimen- que podem cair na malha da 'notícia' " (Calvino, 1996, p. 4).
178 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE

Apto a elaborar uma compreensão própria dos acontecimentos,


este cidadão-espectador pode reivindicar sua autoria nos even-
tos cotidianos.
, Acostumado a se embrenhar nas profundezas da linguagem,
habituado a passearpor suas ruelas, visitar seus guetos, alcançar
os bairros nobres, procurando conhecê-la em sua delicadeza,
' .
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rigor, exigências, o contemplador torna-se capaz de .formular
critérios, valores e juízos referentes a variados produtos cultu-
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