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FLÁVIO DESGRANGES
A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR
EDITORA HUCITEC
São Paulo ; 2003 .
-Díreltos.autorais, 2002, de Flávio Desgranges .
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D486p
Desgranges, Flávio
A pedagogia do espectador
/ Flávio Desgranges. • São Paulo: Hucltec, 2003.
11. ; . - (Teatro ; 46)
Inclui bibliografia
ISBN 85·271-062()-5
,0
30 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 31
Portanto, a pedagogia do espectador está calcada fundamen- tro, esse diálogo acontece no instante exato em que o ato artís-
talmente em' procedimentos adotados para criar o gosto pelo tico, efetivamente, se realiza. Se isso revela seu caráter efêmero,
debate estético, para estimular no espectador o desejo de lançar ' caracteriza também a intensidade de sua relação com o especta-
um olhar particular à peça teatral, de empreender uma pesquisa dor e a importância do público numa encenação, nesse contato
pessoal na interpretação que se faz da obra, despertando seu vivo que se dá entre palco e platéia.
interesse para uma batalha que se trava nos campos da lingua-
gem, Assim se contribui para formar espectadores que estejam [. . .] o tão exaltado privilégio da realimentação Criativa com
aptos a decifrar os signos propostos, a elaborar um percurso que um 'pú blico ativo inspira o elenco (quando não o desa-
próprio no ato de leitura da encenação, pondo em jogo sua sub- limenta pela apatia), a ponto de o espetáculo estar se fa-
jetividade, seu ponto de vista, partindo de s~a~ experiências, zendo em cada sessão, como fenômeno irrepetível ("eis a
sua posição, do lugar que ocupa na sociedade. A experiência verdadeíraobra aberta!") (Rosenfeld, 1993, p. 251).
teatral é única e cada espectador descobrirá sua forma de abor-
dar a obra ede estar disponível para o evento. Público partícípatívo é aquele que, durante o ato da represen-
Ir ao teatro não quer dizer rigorosamente ser espectador da tação, exige que cada instante do espetáculo não seja gratuito, o
peça que está sendo apresentada, da mesma forma que ir ao que não significa que seja necessário, portanto, manifestar-se ou
museu não sígníftca necessariamente participar de um evento intervir diretamente para participar do evento. Sua presença
estético, já que, segundo Bakhtin, o fato artístico s6 se completa efetiva-se na cumplicidade que ele estabelece com o palco, na
no momento em que o receptor se distancia da obra, retoma à vontade de compactuar com o evento, na atenção às proposi-
sua própria consciência e, recorrendo ao seu patrimônio vivencial, ções cênicas, na atitude desperta, olhar aceso. E essa presença
elabora a sua compreensão dela (Bakhtin, 1993).1 É preciso, por- deve ser encarada pelos atores "como um desafio positivo, tal
tanto, em um museu, por exemplo, que o visitante esteja dispo- qual um amante diante do qual não nos apresentamos de qual-
nível para se colocar em diálogo com a obra (e o artista), debru- quer maneira" (Brook, 1991, p. 27). Esse espectador crítico,
çando-se diante da pintura ou da escultura para, a seu modo, exigente e participativo é aliado fundamental nos diálogos trava-
apreendê-Ia e compreendê-Ia. Da mesma maneira, o espectador dos acerca dos rumos da arte teatral.
de teatro precisa travar diálogo com a peça. Ser espectador re- Figura-chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação,
quer esforço , não há saída, um esforço criativo. Brecht afirmava que a leitura crítica, a capacidade de compreen-
Se levarmos em consideração um quadro, uma pintura, o diá- são de uma obra de arte, no entanto , pode e precisa ser traba-
logo que se estabelece entre receptor e obra d.e arte pode dar-se lhada. A capacidade de elaboração estética é uma conquista e
anos ou séculos depois do momento da sua realização; no tea- não somente um talento natural.
1 Estudaremos mais detalhadarnente o conceito de fato artístico, tal como É uma opinião antiga e fundamental que uma obra de
foi compreendido por Mikhail Bakhtin, na Parte IV deste livro. arte deve influenciar todas as pessoas, independente da ida-
32 . A . ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 33
de, status ou educação [... ]. Todas as pessoas podem en- mecanismos utilizados em uma encenação, e os efeitos que pro-
tender e sentir prazer com uma ob~a de arte porque todas duzem, o espectador ganha distância para melhor apreciar como
têm algo artístico dentro de si [. .. l. Existem muitos artis- tais elementos estão sendo apresentados em um determinado
tas dispostos a não fazer arte apenas para um pequeno cír- espetáculo. A aquisição desses conhecimentos permite que o
culo de iniciados, que querem criar para o povo. Isso soa observador esteja em melhores condições para traçar linhas de
democrático, mas, na minha opíníão, não é totalmente de- reflexão acerca da obra e elaborar um juízo de valor sobre ela .
mocrático. Democrático é transformar o pequeno círculo A distância possibilita que o espectador problematize a ence-
de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a arte nação, faça perguntas à cena, tais como: Que temas este espetá-
necessita de conhecimentos. A observação da arte s6 pode- culo aborda? De que maneira isto se relaciona com a vida lá
rá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte da ob- fora? Que signos e símbolos o artista se utiliza para apresentá-
servação. Assim como é verdade que em todo homem exis- las? Eujá vi algo parecido? Como eu faria? De que outras manei-
te um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os ras esta mesma idéia poderia ser encenada? O prazer de assistir
animais, também é certo que essa inclinação pode ser de- a espetáculos teatrais advém justamente do domínio da lingua-
senvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um gem, que amplia o interesse pelo teatro à proporção que possi-
saber conquistado através do trabalho (Brecht, apud Kou- bilita uma compreensão mais aguda, uma percepção cada vez
dela , 1991, p. 110). mais apurada das encenações.
A especialização do espectador se efetiva na aquisição de co- No teatro como nos campos esportivos .
nhecimentos de teatro , o prazer que ele experimenta em uma Ir ao teatro ou gostar de teatro, também se aprende. E nin-
encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem teatral. guém gosta de algo sem conhecê-lo. De que man~ira se pode
O prazer estético, portanto, solicita aprendizado. A arte do es- considerar relevante, e até mesmo imprescindível, aquilo que
pectador é um saber que se conquista com trabalho. não conhecemos em todas as suas possibilidades? O apreço está
Familiarizado com os códigos teatrais , esse espectador inicia- diretamente ligado ao grau de intimidade e, apenas entrando
do descobre pistas próprias de como se relacionar com a obra, em contato com o teatro, seus meandros, técnicas e história, o
percebendo-se, no atada.' recepção , capaz de dar un idade ao espectador pode reconhecer nele importante espaço de debate
conjunto de signos utilizados ria encenação e estabelecer cone- .. . das nossas questões e, principalmente, perceber o quão prazerosa
xões entre os elementos apresentados e a realidade exterior. A e gratificante pode ser essa relação.,
conquista da linguagem teatral propicia ao espectador uma ati- O gosto por uma cultura artística, contudo, se constrói desde
tude não submissa diante do fato narrado e das opções cênicas a infância. Aproximar crianças e adolescentes das atividades tea-
propostas. Conhecendo os signos que vêm sendo estabelecidos trais é de fundamental importância, se quisermos pensar em for-
ao longo da história do teatro, bem como o funcionamento dos mar espectadores. .
34 A ARTE DO ESPECTADOR . A ARTE DO ESPECTADOR 35
Evoco um estudo do sociólogo holandês T. Karnphorst, Brecht sonhava com uma platéia constituída de iniciados, es-
que investigou a maneira pela qual o público adulto tinha pectadores aptos a avaliar propostas trazidas à cena, prontos a
sido sensibilizado pela primeira vez para diversos eventos. elaborar um juízo acerca dos significados presentes nos elemen-
Ele calculou, em seguida, as chances de um adulto ir "x" tos cênicos. O autor alemão queria que os espectadores de teatro
vezes ao concerto ou ao teatro, em função da idade em que fossem especializados como a platéia de um evento esportivo,
havia sido socializado para esse evento. Os resultados são bas- que conhece as regras do jogo, sua história, meandros e funda-
tante interessantes. Em se tratando de um concerto, ele mentos técnicos. O conhecimento tático e técnico do jogo per-
mostra que, se não tivermos adquirido o hábito entre os mite que o espectador esportivo, mesmo emocionalmente en-
cinco' e os oito anos, tElremos muita dificuldade em ir a um volvido com a partida, identificado com os "heróís" em cam-
concerto de música ,clássica mais tarde.' No que concerne , po, questione a atuação dos jogadores. Nas partidas de futebol,
aos museus, [o hábito se adquire] entre oito e doze anos; podemos perceber Com clareza essa atitude do iniciado em face de
no que se refere ao teatro, entre doze e quinze anos. [... ] um espetáculo esportivo, que reúne tanto o profundo envolvimento
mesmo sabendo que não há idade precisa para estarmos emocional quanto a postura .crítíca acerca do evento.
mais abertos , existem determinados períodos em que
estamos mais receptivos que outros (Saez, 1989, p. 33). A isso [a identificação íntima do torcedor com o jogo e
os jogadores 1 se liga, a despeito de toda a ídentífícação, a
Um dos eixos da formação que se pode oferecer à criança possibilidade de distanciamento crítico ("Eu não teria chu-
espectadora consiste em fornecer os instrumentos conceituais tado para fora"), em virtude do que, por outro lado, é esti-
necessários ao despertar de seu espírito crítico. De simples con- mulada uma co-participação ainda mais apaixonada (Rosen-
sumidor de espetáculos, ela pode tornar-se capaz de formular e feld, 1993, p. 95).
sustentar suas apreciações. Trata-se de iniciar o público infantil
na linguagem específica da criação teatral, a fim de fomentar, , A conclusão do espectador da partida de futebol- espetácu-
por meio do espetáculo, sua reflexão. Compreende-se, assim , a lo para o qual os brasileiros em geral são, desde a infância,
formação de espectadores como a:aplicação de procedimentos especíalmente formados - de que não teria errado o chute para
destinados a criar o gosto 'pelo teatro e ressaltar a necessidade e o gol, se dá 'p elo conhecimento técnico adquirido. O domínio
importância da arte, quanto como uma proposição educativa dos meandros da atividade futebolística advém tanto das brin-
cujo objetivo está voltado para a formação delndívíduos capazes cadeiras em que participou como j?gador quanto da experlên-
de olhar, observar e se espantar. A apropríação da linguagem . cía como espectador, apurada especialmente nos debates tra-
teatral tem o intuito de contribuir para a sensibilidade e para vados COm outros torcedores e nas análises de comentaristas
uma experiência de prazer e comunicação, além de contribuir esportivos. A apreensão de regras e o amplo conhecimento tá-
para sua afirmação como sujeito nos rituais coletivos. tico e técnico das jogadas, como ressalta Rosenfeld, estimula a
36 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 37
co-participação do espectador, intensifica o prazer na sua rela- se contente em ser apenas o receptáculo de um discurso que lhe
ção com o evento. proponha um silêncio passivo. A formação do olhar e a aquisi-
No entanto, diferentemente do que acontece com o futebol, a ção de instrumentos lingüísticos capacitam o espectador para o
impossibilidade (não apenas financeira) da grande maioria das diálogo que se estabelece nas salas de espetáculo, além de lhe
crianças e jovens brasileiros de ir ao teatro ou mesmo de rece- fornecer instrumentos para enfrentar o duelo que se trava no
ber a visita de uma trupe teatral é um fato. Criar condições para dia-a-dia. O olhar armado busca urna interpretação aguda dos
que eles possam ir ver um espetáculo talvez seja o primeiro pas- signos utilizados nos espetáculos diários, da propaganda aos pro-
so a ser dado . Mas a questão não se encerra aí, pois possibilitar gramas eleitorais. Com um senso crítico apurado, esse oldadão-
o acesso ao teatro não significa, como já apontamos, apenas espectador, consumidor-espectador, eleitor-espectador procura
colocar o espectador infanto-juvenil diante de uma peça, mas estabelecer novas relações com o entorno e as diferentes mani-
também fornecer ferramentas para que ele disseque e interprete .festações espetaculares que buscam retratá-lo.
o evento. Tornar o espectador iniciante mais íntimo da arte tea- Se nessa sociedade "a linguagem do espetáculo é constituída
tral e estimulá-lo para um mergulho divertido amplia sua capa- pelos signos da -produção reinante " (Debord, 1992, p. 18), to-
cidade de apreender o espetáculo e favorece sua socialização, mar conhecimento dos mecanismos que envolvem uma encena-
seu acesso ao debate contemporâneo, sua Integração e partici- ção, desvendar e apreender a lógica da teatralidade significam
pação sociais.' conquistar instrumentos que viabilizem a reflexão acerca dos
Democratizar o acessode criançase jovensao teatrose constitui,en· procedimentos utilizados em diferentes produções espetacula-
tão, em viabilizar a ida aos espetáculos e, concomitantemente, ofere- res . O espectador instrumentalizado encontra-se em condições
cer os instrumentos de compreensão e de recepção que condicionam de decodificar os signos e questionar os significados produzidos,
esse acesso, oferecendo meios necessários paraque o espectador seja no palco, seja fora dele.
infanto-juvenil tenha possibilidade e vontade de apropriá-los. Os métodos e procedimentos propostos pejos meios comu-
nicacionais contemporâneos
. influenciam e condicionam asensi-
,
OS agentes culturais de então almejavam estreitar relaciona- produção marcada por forte teor ideológico, concentraram seus
mento com uma parcela do público que se encontrava fora do esforços na difusão de espetáculos para um público o mais am-
circuito comercial de arte, articulando uma luta para abrir as plo possível, com o objetivo de não somente manter a sobrevi-
instituições culturais a todos, bem como para levar espetáculos vência. do próprio teatro, mas também, e especialmente, de
teatrais e promover práticas artísticas, tanto em localidades dis- implementar urna ação política de conscientização por meio da
tantes dos centros urbanos, quanto nos mais diferentes espaços : arte teatral. Os grupos buscavam a utilização do palco como espaço pa-
fábricas, sindicatos, igrejas , escolas , universidades, empresas e ra à discussão de questões que afligiam nossas sociedades, convidan-
hospitais. As atividades aplicadas tinham, por vezes, o objetivo do os espectadores a participarem desses debates .
de rever as relações sociais existentes na comunidade ou no in- Esses artistas, impulsionados pelo cansaço diante de práticas
terior das próprias instituições onde acontecia o evento . teatrais conhecidas e pelo desejo de extinguir o fosso que sepa-
Esse movimento baseava-se na convicção de que todas as pes- rava o palco da platéia, conceberam métodos bastante particu-
soas têm plena capacidade e direito de ver e fazer arte. A difusão lares que tinham oobjetívo de provocar a. atitude do público
das práticas artísticas ao mesmo tempo que ampliava o círculo de diante dos fatos trazidos à cena. Essas formas dramáticas contí-
conhecedores,' tinha por Objetivo subverter a ordem estabe-' nham, assim, urna proposta pedagógica atrelada ao interesse
lecida. A arte - e o teatro funcionava como um dos principais inst- artístico e estavam calcadas, em grande parte, na intervenção
rumentos de açã? cultural- era veículo primordial de questiona- direta da platéia no evento artístico . E~ses experimentos permi-
mento e transformação da sociedade. A proposta de atividades tiram o redimensionamento da posição do espectador em sua
artísticas para um grande público se estruturava como: relação com a obra teatral.'
transmissores de conteúdos ou meros repetidores de jogos co- A prática teatral, porém, não se resume à montagem de espe-
nhecidos, mas principàlmente "despertadores" ou propositores táculos. O exercício do teatro pode também ocorrer por meio
de efetivas experiências artísticas; as aulas de teatro sejam uma de jogos de improvisação dramática, em que o participante brinca
porta aberta, tanto para o teatro contemporâneo como para o para aprender o prazer do teatro como elemento lúdico e co-
mundo lá fora, um espaço imaginativo e reflexivo, em que se pen- nhecer os mecanismos que o constituem. Alguns projetos de for- .
sem e inventem novas relações sociais, dentro e fora da escola. mação, nos diferentes países citados há pouco, procuram, assim,
reunir as idas ao teatro com a prática de jogos lmprovísacíonaís. 10 A
VER E PRATICAR: UMA VIA DE MÃO DUPLA integração das atividades propostas nas salas de aula com a ida
A prática continuada do teatro por crianças e jovens, aliada à . aos espetáculos teatrais possibilita à criança e ao ad;lescente o
freqüentação aos espetáculos, cria uma via de mão de dupla que desenvolvimento da capacidade expressiva e maior domínio da lin-
favorece a compreensão do fenômeno' teatral. O exercício dra- guagem teatral, ampliando sua compreensão do jogo de cena e
mático sensibiliza para uma recepção mais atenta, crítica, e aberta aprofundando sua capacidade de entendimento da obra.
a concepções cênicas novas e divergentes, ao mesmo tempo que Nos jogos de ímprovlsação dramática, o participante pode
a ida ao teatro, o diálogo com as obras contemporâneas, possí- exercer todas, ou. quase todas, as funções artísticas da criação
bilita melhor aproveitamento dessas atividades em sala de aula. teatral, podendo desempenhar, na criação de suas pr6prias ce-
A prática teatral pode ser incentivada tanto por meio de jogos nas, ao mesmo tempo, a função de dramaturgo, ator, diretor,
de expressão dramática propostos nas aulas, como também pela cenógrafo, etc. A exploração das infindáveis possibilidades de
montagem de espetáculos com alunos que, nesse caso, podem construção de uma cena favorece o aprendizado da linguagem,
participar de todo o processo de construção de uma peça, ga- assim como a acuidade da observação acerca das particularidades
nhando intimidade com os meandros dá arte teatral. de cada encenação, chamando a atenção do aluno-espectador
Entretanto, estar em cena ou transitar por ela, ao participar para as opções estéticas dos diversos artistas da criação teatral.
de uma montagem, por si só, não oferece instrumentos ao aluno; O jogador exerce também nesses exercícios dramáticos a fun-
estratégias específicas precisam ser postas em ação para que essa ção de espectador, ao observar as improvisações dos outros gru-
vivência proporcione uma apreensão que, de fato, contribua para pos enquanto espera para apresentar a sua, Ou ap6s tê-la apresen-
sua formação como espectador. O processo de construção pre- tado. Embora o objetivo, em geral, dos participantes seja "fazer
cisa carregar uma tensão e um interesse ínvestígatívo que susten- teatro", ver os outros jogadores em cena também faz parte do jogo,
tem essa prática, possibilitando uma rica experiência artística e
efetiva apreensão da linguagem. Evita-se assim, que a experiên- 10 Em nosso pais, três principais vertentes de jogos improvisacionais vêm
sendo aplicadas: o jogo dramático, o jogo teatral e o drama. Paramelhor
cia teatral dos alunos tenha um fim em si mesma, resumida a
conhecimento destas práticas, que têm tradições francesa, norte-amerí-
uma cópia estereotipada do teatro profissional, tornada não mais cana e inglesa, respectivamente, pode-se consultar as seguintes obras:
que um incentivo ao cabotinismo de pais, alunos e professores. sobre jogo dramático ver Jean-Píerre Ryngaert, Jouer; représenter
i ~ .
do que as crianças em suas manifestações espontâneas. Não se- ta utiliza para abordá-los? Eu já vi algo parecido? De que outras
ria melhor-deixar, por vezes , que os pr6prios artistas estejam no maneiras essa idéia poderia ser encenada? Corno eu faria? De
comando da situação? que modo isso se relaciona com a minha vida?
Assim, como é importante preparar os alunos para ir ao tea- Nem sempre é óbvio definir quais são as melhores atividades
tro , a recíproca é verdadeira, o teatro também precisa estar pre- a serem aplicadas para qualificar a recepção de um espetáculo,
parado para receber as escolas; as estratégias traçadas pelas e até mesmo quando se deve ou não utilizar esses recursos de
trupes ou responsáveis pela programação cultural para recebe- mediação. Que critérios, afinal , podem ser estabelecidos para
rem os espectadores no teatro são de fundamental importância auxiliar a decisão do professor de aplicar ou não exercícios de
para o bom desdobramento do evento artístico. Uma das res- desdobramento? Deve-se utilizar a prática de animação em to-
ponsabilidades dos organizadores do evento que pode ser desta- dos os espetáculos? É melhor propor atividades antes ou depois
cada é a maneira de acolher os grupos escolares, deixando-os da peça? Os. desdobramentos sistemáticos dos espetáculos não
bem instalados enquanto aguardam o início da sessão. Outra inici- correm o risco de orlar efeitos perversos, diminuindo o prazer
ativa, que alguns mediadores entendem ser proveitosa para intro- espontâneo dos espectadores iniciantes? Se mal-aplicadas, es-
duzir o espetáculo, estabelecendo uma transição do burburinho da sas práticas não 'c orrem o risco de prestar um desservíço ao
chegada para o início da representação, é que algumas palavras de teatro? Como definir opções e estratégias? Que meios , jogos e
apresen tação .da peça que será vista sejam proferidas por um práticas de mediação propor? De novo (infelizmente, ou feliz-
artista ou educador instantes antes do início da encenação, quan- mente!), não há fórmulas e nem procedimentos milagrosos , é
do os alunos já estão acomodados na sala de espetáculos, cen- preciso capacitar e manter a autonomia dos professores na ava-
trando a atenção dos espectadores para o que verão. liação e definição dos exercícios, não há como padronizar as
atividades que têm de estar em consonância com cada espetácu-
PROCEDIMENTOS PEDAGÓGICOS DE MEDIAÇÃO TEATRAL
lo, os objetivos dos educadores e o projeto de formação organi-
Na preparação dos alunos para a experiência artística, ativi- zado e desenvolvido pela instituição.
dades teatrais propostas pelos professores, seguindo a mesma Dentre os muitos procedimentos pedagógicos de mediação que
linha das práticas desenvolvidas na década de 1970 , continuam vêm sendo postos em prática, especialmente em países euro-
atualmente sendo consideradas, se bem-aplicadas, um valioso peus - onde.normalmente, os custos dos projetos (ingressos, tran-
instrumento de mediação . As atividades pedagógicas de media- sportes, eto.) são subvencionados por órgãos públicos - podemos
destacar o projeto francês denominado Journée au Théâtre que ,
ção teatral, como vimos, podem estimular o aluno-espectador a
como o próprio nome diz, convida o:aluno a passar o dia no
ret1etir acerca das questões contemporâneas que o espetáculo
teatro. Antes (ou depois) de assistir à representação de uma peça,
aborda, auxiliando-o a criar seu percurso no diálogo com a obra,
o espectador vai visitar o espaço teatral, conhecer suas depen-
formular suas perguntas para a encenação, tais como: De que
dências, o camarim, a cabine de operação dê luz e som, entre
problemas tratá esse espetáculo? Que símbolos e signos o artis-
80 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO 'DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇ ÃO DE ESPECTADORES 81
outros ambientes, além de observar demonstrações e receber utilizando um teatro munido dos aparatos técnicos necessários
explicações sobre a utilização e funcionamento dos mecanis- e com auxílio de profissionais do espetáculo , apresentarem as
mos e. aparatos técnicos de uma sala de espetáculos. A atividade cenas criadas pelos alunos das diferentes escolas que participa-
tem o objetivo de despertar o olhar do aluno-espectador para ram do projeto.
curiosidades e particularidades da vida teatral, promovendo um Atualmente, o Thé âtre des Jeunes Speotateurs, de Montreuil ,
encontro inicial com instrumentos utilizados em cena e maior destaca em seu trabalho de formação de espectadores a impor-
intimidade com o trabalho exercido pelos artistas, funcio-nários tânc ía de integrar os pais de alunos nos projetos, aproximando-
da administração e técnicos do espetáculo. O projeto propõe, assim ) os do processo de aprendizagem. Em parceria com companhias
que crianças e jovens descortinem esse universo atípico para eles, teatrais e instituições escolares, o T.J.S. promove eventos cultu-
se comparado com a televisão ou o cinema. A idéia é promover rais (que não são caracterizados como atividades escolares), à
uma espécie de ritual de passagem, criar um percurso de inicia- noite ou nos finais de semana, em que as famílias dos alunos são
ção que apresente os mistérios do teatro) que revele todos os convidadas, juntamente com os professores daquela escola, a
segredos dos bastidores. Após terem conhecido o teatro pelo assistirem a apresentação pública de uma determinada peça; os
lado do avesso, os refletores do palco são acesos e os alunos são 'pais são, assim, convocados a participar ativamente da forma-
convidados a tomar a cena) participando de jogos de expressão ção artística de seus filhos. A aprovação, o apoio e o incentivo
dramática inspirados naqueleespetáculo, que foi ou será visto. do meio familiar são importantes para que a criança integre o
O Théâtre la Montagne Magíque, 11 espaço belga voltado para a teatro como rico e prazeroso hábito cultural. Embora o profes-
formação de espectadores, em um de seus projetos de media- sor seja um mediador privilegiado, está claro que ele não deve
ção, intitulado classes artistiques d'initiatioti théãtrale, convida ser o único a assumir esse papel. Essa iniciativa possibilita, ain-
professores de diferentes escolas, após terem levado seus alunos da, que muitos adultos que nunca foram ao teatro travem um
para assistirem a uma peça de teatro de sombras, por exemplo , primeiro contato com essapràtioa artística.
a participarem de oficinas em que aprendem com os artistas Outra estratégia de mediação que deve ser observada é o pro-
daquele espetáculo esta técnica teatral específica. Posteriormen- jeto francês conhecido por Leoer des Rideaux (levantar as corti-
te, esses professores transferem o aprendizado aos seus alunos nas), em que várias salas, em um mesmo dia, em sessões de apre-
e cada ' classe desenvolve, durante um período determinado, a sentação pública, abrem as portas para os alunos das escolas ou
criação de suas próprias peças com a técnica aplicada. Em um un iversidades, cedendo o palco para que os próprios estudantes
dia previamente combinado, todas as classes se encontram para, apresentem seus trabalhos , com duração de 5 a 10 minutos , não
necessariamente uma cena teatral , mas que seja um "eco" , uma
11 Este espaço teatral foi criado e é coordenado pelos socíõlogos do teatro
"ressonância" do espetáculo que será visto em seguida. Muitas
Reger Deldime e Jeanne Pígeon que, ap6s mais de vinte anos de pesquisas
de recepção teatral e formação de espectadores, resolveram pôr em práti- vezes, nesse dia, é lida uma "carta aos pais ", escríta por artista
cas as suas conclusões. : de renome, enfocando a importância da formação teatral em
_,i
82 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 83
todas as suas dimensões. Em 1998 , 176 teatros participaram do
Há sempre o que inventar no que diz respeito às práticas que
projeto, que mantém um tom festivo e espetacular e visa sensi-
bus~am a especialização de espectadores, e é até mes-mo desejá-
bilizar pais , professores, artistas, profissionais da mídia, etc .
vel que assim seja, pois projetos aplicados, e que funcionam muito
Asocialização do espectador iniciante, aliada ao conhecimento
bem em um país (ou região), não funcionarão necessariamente
técnico do teatro e a doses de criação artística, são ingredientes
em outro, e mesmo procedimentos pedagógicos que possibili-
presentes em diferentes projetos de formação, cujo objetivo é,
tam excelente resultado na apreensão de uma determinada peça ,
além de instaurar o hábito , proporcionar ao espectador a apro-
podem oferecer respostas absolutamente decepcíonantes quan-
priação do fenômeno teatral e o desenvolvimento de sua po-
do aplicados em outro texto, ou até em diferente contexto.
tencialidade criativa. No entanto, diversas são as possibilidades
de incentivar e facilitar o acesso ao teatro, assim como variados Espectador ínícíante ou espectador "café-com-leíte"?
são os procedimentos que podem ser aplicados para proporcio-
As lutas para a modificação do estatuto da criança na socie-
nar a apreensão das técnicas teatrais e que estimulam a capaci-
dade estão estreitamente ligadas aos combates travados pelos
dade inventiva do espectador iniciante. As práticas de forma-
direitos de parcelas desprivilegiadas da sociedade. A primeira
ção , portanto. jpodern tomar inúmeras direções , O que torna
tomada de consciência coletiva, no que diz respeito à situação
fundamental a necessidade de se definir um eixo ao projeto
das crianças, ocorreu na época da Revolução Industrial, em fins
implementado e objetivos claros para intervenções formadoras. do século XIX, tendo por base uma visão em princípio econômí-
Para isso, é preciso estabelecer prioridades, escapando da pre-
ca. Uma batalha que se iniciava, à época; contra a exploração da
tensão de formular um programa que cubra, ao mesmo tempo ,
mão-de-obra infantil e vinculava a luta pela emancipação da
todos os-aspectos do teatro , o que pode resultar numa série de
criança com aquela implementada pelo proletariado por melho-
experiências incompletas e desencontradas. Tudo é possível, des-
res condições de trabalho e vida. A partir desse período, em
de que prioridades e os objetivos sejam estabelecidos, cumpri-
consonância com o crescente debate acerca do lugar estabeleci-
dos e avaliados, para que um novo patamar possa ser alcançado. do para a criança em nossas sociedades, a construção de espetá-
Afinal, quais os objetivos gerais e específicos do projeto de culos teatrais, bem como de obras de arte em geral , notadamente
formação? Qual o ângulo de ataque escolhido? Aprender as re-
obras literárias, destinadas ao público infantil, intensifica-se pou-
gras , aplicando jogos improvisacionais? Experimentar a monta-
co a pouco. Ai-informações que nos chegam das peças ofereci-
gem de um espetáculo? Aprofundar o conhecimento técnico do _
das ao público infantil nessa época, contudo, dão notícias de
maquinário teatral? Formar professores? Convidar artistas para
uma produção dotada de qualidade artística duvidosa, apoiada
organizarem oficinas nas escolas? Desenvolver a prática de ator?
em uma linguagem pobre e éxcessivamente 'açucarada. A produ-
Conhecer os meandros da produção? Explorar recursos de en-
ção teatral direcionada ao espectador infantil começa a ganhar
cenação? Que aspectos do fenômeno teatral serão trabalhados
COntornos mais definidos, aprimoramento da linguagem e de pes-
no primeiro momento? Quais serão os próximos passos> .
quisa estética, no início do século )LX, especialmente em países
84 PRATICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 85
europeus, e, desde então, vem desenvolvendo-se continuamen- criança", ou -melhor, na necessidade de agradar aos adultos, aos
te por todo o mundo. : responsáveis, em suas diferentes instâncias, de satisfazer as ex-
- ' Por volta de 1970, o então chamado "teatro para crianças" pectativas de quem possui, no fim das contas , o poder de com-
' - gánha força jamais vista. A prática teatral dirigida ao público pra (responsáveis eulruraís, professores , pais ) ou o poder de
infantil desenvolve-se intensamente nos mais diversos países; um determinar o bom desdobramento de uma produção (críticos
movimento que estava calcado, como vimos, na urgência de re- de jornais e revistas, jurados de prêmios , etc.). Tudo isso acaba
alizar produtos artísticos para espectadores privados de acesso por definir um padrão estético para o dito "teatro infantil", le-
aos bens culturais. vando os produtores a não se contraporem ao conceito de infân-
A partir dos anos 1980, á quantidade de espetáculos teatrais cia estabelecido, construindo espetáculos que não incomodem
oferecidos às crianças começa a ser contraposta a um deoréscí- ou choquem, adequando seus trabalhos ao consenso estético
mo em sua qualidade. A discussão acerca da qualidade do teatro em vigor, que determina o que é "bom para a criança".
dirigido ao público infantil passou a ser preponderante, não bas- Escrever e encenar espetáculos para o público infantil supõe,
tava mais montar peças para crianças e jovens, era preciso, en· então,' que a negociação com os representantes desse mercado
tão, oferecer a esse público bons espetáculos. Esse debate se se faça implicitamente, e as margens dessa negociação são es-
prolonga até os dias atuais, neles vigorando, entretanto, uma treitas, situando-s.e entre o "bom gosto" , uma certa idéia positi-
produção de baixa qualidade. va do mundo , e umdidatismo cada vez mais sutil. Essas condi-
ções são pouco desejáveis para a criação artística, desviando o
Conhecendo bem a evolução do teatro infanto-juvenil, teatro aberto a crianças do que deveria ser seu principal objeti-
n6s todos sabemos que algumas trupes desenvolvem proje- vo: constituir-se, antes de tudo , como teatro , ponto. Um teatro
tos fabulosos, tendo uma intransigência extrema acerca da em que a exigência seja fundamentalmente artística, com tudo o
qualidade de suas produções , mas a proliferação de espetá- que a arte pode 'oferecer de incômodo e desestruturador. É de-
culos medíocres s- e que se -vendem muito bem nas escolas , sejável, portanto, que os produtores culturais lutem pela liber-
apreços baratos - contribui para manter na opinião públi - dade de conceber espetáculos dotados da capacidade, inerente ,
ca a imagem tradicional, um pouco débil, que decididamen- à obra de arte, de abalar as certezas e costumes dos espectado-
te está colada à pele do teatro infanto-juvenil. O fenômeno res (tanto crianças, quanto adultos) quanto a teatro ou vivência
existe também na França, no Québec , e um pouco por todos cultural. A busca de uma criação adaptada a determinada com-
os lugares, eu creio (Deldime, 1990a, p. 69). preensão, de um teatro específico, de uma linguagem adequada
"para crianças" deixa nebulosa a dimensão estética da obra.
A baixa qualidade artística das produções teatrais destinadas Nossos palcos, no entanto, nas ofertas feitas ao público infantil,
às crianças está, em grande parte, fundada na pr6pria necessida- estão entulhados (ainda hoje, apesar de tanta reflexão e tanto
de de adequar a linguagem do espetáculo ao pretenso "gosto da palavr6rio sobre o assunto) de! um teatro que não conhece a
86 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 87
dúvida, não interroga sua função nem seus modos de escrita e tinuam sendo, como produtos dotados de linguagem específica,
encenação, buscando adequar-se a um pretenso gosto, fechan- práticas marginais, considerados subprodutos artísticos, não
do-se na estética do consenso. Um teatro dócil, que visa não participando efetivamente do movimento teatral global.
. desagradar ninguém, trazendo uma "mensagem" obrigatoriamen- A luta para acabar com sua especificidade, portanto, é tam-
te positiva e otimista, submisso e que abaixa a cabeça para nor- bém para que saia da marginalidade; trata-se, fundamentalmen-
mas de pensamento e percepção. te, hoje, de lutar para tirar a criança (e os produtos culturais
"Assumir a exceção contra a regra: esta é, de fato, a respon- que lhe dizem respeito) do gueto cultural ao qual está submeti-
sabilidade ética do 'théâtre jeune publíc';'! é a única condição da; uma batalha, portanto, contra a segregação cultural e O em-
de emancipação de seus espectadores" (Pígeon, 1991, p. 78). pobrecimento artístico da produção teatral dirigida ao público
Abrir as portas das salas de teatro ao público infantil, convi- infantil. O que significa, em última análise, afirmando o teatro
dando a criança espectadora ao diálogo estético, não significa como espaço privilegiado de debate das nossas questões, incluir
construir determinada forma de teatro, tendo por base a busca efetivamente a criança nos diálogos travados acerca dos fatos da
de uma linguagem "específica", adequada a seu gosto e capa- atualidade.
cidade compreensiva, mas tão-somente fazer teatro, com a Afinal de contas, a vida está aí, aberta para a criança, em toda
liberdade, inquietude e investigação de linguagem próprias ao sua intensidade, como estão abertos os meios de comunicação
fazer artístico, estimulando um debate em que o espectador contemporâneos. Portanto, torna-se fundamental que o teatro seja
infantil também participe, estabelecendo um diálogo, encontro também oferecido a ela em todo seu vigor, principalmente se le-
entre adultos e crianças, convidando todos a refletir sobre os varmos em consideração que "teatro é vida condensada" (Brook,
problemas do mundo contemporâneo, nossos questionamentos, 1991).
a partir de diferentes pontos de vista, diversos enfoques. A noção de infância é construção histórica, conceito que se
faz e refaz ao sabor das transformações sociais no decorrer dos
Pontos de vista que permitam às crianças e aos jovens tempos. A concepção "infantilizada" que se tem doteatro feito
esta atividade sensível e intelectual de espectadores ple- "para crianças" reflexo da própria visão de infância estabelecida
é
nos.[ ... ] se colocarem como indivíduos pensantes e respon- por nossas sociedades, concebendo a criança como ser incomple-
sáveis ante as grandes questões de sua época, aos debates to, alguém que está em vias de, em estado de aperfeiçoamento.
urgentes de nossas diferentes sociedades (Yendt, 1989, p.66). O adulto, nesse caso, é modelo de bom acabamento e perfeição.
Reconhecidos como "teatro para crianças", "teatro infantil" Supõe-se, assim, que a ínfânoía deva ser vista como mero
ou "teatro jovem", os espetáculos oferecidos a esse público con- estado de passagem, precário e efêmero, que caminha para
a sua resolução posterior na idade adulta, por meio da acu-
IJ Designação francesa que vem, recentemente, sendo aplicada ao teatro
oferecido às crianças e jovens. mulação de experiências e conhecimento. A linearidade do
88 PRÁTICAS TEATR~IS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 89
tempo cronológico autoriza uma compreensão da infância experimentos teatrais por ele realizados em escolas na Alerna-
" que lhe atribui uma qualidade de menoridade e, conseqüen- nha, Brecht escreveu: "a experiência demonstrá que as crianças
temente, sua r.elativa desqualificação como estado transi- compreendem, tão. bem quanto os adultos, tudo o que merece
tório, Inacabado e imperfeito. Essa concepção vai marcar ser compreendido" (Brecht, 1977, p. 217). Enfim, a intensidade
de forma profunda a compreensão do que é ser criança nas do prazer teatral e a pertinência da leitura dos signos das obras
sociedades complexas modernas, definindo padrões de nor- não estão diretamente ligadas à faixa etária do espectador.
malidade e deficiência, além de legitimar todo tipo de tra-
tamento infligido sobre as crianças pelos "especialistas"
(Jobim e Souza, 1996, p. 44).
Cada vez mais cedo (hoje a partir dos nove, dez anos), as
crianças deixam de querer ver o teatro que lhes é oferecido pois,
argumentam, "teatro infantil é coisa de criança". E elas têm ra-
zão mesmo , pois se é para a tal da "criança" que se deve mostrar
um tal tratamento "infantíllzador", quanto antes ela se emanci-
par e deixar ~e ser cons iderada "criança", melhor será.
o épico e a modernidade
O surgimento do teatro moderno, em fins do século XIX e
início do XX, é proveniente de dois fatores fundamentais: o de-
senvolvimento científico eas mudanças na estrutura social, políti-
ca e econômica. Assim como as ciências naturais aprofundaram,
como nunca, os seus conhecimentos sobre as condições de vida
do homem neste planeta, a realidade político-social foi dissecada
e compreendida pelas ciências humanas . A compreensão das en-
grenagens sociais ampliou a consciência da sociedade sobre seus
processos. Movimentos artísticos, entre os quais o teatro, entra-
ram em consonância com este momento histórico. O conheci-
mento dos, agora aparentes, mecanismos sociais requeria a for-
mulação de novas concepções teatrais; a cena passou a investigar
suas configurações internas, buscando linguagens que possibili-
tassem um diálogo efetivo com a realidade em transformação.
As novidades científicas e o desen~olvimento tecnológico do
final do século XIX acrescentaram ingredientes de grande im-
portância para as transformações teatrais, proporcionando uma
verdadeira revolução cênica. A tecnologia permitiu redimensionar
91
92 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 93
o palco, iluminando a cena, inventando sonoridades, tonalidades, nha, e do daquele que ele chamava de ilusionista, ao qual se
profundidades, multiplicando sensações. O palco, corno nunca opunha fortemente, pois utilizava algumas Inovações científicas
antes, torna-se capaz de levar ao espectador a ilusão de estar da época, em especial a iluminação elétrica, para susc itar no
diante da própria vida. espectador a ilusão de estar diante da realidade, um teatro da
É neste contexto histórico que Brecht vai começar a pensar a burguesia que criticava por deixar a consciência, junto com o
criação de seu teatro épico, urna teoria que foi desenvolvida du- chapéu, no foyer das salas de espetáculo. O teatro brechtiano
rante mais de trinta anos em textos e anotações muito numero- tentava superar estas posições , marcando um questionamento
sas, por vezes até contraditórias. há muito presente nos debates acerca da arte da encenação: Qual
Contrário à passividade proposta para o espectador do teatro a finalidade do teatro, divertir ou instruir? E, para isso, ut ilizava:
burguês que , imobilizado diante da ilusão de realidade, estava
impedido de raciocinar, Brecht sugere uma linguagem aberta- Por um lado, a técnica do teatro burguês (teatro que
mente teatralizada. O palco não poderia manter-se fechado, aban- alcançou desenvolvimento pleno) e, por outro lado, a dos
donando o espectador ao silêncio solitário e hipnótico das salas pequenos agrupamentos teatrais proletários que na Alerna-
escuras, ao contrário, deveria assumir a presença do espectador nha, após a Revolução, elaboraram um estilo próprio , mo-
no evento, apresentando-se como teatro, não ilusão da vida. A derno, ao serviço dos seus objetivos proletários (Brecht,
ruptura da função usual do teatro tornava-se fundamental para 1978, p. 37).
'Brecht que, não sem urna dose da ironia que lhe era peculiar,
classificava os espetáculos burgueses corno pertencentes ao ramo O teatro brechtiano pretendia aliar à emoção um forte teor
do comércio de entorpecentes. O autor questiona, assim, a fun- reflexivo, o que não levaria a um resultado cênico menos pra-
ção social da arte teatral e busca construir um teatro que revele, zeroso . Para ele, no entanto, o prazer também precisaria ser posto
interrogue e contribua para transformar aestrutura social. Por em questão. O teatro épico deveria ter como objetivo maior a di-
meio da revolução do processo teatral se ,chegaria à crítica e à versão, nisto não se distinguia do teatro burguês. Mas o que seria
reforma do aparato social. Era preciso destruir o velho teatro e verdadeiramente divertido ou prazeroso? A seu ver, "deveria se
reconstruí-lo em outras bases . "As inovações autênticas atacam tornar o prazer objeto de uma análise, já que se tinha de tornar
o mal pela raiz" (Brecht, 1978, p. 22). a análise um objeto de prazer" (Brecht, 1978 , p. 15).
O gênero por ele criado procurava manter a tensão entre dois Os recursos cênicos utilizados dessa forma têm o intuito de
teatros: o burguês e o proletário; surgia da tentativa de relação afastar o espectador da ação dramática" interrompendo a corrente
entre estas duas formas dramáticas, do diálogo entre um teatro hipnótica e possibilitando a sua atitude crítica. "O espectador
com forte tom emocional e outro marcadamente racional. Tra- não deve viver o que vivem os personagens, e sim ques tioná-los "
zia para o mesmo palco elementos do teatro conscientizador do (Brecht, 1989, p.131). O encenador propõe , assim, que o especta-
proletariado, em desenvolvimento naquele momento na Alerna- dor se distancie e reflita sobre o que vê, em vez de entregar-se a
,'..
si a condução de suas atitudes. Distanciado e alienado da aliena- contato com um texto épico, uma história já ocorrida, e que lhe
ção , o espectador poderia, então , tomar consciência de sua não . é narrada, mantém certa distância do fato e não tem o mesmo
refletida alienação cotidiana e retomar sua plenitude, sua poten- envolvimento que o leitor do texto dramátíco , ao qual os fatos ,
cialidade transformadora. Distanciado do habitual, o espectador mesmo quando se trata de um acontecimento histórico, são apre-
descobriria a verdadeira face do familiar, reconhecendo o c~nhe sentados como se estivessem acontecendo naquele momento .
cído. O estranhamento do cotidiano, o questionamento ' do que O texto no teatr? épico, portanto, procura apresentar as situa-
antes parecia normal e que se mostra agora surpreendente, cau- ções de forma narrativa, tratando os fatos como históricos -
96 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 97
fatos já ocorridos e que têm relevância histórica. Essa distância No épico, como vimos, não há encadeamento rigoroso entre
que se 'estabelece entre o espectador que assiste no presente a as cenas, não há um crescendo para o clímax, o espetáculo é
um fato ocorrido no .passado permite que ele mantenha a atítu- composto por diversos fragmentos , cabendo ao espectador es-
.'de reflexiva acerca do assunto narrado. No texto do teatro dra- truturar a totalidade, elaborar uma compreensão do todo , rela-
mático, o autor ausenta-se da história, que parece ganhar vida cionar cada:situação particular, cada cena, com o tema geral.
própria; o espectador vívenoía a história que acontece diante A evolução linear da trama é quebrada, rompendo com a pro-
dele no tempo presente. Vinculado emocionalmente à trama, o gressão dramática em direção ao desfecho , deixando a obra
espectador teria diminuída sua capacidade de sobre ela reflet ír, suspensa e a conclusão final a cargo do espectador.
No gênero dramático, a história desenrola-se diante do es-
pectador, que fica "parado", assistindo à sucessão dos fatos inter- É que se trata de ,mostrar não uma evolução fatal, irre-
ligados. O épico abrange um conteúdo mais vasto, o autor sele- sistível, mas uma série de possibilidades, e paraisso, é neces-
ciona os acontecimentos a serem narrados e os apresenta .ao sário decompor uma situação em outros tantos elementos
espectador; a história progride aos saltos e o espectador tem de particulares que o espectador "remontará" em seguida [, . ,J.
se "movimentar". para acompanhar os fatos, que não têm uma Cabe ao espectador determinar, deduzir do espetáculo este
necessária relação causal. sentido global: em nenhum momento, este sentido é ex-
A forma épica de teatro tem caráter fragmentário . Por haver presso claramente, ele não se realiza em uma cena-ch ave
autonomia entre as partes da peça, cada cena tem seu valor e (Dort, 1977,p. 289) .
cada parte contém. o todo, cada cena tem unidade própria e está
ligada às outras pela idéia do todo que traz em si. "Ao contrário Assim, o espectador do teatro épico passa de uma cena a outra,
da obra dramática, uma obra épica se deixa recortar, como por mantendo-se distante do fato apresentado, analisando seus aspec-
uma tesoura, em partes capazes de conti!1Uar uma vida própria" tos e construindo 'sua compreensão da história narrada . Já que :
(Brecht, 1989, p. 258). As cenas são independentes e não se vin-
culam por uma relação de causa e conseqüência. Cada cena tem Seu fim repousa desde logo em cada ponto do seu movi-
importância própria, tem começo, meio e fim, como várias pe- mento; por isto não corremos impacientes para um alvo,
ças dentro da peça. Essa est,rutura fragmentária das cenas resul- mas demoramo-nos com amor a cada passo (Schiller, apud
ta na ação dramática constantemente interrompida, da qual o Rosenfeld , 1985, p. 32).
espectador fica desvinculando e, assim, evita-se apresentar a his-
tória de forma determinista, já que o que aconteceu antes não Como o texto, os elementos cênicos do teatro épico também
determinaria, necessariamente, o que acontece. O mundo se mos- têm caráter fragmentário ; o palco se mostra desconstruído e
tra passível de modificação e afirma-se a possibilidade do homem cada pedaço que o constitui está à vista , O encenador deixa ela-
de surpreender, de mudar o curso dos acontecimentos históricos. ro para o espectador os recursos que utiliza em cena: a luz, o
"
A concordância com a produção de Brecht expressa um o absurdo e o horror da guerra não constituíam experiência
dos pontos mais valiosos e importantes da minha posição capaz de ser transmitida. O desmoronamento do mundo exterior
entendida como um todo (Benjamin apud Konder, 1989, parecia ter petrificado o mundo interior. A linguagem mostrava-
p.63). se insuficiente, talvez inadequada, não conseguia dar conta
dos acontecimentos, traduzi-los em algo comunicável. A palavra
Os pontos de encontro entre as teorias de Benjamin e Brecht não podlaproduzír significados diante da situação; a intensida-
são bastante significativos. A investigação das proposições teóri- de da experiência sufocava qualquer possibilidade de narrá-la.
cas de Benjamin, fundamentadas em sua filosofia da história, "Em meio à destrutividade cósmica, a língua não era mais lu-
permite ampliar o entendimento dos ensaios de Brecht. Aliás, as gar de origem e pertencimento, referência e proteção" (Matos,
afinidades entre eles não param aí; eram amigos, companheiros 1995, p. 3).
de exílio, e mais, companheiros de catástrofe. As lutas de hoje estão sempre em relação com as de ontem.
Os dois articulam em suas obras um pensamento do presente, Se mantivermos um abismo separando presente e passado, mun-
acentuando a experiência do horror que vinha tomando conta da do dos vivos e mundo dos mortos, as lutas se repetirão ao longo
Europa e abordando as terríveis conseqüências que aqueles acon- da história, sem novas conquistas; para nos livrarmos desse pe-
tecimentos produziam nos indivíduos. Em nota sobre Mãe Co- rigo, comentava Benjamin na primeira metade do século XX, é
ragem e seusfilhos, Brecht escreveu que, da mesma maneira que preciso que nos apropriemos das reminiscências, cada vez mais
uma cobaia não aprende biologia, as vítimas de uma catástrofe assunto raro. A memória está, aos poucos, se esvaindo, pois está
não aprendem nada. Sua percepção dos estragos provocados pelos desaparecendo o dom de contar e de ouvir histórias, e isso por-
atos de barbárie encontrava ressonância na voz de Benjamin: que ninguém se interessa mais em trocar experiências, que estão
104 O ' ESPECTADOR !tPICO o ESPECTADOR ÉPICO 105
se tornando cada vez mais pobres e, com isso, desinteressantes propriedade morta" (Benjamin, 1993a, p. 172) e que , no entanto,
e incomunicáveis (Benjamin, 1993a). Quase nada pode " efeti- se acredita plenamente integrado ao processo histórico, O
vamente, ser traduzido em experiência em um dia do homem da homem não percebe que o passado se repete porque está esque-
, era modernaa pobreza das experiências faz que a vida diária se cido dele, pois "rompeu com a cultura e a tradição , e está proibido
transforme em vivências de situações sem importância. Os cho- de construir a história porque se demitiu da história" (Rouanet,
ques do cotidiano, os riscos da selva das cidades consomem as 1990, p. 97)
experiências possíveis, condenando o indivíduo auma vivência Expulso da esfera do discurso vivo, incapaz de criar o presente,
repetitiva e desmemoriada, rompendo os laços da comunicabili- pois se perdeu do passado, continua ansioso pelas novidades
dade capazes de manter vivas a tradição e a história da comu- sempre iguais. Certo de estar renovando o presente, na verdade,
nidade; pois tradição é memória que se passa de mão em mão. soterra a possibilidade do novo, ao desvincular-se da história. O
E, se não há memória para ser transmitida de uma geração a novo, como afirma Benjamin (1993a), não surge do vazio, não
outra, está rompida a cadeia da tradição. surge do movimento aleatório, não surge de gestos sem vínculos
com a memória. O novo tem história, adv érn da tradição , mas
Exposto a perigos multiformes, e obrigado a concentrar não de uma tradição irrefletida, apoderada pelo conformismo e,
todas as 'suas energias na tarefa de proteger-se con tra o sim, da tradição libertada pelo presente, da relação dialética do
choque, p homem moderno vai perdendo a memória indi- presente despertado com os sonhos do passado .
vidual e coletiva. O homem privado de experiência é o ho- Sem ter experiências para contar, o homem moderno está
mem privado de história, e da capacidade de integrar-se entregue ao vazio da própria linguagem que, superficial e in-
numatradlçãofRouanet, 1990, p. 49). formativa, nada acrescenta. Tão bem retratado pelo teatro do
". ' . . ' - absurdo, ele se assemelha a um personagem que, encontrando-
A concentração de esforços para aparar ou desviar-se dos cho- se sobre um chão movediço no qual vai afundando aos poucos e
quesempobrece as potencialidades mentais. A capacidade que incessantemente, parece alheio à situação e continua a monologar
antes era empregada para absorver e memorizar as situações do banalidades. Acostumado a uma linguagem jornalística, preo-
cotidiano, para, posteriormente, revertê-las em experiência, ago- cupada em notícias de assimilação imediata, "o homem de hoje
ra trabalha sob tensão nos combates da vida diária. E a memória, não cultiva o que não pode ser abreviado "; com isso, "a arte de
lia mais épica de todas as faculdades" (Benjamin, 1993a, p. 210), narrar está em vias de extinção" (Benjamin, 1993a, p. 197).
não resistindo aos choques constantes, foi a nocaute; jaz estirada Se a arte da narração é hoje rara, a difusão da informação é
no asfalto das ruas , espalhada na sujeira dos becos, esfacelada decisivamente responsável por este declínio,
nos cacos dos canteiros de obras . . .
Esta mera vivência dos eventos cotidianos "sedimenta a auto- Cada manhã recebemos notícias de todo' o mundo. E, no
alienação do ser humano que inventariou o seu passado como entanto, somos pobres em histórias surpreenden teso A razão
106 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 107
é que os fatos já nos chegam acompanhados de explica. história assim, sabe continuar outra. Ou seja, quem sabe contar
ções. Em outras palavras: quase tudo está a serviço da ín- sabe ouvir, e a recíproca aqui é verdadeira.
formação. Metade da arte narrativa está em evitar explica- Se o abandono da memória individual e coletiva dá-se pela
ções [. . .], o contexto psicológico da ação não é imposto incapacidade de narrar, é .na linguagem que se localiza esta fa-
ao leitor. Ele está livre para interpretar a história como lência e é nela que se encontram as possibilidades de sua pró-
quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma ampli- pria transformação. O mergulho na corrente viva da linguagem
tude que não existe na informação (Benjamin, 1993a, p. acende a capacidade transformadora, pois a tomada de oons-
203). cí êncía é uma leitura de mundo . Apropriar-se da linguagem é
ganhar condições para essa leitura. Na linguagem, o passado, o
Benjamin toma como exemplo, em sua críticaàmaneira como presente e o futuro se interpenetram e se transformam; revê-la é
os veículos de comunicação de massa abordam os acontecimen- rever a história, ' pois esta existe na linguagem; a história está
tos cotidianos, a peça Um Vôo sobre o Oceano; escrita por Brecht viva no discurso vivo.
a partir de um fato verídico: o audacioso e solitário vôo de Char-
les Líndbergh , primeiro piloto de avião a atravessar o Atlântico. Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o
Acontecimento que provocou grande entusiasmo e foi ampla. discurso histórico é sempre uma narrativa [... ] Fazer
mente notlcíado por revistas, jornais e rádios da época. A obra, história é contar história [.. .] Pois, na medida em que o
porém, ressalta Benjamin, diferente dos bombásticos noticiá- homem só pode recebera história numa transmissão, a hís-
rios , que explodiram em sensacionalismo, "se preocupa em de- tória condiciona e mediatiza o acesso à linguagem (Kramer,
compor o espectro da «vivência» para obter por decantação as 1993, p. 65).
cores da «experiência». Experiência que só poderia ser extraída
do trabalho de Lindbergh e não da excitação do público" (Ben- A linguagem revela-se instrumento precioso, não se limita
jamin, 1991, p. 216). O mesmo acontecimento fora, assim, tra- apenas a ser veículo da história, mas a faz. Para reconstruir a
tado, ora como mero evento, ora como fato histórico. história, portanto, é preciso reconstruir a linguagem.
A falência da capacidade de adquirir e transmitir experiências
está extinguindo a sabedoria, que Benjamin define como "o lado o HISTORIADOR PARALISA O TEMPO PRESENTE
épico da verdade", forjada a partir do enredamento dos fios da Cabe ao presente abrir diálogo com o passado , uma vez que o
experiência diária, aperfeiçoando sua trama na comunicabi~ida ontem não se cansa de gesticular em, direção ao hoje. Cabe ao
de , na relação viva com o tecido social. Ríço em experiências sujeito revolucionário o gesto de fazer e refazer a história, para
transmissíveis , aquele que sabe narrar uma história sabe "fazer que nossos mortos, e seus sonhos, não fiquem entregues ao ini-
uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sen- migo. Trata-se de reconhecer os momentos de tensão, de perigo ,
do riarrada" (Benjamin , 1993a, p. 200). Quem sabe contar uma . e retirar deles as centelhas de esperança contidas em cada uma
108 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 109
das situações, para que estas centelhas se libertem e iluminem o o pêlo escovado ao contrário é revolvido, mostrando o que
presente. A reflexão sobre o que está acontecendo está vincula- está escondido no couro; além de alterar o seu curso normal, a
da àquela sobre o que aconteceu, e a verdade continuará sem- sua disposição pr~visível, o seu irretocável penteado. Os fatos
o pre a nos escapar enquanto o presente, em sua ânsia de progres- históricos podem :Ser reordenados, não se relacionam continua-
so, abortar o passado em busca do futuro. O presente não é mente, ligados por uma sucessão de causas e conseqüências. A
mera passagem para o futuro, mas o tempo que o historiador história não é um continuum vazio e homogêneo, mas tempo,
deve paralisar para escrever a história. saturado de agoras, que constituem fragmentos brotados da ex-
O passado não pode ser encarado de forma definitiva, incon- plosão do continuum. A cadeia da história não se estabelece
testável, é preciso desencantá-lo, deixando-o em aberta relação pela sucessão de fatos, mas pela sucessão de idéias, desejos,
com o hoje, capturando, no dito, o não-dito, e, no feito, o não sonhos, necessidades... A história é composta por pedaços
realizado, aquilo que foi desejado, mas reprimido; despertando descontínuos, em que cada fragmento é um agora, uma mônada,
os sonhos adormecidos pelo véu da história, sonhos realizados uma parte que contém o todo, como uma constelação formada
anteriormente e que foram sufocados; oxigenando-os para que por diversos sóis, diversos centros. Cada parte tem luz própria
venham à tona, invadam e impulsionem o presente e o futuro. e traz em si a idéia do todo.
"Cada época não somente sonha a seguinte, mas ao sonhá-la a Pa~a Benjamin, simplesmente por ser causa, um fato não pode
força a despertar" (Benjamin, apud Rouanet, 1990, p. 91). Os ser considerado histórico, "se transforma em fatohistéríco postu-
sonhos coletivos de ontem não cessam de esperar respostas da mamente, graças a acontecimentos que podem estar dele sepa-
atualidade; frustrados historicamente buscam incessantemente rados por milênios" (Benjamin, 1993a, p. 232). Ele se torna histó-
serem revítalízados, trazendo seu potencial transformador. rico, quando é retirado do continuum do tempo pelo historiador,
que capta o seu momento e o põe em relação com o presente.
A história, tal qual os homens a fazem, não éum movi- Abramos, aqui, um pequeno parêntesís e retornemos ao tea-
mento contínuo, linear: ela é marcada por rupturas e se tro épico. Brecht propõe a apresentação dos acontecimentos
realiza através de lances que, em princípio, poderiam sem- corno fatos históricos, tenham acontecido ou não. A partir da
pre ter sido diferentes... O sujeito dispõe da possibilidade definição de Benjamin, dar a um acontecimento o tratamento de
de surpreender. E o sujeito revolúcionário precisa se em- fato histórico significa, para o encenador épico, perceber o
penhar no aproveitamento dessa possibilidade, para se contexto social de sua época e pôr os fatos (reais ou não) que
contrapor não só ao quadro institucionalizado como ao teriam ocorrido em outra época, e/ou relacionados a um outro
movimento que resultou na. institucionalização. Por ter contexto social, em contato com o agora recolhido do momento
plena consciência desse imperativo é que Benjamin exige atual. Ele se torna fato histórico à proporção que traga em si
do marxista que este trate sempre de "escovar a história a tensões que se liguem às vividas no momentO vivido, subvertendo
contrapelo" (Konder, 1989, p. 7). a ordem do tempo e se fazendo presente em outro contexto.
110 o ESPECTADOR ÉPICO o ESPECTADOR ÉPICO 111
A ligação viva dos acontecimentos do passado com os de hoje Quando o fluxo real da vida é represado, imobilizando-
torna-se possível justamente pela tensão que relaciona fatos ocor- se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o
ridos em épocas anteriores com os atuais; que se vinculam pela assombro é esse refluxo . O objeto mais autêntico desse
descontinuidade contínua dos sonhos e desejos, pelas centelhas assombro a dialética em estado de repouso (Benjamin ,
é
A reflexão inclui não somente a mobilidade do pensa- Os pais que se lamentam porque um brínquedo foi es-
mento corno sua paralisação. Quando o pensamento pára, cangalhado cometem um erro considerável, que demons-
subitamente, numa constelação saturada de tensões, trans- tra a sua ignorância acerca de um fenômeno importante: os
mite-lhe um choque, e ela se cristaliza enquanto rriônada bocados dos brinquedos escangalhados têm ainda. mais
(Rouanet, 199ü,p. 25) . valor para a criança do que os brinquedos inteiros, são-lhe
muito úteis durante muito tempo . De momento , na verda-
Na interrupção da cena épica, o tempo é imobilizado para de, não se utilizará deles , mas dois ou três dias depois re-
que se reflita sobre a história, paralisando o pensamento que se correrá a eles para construir novos jogos , e esses bocados
debruça sobre a situação, buscando interpretá-la. O espectador desempenharão uma função nova no seu imaginário . ..
distaricia-se da corrente da ação dramática, em atitude crítica e, O mesmo acontece quando [os pais l incitamos filhos a
posteriormente, em novo mergulho, retoma ao curso da trama. oferecera um menino pobre brinquedos velhos de que ele
gostou. É preferível dar um brinquedo novo a que ainda
o OLHAR 'tPICO DA CRIANÇA não se criou afeição: primeiro, porque o menino pobre
Nos ensaios acerca da infância, Benjamin compara o olhar da gostará mais de um brinquedo novo e em seguida isso não
criança ao do artista, que inventa possibilidades, ou ao do cole- privará a criança de nada (Dolto, apud Leenhardt, 1973 ,
cionador; que , em sua relação afetiva com os objetos, lhes tira o p.52).
114 o ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 11S
A criança, em geral, desmonta o brinquedo para se apropriar infância se encontra no centro da concepção benjaminiana de
dele , para conhecer o que há por trás, estabelecer uma relação história" (Lehman, 1986, p. 83) .
de in timidade, de aproximação, de afetividade mesmo. E é aí
que mora o lado épico da brincadeira, na re-sígnífícação dos É aí que o tema da infância assumia um papel fundamen-
cacos. Assim como o espetáculo épico na concepção de Brecht, tal: cada um denós tem a possibilidade de rememorar sua
com o mesmo espírito científico, a criança desconstrói para des- própria infância, que é uma história que lhe é íntima, que
cobrir, dominar e tornar a construir a partir de significados pró- pode lhe abrir segredos preciosos, que pode funcionar como
prios ; por mais que a sua remontagem efetiva possa dei~ar o um centro especial de treinamento para o sujeito desenvolver
brinquedo um tanto diferente do que era antes e, para 'os pais, sua sensibilidade e sua capacidade de resgatar significações
com um certo ar de escangalhado. . obscurecidas que ficaram no passado (Konder, 1989 , p. 56) .
E a criança também escolhe os seus brinquedos por con- Esta reflexão sobre o passado visto através do presente en-
ta própria, não raramente entre os objetos que os adultos contra .na infância sinais que o presente deve .decifrar: trilhas
jogam fora. As crianças "fazem história a partir do lixo da abandonadas, desejos frustrados , idéias não realizadas. Alem·
história;'. É o que as aproxima dos "inúteis", dos "inadapta- brança da infância, nesse sentido, não se dá como idealização,
dos" e dos marginalizados (Benjamin, 1984, p. 14) . mas como realização possível dos sonhos sufocados, leitura crítica
do presente da vida adulta. Não se trata, porém, de uma preo-
A atenção ao olhar da criança em Benjamin, retorno à pró- cupação restrita à infância individual do historiador, mas da
pria infância, a lembrança e o relato de várias passagens de suas infância como modalidade de experiência e percepção do passa-
experiências de menino , estão vinculados a sua reflexão sobre a do. A infância compreendida de maneira coletiva e não individual
história. A volta à infância é a volta ao passado, farejando os so- é a chave do entendimento de uma época a partir de sua face
nhos, os desejos, as idéias, que foram então formuladas, mas criança. Este retorno, portanto, não se encerr~ em uma pers-
que não chegaram a se expressar em realidades objetivas pectiva psicológica, ele se estende ao plano da história; a necessi-
duradouras , embora estivessem prenhes de significação histórica, dade de rever a infância reside na necessidade de refazer a
tanto pessoal, do adulto que revê sua infância, quanto coletiva, memória hlstôríca.
vinculada às experiências do menino . O maior revela-se no me- Benjamin retoma à infância, vivida em Berlim, buscando com-
nor. Ao abordar suas recordações de infância, é de um momento preender a realidade daquela época com base em sua visão in-
histórico que Benjamin está tratando. fantil, indo ao encontro do olhar espeoífíoo da criança para os
A infância de um homem está relacionada à infância dos ho- objetos e situações, partindo do olhar do menino de então que ,
mens , a memória individual ligada à coletiva. Os sonhos de como os demais, era tido pelos adultos como ingênuo , desatento,
infância vão ao encontro dos sonhos da coletividade. "A idéia de desajeitado...
116 o' ESPECTADOR ÉPICO O ESPECTADOR ÉPICO 117
Essas aberturas mal davam para o lado de fora; abriam- "o mal-entendido, longe de ser um simples não entender, se re·
se para o subterrâneo. Daí a curiosidade com que olhava vela como entendimento do não-entendido nos objetos" (Anna
"p ara baixo através das barras de cada gradeado que pisava Stussi , apud Gag~bin, 1994, p. 93).
a fim de ganhar do subterrâneo a visão de um canário, de Esse olhar inseguro da criança tem características épicas em
uma lâmpada ou de um morador. Nem sempre era possí- sua relação com fatos e coisas: a percepção de quem está sempre
vel. Mas, se durante o dia fossem vãs minhas tentativas, disposto a olhar outra vez; olhar curioso, científico ; sempre pron-
poderia acontecer que, à noite, a coisa se invertesse, e eu to para se assombrar, como o de Galileu diante da lâmpada.
mesmo me tornasse presa em sonhos de olhares que apon-
tavam para mim de tais aberturas. Eram gnomos de gorros [. . .] um olhar de estranheza idêntico àquele com que o
pontudos que os lançavam. Porém, mal me haviam assus- grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscila-
tado até a medula, já desapareciam [.. ·l· ções surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado
O corcundinha era da mesma espécie. Contudo , não se que fossem dessa forma , como se não entendesse nada do
aproximou de mim. Só hoje sei como se chamava. Minha que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do
mãe me revelou seu nome sem que o soubesse. "Sem jeito pêndulo. O teatro [ ] tem de suscitar no público uma
mandou lembranças" era o que sempre me diziam quando visão semelhante [ ]. Tem de fazer que o público fique
eu quebrava ou deixava cair alguma coisa. E agora entendo assombrado [... ] (Brecht, 1978, p. 117).
do que falava. Falava do corcundinha que me havia olhado.
Aquele que é olhado pelo corcundinha não sabe prestar A estrutura temporal deste método do "d esvio deve ser
atenção (Benjamin, 1993b, p. 142). ressaltada: o pensamento pára, volta para trás, vem de novo ,
espera, hesita, toma fôlego. É o exato contrário de uma
A criança, ao ser olhada pelo "corcundínha", o que caracteri- consciência segura de si(Gagnebin, 1994, p. 99).
za a sua maneira particular de ver o mundo, torna-se um "sem
jeito" que "manda lembranças" cada vez que não se porta como O pensamento inseguro, que titubeia e quer ver de novo , que
adulto, ou como quer o adulto. O "coroundínha" representa a paralisa o tempo, cristaliza o agora e se detém no objeto, é a
inabilidade, o fracasso, a insegurança da criança diante das "cer- percepção da criança benjamínlana, percepção de colecionador,
tezas" dos adultos. É justamente esse olhar próprio , desajeita- " de artista. . . Segundo Benjamin, "como nenhum outro , Brecht
do, aberto a diferentes significados, que estranha um objeto com recomeça, sempre, do princípio. E é nisso, diga-se de passagem,
intuito de assimilá-lo a sua maneira e está apto a novas associa- que se reconhece o dialético" (Konder, 1989, p. 64) .
ções , que vai tocar o interesse de Benjamin. O jeito singular como Esta percepção proposta ao espectador do teatro épico traz
a criança se relaciona com a realidade, que pode ser tornado o mesmo teor de investigação contido nas crianças da pintu-
como um sem jeito, seria, na verdade, um jeito próprio , já que ra flamenga localizada na pãg. 119 (Berthold, 2000, p. 260),
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Barbeirínho do Jaearezinho
Marcos Diniz & Luiz Grande
Um dígníss írno cavalheiro, de faces congestionadas, em- O capitalismo de consumo preenche todos os espaços, pene-
punhava um molho de chaves e arremetia triunfante, con- trando e colonizando tanto e Naturesa quanto o Inconsciente, Q
tra o teatro épico. A mulher não o abandonava nesse tran- que pode ser percebido na "destruição da agricultura pré-capi-
se. A digna senhora tinha dois dedos enfiados pela boca talista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e a ascensão das
adentro, os olhos semicerrados em fenda, as faces balofas. mídias e da indústria da propaganda" (Jameson, 1996, p. 61).1
Soprava pela extremidade da chave do cofre como num as-
sobio (Folgar, apud Brecht, 1978, p. 15). 1 Como exemplo da poluição (e colonização) do im aginário pela cultura de
mercado, posso citar um exercício teatral realizado com meus alunos no
Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, 110 qual
A arte moderna, em suas diferentes configurações, estava propus que ouvissem As quatro estações, de Vlvaldí, e construíssem
marcada pela vontade da quebra absoluta com tudo que vigora- cenas a partir da livre composição das imagens 'suscitadas pela música. A
grande maioria dos participantes apresentou elaborações cênicas que, de
va até então, vontade de abarcar o todo social e transformá-lo
uma ou outra maneira, estavam relacionadas a uma recente propaganda
completamente, mostrando-se imbuída de uma espécie de "im- de sabonete que utilizava esta música em seus comerciais de TV. Daí a
pulso demíúrgico no qual um desejo chamado totalidade é, de importância de um trabalho destinado à descolon ízação do imaginário.
144 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 145
Se partirmos do pressuposto de que não há mais refúgio seguro o sistema não mapeável do capitalismo avançado anula aopo-
para onde se possa retirar, de que não há mais lugar em que se síção entre interno e externo e gera um todo sem perfil , irre-
possaestar fora da cultura para sobre ela refletir, o que define a presentável, que se caracteriza por uma totalidade diferente-
ausência de um ponto de vista que englobe a totalidade do modo mente constituída ~- solicita novo mapeamento , novas represen-
de produção contemporâneo em suas diferentes manifestações, tações .
a elaboração de um projeto un íversalízante de renovação social MaS como representar a vida em seu modo contemporâneo,
se torna uma tarefa de difícil realização, ou que requer redi- concebendo-a como síntese orgânica, se estamos imersos full
mensionamento. time, condicionados à cultura capitalista de consumo, impossi-
A impossibilidade de uma visão global da cultura prejudica a bilitados da visão do t~.do , condenados a estilhaços, se nosso
formulação de qualquer síntese que se proponha a dar conta do ponto de vista está cada vez mais submetido à contemplação de
todo social, pois não há ponto de vista que permita um olhar frações do mundo, e a impossibilidade de uma visão de conjunto
suficientemente abrangente, que alcance todos os aspectos da se torna radical por uma realidade cada vez mais ficcionalizada,
vida humana neste momento histórico. Nenhuma narrativa virtualizada?
totalizante oferece, portanto, consenso, nenhum grande projeto A incapacidade de abranger o ambiente social em todas as
de transformação consegue abarcar todas as reivindicações, sa- suas dimensões e complexidades e de estruturar um projeto que
tisfazer todos os desejos, reunir múltiplos ideais. Não havendo responda aos anseios e necessidades das sociedades moderniza-
condições para que vigore qualquer proposta de salvação da das é um dilema contemporâneo. Em suas divers idades e varia-
coletividade cada vez mais explodida em átomos dessocializados. bilidades, essas sociedades "ultrapassam as dimensões das con-
dições 'de vida que poderiam ser calculadas pela imaginação do
A síndrome Blade Runner é apenas isto: a interfusão de projetista" (Habermas apud Anderson, 1999, p. 50) . E se a im-
multidões num bazar de alta tecnologia' com seus múlti- possibilidade de formulação de projetos é fato, a construção de
plos pontos nodais, tudo selado num interior sem exterior, modelos que funcionem como sínteses das sociedades moderní-
que por isso intensifica o anteriormente urbano a ponto de zadas apresenta as mesmas dificuldades. E aqui poderia ser apon-
ele se tornar o sistema não mapeável do próprio capitalis- tado um problema pelo qual passa o teatro épico moderno, se o
mo tardio . Agora é o sistema abstrato e as suas inter-rela- relacionarmos aos aspectos da vida no período em que .vivemos.
ções que estão de fora: O antigo domo , a antiga cidade, além A idéia , concebida por Brecht, de construção de uma peça que
da qual não há nenhuma posição individual disponível , de funcione como modelo científico, como narrativa sintética que
forma que ele não pode ser inspecionado coma uma coisa demonstre o funciona~ento do aparato social capitalista, em
em seu próprio direito, apesar de ser, certamente, uma to- que as contradições sistêmlcas são reconhecidas e a solução
talidade (Jameson , 1996, p. 162). direciona para uma transformação radical do sistema, indican-
do a revolução socíalísta com o. saída necessárl a, esbarra nas
146 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 147
mesmas dificuldades dos projetistas contemporâneos. Dificul-
Propondo-se a dialogar com o passivo sujeito da modernidade,
dades manifestas tanto na representação de um todo social or-
alheio ao funcionamento das engrenagens do sistema capitalista,
gânico, quanto na resolução de problemas sistêmicos. Não há
e alienado de sua capacidade produtiva e sua potencialidade
condições, neste início de século XXI, para se formular uma sín-
transformadora, o teatro épico quer implementar um procedi-
tese do todo social, nem para apontar a conclusão da parábola
mento estético que produza no espectador um efeito desalienador,
para a revolução do sistema capitalista, indicando o socialismo
e o leve a perceberas forças sociais que o mantêm afastado do
como caminho efetivo, concreto..
processo histórico. O teatro funcionaria como instrumento de
As saídas possíveis deparam com indicadores de caminhos um
denúncia, revelando bastidores da cena e da vida, possibilitando
tanto confusos e incertos, o que dificulta a formulação de uma
ao espectador perceber, negar e modificar sua conduta alienada.
proposta estética que se estruture como expressão COletiva.
Mas como compreender alienação nos dias atuais, época em
que a informaçãose desloca ainda mais rápido que os dias? Como
[... ] se programas estéticos podem ainda com certeza ser
dizer que está alienado o indivíduo superinformado? Como jul-
encontrados - embora hoje mais como expressão indivi-
gar que' alguém esteja alheio aos diversos aspectos dos fatos
dual que coletiva -, o que indubitavelmente falta é uma
atuais? Como pensar em propor procedimentos estéticos de-
visão revolucionária do tipo articulado pelas vanguardas
salienadores a indivíduos plugados, de um modo ou de outro, na
históricas (Anderson, 1999, p. 134).
híper-ramífícada rede comunicacional? Para que propor-se a
denunciar, a revelar os bastidores do que está superdenunciado
A tomada de consciência proposta ao espectador do épico
e revelado pela mídia? Não estaria a desalíenação, hoje, já incor-
moderno consistia em levá-lo a perceber mecanismos de um sis-
porada ao discurso tanto da mídia quanto da mercadoria?
tema opressor e, ao mesmo tempo, apontar uma saída prática: a
Diversamente da época em que foi proposta, quando destruía
revolução socialista. No entanto, é de difícil aplicabilidade pro-
uma tradição teatral que chamava de "ilusionista", tradição essa
duzir, atualmente, no espectador este efeito ideológico, tornan-
que tinha por objetivo convencer o espectador de estar diante
do-se necessário que nos interroguemos acerca de como com-
da própria vida, em vez de assumir a teatralidade do evento, a
preender a tomada de consciência nos dias de hoje. Tomada de
proposição desalienadora do teatro épico moderno está disse-
que consciência? Consciência revolucionária, quando estão des-
minada nos media, de maneira que a denúncia de um sistema
feitas as condições político-sociais que sustentavam o engaja-
opressor e alienante não produz nenhum choque, não propõe
mento em 'qualquer grande proposta de reformulação social?
qualquer olhar de estranheza, para ~m indivíduo ligado à rede
Consciência de classe, quando a luta de classes, ou a base social
de informação e com a percepção acostumada aos procedimen-
da divisão de classes, em seus padrões modernos, tal como for-
tos estéticos modernos. A revelação da teatralidade da encena-
jada na SOCiedade industrial, está enevoada "a ponto de perder
ção, O desvendamento do próprio veículo teatral, estava em con-
toda a sua radicalidade"? (Lyotard, 1989, p, 36).
sonância com a vontade de desnudar os mecanismos do aparato
148 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 149
social, os bastidores de todos os eventos. Atualmente, podemos ao fascismo - a não ser a alegação debilmente pragmática
observar essa estética da revelação tanto em comerciais de TV, de que o fascismo não é o modo como as coisas funcionam
quedeixam propositalmente à vista do telespectador os proce- em Sus-sex ou em Sacramento (Eagleton, 1999, p. 30),
dimentos de criação e gravação, quanto - e aqui em outro senti-
do sobre ela - em embalagens de produtos alimentícios, que Ao dar a guinada, visando escapar do discurso Ideologizante,
revelam ao consumidor quais são os ingredientes e nutrientes o pós-modernismo, ou parcela significativa de sua produção, es-
que compõem aquele produto; sem falar nos artigos de jornais e correga para a absoluta ineficácia. O tratamento jocoso a qualquer
revistas e nos noticiários televisivos que estão sempre em busca esboço de vontade crítica faz, por vezes , o sorriso gelar nos lábios .
de revelar os mais diversos bastidores: A informação acerca da A arte contemporânea não está, contudo, restrita a essas pro-
produção é cada vez mais um procedimento estimulado pelos duções paralisantes, sendo, de fato, empurrada em duas dire-
veículos de comunicação e exigido pelo consumidor. ções: uma vontade de rever criticamente as propostas modernis-
tas e reincorporar elementos ao ambiente atual, e um ímpeto de
A negação pós-moderna "se lançar de cabeça no novo mundo sedutor da fama, do comer-
Como oposição às utópicas propostas do período anterior cialismo e do sensacionalismo" (Wollen apud Anderson, 1999,
e sugerindo um tipo diferente de relação entre arte e socieda- p. 124). Essas proposições que, em geral, ajustam-se ou fazem
de, a cultura pós-moderna, a partir das últimas décadas do sécu- apelo ao espetacular e estão apoiadas no abastecírnento maciço
lo XX, expõe a crise de muitas certezas confortáveis, subver- do mercado, têm predomínio absoluto no período.
tendo, até ironicamente, as altivas verdades do modernismo, Todavia, além das tendências pós-modernas que pretendiam
do evolucionismo e até mesmo dos modelos críticos. Os pós- instalar um produto cultural de acesso mais fácil, geralmente
modernos, em sua negação ao movimento anterior, relativizam associado à utilização dos novos media, há também , por parte
.a crítica social e tendem a render-se a uma resignação aco- de produtores culturais, a busca de um além do modernismo ,
modada: pela radicalização de suas negações da lnteliglbílídade imediata
e da proposição autoral feita ao receptor.
[... ] a um ceticismo politicamente paralisante, a um A modernidade inaugurou a participação em todas as instâncias
populismo vistoso, a um relativismo .moral bem desenvol- sociais. A arte desse período, imbuída desse espírito, pretendia
vido e a uma marca de sofismá segundo o qual, uma vez que provocar o espectador, propondo-lhe que raciocinasse critica-
todas as convenções são, de qualquer maneira, arbttrérías, mente acerca da obra e elaborasse ínterprecações próprias so-
podemos perfeitamente nos adequar às do mundo livre. Ao bre ela. Os artistas modernos promovem, assim, a pluralidade
puxar o tapete das certezas de seus adversários políticos, interpretativa, construindo uma obra de arte aberta, elaborada
essa cultura Pós-Moderna freqüentemente se deixou sem com a participação do espectador, instaurando uma forma artís-
chão também, não havendo mais razões para resistirmos tica em que o espectador se tornaria co-autor. "A própria recep-
150 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 151
ção das obras se personaliza, torna-se uma experiência estética ser contemplado e analisado a partir do ponto de vista próprio
'não amarrada' (Kandinsky), polivalente, fluida" (Lipovetsky, do espectador. Não se propõe ao espectador uma reflexão con-
1983, p. 95). A arte contemporânea, por sua vez, em sua tendên- clusiva, com base em uma síntese, mas uma reflexão analítica, a
cia de análise e especificação do modernismo , vai levar ao extre-
. ser elaborada valendo-se de uma disjunção estética apresenta-
mo esta proposição de autoria feita ao espectador, de maneira da. O artista trabalha recortando e definindo as frações de vida
que não s6 a significação fica aseu encargo, mas, em certo sen- sobre as quais irá debruçar-se, mas os pedaços recortados não
tido, a pr6pria "escritura" artística - o que se' traduz por uma formam necessariamente um todo orgânico. Em oposição aos
radicalização da abertura da forma e da significação. projetos modernos, a contemporaneidade implementa uma guerra
A estética da destruição-construção do moderno - e a descons- contra totalidades, pois a relatividade ganhou o cotidiano, e pon-
trução da cena apresentada pelo teatro épico.• com a interde- tos de vista possíveis estão multiplicados.
pendência dos elementos, é bom exemplo disso ... deixa a obra Se a noção de totalidade associada à construção do.novo está
aberta para que o espectador elabore outras construções, ou- prejudicada, os artistas contemporâneos retratam em suas obras
tras montagens possíveis. não mais uma harmonia orgânica, como a da arte moderna, em
O teatro precisava apresentar um mundo passível de trans- que as partes formavam um todo, por mais que cada fragmento
formação e, como o mundo, a obra teatral poderia ser construída pudesse ser radicalmente diferente do outro. A arte recente se
de outras maneiras pelo espectador. A experiência artística con- constitui, diferentemente, de um hibridismo desconexo, calca-
temporânea vai levar ao extremo essa idéia, apresentando não do na justaposição de elementos que não se harmonizam, ou
mais uma obra aberta, mas uma obra explodida. A realidade não então de partes que soam desnecessárias ao todo funcional da
se mostra mais desconstruída, transformável, e sim dessubs- obra. O que contraria a noção de organícídade observada no
tancializada, necessária de ser concebida. Ou seja, não há mais período anterior ou, ao menos, pressiona essa noção para além
uma realidade, esta não é maisfacilmente apreendida, portanto, dos seus limites.
não há uma obra, mas possíveis obras a serem concebidas pelo A disjunção das partes, a multiplicidade de estilos que defi-
receptor. Assim, a elaboração da obra teatral efetuada pelo es- nem uma descontinuidade lingüística, vai propor, por sua vez,
pectador vai estar necessariamente vinculada à sua construção uma atitude criativa ao interlocutor. Porém, não mais como su-
de realidade. geria a arte moderna, como obra aberta a esperar uma conclu-
A arte na contemporaneidade tenta, desse modo, resolver o são, mas obra interrogativa que espera uma resposta. A arte con-
impasse gerado pela impossibilidade de conce~er um todo orgâ- temporânea formula, nesse sentido, uma releitura da moderna,
nico, uma narrativa que abarque a totalidade, propondo não uma radicalizando suas propostas. Não se trata mais de uma obra
síntese aberta à conclusão e, sim, recortes que proponham uma desconstruída, pronta para ser remontada, e sim de uma obra
atitude analítica ao espectador. Não mais a busca de construir explodida, que provoca O receptor a concebê-la. Se a arte moder-
um consenso acerca da leitura do mundo, mas algo que possa na propõe uma elaboração conclusiva, a da contemporaneídade
152 o TEATRO !tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANElDADE 153
propõe leituras plurais, dissensuais. A compreensão formulada -, o espectador desloca-se de uma narrativa para outra, onde
pelo espectador vai estar mais extremadamente vinculada a lei- cada uma suscita a "renarratlvízação" das anteriores, estabele-
turassíngularízadas ~e mundo, já que não há uma visão de mun- cendo uma tensão entre as diversas narrativas. Um pedaço
do consensual proposta na obra. redimensiona, reéontextuallza outro. Cada retorno reflexivo não
A falta de condições para o "novo", já que tudo foi dito e possibilita uma visão do todo, a elaboração de uma síntese, mas
experimentado, lança-nos numa atitude analítica em direção ao uma visão sempre parcial de quem analisa pedaços que não
passado, ao contrário da modernidade que apontava para um estruturam uma totalidade.
futuro utópico. Mas "o recurso à historiografia dá-se como ins- Soma-se à superposição de narrativas o ajuntamento de esti-
trumento de alteração do passado, não como sua reconstrução los diversos, o entrecruzamento de textos e estilos que se suce-
e preservação" (Teixeira Coelho, 1995,94). Sem encontrar con- dem aos golpes e não se ligam necessariamente por relações
dições que permitam vislumbrar novos caminhos, a contem- causais ou evidências fatuaís, mas por livre associação ou rela-
poraneldade está investida em um movimento de análise da his- ção de necessidades, desejos, vontades, etc. Uma seqüência de
tória. Esse diálogo aberto com o passado pode ser percebido pedaços que redírnensiona o sentido de cada um deles isolada-
nas diversas formas de arte, que utilizam elementos de todas as mente. Esses fragmentos narrativos não se juntam tampouco
épocas, mesclando variados estilos. como colagem aleatória e constituem proposição que só se jus-
A multiplicidade de estilos ajuntados se dá assumídarnente, tifica como revisão dos procedimentos estéticos da modernidade.
deixando-os evidenciados, sem preocupação de criar uma uni- Ou seja, a explosão das narrativas e a tensão estabelecida entre
dade entre eles, de torná-los orgânicos, integrados, apresen- os fragmentos narrativos vão radicalizar o desmembramento de
tando-os como diferentes textos, diferentes narrativas uma narrativa em várias cenas, levando ao extremo o procedi-
desencontradas, decompostas. Procura-se, assim, manter a ten- mento proposto pelo teatro épico brechtiano.
são entre os variados pedaços. O que antes era compreendido
por unicidade agora o é por diferenciação, em vez de relacionar [.... ] uma tensão que é nota dominante entre todas as partes
a parte, o fragmento, com o todo, o espectador relaciona partes distintas de que se compõe e que as "carrega" reciprocamen-
entre si, pedaços que não se encaixam e não compõem necessa- .te. Esta forma é, assim, tudo, menos um conjunto de fatos
riamente uma totalidade. simplesmente alinhados em seqüência (Brecht, 1978, p. 29).
Ao espectador contemporâneo é proposto, assim, que se mo-
vimente pelos vários fragmentos de uma não-obra, pedaços que, Essa característica da produção artística contemporânea,
mesmo em suasoma, não constituem um todo. Lançado em uma marcada pela multiplicidade e heterogeneidade, que se apre-
seqüência de recortes, pedaços decompostos - que se diferen- senta como proposição radical de autoria ao espectador, pode
ciam da seqüência das cenas épicas modernas, pertencentes a. ser compreendida como a suposta existência de uma obra au-
uma mesma narrativa e desconstruídas como partes de um todo sente, que será escrita pelo receptor, um evento inexistente que
154 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEID ADE 155
será criado pelo contemplador. Um exemplo explícito e extre- China, comprado em uma papelaria no bairro de Chínatown,
mado dessa proposição criativa pode ser observado no poema em Nova York. Para cada foto, .o autor criou uma legenda, o
China , transcrito abaixo: poema éo ajuntamento dessas legendas. O sentido primeiro das
frases está vinculado a esse livro ausente, a imagens fotográficas
Moramos no terceiro mundo a contar do sol. Número três. Ninguém nos que estão fora do alcance do leitor do poema. Ao leitor cabe
diz o que fazer. preencher o vazio criado pela retirada das fotos. Ele pode , quem
As pessoas que nos ensinaram a contar estavam sendo muito boazi-
nhas
sabe, criar outro livro, de fotos imaginárias, outro sentido possí-
Sempre é hora de ir embora. vel para essas narrativas desencontradas, outra obra. À profu-
Se chover, você ou tem ou não tem um guarda-chuva. são de narrativas, segue-se uma profusão de silêncios que se in-
O vento faz voar o seu chapéu. .
O sol também se levanta. . terpõem entre uma frase e outra, ou o leitor se aventura por
Preferia que as estrelas não nos descrevessem uns aos outros, gostaria esse vácuo que se estabelece ou pode simplesmente se retirar
quen6smesmos o fizéssemos .
sem nenhuma iniciativa autoral, criadora. Opoema, como é ca-
Corra na frente de sua sombra.
Uma irmã que aponta para o céu pelo menos uma vez a cada década é racterística da arte recente, não tem moral nem aponta conclu-
uma boa irmã. sões, apenas põe na bandeja opções para o self-seroiee analítico
A paisagem é motorizada.
oferecido aos leitores, cabendo ao receptor desvendar um possí-
O trem leva você para onde ele for.
Pontes no meio da água . vel banquete oculto.'
Pessoas desgarradas em grandes vias de concreto, indo para o avião.
Não se esqueça de como vão parecer seu sapato e seu chapéu quando
você tiver desaparecido. o DESCENTRAMENTO DO HERÓI
Até as palavras flutuando no ar fazem sombras azuis. Se no teatro épico moderno, além dos atores, o palco também
Se o gosto for bom, nós comemos. fala, e os diversos aspectos da encenação - cenários, figurinos ,
As folhas estão caindo. Chame a atenção para as coisas.
Escolha as coisas certas. . adereços, iluminação, sonoplastia, etc. - participam da narração
Oi, ad'rJinhe o que aconteceu? O q'uê? Aprendi afalar. Fantástico. da história, o teatro contemporâneo, em seu redimen-sionamento
A pessoa cuja cabeça estava incompleta começou a chorar. da arte teatral do início do século XX, radicaliza essa tendência,
Enquanto caía, o que a boneca podia fazer? Nada.
Vá dormir. . fazendo gritar as múltiplas vozes emitidas pelos elementos cêni-
Você fica superbem de shorts . E a bandeira parece estar muito bem cos , que agora conquistam independência total uns dos outros.
também.
Todos se divertiram com as explosões.
Hora de acordar. A ênfase na diferença e no incomensurável, que tantalízarn
Masé melhor nos acostumarmos com os sonhos. a. experiência contemporânea, aparece, na problematiza-
(Perelrnan, apud Jarneson, 1996, p. 55).
ção da história, na teoria, na cultura e na arte, através de
expressões que são verdadeiras personagens conceituais:
O poema, conta-nos Jameson, e aqui estaria sua relevância,
indeterminado, heterogeneidade, hibridismo, deslegí -
foi concebido pelo autor a partir de um livro de fotos sobre a
156 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 157
tímação, desenraízamento, etc. Todas indiciam, pretendem do palco. No teatro contemporâneo , não se abandona, neces-
significar, o proceso de fuga do consensual, a dificuldade de sariamente, a importância da trajetória do personagem, mas , ao
unificar e to tal ízar, valorizando descontinuidades, contrário do teatro moderno, ele pode não ser mais a linha fun-
desterritorialização , descentramento: mul-tiplicidade damental da proposição espetacular, tornando-se um dos aspec-
(Favaretto, 1995 , p. 29). tos da encenação, dentro de diversas outras possibilidades de
provocação estética presentes no jogo de linguagem que os cri-
Os diversos aspectos da cena podem, agora, contar cada qual adores propõem ao espectador. O sentido desse jogo não está
uma narrativa diferente, ou mesmo manifestar-se em diversos mais restrito à vida do protagonista, os elementos cênicos não
estilos, línguas e linguagens. Polífôníco, o palco contemporâneo giram mais em torno do herói, que foi retirado de seu lugar
comunica-se por meio de várias vozes autônomas, propondo ao central e tratado como um dos muitos elementos de linguagem
espectador uma espécie de jogo de armar, um "faça você mes- trazidos à cena.
mo", monte sua peça teatral a partir de suas preferências, privi- Se o personagem é removido do seu lugar central, a identifi-
legie o elemento e a proposição que mais lhe convir na elabora- cação com o herói (e a quebra dessa identificação) perde tam-
ção criativa de sua encenação. bém sua função de proposição primordial feita ao espectador e
Até mesmo o trabalho do ator, levando ao extremo a tendên- deixa de ser categoria fundamental na análise do' teatro con-
cia modernista, se vê partido em sua multiplicidade de elemen- temporâneo. Constitui-se, desse modo , outro aspecto da en-
tos constituintes, cada palavra passa a ter um valor em si, desta- cenação contemporânea, radicalizando uma tendência do tea-
cada e independente do texto , um gesto pode ganhar autono- tro épico moderno, que buscava não evitar a identificação, mas
mia , desprendendo-se do movimento, e assim por diante. O tra- descolar o espectador de sua vivência das peripécias do herói,
balho do ator; e Brechtjá anunciava isso; nãoserestringe mais a impedindo a empatia por abandono .
compor, dar vida a um personagem, mas se expande na explora-
ção das variadas possibilidades lingüísticas que estão a seu al- Produzem-se ainda efeitos de 'iden tificação, passageiros,
cance e podem ser ampliadas em relações estabelecidas com os fugazes, como uma espécie de espuma da representação .
demais elementos de cena. Formam-se identificações menores , residuais: fios, franzi-
Levada ao extremo a proposta épica de independência dos dos , ou traços, de uma experiência antiga que retoma aqui
diversos elementos da encenação, o palco agora não apenas fala, e lá. Além de surgirem outros tipos de identificação em lo-
como também é protagonista do espetáculo. O personagem (he- cais diferentes, mais intensos, que atravessam o teatro. Mas
rói) perde , dessa maneira, sua posição central no evento. Não não se pode mais pensar a arte teatral valendo-se da iden-
há mais história, peripécia, trajetória, mas múltiplas narrativas tificação com. o personagem. como categoria. determinante
a serem contadas, não mais uma voz centralizando as atenções , de análise (Gu énoun, 1997 , p. 106).
mas variadas emissões de significantes vindas de todos os lados
r'.
esquecimento" (Harvey, 1992, p, 315). E isso porque na superdo- dentes. Pode-se chamar imaginação a esta capacidade de
sagern informativa não há espaço e tempo para reflexão , com a articular juntamente o.que não estava. A velocidade é uma
mesma velocidade que entra na rede, a notícia desaparece, qual- propriedade da imaginação (Lyotard, 1989, p. 106).
quer história veiculada é rapidamente relegada ao caráter de
passado distante, sem ao menos ser dígerída, Os indivíduos vêem- O teatro recente, assim, calcado no estímulo à reflexividade ,
se, assim , sedados por uma overdose de informação. Observado- provocaria essa capacidade inventiva, ativando uma melhor
res "conscientizados" mas desmobilizados; em lugar de passivi- performatividade, estimulando a "'imaginação' , que permite ou
dade alienada, apatia bem informada. realizar um novo lance , ou mudar as regras do jogo" (Lyotard ,
Talvez se possa conoeber que o teatro contemporâneo pre- 1989, p. 106).
tenda suscitar no espectador habituado a fragmentos narrativos
descontínuos a formulação de contralances inesperados , pro- A negação · da negação
vocando-o a elaborar leituras próprias, surpreendentes, esti- O teatro épico moderno queria propor à platéia um olhar cien -
mulando-o a fazer jogadas inventivas. O caráter pedagógico do tífico, Interrogatlvo, como o do grande Galileu diante da lâmpa-
tea-tro de espetáculo deixaria, dessa maneira, de ter valor for- da, como afirmava Brecht. E para isso, provocava o espectador a
mador para ter valorperformático. O conceito de performance, lançar questões à vida lá fora, a estranhar o estranhável e a bus-
aqui aplicado , não tem o sentido atribuído ao melhoramento da car soluções para situações apresentadas. A peça teatral A Alma
capacidade competitiva, de gerar lucros, a valor de mercado, Boa de Setsuan pode servir como exemplo desse exercício críti-
mas , sim, à capacidade de desferir golpes, produzir elaborações co proposto ao espectador brechtiano. O texto narra as peripé-
estéticas próprias, inesperadas. A idéia de formar espectado- cias do personagem Chen Te, uma prostituta que se vê em dúv í-
res , que pressupõe um patamar a ser atingido , seria substituí- das acerca da melhor maneira de agir, já que, tendo recebido
da pela idéia de processo , de provocação dlalógíca, Um teatro uma ajuda financeira dos deuses, resolve abandonar a prostitui.
interessado tanto na capacidade performática do espectador, de ção e adquirir uma tabacaria. Ela começa a administrar o novo
reagir aos lances propostos, de desferir golpes surpreen-den- empreendimento seguindo sua índole generosa, sua tentativa de
tes, quanto na performance da própria atividade artística, em ser uma pessoa correta, honesta, uma alma boa , enfim . No en-
sua capacidade provocativa, de formuiar novos lances, novos tanto, Chen Te é constantemente incompreendida pelos demais,
jogos de linguagem . que não perdem a oportunidade de tirar proveito de sua bonda-
de. Vendo sua tabacaria ir à falência , já que seus atos de carida-
Ela (a melhor performatividade) resulta de um novo ar- de são tão bem intencionados quanto P0!lCO lucrativos, ela re·
ranjo dos dados, que constituem propriamente um "lance" . solve disfarçar-se em um primo imaginário, para quem inventa o
Este novo arranjo obtém-se , a maioria das vezes, pondo nome de Chui Ta, que sempre aparece na hora em que se preci-
em conexão séries de dados tidos até então como indepen- sa tomar atitudes duras e nem sempre honestas, atitudes que
164 o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 165
estão em total discordância com o caráter humanitário de Chen necessário mudar o mundo , é preciso reformular o sistema eco-
Te,!J1as necessárias ao sucesso do empreendimento comercial. nômico, político e social.
K questão está formulada: é possível ser uma boa alma nos dias
de hoje? Cabe ao espectador respondê-la. No epílogo , dire- (. ..] se tratando de um rio, "criticar" é regularizar o seu
cionado à platéia, esta' idéia está explicitada: curso ,· se tratando de uma árvore frutífera, enxertá-la; se
tratando de problemas nos transportes, construir novos veí-
E agora, público amigo, não nos interprete mal:
Sabemos que este não foi um excelente final! culos terrestres, marítimos e aéreos; se tratando da socie-
Nós fazíamos idéia de uma lenda cor de ouro dade, fazer a revolução (Brecht, 1989, p. 270) .
E ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro .
Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado,
Tanto problema em aberto e o pano de boca fechado. Assim, o teatro épico moderno apresenta interrogações para
Qualquer sugestão, portanto, acatamos com respeito: que o espectador formule exclamações, treinando-o para o ra-
Recolham-se às suas casas e disto tirem proveito! ciocínio investígatívo, instigando-o a lançar um olhar de curiosid a-
Não poderíamos ter maior mágoa em confessar
O nosso maior fracasso, se alguém não nos ajudar. de , travar uma relação de estranhamento com a realidade so-
Thlvez nada nos ocorra, agora, de puro medo: cial, para que ele elabore suas descobertas conclusivas, deixan-
Isso acontece ! Entretanto, como encerrar este enredo?
do subentendida uma sugestão de saída possível.
Já batemos o bestunto e nada achamos no fundo :
Se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, Se a indicação de saída está inviabilizada, e não se achem atual-
Ou se os Deuses fossem outros ou nenhum - como seria? mente condições para a efetivação de grandes projetos de reno-
Nós é que ficamos mal sem nenhuma fantasia!
Para esse horrível impasse, a solução no momento
vação, não significa dizer que a proposta brechtiana não encon-
ThJvez Iosse vocês mesmos darem trato ao pensamento treressonância na atualidade . O necessário redlmens íonamento
Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente do teatro épico moderno não significa negar Brecht. Ou melhor,
Ajudar uma alma boa a acabar decentemente....
Prezado público, vamos: busque sem esmorecer! . ta·lvez seja preciso negar o teatro épico brechtiano, e negar tam-
Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver! bém a negação que se faz, efetivando a negação da negação, que
(Brecht, 1992, p. 184). certamente não faz o pensamento retornar a seu ponto de parti-
da. Ou seja, a negação do moderno, ou a necessária análise das
No texto, o que se questiona é a impossibilidade de viver dig- propostas estéticas desse período, nas quais o teatro épico se
namente sob a égide do sistema capitalista, em que todos se co- insere, não significa negar sua proposição crítica.
locam contra todos, o que acaba determinando que o homem O redimensionamento do teatro épico moderno se efetiva-se
tome atitudes que contrariam a si próprio, fazendo que abando- em conson ânciacorn o modo de produção da contempo-
ne gestos humanitários , sendo forçado a optar, inevitavelmente, raneidade, pela radicalização de suas proposições estéticas , re-
por uma maneira de agir impiedosa para que alcance o tão alme- flexivas, e não por seu abandono. Assim, a tendência pós-mo-
jado lucro. No que está dito, se pode perceber o não-dito : é derna de ridicularizar qualquer proposição crítica precisa ser
166 o 'tEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE 167
negada com a mesma disposição que é necessário negar (e estra- Talvez possamos considerar que o teatro de Brecht somente
nhar) o tratamento de "normalidade" que é dado a alguns fatos perderá seu vigor contemporâneo, quando o sistema capitalista,
de nosso tempo: o desemprego estrutural permanente, a especu- contra o qual ele engendrou sua proposta estética, esteja extin-
lação financeira, os desastres ecológicos, a miséria nos países to como sistema autoritário e criador de desigualdades.
pobres, etc. Bem como a necessária negação da "normalidade" que A condição irreflexiva da consciência cotidiana agrava-se pela
é atualmente conferida ao comportamento do primo Chui Ta. ausência de um projeto que conduza a sociedade a um desen-
O indivíduo, no capitalismo pós-industrial, incapaz de criti- volvimento positivo. A perda de objetivos e parâmetros leva ao
car (mesmo reconhecendo) a lógica mercantilista que o conduz completo abandono da atitude crítica, que é substituída pelo
e que determina suas atitudes, atribui a outros, quando não a si, jogo Intelectual descompromissado, nos lançando ao encontro
a razão de suas mazelas. Quando algo sai errado em grande es- de um pragmatismo livre de ilusões reformistas, recusante de
cala, quase nunca se permite que o fato seja posto em questão, a qualquer pensamento que não proponha aplicações práticas
responsabilidade recai com freqüência sobre a falta de compe- imediatas. Predomina, assim, um silêncio sorrateiro, que anun-
tência e mesmo sobre a má-fé das pessoas. E isso porque "a cia o fim de qualquer crítica social que contrarie esse prag-
ordem reinante do sistema social lhe foi alçada a dogma de uma matismo desiludido.
legitimidade natural, alheia a qualquer possibilidade de valoração" Contra a desesperança, é preciso reagir, negar o estranho que
(Kurz, 2001, p'o12). Os vilões alternam-se como responsáveis se tornou normal, reacendendo a importância de imaginar e con-
pelos retumbantes fracassos dos acontecimentos nos diferentes cretizar mudanças que nos afastem da mera administração de
setores da vida social. Na seqüência infindável de crises, os res- uma crise permanente, mas que possamos formular maneiras de
ponsáveis vão para o olho da rua, sendo trocados por outros suprimi-la. Quem sabe numa nova forma de movimento so-cial,
que melhor não se saem. que surja da necessária elaboração de uma alternativa coletiva
O estranhamento de uma situação propõe o despertar da per- global e rompa com o domínío sem sujeito do valor econômico
cepção adormecida. Em Brecht, a situação estranháoel é dada abstrato. E que a arte teatral, porque não, reassumindo seu diá-
como histórica, construída, podendo, portanto, ser reconstruída. logo com a sociedade, possa provocar o espectador, como histo-
riador da sociedade, a formular saídas, mesmo que seja somente
Aqui, o familiar ou o habitual é novamente identificado a possibilidade de formara idéia da própria possibilidade de
como o "natural", e seu estranhamento desvela aquela apa- inovação, ainda que pontual e estratégica. O teatro, assim, aju-
rência, que sugere o imutável e o eterno, e mostra que o daria a criar perspectivas no retorno da vontade de criação de
objeto é "histórico". A isso deve-se aorescentar, como um novo sistema possível, vontade de superar a saturação atu-
corolário político, que é feito ou construído por seres hu- al. Afinal de contas, os anseios utópicos não são facilmente re-
manos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles primidos e podem ser reacesos com os mais imprevisíveis pre-
ou completamente destruído (Jameson, 1999, p. 65). textos.
168 o TEATRO tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE . o TEATRO ÉPICO MODERNO E A CO NTEMPORA NEIDADE 169
Se a época não permite que se apontem caminhos consensuais , do teatro épico moderno, não propondo COm ele uma ruptura
e nãohá nenhuma síntese que consiga dar conta da estruturação total, mas sua revisão incontornável.
deum projeto revolucionário que transforme efetivamente a Mais do que formular questões definidoras ou oferecer res-
realidade social, tendo em vista que a própria realidade não se postas, ao teatro recente cabe pôr em cena indefinições e
apresenta mais estática, facilmente delimitada, a arte contem- questionamentos do momento histórico, oferecendo o palco às
porânea, em algumas de suas tendências, quer arremessar esse ambigüidades, os diversos enfoques.
indivíduo, afastado dos movimentos sociais, ao encontro de si
mesmo, propondo que elabore uma análise própria do momen- É um momento, uma passagem da Modernidade a qual-
to histórico, formule suas questões .e defina, segundo seus cri- quer coisa que, para apreendermos , é preciso saber buscar
térios, a melhor atitude li tomar. O teatro, seguindo essa tendência, no substrato sensível dos dados sociais: Buscar o sensível,
mostra-se desajeitado, calcado numa desconcatenação provoca- mas' que seja possível de se interpretar racionalmente. Uma
tiva, em que os fragmentos não propõem . uma totalidade , mas se "razão sensível", isto é, capaz de elaborar sobre os dados
mantêm como partes fissuradas, num ajuntamento que não evo- da sensibilidade intuitiva (Maffesoli, 1994, p. 22) .
ca unidade possível, mas destaca os pedaços, numa mistura as-
sumida e heterogênea. Um teatro que propõe ao espectador que O teatro contemporâneo talvez precise colocar-se, positiva-
rearrume os pedaços, fazendo suas escolhas, e monte o jogo de mente, em diálogo com esse momento, participar desse debate,
peças em função de suas posições críticas, estimulando-o , trabalhar sobre uma revolução sem projeto (que seja!), mas que
assim, a produzir conhecimento. Pois, "o conhecimento é des- nem por isso é menos necessária. A busca de caminhos para a
coberta de relações entre signos" (Favaretto, 1995,' p. 33). concretização do nosso anseio de felicidade persiste, apesar do
A invenção de um ponto de vista unificador não pode ser imposta, ~escrédito nos projetos conhecidos , que nos levaram a situa-
mas precisa surgir justamente da própria produção de oonhecí- ções e condíções bastante diversas da orientação inicial.
mentos, da atitude de análise em direção ao passado, que pos- Nesse momento em que a capacidade da arte teatral de tradu-
sibilitará a redeflníção de metas e estratégias para o presente e zir a experiência contemporânea está em questão, podemos cons-
o futuro. tatar que as conquistas e inovações estéticas do teatro épico
O redimensionamento do teatro épico, nesse contexto , defi- moderno foram inegáveis, como o é também a necessidade de
ne-se como prática teatral que provoca o espectador a uma ati- revê-las . Assim, ao contrário do pensamento sintético da arte
tude reflexiva acerca da relação entre ético e estético na atuali- moderna, a produção contemporânea propõe que cada espec-
dade , marcada pela espetacularidade da ~ida social. Um teatro tador elabore seu pensamento crítico e formule coruralances,
que desafia a platéia a um movimento analítico dos fatos que se resoluções possíveis para questões do presente histórico , traçan-
apresentam aos montes e de maneira totalmente desordenada', do caminhos, estratégias pessoais e sociais possíveis para a constru-
que , calcado na retlexividade, mantenha a vontade pedagógica ção de uma vida coletiva mais digna e justa. E desembarace os
170 o TEATRO !tPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE
6
A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE
o espectador espeoialista
As .ínvestígações acerca da formação de espectadores para o
teatro estão em pleno curso. Embora algumas respostas tenham
sido encontradas, outras questões surgiram, de modo que o de-
bate continua. Nenhuma das práticas citadas, ou mesmo outras
que não tenham sido referidas neste trabalho, pode ser julgada
detentora do verdadeiro e definitivo método de formação, pois
essa é mais uma experiência e uma conquista pessoal do que um
conteúdo adquirido. Não se pode ainda esperar que a atuação
dos projetos de formação vá resolver a dita crise do teatro, seria
pretensão desmedida para questão tão complexa. Por outro lado,
é reconhecível a relevância e a pertinência dessas práticas na
tentativa de pensar as relações entre teatro e sociedade. A trans-
formação do teatro passa, necessariamente, por sua democrati-
zação, e esta pelo convite aos espectadores a participar efetiva-
mente do evento artístico.
Quando idealizou seu teatro épico - calcado na desconstrução
do palco, no desnudamento da cena, assumindo a teatralidade
do evento - Brecht pretendia, justamente, que o espectador ga-
nhasse intimidade com a linguagem teatral. Ao se apropriar dos
171
172 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE A DESCOBERTA DO PRAZER DA A NÁ L I SE 173
recursos e mecanismos utilizados no teatro, o espectador se tor- em minha vida que aconteceu isto e me levou a decidir isto', 'eu
naria especialista, ampliando sua capacidade de compreender a descobri que', etc." (Ibidem, p. 15). A pesquisa ressalta ainda o
cena, ao perceber ~s inúmeras possibilidades de concepção e fato de que, dentre as crianças entrevistadas, as habituadas a
'interpretação da obra, sentindo-se então apto a elaborar signifi- freqüentar salas dé teatro e cinema revelavam maior facilidade
cados para os signos propostos, criar um ou mais sentidos para em utilizar esse tipo de discurso narrativo , apontando para a
a encenação. conclusão de que aprender a assistir e interpretar uma história
A conquista da lin~uagem teatral pelo espectador implica o é aprender a contar e construir a própria história.
desenvolvimento de um senso estético e um olhar crítico - olhar O mergulho na corrente viva da linguagem abre a consciência
armado, exigente , atento à qualidade do espetáculo, que reflete para uma ativa atuação e transformação da vida pessoal e social.
sobre os fatos apresentados e não se contenta em ser apenas O A tomada de consciência oonstítuí.rassírn, uma leitura de mun-
receptáculo de um discurso rnonolõgíco, que impõe um silêncio do, ou melhor, aptidão para empreender uma leitura própria do
passivo. A aquisição da linguagem teatral capacita o espectador mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa
a interpretar a obra, desempenhando uma efetiva participação leitura, essa tomada de posição diante da realidade. A conquista
no fato artístico e assumindo a autoria da narrativa apresentada, da linguagem viabiliza o diálogo com a vida e possibilita a (re)
mantendo viva sua possibilidade de-construção e reconstrução formulação de projetos e a concretização de mudanças .
da história. A arte lança o oonternplador ao encontro da vida, sempre de
Unia pesquisa realizada, na década de 1990, com crianças maneira surpreendente, inesperada. A compreensão da obra
extremamente desfavorecidas do subúrbio da cidade deLlão , na passa pelo necessário diálogo com a experiência cotidiana; essa
França, mostrou que uma das principais características dessas elaboração reflexiva não se processa, contudo , sem esforço. Des-
crianças, que' se sentiam fracassadas pessoal ,e socialmente, era cobrir o prazer dessa análise é aprender a ser espectador, a tor-
a absoluta incapacidade de pensar uma história, a sua história nar-se autor de ' histórias, fazedor de cultura. Um prazer que ,
(Meíríeu, 1993). A investigação ressalta ainda que nas conversas como experiência pessoal, única e íntransfertvel, pode ser apren-
travadas com essas crianças, que tinham entre seis e doze anos , dido, mas não ensinado. Assim, formar espectadores consiste
em que lhes foi pedido para contar a própria vida, a própria em provocar a descoberta do prazer do ato artístico mediante o
história, pôde-se perceber a grande dificuldade que demonstra- prazer da análise . A especlallzação do espectador constitui-se
vam em se referir ao passado, mesmo recente. Foi possível per- não tanto em ensinar como pensar, dialogar, ler, gostar, mas sim
ceber que elas utilizavam constantemente o "você" e o "a gen- em propor experiências que estimulem o espectador a construir
te", e quase nunca o pronome "eu", e que se mostravam incapa- os percursos próprios, O próprio saber, o próprio prazer, dei-
zes, mesmo as mais velhas, de utilizar "estas pequenas expres- xando que cada qual vá descobrindo laços e afinidades, tornan-
sões tão fundamentais para dar sentido à vida, que são: 'fOi a do-se íntimo a seu modo, relacionando-se e gostando de teatro
partir deste momento que eu compreendi', 'teve um momento do seu jeito.
174 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE
A DESCOBERTA . DO PRAZER DA ANÁLISE 175
·0 espectador especialista deseja o ato estético. Como os visi- do passado. O palco ressalta, dessa maneira, a condição históri-
tantes do Museu D'Orsay, lançados pela janela ao encontro do ca dos acontecimentos e a capacidade do homem de refazê-los
mundo lá fora, esse espectador descobre o gozo de emp~eender socialmente. O teatro reafirma, assim, a idéia brechtiana de que
uma atitude própriaem face da realidade, o prazer de fruir a não há oposição entre ação e contemplação,' propondo ao es-
vida, analisá-la e concebê-la de outra maneira, à sua m~neira. pectador que efetive o ato criativo, artístico, produtivo .
O redimensionamento do teatro épico mantém, portanto, o
Procedimentos espetaculares e extra-espetaculares caráter pedagógico do teatro de espetáculo, calcado na atitude
As transformações no modo de vida ocorridas nas últimas observadora, .crít íca, na reflexividade proposta à platéia. O tea-
décadas do século XX, como vimos, ocasionaram modificações tro recente, radicalizando a proposição autoral característica
na percepção e na sensibilidade dos indivíduos. Com isso, al- da arte moderna, propõe-se a tratar o espectador como um igual,
gumas das propostas e recursos cênicos que fundamentavam a o outro necessário ao diálogo, que é reconhecido pelo autor como
. . I
teoria do teatro épico moderno não causam a mesma reação de um outro autor, estabelecendo um diálogo franco, onde ambos
outrora, a mesma atitude no espectador - '0 que demanda outras estejam igualmente implicados.
premissas para se pensar como a arte teatral pode dar sentido à Para se pensar uma pedagogia do espectador torna-se rele-
experiência contemporânea, e solicita outros procedimentos vante, entretanto, considerar não apenas a proposta estética que
estético-pedagógicos para dinamizar a recepção do especta- constitui O espetáculo, mas também os procedimentos extra-es-
dor. -Para a percepção do indivíduo contemporâneo, acostuma- petaculares que podem fornecer instrumentos preciosos para
do às fibras óticas e telas de cristal líquido, o teatro talvez seja uma recepção mais apurada. Na vertícalízação da pesquisa nes-
ses dois sentidos da especialização do olhar, na tensão entre es-
um evento insuportavelmente antiilusionista, incapaz de provo-
sas duas experiências estético-pedagógicas - a espetacular e a
car adesão , capturá-lo, deixando-o incomodamente distanciado
da ação. extra-espetacular - podem constituir-se efetivos projetos de es-
As reflexões e experimentos de Brecht, no entanto , estão lon- pecialização de espectadores de teatro.
ge de serem irrelevantes e seus ensaios são incontornáveis se Inspirados nas teorias de Brecht, os exercícios de mediação
quisermos investigar as possíveis relações do teatro com a soci- pretendem descortinar o espetáculo, apontara dimensão coti-
diana do que está sendo apresentado, e afirmar o espectador
edade nos dias que correm. A análise da atualidade do teatro
como participante ativo do evento. O teatro, nas atlvidades pe-
épico moderno não pode dar-se, contudo, sem a reaftrrnação da
dagógicas , é apresentado como jogo que aguarda a intervenção
viga mestra desse teatro: o efeito distanciamento . O teatro épico
está fundamentado na proposta feita ao espectador de estranhar
I Sobre esta questão, o encenador alemão afirmava: "os filósofos burgueses
o estranhável: de não tomar como normal os absurdos cotidi- insistem na distinção fundamental entre ação e contemplação. Mas o pen-
anos, não aceitar os valores como provenientes de uma valida- sador verdadeiro (o dialético) não faz esta dist inção {.. . J" (13recht, apud
ção consensual, nem conformar-se com a repetição irrefletida Jameson, 1999, p. 1(1)
176 A DESCOBERTA DO PRAZER DA ANÁLISE A DESCOBERTA DO .PRAZER DA AN ÁLISE 177
do espectador; a cena solicita novas soluções, outras resoluções, to da existência de uma arte dá observação , arte do espectador
tornando maleável o mundo que se constrói no jogo. Os proce- - que pode (e precisa) ser trabalhada e desenvolvida ..
dírnentos de mediação visam ressaltar o caráter vital da experi- Importa ainda destacar que a relevância de uma formação
. ência artística, associado à dúvida, à incerteza, à questões sem a
continuada desde infância não precisa estar vinculada à idéia
resposta ou com mult~plicidade de respostas. de formação dos espectadores dofuturo , calcada no objetivo de
A educação artísticf\., no entanto, não pode existir sem a fre- depositar nas mãos de crianças e jovens a responsabilidade ou
quentação da arte. Como pensar em uma pedagogia do especta- esperança de urna revolução teatral vindoura . A tarefa dos for-
dor sem o necessário incentivo à produção teatral e a projetos madores nos anos 1970, período em que essa idéia vigora va ,
que facilitem e estimulem o acesso às salas? De que valem espe- passou a ser a de transformar a criança para a sociedade , ou
táculos de qualidade ~e o público não tem acesso a eles? Ou de melhor, a de transformar a criança para que ela transformasse a
que adianta espectadores motivados sem uma ~rodução teatral sociedade. Ela se via assim carregada de tod~ uma expectativa
provida de recursos que viabilizem sua execuçao? Para ~ con- de pais , educadores e artistas como sendo potencialmente ap ta
uísta da linguagem teatral é importante que se pense, conjunta- a realizar seus sonhos. Atualmente, não se trata mais de prepa-
q ente sobre condições de acesso físico do espectador às salas rar o público de amanhã mas de formar o espectador de hoje,
m " .
de espetáculo, porque é na própria experiência artlstlCa que o sujeito que reflete sobre as questões que lhe dizem absoluto res-
espectador vai descobrir o prazer do ato que lhe cabe. peito. .
A atitude do espectador no evento teatral, seu interesse em se Na sociedade espetacularizada, em que o show da realidade ,
lançar ao embate estético, efetiva-se, assim, primordialmente, a por. vezes, substitui a própria realidade , o olhar aguçado aliado
partir do desafio estabelecido pelas proposições artísti~as com ao senso crítico apurado procura estabelecer novas relações com
que se depara, e que podem ser dinamizadas por procedl~entos a vida social e com diferentes manifestações espetaculares que
pedagógicos de mediação, que aprofundem seu conheCImento buscam retratá-la: O olhar crítico busca urna interpretação apu-
da linguagem teatral, intensifiquem seu diálogo co~ a obra e rada dos signos utilizados nos espetáculos diários. A aquisição
agudizem formulações estéticas. A reunião desses dOIS aspectos de instrumentos lingüísticos, arma o espectador para um deba-
da formação torna-se relevante na formulação de projetos de te que se trava, justamente, nos terrenos da linguagem. Porque ,
especialização de espectadores. . . mesmo em uma época em que satélites e computadores dão o
Faz-se necessário ressaltar'que esses proJetos, motivados pela tom, a palavra ainda constitui o mais valioso instru men to revo-
crise financeira ocasionada pelo esvaziamento das salas, não re- lucionário. Com a linguagem afiada, o espectador do cotidiano
sumam suas práticas e objetivos à mera formação de freqüen- não se resigna em ser mero receptor "de uma leitura do mundo
tadores de teatro. Pois não é suficiente criar o hábito de ir ao feita por terc~iros, ou então por uma máquina anônima especia-
teatro' deseja-se especialmente fomentar a vontade crítica, a lizada em selecionar, entre a poeira infinita dos eventos , aqueles
exígêncta dialógica, que se traduz no necessário reconhecimen- que podem cair na malha da 'notícia' " (Calvino, 1996, p. 4).
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