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Temporalidade kairológica do Dasein

e Plantão Psicológico

Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista

RESUMO
O plantão psicológico é uma modalidade de prática psicológica. que
depende da prontidão do psicólogo para o momento propício do cuidado,
que é quando aquele que busca atenção psicológica o faz. Nesse sentido,
rompe com o modelo tradicional do atendimento psicológico em
consultório. Esta comunicação discute uma questão central para a
compreensão do sentido do plantão psicológico numa perspectiva
fenomenológica existencial, tal como tem sido realizado no Laboratório de
Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psicologia (LEFE), a
saber, a temporalidade do Dasein. O plantão psicológico tem
disponibilizado para a comunidade atenção psicológica no momento em
que o cliente – pessoa ou instituição – o busca. O serviço é oferecido por
pós-graduandos e graduandos e conta com uma equipe de supervisores de
prontidão. É uma postura de aproximação do outro a partir de seu mundo,
reconhecendo a singularidade de quem procura o psicólogo. Isso rompe
com a lógica tradicional, que busca modelos psicológicos gerais
explicativos sobre o ser humano e as possibilidades de intervenção na vida
comunitária. Tradicionalmente, a psicologia se assenta na cronologia para
interpretar os processos psicológicos como desenvolvimentais, assim como
para planejar as intervenções. Mas a temporalidade existencial é “tempo
para”, momento propício para (kairos). O modo autêntico de assumir a
existência é chamado de decisão antecipadora (Augenblick), que rompe
com a ilusão de eternidade e continuidade do tempo cronológico (kronos),
revelando que cada momento da existência é único. Fiel a essa
compreensão, o plantão psicológico rompe com o modelo cronológico no
qual o psicólogo realiza o diagnóstico, o planejamento e a intervenção.
Estes momentos são contemporâneos e não se diferenciam, coadunando-se
sutil e delicadamente de seu ‘objeto’: a existência que sofre. Feita esta
apresentação, apresento um breve relato de um atendimento em plantão
psicológico realizado na clínica-escola da Universidade de São Paulo a fim
de explicitar suas especificidades.

O Plantão Psicológico é uma modalidade de prática psicológica que


oferece atenção a quem procura o serviço no momento da procura. Surge
fundamentado na Abordagem Centrada na Pessoa, mas modifica-se ao
longo dos anos, de modo que hoje encontra na fenomenologia existencial
sua fundamentação mais pertinente. No Laboratório de Estudos em
Fenomenologia Existencial e Prática Psicológica (LEFE), do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) essa mudança evidencia o
entendimento de que o plantão psicológico indica uma atitude do
plantonista nos contextos onde se dispõe a lidar com o sofrimento
“psicológico” daqueles que o procuram. Estes, que procuram o atendimento
na clínica psicológica, são caracterizados como “sofrentes”. [ CITATION

Mat06 \l 1046 ] Sofrer (ou padecer) liga-se ao verbo grego paskho, que
significa “ser afetado”, “sofrer alguma ação externa” [ CITATION Mar02 \l 1046 ] ,
remetendo à dimensão incontrolável da vida, ao seu lado passivo, que,
como facticidade, é momento estrutural do existir. [ CITATION Hei12 \l 1046 ]

Quem procura atendimento psicológico está tendo que lidar com uma
situação em sua vida que interrompe a familiaridade cotidiana e aponta
para a intranquila condição de poder-ser e ter-que-ser.
Do ponto de vista dos procedimentos, o plantão psicológico se
configura pela disponibilização de atendimento por um ou mais psicólogos
num horário previamente delimitado a quem o procurar. Pode ocorrer em
clínicas, clínicas-escola e em instituições. No LEFE ele ocorre às terças-
feiras das 17:00 às 19:30. Quem procura o serviço nesse horário é atendido
pela equipe de plantonistas composta alunos de graduação do primeiro ao
quinto ano, psicólogos formados, especializandos e pós-graduandos. Todos
contam com uma equipe de supervisores disponíveis ao longo do plantão
para realizar supervisão após ou durante o atendimento.
O plantão psicológico seguia o modelo das walk in clinics
americanas. No Brasil, esse modelo é transformado em “porta de entrada”
para os serviços psicológicos oferecidos por clínicas, substituindo a triagem
por já propiciar ao “sofrente” uma explicitação do sentido da procura à luz
do momento de vida no qual a procura acontece, resgatando sua capacidade
de lidar com seu existir. Para as clínicas, é um serviço interessante, pois
não forma filas de espera. Diferentemente do modelo de consultório, o
plantão foca no encontro entre plantonista e “sofrente”, de modo que o
espaço onde ocorre (o setting) é secundário. Por isso, é possível atender um
volume maior de pessoa. Além disso, o plantão pode ir aonde estão as
pessoas que precisam procurar atenção psicológica, como hospitais,
escolas, centros de convivência, etc. Diferentemente das clínicas, onde
quem sofre encaminha-se ou é levado ao local do atendimento, nesses
outros espaços a procura pode ser por um olhar, pelo estar próximo, por
uma conversa superficial que brota do encontro com o psicólogo. Para que
ocorra, é necessário que o psicólogo- plantonista esteja desperto para
reconhecer a procura e inclinar-se na direção do outro. Inclinar-se é a
etimologia de clínica – kliné – caracterizando como clínica a solicitude
libertadora (Fürsorge) do psicólogo. [ CITATION Hei12 \l 1046 ] Ser-clínico,
portanto, neste contexto, é estar de prontidão.
O tema desta comunicação é a prontidão como modo ôntico de
temporalização do plantonista. Tal prontidão funda a possibilidade da
procura por atenção psicológica no momento propício. Diferencio o
momento propício (kairós) de procura do planejamento, agendamento e
previsibilidade que caracterizam o modelo tradicional dos serviços
psicológicos, baseado no tempo cronológico. A temporalidade da
existência humana é kairológica. [ CITATION Hei10 \l 1046 ] A atitude do
psicólogo que se propõe a cuidar da existência que sofre deve considerar
essa especificidade.

A temporalidade kairológica da existência


Kairós e Cronos são duas palavras gregas para se referir a tempo.
Cronos é mais conhecida, por ser a etimologia de “cronologia”, referindo
ao tempo linear, mensurável. É o tempo das ciências naturais, homogêneo,
que calcula intervalos. Num artigo de 1916, Heidegger diferencia as
Ciências Históricas das Ciências Naturais pelo conceito de tempo que as
fundamenta. Tomando a Física Mecânica como paradigma científico, o
filósofo mostra que “tempo” é uma quantidade que possibilita a
mensuração dos deslocamentos dos corpos no espaço, fluindo
uniformemente e representado numa linha com uma direção, na qual cada
ponto se diferencia dos demais através de sua posição em relação àquele
escolhido como inicial. [ CITATION Mar97 \l 1046 ] Tempo é “delta T”, intervalo
entre um ponto e outro. Já nas Ciências Históricas, o tempo se distingue
qualitativamente, sendo caracterizado como condensação de uma situação
de vida histórica, isto é, abarcando o contexto vital e histórico em que
acontece. Expandindo esta compreensão de tempo para todas as ciências
humanas, tempo é acontecimento. A História, como acontecimento
coletivo, e a biografia, como individual, são marcadas pelos momentos que
as tornam singulares e específicas. As ciências humanas lidam com tempo
como kairós, termo grego que significa instante, momento decisivo,
momento crítico. Chauí (2002) o traduz por momento ou tempo oportuno,
certo, favorável; circunstância. “É o tempo como algo rápido e efêmero que
deve ser agarrado no momento certo, no instante exato, porque, do
contrário, a ação não poderá ter sucesso e fracassará.” (p.503)
Os médicos na Grécia antiga eram técnicos (tekhné) da arte médica
(iatriké tekhnê) da pro-dução da saúde. Acompanhavam o paciente para
descobrir especificamente o metron (a quantidade de fármaco a ser
administrada) e o kairós, o momento propício para sua ação. Arte médica e
culinária se aproximam na Grécia antiga “no que diz respeito à sua
capacidade de temperar, de calcular, enfim, de julgar acerca do que é
oportuno a cada natureza individual e a cada estado particular.” [ CITATION

Mir09 \p 57 \l 1046 ] Para Hipócrates, trata-se mesmo de uma arte médica, pois
os seres humanos são variados, cabendo a cada um, um tratamento
específico a ser administrado no momento favorável. O médico grego não
trabalha, portanto, com certezas. Porém, se ele perde o kairós, o tratamento
falha. [ CITATION Mir09 \l 1046 ]

Cronos e Kairós na Psicologia


A diferença entre tempo cronológico e kairológico atravessa o
pensamento de Heidegger. Em 1920, o filósofo se refere à experiência
primitivo-cristã do apóstolo Paulo para mostrar diferenças entre ambos,
indicando o kairós como a temporalidade que explicita a condição humana
de indeterminação em relação às próprias possibilidades. [ CITATION Hei10 \l

1046 ] Segundo o comentador Pögeller [ CITATION Pög96 \p 24 \n \t \l 1046 ] , o


“kairós situa [o momento] no fio da navalha na decisão.” Existir é
antecipar-se à possibilidade futura de não mais existir, podendo apropriar-
se ou perder-se de si. A compreensão autêntica da própria existência (ser-
aí) é, portanto, a apropriação antecipativa da condição de finito e mortal,
que perfaz todas as possibilidades cotidianas. Finita, a existência descobre-
se o que ela realmente é: uma possibilidade. Em Ser e tempo [ CITATION
Hei12 \l 1046 ] a temporalidade humana é explicitada como kairós, momento
de decisão, logo após a reflexão sobre a finitude do Dasein e a
possibilidade de antecipação da morte como apropriação da condição
existencial. Cada situação é um momento único e irrepetível, pois a
existência é finita.
Acontecimentos irrompem inesperadamente, abalando o solo de
familiaridade e segurança sobre o qual a existência erige a vida cotidiana.
Por isso, a questão da temporalidade é fundamental na prática psicológica
fenomenológica existencial, que encontra nesse pensamento filosófico uma
compreensão da existência humana como possibilidade finita de ser-no-
mundo-com-outros.
A condição humana temporal kairológica é encoberta para toda
Psicologia que substancializa a existência. Interpretada como um fato no
interior do tempo cronológico, a existência é tematizada por essa ciência e
por suas intervenções derivadas à luz de fases de desenvolvimento ou como
resultado de determinações causais antecedentes. No contexto cronológico,
a pergunta que norteia o psicólogo quando da chegada de alguém que o
procura é “por que?”, apontando para os fatos antecedentes que causaram a
procura. Presa a essa compreensão cronológica-causal, a Psicologia
formula modelos psicológicos gerais explicativos sobre o ser humano e
prepara intervenções deduzidas a partir de suas premissas. Daí também que
grande parte das abordagens psicológicas se formula como uma teoria do
desenvolvimento humano.
Mas se o psicólogo se propõe a corresponder ao seu ‘objeto’
temático – a existência – deve compreendê-lo tal como é. A fenomenologia
de Heidegger supera a substantivação da existência humana que
fundamenta a Psicologia, suspendendo as noções reificantes de eu, sujeito
ou psiquismo, encontrando a existência na condição de ter-que-ser. Trata-se
de uma decisão radical do psicólogo, que abdica de substancializações do
existir, manifestas nas teorias desenvolvimentistas, e assume a ek-sistência
como ponto de partida e de chegada de toda ação clínica. Ao mesmo
tempo, é imposição inexorável do objeto temático da Psicologia – a
existência – que resiste a toda e qualquer interpretação metafísica
(cronológica). A condição humana (ek-sistência) está indicada na parábola
do Cuidado, de Higino, citado em Ser e tempo. Essa parábola inaugura um
novo espaço para a Psicologia, no qual o homem não é ‘sujeito’ nem
‘psico-lógico’, pois é tanatológico, temporal, entregue à tarefa de ser.
[ CITATION Ern90 \l 1046 ]

A parábola de Higino está envolvida por pontos obscuros. O filósofo


Ernildo Stein [ CITATION Ern90 \n \t \l 1046 ] explicita uma pergunta subjacente
à parábola para buscar um entendimento: por que Cuidado atravessa o rio?
A fábula inicia com Cuidado o atravessando. Não teria barro na margem
onde estava? O sentido da travessia é importante, embora permaneça
velado na fábula. Recorrendo a um intérprete da parábola (Blumenberg),
explica que “o Cuidado atravessa o rio para nele poder espelhar-se.”
[ CITATION Ern90 \p 98 \l 1046 ] Atravessando, tem sua imagem espelhada na
água e projetada no barro do fundo, o que lhe serve de ‘molde’ para a
criatura. A criatura de barro, agora animada, é feita à imagem e semelhança
de Cuidado, por isso Saturno (Tempo), convocado a arbitrar sobre a posse
da criatura feita de húmus, confere ao Cuidado sua propriedade enquanto
vive. Assim como Cuidado se vê projetado no rio, a existência “sempre se
entende a si mesma.” [ CITATION Hei12 \p 61 \l 1046 ] Sendo, foge de seu ser,
pois se reconhece como finito, como aquele que só se totaliza na
antecipação do seu fim (ser-para-a-morte). Encobrindo sua condição para si
mesmo, entranha-se na lida cotidiana, encontrando familiaridade
tranquilizadora. É essa familiaridade que subitamente, por motivos claros,
obscuros ou mesmo sem motivos, pode perder-se, propiciando o despertar
para a própria condição de ser-possível. Enquanto possibilidade, não é o
homem quem decide pelo ser-para-a-morte, mas a temporalidade (o
Tempo).
Que o ser da existência é Cuidado implica reconhecer a
temporalidade kairológica e pensar na especificidade da prática psicológica
que a ela corresponde. Como a existência não é algo objetivo, toda
intervenção programada para gerar resultados previamente calculados é
uma traição à sua condição e uma tentativa de antemão frustrada de
produção de familiaridade.

Temporalidade kairológica e prática psicológica


O sofrimento “psicológico” à luz da temporalidade kairológica do
Dasein é um modo possível de ser responsivo à indeterminação radical da
existência. Aponta para a interrupção na continuidade da existência
biográfica, seja por um acontecimento que irrompe e dissolve a
familiaridade do ser-no-mundo, seja pela des-singularização promovida
pelos mundos habitados. É a irrupção da indeterminação ontológica
possibilitadora de apropriação da condição de ter-que-ser. Cautella Jr.
[ CITATION Cau12 \p 208 \n \t \l 1046 ] a define como “todo acontecimento súbito
que retira o homem da comodidade das convicções e da entrega ou dos
acordos habituais efetuados em seu cotidiano no mundo”, rompendo o
fluxo aparentemente contínuo da cotidianidade. Por isso o momento de
procura pelo psicólogo pode ser interpretado como de quebra na
familiaridade impessoal assegurada pela ordem cronológica dos
acontecimentos cotidianos. Isto é, imersa no cotidiano, a existência
“esquece” que é singular, própria, finita e insubstituível.
A primeira consequência desta mudança de atitude é a diferenciação
entre queixa e demanda. A queixa seria o por que veio. A demanda aponta
para o sentido, sendo atravessada pela indeterminação do Dasein. A
demanda que motiva a procura pelo psicólogo vem encoberta pela queixa,
devendo ser desvelada junto àquele que sofre. A demanda precisa ser pro-
duzida, isto é, precisa de uma situação que possibilite seu desvelamento,
eliminando os entraves para a apropriação de si. Essa situação é a escuta
clínica oferecida pelo psicólogo, que se inclina em direção ao outro à luz de
seu ser histórico-temporal, convidando-lhe a assumir responsabilidade por
seu existir.
A ação clínica não é a produção de efeitos previamente
determinados, mas a abertura de uma situação de indeterminação em que
novas possibilidades podem vir-a-ser, serem pro-duzidas. O psicólogo
testemunha o acontecer histórico-biográfico numa atitude de solicitude
libertadora, devolvendo o cuidado ao seu responsável. É um possibilitador
de situações de apropriação, que permanece atento e disponível para
acolher o que vier, como vier, no momento que vier, se vier. O plantão
psicológico – e, mais especificamente, o plantonista psicólogo –é um
“espaço aberto, condição de possibilidade para a emergência de uma
transformação não produzida, mas emergente em forma de reflexão, aqui
compreendida como quebra do estabelecido e condição necessária para
novo olhar poder emergir.” [ CITATION Bar10 \p 50 \l 1046 ] Precisa, portanto,
estar atento ao momento propício da ação (kairós). Esse momento é a
procura.
Estando à disposição, o plantão recebe o sofrente e aquilo que ele
trouxer. Planejar-se é impossível; assim como os acontecimentos irrompem
na vida e arrancam da familiaridade, o sentido da procura aparece para o
plantonista no momento do plantão. E, como acontecimento na vida do
plantonista, este encontro pode romper com sua familiaridade e derrubar
sua segurança.
As teorias psicológicas oferecem segurança ao psicólogo, pois ele
pode referir o acontecimento atual aos esquemas já conhecidos e planejar
intervenções derivadas. O setting psicológico tradicional faz o mesmo, pois
situa o psicólogo e quem o procura num modo de relação pré-estabelecida,
que, por mais que se busque des-hierarquizar, permanece atrelado a uma
hierarquia de saber e poder: quem procura não sabe o que passa consigo e o
procurado dispõe de conhecimentos que o orientam. O plantonista não. Ele
prepara uma situação (sua presença) de disponibilidade para o que
acontecer, como acontecer. A indeterminação constitutiva dessa prática
psicológica revela a indeterminação constitutiva do existir.
Por isso, o plantão psicológico é uma modalidade de prática
psicológica que corresponde à temporalidade kairológica existencial. Ele
rompe com os modelos tradicionais de atenção psicológica por constituir-se
como uma situação. O plantonista coloca-se a disposição do “sofrente”.
Não precisa haver um setting físico, como um consultório, pois o encontro
é o setting e a situação.

Uma sessão de Plantão Psicológico


A fim de ilustrar esta modalidade, recorro a uma sessão de plantão
psicológico da qual participei na clínica-escola do IP-USP. Como já
indicado, o plantão psicológico fica aberto a quem o procurar às terças-
feiras. E numa terça-feira Édson1 o procura. Neste contexto, a sessão ocorre
num consultório da clínica-escola, mas se fosse em outra instituição,
poderia acontecer em qualquer espaço em que ele e eu sentíssemos que há
privacidade para conversarmos.
Ele senta na cadeira à minha frente. Está com os olhos vermelhos.
Será de cansaço/ De bebida? Pergunto o que motiva sua procura pelo
plantão psicológico, ao que ele responde, desviando o olhar, aparentando
timidez, que veio para fazer uma pergunta aos psicólogos. Aguardo para
ouvir que pergunta seria essa, mas já antecipo que não tenha surgido do
nada, mas, sim de sua vida fáctica. E ele me pergunta; “é normal alguém

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Nome fictício. Os dados estão modificados a fim de preservar a identidade do “sofrente”.
fazer alguma coisa enquanto está dormindo?” No momento penso em
sonambulismo, mas antes de dar uma resposta pronta, que encerraria a
possibilidade de desvelar-se o sentido de sua procura, pergunto a que ele se
refere e iniciamos um diálogo no qual o acompanho no clareamento da
experiência que originou esta pergunta e de seu contexto de vida no qual
esta experiência irrompe como interrupção da tessitura cotidiana.
Édson é porteiro e frequentemente trabalha no turno da noite. Certa
vez, tendo trabalhado 3 turnos ininterruptos, já que o outro porteiro faltou e
não encontraram um substituto, chega em casa, cansado, onde sua
namorada o aguarda. Enquanto ele toma banho ela prepara o jantar. Em
seguida deitam-se e têm relações sexuais. Ele faz questão de enfatizar que a
leva ao orgasmo várias vezes e que, depois disso, cai no sono. Ao
acordarem, ela conta que enquanto ele dormia, tiveram outra relação sexual
e que para ela foi a melhor que já tiveram. Conta isso aparentando
vergonha. Essa narrativa é entrecortada pela repetição de sua pergunta
inicial. Minha resposta, que até então era “precisamos entender o que é
feito enquanto se dorme antes de podermos afirmar se é normal”, é
substituída por “para a Psicologia não importa se é normal ou não, pois se
você está aqui com esta pergunta é porque você sente que algo fora do
normal aconteceu na sua vida.” “Mas é possível ter relação sexual quando
está dormindo?”, reitera ele. Respondo que “aparentemente sim e que
precisamos buscar uma compreensão de como ele se sente com isso, pois
essa dúvida me parece que o está atormentando e pode estar interferindo
em seu relacionamento amoroso.” De fato estava, pois eles recentemente
terminaram o namoro, embora ele considere que está dando um tempo. Da
primeira vez ele achou estranho que pudesse ter acontecido, pesquisou na
internet, mas não encontrou nada a respeito e acabou deixando de lado. Até
que, certa vez, ao telefonar para a loja onde sua namorada trabalha, a
gerente atende o telefone e diz para ele, em tom jocoso, que ele precisava
dar umas aulas ao marido dela, que não tem conseguido ter relações sexuais
com ela nem acordado. Sente-se humilhado por ter algo tão íntimo e
estranho compartilhado com pessoas alheias ao namoro, mas não diz nada a
namorada. Aliás, em geral diz muito pouco à namorada sobre como se
sente. Eles conversam sobre “coisas do dia a dia”, veem televisão juntos.
Com as outras namoradas que teve, assim como com sua ex-mulher (foi
casado há alguns anos e tem um filho com ela), sempre foi de não falar
sobre a relação, nem gostar quando elas tentavam falar sobre isso.
O motivo para o término foi a recorrência desse acontecimento. Duas
semanas antes da procura pelo plantão psicológico, aconteceu novamente
de, ao despertar, sua namorada dizer que tiveram uma relação sexual
enquanto ele dormia e que tinha sido ótima novamente. Esse acontecimento
rompe com sua autocompreensão cotidiana. Primeiro, inaugura a
possibilidade de fazer coisas sem que esteja em vigília; assim como pode
ter relações sexuais, poderia fazer ou dizer muitas coisas sem a intenção
que a vigília permite. Segundo, inaugura uma dúvida que se irradia por
toda sua história quanto a já ter passado por isso. Terceiro, coloca em
xeque seu bom desempenho sexual, que ele faz questão de enfatizar, pois
descobre que dormindo dá mais prazer para sua namorada do que desperto.
Quarto, sente-se usado por ela para realizar o desejo sexual dela. Quinto,
tem que lidar com a contradição de sentir-se mal por fazer algo que na
convivência pública é tão bem visto: sexo. Estas são algumas das questões
que se insinuam a cada repetição da pergunta sobre ser normal fazer coisas
dormindo. Meu esforço é de remeter a pergunta genérica, impessoal, à sua
experiência e com isso caminhamos juntos na explicitação dessas questões,
mas logo ele conclui novamente com a pergunta inicial.
Tendo feito esse movimento algumas vezes e iluminado brevemente
o motivo de sua procura – resgatar alguma familiaridade consigo, rompida
pela descoberta de sua vida sexual enquanto dorme – caminhamos para o
encerramento da sessão. Pergunto a ele como imagina que se sentiria se eu
dissesse a ele que é normal tal experiência. Responde que continuaria
achando estranho, pois como pode alguém ter relações sexuais, que
inclusive agradam a parceira, enquanto dorme? Exponho a ele que, a meu
ver, uma resposta para a pergunta que ele trazia para o plantão psicológico
não resolveria seu questionamento. Sua procura estava motivada pelas
implicações do acontecimento em sua vida cotidiana, sobretudo no
relacionamento amoroso atual. E que é nesse âmbito que ele pode agir.
Pois, ao distanciar-se de sua namorada – coprotagonista do acontecimento
desalojador – permanece refém de suas reflexões na tentativa de resgatar
uma identidade rompida no e pelo coexistir. Tal ruptura convoca a novas
possibilidades existenciais, que podem ser assumidas, experimentadas,
lapidadas na convivência. Na sessão isso é dito da seguinte forma: você
está tentando lidar sozinho com algo que envolve vocês dois; afinal, a
relação sexual, seja desperto, seja dormindo, com a namorada envolve os
dois. Como é um acontecimento compartilhado, é necessário dialogar,
expor-se e ouvir o que ela tem a dizer a fim de que juntos destinem este
acontecimento e construam novos modos de coexistência, mas que no
relato dele aparece sua falta de hábito (restrição?) de comunicar-se com
suas parceiras. Ele gesticula como que concordando e encerro a sessão
dizendo que o plantão psicológico está aberto semanalmente e que ele é
bem-vindo a retornar quando lhe convir.

Concluindo...
Nesta terça-feira foi esta a história de vida que apareceu para mim e
que neste encontro buscou uma destinação. Enquanto isso, colegas
atendiam outras pessoas que passam por situações completamente
diferentes, mas que têm em comum o rompimento da malha cotidiana
familiar. Todos os que procuram o plantão estão assumindo neste momento
fazer algo com o que lhes acontece ou aconteceu e que desaloja. Trata-se
do momento propício para projetar-se em novas possibilidades existências
(modos de ser), cabendo ao psicólogo plantonista devolver ao outro o
cuidado que já é seu. De prontidão para se inclinar sobre o sofrer daquele
que procura, no momento propício, o plantonista é clínico.

Referências bibliográficas

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