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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, n o. 1, p. 061-074, jan./jun.

, 2010

SOBRE O CONCEITO
DE CULTUR
CULTUR
TURAA
NA ANTROPOLOGIA

Alicia Ferreira Gonçalves*


Ferreira

Sobre o conceito Introdução cultura das mulheres, cultura de uma deter-


de cultura
na Antropologia É sabido que as pessoas, a partir de seus minada comunidade ou ainda de uma comu-
respectivos senso-comum1 referem-se ao nidade religiosa, como por exemplo, a cultura
Alicia Ferreira
termo “cultura” atribuindo-lhe diferentes sig- drusa ou islâmica. Podemos nos referir à
Gonçalves
nificados. Sobre esse tema alguns exemplos: cultura de uma determinada nação, como por
podemos falar da cultura de um indivíduo exemplo, a cultura brasileira, ou mesmo a
como sinônimo de educação, de “civilidade” cultura de uma determinada região a exem-
ou de “bons modos”, neste caso, referir-se a plo da cultura nordestina. Podemos nos re-
alguém como tendo ou não cultura opera ferir ao termo cultura em sentido mais amplo
como um mecanismo de classificação social como a cultura de uma civilização, como é o
e de estigma, já dizia Roberto Da Matta no caso da civilização Ocidental.
artigo “Você tem Cultura?”.2 Podemos falar O conceito de cultura como objeto de es-
de cultura popular em contraposição a uma tudo de caráter científico de uma disciplina
cultura erudita, ou alta cultura de que nos específica – a antropologia – começou a ser
fala Norbet Elias (1990). Falamos, ainda, de formulado no final do século XIX por antro-
cultura de um determinado grupo social, pólogos, particularmente, pelos antropólogos
como a cultura punk, ou cultura de massas norte-americanos, que a tornam o conceito
como pop, cultura da classe trabalhadora, central da disciplina que nos Estados Uni-

* Professora da UFPB. Professora Colaboradora MAPP/UFC


-aliciafg1@hotmail.com

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dos se autodesigna, a partir de 1896, com do com os valores desta. É uma cultura que
Franz Boas, como Antropologia Cultural, por se configura em meio à diferenciação en-
contraste à Antropologia Social (de tradição tre grupos sociais, como consequência da
britânica) com foco nas relações sociais. Nes- diferenciação do valor espiritual e corporal
te artigo, pretendo discorrer de forma pano- entre os indivíduos. A diferença não tem
râmica sobre a trajetória do conceito de cultura raízes nas condições sociais e nas relações
na antropologia, particularmente vou me re- de poder, mas, sim, em uma diferenciação
ferir à antropologia norte-americana e realçar que remete ao plano espiritual.3 Na obra Os
alguns temas relevantes, tais como: civiliza- trabalhos e os dias a poesia de Hesíodo
ção e kultur; raça e cultura; natureza e cultu- (VIII a.c.), nos revela a segunda vertente
ra; indivíduo e sociedade; evolucionismo e da cultura – o trabalho, o cultivo da terra
neoevolucionismo; cultura e razão prática; es- como cultivo do espírito. Não se trata de
trutura e evento; positivismo e semiótica e, uma educação aristocrática, mas sim, de
por fim, sobre o campo de estudos relativos uma educação popular, uma doutrina da
ao culturalismo norte-americano e às políti- areté (virtude moral) do homem comum que
cas da diferença, esta última temática sina- se assenta na justiça e no trabalho. A cultu-
liza para a problemática da alteridade cultural ra se alimenta da existência camponesa que
no mundo contemporâneo, os conflitos decor- se transmite por meio de suas tradições.
rentes e as soluções apresentadas por meio Nesse sentido, os valores e os conceitos da
das políticas públicas que contemplam a al- cultura estão expressos também na narrati-
teridade em suas várias nuanças. va mítica e na tragédia grega. Desta forma,
Sobre o conceito o mito incorpora uma dimensão institucional,
Na história da civilização Ocidental, pre- integrativa e coercitiva, problematizando te-
cisamente na Grécia antiga, o termo cultura máticas universais. O mito desempenha uma
fora acionado a partir de duas significações função social, na medida em que, explica as
centrais: ora, como sinônimo de educação origens da sociedade e os seus processos
cuja noção central é a de paidéia, remeten- de transformação e na medida em que pro-
do à cultura da aristocracia grega que se con- porciona os fundamentos que legitima as leis Sobre o conceito
de cultura
trasta à cultura do povo; ora como sinônimo e a autoridade. No pensamento dos filóso- na Antropologia
de cultivo da terra, remetendo ao povo tra- fos gregos a cultura como cultivo do espírito
balhador que cultiva o solo. e da moral adquire uma conotação política, Alicia Ferreira
Na primeira acepção, a cultura significa na medida em que a finalidade da existên- Gonçalves

o cultivo do espírito humano. Trata-se de cia humana está na busca da areté (virtude)
uma disciplina interior que aspira a forma- e todos devem se empenhar nesse objetivo.
ção da personalidade do ser. Refere-se, Em virtude dessa ideia Platão (427-347 a.c)
portanto, à esfera dos valores morais, in- enfoca seu trabalho moral de educador como
corporando, desse modo, uma dimensão uma atividade de edificação do Estado.
normativa (há um ideal de Homem e uma A cultura grega e os seus valores mais
finalidade a ser atingida por meio da cultu- caros são projetados como um império uni-
ra) que é atingir a perfeição moral median- versal. Daí a noção de bárbaro como todo
te a virtude (areté), que é o tema central da aquele que não participa da cultura grega,
história da educação grega, sendo trans- ou seja, aquele que não possui areté como
mitida e ensinada pela educação. Trata-se atributo do cidadão virtuoso do mundo gre-
de uma cultura da aristocracia, pois a areté go. Há, subjacente a tais formulações, um
é um atributo específico da nobreza, a qual cenário político e intelectual específico: a
o homem comum não tem acesso. Deste transição das cidades-Estado monárquica e
modo, é a partir da nobreza que nasce e se aristocrática para uma nova polis democrá-
desenvolve a cultura e conformada de acor- tica e a eleição do indivíduo como objeto de

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reflexão, onde o indivíduo se torna a medida era a reconstituição da história das origens
de todas as coisas. e dos estágios de evolução da humanidade
Se, na Grécia Antiga, a cultura incorpo- definidos a partir de uma perspectiva evolu-
rou o significado de Areté (virtude) e esteve cionista e unilinear em: selvageria, barbárie
articulada ao projeto político imperialista do e civilização. Há subjacente a estas formu-
mundo grego, no final do século XIX, incor- lações teóricas uma concepção teleológica
porou o sentido de civilização este articula- da história, como se esta tivesse um telos
do ao projeto político imperialista europeu e imanente (que caminha necessariamente
simultaneamente ao modo de produção ca- para uma finalidade determinada) e o pres-
pitalista que se amplia para as sociedades suposto de uma unidade psíquica universal
extra-europeias como África, Indonésia, que reside na existência empírica de certos
América do Sul dentre outras, coincidindo germes originais ou elementares do pensa-
com a institucionalização da disciplina an- mento que estariam presentes na mente do
tropologia na Inglaterra, Estados Unidos e homem selvagem, bárbaro e civilizado. Em
França. Neste sentido, na história da refe- função desses germes elementares do pen-
rida disciplina esse conceito começou a ser samento a humanidade se desenvolveria psi-
formulado a partir do embate entre duas con- quicamente em uma única direção da
cepções: cultura pensada como sinônimo de selvageria, à barbárie e desta à civilização,
civilização formulada na tradição iluminista representados pela Inglaterra Vitoriana do
francesa a partir da metade do século XVIII século XIX. Neste sentido, a cultura concebi-
e cultura concebida a partir da tradição ro- da como civilização apresenta uma conota-
mântica alemã como sinônimo de kultur. ção universal, etnocêntrica e um projeto
Na primeira concepção, cultura é repre- político colonialista condizente com o cenário
sentada como uma conquista progressiva, intelectual e político europeu, particularmen-
cumulativa e distintamente humana. Neste te França e Inglaterra do final do século XIX.
caso, os seres humanos são semelhantes, Como contraponto a essa semiótica do
pelo menos em potencial. Todos são capa- conceito, a tradição romântica alemã propõe
zes de criar uma civilização, o que depende o conceito de cultura como Kultur. Kultur se
Sobre o conceito
de cultura do dom exclusivamente da razão, ou seja, do
na Antropologia
refere ao espírito – Geist que remete à tradi-
exercício da racionalidade, como principal atri-
ção e aos valores nacionais (idiossincráticos)
buto que nos particulariza e nos distingue de
Alicia Ferreira que se contrapõem às forças do progresso,
outros animais, vejamos a definição formu-
Gonçalves a noção de Geist realça os valores espiritu-
lada por Tylor em 1871,
ais em oposição ao materialismo, as artes e
Cultura ou Civilização, tomada em seu os trabalhos manuais em oposição à ciên-
sentido mais amplo sentido etnográfico,
cia e à tecnologia.
é aquele todo complexo que inclui co-
nhecimento, crença, arte, moral, lei, cos- O embate entre Kultur e civilização foi
tume ou quaisquer outras capacidades abordado por vários intelectuais, dentre
e hábitos adquiridos pelo homem na con- eles Norbert Elias – particularmente primei-
dição de membro da sociedade (TYLOR, ro capítulo do “Processo Civilizador” e Adam
apud CASTRO, 2005, p.69). Kuper no primeiro capítulo de “Cultura, a vi-
Cultura como sinônimo de civilização são dos antropólogos”. Há um embate pelos
está subjacente aos estudos realizados por corações e mentes entre duas perspectivas:
Lewis Henry Morgan (A sociedade antiga, Etnocêntrica que aspira uma validade uni-
1877) nos Estados Unidos; Edward Burnett versal e a relativista que defende as parti-
Tylor (A ciência da cultura, 1871) na Ingla- cularidades culturais e que reconhece que
terra e James George Frazer na Inglaterra não há conceitos, valores e verdades uni-
(O ramo de ouro, 1890). Neste contexto in- versais. Afinal, civilização e kultur corres-
telectual o objetivo posto para a disciplina ponde ao embate clássico constitutivo da

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história do pensamento antropológico que determinados traços ou complexos de traços
orbita entre dois eixos: o universalismo e e não por meio da evolução unilinear, funda-
particularismo. A antropologia norte-ameri- mentada em uma suposta unidade psíquica
cana de tradição idealista alemã incorpo- do Homem, esse era o contraponto com as
rou a segunda acepção: a da Kultur, teorias evolucionistas do final do século XIX.
enfatizando o relativismo cultural e as par- Para Boas e seus discípulos, os compor-
ticularidades de cada grupo social. tamentos individuais são moldados de acor-
O marco de origem da antropologia nor- do com a cultura. Nesse sentido, os hábitos
te-americana é a publicação de um artigo de sociais de um determinado grupo refletem os
Franz Boas, intitulado: “As limitações do mé- traços culturais constitutivas da cultura do re-
todo comparativo em antropologia social” no ferido grupo. Este pressuposto (a primazia da
livro Raça, linguagem e cultura no ano de dimensão cultural sobre as disposições psí-
1896. Segundo o autor que atuava institucio- quicas individuais) irá perpassar os estudos
nalmente na Universidade de Columbia, as de toda uma geração de antropólogos nos
culturas são formadas por traços e comple- Estados Unidos até meados da década de
xos de traços que são o produto de condi- 1940. Desse modo, para Alfred Kroeber, Ruth
ções ambientais, fatores psicológicos e Benedict, Ralfh Limpton, Margareth Mead,
conexões históricas. A Cultura, segundo Boas, dentre outros a grande questão era: O que
é pensada como particularidade, totalidade nós devemos à cultura? O que nós devemos
integrada e harmônica que sustenta a coe- ao nosso código genético? Aos nossos an-
são social. Franz Boas baseou-se em seus cestrais? O que se transmite pelo sangue? O
estudos da distribuição espacial dos mitos, que é inato e o que é adquirido pela cultura?
das lendas e do folclore entre os índios da No texto “Super-orgânico”, publicado no
América do Norte. Segundo o autor, os ele- livro El concepto de cultura, Alfred Kroeber
mentos de qualquer cultura eram produtos de desconstrói o argumento evolucionista, des-
processos históricos complexos envolvendo, vinculando raça e cultura e delimitando as di-
em larga medida, a difusão e o empréstimo ferenças entre o plano orgânico – inato (cor
de traços e complexos de traços de culturas dos olhos, constituição física, atividade men-
Sobre o conceito
vizinhas. O processo de difusão é um proces- tal) e o plano social e, ao mesmo tempo, deli- de cultura
na Antropologia
so de transformação cultural, nos quais os mitando o campo de estudos da antropologia
elementos de uma cultura se difundem de uma (processos culturais) e da psicologia (dispo-
Alicia Ferreira
área para outra. As formas de organização sições psíquicas individuais). Segundo este Gonçalves
social, os costumes, as instituições, o siste- autor, a evolução orgânica difere da evolução
ma religioso e o sistema de parentesco não social, porque são dois planos separados e
provêm de uma origem comum como sugere autônomos que se desenvolvem a partir de
o argumento evolucionista, desse modo, o uma lógica própria – neste sentido, a evolu-
autor desvincula raça de cultura. Um exem- ção cultural não está determinada por fatores
plo que o autor nos apresenta diz respeito à hereditários. Enquanto, por exemplo, a res-
organização de muitas tribos primitivas em posta dos animais à variação ambiental é or-
clãs totêmicos, que não pode ser explicada a gânica, a resposta dada pelos seres humanos
partir de uma origem psíquica comum, a ori- às condições ambientais é formulada em ter-
gem dessa forma de organização social é in- mos culturais e não biológico.
dependente. Podemos afirmar que existe uma Ruth Benedict foi discípula fiel de Boas
predisposição psicológica para a organização e estudou a cultura pueblo do Novo México,
totêmica da sociedade, o que não significa os Dobu na Nova Guiné e os Kwakiutl da
que essa forma de organização social tenha Colúmbia britânica, alguns resultados des-
uma origem comum e que tenha se desen- ses estudos foram publicados em Padrões
volvido de forma idêntica em várias tribos. 4A de cultura em 1934. Para Benedict, em cada
cultura se transforma por meio da difusão de sociedade existem padrões culturais que a

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própria sociedade seleciona de acordo com estavam lutando pelos ideais e valores Oci-
os seus objetivos de integração social e que dentais como a democracia e igualdade, os
são reforçados e alargados pelas suas insti- soldados japoneses estavam lutando para
tuições. A conduta desviante que não se en- afirmar o lugar que o Japão deveria ocupar
caixa no padrão estabelecido socialmente é no mundo (topo na hierarquia) e pela supe-
reprimida pelas instituições da sociedade. rioridade do espírito contra o materialismo
Por exemplo, a experiência do transe, é uma Ocidental.
potencialidade que existe em certo número A partir do caso japonês na segunda
de indivíduos em qualquer grupo social, guerra mundial e dos seus estudos na Co-
quando ele é respeitado e recompensado so- lúmbia britânica Benedict afirma que existe
cialmente, uma proporção considerável de em todas as sociedades uma (inter) relação
indivíduos atingira ou simulará o transe. Em entre a cultura e as disposições psíquicas
nossa civilização, por exemplo, em que o individuais: Esta relação é recíproca e tão
transe é considerado uma mancha no escu- íntima que não se pode tratar de padrões
do da família, essa proporção diminuirá e os culturais sem considerar especificamente as
indivíduos que dela são capazes serão clas- relações destes com a psicologia do indiví-
sificados de anormais. duo (BENEDICT, 1988). A autora opera em
Em 1944, Benedict realizou um estudo dois planos: percepção e ação, comporta-
antropológico encomendado pelo governo mento e cultura. Qual é o papel do costume
norte-americano que foi publicado no Brasil na formação do indivíduo, em suas percep-
em 1988, O crisântemo e a espada. O objeti- ções, crenças e comportamento, na condu-
vo do estudo era compreender os padrões ta? Benedict sugere uma incorporação
culturais dos japoneses na segunda guerra inconsciente do comportamento socialmen-
mundial. Segundo a autora: Teríamos de ten- te validado pelas instituições de cada cultu-
tar compreender os hábitos japoneses de ra, ou seja, não há um exercício reflexivo por
pensamento e de emoção e os padrões em parte dos indivíduos que pertencem a uma
que se enquadravam tais hábitos (BENEDICT, determinada cultura.
1988, p.12). Sendo assim, os norte-america- A linha de raciocínio que privilegia a par-
Sobre o conceito
de cultura nos centrados nos pressupostos culturais de ticularidade e o relativismo foi seguida por
na Antropologia sua própria sociedade não compreendiam a Margarth Mead em seu livro Sexo e tempe-
lógica que guiava o comportamento japonês ramento que nos apresenta como hipótese
Alicia Ferreira
Gonçalves
na segunda guerra mundial, não compreen- central a noção de que as diferenças entre
diam em especial a determinação e a tenaci- os sexos são diferenças construídas cultu-
dade dos soldados japoneses e do alto ralmente e não determinadas biologicamen-
comando japonês, tendo em vista a sua su- te, isto é, não diferenças inatas, inscritas na
perioridade bélica e a enorme desvantagem carga genética dos homens e das mulheres.
dos japoneses. Mead estudou as relações entre tempera-
A conclusão da autora é de que a con- mento individual e sexo entre os Arapesh,
duta japonesa nas diversas esferas da vida nos canibais Mundugumur e nos caçadores
social era norteada por um padrão cultural de cabeça Tchambuli, na Nova Guiné, foram
composto por traços culturais selecionados dois anos de trabalho de campo, em que o
pela sociedade e reforçada nas suas institui- foco da autora recai sobre as diferenças se-
ções. No caso japonês a noção central é a xuais, particularmente os papéis atribuídos
de hierarquia, portanto, prossegue Benedict, aos dois sexos nessas três sociedades. A
a partir dessa noção de hierarquia contem- autora conclui que os papéis sexuais atribu-
plada no padrão cultural japonês é que os ídos nas diversas sociedades são atribuídos
japoneses guiavam a sua conduta nas várias em função dos padrões culturais peculiares
esferas da vida social, inclusive na guerra. àquelas sociedades e que são reforçados
Enquanto os soldados norte-americanos nas instituições (família, escola, trabalho,

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igreja etc). Nessas formulações teóricas, a sencadeou o movimento pós-moderno após
cultura exerce uma coerção e determina o a década de 1960.
comportamento individual. A Escola de Cultura e Personalidade,
Margareth Mead e Ruth Benedict introdu- como ficou mundialmente conhecida a partir
zem na abordagem culturalista a noção da dos estudos de Benedict e Mead, predomi-
conduta desviante, do “anormal”, do “patoló- nou no cenário norte-americano até meados
gico” estabelecendo desta forma o diálogo da década de 40, quando emerge uma rea-
com a psiquiatria e a psicologia.5 Segundo as ção contrária ao particularismo histórico de
autoras, a conduta desviante pressupõe um tradição alemã. Esse movimento de inspira-
padrão e se revela no comportamento do in- ção teórica neoevolucionsta emerge após a
divíduo cuja disposição mental e comporta- década de 40 nos Estados Unidos, no con-
mental não se ajusta aos padrões culturais texto da grande depressão, a partir de dois
selecionados pelas instituições sociais: Tra- personagens centrais: Leslie White e Marshall
ta-se do Homem cujos impulsos naturais não Sahlins que resgatam o conceito de evolução
são admitidos pelas instituições da cultura a do século XIX e o aplicam à cultura.
que pertence (BENEDICT, s.d. p.287). A au- Para Leslie White, a evolução cultural é
tora questiona os pressupostos da prática da determinada pelo montante de energia per
psiquiatria ocidental e a noções de “louco”, capita aproveitada anualmente. Isto é, a evo-
de “anormal”, da noção de normalidade for- lução da cultura deriva da atividade de tra-
mulada dentro dos pressupostos ocidentais. balho moldada pela tecnologia, onde todas
Para autora os conceitos de normal e de anor- as instituições sociais estão dispostas de
mal são conceitos construídos culturalmente. maneira a contribuir para a efetividade com
O exemplo citado no último capítulo de Pa- o qual o sistema apropria-se e utiliza-se de
drões de Cultura é o dos homossexuais, de- energia disponível.7 Marshall Sahlins é um
pois retomado por Clifford Geertz: no artigo autor contemporâneo relevante na reflexão
“O senso comum como sistema cultural”. Se- em torno do conceito de cultura. Em sua pri-
gundo o estudo, na sociedade capitalista é meira fase, o “jovem Sahlins” é neoevolu-
atribuída ao homossexual uma condição de cionista, ele realmente crê que a cultura Sobre o conceito
de cultura
anormalidade enquanto que, em outras socie- avança à medida que avançam as relações na Antropologia
dades, o homossexualismo é valorizado cultu- de produção e a produção do excedente por
ralmente e reforçado nas instituições sociais, meio do avanço da tecnologia. Contudo, à Alicia Ferreira
o exemplo paradigmático é a República de medida que avança a tecnologia e a produ- Gonçalves

Platão. Neste sentido, cada cultura produz os ção do excedente, esta é apropriada pela
seus “anormais” e os seus “desviantes”. chefia tribal, o que permite a centralização
A abordagem das autoras, em relação aos do poder político na instituição do Estado.
desviantes, é um convite a um exercício de O autor realizou pesquisa de campo en-
relativização cultural, é um exercício de au- tre os anos 1954 a 1955, nas comunidades
torreflexão dos nossos padrões culturais e um do Pacífico, cujo foco analítico de viés evo-
reconhecimento que a tradição cultural pode lucionista e marxista8 era a evolução das
ser tão neurótica quanto o esquizofrênico, e, comunidades do tipo igualitárias baseadas
ao mesmo tempo, é uma mensagem dirigida em parentesco para estados hierárquico. O
à psiquiatria praticada no Ocidente, que deve eixo de análise é duplo: 1) Base material da
levar em consideração os aspectos culturais sociedade (progresso tecnológico) e 2) Dis-
e a tolerância às disposições mentais e indi- tribuição de poder dentro das tribos. Neste
viduais.6 A noção de conduta desviante abre sentido, o foco recai sobre – organização
todo um campo de reflexão em torno dos es- econômica – como a sociedade se organiza
tudos de gênero na disciplina e dos estudos para obter a sua subsistência e na organiza-
multiculturais nos Estados Unidos que de- ção política – como se apropria e distribui os

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recursos de uma sociedade. A conclusão do considerada o resultado da atividade prática,
estudo é que os fatores determinantes do ela é também significação, ela é a mediadora
desenvolvimento político era o progresso entre o Homem e o seu meio material. Por-
tecnológico que permitia o acúmulo de re- tanto, o homem explora a natureza com o
cursos materiais nas mãos de poucos. Essa objetivo de satisfazer as suas necessidades,
tese foi desenvolvida no livro Sociedades mas o faz de um modo especifico, e esse fa-
tribais, publicado pela Zahar. zer de um modo específico é mediado por um
No final da década de 1960, o autor em projeto cultural. A natureza (assim como o
sua fase madura revê a posição evolucionis- espaço) é apropriada simbolicamente. Não há
ta que adotou por mais de vinte anos para lógica material separada do interesse prático
adotar uma perspectiva culturalista. Em sua e o interesse prático do homem na produção
nova fase, as formulações teóricas foram de- é simbolicamente instaurado. Nesse ponto de
senvolvidas a partir do diálogo entre o mate- sua argumentação, o autor compara a socie-
rialismo histórico e o estruturalismo francês. dade industrial capitalista às sociedades ditas
Segundo Adam Kuper, o processo de conver- primitivas partindo do pressuposto de que tan-
são ao relativismo cultural ocorreu entre 1967, to nas sociedades primitivas como na socie-
1969 e 1970 quando Sahlins esteve em Paris dade capitalista burguesa os aspectos materiais
e quando retorna aos Estados Unidos para (exploração da natureza pelo Homem, satis-
assumir sua cátedra no departamento de An- fação das necessidades) não estão separados
tropologia da Universidade de Chicago. Em das relações sociais. O que é característico da
1976, publicou Cultura e razão prática. Neste sociedade capitalista é que a economia é o
livro o autor analisou o Ocidente como cultu- locus principal da produção simbólica:
ra, especificamente abordou o processo de Para nós a produção de mercadorias é
produção capitalista concebido em si mesmo ao mesmo tempo o modo privilegiado de
produção simbólica e de sua transmissão.
como um processo simbólico. Estudando os
A singularidade da sociedade burguesa
setores de vestuário e alimentação nos Esta-
não está no fato de o sistema econômico
dos Unidos e demonstrou que os objetos pro- escapar à determinação simbólica, mas
Sobre o conceito duzidos pela sociedade capitalista não o são em que o simbolismo econômico é estru-
de cultura
na Antropologia
somente em função de sua utilidade prática, turalmente determinante (SAHLINS,
na medida em que são úteis aos consumido- 1999, p.232).
Alicia Ferreira res, mas significativos, ou seja, o esquema Deste modo, A produção racional visan-
Gonçalves simbólico sempre acompanha a utilidade, des- do o lucro se move junto com a produção de
se modo prossegue Sahlins, a verdadeira uti- símbolos. Neste sentido, podemos falar do
lidade consiste em significação. É, por mercado como um locus institucionalizado
exemplo, o valor social do filé ou da alcatra privilegiado de produção simbólica, de onde
que informa o seu valor econômico e não so- emana um quadro classificatório imposto a toda
mente a sua utilidade prática, assim como, a cultura, por contraste ao mundo ‘primitivo’
não é a satisfação de necessidades biológi- onde o locus de diferenciação simbólica per-
cas que explica por que as calças são produ- manece nas relações sociais, principalmente
zidas para os homens e as saias para as nas de parentesco. (SAHLINS, 1999,p.232).
mulheres, ou por que não comemos cães e, Sahlins enuncia em Cultura e Razão Prá-
no entanto a carne do traseiro do novilho. tica alguns argumentos que iria desenvolver
O objetivo do autor foi demonstrar que a de uma forma mais sistemática em Ilhas de
produção capitalista se realiza em função de História, abordando justamente as relações
um interesse utilitário mediado simbolica- entre estrutura e evento. Para explicar es-
mente. Neste sentido, é o projeto cultural que sas relações o autor toma o mito como o eixo
ordena e organiza a produção e não o con- articulador dessa relação. Para Sahlins, as
trário. Sendo assim, a cultura não pode ser pessoas estabelecem novos eventos em tra-

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mas já estabelecidas em sua mitologia. gia e antropologia, esta última teria como ob-
Sahlins realizou vários estudos de casos jeto de estudo os sistemas culturais (domínio
sobre a mitopráxis na Polinésia, mas o caso das ideias e dos valores) que se adequa-
mais interessante foi sobre a visita do capi- vam à sua teoria da “estrutura da ação so-
tão Cook ao Havaí em 1778-1779. A visita e cial”. Podemos datar o marco a trajetória de
a morte de Cook são emblemáticas para Clifford Geertz na disciplina, a partir dos anos
pensarmos nas alterações da estrutura. 1950 quando iniciou as suas atividades de
Cook, inicialmente confundido com o deus pesquisa de campo na Indonésia, particular-
Lono é agraciado e celebrado. Lono, contu- mente em Java e Bali e no Marrocos abor-
do, também é, segundo a mitologia havaia- dando as relações entre a tradição e
na, o usurpador do reino, dessa forma, deve modernidade, ou Islamismo e “moderniza-
ser morto. Como demonstra a história, os ção”. Marrocos e Indonésia estavam passan-
mitos de certa forma pressagiam o que es- do por um processo de mudança acelerado,
tava por vir – ou, como afirmava Sahlins, os de transição do sistema colonial para a in-
polinésios pensam no futuro como algo que dependência política. Neste contexto, a gran-
está atrás deles. O que o autor afirmava, na de questão era a mudança política e como
verdade, era que uma mitologia era a es- esses países iriam se integrar ao modelo ca-
sência condensada de uma cosmologia reli- pitalista, como esses países iriam se moder-
giosa, e que ela realizava as mesmas duas nizar? As questões epistemológicas eram,
funções como religião ou como cultura. Os portanto: Qual era o papel da cultura nos
mitos explicavam a mudança e também aju- processos de mudança sociais? Qual a re-
davam a efetuá-la, oferecendo ao mesmo lação entre cultura e ação social? Qual era
tempo um relato do passado e um guia para o papel da tradição no processo de moderni-
a ação no futuro. Os mitos ofereciam um zação social? Quais eram as relações entre
modelo para a compreensão dos eventos. cultura e processos sociais?
Além disso, davam às pessoas diretrizes Qual era a função da cultura como mo-
para lidar com novas situações, isto é, com delo de ação? Cultura era um elemento
os acontecimentos, com a novidade. Com puro e independente que se juntava a Sobre o conceito
Sahlins, chegamos à fase contemporânea da outros elementos (institucionais e psico- de cultura
na Antropologia
lógicos) para produzir ação social? Se
disciplina que, ao lado de Clifford Geertz, são
fosse assim, como o elemento cultural
autores de referência no debate em torno do podia ser abstraído uma vez que era Alicia Ferreira
conceito de cultura. Ambos são pós-estrutu- observado apenas na ação social? O
Gonçalves

ralistas, Sahlins estabelece diálogo com a problema era ainda mais complexo, no
história e os historiadores, enquanto que sentido de que a própria cultura era mol-
Geertz inaugura o movimento pós-moderno dada por processos sociais e políticos
na disciplina a partir de uma abordagem se- (KUPER, 2002, p.134).
miótica da cultura. Os estudos desenvolvidos por Geertz
O primeiro contato de Clifford Geertz demonstraram que as culturas locais pode-
com a antropologia ocorreu no ano de 1949, riam servir de base para a modernização
após um contato inicial com Margareth Mead, econômica, ou seja, o processo de desen-
período em que foi admitido junto com a es- volvimento econômico pode ser realizado a
posa em um curso de pós-graduação em partir da tradição local. No estudo da reli-
Harvard, no departamento de Relações So- gião javanesa, as ideias tradicionais não ti-
ciais, criado por Parsons no ano de 1946.9 A nham o poder de explicar as mudanças
finalidade de Parsons era reordenar as ci- aceleradas e não serviam mais como meca-
ências sociais nos Estados Unidos, criar uma nismo de integração social e de modelos ori-
divisão de tarefas e delimitar os campos do entadores da conduta, pois havia uma
conhecimento científico: psicologia, sociolo- disjunção entre a estrutura social e a cultu-

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ra; havia um descompasso entre o ritual e a nificantes que tornam inteligíveis e/ ou infor-
mudança social e essa linha de argumenta- mam os atos de nossos sujeitos. Define o
ção foi desenvolvida no estudo de caso de conceito como essencialmente semiótico,
um funeral em Java. Para Geertz, as velhas para o autor, a cultura seria um contexto –
práticas religiosas não eram mais compatí- algo dentro do qual; os acontecimentos, as
veis com as realidades sociais de comuni- instituições, os comportamentos e os proces-
dades mistas num ambiente urbano. Os sos podem ser descritos com densidade.
recursos rituais da cidade de Java não con- Para o autor, não nos cabe perguntar se é a
seguiam mais lidar com a experiência social cultura que determina a ação e nem se é a
do povo da cidade, ou seja, as concepções ação que determina a cultura, cabe pergun-
culturais e os rituais javaneses não eram tar o que está sendo transmitido naquela
mais suficientes para compreender e dar sig- experiência, naquela ação, qual é o seu sig-
nificado à sua experiência social em rápida nificado. Por isso, rejeita as relações mecâ-
transformação. Geertz formulou o seu con- nicas de causa e efeito entre ação e cultura,
ceito de cultura a partir das suas experiên- processos sociais e cultura. Neste sentido,
cias do trabalho de campo no Marrocos a análise da cultura não é uma ciência ex-
realizado com pequenos intervalos entre os perimental em busca de leis, mas uma ciên-
anos de 1964 a 1972 e na Indonésia entre cia interpretativa em busca do significado,
os anos de 1952 a 1971. deste modo, a cultura seria um contexto. O
O conceito fora definido pelo autor como autor explicita a historicidade inerente à cul-
“teias de significados” inspirado em uma tura – como teia de significados tecidos pe-
abordagem semiótica e hermeneuta, inau- los homens – estrutura de significados
gurando desse modo, as tendências pós- construídos socialmente. Neste sentido, as
modernas na antropologia que se delineiam culturas podem ser tratadas como textos
a partir de uma publicação de Clifford Ge- escritos socialmente, no sentido de que são
ertz, A Interpretação das culturas (1974). os homens que constroem as teias de sig-
Nessa época, esse autor foi convidado a fun- nificados de que são feitas as culturas. Ex-
Sobre o conceito dar a Faculdade de Ciências Sociais do Ins- plicita a natureza simbólica da ação social
de cultura
na Antropologia
tituto de Estudos Avançados em Princeton. e a define como ação simbólica, não há
Nessa obra, Geertz propõe uma reformu- ação sem significação. Portanto, a cultura
Alicia Ferreira lação nos objetivos, na teoria e metodologia como dimensão simbólica está colada à
Gonçalves da disciplina, a partir de uma crítica realizada ação, decorrendo daí o seu caráter intrin-
às ciências sociais positivista, particularmen- secamente histórico. O autor desencadeia
te, à antropologia clássica (britânica, norte- a crítica pós-moderna na antropologia, fo-
americana e francesa) e às etnografias de cada na ambição cientificista da disciplina,
“gênero realista”. na autoria e autoridade do texto etnográ-
No primeiro capítulo do livro, Geertz inda- fico, e nas ligações da antropologia com a
ga: em que medida a antropologia pode ser expansão colonial. A crítica pós-moderna
considerada uma ciência? No contexto da te- de matriz norte-americana congrega vários
oria interpretativista formulada por Geertz, a intelectuais ligados aos estudos culturais
antropologia também é uma ciência, porém que centram seus debates dentro e fora da
uma ciência interpretativa. Geertz é explícito, academia nas políticas da diferença que
quando denomina a teoria interpretativa de protegem os direitos das minorias.
ciência, mas, com algumas diferenças – a Adam Kuper, no livro Cultura, a visão dos
ciência interpretativa ao invés de buscar por antropólogos observa que, emerge no final
regularidades, leis gerais, estruturas, função, dos anos 60 nos Estados Unidos e Inglater-
inspirada na semiótica teria como objetivo ra uma nova disciplina denominada de “es-
apreender os significados: as estruturas sig- tudos culturais” de natureza interdisciplinar

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englobando as artes, literatura, conhecimen- no, referem-se aos imigrantes e aos negros,
tos, artes negras da mídia, cultura popular. e argumentam que toda diferença cultural
Nos EUA, James Clifford é um autor de re- deve ser tratada com respeito e simetria e
ferência, assim como, Stuart Hall na Ingla- não como inferioridade. Para essa tendência
terra. Ambos criticam os conceitos de cultura a nação americana é fragmentada cultural-
e de identidade e apontam as ligações da mente, o problema não reside na existência
antropologia com a política externa norte- das diferenças, mas como a diferença é re-
americana, francesa e inglesa. A principal presentada e tratada pelas elites norte-ame-
especificidade dos estudos culturais é que ricanas, como inferiores, como desvios de
articulam teoria e ação política de forma ex- normas ou patologia. Nesse cenário, a teo-
plícita com a finalidade de alterar a configu- ria cultural é um instrumento da ação polí-
ração de poder em determinada sociedade. tica em defesa dos direitos das minorias
São intelectuais que falam a partir do cam- culturais: étnicas, de gênero, religiosa, eles
po acadêmico e defendem causas especí- atuam na defesa da cultura de grupos so-
ficas em sociedades específicas situadas ciais minoritários. A questão subjacente é po-
historicamente. Josep Picó (1999) alerta que lítica, jurídica e ideológica: Como equacionar
a problemática central dos estudos culturais unidade nacional, estado democrático de
contemporâneos já estava presente, no sé- direito ancorado em valores universais e a
culo XIX, no processo de formação dos es- diversidade cultural no projeto de construção
tados nacionais, como unificar culturalmente da nação?
as minorias étnicas que conviviam em uma O debate entre antropólogos e os ativis-
mesma fronteira geográfica, como conciliar tas filiados aos estudos culturais coloca em
interesses divergentes. questionamento o papel da antropologia nes-
No âmbito dos estudos culturais, a alta sa disciplina e nesse movimento político. Os
cultura é questionada e há um movimento estudos culturais e seus ativistas partem do
de valorização das culturas populares, para pressuposto de que a cultura, alta cultura ser-
eles a alta cultura expressa na mídia visa ve ao poder e reproduz a dominação social. A
reproduzir o status quo e a exploração so- discussão gira em torno do conceito de cul-
Sobre o conceito
cial. Neste sentido, os estudos culturais cons- tura em sua vertente sistêmica e funcionalis- de cultura
tituem ao mesmo tempo uma disciplina ta e de identidade como entidade ontológica na Antropologia

acadêmica e um movimento político. O mo- fixa e ancorada em elementos irredutíveis, nos


Alicia Ferreira
vimento multiculturalista defende os direitos estudos culturais cultura é sinônimo de “alta Gonçalves
das minorias, como por exemplo: as mino- cultura” e funciona como ideologia – falsa
rias nacionais, como os corsos na França e consciência no sentido marxista refere-se às
os catalães na Espanha; os grupos étnicos: artes, à mídia e ao sistema educacional, con-
ciganos na Espanha, mulçumanos na Fran- tudo, podemos afirmar que se trata de uma
ça, índios, negros e mulheres no Brasil. O concepção restrita de cultura, que difere da
movimento associa diferença cultural e de- concepção antropológica – essa problemá-
sigualdade social na sociedade norte-ame- tica foi discutida por Marcus e Fischer em
ricana e inglesa. Esse movimento nasce texto publicado em 1992, “Antropologia como
após a Segunda Guerra Mundial no contexto crítica cultural”. Além disso, os autores cri-
dos processos de descolonização. Multicul- ticam o relativismo porque, enfim, o relati-
tural é qualificativo – sociedades multicultu- vismo cultural justifica tudo, inclusive o
rais, como os Estados Unidos, Grã-Bretanha, infanticídio nas sociedades indígenas até o
Malásia, África do Sul, e que apresentam pro- apedrejamento das mulheres adúlteras no
blemas de governabilidade associados aos mundo islâmico. Nessa perspectiva, a iden-
interesses divergentes dos grupos étnicos tidade e a cultura são instâncias privilegia-
que são por definição culturalmente hetero- das para a luta política das minorias étnicas,
gêneos.10 No caso específico norte-america- religiosas e de gênero.

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Os autores filiados aos estudos culturais cada a partir de uma teoria antropológica
concebem cultura e identidade como histo- formulada por um intelectual africânder –
ricamente construídos, nas relações sociais Eiselen professor de etnologia, que se inspi-
e de poder, híbridas, fluidas, re-significadas rou no conceito de cultura de Franz Boas. Se-
e manipuladas politicamente, economica- gundo Eiselen, em palestra proferida no ano
mente e ideologicamente. Neste sentido, de 1929, não havia provas que a inteligência
identidade não ontológica, fixa é construída variava com a raça, não havia provas científi-
historicamente. Assim como a cultura não cas de que uma nação ou raça deve conduzir
constitui um universo simbólico homogêneo, o mundo para todo o sempre rumo à civili-
é sincretismo, mistura é historicamente cons- zação. Não era a raça, mas sim a cultura, que
truída e (re) significada. Os autores realçam constituía a verdadeira base da diferença, o
o caráter histórico da cultura e o papel da sinal do destino. As diferenças culturais de-
ação social em oposição a uma concepção veriam ser avaliadas. O etnólogo acreditava
que privilegia as permanências, a estrutura. que o governo africânder deveria estimular
Portanto, não é uma questão do que as uma cultura banta mais elevada e não trans-
tradições fazem de nós, mas daquilo que formar negros em europeus, mais tarde o
nós fazemos das nossas tradições. Es- slogan “desenvolvimento separado”.
tamos sempre em processo de forma- Devido aos vários questionamentos so-
ção cultural. A cultura não é uma questão bre a pertinência do conceito de cultura den-
de ontologia, de ser, mas de se tornar tro da disciplina, no ano de 1997, no Brasil
(HALL, 2003, p 44). pela revista Mana a resposta de Shalins a
Kuper dirige uma série de críticas ao cul- essas provocações em dois artigos intitula-
turalismo norte-americano, entre elas, o pro- dos: O pessimismo sentimental e a experi-
jeto político norte-americano no pós-guerra e ência etnográfica: porque a cultura não é um
sua articulação com as teorias formuladas objeto em extinção.11 Em 2004, foi publica-
pelos antropólogos, como Ruth Benedict e do no Brasil pela UFRJ, Cultura na prática é
Clifford Geertz. Nesse marco disciplinar, a di- uma coletânea de artigos produzidos a par-
ferença cultural justificou a dominação colo- tir da década de 1960, trata-se de uma defe-
Sobre o conceito
de cultura nial e a intervenção nas ex-colônias, nestes sa apaixonada do conceito de cultura e sua
na Antropologia casos a cultura e a tradição local são repre- pertinência para explicar e interpretar even-
sentadas como entraves ao processo de mo- tos contemporâneos, um dos conceitos cen-
Alicia Ferreira
Gonçalves
dernização econômica. A segunda crítica é trais é o de indigenização da modernidade
com a falta de precisão conceitual, a utiliza- (que envolve a incorporação de elementos
ção do conceito de cultura para designar arte, exógenos a partir de categorias cosmológi-
conhecimento, tecnologia, tradição e outros, cas tradicionais).
ou seja, cultura quer dizer tudo e nada ao A resposta ao argumento de que as teo-
mesmo tempo. Ou quando se usa a cultura rias antropológicas formuladas em torno do
como fonte única explicativa dos fenômenos, conceito de cultura estivessem a serviço da
o chamado determinismo cultural. A terceira dominação colonial o autor rebate dizendo
crítica refere-se às implicações políticas con- que em sua gênese no marco da tradição
cretas dos conceitos e das teorias culturais idealista alemã que remete a Herder ocorre
formulados na academia, trata-se de uma crí- justamente o contrário. Este conceito fora for-
tica ao relativismo cultural – Kuper se posi- mulado justamente em oposição ao projeto
ciona como um sul-africano liberal que civilizatório capitalista, valorizando as parti-
desconfia dos movimentos sociais que invo- cularidades nacionais, os valores e a tradi-
cam a cultura para motivar a ação política. ção em contraposição ao progresso da
O autor remete à própria história do técnica e da ciência capitalista. Neste sen-
apartheid – política de segregação racial na tido, a intenção original da cultura era “anti-
África do Sul que fora concebida e justifi- imperialista”.

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Sahlins afirma que a tarefa contemporâ- soas reafirmavam o compromisso com a ter-
nea da antropologia é a indigenização da mo- ra natal. Não se trata somente de uma liga-
dernidade. O autor diz que as semelhanças ção simbólica com a terra natal, trata-se de
culturais da globalização se relacionam dia- conceber a ligação com a terra natal como
leticamente com as exigências opostas da central neste processo de transculturação.
indigenização. Em lugar de celebrar (ou la- Considerações finais. Entre a unidade e
mentar) a morte da ‘cultura’, portanto, a an- as particularidades
tropologia deveria aproveitar a oportunidade Adam Kuper é um Sul-africano que se
para se renovar, descobrindo padrões iné- define como um liberal de tradição humanista
ditos de cultura humana (SAHLINS, 1997, p e argumenta que a ênfase no relativismo cul-
58). A fim de demonstrar etnograficamente tural e a afirmação de que os povos apre-
a indigenização da modernidade Shalins cita sentam diferenças radicais servem para
as etnografias de três antropólogos: Rena reafirmá-las impedindo dessa forma, o
Lederman, Epeli Hau´ofa e Verry Turner. diálogo.Segundo argumenta Habermas
Nessas etnografias demonstra-se como as (1987), o diálogo é sistematicamente distor-
sociedades insulares do Pacífico definidas cido pelos mediadores não discursivos como
como sociedades transculturais, outrora in- poder e o dinheiro. A ação comunicativa
seridas em uma estrutura de dominação co- emancipadora de que nos fala o filósofo ale-
lonial estão interpretando as mudanças mão pressupõe o abandono das tradições
aceleradas e se inserindo na economia de culturais encerradas em si mesmas e a cons-
mercado a partir de suas próprias catego- trução de valores universais.12 Kuper prefe-
rias cosmológicas. O foco empírico são os re buscar pelas semelhanças nas diversas
movimentos migratórios, a inserção dos na- sociedades, e afirma que a teoria da cultura
tivos na divisão internacional do trabalho e Tende a desviar a nossa atenção do que te-
a remessa de capitais e bens materiais para mos em comum em vez de nos estimular a
a terra natal. nos comunicar através das fronteiras nacio-
Estão (re)significando em seus próprios nais, étnicas e religiosas, e a nos aventurar-
termos o processo de globalização e remo- mos além delas (KUPER, 2002, p.311). Sobre o conceito
de cultura
delando as suas próprias identidades cultu- Estamos às voltas novamente com as na Antropologia
rais. Hau´ofa afirma que após a segunda grandes questões que deram origem à disci-
guerra os povos do pacífico conseguiram re- plina, no final do século XIX, quais sejam: o Alicia Ferreira
tomar seu controle tradicional do espaço oce- pressuposto de uma suposta unidade do gê- Gonçalves

ânico, por novos meios, objetivos em uma nero humano afirmada pela teoria e a diversi-
nova escala chamou a atenção para o uso dade cultural constatada empiricamente e a
reflexivo que os nativos faziam de sua pró- dialética, como diria Lévi-Strauss, entre iden-
pria tradição cultural, de e como a partir de tidades e diferenças. A questão relevante que
suas categorias cosmológica (re) significa- perdura no século XXI é: como e quando, isto
vam os acontecimentos contemporâneos e é, em quais circunstâncias históricas as dife-
por meio de uma teia de reciprocidade que renças culturais e identitárias se transformam
envolve a circulação de capital, bens e pes- em assimetria, violência e terror?

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Notas

1
C.f. GEERTZ (1989). isolamento do esquizofrênico, acrescentam certos valores
2
Cf. DA MATTA (1986). à existência que não se oferecem aos constituídos diferen-
3
temente. O individuo sem apoio que corajosamente aceita
Cf. PICÓ (1999). as suas virtudes preferidas e inatas pode alcançar um curso
4
Esse tema do funcionamento da mente humana e de uma viável de comportamento prático que torna desnecessário o
unidade psíquica da humanidade será retomado por Lévi- ele refugiar-se num mundo privado que para si próprio criou.
Strauss no pensamento selvagem e por Geertz no capítulo Pode vir a atingir gradualmente uma atitude mais independen-
segundo da interpretação das culturas a partir de perspec- te e menos torturada perante os seus desvios, e construir so-
tivas distintas. bre essa atitude uma existência que funcione adequadamente
5
LÉVI-STRAUSS (1974) he dicho que la conducta desvi- (BENEDICT, 199-, p.298).
7
ente refleja un simbolismo autónomo, y, por lo tanto, no es “A energia à frente da evolução da cultura”. In: J.S.Kahn
patología. De otra forma, las autoras norte-americanas de (1975).
la escuela de “cultura y personalidad” han dicho que el nor- 8
Influência de Karl Polanyi (antropólogo húngaro neomar-
mal y el anormal son construcciones sociales, en ese sen- xista) – seminário proferido na década de 50 na Universi-
tido, cada sociedad produce sus tipos anormales predilectos. dade de Colúmbia.
Lévi-Strauss habla que: “El debate no tiene salida, al me- 9
Cf. KUPER (2002).
nos que si perciba que las dos ordenes no están en una
10
relación de causa y efecto, más que la formulación psicoló- As etnografias contemporâneas de Stanley Tambiah
gica es apenas una traducción, en el plan de psiquismo (1996) e de Veena Das (1995) sobre a Índia e o Paquistão
individual, de una estructura propiamente sociológica” e de HUTCHINSON (1995) sobre o Sudão Meridional, abor-
(MAUSS, 1974, p.7). dam a problemática do multiculturalismo dentro do Estado-
6
nação contemporâneo.
Se aprende reconhecer quanto o seu sofrimento foi devi-
11
do à falta de apoio num ethos tradicional, pode ir-se edu- “Essa ordenação (e desordenação) do mundo em ter-
cando no sentido de aceitar com menos sofrimento o seu mos simbólicos, essa cultura é a capacidade singular da
grau de diferença em relação àquele. Tanto as exageradas espécie humana” (SAHLINS, 1997: 41).
perturbações emocionais do maníaco-depressivo como o 12
Cf. GONÇALVES (2005/2006).

Sobre o conceito
de cultura
na Antropologia

Alicia Ferreira
Gonçalves

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