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A interpretação do paganismo céltico feita pela ficção

A temática central do projeto em questão é o estudo comparado da representação da


cultura, civilização e paganismo céltico a partir dos olhares apresentados pela
primeira temporada da série intitulada Britannia (2017) como fonte
contemporânea e de que forma os celtas eram era vistos pelos romanos, usando fontes
da Antiguidade, tais como Comentários à Guerra da Gália de Júlio César e Agricola de
Tácito. O período contemplado é o intervalo de meados do século I a.C até o fim do
século I d.C, período das invasões romanas à Britânia, território que hoje corresponde a
parte centro-sul da atual ilha da Grã-Brertanha.

A cultura e sociedade celta são objetos de estudo pouco trabalhados e pouco


explorados comparando com outras civilizações da antiguidade como os gregos por
exemplo, isso se dá principalmente ao fato da dificuldade em encontrar vestígios e
fontes históricas relevantes para a pesquisas deixadas pelos próprios celtas, a grande
maioria dos registros são de origem romana, como o Comentários à Guerra da Gália
(De Bello Gallico no original) escrito por Júlio César por volta de 50 a.C. Essa visão
majoritariamente romana dificulta uma interpretação feita com alteridade pelo
historiador. Porém, as civilizações do norte e do centro da Europa, no caso as várias
tribos celtas sejam elas os bretões, gauleses, escotos, belgas, gálatas, eburões,
trinovantes ou caledónios, vem ganhando mais atenção dentro de pesquisas acadêmicas
recentes.

O ponto de debate do atual projeto se pauta na análise de como a cultura e religião


céltica, em especial dos bretões, foram adaptadas na série de fantasia histórica intitulada
Britannia, escrita por Jez Butterworth no ano de 2017. Além disso, o projeto visa em
especial, a problematização de um estudo comparado entre a visão da figura do druida
mostrada na série, em contraste com a visão do druida por fontes de origem romana
como o próprio De Bello Gallico no sentido principal de entender as relações entre
Roma e os povos chamados “bárbaros” e algumas de suas incursões, e também,
principalmente o livro Agricola escrito pelo senador e historiador romano Caio Cornélio
Tacitus contando a história de seu sogro, Cneu Júlio Agrícola, o qual foi responsável
por boa parte da conquista romana da Britânia. Olivro, portanto, dará parâmetros para o
estudo político da Britânia Romana, de forma à caracterizar os sujeitos romanos e
bretões do período, mostrando suas interações e principalmente, dará parâmetros para
analisar a questão da visão romana acerca do “outro”, já que fragmentos do documento
mostram evidentemente a tensão que envolvia ambas a partes. Dessa forma visa-se
entender como a série interpreta, e posteriormente, mostra a visão romana sobre o
“outro”.

A série Britannia contou com a consultoria do historiador e arqueólogo britânico


Jonathan Stamp, responsável também, por ser consultor da série Roma da HBO. Stamp
tem especialidade na Antiguidade com ênfase na civilização romana, e isso deu a série
Britannia uma abordagem mais objetiva em torno de Roma e das legiões romanas, e isso
será essencial para visualizar a abordagem e interpretações feitas pelos roteiristas e
produtores da série em contraste com o que é dito por César e Tácito. Contudo, a série é
pouco objetiva e tem pouca fidelidade histórica, como dito pelo próprio criador da série,
James Richardson em entrevista na estreia mundial da MIPCOM em 2017. De acordo
com Richardson, a ideia da série surgiu após o mesmo ter lido o livro, A Short History
of Myth (Uma Curta História do Mito), escrito em 2005 pela autora inglesa Karen
Armstrong, este propõe uma análise antropológica de como os mitos influenciam na
vida das pessoas ao longo do percurso da humanidade. Após Richardson passar a ideia
abstrata de se construir um mito para o roteirista Jez Butterworth, a série começaria a
ser escrita pelo mesmo que admite seguir com pouca fidelidade histórica e dar mais
ênfase na criação dos mitos e na magia druídica.

Como já era esperado, levando em consideração as afirmativas feitas pelo criador e


roteirista da série, os personagens bretões (ou britanos) foram caracterizados de forma
mais abstrata e fantasiosa em oposição a caracterização mais precisa dos legionários
romanos. Fica claro apenas observando a estética da série que Jonathan Stamp levou seu
conhecimento das características estéticas e culturais romanas. Quando vemos o
figurino muito bem trabalhado e principalmente a postura dos romanos para com os
bretões. A série de forma geral é claramente exagerada nas representações metafísicas
da cultura bretã e também em sua caracterização. Porém, nos mais diversos momentos,
a mesma deixa clara a selvageria romana oposta a luta do povo livre bretão, uma ideia
totalmente oposta a que Tais Pagoto Bélo, citando Tacito, diz: “Tácito, ao descrever as
batalhas contra os bretões, chama-os de covardes e destaca que eles somente lutavam
por ganância e por rebeldia, enquanto os romanos lutavam por suas famílias”. Portanto,
contando com um especialista em Roma a série na maior parte do tempo mostra a visão
do povo bretão sendo oprimido e aniquilado com uma crueza fidedigna, a série não
apenas retrata bem Roma na forma de caracterizar estilisticamente seus personagens,
mas também, na forma como estes lidaram com outras civilizações como a da Britânia.

Além disso, um ponto interessante de análise é comparar as visões relatadas por Bélo
ao analisar Tácito: “Tácito nota que os bretões não reconheciam a distinção em relação
ao sexo de seus governantes, e ainda explica que ela poderia até liderar os brigantes para
queimar a colônia e bramir em campo, porém, por ser mulher, nunca teria sucesso em
batalha. No que diz respeito aos romanos, profere que lutavam como homens
destemidos, homens que nunca falhariam em relação à liberdade e que nunca se
tornariam penitentes.”. Já a série, tem como protagonistas duas druidas, ainda que em
diferentes momentos de sua iniciação, e de diferentes tribos, liderando os bretões contra
as ofensivas romanas. Isso mostra um certo grau de disparidade entre as duas
representações da cultura bretã, sendo estas a visão de Tácito que reconhecia que a
cultura bretã reconhecia de maneira diferente o sexo nas posições de poder da
sociedade, porém, argumentando que as mulheres ainda que em uma posição de
destaque nunca obteriam êxito em batalha, já a série coloca duas protagonistas
femininas para reforçar a ideia que a cultura céltica realmente coloca mulheres em
posições de poder e que sim elas podem vencer batalhas, como venceram na ofensiva de
Júlio César por exemplo, em 54 e 55 a.C.

Segundo Mônica Almeida Kornis, que embora trabalhe o diálogo metodológico de


História e Cinema, suas análises auxiliam nas reflexões da série, ao apontar: “[...] o
valor do filme para o historiador reside na sua capacidade de retratar uma cultura e
dirigir-se a uma grande audiência na condição de meio de controle social e de
transmissor da ideologia dominante da sociedade”. A autora expõe a análise da visão de
história e cinema dos historiadores ingleses, Anthony Aldgate, Jeffrey Richards e
Arthur Marwick. Estes autores por sua vez analisavam a relação da História e Cinema
como um fator político, um fator que está sujeito as relações sociais e de controle de
ideologia, e isso é útil para entendermos a finalidade do uso de tal momento histórico
para a realização de uma série nos dias de hoje, além de auxiliar em uma análise da
finalidades de tais representações envolvendo os bretões e a violência romana em tal
série. Portanto, essa afirmativa demarca o importante ponto de compreender qual a
relevância histórica da representação da cultura bretã na série Britannia e qual é o
intuito dessa representação no tempo presente. François Hartog diz que demarcar
alguém a partir do outro é enunciá-lo como diferente. Portanto é importante, para os fins
desta pesquisa comparativa, considerar também o discurso, como o estudo dos
argumentos e características empregados por Tácito para descrever os Bretões em
Agricola.

Logo no primeiro episódio da série Britannia é possível notar algumas apropriações


dos ritos célticos de iniciação e também ter um vislumbre da adaptação contemporânea
dos druidas, todas as representações, como antes mencionado, tem uma carga de
exagero principalmente na maquiagem dos druidas em si, dando um aspecto quase
inumano. Porém, já logo no mesmo primeiro episódio é possível notar um fator
interessante. Bélo analisando uma passagem de Tácito diz, “Os druidas foram narrados
com suas mãos levantadas para o céu, gritando terríveis maldições. O general romano
diz aos soldados para não temerem um bando de mulheres fanáticas. É mencionado que
os bosques onde os habitantes de Mona devotavam suas superstições, bem como seus
altares e seus deuses, foram demolidos com a intenção de acabar com a religião dos
nativos.”, há uma cena muito parecida quase idêntica, porém na cena original os druidas
têm pouco impacto pois, na série, estes são retratados como sendo reclusos e portanto
pouco aparecem em contato com o resto da tribo, mas ainda assim boa parte deles é
dizimada, nos mesmos moldes que o texto de Tácito descreve.

Portanto é passível de análise as motivações dos ataques romanos focando o


extermínio da cultura e religião céltica. Levando em consideração o fato de que Roma
no período ainda era politeísta (Roma se torna cristã em 382 d.C), quais eram as
motivações de ataques tão centralizados e massacres contra outra cultura pagã? Como
Bélo também nota da obra de Aldhouse-Green, “abolindo os valores básicos dos
bretões, como a religião, seria mais fácil e consistente a introdução dos valores ligados
ao “tornar-se romano”. Essa questão estava também associada à liberdade que os
druidas tinham em se locomover de uma tribo a outra, levando informações e,
sobretudo, a imposição religiosa romana de ostentação de Cláudio, que foi proclamado
um deus por Roma.”. Por conseguinte, é interessante notar a maneira na qual tais
relações de poder impostas por Roma e suas motivações são exploradas na série, em
qual contexto e com qual finalidade.

Com relação a metodologia utilizada, para estruturar um estudo comparativo das


fontes documentais de períodos tão distintos e com visões e finalidades tão divergentes,
as ideias de Marcel Detienne em seu livro Comparar o Incomparável serão de
fundamental importância, visto que o mesmo propõe um estudo histórico que elabora
comparações que se pautem em recortes espaciais e temporais considerados diferentes.
História e Cinema um debate Metodológico da autora Monica Almeida Kornis que por
sua vez fundamentará a análise de uma obra audiovisual no seu cerne e como realizá-la
vislumbrando quais perspectivas. Já para trabalhar análise dos discursos de alteridade e
visão do “outro” o método de Hartog na obra Espelho de Heródoto Ensaio sobre a
Representação do Outro é de fundamental importância, ainda que o contexto, espaço e
tempo sejam diferentes, uma vez que Hartog trabalha com a visão dos Gregos acerca
dos outros povos tendo o texto de Heródoto como fonte central. Ainda assim, o método
de análise do mesmo é fundamental para entender a questão do “outro”.

As obras teóricas que serão utilizadas para proposta de análise são, Entre Práticas e
Representações, livro escrito pelo autor Roger Chartier, e no que diz respeito às
questões da construção da pesquisa, o texto intitulado “Reflexões sobre o
procedimento histórico”, de Adalberto Marson no livro “Repensando a História”,
organizado por Marcos A. da Silva, que conta com a participação de outros
historiadores, servirá para suscitar questionamentos ao objeto da pesquisa,
sobretudo pensando as fontes documentais também como sujeitos, que
determinam, pelo seu discurso, os pontos que fundamentam olhares da cultura e
paganismo céltico, seja em uma série contemporânea, seja entre os romanos na
antiguidade.

Para auxiliar nas discussões sobre o contexto histórico, bem como o recorte
espacial e temporal, o projeto visa vincular pesquisas com obras tais como de Joan P.
Alcock e seu livro Uma Breve História da Britânia Romana Conquista e Civilização;
Peter Salway e seu livro Britânia Romana Uma Curta Introdução. Tais obras concernem
em contextualizar o momento histórico da conquista romana, demarcando os principais
acontecimentos e abordando brevemente traços culturais dos bretões. Já para o contexto
da cultura, sociedade e religião céltica e principalmente dos druidas em si obras como a
de João Lupi e seu texto Os Druidas; Dominique Vieira Coelho dos Santos com seu
texto Forma e Narrativa- uma reflexão sobre a problemática das periodizações para a
escrita de uma história dos celtas; Raimund Karl com seu texto Os celtas na
Antiguidade: cruzando a divisão entre História Antiga e Arqueologia. Além destas obras
será também utilizado o texto de Tais Pagoto Bélo Britannia: violência, poder e contato,
com a finalidade de compreender as vicissitudes da relação entre Roma durante a
conquista da Bretanha e a civilização bretã, dando ênfase principalmente na questão do
uso da violência nos conflitos, e é claro um estudo para compreender suas motivações.

O objetivo central do trabalho é estabelecer uma análise comparativa acerca das


representações e apropriações feitas do paganismo céltico, centrando visão do mesmo
pela sociedade romana do período da Antiguidade em comparação com a visão romana
descrita na série Britannia, compreendendo sobretudo as motivações das perseguições
religiosas romanas e os motivos de sua representação nos tempos atuais por meio de
adaptações fictícias de projetos audiovisuais como o da série.

Espera-se um estudo aprofundado no período da antiguidade, mais precisamente no


século I d.C e em aspectos socioculturais do período em questão, além do próprio
presente, para compreender as motivações de tais apropriações. Visa-se compreender a
fundo as relações sociais e disputas de poder simbólico que permeavam Roma e
Bretanha, para dessa forma ser possível realizar uma análise das particularidades da
visão romana principalmente acerca da cultura estrangeira e as legitimações para o uso
da força na dominação romana. Propõe, assim, uma análise cujo foco centraliza nas
relações de intermédio entra Roma e Britânia e na visão romana acerca do “outro”,
além da busca pela compreensão do propósito e de que maneira são feitas tais
apropriações na contemporaneidade.

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