Você está na página 1de 8

Iniqüidade e saúde:

a determinação
RITA BARRADAS
BARATA é professora do
social do processo
saúde-doença
Departamento de
Medicina Social da
Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de
São Paulo e pesquisadora
do CNPq.

RITA BARRADAS BARATA

O tema das desigualdades sociais e suas relações com

o nível de saúde populacional não é novo. Desde

as primeiras investigações epidemiológicas, ainda


no século XIX, surtos epidêmicos, doenças ocupa-

cionais, mortalidade infantil e outros problemas de saúde foram

estudados de modo a evidenciar os diferenciais existentes entre os


grupos sociais. Os trabalhos clássicos de Engels sobre as condições

da classe trabalhadora inglesa, de Snow sobre as epidemias de


cólera em Londres, de Louis sobre os trabalhadores de tecelagens

na França, de Virchow sobre as epidemias de tifo nas minas da


Silésia tratavam de relacionar as condições de vida e a situação de

1 G. Rosen, Da Polícia Médica saúde ressaltando o excesso de risco de adoecer e morrer obser-
à Medicina Social, Rio de Ja-
neiro, Graal, 1979. vado entre as camadas mais pobres da população (1).
2 N. Krieger, E. Fee, “Measuring
Social Inequalitites in Health Nos Estados Unidos, no início do século XX, os trabalhos de
in the United States: a Historical
Review, 1900 – 1950”, in
International Journal of Health
sanitaristas como Warren e Sydenstricker (2) apontavam diferen-
Service 26(3), 1996, pp. 391-
418. ças acentuadas nas condições de saúde de famílias pobres e ricas,

138 REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001



ae
DesigualdadeemSaúde não apenas no padrão de mortalidade mas também no registro de

morbidade. Estudos realizados no período da Depressão demons-


traram que o impacto sobre a saúde foi maior entre as famílias que

tiveram sua situação socioeconômica deteriorada em comparação


com famílias que já eram pobres anteriormente, sugerindo assim

a importância não apenas da pobreza absoluta mas também dos


impactos negativos da pobreza relativa.

Na América Latina, a produção sobre desigualdades sociais e

saúde é mais recente, correspondendo à segunda metade do sé-

culo XX, incluindo tanto investigações relativas à pobreza e a outros


indicadores de nível socioeconômico em abordagens predomi-

nantemente funcionalistas quanto investigações sobre desigualda-


des baseadas no conceito de classe social e em abordagens mate-

rialistas históricas (3).

Durante os anos 80, entretanto, na vigência do movimento


que se convencionou chamar de neoliberalismo, o predomínio da

desregulação dos mercados financeiros, a globalização econômica


e o conservadorismo político reduziram o interesse dos acadêmi-

cos e dos tomadores de decisão, dos países desenvolvidos, nas

questões relativas à eqüidade socioeconômica, e até mesmo as


conseqüências da pobreza sobre a saúde e o bem-estar foram

retiradas da agenda política (4).

Na última década o interesse no estudo das relações entre


situação socioeconômica e saúde tem ressurgido, nos países de-

senvolvidos, tanto nos meios acadêmicos quanto na agenda polí-


3 N. Almeida Filho, Desigualda-
tica, com especial ênfase na abordagem das desigualdades sociais. des em Saúde Segundo Con-
dições de Vida: Análise da
Produção Científica na Améri-
Vários autores atribuem este interesse renovado às conseqüências ca Latina e Caribe, PAHO,
1998 (mimeo.).
deletérias que o processo de globalização teve sobre as condições
4. N. Moss, “Socioeconomic
Disparities in Health in the US:
de vida e a situação de saúde dos povos ocidentais (5). Inicialmente an Agenda for Action”, in So-
cial Science & Medicine 51,
observa-se o ressurgimento do tema da pobreza e as análises 2000, pp. 1.627-38.
5 Idem, ibidem; D. Coburn,
comparativas entre ricos e pobres sob a nova ótica da exclusão “Income Inequality, Social
Cohesion and the Health Status
of Populations: the Role of Neo-
social. Paulatinamente, ganham espaço as investigações sobre as liberalism”, in Social Science
& Medicine 51, 2000, pp.
desigualdades sociais na perspectiva da iniqüidade. 133-46.

REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001 139


mente determinado pela posição que os in-
O QUE SÃO AS DESIGUALDADES divíduos ocupam na organização social.
O conceito de eqüidade, por sua vez,
SOCIAIS EM SAÚDE? inclui a idéia de necessidade, ou seja, par-
te-se do princípio de que os indivíduos
Há diferentes concepções acerca das possuem diferentes necessidades e que,
desigualdades em saúde. Muitas vezes os portanto, a simples partilha igualitária dos
termos diferenciais de saúde e desigualda- recursos não atenderia, obrigatoriamente,
des em saúde são usados como sinônimos, a essas necessidades. A impossibilidade de
o mesmo ocorrendo entre os termos desi- realizar as necessidades seria, então, vista
gualdade e iniqüidade. como injusta ou iniqüidade (8).
Alguns autores, entretanto, consideram Uma das conceituações mais utilizadas
necessário estabelecer maior precisão é aquela proposta por Margareth Whitehead
conceitual nos estudos de condições de na qual a eqüidade em saúde é definida da
vida e situação de saúde, tendo em vista seguinte maneira: “[…] idealmente todos
que as abordagens teóricas e práticas po- deveriam ter uma oportunidade justa para
dem ser diferentes a partir de diferentes atingir seu pleno potencial de saúde e nin-
perspectivas. guém deveria apresentar qualquer desvan-
Breilh (6) propõe três conceitos distin- tagem se isto pudesse ser evitado” (9).
tos e complementares para tratar das diver- Pedro Luís Castellanos (10) afirma que
sidades existentes em uma população. O nem toda diferença na situação de saúde
conceito de diferença se aplicaria às varia- pode ser considerada iníqua, mas toda di-
ções observadas na distribuição das doen- ferença ou desigualdade redutível, vincu-
ças em populações; o conceito de distinção ladas às condições heterogêneas de vida,
remeteria às práticas sociais cotidianas constituem iniqüidades. Portanto, as desi-
constitutivas das identidades individuais e, gualdades sociais em saúde são aquelas
finalmente, o conceito de desigualdades diferenças produzidas pela inserção social
significaria as diferenças produzidas no pro- dos indivíduos e que estão relacionadas com
cesso social em decorrência das diferentes a repartição do poder e da propriedade. Teo-
posições de posse e poder dos grupos so- ricamente, em sociedades nas quais os va-
ciais em uma dada formação histórica. lores de cooperação e solidariedade fos-
Silva e Almeida Filho (7) propõem uma sem dominantes, tais diferenças poderiam
série um pouco diferente desta incluindo as ter valor positivo e produtor de saúde, ao
diferentes dimensões do processo saúde- passo que, nas sociedades em que predo-
6 J. Breilh, La Inequidad y la Pers-
pectiva de los sin Poder :
doença. O conceito diferença se aplica à minam a exploração e a dominação, essas
Construcción de lo Social y del dimensão individual. O conceito diversi- diferenças são necessariamente negativas
Género. Cuerpos, Diferencias
y Desigualdades, Bogotá, Utó- dade se refere à espécie sinalizando as va- e produtoras de doença (11).
pica Ediciones, 1998. riações entre grupos de indivíduos. O con-
7 L.M.V. Silva e N. Almeida Fi- ceito distinção remete à dimensão simbó-
lho, Distinção, Diferença, Desi-
gualdade, Iniqüidade e a Saú- lica. O conceito desigualdade incorpora a
DIFERENÇAS ABSOLUTAS E
de : uma Análise Semântica,
dimensão da justiça, e o conceito de iniqüi-
Salvador, 2000 (mimeo.).
8 Centre For Health Equity,
dade adquire sentido na dimensão política
DIFERENÇAS RELATIVAS
Training, Research and de repartição das riquezas na sociedade.
Evaluation, “What is Equity?”,
Newsletter 1, April/2000. Apesar de o conceito de igualdade signi- A questão das desigualdades sociais em
9 Idem, ibidem. ficar a partilha de igual quantidade de bens saúde pode ser abordada a partir da verifi-
10 P. L. Castellanos, “Epidemio- ou de saúde para cada um, o conceito de cação de diferenças absolutas nas condi-
logia, Saúde Pública, Situação desigualdade incorpora, para a maioria dos ções de vida de diferentes populações ou
de Saúde e Condições de Vida.
Considerações Conceituais”, in autores, a idéia de uma repartição desigual através das diferenças relativas entre elas.
R. B. Barata (org.), Condições
de Vida e Situação de Saúde,
produzida pelo próprio processo social, isto O primeiro enfoque está presente nos
Rio de Janeiro, Abrasco, 1997. é, a percepção de que o acesso a bens e ser- inúmeros estudos sobre a pobreza, nos quais
11 J. Breilh, op. cit. viços e a um dado nível de saúde está forte- a situação de saúde é diretamente atribuída

140 REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001


à privação (Figura 1). Parte considerável FIGURA 1
da população mundial está sujeita a um nível Desigualdades em saúde entre “pobres e ricos”
de pobreza que impede o atendimento às
necessidades elementares. O Banco Mun-
dial estabeleceu como parâmetro para a TAXA DE POBREZA E MORTALIDADE INFANTIL,
pobreza mundial o rendimento igual ou ESTADO DO MARANHÃO E SÃO PAULO, 1998
inferior a um dólar americano por dia, iden-
Estado Taxa de pobreza* Mortalidade Infantil**
tificando assim a existência de 1.300 mi-
lhões de pessoas pobres nos continentes Maranhão 60% 55,7
asiático e africano (12). São Paulo 12% 19,8
Vários países estabelecem linhas de
pobreza a partir de uma relação entre ren- * % da população com renda familiar per capita mensal de
até 1/2 salário mínimo
dimentos e despesas básicas, utilizada para
** óbitos em menores de 1 ano por 1.000 nascidos vivos
permitir comparações internas. Nos Esta-
Fonte: IDB 2000, RIPSA
dos Unidos a oficina responsável pelo Cen-
so Demográfico estabelece como valor para
a linha de pobreza uma renda familiar anu- milada. Já a aceitação da associação com
al de US$ 16.000,00 para uma família com desigualdade relativa é mais difícil de ser
quatro membros. No Reino Unido o valor interpretada e aceita. Pensar a partir de re-
correspondente é definido com 1/2 salário lações entre grupos ao invés de isolar efei-
mínimo per capita (13). Este mesmo valor tos sobre indivíduos requer mudança de
tem sido adotado no Brasil para estabele- perspectiva e principalmente de referencial
cer o ponto de corte (14). teórico e metodológico.
A institucionalização da linha de po-
breza tornou possível monitorar tendências
sociais e de saúde entre pobres e não-po- DETERMINANTES DE SAÚDE E
bres, seja na comparação entre países ou
dentro dos países (15). Entretanto, ocorre ACESSO A SERVIÇOS DE SAÚDE
um paradoxo: nem sempre os países mais
ricos são os mais saudáveis, ou apresentam Os enfoques baseados na oposição entre
os melhores níveis de saúde (16). As desi- pobreza e riqueza tendem a interpretar as 12 D. Gwatkin, “Reducing Health
gualdades assumem a forma de diferenci- relações entre o nível socioeconômico e o Inequalities in Developing
Countries”, in Oxford Textbook
ais relativos entre indivíduos situados em nível de saúde como decorrentes principal- of Public Health , Oxford
diferentes posições na organização social e mente da dificuldade de acesso dos pobres University Press, fourth edition,
2000.
se manifestam tanto nas sociedades desen- aos bens e serviços, entre os quais os de saúde.
13 Idem, ibidem.
volvidas quanto naquelas em desenvolvi- Nesta perspectiva de análise as desigualda-
14 RIPSA – Rede Interagencial de
mento ou não-desenvolvidas. des são vistas como se fossem produzidas, Informações para a Saúde, In-
Segundo Wilkinson (17) a saúde é for- principalmente, na esfera de consumo. dicadores e Dados Básicos
para a Saúde, Brasília, 2000.
temente afetada pela posição social dos in- O nível de riqueza determina a possibi-
15 N. Moss, op. cit.
divíduos. No mundo desenvolvido os paí- lidade de consumo ou a privação de bens
16 R. G. Wilkinson, Unhealthy
ses com melhor nível de saúde são os mais materiais essenciais para a promoção, ma- Societies. London, Routtledge,
1996.
igualitários em termos de distribuição da nutenção ou recuperação da saúde e tam-
riqueza. Supostamente, nos países com me- bém o acesso e a utilização de serviços de 17 Idem, ibidem; idem, “Relação
Internacional entre Eqüidade
nores desigualdades de renda a organiza- saúde. Deste modo, o nível de riqueza influ- de Renda e Expectativa de
Vida”, in R. B. Barata et. al.
ção social tende a ser mais coesa (18). encia, diretamente, a situação de saúde (19). (orgs.), Eqüidade e Saúde:
A relação entre pobreza absoluta e saú- Os enfoques centrados nas diferenças Contribuições da Epidemio-
logia, Rio de Janeiro, Fiocruz/
de é mais fácil de ser aceita tanto pelos relativas tendem a interpretar as desigualda- Abrasco, 1997.
pesquisadores quanto pela própria popula- des em saúde como decorrentes da própria 18 D. Coburn, op. cit.; R. G.
Wilkinson, Eqüidade e Saúde:
ção, pois a relação direta e imediata entre organização social, ou seja, como resultado Contribuições da
privação de necessidades básicas e saúde dos processos de produção da vida material Epidemiologia, op. cit.
está suficientemente demonstrada e assi- e não-material de uma sociedade. Estudos 19 N. Moss, op. cit.

REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001 141


ingleses têm demonstrado que a posição dos víduos como excluídos do processo de re-
indivíduos na organização social é produção social, ou seja, destituídos de
determinante da situação de saúde indepen- qualquer função relevante para o capital.
dentemente do acesso a serviços de saúde e Assim, a categoria analítica exclusão so-
de hábitos individuais saudáveis (20). cial permite pensar parcelas crescentes da
A existência de um sistema nacional de população que estão completamente à
saúde é condição necessária, porém não margem dos processos produtivos, e que só
suficiente, para melhorar a saúde da popu- poderão ser incluídas a partir de outra pers-
lação e reduzir as desigualdades em saúde. pectiva de análise que não valorize apenas
Como os processos que determinam a saú- o papel produtivo dos indivíduos.
de e a doença muitas vezes ocorrem fora do
sistema de saúde não é possível esperar que
através dele possam ser corrigidas as desi-
gualdades. Dito de outro modo, as desi- DESIGUALDADES SOCIAIS
gualdades criadas na esfera da produção
não podem ser completamente sanadas atra- E DIFERENÇAS INDIVIDUAIS
vés da esfera de distribuição e consumo.
Estas afirmações não invalidam os es- Alguns autores tentam reduzir as desi-
forços feitos para ampliar o acesso a servi- gualdades em saúde a suas dimensões pura-
ços de saúde por parte das parcelas normal- mente individuais, desconsiderando o fato
mente excluídas de seus benefícios, pois ineludível de que o homem não existe a não
habitualmente ocorre uma soma de efeitos ser em sociedade. Feinstein, citado por
deletérios relacionados com a reprodução Rosenberg e Wilson (21), reduz as desigual-
social como um todo. Não poderia ser de dades em saúde às diferenças decorrentes de
outra maneira, visto que a distribuição e o características individuais ou a diferentes
consumo estão estruturalmente vinculados estágios da vida, como se não existissem
20 Idem, ibidem. às formas de produção social e ambas as outros determinantes do processo saúde-
21 M. W. Rosenberg e K. etapas conformam o processo de reprodu- doença além dos estritamente biológicos.
Wilson,“Gender, Poverty and
Location: How Much Difference ção social. Murray e colaboradores (22) concei-
do They Make in the Geography Só a partir de um enfoque estrutural é tuam a desigualdade em saúde como a me-
of Health Inequalities?”, in So-
cial Sicence & Medicine 51, possível compreender por que as desigual- dida da variação no estado de saúde entre
2000, pp. 275-87.
dades sociais se ampliaram em países que indivíduos em uma população e argumen-
22 C. J. L. Murray; E. E. Gakidou;
J. Frenk, “Health Inequalities and possuem sistemas nacionais de saúde gra- tam que ao adotar esta definição estão tor-
Social Group Differences: What tuitos, universais e de qualidade. nando a questão positiva e, portanto, passí-
Should We Measure?”, in
Bulletin of the World Health O conceito de exclusão social decorre vel de investigação científica, ao despi-la
Organization 77(7), 1999, pp.
537-43.
desse tipo de compreensão, visto que con- do caráter normativo implícito ao conceito
sidera para além da pobreza as possibilida- de eqüidade. Além disso, consideram que
23 M. W. Rosenberg e K. Wilson,
op. cit.; P. Braveman; N. des dos indivíduos a partir de sua inserção/ este tipo de medida é o complemento natu-
Krieger; J. Lynch, “Health
Inequalities and Social não-inserção na estrutura de reprodução ral às taxas ou medidas do nível médio de
Inequalities in Health”, in Bulletin social. Durante muito tempo, sob a influ- saúde de uma população. Novamente, está
of the World Health
Organization 78(2), 2000, pp. ência da teoria de Marx sobre a população subentendida a noção de que a população é
232-4.
excedente, ou exército industrial de reser- apenas um conjunto relativamente hetero-
24 D. Gwatkin, op. cit. va, considerou-se a situação de extrema gêneo de indivíduos e que entre o conjunto
25 C. Hertzman e A. Siddiqi, pobreza como funcionalmente ligada à ma- e as partes não há nenhuma mediação. A
“Health and Rapid Economic
Changes in the Late Twentieth nutenção da acumulação capitalista na abordagem social das desigualdades é con-
Century”, in Social Science &
Medicine 51, 2000, pp. 809- medida em que tais indivíduos contribuí- siderada pouco científica e os autores che-
19. am para manter baixa a remuneração do gam a questionar se variáveis sociais tais
26 V. Navarro e L. Shi, “The trabalho ampliando a mais-valia relativa. como a posição social realmente existem!
Political Context of Social
Inequalities and Health”, in Com as transformações dos mecanismos A maioria dos autores, entretanto, con-
International Journal of Health de acumulação, na fase do capitalismo fi- sidera que estudar as desigualdades em
Services 31(1), 2001, pp. 1-
21. nanceiro, passou-se a perceber estes indi- saúde significa levar em conta, sistemática

142 REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001


e explicitamente, as relações entre os FIGURA 2
determinantes sociais e a saúde (23). Desigualdades relativas em saúde
Gwatkin (24) afirma que no estudo das de-
sigualdades em saúde as dimensões de in- MORTALIDADE INFANTIL EM PELOTAS SEGUNDO A RENDA
teresse são a econômica, a social, a de gê- FAMILIAR PER CAPITA, 1993

nero e de etnia (Figuras 2, 3 e 4). Estrato Mortalidade Infantil Risco Relativo


Hertzman e Siddiqi (25) propõem que
< 1 sm 33,0 6,6
as desigualdades em saúde sejam estuda-
1-2 sm 32,0 6,4
das em três dimensões articuladas. No ní-
3-5 sm 10,0 2,0
vel macrossocial seriam considerados os
6-10 sm 10,0 2,0
fatores relativos ao Estado, quais sejam a
> 10 sm 5,0 1,0
riqueza nacional, a distribuição da renda, a
urbanização e industrialização, o nível de Fonte: OPS/OMS, Disparidades de Salud en America Latina y el Caribe División
emprego e a estrutura de oportunidades para de Salud y Desarrollo Humano, Washington, 1999.
suportar a saúde e o bem-estar da popula-
ção. No nível intermediário seriam consi-
FIGURA 3
derados os fatores relativos à organização
social, tais como coesão, confiança, capa- Desigualdades relativas a relações de gênero
cidade de resposta das instituições, que fa-
cilitam ou dificultam a solidariedade e a PROBABILIDADE DE MORTE PREMATURA 15-59 ANOS POR SEXO E
cooperação. No nível microssocial seriam NÍVEL DE POBREZA,13 PAÍSES DA AMÉRICA LATINA E CARIBE, 1994
analisadas as redes sociais de suporte fami-
liar e pessoal.
Navarro e Shi (26) destacam a impor-
tância de analisar também os aspectos po-
líticos que têm sido menos valorizados nos
estudos de desigualdades. Eles demons-
tram, através de dados empíricos, que os
países europeus que tiveram por períodos
mais longos governos trabalhistas ou so-
cial-democratas apresentam menores desi-
gualdades em saúde do que aqueles cujos
governos foram principalmente democra-
tas cristãos ou liberais. Os autores atribu- Fonte: OPS/OMS, Disparidades de Salud en America Latina y el Caribe División
em estes resultados ao maior interesse dos de Salud y Desarrollo Humano, Washington, 1999.
partidos trabalhistas e social-democratas
em instaurar políticas redistributivas.
FIGURA 4
Pensando o processo saúde-doença
como a resultante de um processo comple- Desigualdades relativas a etnia
xo de determinações e mediações entre as
MORTALIDADE INFANTIL SEGUNDO GRUPO ÉTNICO
diferentes dimensões da realidade é possí-
E ESCOLARIDADE DA MÃE, BRASIL, 1990
vel compreender as diversas dimensões pos-
síveis na abordagem do problema. Assim, Grupo Analfabetas Mais de oito anos
de escolaridade
a abordagem política proposta por Navarro,
por exemplo, refere-se a um nível mais taxa rr taxa rr
distal de determinação, ou seja, uma di- Negros 120 2,1 82 1,4
mensão abrangente porém mais genérica, a Mulatos 110 1,9 70 1,2
partir da qual outros planos de mediação Brancos 95 1,6 57 1,0
irão intervir.
Fonte: OPS/OMS, Disparidades de Salud en America Latina y el Caribe División
O plano de mediação seguinte, entre o
de Salud y Desarrollo Humano, Washington, 1999.
sistema político e o perfil de saúde-doença,

REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001 143


será a organização socioeconômica exis- mente pelo Banco Mundial e posteriormen-
tente em uma dada formação social. Esta te também pelos organismos internacionais
dimensão estará subordinada à determina- de saúde como a Organização Mundial
ção política e funcionará como mediadora (OMS).
para outras dimensões mais particulares tais As políticas de focalização partem do
como as etnias ou as relações de gênero princípio que, dada a escassez de recursos,
(27). Estas, por sua vez, sofrerão a determi- apenas os grupos mais carentes deveriam
nação das dimensões anteriores e funcio- ser atendidos através de políticas públicas,
narão como mediadoras para processos ou seja, que os recursos deveriam ser cana-
microssociais, tais como as relações fami- lizados com exclusividade para os pobres.
liares. A dimensão mais proximal será dada Estas propostas podem ser operacionalizadas
pelas características fenotípicas dos indi- através de diferentes estratégias: a identifi-
víduos resultantes das interações entre ca- cação dos indivíduos classificados como
racterísticas genotípicas e ambiente no qual pobres a partir de determinados critérios; a
o indivíduo vive. identificação de áreas geográficas com con-
Cada uma dessas dimensões pode ser centração de pobreza; a seleção de determi-
privilegiada pelos pesquisadores no estu- nados problemas de saúde identificados
do das desigualdades sociais, sem que esta como próprios da pobreza (28).
escolha signifique a negação das outras di- Para a prevenção dos efeitos catastrófi-
mensões. cos da doença sobre as famílias pobres o
Banco Mundial propõe que os sistemas
nacionais de saúde adotem o pré-pagamento
POLÍTICAS PARA A REDUÇÃO DAS como forma de financiamento, isto é, ins-
tituam seguros-saúde subvencionados para
DESIGUALDADES os pobres. Estes seguros, evidentemente,
não teriam cobertura integral, estabelecen-
As políticas propostas para o enfren- do um conjunto de procedimentos básicos
tamento das desigualdades sociais em saú- ou uma “cesta básica” de serviços. Estes
de variam em função da compreensão que procedimentos incluiriam algumas ativida-
se tenha do problema. De maneira geral des de assistência primária e, eventualmen-
podem ser identificadas duas abordagens te, secundária, dependendo do orçamento
principais: propostas que visam à redução da saúde (29).
da pobreza, que se articulam com a valori- Ambas as estratégias apresentam pro-
zação das diferenças absolutas; e propos- blemas em sua aplicação a países não-de-
tas que visam ao atendimento das necessi- senvolvidos onde a maioria da população
dades, vinculadas à noção de eqüidade. tem dificuldades concretas para custear sua
Ambas pressupõem que as metas sejam assistência à saúde, seja através de paga-
estabelecidas em termos distributivos ao mento direto pelos serviços utilizados, seja
invés da adoção de metas globais. através de pré-pagamento a seguradoras.
Se a questão das desigualdades for to- Quando a maioria da população tem renda
mada da perspectiva da oposição entre po- insuficiente para custear sua própria assis-
bres e ricos a tendência será formular polí- tência, ou seja, mostra-se incapaz de “ir ao
ticas de redução da pobreza ou de redução mercado” para obter os bens e serviços de
das conseqüências financeiras da doença. saúde, várias questões permanecem sem
Duas estratégias principais têm sido respostas. Que parcela da população deve
caudatárias desta abordagem: as propostas receber o benefício do subsídio?
27 D. Gwatkin, op. cit.; OPS/
OMS, Disparidades de Salud de focalização e as reformas setoriais que Como definir que atividades são bási-
en America Latina y el Caribe
División de Salud y Desarrollo têm como principal preocupação prevenir cas para a saúde e, portanto, deveriam ter
Humano, Washington, 1999. os efeitos catastróficos da ocorrência de seu consumo garantido? Com que argumen-
28 D. Gwatkin, op. cit. doenças sobre a renda familiar. Ambas têm tos defender a inclusão na “cesta básica”
29 Idem, ibidem. sido difundidas na América Latina inicial- das vacinas contra o sarampo e a polio-

144 REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001


mielite e a exclusão das vacinas contra genérica se acoplariam atividades especi-
hemofilus, a hepatite e a raiva? Afinal, o almente desenhadas para reduzir as desi-
que pode ser considerado básico no atendi- gualdades ou compensá-las. Um bom exem-
mento em saúde? plo deste tipo de estratégia é o controle das
Se a saúde é vista como necessidade doenças evitáveis por vacinação. Há um
humana essencial, beneficiária do estatuto programa nacional de imunizações que
de direito social, então sua garantia, atra- estabelece o calendário a ser seguido por
vés de procedimentos que visem à promo- todas as crianças menores de um ano. En-
ção, à prevenção, à manutenção e à recupe- tretanto, sabendo-se que os grupos social-
ração, deverá ser objeto de políticas públi- mente marginalizados têm maior dificul-
cas universais e igualitárias assumidas dade em utilizar serviços de saúde, ainda
como responsabilidade ética por toda a que os mesmos sejam públicos e gratuitos,
sociedade (30). instituíram-se os “dias nacionais de vaci-
Compreender a questão das desigual- nação” nos quais a estratégia de campanha,
dades em saúde a partir dessa perspectiva dirigida aos grupos que não podem freqüen-
implica adotar propostas que se baseiem tar serviços rotineiros, é utilizada para
no princípio da eqüidade, isto é, que levem ampliação da cobertura.
em conta as necessidades dos grupos soci-
ais e dos indivíduos e, a partir desta consi-
deração, elaborem estratégias compensa- COMPROMISSO ÉTICO
tórias. Tais estratégias, para serem coeren-
tes com os princípios teóricos anteriormente A questão das desigualdades sociais e
expostos, devem considerar que as neces- das iniqüidades em saúde, para além de uma
sidades são diferentes e portanto requerem preocupação teórica e prática, constitui-se
recursos também diferenciados para sua em um imperativo ético. Ao classificar
satisfação. como injustas as diferenças no perfil
Para atender a estas exigências as políti- epidemiológico dos diferentes grupos so-
cas de saúde deverão ter algumas caracterís- ciais, a necessidade de reparação da iniqüi-
ticas. Para preservar o direito de todos à saú- dade se coloca imediatamente.
de elas devem ser universais e buscar o aten- Como signatária da Declaração Univer-
dimento integral das necessidades sem sal dos Direitos Humanos a sociedade bra-
classificá-las segundo o tipo de assistência sileira deve respeitar e buscar concretizar
necessária para atendê-las. Para basear-se nas na prática a afirmação de que “todos os
necessidades da população os sistemas de- seres humanos nascem livres e iguais em
vem ser locais, isto é, organizar-se por terri- dignidade e em direitos. Dotados de razão
tório, e finalmente, deve haver a participação e de consciência, devem agir uns para com
dos grupos sociais organizados nas defini- os outros em espírito de fraternidade” (ar-
ções das diretrizes da política de saúde. tigo 1o) e, que “todo indivíduo tem direito
Dentro de uma política de saúde com à vida, à liberdade e à segurança pessoal”
estas características caberia desenvolver (artigo 3o).
propostas de discriminação positiva visan- Segundo Marilena Chauí (31), “graças
do incluir ativamente, nos benefícios, aque- aos direitos, os desiguais conquistam a
les grupos socialmente em desvantagem. igualdade, entrando no espaço político para
Diferentemente das propostas de focali- reivindicar a participação nos direitos exis-
30 A. C. Laurell, “Impacto das Po-
zação, a discriminação positiva visa tratar tentes e sobretudo para criar novos direi- líticas Sociais e Econômicas
nos Perfis Epidemiológicos”, in
os indivíduos de acordo com as suas neces- tos”. Portanto, a tarefa de superação das R. B. Barata et. al. (orgs.), Eqüi-
sidades. Uma vez que as ações de massa iniqüidades em saúde passa necessariamen- dade e Saúde: Contribuições
da Epidemiologia, Rio de Ja-
podem não satisfazer às necessidades des- te pela atuação política de todos os mem- neiro, Fiocruz/Abrasco,
1997.
ses grupos, será necessário estabelecer pro- bros da sociedade, mas principalmente
postas especificamente voltadas para gru- daqueles cujos direitos mais fundamentais
pos vulneráveis. Assim, a uma política estão constantemente sendo negados.

REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 138-145, setembro/novembro 2001 145

Você também pode gostar