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Currículos praticados:
entre a regulação e a emancipação
Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação Inês Barbosa de Oliveira
Inês Barbosa de Oliveira

Revisão de provas
Alexandre Arb~x Valadares
LUll1LUlUO jJiaULaúuo.
Capa
Paulo Verardo entre a regulação e a emancipação
Gerência de produção
Maria Gabriela Delgado

2" edição

CIp.BRASIt.Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação I


. Inês Barbosa de Oliveira. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, 2. ed.
152 p.; 14 x 21 cm
ISBN 85-7490-328-0
Inclui bibliografia
I. Educação. 11.Multiculturalismo. UI. Cotidiano escolar.
-s-
DP&~
editora
C>DP&A editora Ltda.

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer


meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico,
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(Lei 9.61~ - Lei dos Direitos Autorais-
arts. 122, 123, 124 e 126).

À minha amiga Nilda Alves, para quem qualquer palavra é


empobrecedora, qualquer agradecimento pouco, qualquer
homenagem insuficiente, pelo tanto que representa, como
OP&A editora incentivadora e companheira, mestra e conselheira, nesse trajeto
Rua Joaquim Silva, 98 - 22 andar - Lapa que venho tentando seguir, sempre com "olhos e coração bem
abertos", atentos à sua profunda sabedoria solidária.
CEP 20.241-110 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
TelJFax: (21) 2232-1768 Às meninas - em ordem alfabética - Alê, Cacau, Dani, Gabi e Malu,
E-mai!: dpa@dpa.com.br ex-alunas sempre amigas, por me permitirem, com seus carinhos,
liome pnge: www.dpa.com.br cresdmentos e solidariedades, continuar acreditando que a luta da
educnção vale a pena.

VOZES lMPRIMIU

Impresso no Brasil
2005
Agradecimentos

, Ao CNPq, por ter viabilizado, através da bolsa de p6s-doutorado


que me concedeu, a realização desse trabalho.
I Ano:::: c(llr.t'r:'lc:. rh F:1"'qlrJ..,rJp (1,. F0 ••..... (" d0 P""~~'_1.~
,:"':.:;,,~ ,c.

dutonzaram o meu atastamento.


Os amigos e amigas, colegas, alunos e alunas a quem devo
agradecer são tantos e tão queridos, que quase poderia escrever
! outro livro, s6 contando como todos puseram um pouco de si nesse
! trabalho, das mais diversas formas e pelos mais diversos caminhos.
I
I. Por isso, sem responsabilizar nenhum de vocés pelo que não
ficou bom, reconheço-os como co-autores, pois sem vocês, eu
certamente não chegaria ao fim.
Não necessariamente nessa ordem, muitíssimo obrigada a:
Paulo Sgarbi, com piadas e permanentes palavras de carinho,
solidariedade e incenfivo enchendo a "caixa" de e-mails, fez
sentir-me amparada e querida em todos os momentos. Além disso,
ajudou minhas queridas orientandas. Cúmplice indispensável.
- Filé, amigo e cúmplice, sempre.
- Aldo, Solange, C1eide, Alé, Helô e Olívia, Lenildo e Cacau por
adoção, que produziram sempre bem, tranquilizando-me e que,
junto com tantos outros alunos e alunas, de hoje ou de antes, me
dão sempre tanto carinho.
- Fátima e Denise, pelo trabalho na pesquisa de campo,
indispensável à realização deste e, é claro, a equipe da Escola,
Sandra em especial.
- Aos amigos, que se fizeram presentes em mensagens e convites
(aos quais eu não podia atender), me lembrando sempre dos
carinhos que me esperavam na volta.
- Meus irmãos einnãs, papai e EIoídes, sempre atentos e atenciosos,
colo certo e permanente. Cecilia, em particular, pelos trabalhos
de gestão do pedaço brasileiro e chato da minha vida nesse Sumária
periodo.
- Bruno, Ana e Tiago, meus filhos, compreensivos e paoentes,
solidários e amorosOS.
- Milton, o "pai herói" que agüentou firme a responsabilidade
solitária. Illtrodução
- Pablo Gentili, por ter" aberto a porta", iniciador, portanto, dessa
minha jornada.
rai encore la stupide habitude
de dire tout ce qlle je sens 11
- ABene,por ter facilitado minha passagem pela porta de entrada.
- Lino, companheirissimo, interlocutor privilegiado, intelectual e Democracia social, cidadania ativa
afetivamente, nessa estadia portuguesa. e emancipação na sociedade mlllticllltural 1S
- A turma de Mestrado do CES (Centro de Estudos Sociais) grupo
de trocas e aprendizagens solidárias, de papos, cervejas e jantares. Repellsal1do o cotidiano 47
Os" de todas as horas": Bruno, Vasco,Carina e Ana sabem muito
sobre isso. Sem serem de tantas horas, Fátima, Teresae Raimundo, Elemel1tos de orientação metodológica
cada um do seu jeito, também foram especiais. para a pesquisa IIO/docotidial1o das escolas 71
- Professores do Mestrado e funcionários do CES,especialmente o
Professor João Arriscado Nunes, sempre sábio e tranqüilo, e Reglllação e emancipação 110 cotidiano
Lassalete, anjo da guarda de lodos. da escola: o que dizem as práticas 97
_ Boaventura, além de "saber tudo", foi um permanente desafiador,
confiou, fez-se cúmplice. Mais ainda, fez-se companheiro de COlldusão
"viagem" nos jantares, nas anedotas e nas conversas, tornando Tecelldo redes de significados:
ainda melhor a já Bo(a)ventura do trabalho sob sua supervisão. das práticas cotidiallas à IItopia em ação 133

Referências bibliográficas 149


Introdução
J'ai encore la stupide habitude
de dire tout ce que je sens'

Há sempre, pelo meuos, 11 ma porta


fhra Oimaginário,
Onde os sentimentos mais que os sentidos, têm raziio;
Onde as fonnas VCHccm
Os limites do formato;
Onde o tédio não se repete
Nos son-;sos
Seqiicncialmente deSetlhados
E onde o grito nasce do sussurro que recria o grito.
(. )
Há sempre, pelo menos, lima porta
H1ra o imaginário.
Deixem mirar quem não teme o sonho
E o prazer.
Deixem entrar os que têm as mãos cheias
Dos gestos que só sabem seus
E das idéias que ninguém mais quer,
Fhra mexer na lama e a transformar em bolos
Ou recriar o tempo e fazer dele espaço.
José Pires. Manifesto do imaginário.

Pretmsãoeáglla benta, cada lIm se serve de quanlo quer,'dizia minha


mãe quando eu era criança. Por isso me permito iniciar este trabalho

Eu tenho ainda o estúpido hábito de dizer tudo o que sinto (tradução


pessoal da autora).

DP&Aedilora
12 em deu/os praticados: entre a regulação e a emallcipação Illtroduçno 13

com o desabafo de Rosa Luxemburgo (GALLO, 1992, p. 65), com o sentido, aborda-se a discussão sobre a questão dos processos de
qual me identifico há muito. Tecer e produzir argumentos, os mais dominação cultural e de formação das identidades individuais e
consistentes possíveis, para que a expressão daquilo que sinto se c?letivas nos países de formação multicultural, _denunciando
torne crível, para mim e para os meus eventuais leitores, tem sido alguns dos aspectos dessa dominação e buscando formular
um desafio permanente. alternativas a ela.
Os produtos desses desafios são, portanto, manifestos. Manifesto Nesse ponto, voltamos o debate para a questão da cidadania e
da imaginação de um mundo melhor, possível e desejável, este da necessidade de ampliação do conceito para além das relações
trabalho testemunha uma busca dos sentidos emancipatórios dos Estado-cidadão, de modo a permitir a extensão da necessidade
fazeres pedagógicos de uma escola no Rio de Janeiro, buscando política de exercício permanente e integral da cidadania a todos os
neles as formas invisíveis para aqueles que temem os sonhos e espaços de prática social, democratizando-os, e às relações sociais
enjaulam a idéia da emancipação em formatos prescritivos e normas neles estabelecidas, bem como a todos os segmentos populacionais.
entediantes de bom comportamento, a serem segtridas como receitas, No segundo capítulo, volto-me para o estudo epistemológico
o que contradiz a própria idéia da emancipação. Não sei quantos do que é e do que pode ser o cotidiano, buscando esclarecer
querem abraçar as idéias que aqui desenvolvo, ou os meus tão co:n-c~~.~almente o termo, de modo a superar entendimentos
pessoais
disforme
gestos epistemológicos
da vida cotidiana,
e políticos
tentando
mexendo na lama
fazer dela um bolo a ser
_~~
.dualista~"':que
.... ~
espaço-tempo
o opõem a outros campos da vida social, como se o
do cotidiano fosse dissociável dos demais. Além disso,
digerido por aqueles que aceitarem o desafio. desenvolvo uma reflexão sobre os modos como vejo as articulações

grande questão que


palco privilegiado
é'
Cada parte desse trabalho busca abordar um dos aspectos dessa

do
tessitura da êíiÍ~cipação
~;dãSli.iiàSprocesS~alssêmJim~ido:
~bciai nocotidianü;\
entre a vida cotidiana e as estruturas
quanto politicamente.
Depois, mergulhando
sociais, tanto epistemológica

um pouco mais nas formas possíveis de


corno diz Santos (1995, p. 277). Na continuidade do texto, o autor organização e compreensão do cotidiano em geral e do cotidiano
esclarece que: escolar em particular, no capítulo 3, a reflexão se volta para elementos
O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político metodológicos da pesquisa sobre eles, algumas de suas facetas e
da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da exigências, tão diferentes das pesquisas quantitativas e estatísticas.
emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas Tendo esclarecido não só a escolha metodológica corno também sua
democráticas em todos os espaços estruturais da prática social
necessidade para os objetivos que propomos, abordamos finalmente
conforme estabelecido na nova teoria democrática [...]. O socialismo
é a democracia sem fim. o debate em torno das observações do cotidiano.
No capítulo 4, as observações registradas e a entrevista realizada
Partindo, portanto, dessa idéia, no primeiro capítulo, a reflexão
com a professora que se fez cúmplice da nossa pesquisa são
dirige-se a algumas questões gerais que interrogam a própria idéia
apresentadas e discutidas em relação ao que representam para a
de emancipação social e a tensão entre ela e a regulação, buscando
compreensão do currículo em ação e das formas criativas de trabalho
compreender de que maneiras processos e modos de regulação
pedagógico desenvolvidas nas escolas. Ainda com base no material
democráticos podem contribuir para a emancipação social. Nesse
da pesquisa, evidenciamos o enredamento das múltiplas esferas de
14 Currículos praticados: entre a regulaçiio e a emancipação

formação no fazer pedagógico de Sandra, bem como o das formas


de sua inserção social nos diversos espaços estruturais na
constituição de seus valores e idéias, também determinantes no seu
fazer. Finalmente, o material coligido nos permite confirmar algumas
das hipóteses que defendemos nos primeiros capítulos, como a de Democracia social, cidadania ativa e
que a tensão entre regulação e emancipação não configura um emancipação na sociedade multicultural
dualismo e a de que a complexidade do cotidiano é impossível de
'1'" ho ,f -l .. ,.. 'rdit 'r' ,,......
,",~ ~ I £-

o último capítulo, além de buscar sintetizar o debate, recompõe


as diversas dimensões políticas e epistemológicas trabalhadas nos
anteriores em função do objetivo principal do trabalho, que é pensar Pensar a questão da democracia no mundo contemporâneo, no
o possível papel da escola e das pesquisas que nela se realizam para qual as democracias políticas parecem ter triunfado sobre regimes
a emancipação social e para a construção da sociedade democrática, totalitários na maior parte do planeta mas cada vez menos são
l

enquanto utopia do possível. capazes de satisfazer aqueles que a pensam e desejam ampliada, nos
Acreditando na importãncia do debate aqui realizado sobre as exige desenvolver uma reflexão sobre a questão da participação
práticas emancipatárias de uma professora, como meio de se cidadã, um dos pilares da própria idéia de democracia. Se podemos
perceberos modos como, cotidianamente, a democraciasocialpode afirmar que, na maior parte do planeta, os regimes políticos vêm se
ser potencializada pela ação concreta de pessoas comuns, desafio os democratizando; podemos também afirmar que esta democratização
leitores a mergulhar nesse manifesto produzido a partir da vida formal vem se sustentando sobre formas de exclusão, de
real e da reflexão sobre ela. A perspectiva adotada é aqu~la,que discriminação e de dominação ampliadas, que atingem numerosos
Boaventura Santos (1995, p.106) FiU!'~de teoria critica pós,mode~, " segmentos da população mundial. D~ ,:x~lusão econômica, que
segundo a qual e,tima milhões de pobres e desempregados, e à discriminªçªo
culfural a que sãOsubffi'etidos grupos sociai" ditos "minoritªrios",
as necessidades radicais não são dedutíveis de um mero exerCÍcio
à domiri~çãógl~al-;;gue vêm sêfiaõ'si'If,-;";;tidos estes e tantos o~tros,
filosófico por mais radical que seja; emergem antes da imaginação
social e estética de que são capazes as práticas emancipatórias t:J-OS~;sdemocra~ias- vêm se consolidando como democracias
concretas. ,excludentes na maior parte do planeta.
Boaventura Santos (1997,2000) tem se referido à" democracias
contemporãneas como democracias de baixa intensidade, ãs quais
opõe a idéia da democracia de alta intensidade, na qual a participação
cidadã seja ampliada e o ideal democrático da igualdade se faça
acompanhar do direito à diferença, condição para a construção de

DP&A editora
16 Currículos praficados: clllre a regulação e 11emancipação
Democracia social, cidadania ativa e emancipação nl1 sociedade lIlulficulfural 17

relações sociais que considerem e reconheçam as diferenças desenvolvimento de um certo número de práticas emancipatórias
culturais, sem criar, a partir delas, uma hierarquia entre as diversas que permitam superar a verticalidade das hierarquias apriorísticas,
culturas. No que diz respeito ao exerácio da cidadania, Santos (2001) da opressão de grupos subaltemizados - mulheres, homossexuais,
a define como um encargo, uma missão pública, uma prioridade do negros, índios, não-escolarizados, deficientes etc. -, entre outras
serviço à comunidade e à solidariedade, para além da cidadania formas de discriminação e de silenciamento produzidas em
passiva, reduzida a um conjunto de direitos pelos quais se luta. contextos não-dernocrá ticos.
Nesse sentido, a discussão que este texto propõe busca A questão que se coloca é, portanto, compreender que
compreender um pouco do que foi e é o processo social excludente mecanismos de aprendizagem, individuais e coletivos, têm
que constituiu o desenvolvimento dessas democracias, suas bases e produzido as formas de inclusão social, subalternas ou não, dos
desdobramentos, bem como representa urna tentativa de pensar os sujeitos e grupos sociais nos diversos espaços estruturais da
caminhos possíveis para pensar e investir na criação de uma sociedade, para pensarmos possíveis modos de intervenção sobre
democracia mais democrática, que inclua urna maior participação esses processos, de modo que eles possam, cada vez mais e
cidadã, tanto na esfera politica do Estado quanto na esfera social da novamente, contribuir para a emancipação social, tanto dos sujeitos
vida cotidiana, ao mesmo tempo que se insurge contra os processos quanto dos grupos sociais.
de don1inação cultural sobre os quais se erguem a exclusão social,
a discriminação e, nesse sentido, a permanência da lógica da Processos cotidianos de aprendizagem
dominação nas nossas democracias. na formação das identidades culturais'
Estamos, portanto, entendendo que a democracia não é apenas
Todos nós começamos nossa aprendizagem quando nascemos.
um regime político ou uma forma de organização do Estado. Uma
Os bebês, que não vão à escola nem compreendem ensinamentos
sociedade democrática não é, portanto, aquela na qual os
verbahnente apresentados, aprendem, a todo momento, novas formas
governantes são eleitos pelo voto. A democracia pressupõe uma
de estar em contato com o mundo, desenvolvendo suas capacidades
possibilidade de participação ativa dos cidadãos no conjunto dos
de sobrevivência, de interação com o outro e de movimentação sem
processos decisórios que dizem respeito à sua vida cotidiana, sejam
que tenhamos que lhes dizer como devem mamar, sorrir ou mover
eles vinculados ao poder do Estado ou a processos interativos nos
sua cabeça e seu corpo quando querem ou predsarn. Nesse processo,
demais espaços estruturais1 nos quais estamos todos inseridos.
aprendem formas de estar no mundo compatíveis com o meio
Deste modo, entendemos que uma determinada sociedade será sociocultural no qual estão inseridos, ou seja, tornam-se membros
tão mais democrática quanto mais intensos e efetivos forem os da comunidade de entorno e como tais são reconhecidos, na medida
mecanismos e processos decisórios sobre os quais ela se funda, em em que desenvolvem suas habilidades e formas expressivas inscritos
todas as instâncias de inserção social dos seus membros. Esta no mundo cultural que os cerca.
democracia social se fundamenta em alguns princípios e requer o

Boaventura Santos (2000) identifica seis espaços estruturais nas sociedades 2 A partir daqui, este texto retoma, de modo ampliado e algo modificado, a
capit<l.li"itas
contemporâneas, a saber: o espaço doméstico, o da produção, o discussão desenvolvida anteriormente no texto Aprendizagens culturais
coNdümas, ciriadmlia e educação (OLIVEIRA, 2002),
de mercado, o da comunidade, o da cidadania e o mundial.
16 Cllrr(culos ,,,aticados: e1ltre n regulação e fi emallcipação
Democracia social, cidadania ativa e emancipação lia sociedade 1IIllfticult1fral 19

Com freqüência identificamos nas crianças expressões, gestos e


processos formais de aprendizagem estão dissociados dos processos
valores que representam a cultura do meio que os cerca.
cotidianos, como se no intimo de cada um de nós houvesse um
Recente~ente, pude perceber a força das tradições culturais ao
"botão de desligar" separando a nossa vida fora da escola dos
assistir a um grupo folclórico português que dançava na Festa de
momentos em que estamos sendo submetidos a aulas formais sobre
São Pedro na cidade de Coimbra, onde morava. Impressionante ver
conteúdos de ensino ou pelos processos subliminares de transmissão
crianças de 20u 3 anos dançando com extrema desenvoltura, ritmos
de valores sociais,tambêm presentes nos espaços escolares, mas não
e passos de grande" dificuldade" para mim e todos os demais
só neles'
estrangeiros que lá estávamos. No mesmo sentido, presenciamos no
Prrtrp~c;nc;pmpr'?Inic;moc; aup não c;abemoc; dp.;crever ou explicar.

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à perfeição, ou aquelas que, ainda na mais tenra idade, jogam ou
diversos temas, contribuem, portanto, para nossas relações com o
fingem jogar futebol Com os mesmos gestos e maneirismos dos
jogadores profissionais,sem jamais terem sido submetidas a qualquer
~s
mundo à nossa volta, definindo nossas ações sobre ele. A~~~~
processos através d~s ql!,ais !los inserirno~no IInosso"'~niverso.
modo formal de aprendizagem. São pequenos gestos e
-cUlturalsão feitos de valores e saberes partilhados que, muitas vezes,
comportamentos que se identificam com os papéis cultural e
surgem em oposição a valores e saberes de outras culturas. Ou seja,
socialmente definidos, conforme já desenvolvi em artigo anterior
em contextos multiculturais, muito da nossa identidade se tece em
(OLIVEIRA, 2001b). Isso significa que é atravês das experiências
oposição às identidades e formas de estar no mundo de outros grupos
vivenciadas no nosso cotidiano que aprendemos muito daquilo
sociais. E ê desse modo que aprendemos a nos inserir no mundo;
que usamos para estar no mundo e conviver com o outro, e que nos
diferenciando-nos dos "outros". Numa história política e cultural
inserimos como co-participes nos valores e especificidades da nossa
de transformação de diferenças em desigualdades, caracteristica da
Culturade origem. Essasvivências cotidianas não se vinculam apenas
cultura burguesa ocidental, vamos perceber processos de
a um imediatismo de inserção no espaço doméstico da fanúlia, mas
aprendizagem que criam preconceitos e hierarquizam sujeitos e
vão dizer respeito a todos os demais espaços estruturais no que eles
culturas, valorizando os princípios fundadores de umas em
têm de interferência sobre a formação de nossas identidades
individual e coletiva.' detrimento de outras.

Ao considerarmos, portanto, a vida cotidiana como fonte de


Aprendendo a dominação cultural
aprendizagem e de influência sobre os nossos comportamentos
individuais e sociais,somos levados a q,!!,g!~Qideári.2J~rmalis~~_ Em uma antiga revista (Almanaque do Tico-tico, ano 1909), vi,
dominante que, susiê;'tado pela dicotomia e peja hierarquia entr~ certa vez, uma "noticia" que muito me chamou a atenção, pelo tanto
as aprendizagens formais e cientificas e as outra~,~n!ellS!e que os de preconceito que nela vinha embutido. Ela explicava que os

3 Para a discussão que aqui fazemos, interessante é a hipótese formulada por


4 Essa idéia, vinculada ao pensamento liberal tem servido de base, também,
Luiza Cortesão (2001) de que a escola pode ser entendida Como espaço
parao chamado "otimismopedagógico", que abibui à escola a responsabilidade
estrutural em função dos modos como intervém na vida e na formação dos
de transformar a sociedade, através da transmissão de valores como a
sujeitos. Como esta é uma discussão, em si mesma, complexa e ampla, não
vamos abordá-Ia aqui. solidariedade, como se a escola pudesse ser entendida como autônoma em
relação à sociedade na qual está inserida.
20 Cllrr{Clllos 1'raticndos: entre n regulaçiio c Cf emancipação Democracia social. cidadania ativo e emancipação na sociedade mlllticlllillrnl 21

chineses tinham, finalmente, decidido sair de sua "ignorância Estava conversando com meu filho Tiago, que, na ocasião, tinha
histórica" e aceitado a escolarização de suas crianças pelos jesuítas 8 anos de idade e freqüentava a 2' série, sobre algumas das atividades
como um meio de superação de sua "falta de cultura". Trago o que estavam se desenvolvendo na sua escola e outros assuntos. Num
exemplo porgue ~ escola e seu papel social de definidora e d!fuso~~ determinado momento, deu-se o diálogo abaixo transcrito:
dos valores da sociedade ocidental parece tão important,:ao
- Mãe, ainda existem índios no Brasil?
"desatento jornalista" que isso o leva a redigir um texto em que o
- É claro, meu filho! Muitos vivem nas cidades e são pessoas como
seu preconceito quanto a outras formas de transmissão de valores e você. Usam roupas comuns, almoçam, jantam, vão ao banheiro e
de existência cultural não lhe permitem perceber a milenar cultura assistem televisão.
oriental e suas especificidades apenas como um outro modo de ser - Quer dizer que há índios que viraram ser humano, mãe?
e de fazer.
A situação em questão evidencia uma aprendizagem do
Em um artigo sobre antropologia social, que aborda a questão
preconceito racial e cultural, tecida na vivência cotidiana e nos
dos modos privilegiados da interação dos "nossos" indígenas
contatos com os valores culturais dominantes. Tiago mostra como
brasileiros com a sociedade branca dominante, Neves (1999, p.l02)
já percebeu a lógica da estratificação social brasileira, e já "sabe"
nos mostra um pouco do que tem sido a negação histórica do direito
que "os índios eram povos selvagens e primitivos e desapareceram
indígena ao acesso à cidadania brasileira sobre a base da negação de
após o descobrimento e a civilização do Brasil. Acredito que essa
sua cultura de origem, como um processo de legitimação da
discriminação das culturas não-ocidentais, impiícita nos ,:,alores
dominação a que esses povos vêm sendo historicamente submetidos.
hegemônicos da nossasociedad2'que, sem nunca ter sido ensinada,
Oizo autor:
. éSenipre aprendida, tenha sido percebida, apreendida e incorporada
Em toda a América indígena as relações sociais se constroem a às redes de conhecimentos que Tiago vem tecendo ao longo da
partir daí em cenário marcado pela segregação, cristalizan?o vida, nos diversos espaços e modos de sua inserção no universo
diferenciações e desigualdades de uma estrutura social
cultural e social brasileiro. Mais do que isso, creio serinleressante
hierarquizada que se estenderiam desde a época das primeiras
investidas à terra descoberta até os dias atuais. que nos apercebamos do "Tiago" que há dentro de cada um de nós,
pois os processos vivenciados por Tiago são, em grandes linhas, os
Emblemáticos seriam, com relação a isso, os grandes filmes
mesmos que vivenciamos todos. A coerência e a convicção dos
ambientados no westem americano, nos quais os índios, carrancudos
discursos formais contra-hegemônicos, que emergem a todo
e cruéis- "selvagens" -são derrotados pelos amantes da democracia,
momento e vêm dando origem a muitas e diferentes tentativas de
brancos, bonitos e empreendedores - civilizados
11
ll
• E é assim que
superação dos preconceitos, não têm sido suficientes para apagar
nossas crianças, mesmo nos mais inocentes (?) brinquedos ou na
os resultados dessas aprendizagens discriminatórias em relação às
televisão, aprendem, cotidianamente, o preconceito em relação às
culturas indígenas - que aqui servem apenas de exemplo, pois o
culturas orientais, indígenas e outras. Voltarei a isso.
mesmo se passa com relação a outras culturas. Em cada um de nós
No momento, não resisto a mais uma narrativa de uma situação habita, ainda, um I<Tiago", mais maduro, às vezes, mas ainda
vivida no meu cotidiano, na qual este preconceito se faz presente em encharcado nas águas dos preconceitos e discrirninaçôes aprendidos.
uma de suas faces mais cruéis, a da negação da humanidade do outro. Na luta pela superação do que resta em nós dessas aprendizagens,
22 Democracia social, eidadallia atilm e elllllncipaçiio na sociedade l1JultiCllltural 23
Curríclllos praticados: elltre li regulação e a emancipação

precisamos desenvolver processos críticos de reflexão e de


! As diferenças sociais encontram sua sustentação num sistema de
poder baseado tanto no controle da economia e polítisa regionais
autovigilãncia permanentes, no sentido da rejeição desses valores.
! quanto na pertinência a um grupo étnico determinado. E essa lógica
ê hierárquica que elaborará os termos "caboclo" e "índio" como
Isto requer, por outro lado, que essa reflexão e essa vigilãncia sejam
produtos ideológicos da situação interétnica. [...1 [Nesse contexto],
exercidas coletiva e solidariamente, condição para a constituição "índio" é aquele que não domina normas e regras do modo de vida
de novas representações sobre essas questões, socialmente relevantes. dito" civilizado", que em geral pouco entende e menos ainda se faz
Só assim podemos, individual e socialmente, nos libertar do que entender em língua portuguesa; é aquele que vive em "maloca" no
meio da mata perdida da "civilização" (das cidades). E que por isso
resta em nós dessas aprendizagens, potencializando, a partir daí recebe como sinônimo um termo ainda mais cruel e segregador:
nncc > ,01,.." "'v-t-~'n""''''''' 01,
lot"1 •...• -1;1'"' ,;1-" '>. i~t '-'I • '" ,. " '~'.' 11- --1 "'k.~ ~ ••• , •..• -l; ••.;-1,,".
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que superem aquelas que hoje existem c grupu, o.c LU\.lU::' tiL>\.lllcitUL>, pUll.fUL, LUlllV ",<;1,"'cc ••..••...•
ll"'ulul •••.u •••..•.

não-pessoa (NEVES, op. cit., p. 104).


nesse contexto de negação das culturas não-hegemônicas.
Esse é, portanto, um mecanismo de usurpação dos direitos que
Os direitos de cidadania repousa sobre a desqualificação do indivíduo enquanto tal.
no contexto da negação cultural A negação aqui é da própria humanidade do "inclio brabo". Por ser
Esse processo de desqualificação de culturas não-ocidentais alguém que não merece sequer a qualidade de" ser humano", esse
repousa, como se pode supor, nos próprios pilares da cultura inclionão pode ser pensado como cidadão de clireito.Mas há outros
ocidental e burguesa, na universalização de seus próprios valores mecanismos de usurpação da cidadania, mais voltados à agressão
através de um processo de dicotomização e hierarquização de idéias, da própria identidade coletiva,evidenciados na passagem que segue.
saberes e os valores que a esses são associados, conforme nos explica Na mesma situação, "caboclo" é o índio familiarizado ao mundo do
Boaventura Santos em texto sobre a criação das clicotomias que branco, dependente de certos bens de consumo que adquire através
permitem ao ocidente ver-se a si próprio como superior.s É assim do trabalho no extrativismo vegetal e da comercialização da caça e
pesca. "Caboclo" é o índio "civilizado", destituído de direitos porque
que vamos perceber, ainda no texto de Neves (op. cit.), a já é um não-Índio (id., ib.).
operacionalidade dos pares de opostos que desquali.íicamo indígena
por obra da promoção das idéias de barbarismo e incivilidade, que É, portanto, através do etnocentrismo europeu, como forma
permitem à "civilização" ocidental subjugã-los, legitimando-se dominante de pensamento, que a chamada civilização ocidental
enquanto superior. burguesa vem se permitindo usurpar os direitos individuais e
coletivos de cidadania das populaçóes indígenas (entre outras),
Os valores dessa civiIizaçãorepousam sobre ideais de civilidade,
apesar de a teoria antropológica contemporãnea reconhecer que
identificados, na narrativa do autor, à inclusão econômica na
este reducionismo etnocéntrico segundo o qual "uma história
qualidade de trabalhador, às "boas maneiras" e à branquidade.
unilinear [...J conduziria todos os grupos humanos da selvageria à
Referindo-se às relaçóes sociais e de poder na região do rio Juruá
civilização - mais objetivamente à civilização européia, tomada
(no Estado do Amazonas), diz o autor:
como modelo e destino final dos homens enquanto corpo social-
5 O te~to a q~~ me refiro foi publicado com títulos diferentes em Portugal se encontra em parte superado" (id., ib., p. 108).
(ReVIs:a ~otlClas do Milênio) e no México (Revista Chiapas). De acordo com a
prefere~~la do autor pelo título "O fim das descobertas imperiais", vamos A produção dessa" exclusão" não se limita às populaçóes
referencla-lo em sua versão publicada no Brasil (OUVElRA e SCARBI,2002). indígenas. Muitos outros são os mecanismos que, ao definirem quem
24 Currículos praficados: entre fi reglllaçiio c (I emallcipação
Democracia lôocial, cidadania ativa e emallci1Jtfção IIQ sociedade mulliClllfllyal 25

é, porque é e como é que se deve ser ádadão, excluem todos aqueles


Para fazer essa discussão - do papel atribuído à escolarização
que não preenchem tais requisitos. Foi sobre essa base que se
pela modernidade, em sua articulação com as questões relativas às
ergueram as chamadas democraáas capitalistas burguesas como
formas válidas de exercício da cidadania e aos mecanismos
democracias de baixa intensidade. A democracia e o acesso à
de exclusão soáal-, precisamos voltar um pouco ao conceito de
partiápação 'cidadã, nesse contexto, longe de contribuir para
cidadania tal como ele foi cunhado no contexto de emergência da
processos emancipatórios, têm intensificado as dificuldades de luta,
hegemonia burguesa na Europa capitalista e moderna, passando,
na medida em que vêm legitimando a lógica da dominação soáa!.
ainda, por um "desvio", que é a discussão sobre a questão dos
Foi também nesse contexto que a escola apareceu como locus processos de regulação e de emanápação social presentes na
privilegiado de educação do" ádadão" das democraáas européias. sociedade moderna e do seu significado para a luta pela
Cabe à escola, entre outras funções, civilizar e preparar para o democratização, que pressupõe a ampliação das formas democráticas
exerácio da cidadania os membros jovens ou "diferentes" da de exerácio da ádadania.
soáedade, e também a exclusão daqueles que não obtêm sucesso no
processo.' Exclusão aqui entendida como uma forma perversa de Selvageria, barbárie e cidadania:
inclusão soáa! que, deslegilimando e cassando os direitos daqueles regulação e emancipação social na modernidade
que não se enquadram, mas os mantendo -até por ser impossível
No texto "A construção multiculturaJ da igualdade e da
excluí-los - como "exemplos" de fracasso e de inadequação, atua
diferença", Boaventura Santos desenvolve a idéia de que, na
como ameaça perene sobre aqueles a quem se pretende enquadrar.'
modernidade, pela primeira vez, "a igualdade, a liberdade e a
"Se você não estudar vai morrer de fome!" ou "Desse jeito você vai
ádadania são reconheádas como prinápios emanápatórios da vida
acabar feito aquele mendigo da esquina!" são algumas das
social" (1999, p.1), alertando que, com a redução da modernidade
expliátações dessa ameaça ouvidas por crianças e jovens com
ao desenvolvimento capitalista, os prinápios da regulação e da
dificuldades escolares. No campo das boas intenções, é freqüente a
emancipação - base da modernidade - enlTam em contradição,
associação entre a escolarização e a capaádade para o exerácio da
na medida em que o princípio da regulação passa a gerir os
cidadania nos discursos de educadores das mais diferentes áreas'
processos de desigualdade e de exclusão produzidos pelo
~ Ne~sesentido, a escola, ao contrário do que pensa o otimismo pedagógico, capitalismo, supostamente incluídos no campo da emancipação.
se aproxima da identidade que lhe atribuíam Bourdieu c Passemn (197t), a lniáalmente constituído como um prinápio assentado sobre a idéia
de mecanismo de reprodução da dominação social.
No caso mais amplo da sodedade em geral, a inclusão pela exclusão atua
de que a superação da "selvageria" depende da constituição de
tanto porque a mobilidade descendente" espr:ita quanto "porque a uma instânáa reguladora - que na modernidade é representada
manutençâo desses supostos excluídos como exéfCIto de reserva ~ pr~nto a
pelo Estado -, o pilar da regulação acaba constituindo-se de
ser usado em C<lS0de necessidade, cria a falsa necessidade de aceltaçao das
formas interativas dominantes.
) mecanismos ambíguos, na medida em que passa também a ser
~ Não resisto a lembrar que, no Brasil, o direito de voto do analfa~et? é responsável pelo controle e limitação desses processos de
conquista recente e que um candidato "doutor" à presidénda da Republica,
nas eleições de 2002, afirmou, insistentemente, em sua campan~a, ~ue seu desigualdade e de exclusão.
opositor nâo teria capacidade para ser presidente por não pOSSUIrdlplo~a. Por outro lado, se aceitarmos a idéia de que existe uma
Felizmente, 05 eleitores. escolnriz...ldos e não-escolarizados. tiveram maIOr
bom senso.
"selvageria" constitutiva dos seres humanos e de que, portanto,
Democracia social, cidadallia ativa e emancipação na sociedade J1JlIlticultllral 27
26 Currículos praticado:;: CIltre a regulação e a fIIulIlcipaçiío

possibilidades de inclusão que o conceito prevé e não se comportam


é necessário controlá-la para a constituição de U111a "sociedade",
de acordo com os parâmetros de inclusão "razoâveis e civilizados"
e aceitarmos que a regulação é a via pela qual se deve exercer esse
definidos pelos modos burgueses de sociabilidade. A regulação, a
controle, teremos que ponderar diferentes modos de se conceber a
principio entendida como uma instância de controle sobre o poder
"selvageria" e as práticas a ela associadas e reconhecidas na
do mais forte e, portanto, voltada para a equalização de correlações
contemporaneidade.
de forças desiguais, acaba por se transmutar e passa a funcionar
Na origem da concepção liberal burguesa de Estado, está a idéia
corno mecanismo de controle sobre os mais fracos, a partir do
de que o" estado de natureza" selvagem precisa ser controlado para I momento em que suas formas reivindicatórias são entendidas como
'111P n rnntrntn ~(,\ílnJrn"'",a c:;prino;;tituídn OUf><;;tinmmc!n () idf>tlnn
.t+~:J:.:;-('n'~p rnrt1T"ltn rn'C'lc;am C;;E'r coibidas pela instância
llberctl, ivldIX a.hrmd 4ue u c.stddu burgue~cimd curnu rneLdru~nlO de
reguladora.
legitimação da dominação burguesa contra o proletariado. A partir
Temos, portanto, duas formas de regulação possíveis, uma que
desses dois entendimentos quanto à função do Estado, cabe pensar
serviria à equalização social e, portanto, à emancipação, limitando
nas formas distintas que pode assumir o princípio da regulação.
o poder do mais forte, democratizando as relações de poder
Na continuidade do pensamento liberal moderno, fácil é transmutando-as progressivamente em relações de autoridade
reconhecer a selvageria como lei do mais forte ou "lei da selva", partilhada (SANTOS, 1995), e uma outra, perversa, de controle sobre
como costumamos a ela nos referir. É supostamente para controlar e as manifestações do mais fraco, sob alegação de que são formas
limitar esse poder do mais forte que são instaurados mecanismos de selvagens e inadequadas a serem superadas, que prejudicam as
regulação. Desse modo, seria permitido aos mais fracos existir possibilidades da emancipação democratizante.
dignamente e ter acesso aos bens fundamentais. A liberdade do Esta última é a forma predominante da regulação liberal,
mais fraco seria assegurada pela proteção concedida por meio da agravada em tempo de" globalização" excludente e de "fascismo
limitação do poder do mais forte. Nesse sentido, é o discurso liberal societal" (SANTOS, 1997) em que vivemos, e que reforça a leitura
aplicado que nos permite compreender a regulação como 1) tarefa marxiana de que o Estado atua, prioritariamente, como legitimador
do Estado; 2) necessidade para a construção da emancipação social. dos poderes instituídos e das trocas desiguais. Talvez esse seja um
Por outro lado, podemos perguntar que regulação se faz quando bom motivo para rejeitarmos a idéia de que não há mais sentido na
o Estado é concebido a partir do pensamento marxiano. Nesse oposição entre esquerda" e" direita" nos tempos atuais. Se, por um
11

sentido, uma segunda formulação é possível. O mecanismo a ser lado, o reconhecimento da pluralidade de espaços de luta social
montado e desenvolvido legitimará, nessa perspectiva, as fonnas com o conseqüente enfraquecimento do esquema clássico da luta
burguesas de gerencialnento dos conflitos, considerando, a partir de classes, e a complexificação das sociedades e das constelações
dai, como" selvageria" as formas de negociação de outras classes institucionais, cada vez lnais locais, nacionais e transnacionais
sociais, que passam a ser entendidas como falta ou insuficiência de modificam e recriam as formas de luta social, por outro lado, não se
civilidade. devem associar a nenhum tipo de "põs-modernidade" que faz o
Entendendo a selvageria desse modo, a concepção burguesa de elogio do fragmento e abandona as utopias.
cidadania encara como" selvagens" todos aqueles que, por motivos É preciso compreender que o reconhecimento da complexidade
político-religiosos, culturais e sociais não se enquadram nas da sociedade e da luta social não altera a idéia de que precisamos
28 Currículos praticados: elltre a regulação e li emancipação Democracia social, cidadania afil'a e emancipação na sociedade l1lulticuItural 29

lutar por mais emancipação social, em todas as dimensões da vida A criação, ampliação e consolidação de formas de regulação
social, consideradas agora como enredadas umas às outras, sem que social que ampliem os espaços de diálogo e de convivência
nos seja possível nem necessário eleger uma prioridade absoluta. democrática entre os diferentes sujeitos e grupos sociais permitem
A utopia da democracia COmo sistema social pressupõe o ampliar as margens de possibilidades sociais da efetivação de uma
alargamento da eqüidade em todos os domínios da vida, o que vida digna e satisfatória para parcelas mais significativas da
torna necessária a repolitização global das práticas sociais para o população. Assim, através da institucionalização de formas
seu desenvolvimento, entendendo-se que "politizar significa regulatórias mais democráticas - entendidas como aquelas em que
identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as os espaços-tempos de exercício da diferença e da autonomia, do
transformar em relações de autoridade partilhada" (SANTOS,1995, diálogo baseado no "respeito ao outro como legítimo outro na
p. 271). É nesse sentido que a luta em todos os espaços estruturais convivência" (MATURANA,
1999) -, podemos entender, com Certeau
em que estamos inseridos impõe-se como condição de construção (1994), que atuaremos no sentido de ampliar os espaços estratégicos
da democracia. Considerando a emancipação social o conjunto das que circunscrevem as possibilidades de mise en place de táticas
lutas processuais desenvolvidas nos diversos contextos e emancipatõrias, e não apenas na substituição de algumas estratégias
circunstâncias sociais, entenderemos que tais contextos e de regulação por outras, o que nos confinaria à eterna dicotomia
circunstâncias definem as prioridades dos momentos específicos, entre regulação e emancipação, e ao entendimento de que ao poder
não sendo, portanto, passíveis de generalizações estruturalistas nem só cabe ser imposição da vontade de uns sobre a de outros. Ou seja,
de hierarquização estrutural, tampouco, de leituras que os analisem se a estratégia só é possível ao forte e as táticas se desenvolvem" sem

isoladamente. lugar próprio", no ãmbito dos espaços (apropriados) estratégicos


\
(que definem as regras do "jogo", mas não os lances possíveis e
Permanece, contudo, a convicção de que, para os mecanismos
desejáveis em cada circunstância), é possível conceber a formulação
de regulação social funcionarem como cerceadores do abuso de
de regras que incluam mais espaços para o desenvolvimento de
poder, cumpre entender que esta não é sua "vocação natural",
diferentes táticas (seguindo a metáfora do lance, trata-se de criar
relembrando Marx. A partir daí, é possível recuperar dois elementos
regras que ampliem as possibilidades de escolha dos jogadores sobre
fundamentais da construção da emancipação social: 1)o posicionamento
o lance a fazer). A democracia consistiria, nesse sentido, em um
de esquerda, ou seja, o reconhecimento de que a origem do Estado
sistema social cujas possibilidades táticas fossem as mais amplas
é de instância legitimadora do poder instituído e não "reguladora"
possíveis,9 na medida em que os processos regulatórios protegessem
deste e a opção política pela luta daqueles que vêm sendo os espaços de ação tática dos mais fracos.
submetidos a esse poder e a seus mecanismos, cada vez mais cruéis,
de inclusão pela exclusão; e 2) o desenvolvimento da luta política Acredito que o uso dessa construção para se entender a diferença fundamental
cotidiana, coletiva e de pressão sobre as instâncias "reguladoras", entre a democracia burguesa e as ditaduras evidencia a pertinência do
raci?cínio aqui proposto. Num regime ditatorial, as regras e sua execução são
de modo que elas avancem no sentido da proteção dos mais fracos.
estritas e cerceadoras da ação dos sujeitos e grupos sociais. Nesse sentido, as
A esse respeito, podemos dizer que a tensão entre regulação e possibilidades táticas são poucas e "apertadas" em função dos riscos e do
emancipação não constitui uma dualidade ou dicotomia, pois é pequeno espaço no qual se desenvolvem, sendo travadas, portanto, por
pequenas parcelas da população dominada, através de ações mais pontuais.
uma questão que se equaciona sobre as características qualitativas Podemos supor que é por isso que as lutas emancipatárias contra as ditaduras
de uma e de outra, e não quantitativas. aparecem como heróicas e, muitas vezes, fascinantes, embora extremamente ~
30 Currículos praticados: entre a regula~'ão e a emancipação
Democracia sodal, cidadania ativa e enulIlcipaçiio na sociedade IIll1ltícultural 31

É nesse sentido que entendemos a possibilidade da emergência aparece como um imperativo para a viabilização da construção da
de formas sociais de regulação com caráter emancipatário, como sociedade democrãtica atravês das lutas sociais emancipatórias.
um mei~ de superar tanto a idéia de oposição quanto a de imposição Como já anunciado, é curiosamente através de mecanismos
e de caminharmos rumo ã ampliação dos espaços, individuais e regulatórios que essas lutas podem e devem ser travadas. Recuperar
coletivos, de ação sobre a sociedade e suas regras de integração a dimensão da regulação que limita o poder do mais forte, ampliando
social (HABERMAS, 1984) e de transformação democratizante. os espaços de ação tãtica do mais fraco, ê pois um dos desafios
hnportante aqui ressaltar duas importantes dificuldades inerentes contemporâneos para a emancipação social, na medida em que essa
a esse "projeto". Em primeiro lugar, temos que considerar a inércia limitação/ampliação circunscreve possibilidades de construção e
I
••.•.••..••"" •..•••. t'-.lo. •.•.••.••••••.' •.•.••.•••..L' Í'

possibilidades de formulação discursiva e de participação política,


Na discussão que propõe a respeito da constituição política e
herdado da própria constituição e legitimação da modernidade
da convivência entre os diferentes, Maturana (1999,p. 74)afirma que:
ocidental, que, através do escravagismo, do colonialismo, do
epistemicídio, entre outros procedimentos, silenciou e continua a A convivência entre pessoas que pertencem a domínios sociais [...]
diferentes requer o estabelecimento de uma regulamentação que
silenciar populações e culturas inteiras. Dito de outra forma, os
opera definindo o espaço de convivência como um domínio
dispositivos de exclusão e de silenciamento do "fraco", formulados emocional declarativo que especifica os desejos de convivência e,
e praticados como mecanismos de legitimação da dominação na assim, o espaço de ações que o realizam.
modernidade, continuam atuantes nas formas contemporâneas de
Para isso, vai ser preciso atuar no reconhecimento dos direitos
legitimação da dominação - como comprova a história de Tiago, \
ã igualdade na diferença, pois o igualitarismo formal tem servido,
relatada anteriormente - no atual contexto do capitalismo neoliberal.
através da universalização de urna igualdade inexistente, à
Por outro lado, esse contexto vem gerando uma crescente redução
manutenção das desigualdades, muitas vezes entendidas apenas
da capacidade dos Estados nacionais, sobretudo dos países
como diferenças e legitimadas através dessa distorção.
semiperiféricos e periféricos, de atuar no sentido de promover a
Nesse sentido, o universalismo lnoderno, com sua suposta
democratização- econômica, política e social-, na exata medida do
neutralidade objetiva, afigura-se inadequado para pensar a
crescimento de modos de regulação transnacionais, erigidos a partir
emancipação, negando a legitimidade da existência do diferente,
de interesses corporativos dos estados hegemônicos, alnpliando,
encarando toda diferença como desvio do certo" e "universal", 1/
em vez de reduzir, as ações em defesa do "forte" que há pouco
transformando o que é mera diferença em desigualdade, atravês da
identificamos.
difusão da idéia de verdade única e da conseqüente, imposição de
Superar as formas regulatórias que se exercem sobre o "mais
um modelo particular de ser humano e de comportamento ao
fraco", garantindo ao mais forte a manutenção do poder social,
conjunto da humanidade. É por isso que Maturana (op. cit., p. 78)
•. perigosas para aqueles que nelas se engajam. A história das lutas recentes vai afinnar que o projeto de uma ordem social- no caso a capitalista
contra sistemas ditatoriais confirma essa hipótese. Na democracia formal, a
"civilidade" das estratégias hegemônicas permite o desenvolvimento de burguesa - abre espaço para a tirania, porque erige um sabedor do
lutas mais amplas e permanentes e torna as possibilidades de ação tática mais dever ser social que passa a poder exigir que outros - as camadas
numerosas, simples e cotidianas, possíveis de ser desenvolvidas por parcelas
mais significativas da população. dominadas da população- sejam da forma considerada apropriada.

I
entre ti regulnc;iio c n emancipação Democracia social, cidadania ativa c ema1Jcipaçiiona sociedade l1IulticlIltllrnl
33
Currículos praticado$;
32

b' etividade universal neutra e abstrata i alternativa, buscando nos reconhecer naquelas que contribuem para
A superação des:~~u~~~:~~d~_sem_parênteses_ pressupõ,e, para,~ \ a emancipação social, é um dos desafios da consbução democrática
- a que ele cham J " b' ti' 'dade-entre-parenteses . I e um dos motivos pelos quais é predso nos mantermos politicamente
. - d 'd"adeuma o le VI
autor, a aceltaçao aleI ~ ' ma verdade que não associados ao pensamento de esquerda. Nesse sentido, as
'd ,. de que ha uma, e sou ,
Ouseja/superaral ela. d "existe uma realidade contribuições dos autores referidos - Humberto Maturana (1999 e
I nSlderan o que
depende de nos, co. sso conhecer e noSSO explicar, e que a 2001) e Boaventura Santos (1995, 1997, 2000) - para esse debate
transcendente que vahda no fu d em tal obJ'etividade" (id., revestem-se de particular importância, na medida em que ambos
. d d nh cimentose n a
universalida e o co e d' to de que" a validade das buscam formular caminhos possíveis de respeito à diferença,
. 46) assar a atuar no enten Imen __
Ib., p. e p. fi ra em nossa aceitaçao e nao associados à necessária opção pelas alternativas mais democráticas
explicações que acellamo~,se con gu 47). Ou seja, "no caminho e emancipatórias, resultantes de ações e de reflexões sobre os
b
independentemente dela (Id., I ., p. _ _o há verdade processos de interação social.
. . . .d de_entre-parenteses na
explicat1vo da obJet1vl a. muitas verdades diferentes em Em primeiro lugar, Boaventura de Sousa Santos (1999, p. 62)
bsoluta nem verdade relativa, mas
a b 4~ formula de modo magistral a sempre difícil e central questão da
muitos domínios distintos" (id., 1 ., p. '. . . t taJitários
diferença e da igualdade. Diz o autor que é preciso compreender a
Ainda segundo o autor, o fracasso dos projetos soaaIS o
questão considerando que "todo mundo tem direito à igualdade
é de caráter espiritual, na me d'1d a e m que é o fracasso de um
quando a diferença discrimina e todo mundo tem direito à diferença
. 1"lmp ondo
tabeleeer uma ordem SOCIa
projeto ontológico que busc~ e~ivíduo como ser social consciente e quando a igualdade descaracteríza". Partindo desse pressuposto,
um dever ser que nega o m _ onstrução do mundo que ele podemos considerar que a consbução da democracia social repousa
, ticipaçao na c
responsavel por sua par . ~ . com os outros (id., ib., p. 79). sobre a possibilidade de desenvolvimento de formas de interação
traz consigo em sua conVlVenCl3
social nas quais, ao mesmo tempo em que se superam preconceitos
. associar as idéias de Maturana às de
Nesse sentido, podemos fi ue busca a objetividade, e hierarquias entre os diferentes sujeitos e gnlPOS sociais, garantem-
Boaventura Santos, quando este arma q se aos sujeitos singulares o respeito e a consideração das suas
sem neutralidade. identidades próprias, únicas. Digo "identidades" no plural por
" ' u ulosamente as metodologias que as considerar, com o próprio Boaventura, que a identidade dos sujeitos
Ser objectlvo e seguu escr, p d' posição e conhecer os
,~. ,,- m a nossa lS ,' não é um todo monolítico e definido a partir de uma pertença única,
ClenClas SOClaIS poe h 'mento cientifico e de como
, limites do con eCl mas decorre de processos formativos nos quais se enredam múltiplos
constranD1mentos
O.
e os , 'ito a uma revisa , -o constante, Por outro
,
ele é todo incerto e esta ~uJe _ d' 't de poder tomar partido fios, fatores e fOlmas múltiplas de inserção social, formando o que o
. . d' o cldadao, o Irei o d
lado rel\rm lCO,com d I'nhas posições e expon 0-
, - 'stifican o as m . autor chama de redes de subjetividades que cada um de nós é.
Por diferentes opçoes, JU. esforço de cidadama deve
C 'dero que esse ,
as aos meus alunos, onSI e o processo educativo seja Com Humberto Maturana encontramos a definição do que pode
.. d estudantes para qu
ser transmIti o a~s . 'fco e mais criativo (no prelo). ser chamado de interação sodal de acordo com os critérios definídos
ele próprio lambem maiS cn 1
pelo próprio autor de que só são sociais as relações que se
. u erar as essena 'alizaçoes
- universaJizantes
fundamentam no amor, considerado a base de interações que se
Predsamente ponsso, s p " uidade de nos
ue superamos, tambem, a tngen definem pela aceitação do outro como legitimo na convivência.
ao mesmo tempoq ,. r dora de toda e qualquer OUITO

voltarmos para a aceitação acntica e equa lza


34 CurríC/llos pmticadus: ('"In' ri regl/lação e ri emallcipação
Democracia social. cidadania ativa e emancipação llO sociedade IIllllticuilllral 35

Nesse sentido, o autor defende a idéia de que o amor é Ofundamento


Como primeiro questionamento, podemos dizer que mesmo a
das relações sociais humanas, o que comporta muitas conseqüências
questão da lealdade do Estado em relação aos cidadãos em seu
para ~ pensamento sobre a validade democrática das formas diversas
conjunto, em sociedades cindidas por processos de dominação
de interação social.
social, não se coloca adequadamente nesse quadro. Ou seja, diante
Nessa perspectiva, impõe-se repensar a própria idéia de
da incompetência ou desinteresse do Estado pelo exercício das
cidadania, na medida em que estai na sua acepção moderna, e com
funções que, em tese, ser-lhe-iam destinadas, o cidadão não dispõe
base na exclusão dos selvagens, conforme a crítica feita acima, tem
de nenhum tipo novo ou diferente de ação afora o elenco do que se
servido tanto para incluir como para excluir (SANTOS,1997). Mais
convencionou chamar "forma0:; de p'l(prririn d~ 0rJ 'lchn.;'l" rpc;tTIh".
'-lU t,.'HUPU Uc,.1~Ill.dHUl.::=:ohil.iVt=~ JlJ.UlllCdfnente runOdmentaC1as e
que vimos chamando de exclusão social é somente uma das formas
pacificamente praticadas, ao do voto nas eleições e ao da organização
perversas de inclusão, na medida em que os excluidos permanecem
em associações voltadas para uma melhor interlocução com o
na sociedade, sendo excluídos dela no que tange à condição de
Estado. Fora dessas regras, não há cidadania, há barbárie ou
sujeitos de direitos, mas não como menlbros sociais efetivos.
selvageria.
A exclusão dessas parcelas da população dos benefícios e direitos
materiais e poüticos os arregimenta em segmentos deslegitimados, A discussão que propomos pretende ampliar esse conceito,
dentro de um contexto que, ao diferenciá-los dos chamados considerando a cidadania não apenas uma relação cidadãolEstado,
"incluídos", garante a esses últimos a identidade de incluídos e, mas, na discussão aberta por Boaventura Santos (2000, p. 273ss), um
daí, a de membros legítimos e reconhecidos da sociedade. dos espaços estruturais inscritos no "mapa de estrutura-ação das
sociedades capitalistas" e associada privilegiadamente ao direito
Repensando o conceito de cidadania territorial ou estatal, o que explica, em parte, O reducionismo que
vimos de questionar. Por outro lado, numa discussão a respeito do
Como já vinlOS discutindo, no sentido clássico burguês, e ainda
contrato social compreendido como "grande narrativa em que se
dominante nos dias de hoje, a cidadania é entendida como atributo
funda a obrigação política moderna" (SANTOS,1997, p. 5) e de seus
daquele que é titular de direitos e deveres em relação a um Estado
fundamentos, o autor aponta a cidadania como critério de inclusão
que, em troca, lhe dá segurança e proteção, garantindo-lhe a
nesse contrato, como uma dimensão tenitorialnlente fundada, sem
possibilidade de manter sua integridade física e moral. Assim
desconsiderar sua dimensão inclusiva a partir do critério de partilha
a pensava Hobbes, e, de modo um pouco diferente, também Locke,
do sistema de valores desse mesmo Estado-nação.
e tem sido desse modo que a modernidade a vem entendendo e
legitimando, reduzindo a idéia da existência cidadã a uma questão Ou seja, ampliar o conceito de cidadania vai ,incluir dois
em torno da lealdade do cidadão em relação ao Estado. No processos distintos e complementares, um primeiro concernente à
pensamento liberal, como já dissemos, OEstado é entendido como superação da territorialidade e da "identidade cultural da nação",
o espaço jurídico, cultural e territorial dos Estados-nação modernos, sustentadas pelo Estado-nação, como critérios fundadores da
nos quais se supõe uma aglutinação de cidadãos de uma mesma inclusão e um outro que vai se relacionar à idéia de ampliação das
origem espaço-cultural, vivendo em torno de um sistema formas de exercício da cidadania para fora do espaço do Estado,
sociopolítico-jurídico consensual. entendendo-a como possibilidade de inclusão livre e igualitária no
conjunto dos espaços estruturais das sociedades contemporãneas.
ClllTículo~ I)ralicados~ clltre n rcgldnçiio e a cmfweipnçiio DClllocrncia !'ooeial, cirlarlallia ati'i'a c Cmal1Clpaçao
.- l1a sociedade mlllticHltllrnl 37
36

Propomos, portanto, um debate centrado na combinação dos dois como, nesse projeto, foi equacionada a '. -
homem comum e dos tr b Ih d partiClpaçao política do
elementos supracitados, partindo da idéia de que as diferentes a a a ores".
formas culturais de entendimento da cidadania e dos modos plurais Explica que o equacionamento d 1-
sociais e o poder fOI'pr 'd as re açoes entre as classes
segundo os quais diferentes populações concebem o exercício dos ecomza o pelo p "
atrelado à necessidade da educa _ ensa~e~.to ilununista como
direitos que acreditam possuir, alcança possibilidades de da liberdade e da cidad' ,çaopara a vIabilização do exercício
entendimento dos problemas que atravessam hoje os países com arua,ouse]a a5m J
as liberdades inventaram t b" .es~as uzes que descobliram
origens culturais múltiplas, como é o caso do Brasil e dos demais am em as dlsClpl' H'
cidadania para as cJasses, f . _ mas. aummodeJode
países latino-americanos, mesmo sabendo que há outros importantes menores que llao d .
contexto das relações entre o olíti po e ser Ignorado no
elementos envolvidos na questão que ultrapassam as questões ocidental burguesa A : coeoeducativonamodemidade
relaàonadas às "novas formas" de exercícioda cidadania no contexto fundamental '_ pe agogw desempenharia um papel
das sociedades multiculturais. na superaçao da velha ordem tr d' ,
como tempo de barbárie d' _' ,a IClonal,desprezada
Acreditamos que, a partir desse debate, poderemos pensar de , e IgnoranCla de servid - d d '
e na construção da nova o d ' ao, e espotisn1o
modo mais efetivo as possíveis formas de desenvolvimento de r em como o tem d .
civilização liberdade e ti" _ po a raCIonalidade,
constelações de ações emancipatárias, que possan1 superar a " par Clpaçao.
dominação social e cultural que caracteriza a" democracia de baixa E exatamente nessa vinculação entre d - .
segundo Arroyo, estão fundamentados e ucaçao e CIdadania que,
intensidade" das nossas sociedades contemporâneas, aproximando-
cidadania e "a legitima ã d _ os dIscursos de exclusão da
nos da idéia de que "a democracia é uma obra de arte político- populares por teimar~: e a repressao .e desarticulação das forças
cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade, ' , m agu po llticamente f d
d efimdas pelas elites aVI"1' d ora as cercas
e que o outro é tão legítimo quanto qualquer um" (MATURANA,OP, Iza as como o espa d l"b
pal'ticipaçãoracionaleordeira"('d 'b ço a I erdadeeda
eit., p. 75). Essa idéia, por sua vez, nos remete à discussão AI' I "I "p, 39-40),
desenvolvida por Boaventura Santos (2000) a respeito do . emdaquestãoqueseapresentaà r~ .. . '-
Importa nessa discussa-oa 'd" d P opna mstitUlçao escolar,
reconhecimento da parcialidade de todas as culturas, e da . I ela equeap 'ti 'd -
fora desses padrões é t d'd ra ca CI ada, se exercida
necessidade de se buscar formas de interação entre as diferentes " en en I a comovand I.
aparece, nessa perspecti'v a lsmo, e a educação
culturas fundamentadas na hermenêutica diatápica, a, como precond. -
comum seja aceita como cidadão É Iça0 para que a pessoa
A importância do papel da escola como instância formadora,
legitimidade dessa fónn I "E" fu~damental questionar a
tanto na forma como foi concebida pela burguesia quanto pelas u a. neeessano q t'
condicionar liberdade pa ti' _, ues lonar porque
possibilidades reais de desenvolvimento de ações emancipatárias, . . ' r clpaçao e CIdadania a essa ed -
a essa CIvilidade e a essa racionalidade" ('d 'b ucaçao,
surge como elemento fundamental na discussão. N I "I "p, 40),
esse processo, pretendemos desocuJtar .
econômicos e sociaisda exclusão da ddad . alguns ~eterm~antes
A cidadania burguesa e a educação do povo e a "plebe" ' d'd ama, refundindo o "povo"
em lOS, nessa concepça d .
No texto "Educação e exclusão da cidadania", Arroyo (1987, que, a partir da . ,o ommante de cidadania,
p, 32-33) busca referir-se ã vinculação entre educação e cidadania
"tal como foi constnlída no projeto social da burguesia e nas formas
38 Currfculos praticados: elltre li regulação e li l'maflcipação
Democracia social, cidadania afilia f! e/llallcil'ação 1/11 soch'dade 1I111l1iLII1tur,,1 39

distinção romana entre populus e plebe, considera o "povo" como


A primeira idéia deverá permitir ampliar o entendimento de
instância jurídico-política, legisladora, soberana e legitimadora, e a
"plebe" como dispersão de indivíduos desprovidos de cidadania, fomlas espeáficas de ação adequadas ao espaço no qual pretendem
multidão anônima que espreita o poder e reivindica direitos táticos desenvolver-se. Uma reivindicação cidadã no espaço doméstico não
(CHAUI,1983, p. 17 ap. ARROYo,
op. cit., p. 43). será nunca a mesma que uma ação destinada a uma reivindicação
Assim, são cidadãos apenas aqueles capazes de se comportar de de trabalho ou de direito ao consumo básico. Com a segunda,
modo "decente e ordeiro", cabendo aos demais rótulos variados buscaremos discutir a possibilidade de transculturalizar a idéia de
que os desqualificam
..
seja como bárbaros in civilizados, seja como
. '.
cidadania, não pela busca de elementos
OCidental em outras práticas, mas nelas sondando
da cidadania
a expressão
burguesa
de
c~ ~.r ---'",--"> - -- -~~. -_._~ __ ,. ~ --,. _
exercício dos direitos de cidadania.
conquista de direitos relacionados ã integridade fisica e moral,
Muito da filantropia e da suposta aceitação das diferenças
culturais contemporãneas se fundamenta nessa idéia de que, fora individual e coletiva, formas específicas de exercício da cidadania,
originadas em outras culturas ou em outras formas de inserção nas
dos padrões burgueses, a cidadania possível é uma espécie de
SOCiedades de cultura ocidental burguesa.
cidadania" de segunda classe", e, portanto, nesse caso, só podemos,
na relação com aqueles que detêm outra cultura de origem, ajudar Deste modo, pretendo efetivar a discussão em tomo da cidadania
caridosamente e mantê-los sob controle e fora dos espaços destinados como parte de uma discussão mais ampla, que se relaciona à
aos "verdadeiros" cidadãos. A chamada educação compensatória é, possibilidade ou impossibilidade da existência da democracia como
do ponto de vista das funções da escola, um dos mais evidentes sistema social fundamentado em relações de "autoridade partilhada"
desdobramentos dessa idéia. (SANTOS,
2000), e o possível papel da escola nesse quadro.

Voltamos aqui, portanto, ãs idéias que questionam o pensamento O exercício não é simples, muito menos óbvio, e é por isso que,
donlinante e apontam para ou.tros caminhos na compreensão das tentando evitar um discurso excessivamente teórico que não
formas de exercício da cidadania. A primeira é a de que a cidadania contempla a problemática central das relações entre os diversos
e seu exerácio se relacionam não apenas com o binômio cidadão- povos no contexto de uma sociedade e de uma escola cada vez mais
Estado, mas com todas as formas de interaçâo social nas quais estamos atravessadas por conflitos sociais e por formas de convi\~o entre
inseridos (SANTOS,2000), o que significa dizer que os clireitos de culturas, povos e situações tão diferentes quanto aparentemente
cidadão devem ser pensados como direitos de inclusão e de irreconciliáveis, lanço mão aqui de mais alguns exemplos históricos
manutenção da integridade fisica e moral a ser exercidos em todos de cassação de direitos das culturas chamadas minoritárias na
os" espaços estruturais" constitutivos das sociedades contemporâneas. América Latina e de formas alternativas de busca dQ exercício da
A segunda idéia é a de que as formas específicas de manifestação e cidadania, tornadas necessárias e possíveis em alguns contextos
de reivindicação são múltiplas e se vinculam aos modos como a sociais e~pecíficos - notadamente nas escolas reais -, pretendendo
integridade tem sido negada ou agredida bem como aos modos eVIdenCiar o caráter restritivo e idealizado do discurso oficial
como, dentro dos processos de formação de suas subjetividades, dominante, que não considera essas realidades e as possibilidades
pessoas de origens vivências e referências culturais distintas
l
nelas inscritas, limitando-se a buscar modos de adequá-Ias aos
desenvolverão modos de ação cidadã distintos. modelos ou a condená-las.
CurrfCll/os ,
prallcados: til ,rrU"lIlnçiio
rl' li to> r li ClIlflllci,lUÇiio Democracia socia/, ddadm,ill aHlJil e emancipação lIl1sociedade: Il1l1lticu/tllrnf
40 41

fomos educados por HoIlywood. Os índios eram uns l'ipos de


A questão da cidadania e ~~ '
catadura amargurada, emplumados e pintados, mareados de tanto
multiculturalismo na Amenca Latma dar voltas ao redor das diligências. Da África só sabemos O que nos
É com a ajuda de Eduardo Galeano (J 999)que apresento,algunS ensinou o Professor Tarzan, ,inventado por um romancista que
nunca esteve lá (op, cit., p, 58),
elementos de compreensão das iniqüidades do sistema sOaal~que
Nos anos 1920 e 1930 era normal que os educadores mais
,
Circunscreve as POSSI'bilidades de exerddo da ddadarua na d Am
' nca
te conceituados das Américas mencionassem a necessidade de
'd
Lati'na E"importante ressaltar que COnsl era qu e a cultura omman
I _ regenerar a raça, melhorar a espécie, mudar a qualidade biológica
a Amé,rica Latina nada tem de estranha ou ex 6'tica em re açao ao
• /I li
das crianças. Ao inaugmar o sexto Congresso Pan-Americano da
Criança, em 1930, o ditador peruano Augusto Leguía deu ênfase ao
~amado mundo oddental, Embora não seja e não possa ser ~penas
melhoramento étnico, fazendo eco à Conferência Nacional sobre a
uma reprodução pura e simples da chamada cultura ooden~1 Criança do Peru, que ,lançara um alarme a ,respeil'oda "infância
b rguesa é com base nesta e em seus valores que no:mas e retardada, degenerada e criminosa".Seis anos antes, no Congresso
u " d t nd,das e os Pan-Americano da Criança celebrado no Chile, tinham sido
integração sodal nesses países são formula as e en e_ I' 'á
numerosas as vozes que exigiam "selecionar as sementes que se
o
sistemas esco'lares estrutura d os. 5 povos e populaçoes
. .
que
d aJ semeiam, paraevitar criançasimpuras",enquanto o jornal argentino
t. à época das" descobertas", ou foram ehmma os ~u lA Naci6n, em edil'oriaI,falava na necessidade de "zelar pelo futuro
es a\ am, "' ", t à populaçoes da raça", e o jornal chileno £1 Mcrcurio advertia que a herança
' h d s "grupos minoritanos dun o s
constituem os c ama o . /I ' ." er etrada indígena" dificulta,por seus hábitos e ignorânaa, a adoção de certos
de origem africana, o que apenas e\~d~noa a barbane p ~ d de costumes t? conceitos modernos" (op. a1., p. 62).
sobre eles em nome da (IVI "1' lZaçao.
, E 'portanto como soc,e a
I I •

" . 'I' "ada" que considero a An1 é'nca 'Latin/,


a buscando com ISSO, As palavras de Galeano nos mostram como as diferenças
C1V' ,~ 'd 1" 'ste de culturais na América Latina vém sendo tratadas pelo pensamento
de~vendar um pouco do que, na "civilização OCl enta / eXl ,t
-
"barbárie" , "'
e, portanto, de traição aos pnnaplos q Ue supostamen
~ e dominante ao longo da história, Quando pensamos a questão das
diferenças individuais, reportamo-nos ine\~tavelmente a Foucault
a fundamentam. . /I "

Acredito que, com isso, será possível sair do mJto do ,selvagem e seus escritos sobre o disciptinamento dos corpos e mentes e sobre
, 1 'o mais reahsta com as a estigmatização de "loucos" e "criminosos" produzidos por esse
e d o ",(IVl'I'IZado" e buscar uma mter ocuça . r - de
chamadas culturas diferendadas, não mais sobre a ,dea ,zaçao mesmo tipo de pensamento, Modelos ideais de homem, de mulher,
uma que desconsidera as outras e os caminhos que elas abrem para de cidadão e de trabalhador são difundidos e legitimados,
o pleno exercício da cidadania, sustentando uma noção de igualdade que busca a aniquilação da
diferença e mesmo do diferente, ao mesmo tempo em que produzem
Duas passagens d o li,\ ra de Eduardo Galeano me parecem
a essencialização da diferença que cria a impossibilidade da
significativas para o debate, igualdade,
. d várias mães. Nossa identidade,
Nas Américas, a cul~rareal é ~l~.~~ . dora a partir da fecunda Passaremos, então, a pensar essa questão do desenvolvimento
que é múltipla, reahza sua Vl!a 1 a e a;.~ s temos sido adeslTados de uma concepção mais multicultural e democrática de cidadania,
contradição das partes que a mte~am. a é mutilador impede
- mos O raCismo, que , discutindo com um pouco mais de detalhamento - com base em
para nao nos enxergar '1 d lenamente com todas as suas
que a condiçã? ~1umana. res~~~e~~:~e racismo: de Norte a Sul, texto anterior (OLIVEIRA, 1999) e, mais uma vez com a ajuda de
cores. A Amenca. continu O 1 f mericano~ da minha geração Boaventura Santos (1999)- a questão das formas de tratamento da
continua cega de SI mesma. 5 a 1I10-a • .
Currículos praticados: clI!n' a regularão l' a emtmcipaçtio Democracia social, cidadallia ativa e emancipação IIQ sociedade mu/liclllturaf 43

igualdade e da diferença. Para finalizar, traremos, ainda, uma compreender os mal-entendidos que envolvem a questão da
discussão que pretende perceber a potencialidade das escolas - igualdade e da diferença e que nos dificultavam o caminho
enquanto espaço social específico - e das prãticas nelas da democracia.
desenvolvidas de contribuir para o processo de democratização
Quando se defende uma sociedade mais igualitária, na qual as
das relações culturais e também interpessoais nas nossas sociedades. oportunidades e direitos sejam os mesmos para todos, não se está
considerando que uma sociedade democrática é aquela na qual as
Identidades individuais e coletivas na sociedade pessoas levam uma mesma vida. A igualdade de oportunidades
não significa identidade nos caminhos trilhados, nem de escolha


.-ulticulhITal, ie;ualdad" " difer"nça •.•.. J ...••••, •••."' •• ~ •.•••• l I•.•
Hf.~~ !",-:,fi"~i", .•..•.• rt ••. n!"rf""n('~ nlltlJtl'lll.
~•.•..•

ElTI primeiro lugar, é preciso dizer que, se me pernlito associar r\ 19UI1J...J.<1\.h: p1et\ÕttlJ.h.l.<.l t: d l.h: P'V""J.LHlJ.J. •• ...l.•...:> •.••.•.••••. ~ •.••.•

o tratamento dado pelas sociedades capitalistas às diferenças caminho de vida próprio, de poder ser respeitado nessas escolhas
e de poder se viver de modo digno e satisfatório em qualquer
culturais e individuais, faço-o por acreditar que os processos que alternativa, de acordo com as próprias aptidões, desejos e valores.
produzem a exclusão são análogos e atingem tanto os grupos Concebendo-se a igualdade deste modo, não se pode aceitar nem a
culturais quanto os segmentos sociais ditos "minoritários". modelização da vida e o cerceamento da liberdade de escolha !...],
nem as desigualdades [reais] nas oportunidades e direitos das
A discriminação gerada pela inferiorização do outro se dirige, com sociedades capitalistas atuais, e nem, finalmente, a valorização
base nos mesmos argumentos, a índios e negros, mulheres e excessiva de determinadas escolhas e talentos em detrimento da
homossexuais, "loucos e criminosos" (FOUCAULT, 1977),deficientes validade de outros (OUVElRA, 1999,p. 16-17).
físicos ou mentais, 10 E é esse o debate que precisamos travar com a
Portanto, defender a igualdade de direitos vai pressupor a
igualdade formal burguesa. A fórmula burguesa de "todos os
aceitação e reconhecimento das diferenças individuais e culturais
homens (sic)são iguais perante a lei" é problemática porque ignora
que nos levam a buscar e nos permitem escolher umas e não outras
as desigualdades reais geradas pelas relações sociais de dominação
formas de estar no mundo. Diferença e desigualdade são, neste
que caracterizam as sociedades capitalistas contemporãneas,
sentido, conceitos que se opõem. A igualdade de fato inclui, como
baseadas em um sistema de "troca desigual" (SA1\ITOS, 2000). Nesse
nos diz Boaventura, o direito à diferença, também frágil nas nossas
sistema, os processos de inferiorização e de desqualificação do
sociedades de dominação cultural. Na continuidade do texto citado
"outro" atuanl como poderosos nlecanisrnos constitutivos das
acima, cligo:
relações de poder, que, ao definirem este "outro" como inferior,
buscam aniquilar a validade dos seus modos de representação e de A defesa das desigualdades nas sodedades ocidentais, consideradas
como fruto inevitável da liberdade de escolha e de ação, do espaço
compreensão da sociedade, bem como suas formas de atuação, como
aberto às diferenças e do mérito de cada indivíduo na condução de
jã vimos no debate sobre a questão das formas de exercício da sua vida, conduz esta reflexão ao segundo par de conceitos, opondo,
cidadania. desta vez, diferença e desigualdade. Não creio ser necessário
defender a idéia de que as pessoas são diferentes umas das outras,
No texto de minha autoria, a que há pouco me referi, discuti a
bem como os grupos sociais, e que isto nada tem a ver com a
questão da construção possível da democracía, buscando atribuição de privilégios àqueles que realizam esta ou aquela escolha
lU Hoje chamados, de modo politicamente correto, Uportadores de necessidades
em suas vidas ou professam determinados valores. O tratamento
especiais'" continuam a ser excluídos ou considerados cidadãos de segunda desigual, que nas sociedades capitalistas atuais é dispensado às
categoria na maior parte dos contextos sociais. pessoas, em função de suas escolhas e de suas histórias, pode ser
44 Currícl/los . ri os:
Ilrnt1cn ""I,." 17 rc.o"lIln(ão
~\ c n cmmrcipnção
DCl1locmcia SOcilll, cidadania nfi"1l c elllnncil'l7çiio //(/ sociedade l1Iu!ticlIllllrn!
45

T t'
N no direito à diferença.

entendido C01110uma reduçaodsflgm llca~lVa,asvezes excessivamente naquilo que se propõe para a prática pedagógica quanto no que se
ar;) poder ser J ef€n e te" _
OI preço No
pago p o resu lta d o podner
limite ~ [ ] a modelização,[...] tao realiza de fato em seu interior. Avivando o debate, trazemos um
[] 0.0 •

a to. ... f 11 C b
• ainda ressaltar que raCIsmos e pouco do que minlla expeIiênda e eshldo lne vêm ensinando a esse
nociva à democraCla. a €, 's c~nvivemos cotidianamente,
preconceitos outros, com os qual I d,'menta da diferença! respeito.
d t . cisamente no en en .
se fun amen am pIe. ld d AI umas características culturaIs, Uma pequena história da crueldade da exclusão pode ilustrar a
diversidad: como d~slgua :;~ d~erminados comportamentos,
físicas ou mtelectu3ls, ou ai . do-se assim uma problemática do preconceito racial que está presente em nossas
. d 'ores a outros, CfIan L' " ,
são conSIdera os supen 't' 'os de "humanidade" escolas.Passou-se com uma amiga minha, negra, excelente professora
hierarquia baseada em modelos e CrI en _
(id., ib., p. 17-18). de classe de alfabetização há muitos anos, quando ela tinha sete
anos de idade e freqüentava a lil série. Foi ela mesma quem me
O seja tanto ao negligenciarmos as diferenças, igualando os contou, mas, como não me autorizou formalmente a publicação,
desl 'guU aisq~anto ao negligenciarmos a igualdade, no que se refere não vou identificá-Ia. Não tendo entendido a "lição", ela dirigiu-se
, . . d f ermos nossas
aos direitos individuais, culturais e sOClal~ e az 'bTdades de à professora e pediu nova explicação. A resposta que ouviu foi:
próprias escolhas, estamos nos afasta~do as l~ral Creio P;;;SI "Para ser empregada doméstica, o que você sabe já está muito bom".
construção de uma sociedade democratica e mu cu . ntos' Outras formas menos cruéisou explicitasde preconceito e exclusão
'd
ser este o sen ti o da bela eJ'
á citada expressão de Boavenhrra Sa .
podem ser encontradas nos cotidianos das nossas escolas. É comum
.. ue a diferença nos inferioriza; OUvIDnOS bem intendonadas professoras dizerem coisas do tipo:
Temos o direito a ser 19ua~ssempre q e que a igualdade nos
temos o direito a ser dIferentes sempr - Ele é pretinho mas é limpinho.
descaracteriza(1999,p. 62).
- Elenão aprendeu a ler,mas sabe sambar como ninguém na sala!
- Para que exigir tanto, coitada, a gente sabe que não adianta!
As escolas, suas exclusóes e I' ltural
Mas em seu dinamismo e diversidade infinita, as escolas também
tentativas de inclusão no contexto mu hcu , '
desenvolvem formas de relacionamento multicultural bem mais
Para contemplar a questão colocada à escola, sera preCISO
democráticas e igualitárias, através de trabalhos coletivos,
trabalhar com práticas desenvolvidas não apenas de aCOlldo_co:: desfolclorização de práticas culturais alternativas _ como nos
ceito dominante de C1'd a d'anIa - que mclUl as re açoes
~ mostram Alexandra Lima e Renata Lobo (2002)em texto recente _ e
con _ os sociais com o Estado -, luas tambem com
cidadaos e de grup I e às práticas reais outras incontáveis experiências, mais ou menos coletivas, mais ou
relações e eventos relacionados ao espaço esco ar
menos bem-sucedidas. Também há, cada vez mais, propostas
que nele se desenvolvem. ._ curriculares que buscaITIsuperar essa segregação, presentes tanto
Historicamente, nas escolas, teITIOS assistido ao Jogo d~ tensao em projetos de escolas i,oladas, como em políticas locais de currículo
entre a Iegt'tu'na ça-o da dominação e a busca de sua superaçao, tanto que integram novidades. São propostas que incluem novas
----------- . uma das características da escola concepções da história e dos modos de ensiná-la, o reconhecimento
J1 O efeito de "forma" denunCiado como d 5 mecanismos de modelização
tradicional pode ser considerado co,~o u,~ .~ tais O mesmo poderia ser da participação das culturas africana e indígena como constitutivas
. d des "democratlcas Del en . .
presentes nas SOCle a . _ d determinados saberes e carreiras
dito com relação à hipervalonzaçao e
de nossa identidade cultural brasileira, entre outras formas de tentar
profissionais. superar - pelo reconhecimento da diferença que respeita e
Currículos praticados: elltre a regulaçiio e a emancipação
46

reconhece como válidos os valores e práticas culturais e da igualdade


que não permite a discriminação e inferiorização do diferente - as
múltiplas manifestações de exclusão e de dominação com que
convivemos.
Seja através de práticas emancipatórias desenvolvidas como Repensando o cotidiano
táticas transgressoras, seja a partir de propostas formuladas sobre
bases emancipatórias, tem sido no cotidiano das escolas que, apesar
dos tantos mecanismos regulatórios assentes sobre a legitimação da
dominação, vêm se desenvolvendo fazeres que nos permitem
continuar a crer no potencial democratizante de nossas ações. Isso A ciénciamodema tem sido construída através de procedimentos
depende evidentemente da forma como nós, professores e de seleção, organização, classificação e transformação dos" dados"
professoras, nos situamos política e pedagogicamente nesse quadro, em algo que se possa reproduzir, delimitando e simplificando os
e de como assumimos nossas responsabilidades individual e coletiva objetos, constituindo um lugar cientifico para o qual se podem
na criação de práticas cotidianas que ampliem as possibilidades de transferir os objetos de estudo.
exercício da cidadania nesse contexto multiculturaL o inconveniente do método, condição de seu sucesso, é extrair os
Importante, nesse sentido, é o desenvolvimento - já em documentos de se~ contexto "histórico" e eliminar as "operações"
dos loc~t?res,em crrc,:r:stâncias particulares de tempo, de lugar e
andamento em experiências pontuais - de processos de formação
co~~ehçao. E necessano que se apaguem as práticas lingüísticas
das subjetividades de alunos e professores permeados pela idéia da co.tidianas (~o espaço de suas táticas), para que as práticas científicas
consciência da dOlninação corno mecanismo indispensável à sua sejam exerCidas no seu campo próprio (CERTEAU, 1995, p. 81).
superação. O trabalho com novos referenciais epistemológicos, mais
As práticas cotidianas, no entanto, para além de seus aspectos
emancipatórios, afigura-se fundamental, na medida em que permite
org~áveis, ~u_antificáveis
e classificáveis, em função daquilo que
:'l "mppracáo, não só dos preconceitos e idéias que realimentam a
1 ~ ~- nelas e repehçao, esquema, estrutura, são desenvolvidas em

legitimidade dos discursos que as fundamentam.


as p~lavras.Os utensílios, as formas discursivas, bem cOl~~as regras
Acreditando que nossas possíveis ações são desenvolvidas nos
geraIs ~o estar na sociedade, são, no cotidiano, marcados pelas
espaços cotidianos e são fundamentadas em processos de
operaçoes de que foram objeto,
aprendizagem também cotidianos e, ainda, que as circunstâncias
nos permitem, astuciosamente (CERTEAU, op. cit.), transgredir as ope~ações:elativas a ~ituaçôese encaráveis como ~'modalizações"
conjunturaIs do enunCiado ou da prática; de modo mais lato indi
normas ditadas pelo poder instituído e desenvolver táticas portanto u~a "historicidade" social na qual os sist~masc:
emancipatárias, vamos nos debruçar sobre o estudo do cotidiano rep~ese~taçoes ou os procedimentos de fabricação não aparecem
enquanto tal, seus significados, suas características e possibilidades, mal~ 50 ,co~o quadros normativos mas como instrumentos
mampulavels por usuários (id., ib., p. 82).
uma vez que é nele e sobre ele que atuamos, concretamente, na
tessitura de ações que contribuam para a emancipação social OP&Aeditora
democratizante, dentro e fora da escola.
Currículos pJ'atimdos; entre 11 regulação c a emancipação RcpCl1Sl1Iufoo co~idial1o
48 49

Existe, portanto, fora daquilo que à "ciência" é permitido misérias, e a face dos camponeses e d .
da exploração das nu',' . os pobres, da sunplicidade e
, "enas a sustentar gr d
organizar e definir em função de estruturas e permanências, uma a ver só uma face. Por isso O ~n ezas. Cervantes recusa~se
vida cotidiana, com operações, atos e usos práticos, de objetos, regras encerrado nas suas fantasi~s' om QU1xO~~ não vive totalmente
. / como um herOl de K fk .,
o vaI trazendo (quase) à realidade A a a, Ja que Pança
e linguagens"historicamente constituídos e reconstituídos de (quase) a nossa, é o protesto fa t: ti"sua loucura, que é também
acordo e em função de situações, de conjunturas plurais e móveis. . t~ . ~ n as co cont I"
eXls enCIa organizada para a mediocrid ra ~s ImItes de uma
Há "maneiras de fazer" (caminhar, ler, produzir, falar), "maneiras Charles Chaplin, Grouxo Ma C a~e. Aderunos a ele como a
rx ou
a Saint.Simon e Fourier E ad . antmflas. E - por que não?-
de utilizar" que se tecem em redes de ações reais, que não são e não . enmos tanto I
Sancho Pança que ' com o e ngen h o e a arte a e e como aderimos a
d b
poderiam ser mera repetiçáo de uma ordem social preestabelecida e t rans f arma, perante o a mo em transe o].dsa er cotidiano '
explicada no abstrato. Desse modo, podemos afirmar que a tessitura camponesa na imaginação da Dl" . ,a rea 1 ade da jovem
ti cmela (S""O'05,1993,p ..9)
das redes de práticas sociais reais se dá através de "usos e táticas dos
praticantes"! que inserem na estrutura social criatividade e A partir do que dissemos acima e da referê . ,
preocupação com o cardO nCIa a crescente
I 1ano no campo d .~.
pluralidade, modificadores das regras e das relações entre o poder
percebemosqueessasquestõe b as ClenCIas sociais,
da dominaçáo e a vida dos que a ele estáo, supostamente, s ora
não são apenas retóricas Elas ,em f ti. aparentemente respondidas,
subtnetidos. E isto acontece no cotidiano. . / e e vamente t- d
exigindo o desenvolvimento de refi _ ,es ao, ca a vez mais,
Esse fragmento de um texto já publicado (OLIVEIRA,
2001a, p. 43- o exoes que nos .
ensatar respostas avançar na _ pennltam, ao
44) é aqui reapresentado com o intuito de lançar a discussáo em tomo , compreensao do ' d
representar o cotidiano para a li _ que e e o que pode
do cotidiano, desta vez na busca de definir, conceituahnente, o termo. amp açao do no .
respeito de alguns processo '. sso entendunento a
Mas porque definir conceituahnente um termo tão utilizado e de s SOOaISque foram n r .
grandesnarrativasdamode 'd d . eg Igenoados pelas
significado táo evidente para a maior parte das pessoas? O que pode . ~ fil a e/comseuslstemad
que tornou Identicas as idéia d' . e pensaInento
ser o cotidiano a mais do que a rotina do dia-a-dia de todos nós? o o S e rotina e de cotidiano.
A pnmeua aproximaçáo que d
Essas questões, secundarizadas durante muito tempo pelas exatamente a essa identi'fi _ , po emas fazer refere-se,
, caça0 e a negligên .
ciências sociais, vêm reemergindo em tempos mais recentes. Num que elas nos ensinam sob ' oa por ela gerada, e ao
dos números da Revista Crítica de Ciências Sociais dedicado à re as caractensttcas d
moderno. Ao tomara ciêl10'a galil . o pensamento
sociologia do cotidiano, Boaventura Santos (1993) refere-se a esse eo-newtorua ' o

aceitável de le<>itimaçáo d 'd" na o uruco paradigma


ressurgimento através de uma oposiçáo inicial entre o caráter "Dom . o' as I elas e dos t b 11 d '
CIentífico, a modernidad'd ra a lOS e cara ter
Quixote" das grandes narrativas sociológicas e o "Sancho Pança" e OCI ental optou "1'
elementos controláveis e quanti'fi' . d . por pnvI egtar os
que emerge nos estudos do cotidiano, e propõe uma pergunta, a caveis a realidad . d .,
de que os demais dados não I e, man o aldeia
que ele mesmo responde, sobre a necessidade ou náo de a sociologia eram re evantes O' ."
e sua ciência derivada, a estatística aco . u seJa, a quantificação
optar por um ou outro. Diz o autor: de generalizaçáo que e t '. ,mpanhadas da necessidade
ncon ra na ldela de o o

Minha resposta é não. E se não há melhores razões para ela, que mais perfeita expressão, baniram do d um~e~~ahdade a sua
baste a fidelidade a Cervantes. Efetivamente, para Cervantes, Dom singulares e qualitativos do real náo co:;n , o das Idelas os aspectos
Quixote e Sancho Pança pertencem-se mutuamente, são as duas l
que buscam regularidades u~ o avelS através dos estudos
faces da mesma realidade, espanhola e européia. A face das I q possam ser retraduzidas em ") . "
conquistas, da expansão e do império, das grandezas a esconder sso porque, na lTIodernidade cientificist. a, eIS
Cum'rlllos pmlkndos: (utre li rcgulaçiio c a cmaflcipaçlio Rcpc1/salldo o cotidia1/o 51
50

o rigor cientifico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades freqüência,


. classificamos como especial ou extraord.n' . e que,
I ano
intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu por ISSO, nos leva a sa.ir das "regras" do nosso viver cotidiano.
lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se
Se, entr~tanto, recuperamos da nossa vida os aspectos singulares e
podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente
irrelevante (5",,'f05, 2000,p. 63). qualitativos dessas práticas, aparentemente repetidasad infinitum,
vamos nos dar conta de que, na forma de fazer cada uma dessas
A vida cotidiana passou, desse modo, a ser tratada apenas nos atiVIdades,nunca há repetiça-o. In'umerassao
- as apresentações, como
.
seus aspectos quantitativos, abandonando-se, a partir daí, as ~ancaturas, de neuroses, da literatura ao cinema, que se fundam
especificidades das formas de se praticarem as atividades, lu_sta,mentena r~petiçâo idêntica das atividades do dia-a-dia.12 Isso
na medida em que são considerados" dados relevantes" para efeitos nao e um acaso. E muito maís o fruto de uma consciênciaadormecida
estatísticos apenas as regularidades e permanências. Os danos que temos da realidade denunciada por Santos na passagem
causados às possibilidades de compreensão da riqueza da vida supraotada, de que os ganhos de rigor trazem perda da riqueza.
cotidiana surgem daí. Na realidade do dia-a-dia, nunca repetimos as mesmas coisas
o rigor científico,
porque fundado no rigor matemático, é um rigor que fazemos, do mesmo jeito. Historicamente, aprendemos que
que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao relevante
. . no nosso fazer é o "o que-"' que po d e ser medIdo,
.
objetivar os fenómenos, os objectualiza e os degrada, que, ao
quantificado,
. regulamentado e controlado ,mo,
e na-oo "co " que
caracterizar os fenómenos, 05 caricaturiza. {...] Desta forma, o
conhecimentoganha em rigoro que perde em riqueza(id.,ib.,p. 73). vana de modo mais ou menos anárquico e caótico não sendo
portanto, passível de análise quantitativa, nem 'de control~
A partir dessas idéias, temos uma primeira possibilidade de
nor~ativo, n~m mesmo de regulamentações precisas, apesar das
falar sobre o que é o cotidiano, para além da repetição rotineira de
mwtas te.ntativas nesse sentido que foram desenvolvidas ao longo
ações e de atividades, idéia disseminada e aceita sem maiores
da hIstóna e denuncIadas por muitos autores, com destaque para
questionamentos no mundo contemporâneo. Pensado pela ótica Foucault (1977).
da quantidade, o cotidiano é, de fato, um espaço de repetiçâo, de -- . A essa impossibilidade de controle sobre os modos de fazer- no
o que talvez explique a idéia, abraçada por
..,.,.,..,~~.,.,Iwif'<l"dp.
•.h7f'rdpl_lll1C/Q4\ ",rlf><odpflw-"
,,,. .~h
It"'I1 Of" h nm~l(\rlp"rf'hekH~
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muitos pe::iqulsdctor~::t, ut.:: '-luto: U l...\.JlIJI..lli. •..•_,.••.l\,."-lW'~ I'" '~ll, l,," ,I.
do c~bdJdno (UUVURA, 2UUUd c 2UUUb),atItude que ndO ~c deIXâ
senso comum. Isso porque, segundo essa visão cientificista da
do~ar por normas e regulamentos fOIDlaiS,exatamente porque as
realidade, o conhecimento científico se opõe ao conhecimento do
a?oes co~d.ianas, na multiplicidade de fOIDlasde sua realizaçâo, nâo
senso comum, domínio da vida em que práticas e valores sociais
sao e nao podem ser repetidas no seu" como". Embora nessa
não exigem nem pressupõem qualquer tipo de reflexão.
constatação não haja nenhuma grande novidade, nela'se inscreve a
Assim, na rotina diária, todos os dias acordamos, escovamos os
neceSSIdadede, a partir do momento em que nos dedicamos a refletir
dentes, tomamos o café da manhã, trabalhamos, assistimos à televisão,
falamos ao telefone, entre outr~s atividades indefinidamente
12 Lembro me . . 1
repetidas e raramente modificadas que a ocupam. Quando as filme "~elh ~qUI, parti,Cu~rmente, ~a personagem de Jack Nicholson no
r .d d ~ é ImposslVel ,que preosava executar todos os dias as mesmas
modificamos, ou o fazemos porque substituímos uma determinada ~ IVI a es ngoroSêUnt:nte do mesmo jeito. O efeito de comédia no filme

Jlividade por outra, ou vivemos algum momento que, com eve-se, exatam~nte, â identificação da personagem como caricatural.

L.
32 Crlrrínlllj~ praticado::;; e!ltre n HX1l1l1çifo c fi CllUlllcipnçiio Rcpc7l::~nl1don cntidiml(1
53

sobre o cotidiano como campo de estudos específicos, esclarecer do


características fundamentais a multiplicidade, a provisoriedade, o
que falamos e do que queremos falar com esses estudos. dinamismo e a imprevisibilidade,
Con1o primeira aproximação de resposta à questão inicial,
Para c0111preendê-lo, portanto, precisamos, ao mesmo tempo,
podemos então dizer que o cotidiano é O conjunto de atividade~.
"desaprender" os saberes que aprendemos a partir das teorias sociais
que dese'nvolvemos no nosso dia-a-dia, tanto do "q~e nelas. e
da modemídade 2000, p. 382-383) e buscar tecer novasfol111as
(SANTOS,
permanéncia (o seu conteúdo) quanto do que nelas e smgular (as
de entendimento dos processos de criação das ações e de suas
suas formas). No entanto, para avançar no debate além d~ssa
múltiplas formas de manifestação, como já o vêm fazendo alguns
dicotOlnia inicial entre os aspectos quantitativos e qualitativos do
autores.]4 Predsamos, para isso, lançar mão de uma outra perspectiva
cotidiano, será preciso que nos debrucemos sobre essas atividades,
epistem"DIÓgfca; que. sUpere ás. dicoiomias hierarquizantes e
suas características, os significados que elas assumem, c, sobretudo,
reduções ordeIiádoras que caracterizam o pensamento moderno e
as dimensões de nossos seres que entram em jogo quando as
que levaram à desqualificação dos conhecimentos não-científicos,
produzimos e os elementos que as constituem, pensan~o-~s, a partir
da primeira definição, tanto quantitativa quanto qualitativamente. dos fazeres que deles derivam e dos sujeitos que deles se servem,
reforçando e legitimando processos de exclusão social. E esse é um
Todas as atividades que desempenhamos eln nossas vidas são
dos motivos por que precisamos buscar desenvolver U111novo
aprendidas, mesmo que instintiva ou mecanicamente, c~mo é o
caso das atividades básicas. Isso significa que tanto o conteudo das paradigma de conhecimento, o "de um conheciJnento prudente
para uma vida decente" (id., ib., p. 74).
nossas ações quanto as múltiplas formas através das quais as
desenvolvemos são plurais, resultado de aprendizagens e das Sem avançar TI1UitOna apresentação que o autor desenvolve, o
marrifestações daí decorrentes, sempre múltiplas. Se acrescentarmos que por si só mereceria outro texto, vamos nos apropriar aqui de
a isso nossa convicção de que nossos processos de aprendizagem alguns elementos deste "paradigma emergente" que nos serão úteis
são permanentes e jamais completos, teremos de. aceitar ~ue nossas na formulação conceitual que estamos desenvolvendo.
formas de agir cotidianamente, que deles denvam, sao sempre Desmistificando a idéia de um conhecimento absolutizado que se
provisórias e, portanto, dinâmicas. Tecendo-se~em redes_de ~aberes oporia à ignorância em geral, Santos vai dizer que "todo saber é
e de fazeres que não podem ser explicadas atraves de relaçoes .lineares saber sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda a ignorância é
de causalidade, sendo, portanto, imprevisíveis, as aprendIZagens ignorãncia de um certo saber" (id., ib., p. 78). Revalorizar os saberes
que serveln de base aos conteúdos e às ~orma~ através ~as quais cotidianos significa, nesse quadro, promover a hOrizontalização das
nossas acões cotidianas são desenvolVIdas tem tambem como relações entre os diversos saberes, a partir do momento em que
caracterí~tica a imprevisibilidade e a permanente mutação, sob reconhecemos em todos incompletudes e potencialidades.
influência de fatores mais ou menos aleatórios, Ou seja, a lógica que No desenvolvimento do texto, referindo-se à produção do
preside o desenvolvimento das ações cotidianas é profundamente conhecimento científico, urna passagem de particular intere?se para
diferente daquela com a qual nos acostumamos a pensar na reafirmar a importãncia do cotidiano e dos conhecimentos que nele
modernidade,13 na medida em que o cotidiano tem como são tecidos vai nos permitir anlpliar, ainda mais, a definição que
n E'mboratenha sido na modernidade que essa lógica tomou-se tão dominante vimos tentando desenvolver.
ue aparentemente única, ela foi herdada pelo Ocidente do pensamento --------_.
~ego, notadamente o de Platão. A esse respeito ver Jullien (1996). 14 Ver,sobretudo, Certeau (19q4) e Gras (1991).
54 Currículos pratimdos: elltre a regulação e {l emancipação Rl:PCl/Sfl!1dv V cvtidíflllO 55

Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajetórias de vida E aqui percebemos o porquê da necessidade de '.fidelidade a
pessoais e coletivas (enquanto comunidades científicas) e os valores,
as crenças e os preconceitos que transportam são a prova Íntima do Cervantes", da qual nos fala Santos.
nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais Deste modo, para continuar nosso estudo, precisaremos nos
ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo debruçar sobre os modos como essa articulação entre os diversos se
constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem
pavio. No entanto, este saber das nossas trajetórias e valores, do dá. Incorporar os fazeres e saberes cotidianos em sua diversidade
I.
qual podemos ou não ter consciência, corre subterrânea e pressupõe a percepção das diversas influências intervenientes na
clandestinamente, nos pressupostos e não-ditos do nosso discurso formaçáo dos sujeitos, suas relações e articulações. E, a partir daí,
científico. No paradigma emergente, o caráter autobiográfico do
reencontramos Boaventura Santos e o enredamento entre os
conhecimento-emancipação é plenamente assumido: um
conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes múltiplos espaços/tempos nos quais nos inserimos e que formam e
nos una pessoalmente ao que estudamos (id., ib., p. 84). constituem" a rede de subjetividades que cada um de nós é" (SANTOS,
1995 e 2000), condicionando as formas como esta se manifesta em
Ou seja, o cotidiano é o espaço-tempo no qual e através do qual,
cada situaçáo específica. Se a rede de subjetividades que constitui
alélTI de forjarmos nossas identidades e tecermos nossas redes de
cada um de nós se tece nos diversos espaços estruturais nos quais
subjetividades, em funçáo dos múltiplos conhecimentos, valores e
estamos inseridos, isto se dá porque eles estão permanentelnente
experiências com os quais convivemos nele, tornamo-nos
articulados e sempre presentes na nossa vida cotidiana, da qual são
produtores de conhecimentos, mesmo dos chamados
elementos constitutivos.
conhecimentos científicos.
No que se refere às características básicas da ação cotidiana, às
Por outro lado, ainda no sentido de ampliaçáo do debate
quais outras tantas vêm se juntar, podelllos, então, dizer que elas
epistemológico, a superaçáo das mutilações e fragmentações
assumem suas significações específicas em função dos processos de
cientificistas exige que consideremos a questáo da complexidade,
recriação permanente dos nossos fazeres, produzidos tanto em
desenvolvida por Edgar Morin e hoje defendida por muitos
função das circunstâncias específicas do momento e da fOffila como
pensadores. É ele quem afirma que precisamos do paradigma da
os vivenciamos, quanto dos processos históricos mais alnplos -
complexidade para superar o cientificismo. Explica, ainda, que a
'I.'.:J .1 ~~.-.I.
_.::::_
.-1_.,.•• ........-_h>
.•••• ""rnnronoit"t!
~irl..,T'prn•... culturais, sociais, familiares, políticos etc. - que nos fornlam,
.;~ . ..:." ~ . _ ...•.-- i.4,o._l-irl...rlp<> ,nr1ivirll1~i,p rnlpnva,>.
resposta nenl como completude, mas Sllll como desdttu e luta cuntra
a mutilaçáo, explicando que Portanto, para cOlllpreender o cobdldTIO, cumpre CLJn~1L1t.::là1U~

processos de formaçáo de nossas subjetividades em seus múltiplos


a ambição da complexidade é prestar contas das articulações espaços/tempos, o potencial que elas incluem, bem como a
despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas
e entre tipos de conhecimento [...]. Isto é, tudo se entrecruza, tudo se articulação entre as circunstâncias das situações e nossas
entrelaça para formar a unidade da complexidade; porém, a unidade possibilidades de açáo. Portanto, para compreender a lógica que
do complexus não destrói a variedade e a diversidade das preside à vida cotidiana, precisamos nela mergulhar e aceitar a
complexidades que o teceram (MoRlN,1996, p. 176, 177, 188).
impossibilidade de extraçáo de dados relevantes em meio a uma
Assim, com Morin, poderemos afirmar que o cotidiano é o espaço totalidade que seria" caótica", 15 na medida em que a complexidade
de realizaçáo do complexus, onde tudo entrecruza e entrelaça, sem 15 O termo "caótico" é aqui utilizado no seu sentido corriqueiro, sem relação
perda da variedade e da diversidade das complexidades que o tecem. com as "teorias do caos" de Ilya Prigogine, cuja formulação tem sido bastante
útil a pesquisas no campo do cotidiano.
56 Currículos praticados: elltre a regulação e a cmallcipaçiio Repensando o cotidiano S7

constitutiva do cotidiano e da lógica que o orienta exige de nós (2000, p. 197-202), cujo potencial para a compreensão dessa relação
considerar a relevância de todos os seus elementos constitutivos. entre as "regras" e os "lances" é imenso.
Articulando, portanto, as aprendizagens sobre as normas e
regularidades do sistema social no qual nos inserimos com outras, Os mapas, as escalas de leitura do mundo
fruto de 'vivências e experiências nos pequenos espaços e e suas articulações
circunstâncias da vida cotidiana, vamos considerar que a idéia
Entendendo os mapas como um dos modos de imaginar e
pejorativa de caos não se aplica. Recorrendo mais uma vez a Certeau
representar o espaço, Santos explica que eles são distorções reguladas
(op. cit.), e à leitura que dele fizemos, repetimos texto anterior
da realidade, distorções organizadas de territórios que criam ilusões
(OLIVEIRA, alo. cit.)
crediveis de correspondência (id., ib., p. 198). Boaventura acrescenta
Embora sejam múltiplas, diversas e singulares, as práticas que o objetivo dessas distorções é instituir a orientação. Essas
cotidianas, maneiras de fazer e de estar no mundo, para serem distorções são reguladas por operações e mecanismos determinados
pensadas, devem ser entendidas como um número finito de e determináveis (id., ib., p.199), obedecendo, portanto, a regras e
procedimentos, que aplicam os códigos e normas existentes
procedimentos que não são arbitrários.
seguindo uma lógicaarticulada em cimada "ocasião",que é diferente
daquela da ordem estabelecida, m<1S que se constitui, ainda assim, Já se referindo às escalas, como uma das formas pela qual os
de um certo número de formalidades. mapas distorcem a realidade (as outras são a projeção e a
Em primeiro lugar, os "jogos" específicos de cada sociedade [...] simbolização) o autor cita Monmonier. Este autor afirma que a escala
dão lugar a espaços onde os "lances" são proporcionais a situações.
[...] os jogos "formulam" as "regras" organizadoras dos lances e
é"a relação entre a distância no mapa e a correspondente distância
constituem também uma "memória" (armazenamento e no terreno". Nesse sentido, a escolha da escala
classificação) de esquemas de ações articulando novos lances
conforme as ocasiões (p. 83-84). implica uma decisão sobre o grau de pormenorização da
representação. Os mapas de grande escala tê:ql um grau mais
Sendo assim, as táticas utilizadas pelos praticantes na escolha deste
elevado de pormenorização que os mapas de pequena escala
ou daquele "lance" em uma situação específica, embora limitados porque cobrem uma área inferior à que é coberta, no mesmo espaço
pelas regras onde devem inscrever-se estes lances, possuem urna do desenho, pelos mapas de pequena escala (id., ib., p. 201-202).
formalidade que lhes é própria, que não permite o.desvendamento
do jogo enquanto totalidade, na medida em que se desenvolvem Podemos então dizer que um mapa desenhado em pequena
no contexlo complexo da vida cotidiana, com sua multiplicidade de
situações e de maneiras de se perceber e avaliar estas situações.
escala nos mostra pouco de Ulna área grande, enquanto, ao contrário,
A racionalidade própria das práticas de espaço é, portanto, a de I um mapa de grande escala no-la mostra detalhadamente, ou seja,
espaços fechados e "historicizados" pela variabilidade dos
acontecimentos a abordar. As regras são sempre as mesmas, mas
i
I
divulga muito de uma pequena área selecionada. Ou seja, através
da leitura de mapas em pequena escala, conseguimos captar, em
os lances múltiplos que elas comportam são escolhidos de acordo
com a situação e com a avaliação que dela faz cada praticante da
vida cotidiana (p. 51-52). l
I
!
grandes linhas, a lógica geral do espaço. Metaforicamente,
dizer que o que captamos nos estudos da sociedade
escala" são regras e características amplas, gerais, do seu
podemos
em "pequena

É por isso que, para avançar na discussão, vamos trabalhar sobre


funcionamento; suas estruturas de poder, seus mecanismos de
a "sociologia cartográfica" desenvolvida por Boaventura Santos I dominação e de busca de superação dela, suas grandes relações
I
58 Curric/llllS I'mli",dos: !'u/re n rl'glllnção c a emallcipaçiio Repellsando o cotidiallo S9

internacionais e interculturais. Contudo, por falta de acesso aos escolhas de visibilidade que fazemos não anulam a existência
"detalhes", somos incapazes de perceber como se manifestam, nos daquilo que não vemos, podemos afirmar que o cotidiano inclui,
diferentes espaços sociais, tanto esses processos de organização mesmo que de modo invisível, as normas e regras gerais sob as quaIs
quanto as iniciativas pontuais de transgressão que se desenvolvem se desenvolve, mas sempre de modo único, imperceptível à pequena
em seus interiores, os modos de fazer e de viver que os "praticantes escala dos modelos, para os quais são invisíveis as formas singulares
ordinários da vida cotidiana" (CERTEAU,1994)desenvolvem. Por ou tro de efetivação das regras.
lado, inscritos num pequeno território desse universo amplo, cuja "De perto ninguêm ê normal", 16 diz Caetano Veloso,confirmando
lógica lhes escapa, esses praticantes, mergulhados na prática, não que nenhuma regra ou normatização se efetiva tal qual prescrita na
têm acesso direto à compreensão do universo social amplo. vida das pessoas reais.O ditado popular, em outros termos, confirma:
Mais "embaixo" (down), a partir dos limiares onde cessa a "Toda regra tem exceção", o que quer dizer que, no interior das
visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade, Forma normas organizáveis em modelos, as situações são, em maior ou
elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, menor grau, sempre li excepcionais" na acepção original do termo.
I

l"1a1ldersmii1lner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um


"texto" urbano que escrevem sem poder lê-lo (CERTEAU, op. cit., Assim, partindo das regularidades e permanências captadas
p.171). nos estudos globalizantes realizados através de "mapas em pequena
escala", podemos construir os modelos, mas os modos como as
O cotidiano é, portanto, um mapa de grande escala no qual a
realidades locais expressam as normas e as modificam pelas suas
vida se desenvolve, que, abandonado a si nlesmo, estaria condenado
especificidades só podem ser compreendidos se "descemos" às
a jamais "ver" a sociedade na qual se insere. Por outro lado, as
singularidades, só perceptíveis nos mapas em "grande escala". Mais
estruturações e compreensão geral viabilizadas pela "pequena
que isso, acredito que estudar o cotidiano contribui para a
escala" jamais darão acesso às especificidades de sua efetivação nos
compreensão do processo através do qual os aspectos comuns
microespaços do viver cotidiano.
compartilhados por práticas sempre distintas são transformados
Ou seja, como versões miniaturizadas do real, os mapas
pelas exigências de organização e de busca de regularidades
"envolvem sempre uma decisão sobre os detalhes mais si~ificativos
colocadas pelo pensamento totalizante, em modelos constituídos
. . '.
,""'., -"-.,t .•..- -,' ..
j--" t.
a pequena e a grande escala se complementam como formas de
é historicamente,
l o inverso daquilo em que nos acostumamos a
compreensão do mundo social,permitindo, cada uma, a percepção
acreditar: partindo das práticas, delas se extrai o que é comum,
de alguns aspectos e trazendo, com .isso,a ocultação de outros. São
único meio de formular as generalizações necessárias ao" desenho"
frutos de escolha sobre o que consideramos mais ou menos relevante
dos mapas de pequena escala. Esses modelos explicativos
em determinada situação. Portanto, as normas instituídas e os
representam a realidade, mas não podem contemplar nem sua
modelos que podemos desenvolver organizando-as globalmente e
complexidade nem sua riqueza, que são mais bem representadas
de modo lógico não constituem as realidades sociais em virtude do
nos mapas de grande escala. Estudar o cotidiano vai permitir, assim,
fato de que, na sua efetivação, elas vão estar submetidas às
a reco;"binação entre norma/modelo e exceção,buscando fazer falar
transformações operadas pela mudança de escala proporcionada
pelo "mergulho" nos fazeres cotidianos. Entretanto, como as 16 Trecho da música "Vaca Profana".
CllrrírlllQ~ pmlitlldo.~: ml/'(' 11 r(,Sltlllçtio I' fll'IlUlllcil'flÇtiO
61

as dimensões da vida qúe a modernidade emudeceu. Em belíssimo Pergunto-me onde se originn o prazer de "ver o conjunto", de super<1r,
diálogo imaginário entre Marco 1'010e KublaiKahn, que acompanha de totalizar o mais desmesurado dos textos humanos. [...) Aquele
que sobe lá no alt'Ofoge à massa que carrega c tritura em si mesma
os textos do seu Cidndes illvisíveis, Halo Calvino (2000, p. 71)diz:
toda identid<1de de autores ou de espectadores. Ícaro, acima dessas
- De agora em diante serei cu a descrever as cidades - disse o Kan. águas, pode agora ignorar as astúcias de Dédalo em labirintos
- Tu nas tuas viagens verificarás se existem. móveis e sem fim. Sua elevação o transfigura em mycur. Coloca-o
ã distância. Muda num texto que se tem diante de si, sob os olhos,
Mas as cidndes visitadas por Marco 1'010 eram sempre diferentes o mundo que enfeitiçava e pelo qunI estava possuído. Ela permite
dns pensadas pelo imperador. lê-lo, ser um olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão
- Contudo cu tinha constnúdo na minha mente um modelo de esc6pica e gnóstica. Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do
cidade de que deveriam deduzir.se todos os modelos de cidades saber. [...1 A torre de 420 metros que serve de proa a Manhattnn
possh'eis - disse Kublai. - Contém tudo O que corresponde à norma. cont'inua construindo a ficção que cria leitores, que muda em
Como as cidades que existem se afnstam em grau diverso da norma, legibilidade a complexidade da cidade e fixa, num texto transparente,
basta-me prever as exceções à norma e calcular as combinações a sua opaca mobilidade. r... ) A cidade.panorama é um simulacro
mais prováveis. teórico (ou seja, visual), em suma um quadro que tem como condição
- Também pensei num modelo de cidade de que deduzo todas as de possibilidade um esquecimento c um desconhecimento das
outras - respondeu Marco. - É uma cidade feita s6 de exceções, práticas. O deus lIoycur criado por essa ficção! ...1 deve excluir-se do
impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos. Se uma obscuro entrelaçamento dos comportamentos do dia.a-dia e fazer-
cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número se estTonho o eles (op. cil., p. 170-(71).
dos elementos anormais aumentam as probabilidades de existir
realmente a cidade. Portanto basta que eu subtraia exceções ao É preciso, conhJdo, não adotar a leitura do cotidiano nem como
meu modelo, e proceda com que ordem proceder chegarei a uma possibilidade nem como uma vontade de autonomizá-lo,
encontrar-me perante uma das cidades que existem, em~ora negligenciando.lhe os elementos intervenientes que se situam na
sempre como exceção. Mas não posso faz.cr ~vançar a ml.nha
operação para alt':m de um certo limite: obtena Cidades demasiado dimensão macro da pequena escala, ou na dimensão intermediária
verossímeis para serem verdadeiras. da média escala. Num bonito e simples romance, o escritor chileno,
Luís Sepúlveda (1997)conta como foi que, absorta na sua atividade
Buscar as existências reais, as excepcionalidades realizadas, é
de pescara seu peixe, uma gaivota se deixa pegar por uma "maré
um desafio que nos exige abdicar da posição que ocupamos nos
estudos em "pequena escala", a do "olho que tudo vê" (CERffiAU, op.
, negra" e morre em conseqüência disso . .Na história, depois de
observar do alto a localização do cardume, ela mergulha atrás do
ci!., p. 170), e mergulhar naquilo que é pequeno demais para ser
peixe, o exemplar único, singular, que a vai alimentar. Se não
visto de longe. Só assim podemos entender o cotidiano. Para além
das estruturas sociais e dos condicionantes que elas criam, é preciso
conhecer-lhe as especificidades singulares, para, compreendendo- I negligendamos as relações entre o clima, a organização do cardume
e o peixe único, o trabalho sobre o cotidiano vai nos permjtiI~ para
além do reconhecimento geral das "condições do nosso mar",
as, intervir. Criticando de modo poético a prevalência da pequena
escalacomo fonna privilegiada de se lere entendera mundo, Certeau
coloca a questão. Numa metáfora narrada a partir do ilêxtase"
I
I
descobrir quem é aquele exemplar "único" a que nos vamos dedical~
buscando sua forma específica de ser e de estar, seu cheiro e seu
sabor. Imerso no mar imenso, ele nada de acordo com as
provocado pela visão de uma Nova York cuja gignlltesCil massn se
imolJiliw sol} o olhar do alto dos arranha-céus, diz o autor.
I possibilidades que as vastas águas lhe oferecem, seguindo os
constrangimentos das normas de organização do seu grupo mais
r
I
I
62 Currículos l,ralicadas: {'lItre a reSlllaçt'fo c a emollci,ltlçllo Re}Jcllsaudo o colidirmo 03
-
próximo, conhecendo-lhe a lógica e, nela, a sua função, mas o faz de ao mundo, que tanto pode ser lido nos seus macroelementos quanto
acorgo com as singularidades que o tornam diferente de todos nos seus microe!ementos, e que jamais podem ser dissociados uns
aqueles com quem está, que o tornam único na multidão. dos outros; esse mundo, no entanto, tem sido interpretado apenas a
O perigo ao qual sucumbiu a gaivota da história adveio da partir dos elementos compreensíveis pela observação e organização
perda de visão ampla proporcionada pelo mergulho distraído na daquilo que pode ser percebido na "pequena escala".
"grande escala". Do jeito como foi feito, ao mesmo tempo que pôde Em mais uma parcela de definição do cotidiano, a partir dessa
pescar seu peixe, sofreu simultaneamente a perda de visão do que metáfora, podemos dizer que o cotidiano é o espaço no qual se
se passava na média escala do cardume e na pequena escala do mar, realizam as articulações entre as macroestruturas sociais e os fazeres,
cuja percepção do alto seria inqispensável para que ela percebesse relativamente autônomos e adequados às circunstâncias,dos sujeitos
a presença da mancha de óleo que" caminhava" em sua direção. sociais reais.
O que estamos querendo significar com mais essa história é que A dificuldade da tarefa de trabalhar sobre tal complexidade é
estar mergulhado na especificidade não pode e não deve representar imensa, mas acredito que é a única que podemos assumir se queremos
o abandono das relaçôes, permanentes e dinãmicas, que esta captar no/do cotidiano sua dinâmica e os fatores que nela intervêm.
realidade micro, s6 perceptível através do trabalho de mergulho na A grade de leitura de Santos (2000)que define os espaços estruturais
grande escala, mantém com as realidades intermediárias - dos nos quais nos inserimos nos permite atuar nesse campo complexo,
cardumes - f, sobretudo, com as grandes estruturas sociais, na medida em que considera, simultaneamente, as influências que
representadas pelo mar. o cotidiano sofre tanto daquilo que se passa efetivamente em seu
Deste modo, ao trabalharmos os múltiplos espaços/tempos do interior, que pode ser melhor identificado com nossas inserções
viver cotidiano e as articulações entre eles, temos que considerar os nos espaços doméstico, da comunidade, do mercado, da produçâo,
vínculos que estes mantêm com as macroestruturas que, além de quanto daquilo que se passa "fora dele", mas que o constitui do
lhes circunscreverem possibilidades, atuam permanentemente mesmo modo e que pode ser prioritariamente situado nos diálogos
produzindo modificaçôes que não podem ser negligenciadas, com os espaços mundial e da cidadania, sobretudo, mas também
I 1!.l"I!,ililiõl., .,1 <1'\,I,Li.!, 'f""L ,:;,,;N:~1,~r~"::~I':.~r;# fH"l"F" com tudo aquilo que, nos demais espaços, ocorre em função de
oblitera a compreensão dos fatores da realidade macroscópica que a .i.~,"'ll~l.iI t'~tlhll'I':-:"II"III",l\' f"'--l, ~I ",'
, ~""'-- "

todo momento intervêm nas ações concretas desenvoh~das sempre cotidiana, definindo-lhes as possibilidades.
na microrrealidade da grande escala.
O entendimento desse movimento permanente entre as Raízes e opções na lessitura da rede de subjetividades
múltiplas. instâncias constitutivas do real é o que se impôe como Na articulação entre essas múltiplas pertenças e influências
trabalho. E na articulação permanente, não somente entre as diversas tecemos nossas identidades, enraizando-as nas grandes inserções
esferas da vida cotidiana, mas também entre essas e as esferas da em nossas culturas de origem e nas nossas mais amplas condições
média e da pequena escala, que precisamos nos situar. Mais que de existência, situadas nas grandes linhas da pequena escala. Por
isso, precisamos compreender o mergulho no cotidiano como a outro lado, para além desses enraizamentos, tecemos nossas
incorporação da possibilidade de entender a complexidade inerente identidades também através das opções, das pequenas escolhas do
CUlTÍ('II/0S praticados: cnfrc a regulaçiio f a fJllflllcipaçilo Rcpcnsando o cotidia11o
65

cotidiano, assumindo ou questionando os valores e critérios A operacionalidade desses conceitos para o debate que tentamos
definidos no campo macro da estrutura social e dos papéis que nos estabelecer aqui tepousa no reconhecimento da permanente
são atribuídos na organização formal e estruturada do espaço social, articulação entre raízes e opções, entre a pequena e a grande escala
possível apenas na pequena escala das grandes referências. Na esteira nas nossas inserções sociais.Sempre condicionados por um passado
de um outro debate proposto por Santos (1996), no qual o autor que nos estrutura, tecemos nosso futuro através das escolhas que
discute a "equação" entre raízes e opções como definidora da fazemos nas situações da vida social cotidiana. Aprendemos com a
identidade individual e social e de seu dinamismo, podemos modernidade a considerar a pequena escala COmo aquela que
entender que os condicionantes definidos na lógica macroscópica "importa" para estudar e captar" a sociedade", sua estrutura e seus
do mundo estruturado e traduzido como sistema social podem ser determinantes.
identificados com as raízes que nos conferem urna identidade, que
Aprendemos, ainda, que essa forma macroscópica de
é única mas também social, histórica, cultural e estruturalmente
compreender o mundo nos permitiria compreender os modos de
definida. No entanto, esses detenninantes enraizadores não são nem
ação social possíveis sobre ele, na medida em que os modelos
estáticos nem capazes de tudo dizer sobre a tessitura das redes de
construídos a partir da análise do espaço macrossocial e de sua
subjetividades que somos. A eles vão juntar-se as opções possíveis
organização em grandes categorias seriam os operadores
através de nossa ação sobre o cotidiano, sobre as circunstâncias da privilegiados da ação.
vida de todos os dias na qual estamos mergulhados e no seio da
A partir desses grandes esquemas, aprendemos a entender o
qual desfrutamos de uma relativa autonomia em relação às raízes
cotidiano como reflexo dessas grandes estruturas, traduzindo-o a
que nos condicionam.
partir dessas grandes categorias e estruturas, não reconhecendo na
O pensamento das raízes é o pensamento de tudo a~uilo que ~ mudança de escala as alterações qualitativas da vísíbilidade,
profundo, permanente, único e singular, tudo aquIlo _que, da na efetivação do que nos explica Santos, quando diz, servindo-se
segurança e consistência; o rens.~ment~ das opço~s ,€ o
pensamento de tudo aquilo que e va.navel, efe,mero, sub:tltUlvel, dos estudos da físicacontemporânea, que" a escala cria o fenômeno",
possível e indeterminado a partir das raizes. A dl!eren~a afirmação corroborada pela idéia de que as mudanças de escala são
fundamental entre raízes e opções é de escala. As raIzes sao não só quantitativas, mas também qualitativas. Reduzíndo a ação
entidades de grande escala [captadas nos mapas de pe~~e.na
na grande escala à sua dimensão quantitativa, abdicamos de
escala]. Como sucede na cartografia, cobrem vas~os ternt~nos
simbólicos e longas durações históricas, mas nao p,er:mltem compreender sua dimensão qualitativa, porquanto, no pensamento
cartografar em detalhe e sem ambigüidades as caractenstic~s do estruturalista dos grandes modelos, não haja espaço para o
terreno. É, pois, um mapa que tanto orienta quanto deson:nt~. entendimento da mudança de escala como uma mudança, não
Ao contrário, as opções são entidades de pequena escala [:aptaveIs
apenas de campo de visão, mas ainda daquilo que se vê.
em mapas de grande escala]' cobrem territórios conf1T~ados e
durações curtas, mas fazem-no com o detalhe necess~no para Assim, vamos poder afirmar que a questão das subjetividades e
.1.. calcular o risco da escolha entre opções alternativas. Esta dos processos que as produzem deve ser pensada e trabalhada como
perml li . ,. Ih T 1
diferença permite que as raízes sejam UnIcas e as esco as mu tip as.
{...} O pensamento das raízes apresenta-se como um pensamento um compósito que inclui os grandes condicionamentos" do mar
do passado contraposto ao pensamento das opções, o pensamento das marés e das luas e climas que os definem", enraizadores do~
do fuluro (SANTOS, 1996, p. 9). nossos seres e fazeres, tanto quanto inclui nossa mobilidade dentro

I
Repell~al1do o cotidiallo
66 Currículo:; praticados: C/ltre fi rrglllaçiio e a enulIlcipação b7

desse universo, na relação que estabelecemos com os cardumes, compreensão da estrutura social, fixando-se nas raízes e na
bem como nos solitários ou solidários ffiOlnentos em que estamos a dominação que as imobilizaria. Talvez possamos, a partir disso,
pescar nossos peixes, nos quais nos ven10S diante das opções. Nesse compreender o maniqueísmo que se faz presente eU1muitas dessas
sentido, podemos também afirmar que essa permanente articulação ações, como uma impossibilidade de articulação dinãmica entre as
entre raízes e opções não é igualmente distribuída entre os membros dimensões macro e micro, entre as raízes e as opções, necessária
das sociedades, apresentando-se com maior ou menor mobilidade para a compreensão tanto de uma quanto de outra dimensão do
em função dos constrangimentos impostos à mobilidade das raízes fazer diário da luta política.

pelas relações sociais de poder e de dominação. Aplica-se o lnodelo estrutural dicotômico e essencializante à
Vai ser preciso, portanto, para compreender o cotidiano, vida cotidiana, traduzindo, por exemplo, a idéia da luta de classes
considerar que a observação na grande escala e a visibilidade que se ou a da dominação do hOmelTI sobre a mulher às pessoas reais e
ganha em relação aos trabalhos voltados apenas à pequena escala, complexas que encontramos, criando uma situação de embate geral
que atribuem ao cotidiano apenas a função de refletir o que se passa que não capta a complexidade da realidade cotidiana no contexto
no campo macroscópico, estão inseridas nessa escala que não mais espeáfico dos momentos e formas múltiplas que pode assumir uma
se vê quando se mergulha, mas que condiciona a própria mobilidade formação social. Situado na urgência da luta cotidiana, o militante
e existência daquilo que se observa. Em termos de raízes e opções, a traduz de acordo com o modelo social da pequena escala,
podemos traduzir essa idéia afirmando que nenhuma raiz é tão comprometendo assim o diálogo entre elas que potencializaria sua
forte que não possa ser removida e que nenhuma opção é feita fora luta nos dois sentidos.
dos constrangünentos das raízes que a sustentam. O cotidiano é, Muitos dos problelnas que reconhecen1os na ação histórica dos
nesse sentido, o Zocus privilegiado da realização das opções movimentos sociais podem ser melhor compreendidos assim, na
circunscritas pelas possibilidades de remoção das raízes. O cotidiano medida em que esta forma de entendimento nos pemüte perceber o
aparece COlno o espaço em que constituímos nossas identidades, quanto a identificação de cada "burguês" com a dominação exercida
tanto em função das grandes narrativas e constrangimentos culturais pela burguesia ou de cada "homem" com o machismo cria e legitima
,L .;,ocit:'LlJdl' na qual no")inst'rimos quanto em função do dinamismo, uma perspectiva essencializante dos papéis sociais, considerando-
variável. móvel, das circunstàncias. lltc~ àpl'llet:-. ti"> "L1i/t":-." ddinkieb pl'lc1 c"trutuf,l -,ocic11 L-,o !1(l:-.ll":,:
O pensamento dominante, que negligencia essa complexidade a perder muito do que poderia ser construído pela mediação do
de que falamos, produz sobre o entendimento politico, em geral, e diálogo no lúvel das opções possíveis no campo e na dimensão
sobre a ação política militante, em particular, muitas conseqüências. micro da grande escala, da vida cotidiana e daquilo que ela torna
E isso nos interessa de perto, na medida em que essas conseqüências possível.
são bastante perceptíveis no pensamento sobre a escola e sobre Esse problema tem angariado relevância nos estudos sobre a
aq uHo que nela ocorre. A militância cotidiana, embora mais escola e sobre o cotidiano escolar. Entendido como espaço de
identificável com o mergulho integral na dinãmica da urgência da reprodução e repetitividade dos desígnios da sociedade de classes,
ação e das opções, tem sido fortemente baseada em dicotomias o cotidiano da escola vem sendo alvo de críticas genéricas e
essencializantes produzidas na pequena escala dos modelos de generalizantes que desqualificam tudo o que existe, em nome do
Currfcufos 1"'flticadQs: wtrc fi rC8/1 / açtio e fi elllflllcipaçdo
RepcnsQndo o COtidjflllO

69

xislência Por outro lado, tendo em conta os


que é pensado como e . . 't à "pequena escala" as aprendizagem, as fonnas criativas e particulares através das quais
. d t .zação Clrcunscn a professoras e professores buscam o aprendizado de seus alunos
limites desse tipo e. eo".. h m o sistema educativo e as
avançam muito além daquilo que poderíamos captar ou
autoridades educaclOnals de~end a • s normativas e gerais das compreender peja via dos textos que definem e explicam as
. I funçao as raJze
propostascumcu ares em ." m .amais levar em consideração propostas em curso. Cada forma nova de se ensinar, cada conteúdo.
regularidades e das nonnas soams se . J . llzoamAnunciando trabalhado, cada experiência particular só pode ser entendida junto
- ráticas cotidlanas rea . ao conjunto de circunstâncias que a toma possível, o que envolve a
as inúmeras opçoes que as p • I ,.do através do esludo do história de vida dos sujeitos em interação, Sua formação e a
d '1 que sera desenvo \ 1
um pouco aqm O .. fechamos essa parte do realidade local específica, com as experiências e saberes anteriores
II'd a pesqUIsa de campo, de todos, entre outros elementos da vida cotidiana. Pensar em
material reco 11 o n _ do cotidiano torna
. . do que essa percepçao alternativas curriculares a partir dessa forma de percepção nos
trabalho com o anuncIo s50nas escolas, nas quais
encaminha para um diálogo sem preconceitos com os educadores
possível em relação ao estudo do que se pa .- esatravés de múltiplas que, estando nessas escolas, produzem saberes e criam curIÍcuJo,
professores e professoras redesenham as réUZ cotidianamente.
opções.
Portanto, o entendimento ampliado a respeito das múltiplas e
As escolas e currículos . . complexas realidades das escolas reais, com seus alunos, alunas,
criados pelas práticas cotidianas . _ professores e professoras e problemas reais, exige que enfrentemos
o desafio de mergulhar nestes cotidianos, buscando neles mais do
~ ue vamos mais uma vez, buscar a compreensao
EcomCerteauq '. _ d Iternativas curriculares, que as marcas das normas estabelecidas no e percebidas do alto, que
'd' s de cnaçao e a
das íormas colI .Ian~, sdefazer" daqueles a quem foireservado definem o formato das prescrições curriculares. É preciso buscar
tentandoe\idenaaras arte .
outras marcas, da vida cotidiana, das opções teadas nos acasos e
I arda reprodução. d
o ug . _ e o«ibilidades encontra os nas situações que compõem a histÓria de vida dos sujeitos pedagógicos
Usando os espaços, ocaSlOes p.. I ábios os "fracos", ao que, em processos reais deillteração, dão vida e corpo às propostas
é 'a dos poderosos s , curriculares.
"lacunas" das estrat gJ s "d . tema estão realizando
" "radutos o SIS t,
utilizarem taticamente os p _. 't nas redes de relações de
se estao lnscn as Sem desconhecer a multiplicidade de aspectos presentes na
operações de uso que,. _ I determinadas. O uso se dá configuração da realidade escolar cotidiana, entendemos ser
. . m POT ISSO sao por e as "
força eXIstentes,ne . parável do" contexto , reJevante o reconhecimento da existência de um espaço de relativa
. .' s umpontomse autonomia na escola. Este deve ser explorado no sentido de utilizar
em um nó de arcunstanaa '.. Indissociável do 'instante'
fodo seu potendal para permitir o desenvolvimento de uma prálka
do qual abstratamente se dIstingue. d m fazer (CER_U, op.
presen t e, de a.Tcun~tândas
~ particulares e eu pedagógica definida no diálogo Com as condições externas, mas
não aprisionada por elas (ESTE.""', ZOOJ, p. 30).
cil., p. 96 e 97). tei recentemente (BARBOSA,
Recorrendo a um texto que apresen
2002, p. 4), reafirmo que: .
t Dos já consagrados murais COm trabalhos de alunos à
experiência do ensino da histór.ia através de músicas populares,

. d.d a arecc como espa,ço Privilegtado


..
O cotidiano, assl~ cnten I a~émPdo revisto nas propostas ofi~als"
de produçãocurncular, para. ei;o aos processos de enSlno-
I inúmeras são as invenções cotidianas que modificam, não só as
propostas curriculares, mas também as próprias relações professor_

,I
Especificilmente no que dIZ resp aluno. Redesenhmn as preScrições através do enredamento de
valores, saberes e possibilidades de inten"enção, experiências e
!
C!lrdru/os praticndos: rI/Ire a rt'gulaçtio e II emQncipação
70

criação, potencializando aprendizagens múltiplas e articuladas que


vão muito além do previsto e do suposto oficiahnente. Do ponto de
vista formal, essas inovações poderiam ser consideradas como meras
adaptações ou, no máximo, inovações metodológicas. Entretanto, o
qu e Poderemos observar no estudo do material de campo é que,. ao Elementos de orientação metodológica para a
inovar metodologicamente, estas professoras trazem para o uruverso
pesquisa no/do cotidiano das escolas
dos conteúdos formais socialmente válidos e legItimados pelos
textos oficiais um sem-número de outros saberes que, articulados
aos primeiros, criam os efetivos processos de aprendizagem dos
alunos, constituídos nessa interface entre a pequena e a grande
escala, entre as raízes e as opções, entre as normas e as reahdades.
Quem sabe muito apTende pouco
Em artigo iniciado coletivamente e desenvolvido pela
professora Nilda Alves (2001)a autora desenvolve a idéia de que a
pesquisa no/do cotidiano supõe aceitarmos a teoria como limite e
não como potencialidade em nossas pesquisas, pois as teorias
preconcebidas dificultam a percepção de acontecimentos não
contemplados em nossas hipóteses de trabalho. É nesse sentido que
a frase que dá título a esse texto provocativamente deve ser lida"
como um alerta para a vigilãncia necessária de que nos fala Pais
(1993,p.lll).

As imagens do sodal que na verdade orientam os rostos em todas

con~trangitid:S a une1\hlrem.~t.:: JlU ~t:IHI\.lLl lW y.u~ ::.e Pldt:'JiU\:.'


demonstrar ou explicar. [...] Daí a necessidade de uma apertada
vigilânda epistemológica às teorias, métodos e conceitos que mais
parecem moldes antedpadamente preparados a que um alfaiate
desajeitado adapta laboriosamente um tecido que mal conhece _ o
teàdo social - fazendo com que aquele tecido pareça aquilo que
não é.

De outro modo, podemos dizer que aquilo que acreditamos já


saber em relação a qualquer assunto nos dificulta a percepção de

DP&Aeditora
r ----~

Elcmcl1tosde oricl1faç- ril •.


72 CUl'rículos praficndos: cufr" a regulação c a C111£lllcípaçrio no meto (l OglCfl para a pesquisa IIO/do cotidi(lll(l das c:;coias
73

elementos que nos são desconhecidos, levando-nos a fechar as portas cegos", que subtraem dela algo de sua male b.l.d d
d . .. alI a e e, portanto
a elementos que não se encaixem em nossas crenças anteriores. a pOSSIbIlidadede
.
entrada e articulação de novos- fios d esaeres
b '
ao an tenormente sabido.
As certezas são, desse ponto de vista, inimigas da aprendizagem, e
podem ser interpretadas como" a certeza dos ignorantes" - ditado .Em ~utros termos, e já abordando a questão dos limites da
comum no Brasil- e que indica um modo corno o senso comum raclOnahdade tal como esta é entend.d1 a na mo d.ernldade
expressa esse saber a respeito dos limites da aprendizagem para fundamental no contexto da pesquisa no/do co'"'dl.a
. ,no, po d emos ' li

aqueles que crêem já saber. Contrariamente, na pesquisa no/do com a ajuda de Maturana (1999, p ...15),a firmargue: "'
cotidiano, buscamos aceitar que: Todos os conceitos e afirmações sobre os uais não t .
e que aceitamos como se significassem a~o' I emos refletido,
A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e a consciência par:ce que todo mundo os entende, são a~:fh~:m~~te porque
epistemológica desta impossibilidade é uma condição necessária razao caracteriza o humano é um antolho . lz.er que a
para entendermos alguma coisa do gue se passa no cotidiano (PAIS, frente à emoção [ J Q > d' ,porque nos deLxacegos
op. cit., p. 108). vivemos uma c~l~ra qUl~er dIZe
er, aIo ~os declararmos seres racionais
sva onza as emoções e -
entrelaçamento coti.d'laTIOentre razao_' e ema - , nao , vemos
, o
Para aprendermos e apreendermos a multiplicidade de viver humano - d çao, que constitUInosso
elementos constitutivos das realidades que fazem parte de nossos tem um fund~~~~~on;;O~i:~:I~onta de que todo sistema racional
campos de pesquisa, é preciso que a eles cheguemos de modo aberto
e, tanto quanto possível, despido de preconceitos. De outra perspectiva, mas no mesmo sentido, vonFoerster (1996
p. 71) desenvolve a idéia de que esses antolh - '
De minha parte, costumo salientar a colegas e amigos, em tom f . os sao capazes de
e ~ti~amente, nos deixar cegos perante aquilo que não acreditamo~
meio anedótico, que, quando terminei meu curso de doutorado, saí
eXIstir.Ele fundamenta "cientificamente" seu debate no fato de a
dele com uma única certeza: o tamanho da minha ignorância. Creio
nossa retina estar sujeita a um controle central , o qu e eXIge
. que
efetivamente ter sido este o grande amadurecimento intelectual a
para ~e~,acreditemos e compreendamos o que vemos. Ou seja a~
que cheguei ao final da trajetória de estudo e produção do curso.
contr~no do que foi difundido pela modernidade e imortaliz~d
Mais recentemente, depois de assistir a uma belíssima palestra de
por Sao Tomé, . "é preciso crer para ver" . Fechados em crençaso
Nilda Alves1? sobre os saberes cotidianos, saí com uma única e b elecldas a respeito do que podemos
preesta
d" encon trar em uma
contraditória convicção: a do imenso percurso que ainda devo fazer
ete~mada reali~ade pesquisada, estaremos cegos para aquilo que
para atingir uma reflexão tão competente e bem tecida.
nela e transgressao em relação ao que "já sabemos" P .
Dentro da metáfora da tessitura do conhecimento em rede, nesse sentido: ~ . reclsamos,
podemos expressar o que aqui queremos desenvolver nos seguintes
termos. Se nos mantemos excessivamente ligados a premissas Aconche~amo-nos ao calor da intimidade da compreensão fu . d
predefinidas a respeito do que pretendemos pesquisar, em função d~sarr~pJadntE'sde
gélidas explicaçõesgue, insensíveis às plU~ali:andeos
d
r lssemma
't d
as o viv'd f.
1 o, erguem ronteIras entre os fenônlenos
daquilo que acreditamos já saber, criamos, em nossas redes, "nós. lllm an o ou anulando suas relações recíprocas (PAIS, op. cit., p. 110/

------- -- ---- Ginzburgvaí mais longe, apontando uma possível incapacidade


1~ A palestra encerrou o colóquio "Utopies et pédagogies", realizado em de vermos dIferenças em" ob.]e t"os nas propnas
,.
Walderc:bach, na Al:";:lcia,entre 0:" dias 27 e 29 de maio de 2002. características do
74 Curri.:ulos praticados: cutre a regulação e a fmancipaçiio
7S
Elemelltos de oriclltaçiiu mdodológica para a pesquisa IlOldo cotidiallo das e:;,o/<I:>

olho humano. Ao discutir as dificuldades da medicina em atender Etimologicamente, "método" significa caminho e, como o caminho
às ~xigências do conhecimento generalizante, o autor afirma que se faz ao andar, o método que deve nos orientar é esse mesm~: o
de trotar a realidade, passear por ela em deambulações vadIas,
isso se deve ao seguinte motivo:
indiciando-a de uma forma bisbilhoteira, tentando ver o que nela
a impossibilidade da quantificação derivava da 'presença se passa mesmo quando "nada se passa". Nes~evadiar ~~ciológico,
meliminável do qualitativo, do individual; e a presença do individual como se adivinha, importa fazer da sociolOgIado cotidIano uma
[derivaria} do fato de que o olho humano é mais sensível às viagem e não um porto (op. cit., p. 113).
diferenças entre os seres humanos do que entre as pedras ou entre
as folhas (1989, p. 166). É a partir dessa perspectiva de ruptura com saberes prévios a
respeito da realidade escolar e da busca dos sentidos múltiplos e
Para nossa discussão, a afirmação de Ginzbmg pode significar enredados que ela comporta a aparente rotina repetitiva do
que a identidade absoluta entre determinados "representantes" das cotidiano, que procuraremos trabalhar metodologicamente sobre
"espécies quantitativas ou quantificáveis" pode ser questionada, na os dados da pesquisa que vimos realizando desde agosto de 2001 e
medida em que elas são fundalnentadas, na verdade, na que pretendemos agora aprofundar. Para isso, alguns
incapacidade do "nosso olho humano" de reconhecer as diferenças encaminhamentos mais detalhados se impõem.
existentes entre eles. Ou seja, onde vemos identidades e
permanências, é possível que haja um universo tão rico e tão diverso A pesquisa sobre o "como": um diálogo com Candeias
quanto os universos a que atribuímos riqueza e diversidade.
Em texto particularmente inspirado, Candeias (2001) desenvolve
Nesse sentido, e agora recorrendo a Boaventura (2000), os saberes
um interessante estudo a respeito do processo real de acesso à leitura
que assumimos como dados imutáveis e fundadores do que se vai
e à escrita na sociedade portuguesa dos últimos 150 anos. Nesse
pesquisar, além de poderem estar sendo" mal vistos", podem
estudo, o autor explica o processo através do qual as questões
representarregulações no nosso percmso, que prejudicam o pensar
inicialmente colocadas sobre o porquê do "atraso" da sociedade
emancipatário, com sua exigência de subversão dos saberes
portuguesa em relação a outras de perfil socioeconômico semelhante
naturalizados pela ciência moderna e suas "verdades universais".
quanto ao letramento da população, transformaram-se em questões
nrt ~(l, rílrFt(loxalmentp, é preciso. desaprender para voltar a
T'P"hcionadas ao modo específico como o processo ocorreu no país.
aprender (~ANroS,p. 3ti2-3ti3). lopreclbo romper dlgWlOdu, !lu' Legu,
O que nos chamou atençdu nd "lld.Jd.lltlHJ.J.l pdu Jutur l' ~l L\!<.',,1-,
de nossas redes de saberes, que regulam o que podemos perceber,
que se saiu de uma posição moderna de dicotomização e
e cristalizam nossas redes de conhecimentos, tornando-as
hierarquização para uma postura mais aberta que considerou não
ilusoriamente completas e metodologicamente inoperantes, porque
mais a questão do atraso, mas as possibilidades de compreensão do
imóveis.
processo real vivido em Portugal, em função das especificidades
Temos, portanto, que entender, mais uma vez com Pais, que os
culturais e políticas do país. Ou seja, saiu-se de uma questão
conceitos e teorias devem ser vistos como "instrumentos
formulada a partir do que" sabe" a teoria social hegemônica a
metodológicos de investigação ao serviço da capacidade criadora
respeito da associação entre progresso socioeconômico e letramento,
do cientista" (op. cit., p. 110) e que a questão do método nesse tipo
hierarquizando os países em função dos indicativos estatísticos que
de pesquisa se traduz deste modo:
os definem, para uma postura de não saber e de querer saber o que
r
I
76 CUlTiculos praticados: wtl'C 11 regulação e n ema11cipação
Elemelltos rir orientação metodológica para a pesquisfll1o/do cotidimlO das ('seo/as
77

efetivamente ocorrera na sociedade portuguesa em relação ao tema


compreender os complexos processos que nos fazem ser portadores
de pesquisa.
não de uma identidade monolítica e hierarquizável no plano das
Só a partir da compreensão das insuficiências detectadas na grandes estatísticas, mas que nos constituem como redes de
pergunta bas~ada no modelo hegemônico é que se pôde partir para subjetividades (SANTOS, 1995) dinâmicas e plurais.
a formulação de outras que inquiriam muito mais a realidade do
O interesse da apresentação dessa questão reside no fato de
que a sua redução ao modelo. Partiu-se, então, para a tentativa de
pretendermos, sem sermos os primeiros a romper com urna longa e
compreensão dos padrões de vida cotidiana na sociedade rural
tenebrosa tradição de pesquisa sobre o cotidiano escolar que busca
porhlguesa, promovendo
explicar por que os professores não conseguem ensinar corretamente
a recuperação dos aspectos efervescentes, espontâneos e fleXÍveis aos seus alunos, partindo sempre do pressuposto -e, naturalmente
da vida social que não se encaixam nos rígidos modelos científicos confirmando-o - de que a precariedade do saber científico do~
que exigem que a mobilidade social se regule pela imobilidade das
professores e a infinita repetição que caracteriza a vida cotidiana na
fórmulas, modelos ou quadros teórico-conceptuais (PAIS, op. cit.,
p. 112). escola explicam os maus resultados obtidos pelos alunos.
De nossa parte, e juntando-nos ao trabalho de Candeias, o que
o que é interessante nessa experiénàa é o fato de que a abdicação
pretendemos é compreender como as professoras agem
de saber" como estudar a questão dos processos soàais de acesso à
H

cotidianamente na busca de levar os seus alunos à aprendizagem,


leitura e à escrita a partir dos paradigmas definidos pelo pensamento
que elementos criam a partir de suas redes de saberes, de práticas e
da modemidade foi o motor da aprendizagem da equipe de pesquisa de subjetividades, corno criam os seus fazeres e desenvolvem suas
a respeito do processo portugués e de suas especificidades. Foi práticas em função do que são, para além de "mal-formadas" e
necessária, portanto, uma ação emandpatória em relação aos saberes "repetitivas". Em outras palavras e ampliando a questão de modo a
hegemônicos e reguladores de metodologias clássicas de pesquisa especificá-la em duas outras: a) como se dão os processos cotidianos
para que o trabalho atingisse seus objetivos. de criação e desenvolvimento da ação pedagógica (curricular),
Com relação à mudança da questão principal, chama a atenção e em que especificidades do ser das professoras, alunos e contexto
o fato de se sair da tentativa de busca da causalidade simplista se inscrevem; b) o que estão os alunos aprendendo a partir dessa
(o porqué do atraso) para uma pergunta relativa ao viver concreto prática escolar que não pode ser visto pelo levantamento estatístico
das populaçôes portuguesas (como ocorreu). A hierarquia e as sobre o que sabem daquilo que lhes é imposto saber?
explicaçôes causais tão a gosto do pensamento moderno dão lugar Queremos compreender o como e o quê se aprende efetivamente
à complexidade do real e à importância da compreensão do viver nas nossas escolas - no plural, porque a "escola" é um conceito
cotidiano, das práticas culturais reais das populações como também redutor (OLIVEIRA, 2001a) - buscando atribuir significados,
elementos explicativos dos processos sociais. Se ainda consideramos tanto quanto possível livres dos preconceitos sobre o não-saber
que nessa complexidade das práticas reais inclui-se não só o docente, às atividades observadas nas clas5es, aos depoimentos
enredamento entre aspectos múltiplos do viver, no jogo permanente coJhjdos junto às professoras na escola e aos aspectos mais gerais de
entre as diversas instâncias de inserção e de prática soàal, podemos suas vidas e práticas sociais que nos foram narrados por elas em
dizer que o autor realizou um trabalho no qual a busca principal foi uma entrevista semi-estruturada.
r,.
Elementos de oneutnçtto mt.todológim pam 11p.:squisa IIl'l'docotiditlllo
I
78 Cllrríclllo:>I,raticndos: enJI'e a regltlação t' fi emallripação lhs t'x"nI,ls 71)

Observação participante,
I experiências vivenciadas, substituindo com elas as - atualmente

!
depoimentos e histórias de vida dominantes - pesquisas, que, sem levá-las em consideração, vêm
condenando seus atores, classificando-os como repetidores de
'frabalhamos nesse tipo de pesquisa buscando mergulhar (ALVES,
conteúdos. Revalorizar os saberes da prática, criados e recriados
op. cit.) nos universos do(a)s professore(a)s envolvido(a)s, em
cotidianamente por aqueles que têm sobre si a responsabilidade de
tentativas de recomposição coletiva das suas histórias de vida,
"apticar" as propostas advindas dos mais diversos gabinetes, éo
visando à compreensão, não apenas de suas ações concretas, mas
desafio que enfrentamos. Para isso, acreditamos, com Thompson
dos contextos ampliados que contribuíram e contribuem para a
(1998, p. 22) que
formação de suas identidades, de modo a captar, para além dos
processos formais vivenciados por eles na tessitu.ra dos a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto
conhecimentos, as complexas e múltiplas redes que se tecem nos o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para
processos de formação pessoal e social reais. alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de
investigação; pode derrubarbarreirasque existam entre professores
O trabalho com histórias de vida tem sido, no campo das e alunos} entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo
pesquisas qualitativas nas áreas de ciéncias sociais e, particularmente, exterior; e na produção da história - seja em livros, museus, rádio
ou cinema - pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram
na área da educação, preconizado e utilizado por inúmeros
a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras.
pesquisadores, aparece como um de seus métodos privilegiados de
execução (CHAUJ,1983; HAClJITITE,
1995; MEIIiY,1996; AMAro e FERRBRA, O cerne da ação desenvolvida na pesquisa no/do cotidiano são,
1996; THOMPSON,
1998; 1'0" SIMSON,
1988; SOUZA,2000). Os professores portanto, as observações e as entrevistas realizadas com professores.
participantes da pesquisa são considerados como praticantes da No que se refere às entrevistas, trata-se de fazer emergir memórias e
vida cotidiana (CERffiAU,
1994) em interação, com suas representações trajetórias de formação que possanl se constituir como dados para a
e práticas, conhecimentos e processos de formação. Estes precisam, compreensão dos processos e modos de formação das identidades
portanto, ser considerados em sua diversidade cultural, política, desses professores, fundamentais para o entendimento dos valores
social e individual, na medida em que o espaço-tempo da ação e posicionamentos que animam os modos espeáfjcos dos seus
••. 1.-,_~ , ,...,,_._- -t-= >-- -- ":'-"';pro(~ ....;.. ~•••
,., h .•.•.•. A..-ô •••.""..-l1=> fazeres. Por outro lado, sabemos (OUVEIRA
e ALVES,
2001; CHAUl,1983;
vida concretas e ações especiticas.
Detentores de saberes historicamente negligenciados na medida que a elas retomam, redesenhando para si mesmos, a cada momento,
em que são forjados no cotidiano das práticas que desenvolvem, o universo de suas vivências: a memória é criação de identidade,
estes professores e professoras têm importantes contribuições a nos não apenas recuperação de dados "objetivos" a respeito de eventos
dar nesses estudos, por serem aqueles que verdadeiramente dão passados. '
corpo e sentido às propostas pedagógicas produzidas, na maior
o processo de recordar é uma das principais formas de nos
parte das vezes, longe deles. Colocar em evidência a palavra e a identificarmos quando narramos urna história. Ao narrar uma
memória, imagética e/ou verbal, desses grupos silenciados pela história} identificamos o que pensamos que éramos no passado,
quem pensamos que éramos no passado, quem pensamos que
modernidade tecnicista é um desafio que requer o trabalho com
somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que
suas próprias histórias, suas narrativas possíveis a respeito das relembramos não são representações exatas do nosso passado,
80 Currí([l/ns pralicndos: elltre n regulação e li emancipação
Elementos de arimtaçao metodológica para a pcsnui~(/ lloldo col,.d. ri
-"i" I . la/lO as escolas 81

mas trazem aspectos desse passado, e os moldam para que se


ajustem às nossas identidades e aspirações atuais (THOMPSON, 1998, que buscam sempre reduzir o caráter re 1 ~.
curriculares através de práli' , ~ ,atono das propostas
p,57), cas emanClpatonas d
em seus cotidianos. que esenvolvem
o trabalho sobre as memórias surge como um potente elemento Ambas as posturas partem d "
de compreensão dos processos de formação e de manifestação das formal e às d e um parti przs, favorável ao saber
identidades docentes, condicionantes das possibilidades de ação, gran es propostas no primeiro caso e à criati 'd d
comprometimento docente no se TI ' Vl a e e
Assim, ampliando nossa compreensão sobre quem são esses complexid d gu do, ambos desconsiderando a
a e que envolve tanto os processo d f _
professores, podemos contribuir com o desenvolvimento do campo propostas cu 'lar _, s e ormulaçao de
mcu es epolíticaseduca0 '
dos estudos curriculares, no que ele se refere aos currículos reais, das práticas docentes. onaIS como o desenvolvimento
praticados por professores reais nas escolas reais para além das
normas curriculares formuladas pelas autoridades educacionais,
Nem preto nem branco:
O objetivo maior é pensar os modos como as práticas
o caráter multicor das práticas curriculares
curriculares cotidianas criam formas de emancipação social frente
à força reguladora das normas e, por outro lado, para não Dando continuidade às questões acima form
do cotidiano na área da edu _ , u1adas, os estudos
incorrermos no erro da dicotomização, de que maneira as práticas nos dedicamos buscam ~ bClhaçao e'bParticularmente, aqueles a que
curriculares reais contribuem para a consolidação da regulação , ua a arso reasprátic 'cul
entendend as rum ares reais
social via escola, imprimindo um ritmo" conservador" a propostas que nem s:-as como complexas e relacionadas a fazeres e sabere~
que visam à emancipação, produzidas muitas vezes, e por incrível mpre, ou mesmo raramente con '
coerente, Isso significa que os prof ' slituem um todo
que pareça, pelas próprias autoridades educaoonais, Essa discussão 'd' eSSores tecem suas ~ti
coh lanas a partir de redes 't pra cas
a respeito da dinãmica da tensão entre regulação e emancipação , _ ' mUI as vezes contradit ~, d
convlcçoes e crenças, de possibilidades e limites d or;as~ e
estã desenvolvida no capítulo 1. Do ponto de vista metodológico
emancipação, Do mesmo mod ' e regu açao e
de realização da pesquisa e da leitura dos" dados", o que importa é que chegam à I _ o, as propostas curriculares formais
nossa opção pela complexidade desta relação, s esco as sao formuladas no seio d
contradições, assumindo ~, as mesmas
Lalnentavelmente, é comum, entre pesquisadores , um carater maISou menos regul t - ,
ernanopatório d'f a ano ou
"progressistas" em educação, entender as propostas ditas inovadoras em suas I erentes proposições,18
Isso sigru'fica d'lzer que, nas nossas atividad "
como emancipatórias e atribuir a sua não-efetivação nas escolas à
currículos qu'e criamos misturam elementos das es cotidIanas, os
incapacidade e desinteresse dos professores, supostamente e orgamza 'd propostas forma'
as com po 'bTd d IS
"resistentes" à novidade por estarem, na sua infinita ignorância SSl Il a es que temos de implantá-las. Por

teórica e repetitividade prática, irremediavelmente vinculados à ::-------


" E sses termos foram bem formulad
regulação dos chamados "currículos tradicionais" e dos valores Boaventura de Sousa Santos °dse1nquanto categorias de análise por
, que e ende a ex' t" . d
dominantes, Por outro lado, e de modo igualmente parcial e pennanente entre a regulaç'o 'I . lS enCJ<l e uma tensão
f . SaCIa exerClda p J d'
u
armaIS ou não de exercício do oder A e e?s ~versos mecanismos
dicotomizante, oulTospesquisadores louvam os professores que estão :uperação dessa dominação atra\Js d '." manCIpaçao seria a busca de
nas salas de aula como os "verdadeiros lutadores" pela emandpação, ]995, 1997 e 20nOe)~aticas ,voltadas para relações mais
Igualitárias (SANTOS,
respeito. '. o captulo 1 há umn discussão a
82 Currirlllo:> praticadus: cl/tre a regl/lação c a rmnllcipn{'ão
Elementos de orit"lltaÇtio lIu'/odológiL"1I1JtJrtI n pt.'St/llisa 'lO/docolidiallo da:>f':.wl,b 83
-
sua vez, tais possibilidades se relacionam com aquilo que sabemos e
entendidas como formulações modelares e não como dados
em que acreditamos, ao mesmo tempo que são definidas na dinâmica
absolutizados de uma realidade qualquer.
de cada turma, dos saberes dos alunos, das circunstâncias de cada
O trabaUlo com essas categorias toma-se portador de elementos
dia de trabalho. Ou seja, cada conteúdo de ensino, repetidamente
para pensar a questão curricular como algo presente tanto em

!
ensinado ano após ano, turma após turma, vai ser trabalhado
instâncias de prática como da formulação de propostas e,
diferentemente por professores diferentes, em turmas diferentes,
em situações diferentes. considerada em sua complexidade, pode contribuir para o estudo
das realidades escolares se a entendemos como componente de uma
É nesse sentido que entendemos as práticas curriculares
rede de saberes e de práticas nos cotidianos escolares. Portanto, é
cotidianas como "multicoloridas", pois suas tonalidades vão
preciso estudar os cotidianos enquanto tais, se queremos pensar na
depender sempre das possibilidades daqueles que as realizam e das
contribuição que esses estudos podem trazer ao pensamento
drcunstândas nas quais estão envolvidos. Se desenvolvemos esse
curricular e à tarefa de elaboração de propostas curriculares realistas
pensamento em relação aos debates em torno dos limites e das
e adequadas às possibilidades emancipat6rias das diferentes
possibilidades do desenvolvimento de práticas progressistas nas
realidades.
escolas,vamos ter que assumir a presença de uma tensão pemlanente
Assim, a formulação de uma proposta curricular poderá ser
entre os elementos regulat6rios, tanto das propostas quanto das
portadora de um potencial emancipat6rio se e quando esta for
nossas convicções e possibilidades de ação e os elementos
fundamentada em uma epistemologia crítica e suficientemente
emancipat6rios (ou progressistas) que também se fazem presentes
em propostas e ações. flexível para se manter aberta às possibilidades reais dos professores
que a utilizarão, respeitando-lhes os saberes e subjetividades, bem
Buscando superar a dicotomia hierarquizante fundamentada
como aos de seus alunos.
na redução do real a modelos de comportamento monoliticos, vamos
Para formulá-la, portanto, será necessário recorrer tanto aos
considerar nesse trabalho que não há nem propostas nem práticas
estudos epistemol6gicos e formais quanto a elementos vinculados
que possam ser inequivocadamente identificadas com a regulação
_.• ~ ~ pm:"\nr1T"i'ldn() PTPto f' o branco não são 3'i cores que nos aos saberes e convicções docentes e às suas práticas, de modo a não
-4_1'"\"'''' np~ -r-rf''lrricâo inviável nem no espontaneísmo da
pernlltenl captdI d compl~XJLldUt: e d 11Y1.lt'.l.d UI;;,::,Z,t;, pIU L.::>.>V.::>.
••.. LI"
hipervalofl.z,açdO U~ prdtIld::Jo l{uc Ul:\'t.:H.;:lU ,J. •.••.••••••.••.•
primeiro lugar, porque propostas de inspiração emancipat6ria não r'vU •.Jl\....iUIl~ .••.•.

garantem práticas emancipat6rias, do mesmo jeito que propostas cristalizadas. Deixando a sistematização epistemol6gica, já
desenvolvida em outros momentos do trabalho, trabalharemos
em tom mais regulat6rio não implicam necessariamente práticas
regulat6rias. Em segundo lugar porque a tensão entre a regulação e metodologicamente sobre as práticas pedag6gicas, os~ignificados
a emancipação não representa uma dicotomia, nem mesmo uma que llies atribuímos e as variáveis que llies são constitutivas,tentando
gradação linear. São apenas p610sanaliticamente estabelecidos para aprender com elas sobre as possibilidades de ampliação das práticas
nos auxiliar na tarefa de busca de práticas e de saberes mais pedag6gicas emancipat6rias e de sua institucionalização.
emancipat6rios do que aqueles que hoje se apresentam como É freqüente que os estudos voltados â compreensão das práticas
dominantes. A regulação e a emancipação devem, portanto, ser reais esbarrem nas dificuldades que temos em "extrair" da
complexidade que lhes caracteriza os indicativos que podem nos
r-
Currículos praticados: elltre a regulação c {/ emancipação Elementos de orirmtaçiio met d l' .
84
II o o 0gIca para a pesquisa /lalda coUd,.o"
" () d as csco 1as 85

permitir atribuir-lhes significados e, com isso, pensar em modos de I hibisco


_ O fim d o Inverno.
.
arvores e pedras são só o
Todo o resto é
_
d .
mu o e mtercambiável-
intervenção emancipatária. O pensamento cientificista, factualista, I . que sao.
.Fmalmente a viagem conduz à cidade d
'

quantificador em "pequena escala", dominante na nossa formação, ruas pejadas de letreiros que sob e Tamara.Entra-se nela por
não'"veem COIsasmas sim figu ressaem das pa re d es. O s olhos
permanece atuante, mesmo quando percebemos sua inadequação. ras d.
coisas:a tenaz indica a casa do e COIsas que significam outras
Carla Ginzburg (1989)nos fornece alguns elementos para a superação a a Iab ar d a o corpo da guard arranca-dentes
b ' a garra f a a taverna
desse problema, contribuindo, portanto, para a leitura dessas ~státuas e escudos representa~ ~õea:ança.romana a ervanária~
SITIal
de que qualquer coisa_ sabe I" ' gol!inhos, torres, estrelas:
práticas. Antes, portanto, de mergulharmos no trabalho sobre os
"dados" da nossa pesquisa, as práticas educativas na escola, e sobre
le"ãoou golfinho ou torre ou
veem-se as estátuas dos deus
eS;~:I: o que - tem por símbolo um
. [...J Da porta dos templos
os significados que lhes podemos atribuir, passemos ao atributos: a comucópia a c1' e~d'representados cada um com seus
~ ,epsI ra a medusa I
esclarecimento necessário a respeito do "paradigma indiciário" do r~confi ece-Ios e dirigir.lhes as or ' _ ' pe o que o fiel pode
tiver nenhum letreiro ou fi açoes certas. Se um edifício não
autor, pois será também a partir dele que trabalharemos nessa leitura. gura, a sua próp' f
ocupa na ordem da cidad b na orma e o lugar que
' . e astam para i d.
Pal aclOreal, a prisão a fundo - d n lCara sua função. o
, ' Iça0 a moeda a I d . .
o b ord e.I Ateas mercadorias que os vendedo' esco - a e antmética '
Ginzburg e os indícios
nas bancas não valem por. ,. res poem em exposição
O problema que se colocapara a compreensão de uma realidade coisas: a fita bordada par SI frpropnasmas como sinais de outras
a a onte quer d. i'.
que é, como já vimos (capítulo 2),múltipla, enredada, imprevisível, d Ourad a poder, os volumes de AverrOlSsa ,. ."lzer. e eganaa, a liteira
tornozelo volúpia O olha plenaa, a pulseira para o
singular etc. relaciona-se, entre outras coisas, com o fato de termos .d d. . r percorre as ruas c ' .
a a a e dIZtudo que devemospe nsarf orno .pagmasescritas:
hábitos e modos de pesquisar e de "fazer a leitura" dos dados que e enquanto julgamos visitar Tam l~z.~oS , repetir o seu discurso
nom es com que ela se defin. ara nmtamo -nos,a regtstrar . os'
não consideram essas características da realidade. É aqui que a idéia e a SI mesma e a tod
Corno realmente é a cidad b as as suas partes.
de captação e uso dos indícios ganha importãncia, na medida em e 50 esse denso. 'I
que ela contém ou oculta o h . InVOucro de sinais o
que busca superar a impossibilidade de se compreender tantos e (2000,p. 17-18). ,ornem SaIde Tamarasem tê-ia sabido
tão enredados elementos, aos quais não temos acesso direto devido
às suas características, através da percepção e do uso dos indícios Considerando essa impossibilid d d
tal,Ginzburg nos remete à necessidad: d:: ~:ar o real enquanto
fornecidos pelas práticas reais.
que ele apresenta Ler s' . a ar sobre os indicias
Começo essa parte do trabalho com mais um belo texto de Halo . lnalS compree d '
significados daquilo que nã; aderno n er atraves deles alguns
Calvino que nos mostra um pouco do que os sinais nos ensinam, ao
captar neles elementos de realidPad _ s dommar de outro modo,
mesmo tempo que exigem de nós o recurso a saberes e vivências e nao compreen' .
meiostradidonais de pesquis 'di SlvelSatravés de
anteriores para que os compreendamos, num processo de artirulação procuramos resumir a segw' a(~ sso que o seu texto nos fala e que
entre o que eles dizem" e o como os podemos interpretar.
/1 r INZBURG, 1989,p.143-180)
O autor inicia com uma d. - .
As cidades e os sinais morellianol9 de reconhecimentol~cus~ao a respeit; do método
O homem caminha durante dias pelo meio de árvores e pedras. :::-:::-_________ e pmturas, genumas ou falsas
Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a WC' . '
lOvanm Morelli era italiano.' •
reconhece pelo sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a pseudônimo, um método para' aV~;~ ~o_seculo XIX e construiu, so'b
passagem do tigre, um pântano anuncia um veio de água, a flor do baseava no reconhecimento de deta;h~IÇao ~e quadros antigos, que se
reconhecer a "singularidade" do artista. s e nao das grandes linhas para
:
86 CUfrEel/lo:. praticados: tlltrl! 11 regI/fação c a emollcipaÇtio Elementos de oriclltnçtfo mdudlJMgiClll'ara n pcsquisa "o:do L"Olillim/lJ 1111:>('xV/,1:> "7

que rompe com.a tradição anterior, de reconhecimento pela escola" /I


"proposta de um método interpretativo centrado sobre os residuos,
ou pelas grandes linhas. Segundo Cinzburg, Morelli afirmava que, sobre os dados marginais, considerados reveladores". Desse modo,
para distinguir os originais das cópias, seria preciso não se basear pormenores normalmente considerados sem importância,
em características mais vistosas: "Pelo contrário, é necessário forneceriam a chave para aceder aos produtos mais elevados do
exalninar os pornlenores mais negligenciáveis, e menos espírito humano.
influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia" A partir dessa afirmação, e voltando aos nossos objetivos,
(1989,p.I44). Tendo caído em descrédito, o pensamento de Morelli podemos entender que o método morelliano abre as portas para
foi recuperado e associado ao que era atribuído, quase nos mesmos "irmos onde a racionalidade não vai", para compreendernlos os
anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, ArÚlUr Conan Doyle, saberes, idéias e formas de subjetividades que se impregnam nas
que afirmava ser o conhecedor de arte comparável ao detetive que práticas cotidianas desenvolvidas pelos sujeitos sociais, para além
descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios daquilo que esses mesmos sujeitos têm sob controle racional, idéia
imperceptíveis para a maioria. Ainda nesse processo, e a partir da fundamental para o desenvolvimento metodológico da pesquisa
afirmação de Morelli de que" a personalidade deve ser procurada que realizamos, para a qual é fundamental entender-se que "pistas

I
onde o esforço pessoal é menos intenso", o mesmo autor vai assoaar talvez infinitesimais pennitem captar uma realidade mais profunda,
o que este diz com a psicanálise freudiana, segundo a qual os nossos de outra forma inatingivel" (CL'lZBURG, 1989,p. 151).
pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais que A emergência desse paradigma indiciário no final do século
qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós. Ou XIX,segundo Cinzburg, vem de raízes bem mais antigas, do tempo
seja, é nos gestos naturalizados peja formação daquilo que somos em que o homem era caçador, o que exigia dele aprender a
em todos os espaços sociaisnos quais nos inserimos que expressamos
reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas
o que há de mais profundo (enraizado) nas nossas identidades. pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de
O próprio Freud buscou essa relação, e a descreveu dizendo: pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar,
"prescindindo da impressão geral e dos traços fundamentais da registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de
barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez
~ .••.•..•
-- -1 •...• r-ln.-","""mfT~rin q
,...,..""'"- im['1Ort~nriacar"'ctpn<;;,tic.a fnlm:ifVInt",~nn inh~TioTde umdenso bosque ou numa clareira cheia
dus detalhes secundarlos, das partICuldndades mSlgnlhcrJIltes {...J ü..tu" .• \l'>v;. J-'. loil,.
Ut; •...

que normalmente passavam desapercebidos e que o copista deixa


Considera, ainda, o recurso às narrativas das fábulas como
de imitar, ao passo que cada artista os executa de um modo que o
transmissoras de um "eco", mesmo que tardio e deformado, dos
diferencia", o método morelliano" está estreitamente aparentado à
saberes daqueles caçadores, caracterizados pela" capacidade de, a
técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar
partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma
em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados
realidade complexa não experimentável diretamente" (id., ib.,
ou desapercebidos, dos detritos ou refugos da nossa observação".'"
p. 152). É desse modo que entendo a re~lidade cotidiana e a
Freud se reconhece, ainda, influenciado por Morelli e por sua
possibilidade de pesquisá-Ia com finalidade acadêmica, para além
10 Esta e outras passagens dos autores dtados por Ginzburg estão devidamente dos seus elementos quantitativos e de inspiração formal, e através
referendadas pelo autor, a cuja obra remeto os leitores deste livro. de "uma atitude orientada para a análise de casos indi\~duais,
Currículos praticados: ""Ire
~ a rco-ulaçào
.., e a emancipação
"8 Elcl1JCI1tos de orientação melodológicn para a pesquisa /lo/do cotidiano dns escolas
89

recons t rUlV .
• eI's somente através de pIstas, . t o mas indícios" (id.,
Sln I

"através de uma drástica seleção - destinada a se reduzir


L

ib., p. 154). • . da realidade ulteriormente - dos elementos pertinentes" (1989, p. 157). Explica
Ginzburg afirma que essa negação da transparenoa que este processo consistiu no seguinte:
. . d' "' . de fato operante em esferas de
legitimav~ um paradIgma m !oano ermaneceu implícito,
i~icialmente, foram considerados não pertinentes ao texto os
atividade muito diferentes, mas que P . d I d
elementos ligados à oralidade e à gestualidade; depois, também os
esmagado pelo prestigioso (e socialmente m,:,s ~levad:~:;o~t:ri: elementos ligados ao caráter físico da escrita. O resultado dessa
h . ento elaborado por Platão. Essa polermca, qu _ dupla operação foi a progressiva desmaterialização do texto,
con eom _ frid s pelas noçoes continuamente depurado de todas as referências sensíveis: mesmo
.a G reCI
. 'a "a par das transformaçoes so a d
Portanto, I ra
,.. .", (id ib P 156) teria encontra o a cesu que seja necessária uma relação sensível para que o texto sobreviva,
de 'rigor' e ClenCla 'd"
'1'1' a científico centrado o texto não se identifica com o seu suporte. [...] a noção de texto
definitiva "no aparecimento de um para!gm. d d que acabamos de invocar está ligada a uma escolha cultural, de
na física galileana, mas que se re~e Iou mUI.to malS dura ouro o alcance incalculável Od., ib.). .

que e Ia "('d1"/ !'b).. Nesse sentido, dIZ: De fato, através dessa noção profundamente abstrata de texto,
, de diso linas que chamamos de indi?árias com suas potencialidades de desenvolvimento rigorosamente
E claro que o gTupo -o ,pentra ab 50 lutamente nos critérios de
d O<' )

cientifico que amadureceriam durante o século XIX, passou-se a


(incluída a me lcm~ ~a radi a alileano.Trata-se,de fato,
cientificidadededuzlvels do pa 1it~va~ que têm por objetocasos, considerar relevantes apenas o conjunto de seus elementos
de disciplinaseminenteme~ted~u~ daiS '~nquanto individuais, e
reprodutiveis. Desse modo, mesmo quando assume como objeto os
situações e documentos In IVI u~ados que têm uma margem
justamente por isso alcança~ r~su casos individuais, os textos escritos passaram a evitar o principal.
ineliminável de casualidade (Id.,lb.). "obstáculo" das ciências humanas: a qualidade.
É com fundamento nessa idéia que consideramos os estudo: do A noção de texto foi sendo, assim, gradativamente depurada de
. 'nculados ao paradigma mdloano, urna série de elementos considerados não-pertinentes do ponto de
cotidiano necessanamente VI . d uisadiferentes
rtanto métodoseprocedimentos epesq vista científico. Paralelamente, a própria forma dominante que
requeren d o,po , did ue'
dos preconizados pela" ciência moderna", na me a em q . assumiu a escrita da ciência, despersonalizada, generalizante e
formal, nos leva a buscar outras formas de expressão que possam
, . método experimental, de fato,
O emprego da n:atemattca e o tificação e a repetibilidade dos nos dar acesso aos elementos que as narrativas textuais sobre a escola
implicam respectivamente a qua~ a individualizante exclui por
não captam nem expressam. Por isso, a pesquisa noldo cotidiano
fenômenos, enquanto a Pders~ec vprimeira apenas em funções
definição a segunda e a fil e a exige que busquemos outros /,dados", não textuais, sobre os quais
auxiliares (id., ib.). precisamos trabalhar, se queremos captar os elementos sensíveis da
realidade cotidiana. Além de observações de campo e outras
o trabalho com as imagens . atividades mais imediatas, essa idéia vai apontar a importâncja do
. - o anterior exceSSIvamente trabalho com obras artisticas imagéticas - pinturas e fotografias _
Considerando a contrapos!ça d Ginzburgparte
~. fi a qual
concor amos, como um meio de evitar as armadilhas dos textos escritos destinados
esquelnática, autocnti~~, co I .d rando-a um caso atípico
à compreensão do cotidiano, de modo a mantermos a possibilidade
para uma análise da cntica textua. ,conSI e ob' eto constituí-se
das disciplinas indiciãrias. Explica que o seu I de percebê-lo em sua amplitude e complexidade, considerando a
CllrrlCl//os I"aticados; t'lIlre a (('s"/ação e a emallcipa{tfo
E.lementos de orimlaçio mt'lodo16gien pam a pesqllisa lIo/do colidiallO das escola:; 91

manutenção dessas características, que as imagens expressam e os revalorização das vozes daqueles que, atuando nas salas de aula,
textos procuram esconder. têm sido negados enquanto sujeitos de saber pedagógico, um dos
objetivos da pesquisa no/do cotidiano escolar. Nesse sentido, o
Portanto, um dos motivos por que o uso de material imagético
trabalho com a imagem surge como possibilidade de captação de
é metodologicamente importante na pesquisa no/do cotidiano
fluxos comunicadonais que estiveram sempre presentes nas escolas
reside, exatamente, no fato de ele conduzir às múltiplas realidades
mas que só agora começam a ser objetos da devida atenção (CALADO,
captadas pelas imagens, não traduzidas em textos, sejam eles
op. cil., p. 12).
discursos e propostas oficiais ou de outros tipos. As imagens são
Por muito tempo, em uma sociedade que foi formada em torno
portadoras de possibilidades de compreensão ampliada do que é e
do sentido da visão e da perspectiva, não se compreendia a
do que pode ser a prática pedagógica real, escamoteada e tomada
importãncia da imagem para o conhecimento da realidade. Essa
invisível" a olho nu" pelas normas e regulamentos da cienlificidade
posição começa, hoje, a ser subvertida, e estamos colocando sob
moderna, da hierarquia que esta estabelece entre teoria e prática e
suspeita o que poderíamos chamar "o império da imagem" como
dos textos produzidos nesse contexto.
evidencia Calado (id., ib.). É preciso reconhecer, no entanto, que
Podemos, nesse sentido, reafirmar o que nos diz Samain a
este movimento se dá sob esse mesmo "império" crescente, e, ainda,
respeito do uso combinado de textos e de imagens em pesquisa.
quanto ao espaço-tempo que ocupa em nossas vidas. Com isso,
Esses registros, é verdade, partem de lima observação, ambos são é quase impossível falar de algo ou expressar uma realidade sem
repres.entações. Resta que essas observações, essas representações, usar imagens - sejam literárias, sejam visuais, Mais que isso, a própria
essas mterpretações conjugam-se diferentemente em função dos
crítica só pode existir na medida em que dominemos, pelo uso e
suportes utilizados. O suporte imagético não funciona da mesma
maneira que o suporte verbal. Cada um põe em obra operações pelas teorias, lodo esse vasto campo.
cognitivas e afetivas singulares (1997,p. XVIlI).
É a subversão do principio de referência que presidia à constTução
das imagens tradicionais que constitui, hoje em dia, uma das mais
No mesmo sentido, na medida em que se almeja entender as
significativas ambigüidades sobre a qual, enquanto cidadãos e
realidades para além do que nelas é quantificável e organizável de educadores, devemos refletir (id., ib., p. 13).
rlf"finid()~ rp1n rpn~mpnto moderno ..
- ---~1"l,-~-I"'l<!-'F"1'":Ímf"tr~
~',it'l;-,1(~,4," ';, ~ .•~A""t.n"!;m9-f!'m("(lmof'vidpnda.estarelllos
a imagem aparece com pos~lblhdddL':' IldU lIl:'Lntd::> t:.'lH uUl1v;')

materiais, visto ser ela considerando-a como Ull1a realiddde compkÀd t:, Hllu,
pVll •. .IIuV

dissociada de outras formas de expressão e de compreensão do real.


multifacetada e polivalente, concreta e abstrata, icônica e
racionalizada, eficaz e mágica, estética e denotativa, funcional e Veremos a imagem como linguagem rica, possuidora de vários
incon.troláveI - escapa[ndol às visões analíticas, às grelhas códigos e, nesse sentido, também de uma dimensão textuaL. Nesse
quantificadoras, à malematizaçào (CAU>OO, 1994,p. 19-20). particular, não isolaremos a imagem dos outros sistemas de
representação, particularmente do verbal (no nosso caso,
Portanto, fazer emergir as realidades a partir do estudo" de seus representado pelos documentos não-oficiais), tanto mais que as
imagens aqui abordadas pressupõem, na maior parte dos casos,
universos caóticos" encontrados nas imagens, dos quais emergem
a co-presença da palavra (id., ib., p. 20).
realidades "auto-organizadas", tecidas a partir das possibilidades
de intervenção dos sujeitos das práticas pedagógicas sobre as Mais ainda, e conforme o trabalho de von Foerster, podemos
prescrições normativas, torna-se ponto fundamental para a entender as múltiplas dimensões representadas pelo trabalho com
92 Currículos praticados: entr(' n rcgllInçtio e 11 emanripnçno Elementos de on"t:ninçiio meiMaM . .
,ló;Jcn IlQra 11 11i'SlJIIlSll "Dido colidi'tmo dns ('Sfolas
93

imagens como Debray, segundo Achutti, para quem, "para uma reais possíveis a partir da imagem "congelad " .
imagem alcançar eficáciasimbólica, não basta que seja vista, ela tem viajar neles. a que nos penrute
que ser interpretada por um sujeito que compartilhe dos códigos
As fotografias [ I o fixam I
simbólicos carregados pela imagem" (1997,p. 47). tempo e do mu'~doe o con~~=c~adorJ num congelamento do
Enteí,demos assim que essa complexidade e as possibilidades memória. r... 1 djante da foto rafi entrar na espessura de uma
arqueólogo (id., ib., p. lJ). g a, tornamo-nos viajante e
que ela abre para a pesquisa no/do cotidiano (OUVElRA e ALVI'S,
2001)
tornam a imagem e a sua utilização uma condição fundamental
. O enriquecimento das observações e dos depoimentos dos
nesse trabalho que busca, nas inúmeras realidades cotidianas sUjeItos pesqUlsados, proporcionado pelo uso de s
,;venciadas nas escolas,o que nelas há de emancipatório em relação f t áfi - eus acervos
o ogr cos pessoais, torna-se, desse modo um p d'
aos modelos e aos procedimentos regulatórios. metodoJó' fu ' roce 'mento
. gtco ndamental para a pesquisa no/do cotid'
Prontos para dialogar com essa tendência dominante, medIda em que d lano, na
I' . p~ e nos permitir superar tanto os limites impostos
colocando-nos no campo da crítica, a pesquisa no/do cotidiano pe a dlcotOlruzaçao e hIerarquização entre os saberes e fazeres com
assume a possibilidade/necessidade de falar dos cotidianos das tão os quaIs e nos quais estamos envolvidos quanto as limit _
diferentes escolas existentes, buscando sua história a partir da fala escolh d d açoes que as
as os mo os e dos termos de narrá-los t-
em representado.
de seus sujeitos, fazendo uso, também, da imagem, sobretudo de
imagens corporificadas em fotografias da ,ida social cotidiana, Saberes científicos, saberes cotidianos'
dentro e fora das escolas, entendendo, com Pais que: de volta a Ginzburg .

Nesse deslizar do olhar pelo social - nos seus aspectos mais Discutindo a questão terminológica Ginzburg afi
particulares, addentais e superfidais - o fotografar é um processo embora as diversas disciplinas cientificas t ' h . rma que,
d . ~. en am se serVido a partir
de capturar o fugaz que o olhar vagabundo do fotógrafo (ou do o mlOo do século XVU, de terminolooias semelhantes J.' .
sociólogo)possibilita(op. cit., p. 107). igu I o., amais se
a aram através desse procedimento. Ao contrário oautorafim
Portanto, é à riqueza que emana das fotografias, com todos os por exemplo, que o uso do termo" caracteres" 'd 'a,
ob' t . , para escrever seus
seus detalhes aparentemente supérfluos, e a suas possibilidades Je os, crIou uma identidade aparente que serviu na verdade
abertas de entendimento, ambos fundamentais para a compreensão para ressaltar mais ainda a heterogeneidade entr I' ,
. eeas.
do entorno da situação fotografada, da compreensão que os atores O seu grau de cientificidade na ace ã~ rI
dela têm, enquanto momento registrado das suas trajetórias de vida, bruscamente, à medida que da~ ga I.eana dO"tenn.o, decrescia
geometria passava-se às "pro . dP~opnedades Universais da
que endereçamos nosso maior interesse. Samain nos alerta, escritas e d . " pne a es comuns do século" dao::
entretanto, para o fato de que a "imagem fotográfica é uma insoição, pinturas ~ oe:~lt~~:s ~:~~r::~adeI PjrÓQPriasindi\~iduais"da;
uma marca, uma pequena queimadura de luz sobre nitratos de prata; individuais eram considerado~ las: '.. uanto m~IS os traços
possibilidade de um conhecim: Pter~ne~fites, tanto maiS se esvaía a
sempre o (ndice de um real, e que não existiria sem o seu referente" .
abrIam-se duas vias. ou 5a cnT
...no aenh 1CO rigoroso N .
. esse ponto,
(1997, p. 10).'1A fotografia não retrata a realidade: ela nos indica individual à ~nera'liza ãO lCaro conhedmento do elemento
apalpadelas, ugmparadigmÇ
a ~:f.l outPrfu°curarelaborar, lalvez às
. f I eren e ndado no co I .
Clentí ico (mas de toda unla c' t'f"'d n 1cclmenlo
21 O!' ~rifos são do autor. . d. .
111
c
l\'ldual (1989,p. 163). Icn I ICI ade por s d f' ') .e e II1" do
94
CurrÍL'ulos praticados: e/ltre a reguinçtiu e fi C'mancipação
E1l!lIlcn/os d!' llricntl1l;ão mcJudulógicn para fi pó'1l1i:,a no/du cutidlllllO das ('seu/,Is

Depois de afirmar a primeira via como escolha das ciências


Rompendo COlTIa dicotornização e a hierarquização,
naturais, seguida depois pelas ciéncias humanas, Ginzburgidenlifica
revalorizando essa complexidade e criatividade dos saberes da
um motivo evidente: 'i\. tendência a apagar os traços individuais de
prática cotidiana (CERTEAU, op. cit.) é que poderemos fazer emergIr
um objeto é diretamente proporcional à distância emocional do
esses saberes, e, a partir daí, buscar ter acesso aos mecanIsmos de
observador" (id., ib.). Partindo de um exemplo sobre uma
suas tessituras, entendendo-os em sua complexidade proce~sual e
hierarquização de diferenças, o autor vai afirnlar, ainda, que "o
de manifestação para, viabilizando alternativas para essas.tessl:u~as,
conhecimento individualizante é sempre antropocêntrico,
dar corpo a mais e melhores alternativas emanClpatonas,
etnocêntrico", mesmo considerando que alguns estudos sobre
entendendo a emancipação como:
plantas e animais, sobretudo se destinados a exemplares fora da
norma, podem ser feitos a partir de uma perspectiva um conjunto de lutas processuais, sem !im def~nido. C! .que a
individualizante (1989,p. 164).Nesse sentido, reafirma que, no início distingue de outros conjuntos de lutas e o sentIdo polttI~Oda
do século XVII, processualidade das lutas. Este sentido é, para o campo soclal da
emancipação, a ampliação e o aprofund.amento, ~as lu~as
a influência exercida mesmo que indiretamente por um paradigma democráticas em todos os espaços estrutur~l: da ~ratIca sOelal,
conforme estabelecido na nova teoria dernocratIcaaCImaabordada
como o galileano tendia a subordinar o estudo dos fenômenos
(SANTOS, 1995, p. 277).
anormais à pesquisa sobre a norma, a adivinhação ao conhecimento
generalizante da natureza (id., ib.).

Ainda assim, reconhece o autor, o conjunto das ciências humanas


permaneceu solidamente ancorado 1/0 qualilativo (id.. ib., p. 165),o que
custou a 111uitasdelas o reconhecimento social dos seus saberes e
procedimentos, sobretudo àquelas mais ligadas à prática cotidiana.
Na esteira deste debate, Ginzburg identifica os saberes cotidianos
como formas de saber

nos l1vros mdS d VIVd voz, pelos gestos, pelos olhares; fundavam-
se sobre sutilezas certamente não. formalizáveis, freqüentemente
nem sequer traduzíveis em nível verbal; constituíam o patrimônio,
em parte unitário, em parte diversificado, de homens e mulheres
pertencentes a todas as classes sociais.Um sutil parentesco os unia:
todos nasciam da experiênda, da concretude da experiência. Nessa
concretude estava a força desse tipo de saber, e o seu limite _ a
incapacidade de servir-se do poderoso e terrível instrumento da
abstração. Desse corpo de saberes locais,sem origem nem memória
ou história, a cultura escrita tentara dar a tempo uma formulação
verbal precisa. Tratava-se, em geral, de formulações desbotadas e
empobrecidas (id., ib., p. 167).
Regulação e emancipação 110 cotidiano
da escola: o que dizem as práticas

A pesquisa de campo objetivou captar, nas práticas cotidianas


das professoras e nos depoimentos colhidos, elementos que
permitam compreender os modos sinb'Ulares pelos quais as redes
de subjetividades que cada uma delas é foram fornladas. Com isso,
supomos poder compreender 05 eJementos de suas {onnações que
inten'êm no desenvolvimento de suas práticas pedagógicas, na
medida em que essas últimas são viabilizadas a partir dos processos
de formação das agentes.

O interesse dessa pesquisa reside no fato de que, relacionando


os fazeres dos sujeitos sociais aos seus processos amplos de fomlação,
tanto no que se refere ao acesso a saberes fomlais quanto aos demais
saberes e valores que estão presentes nesses, entendendo os diversos
elementos como enredados uns aos outros, p~demos. compreender
os !ll0dos através dos quais as profess~rasJ:es.e.ram.s.e,us.saberes.
p~dagógicos, a indissociabiiici~cÍê d'as práticas, dos valores e dos
saberes-anteiiores é, sobretudo, a.complexidade dos processos de
ap;'~ridizagem que nos tornam o que somos e, portanto, a
impossibilidade de as prescrições tomarem-se realidade cotidiana.
Portanto, a partir do que Fátima" relata de Sua observação
partidpante durante alguns meses na escolrt e das articulações que
22Bolsista de iniciaçi'io científic.1 d" pesquisa.
98 CHrríClllo~ pmfiwdos: elltre 11 rl'SlIillÇiio e 11 emancipaçiio Regulação (' Clllfillcipação 1/0 cotidia1/o da escola: o quI' di=elll prática:>
fij 9Y

podenl0S fazer entre essas práticas observadas e os elementos da como: a relação entre pesquisadores e equipes pesquisadas,
formação de Sandra~' em outros espaços estruturais (SANTOS,2000) entendida como uma relação de poder - fundamentada na
usando ~ para isso, partes do depoiIl1ento que esta nos concedeu-, hierarquia entre os diferentes saberes - a ser transfOlmada em relação
vamos buscar perceber a complexidade e o caráter reticular da de autoridade partilhada; a presença de valores hegemõnicos e
formação que condiciona nossa ação sobre o mundo €, neste caso contra-hegelnônicos nos processos interativos que dão forma a
específico, as práticas curriculares desenvolvidas por Sandra no muitas das aprendizagens; as reinvenções curriculares operadas
cotidiano da escola em que trabalha. Muitos são os temas incluídos através do recurso a múltiplas formas metodológicas de se trabalhar
nessas redes. Em função dos lintites deste livro e dos nossos próprios, os conteúdos escolares e a questão da avaliação e de como ela penetra
escolhemos discutir apenas aqueles que nos pennitem articular as o cotidiano muito além dos momentos a ela dedicados
observações e registros de campo com algumas das questões que explicitamente.
levantamos teórica, política e epistemologicarnente nos capítulos Acreditamos que considerar de modo sempre articulado as duas
anteriores.
grades de leitura, tematizando os relatos e observações, poderá
Com o objetivo de. compreender o fazer das professoras, contribuir para a formulação de algumas articulações que
considerando o processo de tessitura desse fazer como vinculado pretendemos estabelecer entre a dimensão cotidiana da formação e
aos seus processos de formação, duas são as grades que nos ajudatn. da ação docente e os elementos mais estruturais intervenientes.
Por um lado, vamos perceber os processos de formação das A escolha deverá nos permitir trabalhar sobre a complexidade do
subjetividades com Santos (2000), que propõe uma grade de leitura cotidiano do fazer pedagógico, simultaneamente às dilnensões
das sociedades a partir de seis espaços estruturais, que políticas e sociais mais amplas que nele interferem e com ele
consideraremos como espaços privilegiados de inserção social- o dialogam.
doméstico, o do mercado, o da produção, o da cOlnunidade, o da
cidadania e o espaço mundial. Com isso, podemos afirmar que a Entrando na escola: a aprendizagem mútua
formação daquilo que sornas se produz nos modos como nos da autoridade partilhada
inserilno,; em cada um desses espaços e nas articulações entre esses
A própria forma de se entrar no universo da escola a ser
l1luJu:::.Jc lll:>tl':,.lU. <ilbLll1l<.l.:> .:>llu,!-"suc,,>, U1H<.l
l'Ul ULll1U luJu, LiH
pe::.qw::'dJdlllereU::Ulltdúlul':,ULil.J}Jl.U...J'-:i.u..ulJ,_',~_i'~L_'l"i-lllt t I~"
classificação mais voltada para os processos de formação docente,
wna pesquisa que pretenda compreender as professoras, seus modos
formulada por Alves (1998), nos pennite captar algumas dimensões
de trabalhar e os valores que deles participam, sem um caráter de
específicas da fornlação das subjetividades docentes e, por isso, nos
julg~m~nto e estabelecimento do que está" certo" ou," errado".
serve, também,
articulação
de base. Considerando,
que ambos os autores reconhecem
ainda, a permanente
entre os diversos
r!-
primeira preocupação é, portanto, não en~ar na escola c~mo
alguém que detém um saber superior e que, por ISSO,pode avaliar a
elementos de suas grades respectivas, o trabalho sobre as observações
práticada~~?feSso~as/A idéia é criar wna cumplicidade possível,
e registros de Fátima não será estruturado dissociando-os, mas sim
de modo a que cãda professora permaneça ã vontade no seu fazer,
a partir de grandes temas que habitam a complexidade do cotidiano,
mantendo-o igual ao que ele era antes da pesquisa, condição para a
23 Professor das turmas nas quais a pesquisa se realizou. compreensão. Para além desse fator, se temos interesse político em

..L
wo CllrríCII/(lS praticados: entre a regulação c a emancipação
Rrgulação c emancipação 110 cotidiano da escola: o que diz.em (/5 práticas
101

romper com a hierarquia entre os diversos saberes e com as


a idéia da validade dos diversos saberes e do necessário diálogo
conseqüências dela sÇ}breos modos como o cotidiano escolar vem
entre eles, para além da hierarquia atuante nos modos dominantes
sendo entendido em pesquisas que não o tomam em sua de fazer pesquisa.
complexidade, temos que assumir a postura que defendemos.
Na primeira ida à escola, Fátima observa o ambiente que a circula.
Desse modo, antes mesmo de começarmos a pesquisa,
A forma como se organiza o espaço físico nUma escola nos fornece
conversamos com as professoras e, na linha do que defende Fenaço
indícios preciosos - mas l1ão definitivos - para que possamos
(2001), peclimos "autorização" a elas para começannos a investigação.
compreender a postura do grupo, alguns modos de se trabalhar os
Em sua primeira visita, Fátima relata sua preocupação:
conteúdos e as formas pelas quais são trabalhados com os alu~os
Estnva preocupada sobre como faria o primeiro contato com a entre outras coisas importantes, selnpre Com a preocupação d~
professora e como a faria confiar em mim para que pudesse contar entendé-Ios mais do que de julgá-los. É Fátima quem relata:
um pouco da sua vida sem se sentir ameaçada, fiscalizada.
O pátio do recreio e os corredores das salas possuem diversos
Esta preocupação de Fátima se inscreve numa postura mais cartazes Comtrabalhos dos alunos doJardimn à 4"se'rie Osc t
' . ' -. ar azes,
ampla que temos assumido em nossas pesquisas, a de buscar no tanto os do patIo quanto os dos corredores das salas, são bem
cotidiano das escolas e dos fazeres docentes, não apenas a conservados. Os cartazes do pátio são de datas comemorativas do
ano, sendo _menos~?cados do que os cartazes dos corredores das
confirmação de 9ue as professoras sabem ou não sabem ensinar os salas, que sao d~ ~tJvldades ocorridas em sala de aula, trocando de
conteúdos escolares e sabem ou não sabem "respeitar" os universos acordo com a duwmica da turma.
cultUrais de seus alunos, mas a de perceber COlnolidam com uns e
Com relação ao espaço da sala de aula, Fátima observa que:
oub"os, articulando os seus saberes e universos próprios aos dos
alunos. Nesse sentido, o que buscamos é um modo de convivência E~iste~na sala. de aula Um armário, onde se guardam folhas, o
pesquisndor-Ifllivcrso pesquisado em que haja respeito mútuo, enl que mimeografo, hvro~ paradidáticos, trabalhos feitos pela turma no
decorrer do ano e algum material de papelaria. Há também uma
professoras e pesq~isadoras possam estar em contato aprendendo pequena estante, onde fica uma corda, livros, gibis e um roJo d
umas com outras sobre a base de uma autoridade partilhada, e não papel higiênico. e
sobre relações de poder fundamentadas na hierarquia que define
Pe~'cebemos nesse tipo de organização da escola a preocupação
que saberes são" nlelhores" ou mais importantes.
da eqwpe de professores com a valorização da produção dos alunos
Esse posicionamento se inscreve, de lnodo politicamente mais.
e com as datas "importantes". Dois murais de Natal nos ajudam a
amplo, na preocupação que anunciamos no capítulo 1 a respeito do
encanunhar o debate que nos interessa. No primeiro, temos um
que pode ser a construção da sociedade democrática. Entendendo
trabalho claramente realizado por docentes e no outro a "presença"
que a criação de novas formas de regulação dos processos de
da intervenção dos alunos. Note-se, ainda, no segundo, que a
interação sodal é condição para que as lutas emandpatórias possam
mtervenção da produção infantil é desenvolvida a partir de'um
institucionalizar relações sociais mais democráticas em todos os
desenho padrão de árvore de Natal, provavelmente feito pela
campos da ação social, procuramos, nesse campo específico da professora.
relação pesquisador-universo pesquisado, desenvolver relações mais
horizontais com as professoras, institucionalizando, nessa relação,
lO2
CllrríCfllos I,mtia/dos; t'utn' n rt"It1nrn'o, n ." . ,
~ l' t /flIlClpt/çao 103

-..----
." cotidiana nas escolas, esse registro nos serve melhor como
.
.~:.. "
"', ,t. contribuição para a compreensão da complexidade que envolve
nossos fazeres cotidianos do que para avaliar a postura da "escola"
cmTIO conservadora ou progressista. Acreditamos que esta
classificação dicotomizante e hierárquica tem servido muito mais
aos interesses da manutenção da desigualdade na relação entre os
"saberes científicos" das "autoridades" políticas e intelectuais e os
"saberes práticos" dos professores do que a investimentos na
melhoria da qualidade - pedagógica e política - dos fazeres na
Falo l-Mural de N.1tal feito por professoras. escola. E é também no sentido de combater essa desigualdade que o
nosso estudo se volta para a compreensão das redes de saberes e de
fazeres envolvidas em toda ação pedagógica.
Ou seja, antes de nos precipitarmos em acusações, é preciso
que estejamos atentos aos limites reais das possibilidades que têm as
professoras de desenvolver práticas transformadoras, aos
constrangimentos e saberes/valores aprendidos das mais variadas
formas nos mais variados contextos e que interferem nos desenhos
dessas práticas sem que, necessariamente, estejam a serviço da
reprodução.
Quanto'à organização da sala de aula, esta é bastante clássica,
com as carteiras enfileiradas (foto 3).
Foto 2 - Mural de Natal com produção infantil.

cntK:dJldo, e~tandmosdiante de uma contr di" A ~~


.. , .. ""
. a çao. o mesmo tempo
que valonza a produção dos alunos, postura identificada com
perspectivas ~rogre.s~istasde educação, a escola ocupa espaço com
as chamadas efemendes", identificadas geralmente Composturas
maIS "tradIcionais".e conservadoras e bastante criticadas por
educadores progreSSIStas,Além disso o trabalh d' .
". " ,o ascnançasnaoé
hvre , mas desenvolvido dentro dos limites de um d h
'd"d
tes ereol1pa
/l eseno
o e árvore de Natal feito pela professora, o que
também tem SIdobastante criticado pelas perspe"" "
LUvasprogreSSIStas,
Por outro lado, na perspectiva de busca de e t d' d'
n en lmento a Vida Foto 3 - A sala de aula.
lO' ClIrriCll/OS praficndlls: ('111re 17 regulaçiio (' (l CIIUlllcipl1çno
Regulação e ema11cipação 110 cotidial1O da escola: o que dizem as práticas
105

PorOUITO lado, o matelial disponível em sala permite otimismo


considerar as "misturas" que fazemos entre normas, circunstâncias,
en1 relação ao discurso dominante sobre a precariedade das
características dos grupos e outras. Por isso dizemos que o "preto e
condições materiais nas escolas públicas. Isso deixa entrever outro
o branco" (ver capítulo 3) não são as cores que nos permitem captar
aspecto importante do que podem captar os estudos do cotidiano, a
a complexidade e a riqueza desses processos. Nos nossos cotidianos,
relativa 'autonomia da realidade em relação aos modelos e aos
criamos misturas de cores as mais diversas, de acordo com as
regulamentos. O sucateamento da escola pública", em curso a partir
/I
possibilidades que cada situação nos oferece. Além disso, há misturas
da política educacional do governo federal," freqüentemente
de saberes trazidos por alunos e professores com aqueles
seguida pelos municípios, não gera as mesmas conseqüências em
formalmente definidos como "conteúdo curricular", modificando
todos os espaços. Ou seja, não podemos generalizar os danos que
uns e outros e criando, portanto, novos saberes, com novas
causa, a partir do que tenciona. Na realidade cotidiana, há sempre tonalidades.
locais e situações onde táticas e alternativas são postas em prática de
Nesse sentido, a preocupação com a horizontalidade da relação
modo a minimizar os problemas vinculados às normas
a ser estabelecida com a professora leva Fátima a partilhar sua
conservadoras, evitar os efeitos dessa e de outras políticas, o que nos
preocupação com Sandra, explicando os objetivos e a perspectiva
permite, por um lado, afirmar a permanência de um certo espaço de
da pesquisa de ruptura com alguns dos padrões e divisões duais
exercício de autonomia dos sujeitos sociais e, por outro, mais
estabelecidos pela modernidade, no que diz respeito ao
importante, constatar que os modelos (sempre generalizantes)
"conhecimento" e à sua produção e de interação mais igualitária
avaliativos do real, se nos permitem compreender globalmente os entre pesquisador e professor.
fenômenos e inferir resultados previsíveis de determinadas políticas,
Sempre com o objetivo de manter as relações pesquisadora-
nada nos dizeln sobre os modos específicos e singulares como os
pesquisada como uma relação de autoridade partilhada, na qual os
sujeitos e grupos sociais - nesse caso as professoras atuando nas
saberes diferentes não são hierarquizados, Fátima explica a Sandra
salas de aula - apropriam-se e utilizam as regras que lhes são,
um pouco dessa fundamentação teórica.
aparentemente, impostas (ver capítulo 2).
Desse modo, buscando superar a dicotomia hierarquizante Quando a professora teve um tempo durante a aula, conversei com
ela explicando um pouco do que constava a pesquisa e que eu não
fundamentada na redução do real a modelos de práticas e de
estava ali para "fiscalizar" a sua prática. Esta conversa que tive com
comportamentos monolíticos, entendemos ser necessário, e possível, ela demonstra qual é o papel do pesquisador que escolhemos assumir
através do trabalho que desenvolvemos, considerar que não há nem na pesquisa, q~e está de acordo com pensamentos que rompem
propostas nem práticas que possam ser, de modo inequívoco, com a supremacia da razão em demmento da emoção e a necessidade
do afastamento pesquisador/pesquisa da para validar gualquer estudo,
identificadas somente com a regulação ou com a emancipação social que são características da ciência moderna. E ao negar os dualismos
(ver capítulo 1). da ciência moderna, interajo a todo momento com Sandra
É nesse sentido que entendemos a impossibilidade de se respeitando seu espaço como profissional de educação e conhecend~
suas esferas de formação como foram pensadas por Nilda Aives: a
(IVal1areln as práticas curriculares através de mecan.isnlOS que esfera da formação acadêmica; a da ação política do Estado; a da
essencializam os fazeres, colocando-os enl lados opostos, sem prática pedagógica cotidiana; a da prática política coletiva e a das
pesquisas em educação, onde se formam valores, concepções de
~4 A referência é <lO governo de FHC. mundo, de vida, observáveis nos indicias fornecidos pela prática.
106
Curríclllos }'raticndos: l',lir/.' a regl/larão í' fi emancipaçõo
Regulação e emancipação 110 cotidiano da escola: o que dizem as l/f1flicas 107

Valores em disputa: os meus, os seus, os nossos25


Ela me disse que considera importan.te.3 parte afetiva: mas. que
Numa primeira observação, Fátima preocupa-se em registrar a dlamaI de "tia" remete a um não-profissIOnal, o que desvalonza a
profissão e impede a resistência e a luta dos professores pelos seus
postura da professora diante da turma no momento da correção de
um exercício. direitos.

Denise (voluntária da pesquisa) registra, no seu relato de


A professora fala baixo, corrige o exercído do livro paradidático
em voz baixa, escrevendo as respostas no quadro, mas eleva a voz observação do trabalho de Carmem, a mesma idéia:
quando os alunos {ajam ao mesmo tempo, e não necessariamente
sobre o exercício ou algo relacionado ao mesmo, crümdo alguma Carmem considera que a nomenclatura de "tia" desq~al,i~cae
confusão. desmerece a profissão docente. Por isso, a evita desde o inICIOde
sua vida profissional.
No relato de Fátima percebemos que a professora usa livros
paradidáticos no seu trabalho cotidiano - uma estratégia No momento da entrevista, contei a Sandra e Cannem uma das
, . d o uso d o "ti' a" nas escolas"que antes de ser baseado
origens pOSSIVeJS
pedagógica comum, mas nem sempre aceita por "pedagogos" mais
conservadores ou por pais preocupados com o aprendizado numa suposta afetividade que desprofissionaliza as professoras, ve~n
"científico", supostamente ausente nesse tipo de material. de um hábito muito encontrado em certas camadas da populaçao
A preocupação com a disciplina de trabalho se evidencia na elevação brasileira, de se chamar as senhoras mais velhas e sábias da
de voz quando alguma confusão parece se instalar. comunidade de "tias". Quando essas populações começaram a
Com relação ao modo de relacionamento, chama a atenção de freqüentar as escolas, trouxeram esse hábito."
Fátima o fato de os alunos tratarem a professora pelo próprio nome, e Depois de contá-la, Sandra reagiu rapidamente, com outros
não por "tia", como é mais comum. Ela questionou a professora. argumentos em defesa da identidade de cada professor, inscrit~ no
Curioso notar a resposta de Sandra, que, se por um lado, valoriza O seu nome, mesmo depois de se confessar sensibilizada pela histona.
aspecto profissional do seu fazel; por outro se baseia numa leitura do Ela diz e Carmem completa:
uso do "tia", que foi bastante divulgada nos anos 1970e 1980através
Sandra: Mas eu achei essa estória muito bonita, eu até simpatizei
de n1aterial"teórico"produ7Jdo na ocasião, mas que não é consensual. mais com a estória dessa versão, mas é que eu acho que
..•...•.. ...,,_.
nom.~é
-,;...t_~_-.:I., -..•. ~~
° .••...•
t. "1.~-'-- --- "'~-,II
educação, Sandra opina a partir da produção dos anos 1970e 1980, ~omud ~dnOrdou entdu prute~~urd
~dIlIJr.J,
c~~C'
lIl.Cgul..iU \.H; ü<-!, II<-!,

tia do c.A., tia da primeira ...


tomando-as por verdade. Não está familiarizada com produções mais
Carmem: Tia bunduda.
recentes e parece conferir credibilidade total àquilo que "aprendeu"
Sandra: [As crianças dizeml "Eu não sei o nome dela, mas eu sei que
nos livros teóricos,geralmente tomados como verdadeiros a 100%no ela tinha uma ..." f

imaginário social relativo à verdade científica do escrito, criado pela


modernidade. A resposta é clara, como nos relata Fátima: 26 Na versão que conheci dessa história, o uso do tia te~a relação.com hábitos
advindos das culturas africanas que têm na sabedona dos maiS velhos um
:5 Esse subtítulo é tirado de um filme que vi ainda em criança _ "Os meus, os valor. Entrevistando o Professor José Paulo Serralheiro, em Portugal, ele
contou-me que esse era um hábito . nos meIOSrura
. is portugueses em sua
seus e os nossos" - no qual um C:1saJ
com muitos filhos de casamentos anteriores
infância (vivida na primeira metade do século XX). Interessant~ notar o
decide ter um filho que seja dos dois, um "valor síntese" da relação e um
elemento de gestão do conflito entre os filhos de um e de outro. enreda menta das múltiplas culturas que, atualmente, não somos maiS~apazes
de separar. A entrevista está publicada na Revista Brasileiro de Educaçao n. 19.
108 CIIrnCII
'1 oS]l1'{! I,',"d'""-<",Irr
"""'. " ngul"ção c 11 emancipaçiio Regulaçno c emllncipação 1/0 cotidiano da ('seora: o que dizem as pnílicns
109

Carmem: Eu acho que esse negócio de tia mesmo, não sei se eu


constroem os seus próprios valores e saberes, de acordo com a fornla
agora vejo também o lado da Secretaria, eu acho que o professor
perde a identidade no sentido do nome dele mesmo~d~ ~O/~~' como formulam sua própria relação com os valores em" disputa",
"Meu filho estuda com uma tia". E você p:r~nta qual e ~ .aJ~¥ : Nesse exemplo, percebemos enredamentos entre culturas e
- seI," e um a
nao ti'a... Daqui a pouco vace~ta perguntan
11
. o. oce
valores pessoais presentes no cotidiano dessa escola, que se
sabe'o nome do seu filho?" Que é pra voce se sItuar. _
introduzem nas formas de constituição das relações enb"e alunos e
Denise' Mas tem uma coisa, a Carmem chama as maes de
mãezinhas, em contrapartida às tias, a Carmem chama todas as professoras, entre as próprias professoras, e que criam um desenho
mães da escola de mãezinhas. Eu acho que elas sentem a mesma singular na vida de cada um, interferindo decisivanlente na
cois~ que nós sentimos quando elas não sabem o nosso nome. formação de todos, sobretudo na dos alunos,
Carmem" Eu acho um desaforo você chegar a uma altura do
Ainda com relação a esse debate sobre o uso ou não do "tia",
campeon~to e não saber o nome do professor, daquela pessoa que
,
fica quatro horas e meia com seu pImpo lhi n h o. Aí, com o nome, eu cabe lembrar um outro posidonamento, que não aparece nas nossas
acho que passa a haver uma aproximação também, p~,rque~mes~~ conversas, mas que tem sido bastante importante nos debates a
na direção quando eles entram lá e falam "Carmem e nao seI respeito do magistério nas séries iniciais, na medida eUl que esta
que, eu acho que quebra ...
profissão foi historicamente destinada às mulheres exatamente
Sandra: A distância. _
porque permitia às "moças de boa família" aprender a lidar com
Carmem: A distância que existe nesse negócio que eu acho que nao
tem que existir. crianças, como meio de preparação para a vida doméstica após o
casamento. Muitos são os estudos sobre o reforço de uma condição
Apesar dos bons argumentos de Carmem e Sandra, essa p~~~: subalternizada da mulher na sociedade machista através da
não é compartilhada por todos, Em alguns casos, ~ u:o do tia desqualificação do magistério, considerado Uma atividade pouco
identificado como demonstração de respeito emrelaçao a pr~fessora, profissional vinculada aos cuidados com crianças e às emoções,
E" Deruse quem se lembra que Sueli , a diretora da escola, nao gosta universo tipicamente feminino, corno se supõe. O silencianlento
da idéia da supressão do "tia". dessa componente da problemática indica-nos que Sandra e
Carmem não atribuem muita importância a este aspecto da
Denise: Eu acho que não é que a Sueli não goste~ porque ela :c:: discriminação,
que é falta de respeito, porque é uma pessoa maIS velha do q .
gente, então ela acha que ... Aprendidos e questionados nos diversos espaços de formação
de nossas identidades pessoais e docentes, os valores de professores,
Ainda argumento com Denise que a idade náo é o único fator
alunos e pais entram em diálogo, criando aprendizagens e embates
, ,
interveniente nesse poslclOnamen t 0, que se trata de uma outra
entre sujeitos e grupos, Cabe ressaltar que, em nenhum momento,
concepção das relaçõesprofessor-aluno, mais conservadora e voltada
falamos dos conteúdos curriculares.
para formas clássicas de "respeito" ,
Percebendo a politicidade do discurso de Sandra, a curiosidade
A presença desses dois tipos de percepção do respeIto. e das
de Fátima se dirige à ação política cotidiana desta, nos espaços
relações entre professores e alunos nesse ambiente escolarnos Indica
considerados políticos da vida social, os da militância, sindical ou
o quanto são complexas as redes de relações que se tecem em cada
partidária, mas, percebendo também a importãncia de observar as
escola, entre pessoas com saberes e valores di~ti~t~s e que atuam
práticas mais do que de dirigir os temas em debate, ela deixa o
sobre a formação dos alunos, A partir dessa multiphodade, os alunos
questionamento para momento mais propício.
110
CurriClllos pmticados: ('"tr~a n:gufar;ão e a f'mallcipação Regulação c cmo"cipação lia cotidimlO da escola: o que dizem as I,rãlicas 111

Na continuidade de sua obselVação, Fãtima narra uma situação impossibilidade disso acontecer, Ela falou que tinha uma idéia para
bastante mteressante que evidencia a articulação entre a ação o campeonato, que era promovê-lo entre as três 4lU séries. Os alunos,
ao ouvi-la, gostaram da idéia e pediram um tempo da aula para
ped~gógica de Sandra e os valores nos quais acredita e que procura
organizarem o campeonato, o que foi aceito pela professora, que
praticar. No debate sobre a questão das formas de exerócio da cedeu o horário final do dia. (O campeonato incluiria] um dia para
autondade, vemos que, enquanto autoridade constituída, Sandra as meninas e outro para os meninos, e ela disse que esta organização
representa a norma, o pólo da regulação na sala de aula, e atua como iserve para] os meninos não monopolizarem a mesa de tot6,
impedindo que as meninas também joguem.
tal. Porém, ela pode -e o faz -agir em prol da emancipação. Dito de
outro modo, esse exerácio de autoridade nem sempre pode ser A igualdade de direitos entre meninos e meninas que Sandra
encarado como negativo ou reprodutor, na medida em que as busca promover indica sua preocupação com a ruptura da
professoras mUItas vezes introduzem valores que contribuem hierarquia predominante na nossa sociedade e a promoção da
exatamente para a ruptura da legitimidade da norma fundamentada igualdade. Em si mesma, essa ação rompe com a referida hierarquia.
em processos de regulação não-emancipatórios e criam formas de No que se refere a um dos interesses centrais desse trabalho - as
organização e regulação que contribuem para a emancipação social. práticas curriculares cotidianas -, temos aqui uma evidência de
Ou seja, no que se refere à questão da autoridade, tanto da que, para além da regulação socialpor via da transmissão subliminar
profe~sor~ em relação aos seus alunos quanto dos pesquisadores em dos valores sociais dominantes, amplamente denunciada por
relaçao as professoras, entendemos que é possível usá-la numerosos autores, o currículo oculto inclui práticas
sunultaneamente, e Comigual efeito, para defender valores e normas emancipat6rias, na medida em que, em seu cotidiano, as professoras
instituídos e para romper com valores e propostas tradicionais podem, e são muitas as que o fazem, levar aos seus alunos valores
estabelecendo outras, mesmo que em contexto de conflito' potencializadores de emancipação social.Mesmo tendo sido formada
mISturando assim as idéias e as práticas conselVadoras e progressista ' em uma família patriarcal e numa comunidade para a qual esta
- regu It"a onas eI ou emancipatórias, se mantemos a discussão s estrutura é quase natural, Sandra manifesta defender valores não-
proposta por Boaventura Santos. patriarcais, o que nos permite perceber as redes de elementos que a
O exemplo nos vem da própria ação de Sandra. Diante de uma influenciaram na constituição de suas convicções, para além de
" Ilf"!,,t"I", j, ,:Jl\.jL:'hIT':.~~lrb"..il~...:J.,-_..l"J.II 'J ':':-,' J',l!',.'H\,"-,-;-~ 1i,,~..,
...,."t-r~""V;VfonrT'l'l nnmp(;,tica f>
" ...• "'''V U...J.:xJJ4lL LU!I.

pedido de ajuda, Sandra articulou sua intelVenção sobre a situação comunitária e os valores adotado~ e prabcado~.
de modo a torná-Ia um momento de responsabWdade coletiva e de Em outra parte do relato, Fátima conta uma situação em que
equalização das relaçóes de gênero, através das soluções que propôs Sandra desenvolveu seu trabalho buscando favorecer processos de
para os problemas em torno do uso do totó (pebolim, em São Paulo agrupamento solidário e cooperativo entre os alunos e a justiça no
e outros locais) no recreio. equacionamento de conflitos, como um meio de I/melhorar a
qualidade de vida na sala de aula", segundo indica o nome da
No retorno do re~reio,Sandra teve uma Conversa séria Com eles.
I...] Na sala, ela disse que organizaria o campeonato d'd atividade que, em si só, já evidencia os valores que Sandra abraça
c . d d I pe I o, mas
a. aJu a e es. Um dos alunos levantou a hipótese de cobrar
~m no que se refere a essa questão, bem diferentes aliás da propagada
dmheIro dos alunos que quisessem partidpar do campeonato mas associação entre padrões elevados de consumo e qualidade de vida,
a professora logo reagiu, dizendo que eles sabia~ da
dominantes no mundo contemporâneo.
112 C1m"ferl/O:; Ilraticndos: m/r£' (/ regulaçiio (' a ('mancipaçiio
Regulação c emancipaçiio 110 cofidiano da cE:cOla:o que dizem as pnitims
113

Alguns problemas encontrados por Sandra na postura


ao manter sua proposta e tentar desenvolvê-la de modo criativo
descuidada de alguns alunos em relação ao espaço da sala de aula,
demonstra saber que, dentro desses limites, as ações têm um papel ~
na dificuldade de integração de um dos meninos da turma ao grupo
cumprir na minimização dos efeitos de aprendizao-ens relacionais
e enl Ufi1abriga entre duas meninas gerada por discordância sobre
cujos valores de base são outros. Os resultados obj;tivos talvez nã~
ligar ou não ligar o ventilador, ocorrida na sua ausência,
sejam ideais, mas o modo como Sandra respeita a todos e busca
desencadearam a realização da atividade em questão.
in~eragir com a turma, valoI1zando as relações de afeto e de respeito
A proposta era de formação de grupos de alunos, que deveriam
mutuo, produz uma relação repleta de afetividade entre ela e a
debater o tema e apresentar um trabalho coletivo sobre ele, usando
turma. Os billietes e mensagens de carinho que recebe e notadamente
uma grande folha de papel pardo, na qual poderiam usar quaisquer
um dos murais de final de ano, que, infelizmente, não põde ser
formas de expressão escrita ou imagética. A liberdade concedida
fotografado com qualidades comprovam o sucesso de Sua pOstura
para o formato do traballlo busca manter aceso o interesse da tunna perante seus alunos.
sobre um tema difícil, de pensar sobre a questão da convivência, do
respeito ao outro, às diferenças, a busca de justiça sem violência. Os valores dominantes também estão na sala de aula
Mesmo sabendo dos modos relativamente convencionais e
Em outro momento do relato, surge um dos" grandes clássicos"
prescritivos com que as crianças costumam lidar com esse tipo de
da nossa escola: as fotografias anuais, sobretudo as das séries
debate, a iniciativa contribui para a lnelhoda da convivência pelo
"terminais", Nossa memória emerge imediatamente, e nos faz
próprio modo como é proposta e desenvolvida, de modo
recordaras momentos em que posávamos para fotografias e as horas
necessariamente cooperativo e solidário.
ainda maisinlportantes, quando "VÍanlose revíamos nossas imagens
Ainda em busca de praticar a justiça que preconiza, Sandra
e de nossos amigos, redesenhando relações e episódios. Esse clássico,
explica a Fátima os motivos de um revezamento nos lugares que os
porém, também tem outras faces, sobretudo diante das caracteristicas
alunos ocupam na sala de aula. Aqui, é com o exemplo que ela
do mundo contemporâneo e dos alunos das atuais escolas públicas.
ensina. Fátinla narra:
O mundo do consumo - o espaço do ulercado _ e, ainda,
o revezamento entre as três fileiras de carteiras entre os alunos foi preocupações associadas â questão do desperdício também
pensado por Sandra para resolver conflitos ocorridos em sala de emergem nas observações dos alunos a respeito do assunto. Eles
aula, pois quem ficava na fileira do meio sentia calor, pois o sabem que alguns não podem comprar a fotografia.
ventilador estava quebrado, quem ficava perto da mesa da
professora tinha dificuldade em enxergar os exercícios no quadro, Por outro lado, a ação pedagógica de Sandra mostra como se
devido à luz da janela aberta, e quem ficava perto da janela, queria- podem aproveitar situações do cotidiano da escola para o
a sempre aberta, pois sentia calor com ela fechada. A professora desenvolvimento de traballios pedagógicos, quando ela solicita aos
disse que fez esse revezamento para que todos se coloquem no
lugar do outro, evitando assim conflitos entre os alunos. Confessa alunos que corrijam o texto que acompanha as fotos, correção que
que estes não acabaram, mas diminuíram. não estaria planejada, visto não se saber, eOU1 antecedência, qúe o
texto traria erros. Fátima relata:
Ao assumir os limites de sua proposta de trabalho, Sandra
reconhece que há mais fatores do que aqueles sobre os quais pode A professora chamou o aluno ajudante para distribuir as fotos de
formatura dos alunos, que custavam R$11,OO.Para cada aluno havia
intervir na constituição das relações de grupo na turma, mas, sua foto ampliada e a dos seus colegas em tamanho menor. J~nto a
114
Currículos praticados: entrc a regulação t' a emancipação
Regulação e cmancipação 110 cotidiano da escola; o ql/C l/hem as prática:;, IIS

esta foto, vinha um texto escrito que a professora pediu para que
horizontal e "humana" entre ela e eles, que têm a liberdade de se
um aluno lesse em voz alta e para que todos identificassem dois
erros de português existentes. E os alunos responderam. Os alunos preocupar com sua vida afetiva e pessoal.
' comentaram entre si sobre as fotos dos seus colegas e sobre o
desperdício de tirar tanta foto, se os alunos não ficassem com elas. Uma aluna se aproximou dizendo à professora que que~a qu~ ela,
a professora, participasse de um quadro do programa Dommgo
Junto aos comentários sobre as fotos, percebe-se que os alunos Legal" chamado "APrincesa e o Plebeu" para encontrar um home~.
Uma outra aluna queria que a professora ligasse para a FM O Dia
denunciam o desperdício, conseqüente do fato de algumas famílias
para cantar, o que, segundo a aluna, era o sonho da S~n~ra.Sandra
não poderem se dar ao luxo de dispor de R$ll,OO para a aquisição me explicou que ela não tem o sonho de cantar, e esta ,dela da aluna
das fotografias. Chama a atenção, ainda, que Fátima não se refere veio de uma música que ela cantou brincando em sala de aula, uma
paródia da música de Rosanna chamada '~Oamor e o poder", que
aos lamentos daqueles que não podem comprar a fotografia. É quase
ela escutou na estação de rádio Transaménca. Sandra dIsse, em tom
uma fatalidade não ter a quantia necessária. O consumo incentivado brincalhão, que não precisava ligar para a rádio, pois já estava
esbarra na impossibilidade de sua efetivação, desnudando uma das dando uma entrevista, já era famosa.
maiores perversidades da atual fase de desenvolvimento do
Cabe ressaltar a resposta de Sandra à aluna, que considera a
capitalismo, que incentiva um consumo que ele próprio, como
preocupação da menina como relacionada à busca da fama, e não
sisteJna, inviabiliza, através dos inúmeros processos de exclusão
com a realização do sonho em si. Provavelmente, a resposta se
social que vem provocando. Fátima faz referência à consciência dos
inspira em diálogos anteriores sobre o tema, evidenciando, dessa
alunos, observando que eles entendem que /lão é preciso produzir
vez, a adesão a valores contemporâneos, difundidos a exaustão na
algo que /lão será consumido, numa clara demonstração de diálogo
mídia e atuantes no cotidiano da sala de aula, mesmo que em
com os valores do consumismo, ao mesmo tempo em que a idéia do
contradição com outros anteriormente observados.
desperdício pode ser associada a uma forma de consciência
O relato de Fátima acerca de um passeio nos pemute perceber
ecológica. Talvez o significado desse episódio e dos comentários
outras clivisões sociais dominantes que se fazem presentes no espaço-
dos alunos não sejam tão intensos quanto o que indica a nossa
tempo escolar. Ela começa por nos contar que o passeio não estava
leitura sobre eles, mas aponta que, no mundo da escola, se
planejado por Sandra, que aceitou a sugestão da mãe de um aluno.
entrecruzam experiências, saberes eidéiasquese tecem e searticulam
l.oco nn inícindo rpiato, Fátima diz:
t .11...J "',L.i.'. ..1 ..••..••••.. _.lJ. •._~.::~.,J'i n...V..t---.'1.y.... .•1.I11•• .l1ll-'a.fJ'-J
•.•...
fundamental no viver coticliano dos alunos. Saímos da escola às 9:30h, apenas um ônibus, com mais ou menos
Num momento de relativa tranqüilidade na sala de aula, Fátima 45 crianças e dez mães carregando o lanche. Quando chegamos,
. Sandra conversou com eles que queria organização em fila indiana
propõe a Sandra que falem sobre a sua formação. Durante essa
e definiu que cada mãe observaria cinco crianças. [...l. Ao chegar,
conversa entre as duas, Sandra recebeu bilhetes carinhosos de alwlOS deixamos as bolsas nos bancos e as mães começaram a arrumar o
que, conforme já vimos aoma, é uma prática comUIn entre eles. lanche que levaram num outro banco, que era maior.
Como já vimos, tambêm, esta prática traduz um certo modo de
Talvez fosse desnecessário comentar a reprodução do papel
reJadonamento que Sandra mantém com seus alW1os,que écommn,
clássico da mulher na nossa sociedade, evidenciada pela presença
embora seja minoritário no cenário clássico do professor-autoridade.
de dez mães e nenhum pai, e pela não-participação das crianças na
Ainda nesse sentido, Fátima registra duas propostas interessantes
organização do espaço para o lanche, mas faço questão de registrar
dos alunos à Sandra, que evidenciam uma relação bastante
o fato em razão do significado que dele extraio sobre a potência dos
116 CurrfCll/os praticnrios: c,,'re n resu/nçiio e (I emancipaçiio
RCSlllaçiío c cmaflcipnçiio 1/0 colidi/mo dn t.'scoln: o que dium ns prdticas
117

.
valores sociais domInantes, apesar d e todas as. tentativas
andrade
Futebol é para homem! Pular corda e conversar no balanço,
ques t.oná-Ios
I
no seu fazer cotidiano, desenvolvIdas
di . _ por S .
para mulheres! Não está dito, mas é tão clara a tendência de a
O relato traz, ainda, uma outra faceta dessa VIsao:
organização do lazer infantil ainda seguir esse padrão, que não há
nino~ começaram a jogar futebol, necessidade de alongara comentário. Os acordos possíveis se dáo
Logo após o lanche, os me . "no brincavam de pular
. . nto com um mem ,
enquanto as memnas, JU b. 'dniras Ourras meninas nos jogos mistos, ainda restritos, como o queimado, que serve para
b d erra e outras fine" \: .
corda, de ca o. e.g~ r de balanço. Sandra participou de todos e é resultado de mais uma saudável negociação dos conflitos
conversavam ou. bnnca\ am "'Igumas mães, sendo
b. d' as e conversou com" . desenvolvida por Sandra, que envolveu até as mães. Fátima conta:
algumas
. nnca
.d ClT
algunc:momentos, pn 'ncipalmente por meninOS
mterrompl a em ~ . t o no banco de reservas ou Algumas meninas queriam que os meninos emprestassem a bola
que reclamavam de estar ffi]UJto e~Pgo que ec:tava batendo muito
outros que reclamavam de a gum aml _ para jogar queimado, mas os meninos não aceitavam parar seu
durante o jogo. jogo alegando que a bola era deles e que as meninas deveriam ter
trazido a sua, o que levou as meninas a queixarem-se com Sandra.
Ela estava conversando com algumas mães, o que provocou uma
polêmica entre uma delas que achava que os meninos deviam
emprestar a bola às meninas e outra que era contra. Sandra foi aos
meninos e conversou com um grupo de meninos c meninas,
dizendo aos meninos que não custava nada emprestar a bola para
que elas jogassem uma partida de queimado, da qual eles também
poderiam partidpar. E assim as meninas jogaram queimado Com
alguns dos meninos, depois voltava-se ao futebol, e assim por diante,
até o fim do passeio.

Foto 4 - O futebol dos meninos depois do lanche.

I
I Foto fi - O "acordo" do q~cimi'ldo.

Mais um questionamento aqui se impõe, sobre o possível exagero


no nosso otimismo, se considerarmos que a atuação de Sandra foi
viabilizada pelo seu poder de autoridade, mais que pelo
convencimento dos alunos a respeito da maior justiça de Se
JJ8
Cu/'riel/los praticados: entre li regulação e li emallcipação Regl/lação e elllancipação 110 cotidiallo da escola: o !/ue dium as I"álicas 119

compartilhar a bola com um maior número de crianças, sobretudo A denúncia a que se refere Fátima merece aqui um pequeno
quando vemos, na imagem apresentada, a presença de apenas um desenvolvimento, pelo seu significado político. Na permanente
menino. A pensar.
tentativa de criação e de desenvolvimento de mecanismos
regulatórios, as atuais políticas educacionais, reconhecendo nas
A importância dos fatores "negligenciados" escolas a presença de redes de saberes complexas e.plurais, têm
da realidade cotidiana
procurado propor formas de ação pedagógica que incorporem essa
Em outra visita, dessa vez nUIna turma de 4tl série, da mesma complexidade, mas no sentido de ampliar o controle sobre elas.
professora, Fátima toca em uma questáo muito significativa para O O exemplo dos PCNs ê emblemático. A introdução dos chamados
debate que queremos trazer agora: a volta da aula de Educação "temas transversais" nas grades curriculares das escolas surge, nesse
Física. contexto, como uma tentativa de" colonização do mundo da vida"
pelo sistema (HABERMAS, 1987).Ou seja, os temas transversais referem-
Quando cheguei, os alunos tinham vindo da Educação Física, que
ocorre na Quadra da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro se a dimensões da vida cotidiana que sempre estiveram presentes
em frente à escola. Estavam indo em grupo para beber água n~ nas escolas e, portanto, no fazer docente. A ética, o meio ambiente, a
beb~d.ouro.No quadro, ~avia exercidos de preposição para serem saúde;higiene, a pluralidade cultural e a orientação sexual sempre
corngJdos antes do recreJO, mas foram corrigidos depois do recreio.
foram e são ainda questões que emergem nos cotidianos das salas de
. O interesse de Fátima, a partir de conversas anteriores que aula e sáo trabalhadas pelos professores na medida das possibilidades
tivemos no grupo de pesquisa, volta-se para aquilo que chamo e características destes e de seus alunos. Ao defini-los como temas
"rebeldia do cotidiano", que não nos permite controlar tudo, por "obrigatórios" e propor formas específicas de traball,á-Ios, os PCNs
maiS que e~teJamos com um "bom planejamento" para nossas buscam aprisionar o trabalho docente em um formato definido pelos
atividades. E a própria Fátima que lembra: "experts", reduzindo, a partir daí, não sóa autonomia dos professores,
como a própria complexidade da realidade cotidiana, a uma "receita"
Esta situação aci_ma, sobre um planejamento de atividade que
de como devem atuar os professores. O que aparentenlente é
ac~n~ece~,'
mas nao no momento planejado, espeJha a "rebeldia do
-~-- •. _. {. f __ "_:R~_ •.•••.<'I:"-'- .....:-.... . ampliação e reconhecimento da .riqueza do cotidiano, na verdade
lJUI,., ~l HI~J~ lJU~ d C::JI..Ui.J ~t:JI1 um dmt.Hcllte lurm<.1i _ ~ublllend,J d 'I' •••• •••• UI •• I ., ••• '.." •••• ,
~ -- ~
•.••• ~ ••••
-
t~ntAah~as Incessantes por parte do Estado de controlar a sua
que buscam liJnitar o potencial emancipa tório das ações que não se
dma.mlca, com. o ~r6prio exemplo dos PCNs [Parâmet.ros
Cumculares Naaonals], que vêm disdplinar conteúdos antes não- dirigem aos conteúdos clássicosde ensino. Finalmente, cabe lembrar
escolares, quando estes já faziam parte da prática educativa das que, em sua imensa maioria, as sugestões elencadas nos PCNs
profes5~ras, notando que o interesse não é melhorar a qualidade negligenciam as possibilidades de ação real nos contextos escolares
do ~nsmo, mas tentar enquadrar, formalizar o cotidiano,
conslderand?-o um objeto que pode ser apropriado e manobrado e de formação - pessoal e formal- dos professores.
-, a compleXidade do seu c~tidjano faz a escola não ser um espaço Fátima segue seu relato, referindo-se à agitaçáo da turma, que
apena:, ~ara saberes formaIs para também incluir outros saberes.
ela avalia como vinculada náo só à aula de Educação Física, mas
Is~onao Impede que o planejamento ocorra, mas é predso que seja
feIto de uma forma aberta à dinâmica dos acontedmentos da sala também à sua presença. Com relaçáo a esse ponto, duas são as
de aula e do que os alunos trazem dos seus cotidianos. observações que julgo necessárias, ambas relacionadas à relação
entre planejamento e cotidiano. Em primeiro lugar, embora seja
120 Currículos praticados: mire a regulação e n emancipação Reglllaçno c emancipação 110 cotidiano da escola: o que dizem as prtíticas
121

sabido por" todos" que após uma aula de Educação Física os alunos esses momentos é exatamente sua imprevisibilidade, lllas é preciso
vêm agitados, é bastante raro que essa variável seja considerada na que comecemos a entender esses pequenos eventos do cotidiano,
elaboração de horários nas escolas, que costumam levar em conta não como desvios ou falhas no controle das sitnações, mas como
apenas as cargas horárias formais das diversas disciplinas. Esse constitntivos da vida e da dinãmica escolares (e da vida em geral) e
"dado" 'do cotidiano, não-quantificável ou controlável, costuma que, portanto, exigem um tratamento diferente do que lhes tem
ser negligenciado por aqueles que elaboram O planejamento, sido concedido nos planejamentos de horário e mesmo na
freqüentemente profissionais desvinculados das salas de aula e que, formulação de programas escolares, ancorando-os mais na vida real
portanto, não costumam sentir os efeitos desse fato. Arrisco a dizer e menos nos elementos quantitativos e organizáveis que dela fazeln
que essa postnra deriva diretamente do caráter burocrático e formal parte.
que assumem esses planejamentos, sem compromisso com as
possibilidades reais de efetivação ou com as singularidades de cada o poder da avaliação no imaginário
sitnação - como é o caso citado das" sugestões" de trabalho com os e no cotidiano infantis
chamados temas transversais.
Ainda com relação a essa meSlna situação de agitação, uma fala
A aula de Educação Física é apenas uma dessas tantas variáveis de Sandra, estrategicamente produzida para tentar diminuir o
"qualitativas" que habitam a realidade cotidiana das escolas, mas "caos", evidencia o tipo de relação que perpassa o imaginário infantil
não habitam os gabinetes da maior parte dos que as planejam. quando se trata de avaliação. Fátima explica:
As diferenças reais nas situações de aula não cabem numa grade
horária voltada para as frações de tempo destinadas a cada disciplina Quando todos os alunos, ainda agitados, também pela minha
presença, já tinham ido ao bebedouro, ela (Sandra) me apresenta à
e a cada professor. As aulas, antes ou depois do recreio, as primeiras
turma dizendo que eu era uma representante da Escola Francisco
ou últimas de cada dia, as dos diferentes dias da semana, entre Manuel, escola do segun~~ segmento do Ensino Fundamental, para
outras, são algumas dessas diferenças, vividas e sabidas por onde boa parte deles ua, e que tinha vindo para observar o
com~ortament~. da turma, para avaliar se a turma tinha condições
professores, desconhecidas e ignoradas pela maior parte dos
ou nao de frequentar aquela escola, o que me provocou risos ao
"planejadores". ver a.reaçã~ das crianças, logo quietas. Uma aluna disse que era
Em segundo lugar, mas no mesmo sentido, o fato de Fátima mentira, pOISeu estava rindo. Depois, a professora me apresentou
à turma como pesquisadora.
atribuir à sua presença parte da agitação traz à luz os inúmeros
fatores de "dispersão" que interferem no fazer cotidiano dos A turma fica quieta diante da suposta avaliadora, evidenciando
professores: um trem que passa perto da escola, um campeonato a compreensão que tem sobre os critérios que espera ver postos em
decidido em favor de um time com muitos torcedores na turma, o prática. Paralelamente, a "credibilidade" da avaliadora é posta em
cheiro convidativo da merenda ou o repulsivo de banheiros cheque quando Fátima sorri, o que é incompatível com O que se
próximos à sala, um evento significativo na comunidade antes ou espera de uma avaliadora. Como e onde as crianças aprenderam a
depois da aula, urna festa, um novo casal de namorados na sala, um se comportar diante da avaliadora e a "saber" como esta deveria
desentendimento no recreio etc. Tantas são as possibilidades! comportar-se? A resposta, embora evidente para alguns, não pode
Não estou sugerindo que se incorpore um "horário" para a ser encontrada em nenhuma instrução formalizada ou em textos
dispersão na grade horária da escola, até porque o que caracteriza escritos. Ela está nas práticas avaJiativas vividas por todos nós,
122 ClIrrfcl/lus praticados: {'/ltre a regulação e a t'lIlallci/lflçtio RegI/fação e emallci/Illção 110 cotidiano da escola: o q/lr di::.ellla~ ,,,ática:o 123

nos seus modos de se efetivar, no poder absoluto que conferem a abordar a regra que parece seguir, Sandra cria mecanismos de uso
quem avalia, enh'e outras coisas. Fátima observa com propriedade. que lhe permitem, dentro do espaço da norma, agir de modo a
reduzir-lhe os efeitos.
Esta percepção da aluna sobre a situação acima está baseada num
saber possivelmente construído no seu cotidiano familiar e Fátima percebe, ainda, que a rigidez do discurso disciplinador
comunitário, e reafirmado pela instituição escolar, sobre O modelo esbarra na postura de Sandra depois de obtida alguma disciplina
do poder avaliador. Ou seja, que postura um avaliador deve ter no
para a realização da tarefa, quando a turma volta do recreio.
seu trabalho, que seja uma postura séria para que possa ter
credibilidade?
Ao voltarem do recreio, eles continuaram a fazer a prova. Observei
que a disciplina tão exigida antes da prova, na prática, não era tão
Fátima observou, ainda, o momento de realização de uma prova, rigorosa, sobretudo depois do recreio. Ou seja, a ordem de "não
e póde perceber o quanto este inlaginário assustador se confimla e conversar, não olhar para os lados", foi sendo substituída por
.infirma simultaneamente no fazer cotidiano, quase como se a conversas em baixo tom de voz, entre aqueles que haviam
autoridade da prova e das regras próprias que ela tem dependessem terminado. Os alunos que ainda faziam a prova olhavam para os
lados e até tinham conversas rápidas com os colegas.
mais de atitudes formais do que da efetivação dessas normas na
realidade. É ela quem conta: Os motivos que levam Sandra a aderir e burlar ao mesmo tempo
as normas formais da avaliação surgem no seu depoimento a respeito
No dia 4 de dezembro havia prova. Já ao subirmos as escadas uma
aluna perguntou a Sandra se a prova estava fácil, e Sandra do assunto, quando ela explica o porquê do compromisso com a
respondeu que estava "mole, mole". [...] A prova foi distribuída e, nomla e as razões de suas táticas transgressoras, mostrando-nos,
antes que eles começassem, Sandra fez algumas recomendações mais uma vez, a complexidade que envolve a prática docente, as
com uma feiçâo muito séria, tais como: "Aredaçâo vale tanto quanto
o resto da prova; quero que leiam o texto com atenção; no exercício negociações que fazemos com as normas, o papel das nossas crenças
com verbo, vocês devem ter atenção à frase para não errarem na e valores na definição de nossas táticas.
conjugação. O que é para envolver é para envolver, o que é para
sublinhar é para sublinhar. Não quero letra garrancho e fraca,quero Inês: E você, Sandra, a avaliação, a 4~ série já é um pouco mais
letra bonita. A quem conversar ou olhar para o lado, retirarei a complicado?
----_. c ..a~Lo..-- ,,-. __ 1__ ,.. _~_{... '1 ••.•. __
Sandra: Então. eu faço assim. toda semana, eu marco um teste pra
t:;rupu;, Ut' }Jdl<.J\-!<.J;:> ;,t,. •• l Ot:.IIU ••.•V, 1110.'''' •••••• ',-"'.v . ....,., ... 's.. V
i ••.• I>-\"
•••. l

de Sandra ao falar da p.rova vem confirmar o que já dissemos faço, eu não mudo o conceito em funçã~desse teste ou dessa prova,
sobre o poder do avaliador, com postura séria, relembrando aos mas se eu der uma matéria nova, eu dou assim no meSmo dia um
a'lunos a autoridade do professor e exigindo disciplina. testezinho, uns cálculos diferentes, por exemplo: número decimal,
eu dou aquela explicação e um teste. É aí que eu vejo como é que
Temos nesse relato tudo o que Fátima identifica, mas temos eles estão respondendo aquilo e se eu fico mais naqu,elamatéria ou
tambêm um outro lado, muito presente nas formas cotidianas através sigo, é pra ajudar mesmo, mas faço prova bimestral pra fazer o
boletim, uma coisa pra eles levarem pra casa, pra ficarem satisfeitos,
das quais as professoras burlam as regras que fingem obedecer,
estudarem pra prova. Estudem, eu digo, faço um pouco daquele
dando informações que "não deveriam" dar aos alunos, ajudando- terrorismo que tem que estudar muito, boto as mães apavoradas,
os com a tarefa. Todas as explicaçõesque se intercalam nas exigências elas ficam cansadas, doidas pra me ver pelas costas: "Não, a gente
representam ações táticas de Sandra para" dar cola" aos seus alunos, não agüenta mais estudar tanto, é final de semana". Eu falei: "Mas
é isso mesmo". Não que eu acredHe muito nisso, mas eu acho que
buscando melhorar seus resultados. Ou seja, na própria forma de se não for assim também eles não vão estudar, não vão fixar aquilo.
124 Curríclllos praliClldos: entre a regulação e a emancipação
Regulação e emancipação /lO cotidiallo da escola: o qlle dizem as práticas
125

D~pois, numa 5i'. série, eles vão ver uma coisa difere~te, é_cada
professor com uma cabeça, tem tudo qU,anto é tipo _ah, entao ;~ o clássico mural com o mapa é completado por" estórias" da
acho que eles vão preparados para tudo, e a preparaçao que eu região, recuperando elementos da cultura local, infelizmente sob o
pra minha filha, que eu acho ~ue deu .certo. Então eu faço com eles título de "folclore". Percebe-se aqui a dificuldade que se coloca aos
também, é mais a preocupaçao pra VIda.
professores no trataInento de elementos da cultura que não habitam
A difer~nça entre a norma e a realidade é flagrante e consciente. os" cânones" do que chamamos" cultura", mas se percebe também
i a preocupação em valorizá-los, estampando-os e atribuindo-lhes
Espelha o que sabemos, todos nós que passamos pela escola como I
alunos ou como professores, a respeito dos modos como as I status através da escrita. A leitura que podemos aqui fazer evidencia
realidades cotidianas modificam e enriquecem os modelos
! o caráter sempre complexo da realidade
de elementos emancipatórios
cotidiana na combinação
e regulatórios. Se o tratamento das
supostamente

próprias.
rigidos através das formas interativas que cada ~po
cria em função de seus valores, suas possibilidades e caractensticas I
j
I! estórias" é folclorizado, colocando-as num lugar menor eln relação
à cultura erudita, por outro lado, elas estão lá, contadas, escritas e
!
expostas, permitindo aos alunos percebê-Ias Como constitutivas de
I, suas vidas e histórias.
As "metodologias" pedagógicas e seus sentidos
i, Surge, ainda, uma estratégia metodológica importante, que é a
Esta última parte de estudo do relato de Fátima traz ~ que talvez !
combinação da música com o trabalho. É uma fonna, senão
seja, do ponto de vista estritamente pedagógico da funçao da escola ! inovadora, decerto portadora de prazer e de valorização de outras
de transmitir conhecimentos" organizados pelos pro~~mas
11

escolares, a lllais importante contribuição para pens~r os limItes e


I formas de expressão que não as formais. Além disso, mostra o quanto
as metodologias, descritas e classificadas pelos" experts" em geral
os potenciais do cotidiano de ensinar algo sobre taI~ processos.
Refiro-me aos modos criativos, únicos, defInIdos pelas
1 de modo monolítico e estruturado como formas de trabalho ligadas
ao tradicionalismo, ao escolanovismo, ao construtivisnlo etc.,
circunstâncias, que mostram o que realmente ocorre nos ~roce~sos
interpenetram-se no fazer cotidiano das professoras, tanto a partir
de transmissão de conteúdos, para além daquilo que esta escnto e
daquilo que elas aprenderam e aprendem formalmente, quanto
legitimado como "metodologia" de ensino.
daquilo que aprendem com suas próprias práticas pedagógicas e
Algumas situações nos ajudama compreender essa riqueza. No
com a troca de informações e experiências com colegas.
relato de Fátima, encontramos uma referéncia ao mural da sala ~e
Este aprendizado com a própria prática e com colegas aparece
aula. Este estampa os conteúdos trabalhados no momento, trazen o
em uma das passagens da entrevista que Sandra nos concedeu.
também elementos que indicaIn o modo como vêm sendo abordados.

A sala possui na parede um mapa do Rio de Janeiro e"doi~ ~urais


com trabalhos dos alunos. Um mural com o título ~stonas d~
j,', Inês: Você não tinha insegurança nenhuma quando você começou
a trabalhar, você já fazia o que queria fazer?

nosso Sudeste" e outro com o título "Samba do Sudeste . PergunteI ~andra: Não, porque eu trabalhava em Jardim [da Infância}, eu já
a ela sobre os dois murais, ela falou que trab~lhou o Folclore e o tinha alguma experiência em Jardim. A minha primeira série, eles
Sudeste e que a próxima região seria a Norte. E Junto. a este trabalho também não sabiam ler, então era praticamente um trabalho que
eu conhecia .
.- d o, Bras,') ela utilizou um CD
com as reglOes . da Bla Bedran,f quee
também trabalhava com as regiões do Brasil: c.om este cn oqu Inês: Você importou um pouco do Jardim?
do Folclore, de características das regiões brastlerras. Sandra: É.
126 Currículos l'raticndos: l'IIlrr a regulaçtio e a emflllci,mçtio
Regulação e rmallci,lnçtiO 110 cotidiallo da e:,.cola:o que dizem IIS l'rtfti~as 127

Inês: E no jardim, você trabalhava como?


Sandra: Eu cantava muito, contava muita história, então eu levei
muito disso pra sala de aula, até a 4t1 série também.
!, E quando era lá em cima! Quando a gente estava na Soares Pereira,
a escola estava em obra, então nós estávamos próximos ali na rua.

Inês: Coisas que você aprendeu dando aula no jardim.


I Agora lá em cima, não tinha como descer, a não ser passeio mesmo
com ônibus, uma coisa mais estruturada, então eu passeava com
Sandra: Dando aula no jardim, eu comecei a aprender muito com o eles pela favela.
outro, com colegas que tinham mais experiência. Olha, COmoé que Inês: Fazendo as mesmas coisas.
você faz isso? Você me ajuda? Eu me lembro que na primeira vez Sandra: As mesmas coisas ou coisas diferentes. Ver relevo, por
quando eu entrei pro município e eu não sabia o que fazer, era 11 exemplo, desmatamento, andava no meio do mato.
série, não era jardim. Tinha uma amiga minha, mãe de uma aluna,
que dava aula pro C.A. [Classe de Alfabetização) no GPl e eu Inês: E como é que você sistematizava isso com eles depois, como
trabalhava lá no GPI, ai eu falei: "Cristina, o que eu faço?". Aí ela é que isso vira uma aula? Foi pra rua, viu, observou, pegou,
comprou o produto, tudo bem e aí?
começou a falar de método de alfabetização, aí eu falei: "Não, não,
começa do 'oi', eu entrei na sala disse 'oi' e aí? eu faço o quê?". Sandra: Eles escreviam aquilo, faziam receita com aquele produto,
Então, ela fez isso. Na primeira aula, ela foi de mão dada comigo: comiam, dividiam aquilo e contavam quanto cada um deu. Cada
"Você faz um desenho, analisa o esquema corporal, traz prá dentro". dia uma coisa diferente, cada dia inventando um negócio, pra que
Era o que ela acreditava que era alfabetização. Aí eu falei, eu vi e a pelo menos eles quisessem ir à escola.
partir dali eu perguntava: "Dever de casa, você deu o que hoje?". Inês: E aí, você então aproveitava, quer dizer, foi comprar goiabada,
E ela respondia: "Não, o que eu dei de matéria, eu passo". Aí eu então você vai ensinar a escrever, trabalhar com receita e não sei o
falei: "Isso eu sei, né? eu quero saber assim os exercícios ..." quê, depois vai fazer conta com o dinheiro da vaquinha.
Sandra: Do que a gente tinha comprado, pequenas coisas, né?
Depois dessas primeiras aprendizagens, Sandra vai Porque o dinheiro era curto, a gente fazia uma lista enorme e da
desenvolvendo suas ações do modo como se sente bem e à vontade, lista a gente escolhia uma coisa pra dar tempo.
sempre em busca do atendimento às necessidades e de acordo com as Inês: Aí, voltava pra sala e eles escreviam aquilo.
possibilidades dos alunos, dos espaços e dos conteúdos. Numa Sandra: Escreviam.
experiéncia que viveu em uma escola "de favela", ela conta como Inês: E faziam as contas com relação àquilo?
trabalhava com os conteúdos adequando-se às característicasda escola, Sandra: Também.
dos alunos e às suas próprias. Demonstrando muita consciência aitica Inês: E essa coisa do relevo, era o quê, observar?
~""OO'l""YJ~~ iR pr"l ~I ..wnp All. rn~n('~••p~tudavilm o Madco d..l
itju •.u ••.. lu •.•.••••..
1•...LL1~/ •...•
humor, alegria e envolvimento com O trabalho. ~Ll '"-,
.• h ••••••
,"_,,":••• L .~._

ia lá pra cima ficava olhando, e aí olhava os outros que estavam


distantes, mas que faziam parte de um todo.
Sandra: Aí, eu usava, chamava a sala de multi meios, aí eu usava o
retro[projetor], urnas historinhas, usava uns slidcs sem-vergonha Inês: E aí voltava pra sala de aula, e eles faziam o quê, que tipo de
que tinham lá, que não fundonavam e a gente trocava lâmpada, atividades?
coisa bem ... Todo dia eu ia lá pra aquela sala. Sandra: Ah, desenhos, eles .ilustravam aquele desenho, a parte que
A gente ficava brincando mesmo, era alfabeto disso era alfabeto tava desabando
daquilo, eu saía com eles, ia até o mercado, eu comprava produto, Denise: Mapa?
fazia lista de compras e trazia as coisas pra dentro da escola e fazia Sandra: Ah, tinha mapa na sala, mas eles queriam localizar o Morro,
vaquinha, ia comprar goiabada, era eu, eles e o segurança correndo ali não tinha o mapa do Morro, tinha uma planta baixa, mas o
atrás de mim no mercado, porque era tudo ma] encarado, eu achava mapa dele mesmo não tinha. Nós tínhamos o nosso, num isopor,
aquilo hilário. Teve um dia que eu fiquei dando um monte de voltas. com uma plaquinha da escola e fazia com caixinha de fósforos,
aquele posto de saúde.

i. _."'.'"
I2R Cllrríw/os pmtimdos: entre a regulaçiio e a emancipaçiio Regulação e emancipação 110 cutidimlO da escola: o quc di::':('1I1
as práticas
129

Sem se limitar a qualquer regra preestabelecida, sempre adequada às suas possibilidades e valores, bem corno às de seus
buscando potencializar as possibilidades oferecidas pela situação, alunos. Negligenciar esses fatos, reduzindo o cotidiano a modelos
Sandra mostra, nessa passagem, a riqueza de possibilidades de das práticas pedagógicas associáveis aos modelos de escola _
"contaminação" metodológica e do quanto esse tipo de trabalho se tradicional, escola no vista, progressista, construtivista etc. _
toma neces~árioelTIdeterminados contextos desfavoráveis, quando pressupõe ignorar não só os fazeres reais dos professores mas
o objetivo do trabalho é consciente e assumido com prazer e ( também, e sobretudo, todos os saberes de que dispõem e que ~ão se
envolvimento. enquadram nos modelos.
Essa mistura de procedimentos metodológicos no fazer Ainda com relação a atitudes que atestam a complexidade das
cotidiano evidencia-se, também, na escola pesquisa da, no trabalho práticas metodológicas nas relações que mantêm com os valores e
realizado por uma outra professora. A atividade se inicia com um possibilidades dos professores e de suas turmas - no caso, a postura
passeio ao Jardim Botânico, onde as crianças foram incentivadas a e preocupação de Sandra com a formação mais ampla de seus
recolher folhas do chão. Na continuidade, depois de "estudarem alunos: para além da aprendizagem dos conteúdos _, o episódio
essas folhas e de classificá-las",os alunos montaram um mural (foto transcnto abaixo é significativo. Fátima conta o evento:
7) no qual essas mesmas folhas, misturadas a outras "técnicas"
Ao ~orrigir um exerCÍcio de matemática de porcentagem, uma
expressivas, contam um pouco do passeio e daquilo que foiestudado. ~enma levantou o dedo para responder, mas não respondeu. Com
ISSO, a professora perguntou para ela o que ela perderia se errasse
ou o ~ue ganharia se estivesse certa, A menina responde: "Nada".
Issonao a convenceu a responder o exerCÍcio.Um menino respondeu

~-•.
e a mesma menina disse que errou.
~,;:
,,~utra vez Sandra procura, agora através de uma questão
..,.'\ /
, . ;..' . r. ., ..
retonca, romper com valores tradicionais, em prol de posturas que
favoreçam seus alunos e suas aprendizagens. Ao questionar a aluna
sobre os prejuízos do erro, tenta mostrar que o erro não é um
problema real, e que o medo de errar não se relaciona a
conseqüências reais do erro, expressando sua preocupação em
garantir a palavra da dúvida, nem sempre fãcil para alunos que
Foto 7 - O mural do passeio. enfrentam dificuldades com os conteúdos. Além disso, Sandra
esclarece o que pensa sobre o erro, mostrando considerá-lo como
As folhas" de verdade" juntam-se aos desenhos das árvores e elemento constitutivo do processo de aprendizagem, postura
mesmo ao Mickey e a Minie para compor a história do passeio. bastante identificada com o pensamento crítico e progressista em
Produção estética singular da turma, este mural e a atividade que educação. Por outro lado, considerando o que sabenlos sobre as
lhe deu origen1 trazem à tona a riqueza do cotidiano escolar e as conseqüências imensas, do ponto de vista da auto-estima, Oliginadas
"misturas" que fazem os professores de métodos e técnicas artisticas j pela demonstraçáo de não-saber numa sociedade que se funda sobre

I
e de ensino na busca do desenvolvimento de uma prática pedagógica o mito da perfeição e do sucesso como condição de reconhecimento,
130 Currículo:; praticado:;: clltre a reSlIlllção c il clllallcipação
Regulilção c CllIilllcipaçilu IlO cotiditlllO da f:;cola: o quc dizclII a:> pratIcas 131

poderíamos suspeitar de uma certa ingenuidade por palte de Sandra


do absenteÍsmo ou de outras formas de expressar seu não-
ao tent~r, por essa via, tranqüilizar sua aluna. Ou seja, mais uma vez
entendimento, para redesenhar algumas de nossas práticas e para
os indícios que a realidade nos oferece sobre o cotidiallO escolar nos
repensá-las dentro do próprio processo. Suspeitar do óbvio, díalogar
trazem como principal evidência a impossibilidade de enquadrá-
com as surpresas, ouvir o que dizem os erros, as inseguranças e
lo em qualquer classificação modelar formal.
outras formas de expressão de nossos alunos torna-se, nesse sentido,
Um último registro de Fátima pennite compreender um pouco elemento fundamental de nossa formação no cotidiano, pelo
mais sobre a complexidade que envolve os processos de ensino- cotidiano, para o cotidiano, entendido como espaço privilegiado
aprendizagem no cotidiano das escolas. Fátima relata: de nossa prática, inserido de modo complexo e articulado nos
Ao explicar um exercício de porcentagem, Sandra desenhou uma múltiplos espaços que o habitam.
figura, dividindo-a em dez partes. Ao terminar, ela pediu para todos
copiarem o desenho no caderno para ajudar a entender a resolução
do problema.

Nessa explicação, aparentemente óbvia, podemos notar o quanto


nossas expectativas de professores se fundaUlentam em modos de
raciodnar e compreender os conteúdos que não são necessariamente
compartilhados por nossos alunos. Dividír uma figura em dez partes
para ensinar porcentagem é lnesmo uma boa idéia para aqueles que
dominam o sistema decimal, o que nem sempre é o caso de alunos
nesse IÚvel.Para que o desenho ajude a fazer o problema, ê preciso
se ter internalizada a noção de ordem do sistema de nunleração e
saber que dez e celU são" a mesma coisa" em ordens distintas. Se
considerarmos que essa transferência não é imediata para alguns
tO,
,. .
ser atingido. Isso significa que devemos nos manter atentos à não-
obviedade dessa como de outras tantas explicações de que nos
servinlos para "facilitar" a compreensão.
O objetivo deste último questionamento ê evidenciar que,
mesmo repletos de boas intenções, às vezes naturalizanlos certos
procedimentos metodológicos clássicos, reputados eficientes e
facilitadores de aprendizagens, e que estes nem sempre cumprem O
seu papel. Nesse sentido, ê preciso que compreendamos a
necessidade de estar permanentemente atentos aos sinais que nos
enviam os alunos, através de seus erros, de sua desatenção,
Conclusão
Tecendo redes de significados:
das práticas cotidianas à utopia em ação

A democracia é uma obra de arte político-cotidiana que


exige atuar 110 saber que ninguém é dono da verdade, e
que o outro é tão legitimo C0l110 qualquer um
Maturana (1999, p. 75).

Entendendo que às práticas cotidianas são fornecedoras de


indícios para a compreensão das redes complexas que nelas se
formam e que as formam, tecendo redes de um entendimento
possível (entre outros) desses indícios, associando-os aos referenciais
político-epistemológicos do trabalho - considerados como
dimensões indissociáveis do pensar e estar-no-mundo _,
pretendemos validar a hipótese original de nossa pesquisa e desse
trabalho: a de que, no cotidiano das escolas, as professoras criam
saberes e fazeres que, muitas vezes, representam inovações
emancipatórias, tanto do ponto de vista das práticas pedagógicas
quanto no que se refere à utopia da construção da democracia social.

Aprendendo com as práticas


a ler a complexidade do cotidiano
O registro aqui estudado foi feito por Fátima em algumas VÍsitas
à escola. A riqueza das situações e da própria forma como Fátima se
relaciona com elas nos permitiu captar emedamentos enh"evalores,

DP&A editlll"a
Curr[w/u:; jJmlicado:;: miTe n TC'glllaçãlll' a C'mancipação COlidI/são 135

saberes, percepções e sentimentos que habitam esse e outros tantos de suas "redes de subjetividades" nas relações que estabelecem,
cotidianos escolares. Organizando um pouco melhor minhas a partir dos múltiplos e articulados elementos que habitam os
obserVações, busco finalizar esse trabalho evidenciando alguns diversos espaços-tempos que constituem o cotidiano, com os
enredamentos e elementos de complexidade anunciados, bem Como significados que se lhes podem atribuir em cada circunstãncia,
a presença e articulação entre valores e saberes oriundos de outros mediante processos internos e intersubjetivos de negociação de
espaços interativos no cotidiano dessa escola, tanto os trazidos por sentidos. Nesse sentido, ganha concretude a necessidade anunciada
professoras quanto por alunos e seus pais.
de irmos ao coticliano e à sua complexidade para compreendermos,
Em primeiro lugar, percebemos que o espaço escolar indica não só as especifiCidades de cada fazer, mas também o modo como
muito mais do que apenas aquilo que aparenta, tanto no que se se inserem na luta emancipatória pela democracia e como podem
refere à sua organização quanto na sua forma de expressar os ser potencializados no sentido de sua institucionalização crescente.
conteúdos escolares, os valores e os outros saberes que nele Consideradas em sua complexidade, as práticas cotidianas
penetram, bem como as formas como são trabalhados, também podem contribuir para o estudo das realidades escolares, na medida
percebidas em sua complexidade.
em que estas são compostas pelas redes de saberes e de fazeres
Percebemos, ainda, nos registros de momentos do trabalho de presentes nos cotidianos das escolas reais, e que contribuem para a
um dia em cada uma das turmas observadas, valores transmitidos e formação das redes de subjetividades que são professores e alunos.
valores questionados, contradições entre modelos pedagõgicos e Portanto, é preciso estudá-las enquanto tais, se queremos pensar na
sociais que coabitam o espaço escolar e interferem nas relações entre contribuição que esses estudos podem trazer ao pensamento
os sujeitos sociais e, portanto, nos processos de aprendizagem e de curricular e à tarefa de elaboração de propostas curriculares realistas
formação das subjetividades de alunos e professores que criam novas e adequadas às possibilidades emancipatórias inscritas nas
interferências que possibilitam nOvas criações. realidades nas quais elas se desenvolvem.
Sabemos ser impossível separar a professora que acredita no O trabalho com as noções de Boaventura Santos a respeito dos
seu valor profissional e briga por ele da que defende as "meninas", espaços-tempos estruturais e articulados nos quais tecemos as redes
p...-I", 4"'•.•. ,.. UI) •••. """"1~.""i.--.••.•.•••••.•.•..•..•••
~,.( .•..•.•.•.. h..o.B ••..•• ..._..__.•_1-' ~ ~..:I~1J..._
de sujeitos Que somos, bem como os debates que o autor propõe a
dJ~J1l do vdJor ~stehco, um vaJor pedagogico, ou a que expJica o .L.;)t' ••.
~~,-,Uul•••..•
,•.••.••••••.•.• o'""-..,..... .•..•.•••. _-".~..r- --"
~••..•.••.•.••.

dever de casa ou corrige o trabalho no quadro. Todas são Sandra, emancipação como solidariedade, aliado ao conceito de democracia
pessoa plural e multifacetada, portadora de valores e de saberes que de Humberto Maturana, tornam-se, aqui, portadores de elementos
evidencia todo o tempo na sua relação com seus alunos, muito para para pensar e compreender a questão curricular, tanto em instâncias
além do que se concebe como o professor mero transmissor de de prática como na c1imensão da formulação de propostas, na medida
conteúdos curriculares. E é com todas essas facetas que ela se forma em que podemos, com essas noções, compreender a necessidade e a
e aos seus alunos, também nas suas múltiplas faces. possibilidade de expanclir as práticas emancipatórias já existentes,
É na dinãmica interativa intersubjetiva, conflituosa ou não, dos não apenas no que se refere aos conteúdos de ensino, mas sobretudo
espaços-tempos cotidianos que se forjam e se desenvolvem as no que se refere à multidimensionalidade do fazel/saber escolar, em
identidades de alunos e também de professores, através da tessitura vez de imaginarmos, a partir de um ideal qualquer, modelos de

L ..:... __
136 Cunfudo::; pmticllâos. t'l1tre Il regulação e Il emancipação COl1clusiio
137

práticas incompatíveis com as capacidades e desejos dos professores derr;~cráticos para avaliar as diferentes formas de participação
e alunos a quem se destinam. "De nada valerá inventar alternativas pohtIca. E as transformações prolongam-se no conceito de
de realização pessoal e colectiva, se elas não são apropriáveis por cidadania, no sentido de eliminar os novos mecanismos de exclusão
da cidadania, de combinar formas individuais e formas colectivas
aqueles a quem se destinam" (SANTOS, 1995,p. 333). de cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar esse conceito
Entendendo, ainda, que o potencial dos estudos no/do cotidiano para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e
deveres (SANTOS, 1995,p. 276).
ultrapassam os significados que, com freqüência, lhe são atribuídos,
de ser espaço de mera repetição de uma suposta ordem social Atuando no sentido, não de uma educação para a cidadania,
superior, vamos considerar esta dimensão da vida e do fazer/saber mas de uma educação na cidadania, que entende o aluno como um
dos sujeitos sociais como palco privilegiado dos fazeres cidadão em processo de educação, Sandra rompe, nlesmo seUl o
emancipatários e da luta pela democracia. explicitar, com o modelo dominante do que é e do que deve ser a
Porque os momentos são "locais" de tempo e de espaço, a fixação vida cidadã. Mesmo envoltas em dificuldades e contradições,
momentânea da globalidade da luta é também uma fixação conforme observamos nos relatos e em sua análise, as práticas
localizada e é por isso que o cotidiano deixa de ser uma fase menor voltadas para a igualdade entre meninos e meninas, respeitando-
ou um hábito descartável para passar a ser o campo privilegiado
lhes as diferenças, para a co-responsabilidade sobre o espaço da sala
da luta por um mundo e uma vida melhores. [...] [Assimentendidos]
o senso comum e o dia-a-dia vulgar desvulgarizam-se e passam a de aula, o respeito aos direitos de cada um nesse mesmo espaço, a
ser oportunidades únicas de investimento e protagonismo pessoal solidariedade entre ela e os alunos e dos alunos enh"esi, evidenciam
e grupal. Daí a nova relação entre subjetividade e cidadania (SANTOS,
o desenvolvimento de uma prática de cidadania, de uma educação
1991,p. 167).
cidadã, que vai muito além do ideário de uma educação para a
cidadania, que pressupõe que os alunos só se tomam cidadãos depois
Práticas cotidianas de cidadania
de devidamente educados para tal.
Nessa perspectiva, podemos entender alguns dos valores que
A politização do social, do cultural e, mesmo, do pessoal abre um
Sandra abraça e difunde entre seus alunos, como a solidariedade,
campo imenso para o exercício da cidadania e revela, no mesmo
a responsabilidade coletiva, a igualdade de gênero e o diálogo como passo, as limitações da cidadania de extracção liberal, inclusive da
meio de solução de conflitos, como contributos fundamentais para cidadani~ s~cial, circunscrita ao marco do Estado e do político por
a repolilização global da prática social e, portanto, para o exercício ele constItuldo. Sem postergar as conquistas da cidadania social,
como pretende afirmar o liberalismo político-econômico, é possível
das novas formas de cidadania a que nos referimos no primeiro pensar e organizar novos exercíciosde cidadania [...J e novas formas
capítulo. Tais valores representam um aprofundamento e um de cidadania (SANTOS, 1991,p. 170).
alargamento do calnpo político aos diversos espaços estruturais,
ampliando a própria noção de cidadania às dimensões que a teoria
Solidariedade e caos-
liberal despolitizou, ao confiná-Ia ao espaço da relação Estado-
a tessitura do conhecimento-emancipação
cidadão.
Ampliando essareflexãoa partir dos significadose desdobramentos
A diferenciação das lutas democráticas pressupõe a imaginação possíveis das práticas emandpatárias que identificamos no trabalho
social de novos exercícios de democracia e de novos critérios
de Sandra, e articulando-as ao que diz, mais um vez, Boaventura . .
":.~'.5..".>..•.'.. "
.
13B
Currículos praticados: cutre a regl/lação c a clII(fllcipação
Conclusão 139

Santos a respeito do conhecimento-emancipação (2000, p. 29ss),


Por outro lado, mas no mesmo sentido, conceder primazia ao
podemos encontrar, nas práticas observadas e nos valores assumidos,
conhecimento-emancipaçâo sobre o conhecimento-regulação requer
alguns'dos elementos fundamentais daquilo que entendemos, com
a transfomlação da solidariedade na forma hegemônica de saber e a
o autor, ser essa forma de conhecimento e a sua importância no
aceitação de UI1"I certo revel de caos, reafirmando o caos como forma
contexto da luta pela emancipação social e pela democracia.
de saber e não de ignorância. "O caos deixa de ser algo negativo,
Em primeiro lugar, o autor afirma que o conhecimento- vazio e informe para ter uma positividade própria inseparável da
emancipação (cujo ponto de ignorância se designa porcolonialismo ordem" (id., ib., p. 79). Aceitar a imprevisibilidade do real, comO faz
e cujo ponto de saber se designa por solidariedade) Sandra ao se referir aos limites que percebe nos planejamentos
não a~pira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução escolares e lidando com as situações que surgem de modo criativo,
que sirva de suporte epistemológico às práticas emancipat6rias, toma-se, assim, mais que simples necessidade cotidiana, condição
todas elas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis para o desenvolvimento das práticas emancipatórias. Também
quando ligadas em rede (id., ib., p. 31).
permite recuperar a importância daquilo que nos é próximo como
Como redes de práticas habitadas tanto por presenças quanto elemento do real, superando a concepção moderna segundo a qual
por ausências, os fazeres pedagógicos de Sandra ganham sentido a proximidade é inimiga do conhecimento. Voltamos aqui
emancipatório, na medida em que se voltam para a superação do à importância do trabalho e da pesquisa no/do cotidiano.
coloniaHsrno e buscam caminhar em direção à solidariedade, "A proximidade deve ter a primazia como forma mais decisiva do
conforme pudemos atestar no capítulo 4. real" (id., ib., p. 80).
Entendendo que "o colonialismo é a concepção do outro como
objeto e, conseqüentemente, o não~reconhed.mento do outro como Reciprocidade e intersubjetividade -
sujeito [e que,] nesta forma de conhecimento conhecer é reconhecer" tecendo a democracia social
(id., ib., p. 30), o trabalho crítico de valorização e discussão das Considerando, sempre com Santos, que a "solidariedade éo
experiências, dos valores e das culturas dos alunos desenvolvido conhecinlento obtido no processai sempre inacabado, de nos
~. _.J ., ---- -------l~ 1"""nnrncidadp
atravéc; da construção e do
solidariedade, na medida em que procura estabelecer um diãlogo reconhecimento da inter~ubJebvlddde lte!l:mut> LjUl.J <.I t,.J11<.l"'o.;. lo'"

entre as diversas culturas presentes nas suas salas de aula. Como solidariedade converte a comunidade no campo privilegiado do
vimos anteriormente (capítulo 1), a dominação cultural tem sido conhecimento emancipatório" (id., ib., p. 80). Entretanto, esta idéia
um dos principais pontos nevrálgicos do fazer escolar hegemônico, de comunidade não se limita ao grupo originário e,ao território
e sua superação uma de nossas principais lutas no contexto do mais próximo do qual fazemos parte. É aqui entendida como uma
projeto de construção de uma escola mais democrática. Recordando IlCOCOIllUllidade.
Amílcar Cabral, Santos (1991, p. 188) reafirma que "a cultura e o
A neocomunidade transforma o local numa forma de percepção
renascimento cultural constituem, por excelência, a pedagogia da
do global, e o imedialo numa forma de percepção do futuro. E um
elnancipação". campo simbólico em que se desenvolvem terntonahdades e
t'emporalidades específicas que nos permitem conceber o nosso
próximo numa teia intersubjetiva de reciprocidades (id., ib., p. 81).
140 CurríCll/os prnfiClldos: entre 11rcgulaçiío c a C/n{l11cípaçilo
COllclusiio
141

Nesse sentido, o "saber enquanto solidariedade visa substituir


renúncia à interpretação, o seu outro/ presente na aceitação acrítica
o objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos" (id., ib.,
de uma realidade e de uma ideologia de imobilização das lutas
p. 83),conforme afirmamos nos nossos procedimentos de pesquisa
sociais, o que só é possível no diálogo entre saberes. Encontramos
e na idéia de cumplicidade com as professoras-sujeitos da nossa
aqui a premissa freiriana de que a educação só o é, verdadeiramente,
investigação. Esta legitinúdade do outro no cliálogoe na cooperação
quando se faz dialogicarnente. Encontramos, também, muitas das
entre os saberes, os nossos e os das professoras ou os delas e os de
práticas cotidianas de Sandra e as preocupações teóricas e
seus alunos, pode ser entendida como um embrião de criação da
metodológicas de nossa pesquisa, que, mesmo envoltas nas
democrada, na medida em que, com Maturana, acredito que:
contradições e dificuldades identificadas nas palavras de Santos,
Nossa tarefa é fazer da democracia uma oportunidade para estão voltadas para valores democráticos e para a emancipação social,
colaborar na criação cotidiana de urna convivência fundada no
buscando, para isso, atuar com base na reciprocidade entre sujeitos.
respeito que reconhece a legitimidade do outro num projeto comum,
na realização do qual a pobreza e o abuso são eITOSque podem e
devem ser corrigidos. Façamos da democracia um espaço político o princípio da comunidade
para a cooperação (1999,p. 75). e a regulação emancipatória
E que, portanto: O papel relevante dessas chamadas neocomunidades
interpretativas nas lutas emancipatórias e do diálogo requer que
Criar urna democracia começa com "a sedução mútua" para criar um
mundo no qual, continuamente, surja de nossas ações a legitimidade entendamos o princípio da comunidade como um bem relativo,/I

do outro na convivência (id., ib., p. 77). cujo valor depende da profundidade e do alcance do
conhecimento elnancipatório que consegue produzir, ou seja, da
A tarefa não é simples e envolve inúmeras condições de
medida em que elimina o colonialismo e constrói a solidariedade"
efetivação e problemas. Entendendo que "o conhecimento- (SANTOS, p. 95-96).
emancipação é um conhecimento local criado e clisseminado através
Torna-se aqui necessário esclarecer o porquê da identificação
do discurso argumentativo e que só pode haver discurso
de virtualidades emancipatórias no princípio da comunidade, e é,
argumentativo dentro de comunidades interpretativas" (SANTOS,Op.
mais uma vez com Santos que o faremos.
cit., p. 95),vamos assumir que:
A idéia da obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a idéia da
as comunidades interpretativas são comunidades políticas. São aquilo
participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade
a que chamei neocomunidades, territorialidades locais-globais e
geral são as únicas susceptíveis de fundar uma nova cultura política
temporalidades imediatas-diferidas que englobam o conhecimento
e, em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e
e a vida, a interacção e o trabalho, o consenso e o conflito, a
colectiva, assentes na autonomia e no au togoverno, na
intersubjetividade e a dominação, e cujo desabrochar emancipa tório
descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo
consiste numa interminável trajectória do colonialismo para a e na produção socialmente útil (id., ib., p. 170).
solidariedade própria do conhecimento-emancipação (id., ib.).
Mais uma vez podemos perceber o quanto existe de busca
São totalidades complexas, que precisam ser ampliadas,
emancipatórianas práticas observadas e no fragmento autobiográfico
precisam se proliferar, se queremos superar os monopólios de
presente na entrevista de Sandra, mesmo que fundamentada muito
interpretação do real herdados do cientificismo moderno ou a
mais em valores assumidos e práticas reais do que em um discurso
142
ClIrrfclIlos Jlralicndos: CII/rl: n regllla~'àoe n emollcipaçtio Condusão ]43

produzido em defesa da democracia ou da emancipação. Sandra regulação, assume seu potencial emancipatório, na medida em que
procura horizontalizar ao máximo as relações entre ela e seus alunos "é o princípio menOSobstruído por determinações e, portanto, o
e taníbém entre eles, buscando fazé-los compreender a importãncia mais bem colocado para instaurar uma dialética positiva com o
dessa obrigação política horizontal para os modos de interação em pilar da emancipação" (id., ib., p. 75).
suas salas de aula.
Duas outras dimensões desse princípio - a participação e a A racionalidade estético-expressiva
solidariedade - são fundamentais, em função de sua pouca e a reumanização do conhecimento
colollJzação peja ciência moderna. No caso da participação, a No que se refere ao pilar da emancipação, a racionalidade
colonização deu-se, sobretudo, na esfera política (cidadania e estético-expressiva resistiu melhor à cooptação total e é, por ISSO,a
democracia representativa), permitindo que muitos domínios da forma de racionalidade preferencial para o pensamento pós-
vida social mantivessem a participação como uma competência não- moderno emancipa tório. Afirmando que o "caráter inacabado da
especializada e indiferenciada da comunidade. No caso da racionalidade estético-expressiva reside nos conceitos de prazer,
solidariedade, a colonização atuou, sobretudo, através das políticas autoria e artefactualidade discursiva", Santos (1991, p. 76) aponta
sociais do Estado-providência. Porém, na esmagadora maioria dos alguns elementos que pem1item vislumbrar as" correções de rumo"
países a solidariedade comunitária não especializada -a sociedade- da emancipação possíveis de serem pensados a partir dessa
providência - continua a ser a forma domínante de solidariedade
(id., ib.). racionalidade.
Em primeiro lugar, ao afirmar que "fora do alcance da
O desenvolvimento cotidiano de práticas participativas e colonização, manteve-se a irredutível individualidade
solidárias em todos os espaços estruturais nos quais estamos intersubjetiva dolwlI1o-l"dens" (id., ib.), o autor induz a recuperar a
inseridos, bem como a busca de ampliar sua institucionalidade, legitimidade do critério de prazer que a modernidade baniu de
assumem, nesse sentido, importância capital na tessitura da nossos fazeres cotidianos e a ressaltara importãncia desse no trabalho
emancipação social. As práticas pedagógicas desenvolvidas nessa pedagógico como elemento em si mesmo, emancip,~t6rio. Em_bora
per~PE"ctiva...p€'la importância oup ~nc.~1Jpm n~ f~n -f"'l ••.••.
~fí:lI não"f"ia uma novidade enquanto "senso comum, a lmportanaa
~Ut>Jt:UVlt.1e.tl1L"::. d..tlluel~::. YUl: ddd::' partIopam, aparecem, portanto,
de::'::'d rccupcr<..ll,-l.Ju liv., JI..•.....
~'- l.vJ'- , •._ •...__.l.. . ,:. "I", ,~,."".
como fundamentais nessa compreensão.v
recentes a respeito da perda de envolvimento prazeroso dos
É nesse sentido que o princípio da comunidade, enquanto professores com o seu cotidiano, como fator determinante no seu
representação mais inacabada da modernidade no domínio da crescente absenteísmo e adoecimento.

'Zl Lurs~ Cortesão (ZOOl) fo~m~la em :eu. texto "GuIliver entre gigantes: na A noção de autor- junto com outros conceitos a ele associa~o~,tais
tensao entre estru~ra e agenaa, que slgruficados para a educação?" a hipótese como inidativa, autonomia, criatividade, autoridade, autentJcld?~e
de qu.e a educaçao p.ode ser entendida Corno espaço estrutural. Como a e originalidade - é o conceito que subjaz à organização do domU1lO
próp~a ~utora, ac~edltam~sque, embora pertinente e operacional, a idéia artístico e literário da modernidade I...
] (5•••.
,,,os, 1991, p. 76).
pre~lsarta de maiS e maIOres reflexões e desenvolvimentos. Por isso,
conti~uamos a,~abalh~r as relações complexas entre as práticas escolares e as
premissas políhco-eplstemológicas sem assumirmos como verdadeiras a Sem precisar da distinção entre sujeito e objeto,a idéia de autoria
sedutora hipótese da autora. não renuncia à dimensão ativa do sujeito. O autor é originado •.,
144 CllrríC/llos praticarios: CIII1"é'a regll[açtío e a emancipação
COllc/l/siio
]45

é sujeito, sem que, para isso, tenha que definir seus temas e obras
Segundo Castoriadis, a "Oração fúnebre" de Péric1es mostra que o
como objetos controláveis e manipuláveis. O sujeito, autor de sua objetivo da polis é a criação de um ser humano, o cidadão ateniense,
própria vida, das suas redes de saberes e de fazeres, reemerge com que exige e vive na e pela unidade destes três elementos: o amor e
toda força nessa idéia, numa forma de existência de subjetividades a "prática" da beleza, o amor e a "prática" da sabedoria, o cuidado
e a responsabilidade para com o bem público, a coletividade e a
cliadas e realizadas na intersubjetividade.
palis. Constata-se, portanto, nessa importante obra, o
reconhecimento do sentido do belo como fundamental na formação
o outro conceito organizador do domínio artístico e literário é o de do cidadão e na manutenção da democracia (id., ib., p. 8).
artefactualidade discu.rsiva. Todas as obras de arte têm de ser criadas
ou construídas. São o produto de uma intenção específica e de um
Portanto, no novo paradigma de conhecimento, há que se
ato construtivo específico. A natureza, a qualidade, a importância e
a adequação dessa intenção e dessa construção são estabelecidas revalorizar as dimensões estéticas e criativas da produção humana,
por meio de um discurso argumentativo dirigido a um público- recuperar a importância das humanidades como dimensão essencial
alvo. [...} Entendida nesses termos, a racionalidade estético- de toda produção humana, porquanto sejam essenciais à produção
expressiva une o que a racionalidade científica separa (causa e
intenção) e legitima a qualidade e a importância (em vez da da própria vida humana. A revalorização dos estudos humanísticos,
verdade) através f ... ] do conhecimento retórico (id., ib., p. 77). contudo, não se dá sem problemas, na medida em que exigem uma
transformação no seio mesmo das humanidades. "O que nelas há de
Recuperando o sujeito-autor, bem como o nexo entre aquele
futuro é terem resistido à separação entre sujeito e objecto e entre
que produz, sua intencionalidade e sua obra, as noções de autoria e
natureza e cultura, e terem preferido a compreensão do mundo à
a de artefactualidade discursiva presentes na racionalidade estético-
manipulação do mundo" (id., ib., p. 93). Recuperar, portanto, esse
expressiva se inscrevem nos novos modos de criar conhecimento
núcleo e colocá-lo a serviço de uma reflexão global sobre o mundo
do paradigma emergente que "reclama para si uma proximidade se faz necessário.
com a criação literária ou artística" (id., ib., p. 92). Nesse sentido,
temos podido, tambêm, perceber o florescimento de pesquisas e Como catalisadores da progressiva fusão das ciências naturais e
das ciências sociais, os novos estudos humanísticos ajudam-nos a
estudos voltados para a dimensão estética e criativa na/da escola,
procurar categorias globais de inteligibilidade, conceitos quentes
como fatores importantes para compreender o que nela se passa e a que derretem as fronteiras em que a ciência moderna encerrou a
prise elJ compte dessa dimensão para a compreensão da formação das realidade (id., ib., p. 94).
subjetividades de alunos e professores, bem como a
Concei tos quentes, intersubjetividade discursiva, argumentação
intersubjetividade de um com o outro, para além das aulas de artes
dialógica, conhecimento retórico e, sobretudo, prazer são algumas das
que, consoantes com o paradigma moderno, dissociam o fazer e o
idéias que nos pennitem pensar a emancipação social e a construção
viver estéticos do aprender cognitivo e dos processos interativos.
da democracia" como uma obra de arte político-cotidiana, um produto
Desenvolvido nessa linha de pensamento, o trabalho recente e
do desejo de convivência democrática, não da razão. [...J A conspiração
inspirado de Victorio Filho (2002, p. 12) discute as relações da
democrática não requer um ser humano novo, requer apenas
produção estêtica - artística ou não -, como elemento da tessitura
sinceridade na participação conspiratória democrática" (MAll.JRA'IA, op.
do que chama de "vidas mais bonitas", com as demais dimensões de
cit., p. 77) e que, por isso mesmo, exige de nós imaginação social e
produção da existência de todos nós. Ele relembra, a partir de
estética na tessitura de nossas práticas emandpatórias concretas, através
Castoriadis, a articulação histól;ca entre elas.
da inserção da novidade utópica no que nos é mais próximo.
).16
Cllrril'lIius lJralicados: elltn' n regulaçdo t~(Il'mallcipaçtio COlidI/são 147
-
A utopia em ação na escola: It estatuto da espera, tornando-a simultaneamente mais
formando subjetividades rebeldes :c:~:reOmais ambígua. A utopia é, assim, o rea!ismo desespera~o
de uma espera que se permite lutar pelo conteudo da espera, nao
Considerando um dos desafios do conhecimento-emancipação em geral mas no exacto lugar e tempo em que se en~ontr~. A esperança
a passagem da ação conformista à ação rebelde, Santos (2000) não reside, pois, num prinápio geral que prov]d~ncla um futuro
eral. Reside antes na possibilidade de .cr~ar campos de
evidencia dois fundamentos importantes para se pensar no
~xperimentação social onde seja possível reSIstir localment~ às
potencial emancipa tório das práticas sociais. Em primeiro lugar, evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas
relativiza o papel das estruturas sociais COmolimitadoras da ação ue arecem utópicas em todos os tempos e excepto naqueles ~m
social possível, entendendo que "as estruturas são tão dinãmicas ~ue ~correram efetivamente. É este o realismo utópicO que presIde
às iniciativas dos grupos oprimidos que, nu~ mundo onde parece
quanto as ações que elas consolidam", Superando a dicotomia ter desaparecido a alternativa, vão constrUl~do, um P?uco. po;
moderna enh.e determinação e contingência. Por outro lado, mas toda parte, alternativas locais que tomam posslVel uma VIda dign
no mesmo sentido, reconhece que as ações e as subjetividades são 1/
e decente.
tanto produtos como produtores de processos sociais", superando, À teoria crítica compete, em vez de generalizar a. partir dessas
alternativas em busca da alternativa, torná-Ias ~on~ea~a.s ~~ra além
nesse caso, a dicotomia entre eStrutura e ação (2000,p. 33).
dos locais e criar, através da teoria da traduçao, ~nteh!pbil~dades e
Conclui, nesse sentido que, para a teoria crítica pós-moderna, a cumplicidades recíprocas entre diferentes a1ternati~rasem dl.ferentes
necessidade é centrar a discussão sobre a dualidade entre a ação locais. A criação de redes translocais entre alternativas locaISé uma
forma de globalização contra-hegemônica - a nova face do
conformista e a ação rebelde. Com isso, a teoria critica pós-moderna cosmopolitismo(SANTOS,
2000,p. 36).
procura reconstruir a idéia e a prática da transformação social
emancipatória. ''li especificação das formas de socialização, de É com base nessa idéia que entendemos a criação cotidiana de
educação e de trabalho que promovem subjetividades rebeldes ou, alternativas curriculares numa perspectiva progressista - coletiva,
ao contrário, subjetividades conformistas é a tarefa primordial da solidária e dia lógica - como prática da utopia, na medida e~ qu.e
inquirição crítica pós-moderna" (id., ib.). configura a "inserção da novidade utópica no que nos esta maIs
Mais adiante, o autor afirma que "a construção social da rebeldia próximo" pela inclusão de valores e crenças vinculados ao
.- --..-- ••••..••~ -I", .-_ •••••• ,-...,;.,,-, -I. ~ -4 ,. s: .;. f
conhecimento-emancipação, fundamentados na sohdanedade
• -,I- •• - -...~- •••• ~.=;.••_ ...1"",,,,!
indignaçao é, ela práplia, um processo social" (id., ib.). E é por isso
que, na busca da utopia da democracia social, precisamos perceber, saberes/fazeres/valores a partir da complexidade do real e de suas
nas práticas sociais que desenvolvemos ou estudamos, o que nelas imprevisibiJidades.
há de potencialmente formador de subjetividades rebeldes, de São táticas emancipatórias que trazem para o cotidiano usos
construção de uma esperança para além da espera. astuciosos das regras estabelecidas, reorgani7.ando-asde acordo com
A resposta do autor é pungente e relevante para o tema deste as possibilidades inscritas em cada situação. A propriedade dessa
livro, o que justifica a longa citação. Diz ele: idéia se manifesta inequivocamente nos estudos das práticas reais
das professoras, desenvolvidos nas pesquisas no/do cotidiano das
[A teoria oítica] tem de assumir uma posição explicitamente utópica,
escolas. No caso desta, pudemos observar, nos fazeres cotidianos de
uma posição que sempre teve, mas que durante muito tempo
clamou não ter. Recuperar a esperança significa, neste contexto, Sandra, que ela trabalha não só ensinando os conteúdos curriculares
oficiais, mas tambêm difundindo os valores que abraça, prahcando,
148 CllrrÍClIlos praticado."-: entre fi rcgulaçiio e fi emallcipaçiio

em escala micro, suas utopias pessoais. Tendo como objetivo


demonstrar a validade das proposições acima, o estudo da prática
cotidiana de Sandra, da forma como ela leva para as salas de aula os
valores de solidariedade, de igualdade nas relações de gênero e de
responsabilidade coletiva, além de permitir entrever a formaçáo de Referências bibliográficas
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competição e do individualismo, permite afirmar que, no fazer
pedagógico cotidiano, algumas professoras/praticantes criam uma
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São Paulo: Cortez, 2000. no material da pesquisa~ evidencia-se o
enredamento das múltiplas esferas de
___ o Globalização, multiculturalismo e conhecimento. Entrevista
publicada na Revista Educação e Realidade, v. 26, n. 1, FACED/UFRGS, fonnação e das fonnas da inserção sodal
Porlo Alegre, jan./jul. 2001, p. 13-32. nos diversos espaços estruturais na
constituição das crenças e dos valores, das
___ O fim das descobertas imperiais. In: OLIVEIRA,Inês B.; SCARBI,
o

Paulo (orgs.) Redes culturais, dií.'crsidade c educação. Rio de Janeiro: idéias e dos saberes, detenninal1tes no fazer
DP&A, 2002, p. 19-36. pedagógico cotidiano. No último capítulo,
Luís. História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar.
SEPÚLYEDA,
sintetiza-se o debate e recompõem~se as
Lisboa: ASA, 1997. diversas dimensões politicas e
epistemológicas trabalhadas nos
SOL7.A, Maria Cecília C. C. de. Escola e memória. Bragança Paulista: IFAN-
CDAPH/ Edus!, 2000. capitulos anteriores.

THoMP5o\:, Paul. A "1'0:;: do passado. História oral. 2. ed. Rio de Janeiro: paz
e Terra, 1998. Inês Barbosa de Oliveira é mestre em
Educação pelo Instituto de Estudos
THUMSON,Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação
Avançados em Educação (Iesae) da
entre a história oral e as memórias. In: PEREtMUTIER, Daisy; AmoNAccI,
Maria Antonieta (orgs.) Ética e história oral. Projeto história. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, doutora em
PUC-Sr; (15), p. 51-84, abro1997. Educação pela Universidade de Ciências
HUmanas de Estrasburgo (França) e pós-
VICTOR10 FILHO, Aldo. Imagem, estética, criação e o cotidiano escolar.
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. doutora pelo Centro de Estudos Sociais
Rio de Janeiro, 2002. da Universidade de Coimbra. Professora da
Vo'\! FOERSTER,Heinz. Visão e conhecimento. Disfunções de segunda Faeuldadc de Educação e do Programa
ordem. In: SCHNITMAN,Dora Fried. Novos paradigmas, cultura e de Pós-graduação em Educação da
subjcfividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Universidade do Estado do Rio de Janeiro
i (Uerj), pesquisa há alguns anos o cotidiano
VON SIMSON,Olga de Moraes. Experil1lClltos COI11 histórias de vida. Itália-
Rra<;il. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1998.
I escolar e sua importância para o campo do
I currículo. Foi professora de primeira a
quarta série no Colégio Pedro II durante
onze anos e é membro do GT
Curriculo da ANPEd.
~I

-.
Fruto de um estágio de pós-doutoramento quc tive o gosto de orientar, este
livro aprescnta uma reflcxão que começa por interrogar a idéia de
cmancipação social e a tensão cntre ela e a regulação, buscando comprcender
de quc forma processos e modos de regulação democráticos podem contribuir
para a emancipação social.

o estudo epistemológico sobrc o cotidiano e o desenvolvimcnto de aspectos


metodológicos sobre a pesquisa realizada nesse espaço-tcmpo fundamentam
o trabalho sobre os currículos praticados, que. com riqueza analítica invulgar.
discute a escola, os professores e a sala de aula.

Terminando por uma síntese do debatc, a autora recompõe as diversas


dimensões políticas e epistemológicas trabalhadas nos primeiros capítulos
em função do objetivo principal do livro: pensar o possível papcl da escola e
das pesquisas que nela se realizam para a emancipação social e para a
construção da sociedade democrátíca, como utopia do possível.

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DP&A
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