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Universidade do Estado da Bahia

Pós-Graduação em Estudo de Linguagens


Departamento de Ciências Humanas – Campus I

Arizângela Oliveira Figueiredo

O TEATRO PLANETÁRIO DE A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS:


A apropriação do imaginário sociocultural dos anos 1970 por W. J. Solha

Salvador, 2008.
Arizângela Oliveira Figueiredo

O TEATRO PLANETÁRIO DE A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS:


A apropriação do imaginário sociocultural dos anos 1970 por W. J. Solha

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens do Departamento de Ciências
Humanas da Universidade do Estado da
Bahia, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª Drª Márcia Rios da


Silva

Salvador, 2008.
iii

FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB


Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Figueiredo, Arizângela Oliveira


O teatro planetário de A verdadeira estória de Jesus: a apropriação do imaginário
sociocultural dos anos 1970 por W. J. Solha / Arizângela Oliveira Figueiredo. –
Salvador, 2008.
108f.: il.

Orientadora: Márcia Rios da Silva.


Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas. Campus I. 2008.

Contém referências.

1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação. 3. Cultura de massa. 4. História


em quadrinhos. 5. Mito na literatura. I. Silva, Márcia Rios. II. Universidade do Estado
da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: B869
iv

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________
Professora Drª Márcia Rios da Silva (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/PPGEL

______________________________________________________________
Professora Drª Evelina Carvalho de Sá Hoisel
Universidade Federal da Bahia – UFBA/PPGLL

______________________________________________________________
Professor Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira.
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/PPGEL

______________________________________________________________
Professora Dr. Roberto H. Seidel
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/PPG (Suplente)

______________________________________________________________
Professor Dr. Luciano Rodrigues Lima
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/ PPGEL (Suplente)
v

Com amor, a minha avó Helena


e aos meus pais, Alice e Ângelo José.
vi

AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES, por ter financiado a minha pesquisa acadêmica.


À professora Drª Márcia Rios, minha orientadora, pelas sugestões e paciência.

Aos professores que compuseram a Banca de Qualificação:


À professora Drª Evelina Hoisel, pela generosidade, agudeza na apreciação e pelas
recomendações.
Ao professor Dr. Sílvio Roberto, por partilhar comigo seus interesses e pelas suas
perguntas sempre instigantes.

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Estudo de


Linguagens.

Um agradecimento especial à professora Drª. Verbena Maria Rocha Cordeiro, pelo


acolhimento.

À professora Drª Edil Silva Costa, por ter pacientemente me orientado no estágio
supervisionado e pelos livros emprestados.

Aos colegas do mestrado Flávia, Denise, Alzira, Lindinalva, Priscila, Socorro. Um


agradecimento especial aos companheiros de mesa Chico Mota, Marcos Santana e
Rodrigo.

Aos meus sempre amigos Nai e Geraldo, pessoas que admiro e que participam,
ainda hoje, de momentos importantes e necessários de minha vida.
vii

RESUMO

Este trabalho toma como objeto de estudo o livro A Verdadeira Estória de Jesus, de
Waldemar José Solha. Nessa dissertação, busca-se inferir quais respostas podem
ser obtidas quanto aos modos apropriativos validados por Solha que remetem a um
imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars. Essa necessidade de
resposta recoloca uma série de questões que cercam particularmente os anos 1970
no Brasil e, de forma mais ampla, o final do século XX. Principalmente em relação à
problemática que gira em torno do artístico e as novas formações textuais (história
em quadrinhos, cinema, televisão), que ganham força com a ascensão da sociedade
dos mass media. Retomam-se nesse estudo, para tanto, leituras produzidas naquele
momento por estudiosos como Evelina Hoisel, Flora Sussekind, Heloísa Buarque de
Hollanda, dentre outros, mas procurando responder à problemática dentro do quadro
sociocultural globalizado, esboçado por autores como Renato Ortiz e Frederic
Jameson. Deste estudo, compreende-se a ascensão de uma nova sensibilidade ou
textualidade, a qual AVEJ permite reconhecer.

Palavras-chave: literatura brasileira; cultura de massa; apropriações textuais; mito;


herói; textualidade.
viii

ABSTRACT

This dissertation has as object of study the book A Verdadeira Estória de Jesus, by
Waldemar José Solha. This dissertation, the purpose is infer which answers can be
obtained in relation to its appropriative chooses that refer to an imaginary inhabited
for hero, super-hero and superstars. This purpose allows bringing out a lot of
questions that surround specifically the years 1970 in Brazil and also the end of the
twentieth (20th) century. Particularly in relation to the problematic that reaches the
dialogue between the artistic and the new texts (comic strip, cinema, television) that
acquire vigor with the rising of mass media society. In this study, some readings
produced at that moment are included (Evelina Hoisel, Flora Süssekind, Heloísa
Buarque de Hollanda etc.). But the problematic is answered taking into consideration
the sociocultural and global situation sketched by authors such as Renato Ortiz and
Frederic Jameson. By study, it is understood the rising of a new textual sensibility
that AVEJ allows to recognize.

Key-words: Brazilian literature, mass culture; textual appropriation; myth; hero; new
textual sensitivity.
ix

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

1 O PLANETA DE UM LIVRO PLANETÁRIO............................................................14


1.1 O imaginário do livro.............................................................................................14
1.2 O planetarismo ....................................................................................................23

2 O DISCURSO MÍTICO DE A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS.......................37


2.1 A sociedade Super...............................................................................................37
2.2 O mito em AVEJ...................................................................................................43
2.3 O herói de AVEJ...................................................................................................60

3 ENTRE A AURA E A ESTÉTICA ESQUIZOFRÊNICA............................................78


3.1 A questão da aura................................................................................................78
3.2 A nova textualidade..............................................................................................89

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................98

REFERÊNCIAS........................................................................................................103
10

INTRODUÇÃO

Literatura ou um vasto painel da sociedade do


espetáculo?

Evelina Hoisel, Supercaos atual.

O tema da representatividade do imaginário sociocultural presente nos anos 1970,


suas transformações avassaladoras, considerando em especial aqui o contexto
brasileiro, suscita ainda hoje muitas reflexões quanto ao que ali foi produzido em
termos culturais e literários – teoria, crítica e história. Esse tema permanece atual até
hoje porque constitui uma espécie de solo estrutural que alimenta a discussão
quanto ao que significou, e ainda significa, a consolidação da sociedade dos mass
media. A insistência em remontarmos a esta época se impõe como forma de
repensar as influências do quadro sociocultural para o contexto da literatura
brasileira e as transformações estético-literárias aí processadas no que diz respeito
ao sistema internacional-global que se delineava.

Naqueles anos, no Brasil, o alcance histórico da chamada cultura da bomba,


atrelado ao florescimento do underground, da contracultura e do mito da Era de
aquarius, ditava o clima apocalíptico. Ao mesmo tempo, tais manifestações eclodiam
em meio à consolidação de formas de comunicação e interação que modificavam o
comportamento da própria sociedade, passando a ser denominada, devido à
tamanha amplitude de seu alcance, de sociedade dos mass media. Tudo isso em
meio ao quadro político do regime ditatorial que permitia o acirramento de tais
questões. O alcance das manifestações históricas, políticas e socioculturais
repercutiu nas diversas produções culturais da década, que buscavam expressar o
clima apocalíptico do momento.

No Brasil do final dos anos 1970, quando a crítica literária começava a esboçar as
reavaliações quanto à repercussão dos últimos acontecimentos para a literatura
brasileira, surge uma produção singularmente vinculada àquele momento histórico:
11

A Verdadeira Estória de Jesus1, de Waldemar José Solha. Esse livro faz parte de
certo conjunto de produções que buscaram expressar de maneira hiperbólica,
tomando aqui uma expressão de Evelina Hoisel, as apreensões daquele momento
não apenas em termos políticos, mas em relação ao quadro multinacional do
capitalismo tardio.

Daí o termo planetário, validado por Affonso Romano de Sant’anna, utilizado no


título deste trabalho para designar AVEJ. Esse termo diz respeito à ascensão de um
discurso literário precursor preocupado em expressar, através da apropriação do
imaginário sociocultural que explodia naqueles anos, sentimentos, sensações e
transformações que apenas mais tarde foram analisadas por estudiosos da cultura
tais quais Renato Ortiz, Frederic Jameson, Nestor García Canclini etc. Através
desses estudos, verificou-se que o acirramento presente em tais transformações não
se deu de forma isolada, mas sim alcançava o âmbito global-mundial.

Através de uma escrita vanguardista, AVEJ surge com uma estética fragmentada e
apropriativa, no sentido mais literal que essas duas palavras denotam, pois que
AVEJ literalmente é construída a partir de recortes de outros textos. As apropriações
efetuadas por Solha alcançam tanto o âmbito do discurso histórico, religioso,
literário, como também perpassam o contexto da cultura de massa (história em
quadrinhos, cinema e televisão). AVEJ inscreve em suas páginas um imaginário que
permite pensar a literatura para além do âmbito estético, reinscrevendo-a num
contexto cultural mais amplo.

Desse modo, o objetivo desta dissertação é inferir quais respostas podem ser
obtidas em relação aos modos apropriativos utilizados por W. J. Solha em AVEJ,
sobretudo no que diz respeito ao quadro temático do livro que remete a um
imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars. Propondo a
dessacralização da figura de Jesus Cristo, AVEJ apresenta uma legião de heróis
que descrevem as apreensões de um verdadeiro happening contracultural.

Nessa dissertação, procurou-se trabalhar a problemática que cerca o imaginário de


AVEJ, tentando compreender as transformações presentes na literatura brasileira
1
Cf.: SOLHA, Waldemar José. A Verdadeira Estória de Jesus. São Paulo: Ática, 1979. Por medida de
brevidade será designado por AVEJ. Todas as citações retiradas deste livro serão referenciadas no
corpo do texto.
12

dos anos 1970 dentro da ótica cultural. Por isso, recorreu-se aos campos de
conhecimento que se ocupam da cultura (sociologia, antropologia, estudos culturais
etc.) por entender a literatura dentro desse quadro mais amplo. Até porque, a
literatura não diz respeito apenas a uma questão estética: é necessário levar em
conta como ela vai sendo redesenhada na intersecção de determinado contexto.

Em se tratando de uma produção com as características estéticas de AVEJ, no


primeiro capítulo, O planeta de um livro planetário, apresenta-se os meandros que
cercam o imaginário presente no livro. Disto implica a apresentação de aspectos da
biografia do autor que ajudem a entender suas escolhas apropriativas, bem como a
descrição dos meandros, contextual e narrativo, que constitui o imaginário deste
livro. Para tanto, discorre-se sobre o termo planetarismo, referenciado por Affonso
Romano de Sant’anna para descrever AVEJ, sobretudo, buscando compreender o
universo planetário no qual o livro se inscreve. A partir daí, retoma-se a leitura dos
anos 1970 naquilo que possa favorecer o entendimento do imaginário apropriado em
AVEJ.

No segundo capítulo, O discurso mítico de A Verdadeira Estória de Jesus, procede-


se à leitura da narrativa a fim de compreender como o imaginário destacado
anteriormente foi realmente retomado e tematizado por W. J. Solha. Os aspectos
aparecem relacionados a um contexto temático muito ligado ao mito do herói,
representativo dos anos 1970: a presença da figura hippie underground, a chamada
Era de aquarius, o universo dos super-heróis dos quadrinhos, a força do superstar.
Mencionamos, ainda, a retomada do discurso mítico como modo de exacerbar
questões quanto à emergência de uma nova ordem sociocultural que se delineava
no final do século XX: o caos, o apocalipse, a fragmentariedade.

O terceiro capítulo, Entre a aura e a estética esquizofrênica, empreende-se uma


tentativa de definir os modos de construção validados em AVEJ. Considera-se,
principalmente, a forma a partir da qual teóricos como Walter Benjamin e Frederic
Jameson responderam às apreensões suscitadas com a ascensão de uma nova
sensibilidade que veio a questionar muitos paradigmas da modernidade, por
exemplo: literatura/cultura de massa e arte/não arte.
13

Para um livro de características desordenadas, cuja temática é justamente expressar


o caos do momento, o estudo de AVEJ surge numa época oportuna. Com sua
estética vanguardista, AVEJ, juntamente com algumas outras produções,
questionou, através de um exercício de lúdica descontinuidade, a crise dos valores
culturais, literários e artísticos, incorporando, de maneira turbulenta, o caos que hoje
aparece consolidado.
14

1 O PLANETA DE UM LIVRO PLANETÁRIO

Então eu digo: Planeta Lamma. É o planeta mais


certo que existe no universo. Porque todos ali são
iguais, um não pode falar do outro porque todos vão
2
para ali, para serem eles mesmos.

Damião Experiença, o criador do Planeta Lamma.

1.1 O imaginário do livro

O livro A Verdadeira Estória de Jesus, escrito pelo paulista-paraibano Waldemar


José Solha (paulista, porque nasceu em Sorocaba, paraibano, porque na Paraíba
diz ter renascido), foi publicado em 1979. No entanto, em 1975, ano em que publica
seu primeiro livro, Israel Rêmora, Solha já começa a juntar material para a
construção de AVEJ. É claro que toda elaboração de uma obra conduz a um ato de
seleção, e, no caso do trabalho efetuado por Solha, o material recolhido serviu tanto
como esboço de pesquisa, como também de material de composição da narrativa.

Solha exerceu serviço administrativo no Banco do Brasil, mas sempre esteve


envolvido em atividades artísticas. Teve uma formação muito diversa quanto a suas
leituras, por isso, com a mesma facilidade com que discorre sobre a Bíblia,
Shakespeare e Rembrandt, trata dos cordéis de Zé Limeira e das aventuras de
Shazam, Flash Gordon e seu companheiro Dr. Zarcov. Aliás, Solha afirma, em A
Verdadeira história de Solha3, que uma das leituras mais freqüentes que o constituiu
como leitor foram as histórias em quadrinhos. Dessa maneira, esse autor apreendeu
2
Damião Ferreira da Cruz, conhecido pelos nomes de Damião Experiença, Daminhão Experyença,
Damieão Experiencia ou Damião Expériyença, foi, nos anos 1970, uma das figuras mais inusitadas
do under musical naquele período. Pioneiro do disco independente, Damião acreditava (e ainda
credita) que as suas músicas eram herdeiras de sua experiência no Planeta Lamma, para o qual fora
abduzido. Nesse Planeta, acrescenta ele, aprendera uma nova língua e outra forma de pensar o
mundo. Assim, suas músicas misturam experimentalismo e irreverência. Esse trecho fora extraído do
livro autobiográfico escrito por Damião. Nesse período, caos e ordem parecem funcionar como um
paradoxo, presentes não apenas em Damião, mas também em Solha. Cf.: EXPERIENÇA, Damião.
Planeta Lamma. Disponível em: http://www.damiaoexperienca.net/ Acesso em: 14 de jan. 2007.
3
Sobre o autor foram consultados os seguintes trabalhos: DUARTE, Thamara. A Verdadeira História
de Solha. João Pessoa, 18 ago. 1991. Entrevista concedida ao Jornal Correio das artes; HELENO,
Guido. Solha afirma: Jesus nunca existiu. Brasília, 06 abr. 1980. Entrevista concedida ao Jornal de
Brasília.
15

que a informação visual rendia tanto quanto a verbal. Foi na relação com essas
linguagens que Solha passou a embaralhar a sua própria identidade.

Assim, muito do que é AVEJ aparece relacionado à forma como Solha lida com suas
referências. Por meio desse jogo, publicou as seguintes produções4: Israel Rêmora
(1975), Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia (1984), A Canga (1986), A
Batalha de Oliveiros (1989), Shake-up (1995) e mais recentemente Trigal com
Corvos (2004) e História Universal da Angústia (2005). Em todos esses livros,
aparece a insistência em escrever sempre visando a presença de outros textos e
linguagens. A identidade dessas produções vai sendo desenhada, em virtude da
multiplicidade de referências, na heterogeneidade.

Desse modo, pode-se acrescentar que é sempre difícil definir uma produção escrita
por Solha, em virtude do entrecruzar das linguagens. Encontra-se esboçado em
seus livros uma maneira de contar que aproxima os mais diversos modos de
expressão: cordel, contos de fadas, poemas, discurso histórico, pintura, cinema. O
fato de Solha ser um artista multicultural, sem dúvida, influenciou a maneira a partir
da qual construiu suas produções, uma vez que já realizou trabalhos no cinema
como ator e produtor (O Salário da Morte, A canga, Fogo Morto etc), no teatro como
roteirista e diretor (Papa Rabo, A Verdadeira Estória de Jesus5, dentre outras.) e
também nas artes plásticas (A ceia, Homenagem a Shakespeare etc.).

Solha, no texto Reciclagem: um depoimento sobre intertextualidade6, coloca que a


forma com que trabalha seus textos foi muito influenciada por José Américo de
Almeida, escritor modernista, autor de A Bagaceira, que acreditava que toda
narrativa fazia parte de um imenso e único texto, uma história que conta outra
história, o diz-que-diz, o causo, o cordel. Assim, Solha constantemente retoma a
tradição oral quanto a transmissão do texto7: a extrema repetição creditada às

4
Na referência, ao final deste trabalho, encontra-se listada a bibliografia deste autor.
5
Posteriormente, em 1980, AVEJ fora levada para o teatro.
6
Cf.: SOLHA, W. J. Reciclagem: um depoimento sobre intertextualidade. Paraíba, Jornal da Paraíba,
22 mai. 2005.
7
O jogo intertextual da escrita de Solha valeu-lhe a alcunha de autor pós-moderno. Cf.: AZEVEDO,
Carlos. Escrita pós-moderna de Solha. Paraíba, Correio, 18 out. 1995; BRITO, Osvaldo Lopes de.
Dois grandes romancistas: Paulo Rangel e W. J. Solha. O Diário, São Paulo, Ribeirão Preto, 13 nov.
1980; CLAUDIO, Feldman. Literatura Hoje. A gazeta do Grande ABC. São Paulo, Santo André, 03
out. 1980; NOGUEIRA, Carla. Dois heróis na mesma pessoa. Jornal da Semana Inteira, 1979;
GERALDINHO, Vieira. Superman, Gardel ou Cristo. Jornal de Brasília.
16

marcas do que se passou e que vão se atualizando. Mas essa retomada da tradição
em AVEJ ocorre de forma diversa, já que se dá pelo viés da fragmentação. Desse
modo, AVEJ retoma a tradição, mas também a questiona.

Como foi mencionado, Solha publica esse livro em 1979, período no Brasil da
ditadura militar e também data que se confunde com o pensamento apocalíptico do
final do milênio. Logo nos anos iniciais do regime ditatorial, Solha escreve uma peça
de teatro intitulada O Vermelho e o Branco (1968) que havia sido censurada por
tratar da morte do estudante Edson Luís, morto no Rio de Janeiro. Mas AVEJ seguia
outra forma de escrita contextual.

Talvez se possa falar, nesse caso, de uma escrita mais direcionada à alegoria. A
alegoria pode ser definida como um modo de escrita que possibilita falar de algo
diferente, convertendo-se como chave do saber oculto. Basta notar que toda escrita
alegórica indica que há um elemento implícito a ser observado, isso porque a
exposição do pensamento muitas vezes aparece sob a forma figurada. Na maioria
das vezes, a chave para a leitura desse tipo de produção está na forma como a
história e a cultura permitem responder a esses modos de construção8.

Quando Solha escreve AVEJ, já era forte a presença de um fim quanto ao regime
ditatorial. Elio Gaspari diz que a passagem dos anos 1970 para os anos 1980 é o
momento em que se pode falar de uma cultura em trânsito9. O autor acrescenta que
se atribuiu a esse momento o título de lenta, gradativa e segura distensão, como se
fosse por vontade própria do governo ditatorial tais mudanças10, mas, apenas a
metáfora do camaleão conseguiria explicar a questão da mudança, que passava
longe de uma vontade de distensão. Tal qual o camaleão, a cultura em trânsito
desses anos foi uma cultura camaleonicamente transformada pela democratização.

8
Cf.: HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo, Atual,
1986.
9
Cf.: GASPARI, Elio (et al). Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano
Editora, 2000.
10
Os anos do ciclo militar conheceram avanços e recuos, “sucederam-se períodos de maior ou menor
racionalidade no trato das questões políticas”. Pelo menos três fases deste processo são bastante
distintas: “De 1964 a 1967 o presidente Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporária.
(...) de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escancaradamente ditatorial. De 1974 a 1979,
debaixo da mesma ditadura, dela começou a sair”. Antes mesmo de assumir a Presidência, em 1974,
o presidente Ernesto Geisel, já falava em restabelecer a ordem e em seu projeto de uma “lenta,
gradativa e segura distensão”. Cf.: Gaspari, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo, Companhia
das Letras, 2003, p. 23.
17

Talvez falar em democratização fosse mais oportuno para um período também


marcado pela presença efetiva dos mass media. Nesse momento, já se podia
constatar uma sociedade dos mass media. Para um artista que vinha de uma
formação textual tão diversa, os anos 1970 esboçavam um painel significativo para
suas elaborações, pois novas formações textuais passavam a configurar o
quotidiano da sociedade: história em quadrinhos, desenho animado, revistas,
cinema, televisão, propagandas. É claro que bem antes já se ouviam falar nesses
meios de comunicação e informação. Mas é nesse momento que tais formações
textuais passavam a fazer parte do dia-a-dia da sociedade e mesmo a constituir a
própria sociedade.

Como notamos anteriormente, Solha foi um artista que sempre visou a possibilidade
de experimentação. Sua escrita naquele momento não surgia da vontade política da
denúncia, ou seja, Solha não foi um militante de esquerda, um anarquista, ou coisa
parecida, fato que marcaria a relação efetiva entre vanguarda, política e arte
engajada. Ainda que o teor político se encontre presente, Solha valeu-se em AVEJ
da vontade curiosa da experiência.

Para um período em que as experiências surgiam como a principal regra do jogo,


AVEJ aparecia como um dos seus principais laboratórios. Basta lembrarmos dos
happenings11, que surgiam como uma crítica anárquica que objetivava romper com
várias regras do sistema, do chamado establishment. Rejeitando o conceito de arte
como portadora de uma verdade, as produções que pregavam os happenings
reagiam contra a especificidade da linguagem artística e propunha a obra como
experiência vital de cada um, no ato de seu acontecimento.

Haroldo de Campos, em Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana, de


forma arguta, expõe que uma obra experimentalista deve ser definida como algo
“análogo ao processo heurístico da descoberta”12. Explicitando melhor, para ele,

11
Cf. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 8 ed. 1992.
12
Sobre a utilização do termo experimento, Haroldo de Campos é bastante contundente quanto a
validade do uso. Numa entrevista a E. M. de Melo e Castro, que compõe a segunda parte desse
mesmo livro, intitulada Aspectos da Poesia de Vanguarda no Brasil e em Portugal, Haroldo de
Campos afirma que os argumentos contra o termo experimento são tanto quanto falaciosos, pois é,
segundo o autor, através do experimento que se pode fazer alguma coisa realmente viva. Para ele,
“ter medo da palavra ‘experimento’, por sua eventual conotação de ‘provisoriedade’, é ter medo
precisamente do caráter contingente da existência humana”. Cf.: CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos
Gêneros na Literatura Latino-Americana. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 55.
18

uma produção experimentalista é construída a partir da lógica do experimento, não


tem medo da inovação, não receia a “provisoriedade”, porque é “viva”, faz o que tem
para fazer, diz o que tem para dizer.

Nas palavras de Haroldo de Campos, experimentar é principalmente não ter medo


de estar vivo, o escritor assume uma posição sobre a literatura, sobre a história de
seu tempo, sobre o que está por vir, enfim, emite uma opinião e não se imiscui de tal
tarefa. Daí muitas vezes o texto experimental ser mal compreendido: primeiro, nem
sempre nasceu para ser lido, haja vista Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust e Ulisses, de James Joyce; segundo, não diz apenas daquilo que aparece em
suas páginas, mas o texto deve ser questionado sobre suas escolhas perante o
contexto de origem. Moacy Cirne, em Quadrinhos e literatura: um olhar marcado
pela poesia, diz que o experimento é uma textualidade política e acontece em
“função de conflitos ontológicos na relação da linguagem com o mundo em seu
contexto histórico, socialmente dado”13.

Solha não foi um autor tão conhecido em termos de crítica naquele período, ainda
que tenha recebido o prêmio Fernando Chinaglia, um dos principais prêmios
literários do período com o romance Israel Rêmora. Mas, em termos ontológicos,
AVEJ talvez nos permita elucidar certos aspectos que produções e autores mais
conhecidos deixariam por explicar. Afinal de contas, um autor que joga tão
intensamente com os pares erudito/popular, arte/não-arte, literatura/cultura de
massa, e faz desses pares o escopo de sua escrita, permite alguns
questionamentos.

Folheando o livro AVEJ, percebe-se que a narrativa não se constrói seguindo os


parâmetros tradicionais que durante muito tempo foram utilizados para definir uma
produção literária. Explicitando melhor, não se pode dizer que AVEJ delineie uma
narrativa certinha. Num breve folhear de páginas, nota-se como o elemento visual
sobressai-se, vemos trechos delimitados por riscos, letras maiúsculas, histórias em
quadrinhos marcadas por grifos, enfim, AVEJ joga com o espaço lúdico do objeto
livro: a tipografia, o lay-out, a geometria das palavras, cada um desses elementos

13
Cf.: CIRNE, Moacy. Quadrinhos e literatura: um olhar marcado pela poesia. In. Quadrinhos,
sedução e paixão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
19

aparece como tendo sido pensado pelo autor. A capa do livro expõe
significativamente tais apreensões:

Semelhante à conhecida cena em que Clark Kent transforma-se em Superman,


Jesus Cristo surge com um imenso J no peito, a retirar suas roupas quotidianas.
Como quadros superpostos, histórias acontecem simultaneamente; heróis, príncipes
e super-heróis aparecem lutando contra soldados e assustadores monstros. Em
linhas gerais, a capa mostra que AVEJ apresenta-se como um corpo que recebe
enxertos, supressões, desenhos e marcas que são tomadas e transportadas a todo
o tempo de um lugar a outro. Num jogo de transposições, surge a imagem de um
ídolo de massa, um clichê, uma cena cinematográfica, um super-herói dos
quadrinhos. É como se dissesse ao leitor: “Olhe! Esse é o universo com o qual você
irá se defrontar”.

Ao ler AVEJ, a sensação que se tem é a de que não é um livro que se conte como
quem narra uma história. A narrativa não delineia um enredo com personagens e
núcleo central, algo do tipo “era uma vez...”, ou “vivendo numa pequena cidade do
interior...”. Explicando de outra forma, a narrativa não conta a história, por exemplo,
de uma família e seus conflitos pessoais ou a história de uma guerra, tal qual uma
realidade apreendida em primeiro plano. AVEJ parece apreender outra forma de
relação com a realidade. Platão, em A República14, encontraria em AVEJ um

14
Cf.: PLATÃO. A República. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
20

exemplo muito literal do que chama de phantasma, algo como uma cópia da cópia
(eidolon), que por sua vez já seria uma cópia do que está no mundo ideal (eidos).

A narrativa funciona sempre como um esboço de outro olhar (um olhar secundário),
como se tudo se passasse em outro momento. Basta dizer que o fio condutor é um
diálogo que acontece no palco de um teatro grego e ao mesmo tempo moderno.
Nesse palco, os evangelistas Lucas, Mateus, Marcos e João15 confabulam sobre a
possibilidade de criar um novo Salvador para abrandar o sofrimento do povo. Nesse
teatro, o efeito de significação explode em imagens, pois se troca de papéis e
máscaras com extrema facilidade e veracidade.

Gilles Deleuze diz, em O verdadeiro movimento: o teatro e a representação, que o


espaço cênico é o lugar no qual se diluem as linhas que separam o falso do
verdadeiro, o não-real do real. Essa diluição, para Deleuze, é possibilitada pelo ato
de repetição que caracteriza a representação. O momento dos ensaios não conta,
apenas o vazio do espaço cênico, pensa-se “na maneira como ele é preenchido,
determinado por signos e máscaras por meio dos quais o ator desempenha um
papel que desempenha outros papéis” 16. Notemos o que diz o personagem Lucas
ao introduzir o diálogo:

− Não foi por acaso que marquei o nosso primeiro encontro para um teatro –
observou, parando lá em cima e se voltando um pouco – vejam como isto
aqui é aberto para o espaço exterior, como um radar. E é ali, naquele
pequeno palco, que antenas potentes, que são os artistas, expõem todos os
dados que os aparelhos mais sofisticados não conseguem assimilar e,
através da Arte, nos colocam em sintonia com o Mundo. Ali, todos os

15
Frank Kermode, no Guia literário da Bíblia, escreve que o termo evangelho, derivado do grego
evangelion que significa “as boas novas”, inicialmente era usado em proclamações imperiais. Quando
Marcos (considerado por Kermode como o primeiro evangelho) escreve seu evangelho, este começa
adquirir feições sagradas, passando a ser assumindo enquanto gênero textual. Daí a expressão
“evangelho segundo Marcos, Mateus, Lucas e João”. Embora cada um desses evangelhos, explica
Kermode, estejam relacionados entre si, diferem notavelmente. Segundo ele, o evangelho de Mateus
apresenta uma escrita mais minuciosa e severa quanto aos ensinamentos de Jesus Cristo, por isso é
mais longo. Marcos imprime na sua escrita as características de um texto narrativo, seguindo assim
os percalços da tradição oral. Lucas impõe a articulação lúcida dos processos históricos, mostrando a
consciência de que a história não começa e acaba com seu evangelho. João é aquele se vale do
Verbo com certo vigor poético, preocupa-se em pontuar o vir-a-ser. Como aparece explicitado em
AVEJ, o nome dos quatro personagens remete aos nomes expressos nos evangelhos da bíblia
sagrada. Como se pretende efetuar a criação do herói tendo as escrituras como gênio motor, nada
mais propício que fossem esses os nomes dados a cada personagem. Desse modo, as falas dos
evangelistas também foram mais ou menos impressas a partir das características de cada evangelho.
Cf.: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP,
1997, p. 404-499.
16
Cf.: DELEUZE, Gilles. O verdadeiro movimento: o teatro e a representação. In. Diferença e
repetição. Trad. Luis Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
21

termos colhidos são reproduzidos em prosa, gesto, verso: mitificados,


simplificados, sintetizados. (AVEJ, p. 32)

Daí o teatro ser um lugar onde se pode falar numa verdadeira estória, já que os
limites entre verdade e mentira acabam por se esgarçar. Essa forma de entender o
teatro é oportuna a AVEJ, pois, em meio ao onírico, os quatro evangelistas
aparecem ao lado de super-heróis dos quadrinhos como Batman, Príncipe
Submarino, Mandrake e supestars como Tyrone Power, Carlos Gardel e Gary
Cooper. A partir da figuração dessas imagens, podemos falar de AVEJ como uma
obra que atenua, sobretudo, a troca de papéis.

Brincadeira talvez seja uma palavra que represente bem as pretensões estéticas
deste livro. Johan Huizinga, em Homo Ludens17, observa que, como parte das
características formais de um jogo, toda criança investe sob o universo da
brincadeira um grande esforço que exige toda a sua imaginação e seriedade, finge
ser um príncipe, um herói, um super-herói, uma bruxa malvada. A criança fica
literalmente transportada para esse universo, superando a si mesma a tal ponto, que
quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem, contudo, perder
inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma “realidade falsa”,
sua representação é uma realização do vivido.

Nessa brincadeira particular de AVEJ, outro aspecto salta aos nossos olhos, AVEJ é
um livro que atenua a presença de outros textos, literários ou não, como partes
constituintes de sua narrativa. O universo esboçado em sua capa literalmente
aparece inserido em sua estrutura. Por isso podemos falar de AVEJ como
fragmentos de outras histórias: o apocalipse bíblico, a história de Krishna, Buda, o
quadrinho do Superman, de Siegfried e A Senhora dos Espectros, a narrativa da
Branca de Neve e d’A Bela Adormecida. Enfim, entendendo linguagens como formas
diversas de expressão, esse livro comunica aquilo que quer através de vários e
diferentes textos. Não se trata apenas do confronto entre o signo verbal e outros
signos semiológicos, mas de uma maneira de informar que nos reporta efetivamente
a outros contornos expressivos.

17
Cf.: JOHAN, Huizinga. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro.
São Paulo: Perspectiva, Editora da USP, 1971, p. 16.
22

Ora, as linguagens são marcadas por certas maneiras de articular a mensagem que
delineiam determinados campos de significação. Esses campos de significações que
permitem dizer o que é uma história em quadrinhos, o que é um filme, o que é um
conto de fadas: a maneira de contar, os personagens, a forma narrativa etc. É dessa
maneira que o livro vai sendo constituído, no jogo com os fragmentos de histórias,
no qual circulam um vasto repertório de mitos do discurso histórico, religioso e da
cultura de massa. Desse emaranhado de linguagens, entre fragmentos e diluições,
surge a pergunta de base: como entender esses modos de construção literária que
remetem a um imaginário povoado por heróis, super-heróis e superstars?

Cornelius Castoriades informa algo importante que ajuda a pensar essa pergunta,
em A instituição imaginária da sociedade18. Ele acrescenta que o termo imaginário
não se refere a algo sem concretude, sem teor de significação real, como
normalmente se pensa. Para ele, quando lidamos com o imaginário de algo
(estende-se aí o conceito para além do domínio mental) ou alguém, estamos
tratando de significações que dizem respeito à própria constituição da sociedade.

Isso não quer dizer que o imaginário seja palpável, mas também não se pode
afirmar que seja irreal. Tão real apresenta-se o universo de significação do
imaginário que se torna impossível e mesmo inconcebível falar de história fora dos
seus limites. “Essencialmente indeterminado”, o imaginário, enquanto “criação
incessante”, permite pensar no fazer histórico enquanto tal, como algo que aponta
para uma ação. Além do mais, é essa ação que constitui o que esse estudioso
chama de universo de significação19. Universo este que, no caso de AVEJ, não é
anterior ou posterior ao livro, mas, senão, a própria constituição histórica da qual ele
faz parte.

Podemos acrescentar a esse modo de pensar o imaginário, a fala de Nestor García


Canclini, em Culturas híbridas20. Para ele, quando o assunto são cruzamentos, seja
de qualquer ordem, devemos notar que estamos lidando com processos culturais.
18
Cf.: CASTORIADES, Cornelius. A instituição e o imaginário: primeira abordagem. In. A instituição
imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynanud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Cf.: MAFFESOLI,
Michel. O imaginário é uma realidade. Porto Alegre: Revista FAMECOS, agosto 2001, n° 15,
quadrimestral.
19
Ibidem, p. 176.
20
Cf.: GARCÍA CANCLINI, Nestor. Introdução à edição de 2001. Trad. da introdução: Gênese
Andrade. In. Culturas Híbridas. Trad. Heloíza Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: EDUSP,
2001.
23

Portanto, “nenhum artista que exacerba cruzamentos e os convertem em eixos


conceituais de seus trabalhos não o fazem em condições nem com objetivos
semelhantes”21, é sempre um caso particular e deve ser investigado em virtude de
tais particularidades. Enfim, enredado no labirinto dos simulacros, o contexto surge
como determinante e também como instrumental para o delineamento das
implicações culturais ali presentes.

1.2. O planetarismo

Affonso Romano de Sant’anna, no texto denominado A história pop de Jesus22,


publicado em 1980, arriscou uma definição quanto a este livro, chamando-o de
“planetário”, chegou até a falar de “planetarismo”. O “planetarismo” seria um
movimento bem diferente do nacionalismo dos modernistas, pois “problematizaria
nossas perplexidades em termos mais universais, sem com isto perder de vista as
raízes brasileiras”. Desse movimento “planetarista”, fariam parte também, segundo
Sant’anna, de forma precursora, PanAmérica23 (PA), do escritor José Agrippino de
Paula, e O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado24 (EHC), de Roberto
Drummond.

A fim de apreender o traço planetário estabelecido para delimitar AVEJ, algumas


formalizações podem ser acrescidas ao esboço desse crítico:

• AVEJ delineia-se no espaço cênico de um teatro; PA focaliza a filmagem da


superprodução A Bíblia; EHC é um romance sonâmbulo que conta o sonho

21
Ibidem, p. XX.
22
Cf. SANT’ANNA, Affonso Romano de. A história pop de Jesus. Correio das Artes, João Pessoa, 25
out. 1980.
23
Cf. PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. Rio de Janeiro: Tridente, 1967.
24
Cf. DRUMMOND, Roberto. O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado. São Paulo: Ática,
1978. O corte efetuado por Sant’Anna diz respeito muito ao gênero romance, mas também, desse
mesmo autor, pode-se citar o livro de contos, de 1975, A morte de D. J. em Paris, no qual figura a
imagem de super-heróis dos quadrinhos tal qual Batman, em Os sete palmos do paraíso, e supestars,
a exemplo de Tyrone Power, em Um pouco pra lá do Aconcágua. Cf.: DRUMMOND, Roberto. A Morte
de D. J. em Paris. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
24

de Edward Kennedy e seu cachorro Red Panther – são produções


constituídas por um olhar secundário;

• AVEJ constrói um Jesus Cristo hippie superstar; PA filma a história de um


Jesus Cristo bíblico; EHC denomina seu personagem principal de Jesus
Cristo e tem em sua narrativa um Jesus Cristo de gesso que dá um
depoimento – são produções que estabelecem um confronto com o discurso
religioso.

• AVEJ, PA e EHC apresentam com suas especificidades narrativas


“desorganizadas”, exigindo do leitor uma boa dose de fôlego – são produções
que não seguem os parâmetros tradicionais de linearidade literária.

• AVEJ é enxertado por história em quadrinhos, contos de fadas e outros


textos; PA é a própria diluição de fragmentos da cultura de massa; EHC é um
amontoado de ícones dessa cultura, que ganham até corpo humano, como o
batom Clear Honey e o charuto havana – são produções construídas com um
material pouco comum para os padrões literários.

Não se pode afirmar, portanto, que esses autores tenham constituído um


movimento, porque não se tem notícia que esses escritores tenham organizado um
movimento. Quando Affonso Romano de Sant’anna se refere ao termo
“planetarismo”, aponta para algo que acontece no mundo, que não se limita ao local.
Daí, tomando por referência Mikhail Bakhtin, esse crítico acabou por descrever
AVEJ como uma obra que atenua o “gesto carnavalizador tanto da História de seu
país quanto da História Geral”.

Bakhtin25 explica que a carnavalização, transposta para a literatura a partir do


espírito do carnaval, caracteriza-se pelo questionamento lúdico de todas as normas.
Segundo este autor, o princípio carnavalesco pretende abolir hierarquias, criando

25
O conceito de carnavalização é trabalhado por Mikhail Bakhtin na tese sobre o escritor francês
François Rabelais intitulado A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, na qual aponta
para a relação deste escritor com a questão do popular, especificamente o carnaval. Segundo
Bakhtin, Rabelais em suas produções teria enfatizado gêneros literários ligados ao carnaval, tal qual
a paródia e o realismo grotesco. Cf.: BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
25

outra vida, livre de regras e restrições convencionais. O carnaval apresenta-se como


um reservatório de imagens ao mesmo tempo popular e erudito, arriscando
demonstrar como os limites entre esses universos são questionáveis. Tudo isso por
meio de estratégias artísticas que tem a capacidade de cristalizar a irreverência.

Daí Bakhtin ter retomado o riso da sátira menipéia26 – referência ao filósofo Menipo
de Gádara –, pois tal riso aparece como libertado das limitações históricas,
expandindo a invenção a outros campos, no jogo entre fusão e transformação. Para
Sant’anna, portanto, AVEJ seria entendida pelo viés desse movimento irreverente
que destrona normas estratificadas e reverencia o jogo lúdico do artístico.
Apropriando-se de discursos, fazendo bricolagem de textos, Solha incorpora
elementos do contexto sociocultural que, agrupados por meio da colagem, acabam
por questionar muitos paradigmas.

Assim, vista conjuntamente às outras duas produções, PA e EHC, pode-se ter uma
idéia mais acurada dos contornos ficcionais de AVEJ, permitindo evidenciar certa
tendência dentro da recente (entre o final dos anos 1960 e o final de 1970) literatura
brasileira. Tendência cujo imaginário propõe questionar tanto o conceito de realidade
e literatura como também a própria forma de pensar a sociedade brasileira. Por esse
viés, torna-se interessante verificar alguns exemplos de como se cruzam o universo
de significação que delineia o imaginário desses livros27:

E foi certamente ao voltar-se e ao ver os enormes soldados já se chegando


para ele, e ao perceber que estava encurralado, que lhe ocorreu o Capitão
Marvel Júnior, “na vida real um jornaleiro também de muletas, chamado
Fred Freeman”. E gritou, aterrado, olhando para eles e para o céu!
− Shazam! – e repetiu – Shazam! Shazam! Shazam! Shazam! (AVEJ, p. 28)

26
Bakhtin utiliza a sátira menipéia para descrever as estratégias polifônicas artísticas de Dostoievski.
Cf.: BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Forense
Universitária, 2002.
27
O universo de significação que cerca essas produções é tão tênue que não apenas personagens,
mas algumas cenas acabam se desdobrando em repetição. Exemplo disso, tem-se a cena
emblemática do Cristo-Pato Donald em Nações Unidas, de Agrippino de Paula, que se assemelha
muito à cena descrita por Solha no capítulo do Sermão da Montanha. Lê-se em Nações Unidas:
“Desce o Cristo-Pato Donald, de túnica branca, do alto, com uma corda. Barbicha e cabelos caídos
nos ombros. Perplexidade e êxtase geral, alguns choram, outros rezam, outros dizem: Aleluia!
Aleluia!
Cristo-Pato Donald (fala como Pato Donald mantendo o gesto evangelista de braços abertos):
− Vede que ninguém vos engane. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: EU SOU O CRISTO;
e seduzirão a muitos.” (NU, p. 28-29). Apud HOISEL, Evelina. Supercaos: os estilhaços da cultura em
PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1980.
26

.... lembro-me que fazia muito calor em Luanda, lembro-me que comecei a
rezar a Oração da CIA, lembro-me que pensei no jornalista Billy Batson
gritando Shazam e se transformando no Capitão Marvel (...) (EHC, p. 44)

..........................................................................................................................

O arcanjo se dirigiu à Virgem, que entreabriu os lábios, semicerrando os


olhos. Houve um lento/ acoplamento/ de bocas, depois que a boca de
Gabriel Gary Gardel se tornou na de Juan Ramón, poeta, sussurrando:
− Que mi palavra sea
la cosa misma
creada por mi alma nuevamente. (AVEJ, p. 58)

Rock Hudson disse numa voz grave que eles estavam contratados como
copeiros de Di Maggio e de todos os artistas de Hollywood: Marylin, Cary
Grant, Gary Cooper, Errol Flynn e todos os outros (...). (PA, 225)

É como se esses escritores estivessem olhando para o mesmo programa, clicando


os mesmo canais, assistindo às mesmas imagens, a configurar, principalmente, os
liames de uma recepção avassaladora. O escritor (receptor) reconstrói um
palimpsesto feito de fragmentos das imagens transmitidas. Assim, toma-se esse
movimento como comportamento estético, a partir dos quais novos significados e
valores são obtidos através da colagem desses fragmentos de vida. Omar Calabrese
chama a esse movimento de síndrome do botão, quando o espectador está
habituado a saltar de um programa a outro, “relacionando-os instantaneamente,
inferindo o seu conteúdo em poucas cenas, recriando os seus palimpsestos
pessoais. E sobretudo eliminando as diferenças ‘históricas’ entre as diversas
imagens percebidas”28.

Assim, os mitos e ícones dos mass media não são apenas citados, mas
incorporados à narrativa. É como se o imaginário apropriado por essas produções
enfatizasse outra maneira de pensar a literatura. Forma esta que ressalta no seu
universo de significação o questionamento do artístico e do literário a partir da
ascensão da cultura. Sobretudo por tal ascensão possibilitar apontar respostas a
perguntas simples como: quem são esses heróis? O que eles suscitam?

O “planetarismo”, assim, assemelha-se muito ao que conhecemos hoje por


globalização, termo que ainda não circulava de forma tão intensa naquele momento.

28
Cf.: CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. Carmem Carvalho e Arthur Mourão. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 1987, p. 68.
27

Marshall McLuhan29, já nos anos de 1960, chegou perto desta denominação ao falar
em “aldeia global”. Segundo McLuhan, enquanto a imprensa nos destribalizou, os
media possibilitaram a nossa retribalização, pondo todos os nossos sentidos em
jogo, creditando assim a expansão da comunicação mais rápida entre as pessoas.

Para Sant’anna, a tendência para o global era um aspecto sintomático dentro de


certo conjunto de obras dos anos de 1960 e 1970. Resguardadas as
especificidades, essas produções falaram sobre mito, construíram seus ícones de
massa, fizeram saltar de suas páginas o fascínio pela imagem. Assim, ele chega ao
seguinte esboço de AVEJ:

(...) esse é um vasto painel onde tempo e espaço se confundem com um


efeito grotesco e cômico. Existe uma profanação dos mitos e da literatura,
uma aliança dos contrários, um enfoque contra-ideológico repensando a
realidade. De um ponto de vista técnico, temático e teórico é uma obra
30
reveladora do instante literário e social brasileiro .

Na impossibilidade de unificar AVEJ sob uma única perspectiva, esse crítico


descreveu o alargamento de sua sintaxe pela diversidade e pelo abandono de toda e
qualquer regra. E mais do que um esboço da narrativa, acuradamente percebeu
uma transformação no discurso da literatura brasileira que ampliava seu olhar do
nacional local para o nacional global através da ascensão da sociedade dos mass
media. Numa descrição que tenta, de alguma forma, explicar o que vem a ser o
“planetarismo”, Sant’anna amplia o entendimento deste termo para além do
movimento de uma vanguarda “planetarista”, apresentando-o como um esboço de
determinada realidade literária e social brasileira. Busquemos entender esta relação.

No Brasil, o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, segundo Renato Ortiz, em A
moderna tradição brasileira31, é o momento em que se define a consolidação da
chamada sociedade dos mass media. Se entre os anos 1940 e 1950 constatam-se
“momentos de incipiência” da sociedade de consumo, é nas décadas posteriores
que se verifica a implantação de um mercado de bens culturais. É claro que já no
século XIX se conheciam formas como os jornais diários, as revistas ilustradas e as
29
Cf.: MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio
Pignatari. Cultrix. São Paulo, 1964
30
O texto não aparece numerado.
31
Cf.: ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
editora brasiliense, 1988.
28

histórias em quadrinhos, mas não é a realidade concreta dos modos comunicativos


que institui uma sociedade de massa. Uma coisa é saber da existência desses
meios, outra bem diferente é perceber como vão ganhando significado e amplitude
social à medida que começam a exigir da sociedade uma reestruturação.

Para se ter uma idéia dessa reestruturação, no período de incipiência não se tinha
uma dimensão precisa do que Ortiz chama de “racionalização”. Esse período foi
caracterizado por uma série de improvisações, amadorismos e experimentações. Os
problemas com a tecnologia disponível, contratação de pessoal qualificado,
divulgação e impressão eram constantes. Além de faltar nos meios implantados
(rádio, televisão, jornal etc.) o traço característico de uma indústria de cultura: o seu
caráter integrador.

O livro, por exemplo, não tinha o seu mercado ampliado, em virtude não apenas do
alto índice de analfabetismo, mas devido a restrições quanto à importação de papel
para a impressão, por isso custava mais barato importar o próprio objeto livro32. O
rádio, com seus improvisos e amadorismos, para se ter uma noção, avaliava sua
audiência através da “vibração” do público ou do “calor do auditório”, ou seja, era
dimensionada a partir de critérios empíricos e não através das hoje conhecidas
pesquisas de mercado33. Já a televisão, apesar da presença de uma figura
empreendedora como Chateaubriand, fundador da TV Tupi, como um “capitão da
indústria”34, não tinha a real dimensão de seu alcance. Até porque, apenas uma
pequena parcela da população possuía televisão, pois as dificuldades de importação
do aparelho e conseqüente custo inviabilizavam a massificação do produto35.

No período do regime militar, entre os anos 1960 e 1970, tem-se, no Brasil, a


consolidação de uma indústria cultural. Apesar da implantação do regime autoritário
(repressão, censura, prisões e exílios) é também nesse instante que o Estado
aprofunda medidas econômicas que permitirão a ascensão da indústria de bens
culturais. Assim, contrariando os prognósticos quanto ao vazio cultural, ocasionado

32
Ibidem. p. 46.
33
Ibidem, p. 63.
34
Tomando por empréstimo a teoria de Fernando Henrique Cardoso sobre o empresário industrial
numa sociedade subdesenvolvida, Ortiz afirma que Chateaubriand se aproxima muito da figura do
“capitão de indústria”, aquele empresário pioneiro que ‘tira dinheiro de pedra’, mas que atua mais na
base do empirismo, utilizando procedimento tipicamente aventureiro. Ibidem., p. 57.
35
Ibidem. p. 64.
29

pela tensão da censura, nesse momento, a sociedade brasileira passa por uma
reestruturação a fim de consolidar no Brasil o “capitalismo tardio”.

Aliás, Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, no texto Política e


literatura: a ficção da realidade brasileira36, expõem que os prognósticos quanto ao
vazio cultural não puderam ser confirmados na avaliação do que se produziu
naquele momento. Ainda que diante da rígida censura, verificou-se um número
vertiginoso de obras, novos autores, novos procedimentos etc. A modernização que
articulava o capitalismo brasileiro ao mercado mundial agenciava nessa superfície
múltipla, contraditória e caótica uma nova realidade cultural brasileira. Assim, para
esses autores, a complexa trama de fatores sociais, políticos e econômicos teria
exigido dos intelectuais uma série de redefinições. Para além do ufanismo do
milagre, muitas dessas redefinições foram possibilitadas pela modernização.

Segundo Ortiz, de fato não se pode desprezar que o ato censor atravancava a
emergência de um pensamento ou obra artística que fosse contrário à sua política
autoritária. Mas, deve-se lembrar também que a censura atingia, segundo este
estudioso, apenas a especificidade da obra, não a generalidade de sua produção.
Isso porque, a censura não se definia pelo veto de todo e qualquer produto cultural,
mas funcionava, em suma, como uma repressão seletiva. Basta lembrarmos que foi
justamente o Estado autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua
forma mais avançada.

No Brasil, o Estado percebe naquele instante a importância de se atuar junto às


esferas culturais. Passa-se a enxergar a capacidade que têm os meios de
comunicação de difundir idéias, de efetivar uma ligação direta com a massa, de
sensibilizar as pessoas na sua coletividade. A idéia da integração, que marca a
indústria cultural, produziu o interesse do Estado pela possibilidade de uma
“integração nacional” ideologicamente pensada. Assim, o empresariado assiste à
inserção de uma gama de possibilidades que lhe permitirá expandir o que mais lhe
interessava naquela parceria: a integração do mercado.

36
Cf.: FREITAS FILHO, Armando (et al). Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa Empresas
gráficas, 1979-1980.
30

Para tanto, o que caracteriza a situação cultural neste período são o volume e a
dimensão do mercado de bens culturais. Os vários setores que configuram os meios
de comunicação crescem vertiginosamente (rádio, cinema, televisão, revistas,
história em quadrinhos, propagandas). A produção de papel off-set aumenta de
forma significativa, permitindo menores custos na impressão de livros. As
publicações de histórias em quadrinhos crescem cada vez mais com os direitos
adquiridos por empresas como a Victor Civita, da editora Abril.

O setor de publicação de revistas acaba por se diversificar com o surgimento de


públicos especializados que consomem produtos diretamente feitos para eles:
história em quadrinhos para crianças e adultos, cozinha, costura, moda,
curiosidades, economia, novelas. Enfim, racionaliza-se o modo de pensar as mídias
de massa. A figura de um Chateaubriand é substituída pelo espírito organizacional
de um Roberto Marinho, um maneger37. Segundo Ortiz, através da racionalização
dos media certos hábitos acabam por adquirir forma: ir ao cinema, assistir televisão,
ler jornal etc.

Assim, toda a sociedade sofre uma reestruturação, uma vez que as linguagens que
no período de incipiência eram apenas conhecidas passam a fazer parte e a
constituir a própria sociedade. O fato é que a implantação de uma indústria cultural
acabou por modificar o padrão de relacionamento com a cultura, uma vez que
passava a ser entendida através das relações de mercado. A modernização, que na
história da colonização configurara os projetos de construção nacional, tornava-se
um fato.

Atores de televisão, propagandas, jingles, personagens dos quadrinhos, dos


desenhos animados e do cinema (estes inseridos cada vez mais aos horários
televisivos), delineiam o imaginário sociocultural. Parcelas significativas da
sociedade, considerando diferentes classes sociais, são apresentadas a grandes
figuras há muito tempo conhecidas dos mass media internacional: Clark Gable,
Tyrone Power, Gary Cooper, Cary Grant, Vivien Leigh. Os super-heróis como
Superman, Batman, Homem-aranha configuram o dia-a-dia de crianças e adultos.

37
Em contraposição à figura do “capitão da indústria”, seguindo as referências de Fernando Henrique
Cardoso, tem-se o maneger, indivíduo preocupado com a reorganização técnica e administrativa dos
empreendedores e com o aumento de sua eficácia. Ibidem, p. 57.
31

Via televisão, superproduções épico-bíblicas de Cecil B. de Mille chegam às casas


das pessoas e constituem prato cheio para a audiência.

Lendo o contexto dos anos 1970, tem-se uma noção da quantidade de questões que
o constituiu. Pode-se dizer, portanto, que esse foi um período de profundas
transformações. Ortiz afirma que as transformações foram tantas que modificara a
própria forma de entender a identidade nacional, isso porque, quando o assunto diz
respeito à modernização de um país com uma história particular de colonização, as
questões tornam-se bem complicadas. Quer dizer, a complicação elucida-se logo se
tivermos em mente que o tema da modernização apareceu, durante muito tempo,
ligado ao sentido de progresso desenhado pelos projetos de construção nacional. A
importância dessa questão reside no fato da vontade de ser moderno passar a
constituir uma verdadeira tradição38 entre nós.

Mas, quando a modernização na periferia se concretiza, o debate quanto à questão


da identidade nacional sofre modificações. Em virtude da expansão provocada pelos
mass media, o comportamento da sociedade sofre transformações radicais: os
valores e juízos são retraçados, outros gostos, outros padrões de avaliação,
ficcionaliza-se a história, o sujeito massificado, a identidade fragmentada etc. Enfim,
a modernização chega, mas também com ela inúmeras problematizações. Já não
dava para falar em país uno, original, se é que algum dia tenha sido possível. Tão
pouco dava para pensar numa identidade nacional local, quando o sentido para o
global se espalhava cada vez mais.

Antes de retomarmos AVEJ, é importante lembrarmos que no período de incipiência,


a poesia concreta já apontava para a questão da modernização, até porque, entre os
anos 1956-1960, conheceu-se o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek.
No manifesto intitulado Nova Poesia: Concreta, Décio Pignatari destacava a
influência do aspecto visual. O olho adquiria uma importância vital, objetal, “desde os
anúncios luminosos até as histórias em quadrinhos, a necessidade do movimento, a
estrutura dinâmica, o ideograma como idéia básica”39. Haroldo de Campos, no

38
Nesse livro, Ortiz joga com o conceito de tradição: se a tradição é aquilo que carregamos conosco
e diz como devemos ser, uma vez que também se impõe como identidade, a vontade de ser novo,
portanto, também se configura uma tradição entre nós. Ibidem, p. 206.
39
Cf.: PIGNATARI, Décio. Nova poesia concreta. Disponível em: http://www.poesiaconcreta.com.br
Acesso em 10 set. 2007.
32

manifesto Olho por olho a olho nu40, propunha que a poesia deveria ser pensada em
três dimensões: gráfico-espacial, acústico-oral e conteudística.

Ainda que o sentido das palavras manifesto e nova apontem para a idéia de projeto,
mencionado por Ortiz, na poesia concreta já aparece a insistência em se destacar o
diálogo com os mass media. Tributário dessa poesia, o poema-processo41, do final
dos anos 1960 e início dos anos 1970, exacerbava as transformações ocorridas com
a modernização. Aliás, nos poemas de Moacy Cirne e Álvaro de Sá linguagens
como das histórias em quadrinhos passavam a constituir o próprio poema,
oferecendo mesmo a dúvida: seria poema? Ou história em quadrinhos?

Poema retirado de livro Anos 70: literatura, p. 89.

Reconhecer AVEJ como sintoma do período de emergência de que nos fala Ortiz
não é algo tão complicado. Além do mais, AVEJ é daquele tipo de produção que
adquire significações outras a partir das imprecações do contexto. Basta
retomarmos seus modos de construção: o livro é visto como objeto trabalhado em
toda a sua estrutura, diagramação, lay-out; o discurso deixa de ser apenas verbal
para alcançar outros discursos semiológicos; os personagens apenas conseguem se
comunicar através de outras imagens (heróis, super-heróis, superstars.); a narrativa
não possui um tempo definido, é atemporal e a-histórica.

É como se os antigos padrões literários, com suas regras e formalizações, não


dessem conta de responder às simples perguntas: que realidade é essa que
estamos vivendo? Que tipo de texto daria conta de responder e expressar essa

40
Cf.: CAMPOS, Haroldo de. Olho por olho a olho nu. Disponível em:
http://www.poesiaconcreta.com.br Acesso em 10 set. 2007.
41
Cf.: FRANCHETTI, Paulo. Poesia de vanguarda no Brasil. Disponível em:
http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_des05.htm Acesso em: 20 out. 2006.
33

vontade de resposta? Agora sim podemos dizer que responder a essas perguntas
não era algo tão fácil. Mas AVEJ é uma das produções que se arriscara a dramatizar
esse momento no próprio momento. Através principalmente de uma declarada
propensão para uma forma que se ligava à indeterminação de limites e imprecisão
de contornos.

AVEJ não apenas tentou conter a informação estética, mas, sobretudo, pretendeu
comunicá-la sob um grau de tensão cuja única regra era saber romper as regras.
Daí percebermos certas características que explodem de suas páginas. Solha cria
um texto que atenua a sensação de estranhamento provocada pela não-ordem do
momento, ao mesmo tempo em que busca desconstruir um dos maiores mitos da
história: o salvador. Para isso, o autor evoca a presença de outros tantos mitos da
própria história e da indústria cultural. O resultado é um jogo de dessacralização a
partir do qual se questiona tanto a história como também a literatura.

Em Prosa literária atual no Brasil42, de 1984, Silviano Santiago se questiona sobre


as implicações ocorridas no campo literário no estágio atual (anos 1970-1980) do
tardio processo de modernização. A anarquia formal, diz o autor, surgia como um
dado importante no mapeamento da questão do estar moderno, até porque, era
difícil definir o gênero romance naquele momento. A anarquia era requisitada a fim
de expressar os novos anseios da sociedade, pois os antigos padrões literários não
davam conta de promulgar as transformações socioculturais por que passava a
sociedade. Nesse momento, novas formações textuais explodiam no espaço
cultural.

Daí entendermos porque AVEJ vale-se dos diferentes modos de expressão para
comunicar sua mensagem: história em quadrinhos, cinema, televisão, discurso
histórico, religioso. Santiago constata que a anarquia formal não deveria ser
entendida como algo negativo no que diz respeito à avaliação da literatura em prosa
daquele momento. Ao contrário, permitia verificar a vivacidade do gênero em prosa,

42
Cf.: SANTIAGO, Silviano. Prosa literária atual no Brasil. In. Nas Malhas das letras. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002.
34

que ressaltava ali a sua maleabilidade e a capacidade de se moldar aos novos


anseios que se configurava43.

Evelina Hoisel, em Supercaos44, no trabalho de 1980 sobre os livros PanAmérica e


Nações Unidas, de Agrippino de Paula, esclarece algumas questões sobre esse
assunto. É claro que o texto de Hoisel adensa a compreensão do período revelando
mesmo a atmosfera da sociedade através dos olhos daquela que a vivenciou.
Aspecto que segundo Ortiz reservou ao assunto da emergência da indústria cultural
naquele período um lugar silencioso45. Interessava mais naquele momento tratar da
questão nacional tendo em vista a luta contra o autoritarismo da ditadura militar.
Mas, no caso dos objetos tomados por Hoisel, esta não poderia se esquivar de um
fato concreto que exigia da sua análise uma atenção. Resultado, a autora
conseguira estabelecer algumas denominações úteis que ajudam a pensar AVEJ.

Segundo Hoisel, o ritual da festa foi um recurso que buscou interpretar a situação
excepcional por que passava a sociedade brasileira daquela época. Aliás, o termo
ritual da festa, idéia desta autora, foi elaborado a partir do termo carnavalização, de
Bakhtin, já aqui referenciado para descrever AVEJ. Como gesto que se apropria do
jogo lúdico do riso carnavalesco, esse recurso permitia investir sobre a realidade
política e social brasileira um olhar que conseguisse expressar a situação
estilhaçada da cultura. A festa permitia efetuar uma “tipologia da cultura brasileira”

43
Ibidem, p. 34.
44
HOISEL, op. cit. 1980.
45
Para Ortiz retomar a questão do que se produziu nesse período em termos culturais esbarra no
silêncio temático atenuado pelo fato da discussão nacional derivar da luta contra o autoritarismo da
ditadura militar. Discussão esta marcada por dois tipos de cerceamento: a censura e a
desnacionalização. Assim, a questão da realidade socioeconômica, que tem nos anos 1970 sua
reestruturação no panorama cultural, não aparecia como o forte das discussões: “nesse sentido, eu
afirmaria que a presença do Estado autoritário ‘desviou’ em boa parte a análise dos críticos da cultura
do que se passava estruturalmente na sociedade brasileira”. Desse modo, é importante para Ortiz
não esquecer que muitas mudanças estruturais que aconteciam em termos de emergência da
indústria cultural foram lidas através do aparato repressor.
Entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, surgiram os primeiros escritos sobre o que
havia sido produzido em termos culturais. Naquele momento, falar desse período significava lhe
conferir uma identidade. E essa identidade aparecia ancorada na certeza de ter sido iniciada pelo AI-
5, anunciado em 13 de dezembro de 1968, e encerrado com a chamada abertura, ou retorno dos
exilados, em 1979. Essa era a identidade dos chamados anos de chumbo. ORTIZ, op. cit. p. 16.
45
Flora Süssekind expõe, em Literatura e vida literária , que a censura naquele momento funcionava
como uma espécie de pista de mão única. Através dela passou-se a explicar grande parte dos
procedimentos e modos de construção da produção literária: seja de forma direta, com as biografias e
os depoimentos; seja de forma indireta, através das parábolas, alegorias ou realismo mágico. É como
se a censura aparecesse como a principal produtora da cultura naquele momento. Cf.: SUSSEKIND,
Flora. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
35

através de uma malha intertextual em que entrecruzam e se hierarquizam46 vários


modos expressivos: teatro, cinema, literatura, artes plásticas.

Para Hoisel, naquele momento, se delineavam duas maneiras de encenar a festa:


através da participação efetiva das pessoas como dramatização do ato
performático47, ou esses elementos passariam a ser incorporados e tematizados por
certo tipo de linguagem que conseguisse representar esse ritual. Fazendo parte
desta segunda opção, estariam aqueles que se utilizaram do discurso literário. Para
tanto, o corpo do texto e dos personagens surgiam como elementos catalisadores da
experiência contextual. A materialidade do corpo tornava-se capaz de tensionar o
ambiente em questão.

Então, para esta autora, o ritual da festa, através da sua função dessacralizadora,
buscava questionar a noção de cultura nacional a partir das novas formas de
relações impostas pela indústria cultural no âmbito multinacional. O corpo
representava o signo semiológico capaz de “codificar múltiplas mensagens e
deflagrar múltiplas percepções”48. Santiago, no texto citado anteriormente,
acrescenta que, “como tema instigante dos últimos anos, o corpo é o lugar da
descoberta do ser”. Corpo este que aparecia dominado muito mais pela força
dionisíaca do que pela força apolínea, pois esse corpo surgia como energia “não-
racional” e “não-reprimida” de onde saía o grito da sociedade49.

A festa, em suma, respondia a uma necessidade de comunicação revelada pelos


novos anseios da sociedade que se esboçava. Dessa forma, Hoisel observa que o
ritual da festa trazia algumas implicações ao cenário brasileiro. A estratégia
desconstrutora, como denomina, em sua dessacralização de valores estéticos e
socioculturais já consagrados, permitia interrogar a noção de cultura e identidade
nacional. Para isso, foram questionados os antigos padrões artístico-literários a fim
de dramatizar as reestruturações que se esboçavam no panorama cultural.

46
HOISEL, op. cit. p.33.
47
Evelina Hoisel se refere, nesse caso, às diversas performances realizadas, por exemplo, por Lígia
Clark e Hélio Oiticica nas artes plásticas. Como espécie de manifesto, o corpo é tomado como
”veiculo de experiências artísticas”: o toque corporal, os gestos e os sentidos são vitais para
comunicar a mensagem. Ibidem, p. 35.
48
Ibidem. p. 34-36.
49
SANTIAGO, op. cit. 1984, p. 32.
36

Tânia Pellegrini destaca, em Gavetas vazias: ficção e política nos anos 1970, um
aspecto interessante na estética do período que confirma o mapeamento realizado
por Hoisel. Segundo esta autora, os modos de construção do romance acabaram
por indicar “uma quase identidade entre a obra e a realidade referencial”,
ressaltando “uma tênue fronteira entre o mundo real e o ficcional”. É como se
apenas através do caos, da fragmentação, da fusão de gêneros, a literatura
conseguisse apresentar (ou representar?) uma imagem da totalidade do mundo
referencial completamente caótico e estilhaçado50, utilizando aí suas palavras.
Enfim, se existia uma lógica para as apropriações estéticas de produções como
AVEJ, estava na sua relação com o contexto.

Portanto, AVEJ pode ser considerada como uma produção que se apropria do ritual
da festa de que fala Hoisel. Mas devemos não esquecer que uma festa sempre
indica uma situação particular: outros convidados e outras máscaras. É claro que um
aspecto apresenta-se como bem característico desse ritual, Hoisel delimita
acuradamente que toda a festa tende para um ato dessacralizador como ato de
violência em relação aos valores consagrados51, e dessa característica demanda a
sua atitude crítica e política.

Talvez aqui tenhamos uma idéia mais clara do planetário de que fala Sant’anna. É
difícil pensar uma produção que tateia apreensões de uma realidade que, sendo
emergencial, não tinha a possibilidade da clareza da distância. Aquele era o
momento e não se sabia disso. Como afirma Ortiz, a modernização chega nesse
lado dos trópicos como se fôssemos naturalmente modernos.

O fato é que AVEJ se desenrola numa atmosfera que antecipa outra ordem social. E
a tentativa de dramatização enseja aquilo que a desordem e o caos, sem as antigas
crenças, permitem endossar. Aliás, o caos e o apocalipse nem sempre remetem a
uma atitude incoerente sobre aquilo que se pretende expressar, mas esboçam uma
atitude crítica diante de uma realidade que apenas pode ser expressa através de
seus contornos.

50
Cf.: PELLEGRINI, Tânia. Gavetas Vazias: ficção e política nos anos 70. São Paulo: EDUFSCAR:
São Paulo: Mercado de Letras, 1996.
51
HOISEL, op. cit. p. 38.
37

2 O DISCURSO MÍTICO DE A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JESUS

Sou um dos muitos profetas destes novos tempos,


mágicos, terríveis, mergulhados no escândalo e sob o
reinado de Dionisius.
Os deuses voltarão, surgirá o super-homem!

Jorge Mautner, Fundamentos do Kaos.

2.1 A sociedade Super

Quando Solha escreve AVEJ, nos anos 1970, a temática do mito, principalmente o
tema do herói52, adquiria significação em virtude mesmo dos novos valores e
apreensões ocasionados pela sociedade dos mass media. Por vezes, pode soar
meio desconexo que esse tema fosse retomado tanto tempo depois, mas o mito
surgia como questionamento para muitos problemas que se esboçavam no contexto
de uma sociedade que parecia procurar alguma resposta para o que acontecia.

Falar em retomada do discurso mítico, obviamente, não se refere à crença toda


poderosa que buscava contar, explicando, os acontecimentos ocorridos no tempo
primordial, ou tempo fabuloso do princípio. Além do mais, Mircea Eliade, em Mito e
realidade, informa que para as sociedades arcaicas o mito era confundido com a
própria realidade. O mito narrava como, através das façanhas dos entes
sobrenaturais, uma realidade adquiria existência, seja uma realidade total, como o
cosmos, uma pequena ilha, um comportamento humano, ou mesmo uma instituição,
ou seja, o mito relatava como “algo foi produzido ou começou a ser”53.

Naquele momento, retomar a questão do mito, portanto, não significava tanto


elucidar uma etapa do pensamento humano, mas, sobretudo, implicava a tentativa
de compreender melhor as insólitas imprecações dos tempos contemporâneos. A
própria forma como o espaço sociocultural se delineava permitia a apropriação desta

52
Marc Augé, em Enciclopédia Einaudi, expõe que os heróis “fundam a história dos homens,
chamados em suma a simbolizar e a ordenar esta história, a situar seu fragmento no espaço tempo, a
dar-lhe significado e, por assim dizer, necessidade”. Cf.: AUGÉ, Marc. Heróis. In. Enciclopédia
Einaudi – volume 30. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 128. Ver. CEIA, Carlos (org). e-dicionário
de termos literários. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/edti Acesso: 13 nov. 2007.
53
Cf.: ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p.
11. Sobre o mito também foi consultado VERNANT, Jean-Pierre. Razões do mito. In. Mito e
Sociedade na Grécia antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
38

temática. Afinal de contas, na fábrica de cultura dos mass media passou-se também
a produzir heróis de vários tipos e para os mais diferentes grupos sociais.

Gianni Vattimo, em A sociedade transparente54, destaca algo esclarecedor. Ele


informa que a chamada “crise da modernidade”, que se delineia no final do século
XX, aparece relacionada ao fato de a sociedade vivenciada ser uma sociedade
generalizada. A confusão se instaura porque os meios de comunicação se
transformam em “elementos de uma explosão e multiplicação generalizada de
visões de mundo”55. Isso não quer dizer que a sociedade tornava-se mais
transparente, muito pelo contrário, tornava-se mais caótica, e era neste caos
generalizado que residia a esperança de emancipação.

Mas a ampliação da perspectiva de mundos apontava para uma fratura. A história


que foi concebida como realização progressiva da humanidade autêntica não podia
mais ser afirmada, ou seja, não havia mais um centro em torno do qual se ordenar
os acontecimentos. A história como “algo ordenado em torno do ano zero do
nascimento de Cristo”56 não respondia mais às novas apreensões. Sequer se podia
sustentar, a partir do caos instaurado, que havia um ponto de vista supremo e
globalizado e que essa história caminhasse para um fim. Ainda que o medo
apocalíptico perdurasse, o caos não mais passou a indicar sinônimo de cataclismo
escatológico.

Esse aspecto não implicava apenas o questionamento de determinado pensamento


que se colocava ao centro, seja a vinda de Cristo ou do Sacro Império Romano, tal
qual exemplificado por Vattimo. Mas também permitia questionar o ideal de homem
que marca a noção de progresso do discurso histórico: uno e europeu. A
multiplicidade de imagens produzidas pelos media ressaltava não apenas a perda da
unidade a partir da explosão de culturas várias, mas problematizava o próprio
“sentido de realidade”.

Nesse mesmo livro, no texto intitulado O mito reencontrado, Vattimo explica que
esse caos generalizado e multifacetado trouxe consigo um reencontro com o

54
Cf.: VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Trad. Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Edições
70,1989.
55
Ibidem, p. 13.
56
Ibidem, p. 11.
39

discurso mítico. Isso significa que os novos valores impressos pelos mass media
produziam um contato outro com esse saber57, falava-se em novos heróis, em
figuras mágicas denominadas superstars, em super-heróis com poderes
extraordinários. Até mesmo a atitude apocalíptica, como afirma Vattimo, passava a
constituir o mundo científico-tecnológico como parte dos conflitos do momento.

A questão do mito como discurso fabricado pelos media surgia nos anos 1970 como
algo muito presente. Tão presente que o estudo delineado por Roland Barthes, em
Mitologias, passou a ser muito requisitado, afinal de contas, o mito deixava de ser
um discurso próprio apenas às chamadas sociedades primitivas. Como sistema de
comunicação, este passava a ser assumido por Barthes como um sistema
semiológico despolitizado, portanto, como uma fala definida pela sua intenção
histórica. Ideológico, deformado, o mito enquanto sistema não escondia nada e nada
ostentava, diz o autor58.

Nesse contexto, a imagem de Jesus Cristo, que para o pensamento judaico-cristão


não admite nem o mythos nem o logos, aparecia sendo ora retomada, ora
questionada pelos valores de uma sociedade muito confusa. Tão confusa que o mito
do apocalipse, já mencionado, surgia como uma constante. Como sintoma de uma
guerra fria entre superpotências, persistia o assunto da cultura da bomba59. Não se
pode esquecer ainda que a cultura naquele momento estava marcada por certo
misticismo, aquela foi uma época de experiências contraculturais e underground60.

57
Não vamos discutir aqui as implicações da retomada do discurso mítico na sociedade dos mass
media, tal qual pretende fazer Vattimo nesse texto. Mas concordamos que, ao efetuar o debate sobre
o problema do pensamento metafísico para filosofia da história e suas conseqüências para o discurso
mítico, este autor acabou por descrever habilmente de que forma esse discurso aparecia delineado
na chamada sociedade tardo-moderna. No entanto, o que nos interessou neste texto foi, sobretudo,
as ligações com os media e o mapeamento efetuado quanto ao discurso mítico.
58
Cf.: BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL,
1985, p. 150.
59
Guerra fria foi a designação atribuída ao conflito político-ideológico (socialismo-capitalismo) entre
os Estados Unidos e a União Soviética ocorrido no final do século XX. Recebeu o nome de guerra fria
porque não houve o uso de armamentos ou coisa parecida, o confronto era político-ideológico. O
sintoma de uma cultura da bomba surgia por tratar-se de duas potências com grande arsenal
atômico. Na sua análise sobre PanAmérica e Nações Unidas, Evelina Hoisel verifica o caráter
escatológico presente naquele período, tomando por base o estudo de Jeff Nutall, a autora verifica
que inúmeras produções apareciam engendradas sob o signo de determinada situação apocalíptica,
passando assim a ser delineada a “cultura da bomba”. HOISEL, op. cit., p. 116.
60
Segundo Carlos Alberto Messeder Pereira, em O que é contracultura, após a revolução de 68, que
ocorre quase por todo o mundo, e tinha a força estudantil jovem como principal protagonista, aos
poucos os meios de comunicação de massa começaram a divulgar o termo contracultura.
Inicialmente, surgia relacionado aos sinais mais evidentes, ou seja, à forma de se portar de
40

A Era de Aquarius, por exemplo, assumia o apocalipse como um momento


simultaneamente desestabilizador e instaurador de uma nova consciência, mas não
apontava para o chamado fim do mundo, como geralmente se pensa. Embora a
humanidade viesse a sofrer modificações substanciais, pensava-se que as novas
formações tecnológicas e a crença numa visão mais global permitiriam a ascensão
de uma Era sem os dogmas e valores da Era de peixes, cujo Salvador havia sido
Jesus Cristo. Assim, valores tais quais hierarquia social e religiosa seriam abolidos.
A Era de Aquarius falava do apocalipse acreditando que esse seria apenas o
começo do caos contemporâneo. E isso não era algo ruim.

No Manifesto Hippie, Luís Carlos Maciel afirma o seguinte: “o futuro já começou. Não
se pode julgá-lo com as leis do passado. A nova cultura é o começo da nova
civilização. E a nova sensibilidade é o começo da nova cultura. (...) Você curtiu
essa? Há muito ainda a curtir”61. Cultura, portanto, que pretendia justamente
capturar o momento em toda a sua intensidade. A nova sensibilidade apresentava-
se na figura daquele que buscava sentir de modo imediato o alcance e o significado
das alterações que se processavam.

Pensar, para tanto, numa imagem que representasse a figura do super trazia muitas
implicações. Tim Rice, um dos criadores do musical Jesus Cristo Superstar62,
observa que uma dessas implicações aparecia relacionada ao fato de a imagem do
super surgir como que representada por diversas figuras que explodiam do contexto
cultural. O hippie, por exemplo, representava um Cristo meio despojado, de cabelos
compridos, roupas longas, sandálias e cheio de paz e amor no coração. Mas
também trazia consigo a proposta de quebra de muitos paradigmas, seja contra o
pensamento judaico-cristão, seja contra o sistema dominante, o establishment. No

determinados indivíduos: cabelos compridos, roupas coloridas etc., logo depois, passou a significar
um conjunto de manifestações imbuídas de maneiras de pensar o mundo extremamente
transgressor. Essas maneiras colocavam em xeque os valores da cultura ocidental. A palavra
underground então designava um lugar sociocultural que apontava para o movimento de se portar
fora dos espaços ditos centrais, cuja palavra de ordem era drop-out. PEREIRA, op. cit. p. 08.
61
MACIEL, Luis Carlos apud COELHO, Cláudio Novaes Pinto. A contracultura: o Outro lado da
Modernização autoritária. In. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2000. Cf.:
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70: Lembranças e Curiosidades de uma década muito doida.
Rio de Janeiro, Ediouro, 2006, p.118.
62
Cf.: JESUS CRISTO SUPERSTAR. Direção: Norman Jewison. Produzido por Norman Jewison e
Robert Stigwood. Intérpretes: Ted Neely, Carl Anderson... Roteiro: Melvyn Bragg e Norman Jewison.
Música: Andrew Lloyd Webber. Letras: Tim Rice. Universal Pictures, 1973. 1DVD (107 min.). Baseado
na Ópera Rock Jesus Cristo Superstar.
41

encarte do LP, lançado aqui no Brasil, em 1973, lê-se o seguinte informe de um


jornal underground:

Também conhecido como Messias, Filho de Deus, Rei dos Reis, o salvador
etc. Conhecido chefe de um movimento de libertação clandestino.
Procurado pelos seguintes delitos: prática abusiva da medicina, fabricação
de vinho e distribuição de alimentos sem licença; perturbação da atividade
comercial no templo: cumplicidade com conhecidos criminosos anarquistas,
subversivos, prostitutas e gente da rua: diz que tem autoridade de
transformar os homens em filho de Deus. Aspecto: clássico tipo Hippy, com
cabelos longos, barba, roupas compridas, sandálias. Deve agir em classes
baixas, tem poucos amigos ricos, com freqüência se refugia no deserto.
Tome cuidado: esse homem é extremamente perigoso. As suas idéias,
insidiosamente provocadoras, são particularmente perniciosas para os
jovens. Ele modifica os homens e diz que está lhes dando a liberdade.
63
Atenção: ele ainda continua solto!

Atrelado a essa imagem, acrescenta Rice, surge o superstar, que nesse período
ganha força e circula com muita freqüência. O superstar é uma figura provocadora,
uma construção do discurso produzido pelos media. Dizer de suas características é
lembrar de um herói às vezes rebelde, às vezes subversivo, porém também
intocável. Marcado pela distância imposta pelos media, o astro é conhecido por sua
presença em sonho.

Rice afirma que certas palavras quando entram na moda têm muita força durante
semanas, talvez meses, mas a palavra superstar persistia e parecia vir para ficar.
Rice mapeia bem o sentimento expresso na figura do superstar. Este surge como
uma figura especialmente mágica. Tão mágica que John Lennon deixa transparecer
em sua fala a cisão provocada “Somos mais populares que Jesus Cristo”64.

Como produto fabricado, o astro acredita-se super porque os media em toda a sua
estrutura produz tal crença. Cantado, assistido, o astro adentra as casas das
pessoas, a vida das pessoas. A sua figura pode ser sentida através da presença
intransponível do som do rádio, da tela da televisão e do cinema. Sua presença
surgia como parte constituinte da estrutura da sociedade.

Silviano Santiago afirma, em Caetano Veloso enquanto superastro65, que o


superastro é um sujeito que representa durante todo o tempo, uma vez que sua vida
63
Cf.: TIM, Rice, WEBBER, A. L. Jesus Cristo Superstar. São Paulo: RCA Victor, 1973.
64
PEREIRA, op. cit. p. 45.
65
Cf.: SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso enquanto superastro. In. Uma Literatura nos trópicos.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
42

se confunde com o palco e a tela. O que ele faz é levar a arte para o palco da vida e
a vida para a realidade do palco. Em suma, o superastro é a pura representação66,
surge como uma colagem carnavalescamente construída e apropriada numa
polissemia de significados: “É deus, é artista, é pessoa: é superior, é diferente, é
semelhante. Tudo ao mesmo tempo”67.

A força da imagem do herói produzida pelos media naqueles anos lembra uma
história em quadrinhos, de 1979, intitulada Super-homem versus Muhammad Ali68.
Nesse quadrinho, conta-se a história da maior luta de todos os tempos, a fim de
salvar o planeta Terra, Super-homem vê-se obrigado a lutar contra o grande
campeão Muhammad Ali, considerado o maior dos boxeadores. O motivo da luta foi
o desafio proposto pelo extraterrestre do Planeta Scrubb, que pretendia organizar a
luta entre o grande campeão desse Planeta contra o maior lutador da Terra. Mas
qual seria o maior lutador do Planeta Terra? Outra luta decidiria essa questão.

Na platéia, grandes estrelas como Pelé, Andy Warhol, Frank Sinatra, Christopher
Reeve e super-heróis como Batman, Kid Flash e outros assistem às lutas. Sem os
poderes, Super-homem perde para Ali. E na grande luta final, Ali dá uma surra no
lutador do Planeta Scrubb. Super-homem também não fica para trás e, já com seus
poderes, ajuda o famoso boxeador a salvar o Planeta Terra. No final, depois de tudo
terminado, Ali encerra as seqüências com a seguinte frase “Super-homem... nós
somos os maiores”69.

Assim, esse é o imaginário mítico que constituía a sociedade dos anos 1970. Não
por acaso, o conjunto das apreensões socioculturais que cerca essa sociedade está
relacionada à figura do super. Talvez a visão do macro que essa imagem suscitava,
e ainda suscita, tenha caído bem mesmo à sociedade planetária dos media. Além
disso, podemos aqui validar uma expressão cunhada por Evelina Hoisel no já citado
Supercaos: o hiperbólico. A opção pelo macro, segundo Hoisel, seria a forma de
fazer com que as coisas aparecessem em suas dimensões reais, ressaltando a

66
Ibidem, p. 147.
67
Ibidem, p. 150.
68
Cf.: ADAMS, Neal; DICK, Giordano; AUSTIN, Terry. Super-homem versus Muhammad Ali. Baseado
numa história original de Denny O’Neil. Rio de Janeiro: EBAL, 1979. (Almanaque de Superman)
69
Ibidem, p. 74.
43

natureza gigantesca dos fatos70. E pode-se dizer que os acontecimentos e


sentimentos esboçados naquele período foram realmente grandes.

O mito não foi, portanto, uma temática cuja prioridade reserve-se à AVEJ. Sob
muitos aspectos, a questão do mito explodia como forma de exacerbar e maximizar
a dimensão dos fatos que ali ocorriam. Seja do ponto de vista religioso, místico ou
ficcional, a figura do super relaciona-se a todos esses aspectos. Thomas Carlyle, em
O herói71, diz que o homem prodigioso, de feitos memoráveis, surge como algo
necessário para a sociedade, talvez Carlyle tenha razão. E um de seus papéis seria
estabilizador. Por esse aspecto, efetuar uma leitura do herói é, principalmente, tentar
ler a sociedade que o formou. E como parte desse universo, AVEJ contribui a seu
modo para essa leitura.

2.2 O mito em AVEJ

O primeiro movimento de AVEJ envolve a temática da criação do mito do Salvador.


Muitas questões nesse início aparecem relacionadas à assertiva de Lucas proferida
aos evangelistas Mateus, Marcos e João, tendo como palco o teatro. Lucas acredita
que o Salvador possuía a mesma estrutura mítica que heróis como Hércules,
Adônis, Krishna e Buda. Quer dizer, não que se tratasse de um mesmo herói, mas,
de alguma forma, para Lucas eles possuíam uma biografia muito semelhante. Ele
chegou a essa conclusão ao notar que o herói apresenta-se como uma elaboração
de seqüências de acontecimentos, cuja verdadeira eficácia é a produção e
fortalecimento dessa imagem.

− Hoje, como vocês devem saber, é o dia do nascimento de Hórus,


chamado pelos seus adoradores no Egito do “O Sol da Justiça”. E também
o dia do nascimento de Osíris, o divino filho da Santa Virgem Neith. E de
Hércules, filho de Júpiter com a mortal Alcmena. E de Adônis, de Baco, etc,
etc, etc. Este é o dia em que os persas acreditam que Mitra nasce. E em
que os romanos, influenciados por eles, comemoram o Natal do Sol Invicto.
(AVEJ, p. 14)

70
HOISEL, op. cit. p. 55.
71
Cf.: CARLYLE, Thomas. O herói. São Paulo, Melhoramentos, 1963.
44

Joseph Campbell explica melhor essas relações. Segundo este autor, em O Herói de
mil faces72, as semelhanças quanto à biografia do herói é algo tão constante que se
pode falar até em fases de transformações quanto à vida deste. Essas fases de
transformações dizem respeito ao nascimento, infância, aventuras, amor, partida ou
morte. O ciclo de vida do herói torna-se a forma por meio da qual se pode dizer que
o destino do mundo foi cumprido.

Campbell acrescenta que os heróis apresentam em seu conjunto uma história tão
semelhante que, em certos casos, apenas variam os aspectos da tradição cultural
local. Tamanha a importância desse herói que não são considerados meros seres
humanos, mas senão heróis dotados de poderes extraordinários. Campbell afirma
que “toda a vida do herói é apresentada como uma sucessão de prodígios, da qual a
grande aventura central é o ponto culminante”73.

AVEJ, p. 17.

Sob muitos pontos de vista, Lucas observa que o sentido da vida de algumas das
principais civilizações foi construído visando os feitos de um Ser justamente
considerado prodigioso. Em certa medida, essa crença que dava sentido à vida
dessas civilizações, pois o pensamento mítico aparece na forma de um eterno
retorno infinito: a história de Krishna, Buda, Mitra, Hércules etc. Cruzando essas
histórias, como no fragmento acima que conta o nascimento de Buda e Zoroastro,

72
Cf.: CAMPBELL, Joseph. Transformações do herói. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara
Sobral. 15 ed. São Paulo: Cultrix/pensamento, 2000.
73
Ibidem, p. 310-312.
45

Lucas chega à conclusão de que, de uma forma ou de outra, o Salvador sempre


retorna porque a crença nesse retorno é que dá razão à existência de determinada
civilização. Eliade diz que “a principal função do mito consiste em revelar os modelos
exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas”74.

Lucas acreditava que o Cristo que pretendiam fazer funcionar – essas são suas
palavras – não se diferenciava muito dos outros heróis. Muito pelo contrário, esse
herói também seria assumido como uma experiência mágico-religiosa, cuja figura
apresentar-se-ia como justificativa e fundamento da atividade humana. É o que se
pode chamar de um modelo exemplar, quando o mito, segundo Eliade, ajuda o
homem a eliminar as dúvidas quanto ao resultado de um empreendimento porque
garante a este que o que pretende fazer já fora feito: “Por que hesitar ante uma
expedição marítima, quando o herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso?”75. No
trecho abaixo os intuitos de construção da figura do Salvador surgem com clareza:

− MAS O CRISTO REALMENTE EXISTE! – Lucas reafirmou angustiado, no


teatro – Mas claro que sim, João! Claro que sim, Mateus!! Ele está no ar,
nas constelações, na Terra, dentro de nós e nas profecias histéricas. Na
expectativa desse povo neurótico. E só o que temos de fazer, diante dessa
realidade invisível, é funcionarmos, nós quatro, como raízes de uma planta
aquática, que consegue tirar da água sem gosto nem cor nem cheiro, o mel,
as cores e o perfume das flores. O que temos de fazer é... libertar esse
Grande Homem que está dentro de nós, e isso acredito que só a nossa
imaginação conseguirá fazê-lo. (AVEJ, p. 30-31).

Essa seria a forma de abrandar o sofrimento do povo angustiado. E não


necessariamente sua realidade deveria aparecer como algo fisicamente concreto,
haja vista a insistente afirmação de Lucas “ele está no ar, nas constelações, na
Terra, dentro de nós e nas profecias histéricas”. Para João também, naquele
momento, era importante compreender, portanto, que o mito, dentre muitos
aspectos, assume sempre a forma de ensinamento, seria uma maneira de imprimir
certa organização à sociedade: “Platão dizia que se deve usar os mitos para a
educação da juventude” (AVEJ, p. 10). Desse modo que o clima do apocalipse que
se está vivendo exige cada vez mais a presença da figura de um herói. Não
esqueçamos que AVEJ delineia as apreensões de um texto neuroticamente

74
ELIADE, op. cit. p. 13.
75
ELIADE, op. cit. p. 125.
46

fragmentado e que deixa transparecer certo desespero e ansiedade como sintoma


de seus conflitos.

AVEJ, p. 16.

Em outras palavras, AVEJ encena o clima escatológico do Fim do Mundo, a


atmosfera de destruição, por exemplo, pode ser ouvida por todos os cantos da
cidade. O império romano/americano imprime a violência de seu poder ditatorial por
meio de guerras, bombas e metralhadoras. O apocalipse torna-se cada vez mais
iminente. As pessoas vêem-se sufocadas pelo cheiro insistente da fumaça que
impregna a atmosfera. Enfim, o mundo necessita urgentemente da figura do
Salvador.

O sol cercava-se de auréolas apavorantes, fechando-se em círculos


ultravioletas, auroras e crepúsculos infravermelhos, o calor produzindo raios
e trovões em seco, enquanto o cerco se fechava mais e mais. Três novos
blocos luminosos surgiram no ar os quatro evangelistas se apegaram às
paredes: na janela do outro lado um outro bloco já surpreendentemente
próximo crescia a toda velocidade, girando vagarosamente as arestas sobre
si mesmo. Aquilo passou enorme junto do edifício e uma tremenda explosão
ergueu, descarrilando, torcendo e arrebentando a gare e os ferros dos trens.
Uma locomotiva (eles assistiram a isso!) estuporou com a cadeira rasgada
em um bocaréu de fogo sonoroso, e a luz e a espessa fumaça se
espalharam com os cacos de escombros.

Acrescenta Lucas:
− E foi justamente para dar ao Homem esse Sol, meus amigos, que lhe
desapareceu no mundo inteiro desde a implantação do imperialismo
romano... que eu lhes chamei! (AVEJ, p. 13.)

Eliade informa algo importante sobre a função do mito do apocalipse. Segundo ele,
no caso do pensamento judaico-cristão, a crença na salvação pelo herói aparece
47

estreitamente relacionada ao mito do apocalipse, isso porque o Fim do Mundo é


assumido como um momento único em que apenas os eleitos, os bons, serão salvos
por fidelidade à “Santa História”, palavras de Eliade. Nesse momento, acrescenta
esse estudioso, o mundo surgirá “purificado, regenerado e restaurado em sua glória
primordial”76.

No mito do apocalipse, existe a confiança, portanto, de que no dia em que chegar o


fim, aquele que seguiu os ensinamentos que têm esse herói como exemplo
alcançará a eterna beatitude. E o mundo que surgirá será o mesmo do início dos
tempos, o da origem, da cosmogonia77. Em AVEJ, essas imagens escatológicas vão
adensando a estrutura da narrativa a fim de fortalecer a idéia de construção e
necessidade do mito, como no quadro que representa a imagem do Dilúvio e a
Salvação pela grande arca.

AVEJ, p. 24.

Mas a constatação do caráter sistemático e estrutural do herói traz, principalmente


para Mateus, a quebra de um valor importante, torna-se difícil pensar a figura do
Salvador por esse viés uma vez que esse mesmo ponto de vista questiona o sentido
profundo da natureza do herói. Na base de seu pensamento, o Salvador não pode,
nem deve, em virtude do sacrilégio, ser assumido enquanto uma construção, é algo

76
ELIADE, op. cit. p. 62.
77
Marilena Chauí explica que o mito, tal qual entendido a partir das sociedades primitivas, narra a
origem das coisas por meio de lutas e alianças entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o
destino dos homens. Portanto, a cosmogonia apresenta-se como “narrativa sobre o nascimento e a
organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas”. Segundo Chauí, a palavra
cosmos vem do vocábulo grego Kosmos, que significa ordem e organização do mundo; gonia que
significa gênese, nascimento, quer dizer “gênese, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto”. Cf.: CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13 ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.
48

natural e mágico-religioso, pois surge a partir dos poderes divinos do todo poderoso.
Daí sua fúria:

O velho Mateus se moveu furioso nas sombras do cenário do teatro grego e


ressurgiu envolto em panos vermelhos, seus cabelos brancos formando um
halo contra o clarão d iminente alvorecer:
− Mas Lucas: você está querendo me convencer de que uma fábula
baseada na viagem do sol pelo Zodíaco... possa resolver os nossos
problemas concretos até dizer basta?! Ora, sinceramente!: eu vou dizer
logo, para lhe evitar uma decepção maior, mais tarde: na minha opinião isso
é absolutamente impossível. E quanto a fazer o povo acreditar nessas
coisas, francamente: não acho honesto. (AVEJ, p. 10)

Mateus representa aquela figura que acredita no poder do herói, mas que nega
qualquer possibilidade de elaboração. Ele crê no pensamento segundo o qual a
existência do mundo é a conseqüência de um ato divino de criação, e suas
estruturas, seus ritmos, são produtos desse criador. Daí ele dizer expressões do tipo
“por que o diabo de uma virgem não pára logo de menstruar e não nasce de uma
vez por todas um pirralho de carne e osso, com diarréias, sarampos e cataporas e
não nos salva – e gritou – deste inferno” (AVEJ, p. 12).

Na verdade, Mateus é apresentado em AVEJ como uma figura arrogante,


intransigente e egoísta, suas preocupações dizem mais de anseios e angústias
particulares do que de uma preocupação com o outro. Ele acredita que se não
consegue resolver seus problemas, como irá resolver os problemas da humanidade?
A sua certeza reside na crença de que a chegada do Salvador é algo certo enquanto
uma história sagrada e natural.

− Mas vocês não compreenderam ainda? – berrou – Eu quero saber: e nós?


– Ficou curvo, batendo no peito as pontas duras de todos os dedos – e a
nossa angústia? Que é que vamos fazer, pelo amor de Deus, que é que nós
vamos fazer do nosso desespero? Hein? Eu vim aqui principalmente porque
eu estou angustiado e desesperado, e não por causa do povo. Isto é: claro
que por causa do povo, mas como vou salvar os outros, se eu mesmo não
estiver salvo? (AVEJ, p. 10)

Já Lucas representa a lógica do pensamento racional e sistemático, esforça-se por


identificar e compreender o “princípio absoluto” do mito, buscando desvelar os
mistérios do aparecimento do Ser. Aceita, portanto, o eterno retorno das coisas, a
visão cíclica da vida cósmica e humana. Acredita, sobretudo, no mito enquanto um
jogo que impõe valores absolutos, capazes de guiar o homem e de conferir uma
49

significação à existência humana. “– no meu entender – é que eles condensam –


essa é que é a palavra – eles condensam as experiências pelas quais todos os
seres humanos passam”. (AVEJ, p. 14)

Enfim, o discurso sobre os mecanismos de construção de um herói – e desse herói


em particular – cerca toda a história de AVEJ. Entre identificações, comparações e
decifrações, os evangelistas expõem um leque de possibilidades interpretativas
quanto às narrativas, desde a astrologia, passando pela História, chegando ao
discurso das artes seqüenciais (história em quadrinhos e cinema).

Aliás, muitos procedimentos tomados em AVEJ remontam mesmo à Grécia antiga.


As diferentes interpretações alegóricas com que os evangelistas se utilizam na
aproximação de heróis mágico-religiosos com figuras da história, a exemplo de Ciro,
lembram bem o Evemerismo. Evêmero (século III a. C) foi aquele que acreditou ter
descoberto a origem dos deuses. Segundo ele, estes eram antigos reis divinizados e
como tais possuíam uma realidade.

Essa realidade era de ordem histórica, pois os mitos foram criados a partir da
imaginação dos gestos dos reis primitivos, acredita ele. Martin Cezar Feijó, em O
que é herói78, confirma que para aquele estudioso “o mito teria nascido da história
real e o herói era o que restou de algum indivíduo destacado”. Não se pode
esquecer ainda que para Evêmero os mitos deveriam ser retomados como
decifração da memória presente no próprio discurso histórico. Daí Lucas lembrar-se
de fatos como: “o Próprio Heródoto avisa, antes de começar a narrativa de Ciro, que
a registrava apenas como lenda corrente entre os persas... para endeusar seu rei.
Em seguida é que apresenta os fatos, com lucidez” (AVEJ, p. 71).

De qualquer forma, o leque de possibilidades interpretativas do discurso alegórico é


que permite a AVEJ brincar e jogar com a memória. Muito comumente podemos
encontrar nesse livro expressões do tipo “memória do mundo” (p. 51), “Grandes
Sonhos” (p. 51), “esquecer de” (p. 52), “memória dos primeiros dias da criação” (p.
57), “desmemoriado” (p. 59). A memória é a todo tempo referenciada a fim de dar
margem a outras narrativas e imagens. É uma maneira de assumir o controle sobre

78
Cf.: FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. São Paulo: Brasiliense, [1990], p. 17.
50

o narrado através de uma inseparável experiência do tempo79. Lendo os fragmentos


de AVEJ é como se estivéssemos diante de fragmentos de memórias.

Esse jogo surge com mais força quando, entre uma seqüência e outra, somos
expostos a histórias que parecem ter por objetivo não deixar nada por explicar. Ás
vezes, essas seqüências podem ser tomadas como memórias de algum dos
personagens, outras vezes elas simplesmente surgem, como se o que lêssemos
fosse a memória de um ser onisciente, aquele conhecedor de tudo. Seria uma forma
de dizer ao leitor “lembra daquela história, aquela que conta que....”. Assim, nem
sempre os fragmentos de narrativas são ligados pelos discursos direto/indireto,
como na narrativa da Branca de Neve, que surge para confirmar a cena simbólica da
fuga do herói (ou da heroína):

AVEJ, p. 15.

A questão da memória lembra um texto de Erich Auerbach, intitulado A Cicatriz de


Ulisses80, no qual ele informa que um efeito chamado retardador se acha
marcantemente presente na escrita de Homero na Odisséia. Ele destaca, como
exemplificação, a passagem em que Ulisses retorna a sua casa. No momento em
que Euricléia começa a banhar o pé do visitante forasteiro – costume hospitaleiro –
ela percebe uma cicatriz em um dos pés deste. Essa descoberta faz com que
Euricléia reconheça no forasteiro a pessoa de Ulisses, o esposo de sua ama
Penélope. Nesse momento, certa interrupção adensa os versos que narravam a
cena do lava pés. Eis então a origem da cicatriz: “um acidente de caça dos tempos
da juventude de Ulisses, durante uma caça ao javali, em ocasião de uma visita ao

79
CHAUI, op. cit. p. 138.
80
Cf.; AUERBACH, Erich. A Cicatriz de Ulisses. In. Mimesis: A representação da realidade na
literatura Ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
51

seu avô Autólico”81. Enfim, eis a tensão, não se pode negar a veracidade das
marcas.

As interpolações de imagens e narrações surgem como forma de elucidar o espanto


de Euricléia e, sobretudo, para marcar a tensão presente na cena que se desenrola.
Auerbach diz que esse tipo de interrupção presente na escrita de Homero permite,
principalmente, um espaço para se conhecer outras histórias na mesma história. A
causa da aparição do que chama de efeito retardador reside precisamente “na
necessidade do estilo homérico não deixar nada do que é mencionado na penumbra
ou inacabado”82. A estória (termo do autor) da cicatriz torna-se independente em
plena presença. Esse novo presente reina até que se possa retornar à história que
antes se interrompera.

Esse jogo é interessante porque em AVEJ o espaço-tempo é atemporal, não somos


informados do tempo presente da narrativa. Mas talvez essa mobilidade temporal
permita à AVEJ, como explicitado em suas páginas, essa memória do mundo, a
retomada constante da origem das cicatrizes presentes em seu corpo, como se
nenhum texto estivesse a salvo de ser capturado pela narração desse livro. Eliade
diz que esquecimento e memória são dois elementos importantes para os mitos: o
esquecimento pode ser comparado à morte, já o despertar da anamnesis surge
como condição para a imortalidade. O esforço por unificar fragmentos isolados e
integrá-los numa única trama é a forma de descobrir o sentido do destino83.

No quinto capítulo de AVEJ, por exemplo, as coincidências quanto à fuga do herói


recém-nascido intriga a Lucas. Ele observa que muito frequentemente os heróis são
postos em um cesto (ora por inimigos, ora por protetores) a fim de serem salvos da
morte iminente. Assim, o cesto surge como um símbolo muito recorrente na biografia
do herói, caso de Moisés, Rômulo e Remo... A seqüência é preenchida pela história
que conta a origem do Superman. Nela, narra-se a história da fuga de um garoto
chamado Kar-el, habitante do Planeta Krypton, que foi enviado por seu pai, Jor-el,

81
Não se pode esquecer também que a Odisséia é um épico que conta a história de um herói e
talvez, aspecto que é cogitado também por Auerbach, o recurso à memória seja uma apropriação
constante às epopéias. Ibidem, p. 02.
82
Ibidem, p. 02.
83
ELIADE, op. cit. p. 104-111.
52

ao Planeta Terra através de uma cápsula hi-tech, ou melhor, de um foguete


espacial.

AVEJ, p. 25.

A narrativa em quadrinhos mostra que o cientista Jor-el descobrira que seu Planeta
estava prestes a ser destruído por um cometa. Mas apesar de ser um cientista
respeitado, o conselho não acreditou em suas palavras, uma vez que o
supercomputador predissera que o fim estava ainda muito distante. Na iminência da
destruição, o cientista resolveu construir uma arca do espaço para salvar seu único
filho Kar-el. Em virtude da urgência do acontecimento, a arca foi logo construída.

Jor-el decidiu, então, que o destino do garoto seria um Planeta habitado chamado
Terra, lugar onde seu filho teria uma “vida nova”. E assim foi feito, o menino foi
enviado a este Planeta. Na seqüência, a nave cai numa zona rural chamada
53

Pequenópolis, onde é encontrada por um casal de fazendeiros, Jonathan e Martha


Kent, que decide criar o pequeno bebê (AVEJ, p. 26).

AVEJ, p. 26.

Como mostra os fragmentos de AVEJ, a história do Superman aparece repleta de


referências à mitologia dos deuses, semideuses e figuras mágico-religiosas.
Superman (re) nasce como alguém que literalmente teria vindo do céu a bordo de
uma manjedoura hi-tech, que tanto pode sugerir Jesus, como Moisés em sua
doação na cestinha que boiava no Nilo, enfim, um salvador que literalmente veio do
céu. Pode-se lembrar ainda que, nos fragmentos apresentados em AVEJ, outras
referências surgem, como, por exemplo, a visão escatológica de Fim de mundo que
não é total, mas aponta para um recomeço, afinal, como afirma Jor-el, aquele seria o
início de uma “vida nova”84.

Superman é um bom exemplo do que afirma Dario de Barros, em A morte do


Herói85. Segundo ele, sob muitos aspectos, a mitologia sobre os heróis é uma fonte
inesgotável de apropriação pelo discurso dos quadrinhos, e o herói épico é um
deles. Desde os primórdios, esse herói foi tomado como um verdadeiro semi-deus,
sua força vai além da força de um homem comum, uma vez que os deuses assim
permitiram que fosse. No caso de superman, podemos considerar que seu deus fora
Jor-el, seu pai, aquele que conseguiu salvá-lo e dar-lhe uma nova vida.

84
Muitas outras relações poderiam ser estabelecidas quanto ao discurso mítico em Superman: El, por
exemplo, é nome hebreu para Deus e os nomes de seus pais adotivos começam com as iniciais M e
J, Jonathan e Martha Kent, que lembram José e Maria. Cf.: MOYA, Álvaro de. História da história em
quadrinhos. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
85
Cf.: CARVALHO JUNIOR. Dario de Barros. A morte do Herói: Introdução ao estudo de
sobrevivência de modelos míticos nas histórias em quadrinhos. Dissertação (Faculdade de
Educação). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 2002.
54

Outro grande herói apresentado em AVEJ é Siegfried86, sua história aparece repleta
de deuses, semi-deuses, anões, valquírias e magos, e do cruzamento desses mitos
e lendas, nasceu sua saga. E como todo herói épico, sua aventura é marcada por
toda sorte de obstáculos, mas a bravura, principal símbolo deste herói, vai
eliminando cada um deles. Em suma, Siegfried faz o tipo herói épico cuja aventura
constrói o mundo e as noções deste mundo. Em AVEJ, narra-se mais uma das
aventuras desse herói.

AVEJ, p. 36.

Na iminência de uma grande empresa, o herói vê-se defrontar com um obstáculo:


uma montanha em chamas impede sua passagem. O passarinho que o acompanha,
sabiamente, avisa a Siegfried que terá de atravessá-la. O herói sem medo não
hesita diante o desafio. Então se lança audaciosamente sobre o inaudito fogo. E
mais uma vez a coragem do bravo herói é confirmada87.

Ao atravessar as inflamantes labaredas, Siegfried vê no alto da montanha, um


castelo destampar. Resolve entrar para verificar se estava sendo habitado por
alguém. Então que enxerga uma pessoa estendida num túmulo, no centro do salão,
86
Siegfried, aquele que busca a verdade, fora o principal herói da trilogia O anel dos Nibelungos,
saga que conta a história do povo normando. Esse herói sempre fora um homem dotado de beleza
extraordinária e também conhecido como um homem de rara bravura, pois não tinha medo de nada.
Foi criado por Mime, um ferreiro covarde e astuto. O mito conta que Mime, como bom ferreiro, forjava
várias espadas com muita facilidade, mas uma única desafiava constantemente seu conhecimento: a
espada Nothung. Segundo a lenda, esta espada apenas poderia ser forjada por um homem dotado
de coragem absoluta e também apenas poderia ser empunhada por ele. Desafiado por Mime,
Siegfried constrói a espada com muita facilidade. De posse dela, Siegfried derrota o dragão Fafnir, e
banha-se no sangue do animal. A partir daí, o herói adquire poderes e habilidades extraordinários:
aumento da força, habilidade para falar com animais e corpo indestrutível. Mas o herói possuía uma
única fraqueza, no momento em que se banhava no sangue do dragão, uma folha cobrira suas costas
justamente no lugar onde fica o seu coração. A partir de então, esse seria o ponto fraco do herói.
87
Em AVEJ, a história em quadrinhos aparece numa seqüência de sete quadros, aqui fizemos um
recorte para melhor visualização do quadrinho.
55

coberta por uma armadura de prata. Quando Siegfried chega perto, percebe a figura
de uma linda mulher, era Brunhilda, a bela Valquíria que foi adormecida por desafiar
o poder de Votan. E como num passe de mágicas, a bela desperta do profundo sono
e resolve desposar o jovem mancebo.

AVEJ, p. 36.

Logo após a narrativa que conta a aventura do destemido Siegfried, surge a história
do corajoso príncipe dos contos de fadas. Sabe-se que é um conto de fadas porque
a linguagem também assim deixa transparecer. Conta-se nesse trecho a aventura
de um Príncipe curioso e desbravador que, percebendo um castelo ao longe, resolve
ir até lá. A história se passa da seguinte forma:

AVEJ, p. 38.

É interessante notar como a história de Siegfried e o Príncipe delineiam a mesma


estrutura narrativa. A aventura dos dois heróis é tão semelhante que em certa
medida a mudança estrutural mais significativa está na linguagem com que se utiliza
56

para expressar a mensagem. Fica explícito nesses fragmentos que Solha pretende
marcar a apreciação da narrativa, sobretudo, evidenciando a semelhança na própria
diferença dos contornos expressivos88.

Claro é que, principalmente no caso das histórias em quadrinhos, como recortes


literais, foram retirados de outro texto, mas esse dado parece não importar. O que
veio antes ou depois de cada história dessas é apenas um dado, pois, se existe uma
coisa que interessa pouco em AVEJ é a progressão de um roteiro. Por isso, em
AVEJ, um recorte, seja de qualquer linguagem, representa sempre aquilo que se
pretende confirmar e ressaltar naquele momento.

Já Taurus89 é um herói desprovido de poderes extraordinários. Sua aventura é a


seguinte: após uma estranha viagem em águas profundas à procura de algo, Taurus
percebe que a água começa a baixar. Nesse momento, põe-se a procurar alguma
referência. Ao caminhar por uma galeria, encontra um túmulo bem ao centro de uma
sala. Mesmo notando uma atmosfera diferente naquele lugar, como se estivesse
perdendo o sentido da realidade, Taurus não hesita.

AVEJ, p. 42.

Ao se aproximar do corpo inerte, Taurus depara-se com uma cena inesperada e


inexplicável: o homem que jaz deitado no túmulo é ele. Suas feições exprimem o

88
Eliade observara, de acordo com Jan Vries, que a saga se situa num mundo governado por Deuses
e o destino (Siegfried morre no final), já o conto de fadas é descompromissado com os valores de tal
discurso. ELIADE, op. cit. p. 171.
89
A história mostra as aventuras de um grupo chamado Cinco por infinitus. Infinitus era um
extraterrestre que havia selecionado quatro humanos com características distintas para se juntarem a
ele em aventuras no espaço sideral. Infinitus chamou antares, um professor de astronomia; Alfa, uma
psiquiatra; Taurus, um guarda-costas profissional; e Argo, um dublê. As histórias misturavam
aventura e fantasia, produzida pela arte psicodélica de Esteban Maroto.
57

sentido do desespero, como se estivesse buscando alguma explicação para a cena


que surgia diante de seus olhos. É como se sua imagem se duplicasse na face de
um outro.

AVEJ, p. 43.

Ainda que aturdido com a revelação, Taurus resolve trocar de lugar com o morto,
afinal de contas, ele parece procurar alguma resposta naquele lugar misterioso.
Então, retira as roupas deste, veste-as, e coloca-se no lugar em que antes vira a sua
face espelhada. Nessa seqüência, uma frase parece querer orientar a leitura: “Como
se o Cristo, vivo, se pusesse no lugar de Adão, defunto”. (AVEJ, p. 45).

AVEJ, p. 44-45.

Nesse instante, a Senhora dos Espectros entra na sala. Depois de contemplar a


figura do homem morto, aproxima-se dele e beija-o. Não conseguindo conter a
reação desse gesto, Taurus devolve o beijo. Feliz pela ressurreição do herói, a linda
rainha explica que, diante da morte de seu companheiro, quase destruíra o quarto
58

Planeta das Plêiades. Mas a crença no seu retorno pelo processo de hibernação fez
com que ela lhes aplicasse o raio paralisador. Estando o rei vivo, a rainha aciona os
controles para reverter o processo. E assim:

AVEJ. p. 49.

Retomemos então algumas premissas: Moisés que foi posto num cesto; Rômulo e
Remo que foram postos em outro cesto; Superman que foi posto numa pequena
arca do espaço; Siegfried que é destemido e corajoso; o Príncipe também detentor
de tais qualidades; Taurus que não fica para trás; Siegfried que salva Brunhilda; o
Príncipe que salva a Princesa; Taurus que salva a Senhora dos Espectros; Brunhilda
que desperta do sono; a Princesa que desperta de outro sono; a Senhora dos
Espectros que dorme acordada; o Príncipe que faz renascer um mundo; Taurus que
faz renascer outro mundo... E assim AVEJ vai sendo construída, uma história que
lembra outra história, uma cena que lembra outra cena, um herói que lembra outro
herói.

É inútil multiplicar os exemplos sobre os heróis que são esboçados em AVEJ. O que
pretendemos mostrar mesmo foi essa insistência em narrar essa grande
história/estória da figura do herói. Como se quisesse captar a própria essência do
herói, a origem. O texto persiste mostrando as relações, comparando, instigando e,
consequentemente, dilatando o próprio pensamento mítico. Roland Barthes mostra
59

que a característica fundamental do conceito mítico é justamente o de ser


apropriado. O mito é sempre uma apropriação90.

Por mais paradoxal que isso possa parecer, o discurso de AVEJ não propõe negar o
valor do discurso mítico através do imperativo ideológico, como questionava
Barthes. Mas ao expandir sua análise a outros contextos criativos, assumindo-o
enquanto valor, confere a este uma significação mesmo ficcional. Não entendendo
ficcional como mentira, ou aquilo que aponta para algo menor, mas como uma
criação suscitada por um imaginário cultural. O herói, sob muitos aspectos, é uma
figura cultural.

Essa relação aparece, sobretudo, quando Lucas diz que não existe lugar mais
propício à criação do herói do que o teatro. Ou seja, o Cristo seria construído
visando os critérios da arte: “Platão dizia que os poetas são os intermediários entre
os deuses e os homens fragmentados, nostálgicos da unidade perdida com o divino”
(AVEJ, p. 31). Assim, AVEJ se propõe a jogar com os tênues limites de muitas
dicotomias como arte/não-arte, ficção/não-ficção, verdade/mentira, história/não-
história etc.

Sigmund Freud, no texto intitulado O Grande Homem91, apresenta a seguinte


pergunta: “Como é possível a um homem isolado desenvolver uma eficácia tão
extraordinária para poder formar um povo a partir de indivíduos e famílias
ocasionais, cunhá-los com seu caráter definitivo e determinar seu destino por
milhares de anos?”. Lendo os fragmentos de AVEJ, é como se essa pergunta
estivesse sempre presente. Certamente que ela não aparece esboçada de forma tão
transparente como em Freud, mas está lá e é insistente.

Se bem que Freud afirma nesse texto que definir um Grande Homem, e
consequentemente sua eficácia, é sempre algo muito complicado. Talvez ele tivesse
mesmo razão, afinal, inúmeros são os motivos que nos levam a considerar um
homem como tal: a beleza, a força, a inteligência, a bravura, o gênio criador etc. Não
seria demasiado dizer, para Freud, que obter uma resposta satisfatória quanto a
este ponto passa pelo ambíguo e pelo arbitrário.
90
BARTHES, op. cit. 141.
91
Cf.: FREUD, Sigmund. O grande Homem. In. Edição eletrônica brasileira das obras completas de
Freud. Direção de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, CD-ROM.
60

Mas Freud admite que dessa figura pode-se apreender o seguinte: a eficácia do
herói está relacionada à idéia que ele representa: “Essa idéia pode acentuar alguma
antiga imagem de desejo das massas, ou apontar um novo objeto de desejo para
elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas”92. Trata-
se para Freud de um desejo insistente pela figura do Pai, pois precisaríamos sempre
de uma figura para reconhecer nela os seguintes sentimentos: admiração,
autoridade, temeridade etc.

De certo, como constatado por Freud, não ficaríamos surpresos em descobrir que
nunca é muito fácil oferecer uma resposta esclarecedora à figura do herói. Talvez
AVEJ apresente em seu corpo textual, durante todo o tempo, essa dúvida, e saiba
mesmo disso, afinal de contas, desde a sua capa, o livro se propunha a uma única
coisa, apresentar o imaginário que cerca a figura do herói-salvador, sobretudo, como
parte de uma verdadeira estória. Até porque, se não fosse assim, não daria conta de
construir justamente a figura de seu herói.

2.3 O herói de AVEJ

São tantos os heróis em AVEJ que é difícil captá-los de forma precisa, pois o modo
de narração deste livro pressupõe uma forma de articular cenas e sensações que
beiram o onírico. Por esse aspecto mesmo, é difícil analisar AVEJ como um todo,
pois cada cena não surge enquanto um encadeamento. As cenas vão acontecendo
ou simplesmente surgem. Disto talvez demande em grande parte a sensação de
estranhamento presente em sua narrativa.

Em outras palavras, no caso desse livro, não dá para abarcá-lo enquanto uma
narrativa totalizada. O assunto que constitui o diálogo sobre o mito é apenas parte
de suas apreensões. Concomitante ao diálogo dos evangelistas, acontecem cenas
que são estruturadas em torno da ação mesmo, não mais nos defrontamos com os
diálogos filosóficos, mas vemos as coisas acontecerem. E é nesse espaço que o(s)
herói(s) vai (ão) sendo apresentado (s).

92
Ibidem.
61

Já havíamos mencionado que AVEJ tem como palco o teatro, ao que nos parece,
grego, quer dizer, moderno também, porque AVEJ representa a representação de
um teatro grego. Basta lembrarmos da fala de Lucas quando diz que não foi por
acaso que havia marcado o encontro deles para um teatro, pois que nesse lugar
“todos os termos colhidos são reproduzidos em prosa, gesto, verso: mitificados,
simplificados, sintetizados” (AVEJ, p. 32). E não foi por acaso mesmo, o teatro grego
tem algo de significativo para a imagem do herói.

Junito de Souza Brandão93 informa que o teatro grego surge ainda na Grécia Antiga,
quando nasceram os heróis e não se pensava muito sobre eles, ou seja, quando o
mito se confundia com a realidade e com a própria origem do mundo. Nesse espaço,
onde era realizado o culto ou rito ao Deus Dionísio, passou-se também a encenar
narrativas que contavam a história do herói, suas aventuras, seus feitos, sua morte
etc., esse ritual tinha uma carga de valor imensa.

Foi, portanto, nesse lugar que o herói começou a assumir existência histórica,
porque nele se esboça um verdadeiro culto a esse Ser prodigioso. Mas lembremos
também que nesse mesmo espaço o mito que antes era cultuado passou também,
em virtude do recurso à representação, a ser encenado. E essa encenação trouxe
consigo muitas implicações, afinal de contas, o teatro deixava aos poucos de apenas
se dedicar ao culto dos deuses.

Naquela época, ir ao teatro era algo muito importante para toda a população, haja
vista o fato de ser construído ao ar livre. Tendo como base o rito, seu modo de
construção também representava a dimensão de seu alcance. Por esses termos,
podemos entender quando Lucas diz que esse é um lugar aberto para o “espaço
exterior” (AVEJ, p. 32). Além do mais, o teatro grego tinha uma coisa interessante,
que era o fato de sua estrutura não pressupor uma cúpula fechada, pelo contrário,
sua arquitetura se confundia e funcionava como extensão da própria cidade.

Como esse era um espaço sagrado, como todo ritual, compunha gestos
determinados, palavras determinadas e apenas pessoas determinadas possuíam o
poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Aliás,
durante certo tempo, apenas os homens representavam os papéis, usando

93
Cf.; BRANDÃO, Junito de Souza. O teatro grego. Rio de Janeiro: Ed. TAB, 1980.
62

máscaras para identificar a imagem daquele (a) que se estava encenando. Talvez
por isso, falamos sempre em quatro personagens homens. Quer dizer, quanto ao
que podemos chamar de direito à representação, essa relação com o teatro não
aparece explicitado, mas deixa margem para a questão.

Por outro lado, ainda que o teatro grego aos poucos vá perdendo sua função
ritualística, ao menos tal qual esboçada naquele período, ele guardou sempre uma
coisa importante e que parece ser muito cara à AVEJ, os liames entre o real e o não-
real, como afirmamos no capítulo anterior. Além disso, não é por acaso que o nome
do livro é a verdadeira estória. Em suma, o fato de AVEJ alcançar o espaço do
discurso cênico é uma forma de pedir licença para se encenar o ritual94 do discurso
sobre o herói.

Antes de descrevermos o(s) herói(s) de AVEJ, dentro dos limites que chamamos
aqui de diluição, é necessário retomarmos a fala de Feijó, que traz algo importante
sobre o herói ao remontar ao estudo de Hegel. Ele afirma que Hegel ao questionar o
herói teria chegado à conclusão de que esse “indivíduo histórico universal” foi aquele
que compreendeu as condições de seu tempo e procurou-as encarnar na sua
liderança aquilo que sua época determinasse. O herói então estaria relacionado
assim estritamente a um contexto cultural a partir do qual ele jamais poderia ser
desvinculado, pois apenas adquire existência a partir dele. Feijó acrescenta que a
cisão provocada por Hegel foi grande porque permitiu atenuar outra forma de
entender o discurso sobre essa figura95.

Em outras palavras, para Hegel não era bem o herói que constituía o mundo, mas o
mundo sociocultural que produzia a figura deste, tanto em referência aos seus
limites, quanto às suas possibilidades. Talvez as linhas entre esses espaços sejam
tão estreitas que acabam mesmo se confundindo e se diluindo numa só, até porque,
as relações entre causa e efeito são sempre muito complicadas. Quanto à AVEJ,
esse aspecto ajuda a desvelar pontos importantes quanto ao imaginário que cerca a
94
Não podemos, ainda, esquecer que Evelina Hoisel já havia feito referência ao ritual da festa como
recurso estético por meio do qual permitiria representar as apreensões de uma cultura
dramaticamente hiperbólica e estilhaçada. Além do mais, a palavra estilhaço recorda algo que a partir
de um gesto de violência, que pode ser proposital ou não, perdera sua antiga unidade. Quando o
assunto é AVEJ, a unidade, ao menos como convencionalmente conhecemos, aparece como um
conceito meio perdido mesmo. Sobre esse aspecto, suas páginas são grande exemplo disso.
HOISEL, op. cit. 32-47.
95
FEIJÓ, op. cit. 35-36.
63

imagem do herói. Nesse caso, podemos falar não apenas de um, mas de vários
heróis, porque sempre que em AVEJ alguma ação de bravura, ou coisa parecida, é
requerida, deparamo-nos com a apropriação de um imaginário muito particular.

Basta recordarmos que AVEJ joga muito com a questão do tempo. Em vários
desses jogos atemporais, nos damos às vezes conta de que o imperialismo romano
é também o imperialismo americano (p. 70); que existem vietcongues comandados
por Ho-Chi-Min (p. 64); que em Jerusalém existe TV e se assiste novelas (p. 75);
que Flash Gordon pode aparecer a qualquer momento (p. 59); que o Capitão Marvel
pode estar em algum lugar gritando Shazam! (p. 28); que Tyrone Power é um Deus,
e Clark Gable outro não menos que ele; e ainda que tudo está completamente
negligenciado pelo poder da ditadura96:

AVEJ, p. 34.

Fica claro assim que existe um imaginário que vai além do imaginário romano, pois
as cenas vão sendo cruzadas como um jogo que procura atenuar também outro
espaço sociocultural. Em parte, esse imaginário aparece relacionado à realidade que
se esboçava nos anos 1970, que vivia a contradição de lidar com o imperialismo
econômico dos Estados Unidos, além de ter de aprender a conviver com as novas
transformações que explodiam no contexto cultural.

Assim, no palco do teatro desse livro, atenua-se a profusão de sentimentos quanto


ao contexto que se vivia. Isso é interessante porque algumas das cenas são
apresentadas como se estivessem a expressar os conflitos, por exemplo, da
chamada cultura da bomba. Dentro dessa perspectiva, Hoisel afirma que “inúmeras
96
Nesse caso, a questão da censura parece apontar mesmo para uma relação mais local quanto ao
que se estava vivendo nos anos 1970 no Brasil.
64

produções culturais da época são engendradas sob o signo de uma situação


apocalíptica, proveniente de uma explosão atômica”97. Basta lembrarmos da
passagem em que os quatro evangelistas vêem-se no meio de uma guerra sendo
atacados por submarinos atômicos e pelos aviões da esquadrilha do Terror:

Os super-aviões, geminados como duas libélulas durante um coito,


sobrevoaram a cidade diminuída, lá em baixo, e a encheram com o seu
inconcebível rumor. E foi desovada a gigantesca bomba. Dentro (ele
desceu) de alguns segundos, daquelas muralhas e arranha-céus não
restaria mais do que um amontoado de pó. Mateus, desesperado, viu cada
vez mais se fechando o cerco, cada vez mais detido o passo humano para a
paz e a liberdade – e a vida – com o cogumelo radioativo se desenrolando e
subindo em explosões para o céu. (AVEJ, p. 69).

Na seqüência, semelhante à conhecida cena do filme King-kong, um gigantesco


animal furioso sai pela grande metrópole de Nova York a destruir tudo o que
encontra pelo caminho: ônibus, carros, bondes e até o Empire States Building. Na
verdade, essa cena é descrita a partir da fala de Mateus, ela não acontece
efetivamente, mas esse personagem a narra de tal maneira que é como se as coisas
estivessem ocorrendo de fato:

Imploro-lhe o milagre de crescer e ser maior – eu mesmo! – e de me


transformar numa fera peluda e terrível – para invadir a jângal daquela
Roma Novaiorquina, para espatifar seus bancos e bolsas de valores, pisar
nos ônibus e nos seus automóveis, arrebentar as teias elétricas dos bondes,
arrastar trens e metrôs dos trilhos como se fossem serpentes metálicas –
dar-lhes duro, partir seus nós, torar suas espinhas e esmagar suas cabeças
com murros e golpes. Quero cravar minhas garras nas janelas do Empire
State Building e subir, para varrer, lá do alto, o céu dos aviões daquela
Esquadrilha do Terror! (AVEJ, p. 70)

Seja através do assunto do apocalipse atômico, seja através dessas projeções


cinematográficas que lembram o onírico, a sensação que se tem é de um jogo
dialético por meio do qual o imaginário passa a operar em primeiro plano. É essa
especificidade que é preciso, se possível, esclarecer e primeiramente descrever em
AVEJ. Por meio de um jogo intertextual intenso, nos vemos confrontados com um
texto que extrapola os limites da decodificação verbal, as cenas estão ali como
momento maior de eficácia mágica, como se não mais houvesse separação entre a
tela e o templo (o teatro).

97
HOISEL, op. cit. 116.
65

Essa seria em AVEJ a forma de captar e responder tanto à lógica da cultura da


bomba como também à lógica do espetáculo impressa na figura do herói. Desse
modo, o fenômeno dessas transposições é simultaneamente estético-mágico-
religioso, sem ser jamais, exceto num limite extremo, totalmente um ou outro. Em
outras palavras, essas cenas que beiram o onírico são os lugares de simbiose no
qual o imaginário que povoa a nova cultura se confunde e alimenta o imaginário do
livro.

Nesse quadro maior que se desenvolvem os valores e apreensões do discurso


sobre o herói. Numa dessas cenas, por exemplo, João vê-se imerso pelo discurso
dos desenhos animados (e dos quadrinhos), assumindo mesmo as características
desses heróis e super-heróis. Assim, como numa brincadeira de criança, também a
realidade apreendida naquela brincadeira é levada muito a sério. Tão a sério que
João vê-se cercado por soldados romanos e sentindo as marcas daquela
brincadeira. Aliás, não é demasiado dizer que a brincadeira de criança não é um
mero recurso à fantasia, mas, como esboçado por Walter Benjamim98, uma maneira
de se apreender também as implicações da realidade vivida.

DEUS DO CÉU! (TRANSFIRO ESTA MINHA EXPERIÊNCIA DE INFANCIA


PARA JOÃO) DEUS DO CÉU! E João, o garoto de muletas, no fundo o
quintal, lutava mais o Capitão América e o Fantasma! Era ele e o Mandrake,
o Coringa, o Arqueiro Verde, o Super-Homem, o Príncipe Submarino. (EU)
João, menino, mais o Batman, o Príncipe Íbis, Tarzã e o Homem Borracha!
Todos entrançando pelos canteiros, saltando arriscadamente da amoreira,
rolando pela grama de quarar, equilibrando-se por cima do galinheiro,
combatendo os legionários de César, de incrível superioridade numérica –
pelo jardim e pelos corredores, com Lothar, Narda, Robin, “esmurrando”,
“voando”: João (e os outros heróis) “lutando contra o Mal!”. Ele e a sua
solidão povoada de bandidos que eram quase pessoas, desenhos vivos,
linhas móveis, ele vivendo num desenho animado. João e suas
“personalidades secretas”, máscaras que ele tirava, camisas que ele
trocava às pressas, com dificuldade, por causa da muleta, toalhas de banho
que ele amarrava ao pescoço, feito capas, metamorfoses fáceis e
explosivas. (AVEJ, p. 27)

Na seqüência, não mais João aparece brincando/lutando como sendo ele mesmo
um herói, mas passa a assumir então a feição de outro super-herói: O Capitão
Marvel Júnior:

98
Cf.: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação. Trad. Marcos
Vinícius Mazzari. São Paulo: Duas cidades, Ed. 34, 2002.
66

Ergueu-se de novo, desguiou-se da torneira já segurando a alça da muleta,


encaixou-a debaixo do braço e disparou em frente, gesticulando nos
impulsos, apesar da dor nas costas e nas pernas, apesar do sangue
escorrendo. Mas a porta da cozinha estava fechada por dentro e os
romanos tinham acabado de saltar e vinham vindo, devagar, com a
solenidade do seu tamanho. João esmurrando a porta gritando “mamãe,
mamãe!”, mas ela estava na fábrica. E foi certamente ao voltar-se e ao ver
os enormes soldados já se chegando para ele, e ao perceber que estava
encurralado, que lhe ocorreu o Capitão Marvel Júnior, “na vida real um
jornaleiro também de muletas, chamado Fred Freeman”. E gritou, aterrado,
olhando para eles e para o céu”!
− Shazam! – e repetiu – Shazam! Shazam! Shazam! Shazam! (AVEJ, P. 28)

A cena acima lembra uma afirmação de Feijó ao discorrer sobre o herói. Ele coloca
que todo herói demanda em certa medida um fascínio por identidade. Talvez mesmo
por isso, como afirma Feijó, “a questão do herói atravessa os tempos numa
sobrevivência surpreendente”99. Em AVEJ, os personagens, conhecidos das
histórias em quadrinhos e dos desenhos animados, precipitam e orientam a
evolução da cena, a magia do duplo, as aventuras extraordinárias, certamente,
heróis assimilados, mas também heróis identitários. Tais personagens são figuras
que combinam cada vez mais intimamente, e de forma variada, o excepcional e o
habitual, o ideal e o quotidiano, passando a oferecer-se à identificação de pontos de
apoio mais e mais realistas.

Esses pontos de contato com o imaginário sociocultural dos media que permite à
AVEJ a explosão e exposição de imagens que delineiam os diversos heróis. Até
mesmo quando esses heróis assumem uma posição histórica ou religiosa
determinada, as referências ao mundo dos mass media são suscitadas. O herói
histórico ou religioso é convidado a remontar a outro papel, ou talvez eles já estejam
ali a encená-lo. Em AVEJ, é difícil demarcar o que é fato histórico, ficção ou discurso
bíblico e encenação, todos esses elementos são montados como um grande
espetáculo.

Como por exemplo, as cenas que descrevem de forma pormenorizada as diversas


Travessias: a aventura de Ciro no Rio Gindo (p. 78-80) e a passagem de Moisés
pelo Rio Vermelho (82-85). Travessias que pela forma como são descritas, tal qual
uma encenação fílmica, recordam os filmes de Cecil B. DeMille. DeMille foi diretor de
Hollywood no chamado período áureo do cinema, famoso por dirigir superproduções

99
FEIJÓ, op. cit. p. 10.
67

épico-bíblicas a exemplo de “Os dez Mandamentos”100. Aliás, na cena da Travessia


de Moisés a relação aparece explicitada:

Depois, como se fosse o próprio Cecil B. de Mille sobre uma grua (como um
deus ex-machina) e com um megafone junto à boca, Jeová disse: “Moisés:
Levanta o teu cajado e estende a tua mão sobre o mar e fende-o, para que
os filhos de Israel (povo que é meu filho dileto) passem pelo meio do mar
em seco. E eu serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, nos
seus carros e nos seus cavaleiros, e os egípcios saberão que sou o
Senhor”. (AVEJ, p. 83)

Se bem que em outras passagens, a relação com o imaginário cinematográfico


surge com mais nitidez, a exemplo da cena romântica cujos protagonistas são
Mateus e Sara. Passagem a qual surge como que para provar a origem da angústia
e egoísmo de Mateus. Nesse momento, Mateus é apresentado como um belo jovem
enamorado por Sara, que, de posse de uma moto roubada do império romano, uma
metralhadora Ina e balas no bagageiro, vê-se diante da derradeira aventura.

TRINTA E TRÊS ANOS ANTES, debaixo da sombrinha alaranjada/ que


dividia a luz do sol em gomos/ a mulher de Mateus ostentava/ a grande
esfera do abdome. Junto dela, ele, com a máscara nos olhos, feita pela
sombra do chapéu e pelos mistérios da clandestinidade: o sorriso incerto –
o paletó e a gravata – os vincos de zinco, sapatos brancos. O casal junto da
moto roubada do Império Romano, os bolsões do bagageiro cheios de
balas. Sobre o assento, a metralhadora Ina. E Sara se aproximou de
Mateus, reclamando seus velhos versos a respeito dos lírios do campo ou
de rosas de Sharon... (AVEJ, p. 20).

A descrição feita de Mateus se assemelha muito ao desenho quanto ao good-bad-


boy. Segundo Edgar Morin, em As Estrelas101, esse era o nome dado aos
personagens (masculinos) do cinema que emergiram nos anos 1940102. O Good-
bad-boy é aquele personagem que realiza a síntese do antigo bruto bestial e do
justiceiro bondoso, personagens viris e falíveis certamente, mas extremamente
humanos. Exemplo desse herói, segundo Morin, é Rhett Butler, em ...E o vento
100
Disponível em: http://epipoca.uol.com.br/gente_detalhes.php Acesso em: 10 jan. de 2008.
101
Cf.: MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Trad. Luciano Trigo. 3 ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1989.
102
É importante lembrar que todas as referências quanto às estrelas de cinema, em AVEJ, remontam
aos anos 1940, época áurea do cinema nos Estados Unidos. O que chamamos de época áurea
refere-se ao período que vai de 1930-1960, quando o cinema é marcado pelo brilho reluzente do
astro cinematográfico. Ainda que hoje se fale em estrelas de cinema, fora naquela época que as
estrelas passaram a ser comparadas com a mitologia dos deuses e deusas, enfim, com uma
divindade. No Brasil, heróis como Clark Gable, Gary Cooper, Cary Grant e outros chegaram
juntamente com a emergência da sociedade dos mass media, como já pontuado, entre os anos 1960-
1970.
68

levou, interpretado por Clark Gable, ou ainda Gary Cooper, em Sangue da terra.
Através dessa descrição, a relação logo se confirma:

A margem do rio ele se sentou na grama, perto


dágua, Sara perto dele, entre florinhas, ela/ bela como Vivien Leigh de O
Vento Levou/ e ele belo, moço e de chapéu/ com um quê de Gary Cooper e
de Carlos Gardel. E Gary Gardel, embora fascinado pela Vivien Levou, em
lugar de cantar um tango, começou a solfejar La Habanera da Carmem, a
boca se movendo numa metralha monossilábica... (AVEJ p. 20)

Entretidos no namoro, o acontecimento trágico se desenrola: uma bomba explode


próximo ao casal.

Mas a bomba explodiu rugindo escura e subiu ruiva e


Mateus foi atirado de braços abertos e o caderno esfacelando-se voou aos
pedaços no ar....
...E entre os esgares de fumaça se desfazendo, Mateus, arrastando-
se depois entre as listras de sangue, viu, meio louco, a sua Sara se
movendo antigravitacionalmente nágua, com as formas ondulando sob a luz
intensa, os seios como que dois sacos de leite muito cheios, a ogiva do
ventre aberta e Sara, Nave-Mãe, com a testa se despregando da cabeça...
(AVEJ p. 21)

Morin em seu estudo sobre as Estrelas, de cinema, diz algo que ajuda a entender a
apropriação dessas figuras cinematográficas. Ele afirma que, ao seu modo, a
história das estrelas remonta à história dos deuses, afinal de contas, as estrelas
sofreram um processo semelhante de divinização, cujo corpo e substância foram
magnificadas em deuses e deusas. Dai demanda a afirmação do autor: “como
determinados deuses do panteão da Antigüidade se metamorfoseavam em deuses-
heróis da salvação, as estrelas-deusas humanizam-se, tornam-se novos mediadores
entre o mundo maravilhoso dos sonhos e a vida quotidiana”103.

Segundo Morin, a divinização da estrela ocorre no limite entre a tela e a terra, não se
trata apenas de um ator ou atriz. A estrela é uma figura que na reciprocidade entre

103
Edgar Morin fora um dos poucos estudiosos a efetuar uma leitura da estrela cinematográfica, já
nos anos 1950 (trabalho publicado no Brasil nos anos 1970), sem se preocupar em desmascarar a
ideologia da cultura de massa. Sua intenção, naquele momento, era ler através da antropologia e da
sociologia a “eflorescência histórica da economia capitalista” a partir do fenômeno da Estrela. Para
isto, ele não via problema algum em relacionar arcaísmo e modernidade. Morin, entendia o herói
como aquele que atua “a meio caminho entre os deuses e os mortais”, que “ambicionam tanto a
condição de deuses quanto aspiram a libertar os mortais de sua miséria infinita”. Ele diz que “na
vanguarda da humanidade, o herói é o mortal em processo de divinização”. A Estrela, portanto,
também era um herói, sobretudo, mítico. Ibidem, p.20-26.
69

personagem e ator/atriz, que se determinam mutuamente, tornou-se um híbrido. Daí


ele explicar: “terminado o filme, o ator volta a ser o ator, o personagem permanece
personagem, mas, do casamento entre os dois, nasceu um hibrido que participa de
um e de outro, que os envolve: a estrela (grifos do autor)”104. Mas seu processo de
divinização não termina por aí.

Morin acrescenta que a estrela apenas se torna possível a partir do rito presente no
seu quotidiano. O processo de divinização significa a adesão de uma vida de
projeções. Projeção que emerge na relação entre o espelho dos sonhos e a
realidade tangível. Portanto, sua divinização deriva dos pontos de contato entre o
ser estrela e os mortais (público, fãs etc.) e disso equivale não a eliminação do culto,
mas seu incentivo. E a partir daí, toda uma rede de canais conduz a homenagem.

Dessa imagem soube aproveitar AVEJ para a criação de seu(s) herói(s), não apenas
por esse(s) herói(s) guardar(em) feições divinizadoras, mas por sua figura
representar as apreensões da nova sociedade que se delineava. Afinal de contas,
do que vimos até aqui, o herói é principalmente uma figura cultural, e como tal, essa
imagem aparece marcada pelo jogo entre o religioso e o profano, o divino e o
humano, a tela e a terra, pois o Salvador que pretendiam fazer funcionar deveria ser
facilmente assimilado pelas pessoas.

Desse modo, para que esse objetivo fosse atingido, era necessário que a imagem
do salvador fosse adequada às apreensões culturais de sua sociedade. E como toda
criação de um herói obedece a um ritual que cerca sua biografia, como mencionado
pelos evangelistas e confirmado por Joseph Campbell, não seria diferente com este.
A primeira cena delineada descreve a concepção do Salvador, que não é muito
diferente das outras histórias descritas anteriormente (Buda, Krishna etc.). Para
tanto, delineia-se a apropriação por um Deus do corpo de uma Virgem. Eis a cena
que se desenrola:

Os arcanjos vieram arfando as asas e cercaram a Virgem, tirando-lhe a


blusinha de lã, depois a de algodãozinho com o emblema do Império, e a
saia. Ela então se baixou, submissa, estendendo as mãos para a barra da
combinação e seus braços em xis se encolheram e o tecido subiu,
enchendo-se de rugas, revelando-lhe as coxas, calcinhas, seu ventre alvo,

104
Ibidem, p. 25.
70

seus braços subindo mais e mais, e os anjos e as operárias e os guardas e


os reis e os fidalgos (e os quatro no teatro) lhe viram o sutiã, o colo, o
queixo e os cabelos dela tombarem – manchas em movimento – pois todos
os olhares só lhe percorriam para cima e para baixo, de seu colo às coxas.
Ela jogou a combinação para o anjo que já lhe segurava a saia e a blusa.
Depois desatacou o sutiã por trás e trouxe para a frente seus bojos cobertos
de costuras e rendas. Seus seios: formas tépidas e perfeitas. Ela baixou as
calcinhas e os anjos e as operárias e os reis e os fidalgos (e Mateus)
sorriam felizes ao verem surgir o ângulo de sua virilha, suave, liso, a sua
bissetrizinha pura. Os anjos se afastaram e, à medida que abriam caminho,
veio, entre eles, Deus, que fascinou às operárias, másculo e belíssimo –
como Tyrone Power – e segurava um lírio – as omoplatas largas
desenvolvidas num surpreendente par de asas. Ele se aproximou da Virgem
e, para tocá-la, à medida que se chegava, consolidava-se nos contrastes de
luz e sombra, ganhando nervos e ossos, a força humana e o peso. Mais os
detalhes: pés seriam incríveis sem os impulsozinhos iguais de molas, dos
dedos, quando se anda. E então a bela e ao belo se atraíram mutuamente.
Toda a fábrica percebeu que o momento era sagrado. Os gêmeos (como
em todos os mitos solares): Cristo, o Filho de Deus, como seria chamado, e
Barrabás – cujo nome significa o Filho do Pai – iriam naquele momento
iniciar sua gestação. O arcanjo se dirigiu à Virgem, que entreabriu os lábios,
semicerrando os olhos. Houve um lento/ acoplamento/ de bocas, depois que
a boca de Gabriel Gary Gardel se tornou na de Juan Ramon, poeta,
sussurando:
− Que mi palavra sea
La cosa misma
Creada por mi alma nuevamente. (AVEJ, p. 58)

Essa passagem desenvolve-se mesmo como profanação do discurso religioso-


cristão. Deus adquire formas humanas (quer dizer, de um Deus-humano), e essas
formas são carregadas de significações sedutoras e masculinizadas. Deus
assemelha-se à figura de Tyrone Power, “másculo e belíssimo” como uma estrela do
cinema, e como tal, todas as operárias ficaram fascinadas por Ele. Já a Virgem, que
de Virgem só tem mesmo o nome, é uma figura ousada e sexy, totalmente sexy. A
descrição que se faz dela é de uma mulher desprovida de pudores e atrevida, no
sentido mais profano do termo.

A passagem que se desdobra então lembra mesmo um strip-tease. Sem qualquer


resistência, a Virgem se deixa desnudar pelos anjos e arcanjos. Envolta pela áurea
de sedução, Ela começa a se despir, não tão submissa como evidenciado, mas
simplesmente desinibida: “estendendo as mãos para a barra da combinação e seus
braços em xis se encolheram e o tecido subiu, enchendo-se de rugas, revelando-lhe
as coxas, calcinhas, seu ventre alvo, seus braços subindo mais e mais” (p. 58).

Se bem que a Virgem não faz aí o tipo mulher vamp, aquela que conservava em sua
estrutura o apelo destruidor e bestial da sexualidade. A Virgem, tal qual descrita
71

nesta cena, incorpora apenas parte do sex-appel da vamp. Sua figura representa a
síntese entre o bom e o mau: a mulher de aparência pura, mas que insinua atitudes
ousadas: a good-bad-girl105. Entre uma e outra, acrescenta Morin, exprime-se da
forma mais imediata “a força e a ternura, a inocência ou a experiência, a virilidade ou
a bondade, e sobretudo algo de sobre-humano, uma harmonia divina, aquilo a que
se chama beleza”106. Então se lê que “a bela e o belo se atraíram mutuamente”
(p.58).

A seqüência da biografia do herói, destaquemos, não segue de forma


pormenorizada, o seu nascimento, por exemplo, quase não é delineado. Quer dizer,
se estivermos certos, a passagem que segue à concepção parece poder ser
analisada como sendo o nascimento do herói, quando Deus expande de dentro de
sua boca “num vapor primordial” (p. 59) a Palavra (a questão do verbo e da
linguagem parece assumir uma função preponderante) CRISTO. E semelhante a
Adão:

E um corpo de barro começou a se rachar um pouco no ventre e a se


dobrar ao meio. Seus braços se dobraram ao meio. Seus pulsos, pescoço,
os dedos, joelhos, tornozelos, se dobraram e se desdobraram,
desemperrando-se.
..........................................................................................................................
E o Homem abriu de novo seus olhos. Estava com os pés entre as folhar de
grama, o corpo, o rosto nu diante da maçã suspensa a meio metro de seu
nariz. Percebeu as folhas se movendo em volta, o rio correndo.
Rapidamente, percebeu, começava a se esquecer de tudo. De repente não
foi mais capaz de ver Flash Gordon discutindo com o Dr. Zarcov um meio de
salvar Jerusalém dos ultrapotentes raios da morte, de Romã. (AVEJ, p. 58-
59)

Eliade esclarece que a “mitologia da memória e do esquecimento” enriquece de


significação o aparecimento do mundo, a gênese dos deuses e o nascimento da
humanidade. Mas sua significação simbólica pode, sobretudo, variar dependendo do
lugar sociocultural a partir do qual fala. Nesse trecho, “esquecer de tudo” parece
apontar, na mitologia, para dois sentidos referenciados por Eliade: a imersão na vida
humana (a maçã representa o erro) por parte de um Deus leva ao esquecimento

105
Ibidem, p. 15-16.
106
Ibidem, p. 92.
72

como conseqüência da ação; ou o esquecimento pode simbolizar simplesmente o


retorno à vida, um eterno vir-a-ser: a reencarnação107.

Em todo caso, essa passagem pode ser entendida como a fase do nascimento do
herói, momento em que o herói não pode mais ser capaz de ver Flash Gordon e seu
companheiro Dr. Zarcov confabulando sobre a possibilidade e as estratégias para
salvar Jerusalém. Ora, Flash Gordon foi um famoso personagem das histórias em
quadrinhos que tinha suas aventuras delineadas no Planeta Mongo. Nessa cena, o
herói recém-nascido sugere que iria participar de mais uma das aventuras desse
grande herói (Deus?) contra a prepotência e o autoritarismo do poderoso Imperador
Ming108.

Nessas passagens, as aparições de Cristo são sempre cercadas por uma


atemporalidade intensa. Passagens às quais se procura destacar não diretamente a
fala do herói, mas, como recurso à profanação, a relação de sua figura com outras
imagens e contextos. Nesse sentido que Marcos se dá conta – já que estava
entretido em interpretar seu papel de andrógino – de que o Cristo delineado não
surge como localizado no tempo passado, mas sim no momento presente (que
presente?). A partir dessa conclusão que Marcos consegue, agora, enxergar o Cristo
caminhando nas ruas de uma cidade que, pela descrição, identifica-se com os anos
1970.

O lugar descrito representa o ambiente da cultura massiva, propagandas, outdoors,


além do mundo da cultura underground, ou melhor, do udigrude. Udigrude foi um
movimento cultural tribal típico dos anos 1970, conhecido pelo seu estilo de vida e
suas idéias revolucionárias, tributário do movimento hippie109. Aliás, podemos
ratificar, nesse caso, as relações estabelecidas na capa do LP Jesus Cristo
Superstar, citada anteriormente, quando se descreve o Libertador como uma figura
justamente underground e, por isso, altamente perniciosa e anárquica. Eis o que
Marcos enxerga:

− Imaginem!: eu pensava que iríamos construir um Cristo no passado!...


E agora, de repente, zás! e o Cristo está andando naquelas calçadas, seu

107
ELIADE, op. cit. p.108-109.
108
FEIJÓ, op. cit. p. 88.
109
BAHIANA, op. cit. p. 251.
73

reflexo passando entre os de centenas de pessoas e de automóveis, no


fundo das vitrinas a Sears! Atravessando a rua, à noite, todo iluminado e
colorido por um anúncio da Good-Year e outro da Pepsi! Que realismo
impressionante! Eu quase posso crer que, descendo à cidade, poderia
encontrá-lo, agora, num bar da boca-do-lixo, rodeado de curiosos,
discutindo com cineastas do udigrude acerca de algum detalhe da nova
doutrina!... (AVEJ, p. 78)

Depois dessa aparição, o Cristo (moreno de olhos verdes, ou louro de olhos azuis)
surge na cena apoteótica do Sermão da Montanha, no capítulo 29, intitulado
sugestivamente de “E ESTE É O TEXTO (NÃO APROVEITADO) ACERCA DOS
MOMENTOS QUE PRECEDERAM O REVOLUCIONÁRIO SERMÃO DA
MONTANHA” (AVEJ, p. 105). E como reflexo de uma figura concebida numa cena
profanadora, O Cristo é apresentado tendo suas aptidões humanas ressaltadas:

Urinando no irrequieto sanitário do vagão de passageiros, o Cristo viu, pela


janela oval, o barranco ziguezaguear em altos e baixos e subir, cobrindo a
paisagem de vez. Olhou para baixo. Viu o chão de cascalhos passando a
toda velocidade no fundo do vaso sem fundo. Parou de urinar com um
arrepio gostoso, sacudiu o pênis e o guardou enquanto a zoada
matraqueava nas rochas. (AVEJ, p. 105)

As aptidões humanas são realçadas através do destaque à cena em que Cristo


urina. Soa no mínimo estranho dizer que Cristo tenha tido um “arrepio gostoso” e
que logo depois “sacudiu o pênis”. Desse modo, a cena é descrita com certo tom de
apelo ao expor os gestos e sensações do herói, que aparece aí muito mais
humanizado. Essa descrição parece pretender atenuar mesmo uma sensação de
estranhamento pela transgressão-profanação da imagem religiosa que demanda
esse herói em particular.

Na seqüência, tal qual um ator/cantor que se apronta para encenar um papel ou


iniciar um novo show, Cristo se olha no espelho como que a admirar seu estilo e sua
beleza. Ao verificar seu perfil sob diversos ângulos, parece chegar à conclusão de
que está pronto para começar o novo espetáculo. Segue a cena:

Jesus voltou-se para a pia. Abriu a torneira e, lavando as mãos, olhou-se no


espelho, movendo o rosto para se ver de diversos ângulos. Lembrou-se de
uma cena do “Estranho Caminho de São Tiago”, de Buñel, em que se vira
de navalha na mão, diante do espelho, sua mãe lhe dizendo: “Não, meu
filho, você fica tão bem de barba!...”. Sorriu. Reprimiu o riso. Moveu o rosto.
As excrescências de seus aparelhos auditivo, olfativo, digestivo e óptico
74

produziam muita harmonia. Enxugou-se no papel-toalha, embolou-o e


jogou-o no cesto. (AVEJ, p. 106).

E apontando para o gesto artificial desse herói:

Jesus recuou a cabeça da janela e perguntou ao menino, abrindo os braços,


num falso espanto.
− Tadê o taçolinho?!

Como afirma Silviano Santiago, em Caetano Veloso enquanto superastro110, o real já


é o próprio artifício do superastro. Os bastidores do espetáculo é o lugar onde o
artifício pode ser entendido como tal, na sua forma mais literal, porque, quando se
está no palco, o superastro apenas pode ser tomado como espetacular. “O
superastro é um estilo de vida; é o envolvimento com este estilo que visa a dar ao
artifício a nota tônica da artificialidade”111.

E como num grande espetáculo, o herói surge em torno de uma multidão de


adoradores que buscam ouvir o seu sermão. Um mega-show parece ter sido
montado para receber o super: televisão filmando, seguranças, banda tocando, fãs...
todo um aparato é montado para recebê-lo. E quando o herói apresenta-se para a
cena do espetáculo, toda a artificialidade vê-se esgarçada pela integração “arte-vida,
arte-corpo... Tudo passando a ser parte integrante do ‘grande espetáculo’, do
happening, da obra que se abre então para o tempo...”112:

O helicóptero vermelho cruzou a estrada de rodagem e levitou seguindo o


aclive, montanha acima. Rodeou-a, inclinando, e voltou, descendo, até que
o piloto dentro da ampola de vidro apontou para o trem parado. O
cameraman assestou o olho do visor da filmadora sobre o grupo de homens
que ia descendo dele. Procurou o líder e sugou-lhe a imagem, que fez
crescer para si. “Belo!”, sussurrou. O Cristo falava, quase sem poder andar,
arrochando no meio do povo que o queria ver, tocar, ouvir. O piloto falou:
“Eu acho melhor quebrar o galho dele”. E logo o aparelho se aproximou do
grupo ainda junto à plataforma do trem. João o percebeu e mostrou a Jesus
a escada de cordas que lhe era atirada. O Mestre ergueu os dois polegares
para o piloto, rindo, segurou-se e foi suspenso. Olhou para baixo, no que
subiu, e viu seus amigos se afundando. “Atenção, Atenção!” disse uma voz
pelo serviço de auto-falantes. “O Messias se aproximou para o Sermão, na
escada do helicóptero!”. A banda, no alto da montanha, começou a tocar e
os foguetões a subir e a se reproduzirem e explodirem – a multidão
aplaudindo e dançando, o Cristo passando sobre ela, que lhe agitava as

110
SANTIAGO, op. cit. 148.
111
Ibidem, p. 155.
112
Ibidem, p. 161.
75

bandeiras e lhe erguia as faixas para que ele as lesse, e suspendiam


estandartes e os seus retratos ampliadíssimos, alguns distorcidos.
Avançando, suspenso, viu moças gritando e chorando histéricas, rapazes
berrando coisas, ininteligivelmente. O helicóptero superou o cume e parou
sobre ele. Jesus viu o círculo irrequieto do vento dando nos cabelos e nas
roupas da multidão abaixo, se aproximando, contida por um forte dispositivo
de segurança. Logo depois ele foi visto, em todas as mais de trezentas TVs
distribuídas por toda a ladeira, com os braços em vê, entre dezenas de
ganchos e hastes e fios, agradecendo a receptividade, vendo o helicóptero
se afastar de costas e parar no ar, mais adiante. E foi só quando baixou os
braços e a banda silenciou de vez que a multidão se acomodou, com um
grande rumor abafado. (AVEJ, p. 107-108)

É como um grande rito, tal qual uma estrela, o herói aparece ali, no momento maior
de eficácia mágica, entre a tela e o templo. O espetáculo capta o seu esplendor e
sua glória através do apogeu da festividade. É aí, segundo Morin, que o mito
começa, no coração da realidade, lugar onde a aparência, a beleza e a eternidade
fazem reinar o mito. Morin acrescenta então que as estrelas, divinizadas, não são
apenas simples objeto de admiração, ”são também motivo de culto. Constitui-se ao
seu redor um embrião de religião... E, no meio das multidões cinematográficas,
destaca-se a tribo dos fiéis portadores de relíquias, consagrados à devoção, os
fanáticos ou fãs”113.

Assim, no apoteótico Sermão da Montanha, Jesus vê-se no auge de sua história.


Todas as atenções são direcionadas ao herói, figura mágica cuja plasticidade do
corpo é seguida atenciosamente pelos seus fãs: “O Cristo falava, quase sem poder
andar, arrochado no meio do povo que o queria ver, tocar, ouvir”; “moças gritando e
chorando histéricas, rapazes berrando coisas, ininteligivelmente”. É dessa forma que
a evolução do espetáculo estimula e multiplica os pontos de contato entre a estrela e
os mortais.

Esse mesmo aparato é construído para contar a última façanha do herói, intitulada
“A FANTÁSTICA MORTE DE JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR, QUE CONOSCO
AINDA VIVE E REINA”. A morte (ou partida) aparece na biografia do herói como
momento derradeiro e necessário. Em busca do absoluto, ele acaba por encontrar a
morte, mas isso não significa que ele foi destruído pelas forças hostis do mundo,

113
MORIN, op. cit. p. 50.
76

muito pelo contrário, nessa passagem, o herói finalmente atinge o absoluto: a


imortalidade114.

Segundo Campbell, na morte do herói é resumido todo o sentido de sua vida, motivo
pelo qual é desnecessário dizer que “o herói não seria herói se a morte lhe
suscitasse algum terror: a primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o
túmulo”115. A passagem descrita a seguir narra a morte de Cristo através da
crucificação, apresentado por meio de uma visão apocalíptica e visceral de final dos
tempos. Lê-se:

Um pássaro negro fez uma curva no vôo e cruzou a cidade, grasnando. O


Cristo e os malfeitores arrastaram as cruzes através da multidão apressada,
nos arrabaldes de Jerusalém, passando sobre cascas de ovos, pés de
patos, ossinhos, ostras abertas, um enxu, esqueletos de peixes. Nos rostos,
o espanto louco ante tanta e tão extrema crueldade. Nas mãos dos
legionários, as armas, águias romanas, fanfarras. Dois soldados, de
motocicletas, abriam caminho ordenando “Arreda, Arreda!”. Passaram todos
pela muralha e saíram pelo caminho entre as rochas e as árvores
decrépitas, desfilando entre cavalos que defecavam, éguas que mijavam. A
procissão aumentava entre as fileiras cerradas de soldados nas motos, em
ostentação de Poder e Força, enflorestados de penachos, lanças,
estandartes.
..........................................................................................................................
(...) Todo o povo ali presente – ou através das emissoras de TV, viu o
Jesus, Rei dos Judeus, insultado em três línguas e exposto à fúria de seu
pai. Ali estava o Adão Celeste repicado de clarões e flashes, sendo
brutalmente castigado por se ter imiscuído – como uma serpente – entre
Deus e a crassa ignorância nossa, milhões de anos atrás.
..........................................................................................................................
A carne de Cristo tremeu, no que bandos de moscas se agitaram por um
momento. Ele começava a se encrespar de frio, e tétano e de gangrena.
Deus, em forma de tempestade, já vinha de longe, mais imenso, arrastando
e arrostando os céus, e plena escuridão: aquela coisa hedionda e branca.
..........................................................................................................................
Então Jesus, como o próprio Sócrates diria, pede, na cruz:
− Pai: perdoa-lhes porque não sabem o que fazem...
E, de repente, o Cristo destroncado, rasgado, gangrenado e podre, gritou,
provocando uma última inquietação na gentalha, na família, no exército e na
multidão de pássaros e moscas:
− Consummatun est! (AVEJ, p.148-154)

A morte surge com a intenção de afirmar nessa última façanha do herói a sua
natureza dupla: humana e divina. O fim derradeiro apresenta-se como a forma
completa e mais profunda de sua humanidade – ele luta heroicamente contra o
mundo, mas a morte irá abatê-lo. Se esse é o fim do herói? A resposta é não. A

114
Ibidem., p. 112-120.
115
CAMPBELL, op. cit. p. 339.
77

morte faz reviver o herói em sua natureza sobre-humana, divinizado agora de fato a
partir da ascensão à imortalidade. O herói vive, pois, utilizando as palavras de Morin,
“somente após o sacrifício, no qual expia sua condição humana, é que Jesus se
torna Deus”116.

É nesse jogo, entre o lúdico e o mítico – instrumentos indispensáveis para o discurso


sobre o herói – que se efetua AVEJ. Com efeito, talvez o tema do herói seja grande
demais para caber totalmente em poucas páginas, afinal de contas, são tantos e
inumeráveis. Mas AVEJ escapa a esta pretensão porque, na maioria das vezes, não
sabemos bem ao certo que verdadeira estória esse livro realmente conta. Sabemos
apenas que o livro conta e conta mesmo.

Talvez essa seja a principal ligação desse texto com a tradição: a vontade
desenfreada de narrar as diversas histórias. Contraditoriamente, através dessa
mesma apropriação pelo narrar, AVEJ fragmenta-se e fragmenta a figura do herói. O
herói é múltiplo, feito de pedaços de outros heróis: super-heróis, superstars, anti-
heróis, guerreiros, príncipes, monstros etc. Por isso é difícil determinar e qualificar
precisamente o(s) herói(s) de AVEJ: religioso, massivo, corajoso, alienado,
ideológico, mitológico, humano, extravagante, carnal... Em suma, AVEJ é um texto
estranho, e seu herói também.

116
MORIN, op. cit. p. 117.
78

3 ENTRE A AURA E A ESTÉTICA ESQUIZOFRÊNICA

Como se uma nova forma para essa humanidade


exigisse um tempo de transição e de “muda”: porque
é nos períodos transitórios, de intensa mudança
“cultural”, que surgem as mais variadas aberrações.

José Gil.

3.2 A questão da aura

Sob muitos aspectos, AVEJ joga com o conceito de obra de arte e, por conseguinte,
com o valor cultual presente nesse mesmo conceito. Para uma narrativa que
pretende encenar o ritual de criação da figura do herói como se estivesse no teatro
grego, soa meio contraditório, por isso mesmo transgressor, que a narrativa
apresente-se perpassada por história em quadrinhos e pelo universo
cinematográfico. Mais ainda, soa estranho que essas linguagens viessem a assumir
autoridade de ler, expressar e explicar o discurso sobre o mito do herói.

Uma coisa é certa, AVEJ procura atenuar, de forma muito explícita, o efeito de
estranhamento no limiar do discurso transgressor. Transgressão que joga com a
dialética arte/não-arte, erudito/popular, hermético/não-hermético, autor/leitor, enfim,
que pressupõe em primeiro plano o debate sobre esses pares de oposições
convencionais que têm orientado, principalmente nos anos 1970, o questionamento
sobre o conceito de arte, sua função e seus territórios. Afinal, AVEJ se propõe a
realizar o culto do herói inserindo linguagens até então consideradas menores.

Fica claro também que AVEJ é uma narrativa profanadora, elaborada a partir do
questionamento do discurso religioso e também literário. Religioso, porque se arrisca
a efetuar uma bricolagem de uma figura singular para a história da humanidade
como o Cristo. Literário, porque admite a presença de outras linguagens através do
recurso à reprodução, à cópia e mesmo à fragmentariedade.
79

Décio Torres Cruz destacou, em O pop: literatura, mídia e outras artes117, dentre
outras produções, AVEJ como um discurso profanador e desconstrutor que
problematiza o confronto entre arte e não-arte. Para esse autor, essa foi a forma de
AVEJ desvelar o mundo através de um jogo de intensa interpretação a partir do qual
o estético é apenas parte dessa leitura. O questionamento do discurso artístico-
religioso aponta assim para um aspecto que permeia o centro do debate cultural
naqueles anos: o culto à aura artístico-religiosa. Desse modo, características que
cercam a aura, a exemplo da “contemplação”, são constantemente referenciadas
nesse livro:

AVEJ, p. 35.

Walter Benjamin, em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica118,


explica melhor a relação com a questão da aura. Ele afirma, de forma precursora,
que para entender os processos de transformação suscitados pelos meios de
comunicação e informação – em especial o cinema – era necessário ter em conta a
importância dos valores cultuais quanto à obra de arte. Durante séculos, diz o autor,
a arte foi definida como objeto de culto, era sua função ritual ou cultual que
determinava o seu valor. Mas com a emergência das novas formações textuais119,
as bases do conceito clássico de arte encontravam-se abaladas. Até então, parecia

117
Cf.: CRUZ, Décio Torres. O pop: Literatura mídia e outras artes. Salvador: Quarteto, 2003, p. 199.
118
Cf.: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Trad.
COUTINHO, Carlos Nelson. In. LIMA, Luiz Costa. (org.) Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
119
Em momento algum Benjamin utiliza o termo mass media, ele prefere falar em novos meios de
comunicação.
80

muito fácil definir o que era uma obra de arte quando se tinha todo um caminho a ser
percorrido na busca pelo chamado hic et nunc, em outras palavras, sua unicidade.

Reconhecer a unicidade era, no final das contas, também dizer que determinada
obra era autêntica e esse aspecto era assumido como algo importante. Entretanto, a
arte passou a ocupar um lugar tão demarcado, que apenas os privilegiados
possuíam o poder, quase que misterioso, de presentificar e reconhecer a aura da
obra. Misterioso porque esta aparece como tributária dos cultos mágico-religiosos e
da percepção espiritual-transcendental que emanava dos objetos feitos para isso, tal
qual mencionamos sobre os princípios que delineavam o teatro grego. Na verdade,
essa percepção permitiu, no Renascimento, o reconhecimento da unicidade a partir
da presença empírica do artista. O gênio criador do artista naquele momento
passava a orientar o conceito de arte pura.

Na história da reprodução de uma obra, afirma Benjamin, nunca se questionou tanto


o conceito de arte, ao ponto de subvertê-la, como na emergência dos novos meios
de comunicação, modificando até mesmo a própria função da arte. Isso porque,
durante certo tempo, a reprodução foi entendida como uma prática que fortalecia o
próprio culto à tão propalada aura (aluno que copia mestre, falsários que imitam
original...).

Tais práticas traziam, na lógica de sua apropriação, sempre um sentimento de falta


que remetia ao hic et nunc. Dito de outra forma, as antigas técnicas de reprodução
chamavam a atenção para o original e para “a unicidade de sua presença no próprio
local onde ela se encontra”120. E assim, acabavam por atenuar ainda mais o
testemunho histórico121 da obra, o lugar de fruição do original.

Daí Benjamin afirmar que “na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na
obra de arte é sua aura”122, pois toda a função da arte é subvertida ao ponto de
questionar a sua “existência parasitária”. Ao invés do individual, o coletivo, ao invés
do cultual, o cultural, ao invés do erudito, o massificado. E não é apenas isso, “as

120
Ibidem, p. 224.
121
Ibidem, p. 225.
122
Ibidem, p. 226.
81

técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa


diante da arte”123, pois fazem emergir outra forma de relação ou práxis: a política.

Em Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas124, por


exemplo, Theodor Adorno e Max Horkheimer dão mostra desse incômodo,
apresentando uma posição pouco alentadora sobre os produtos da indústria cultural.
Em prol do conservadorismo dos antigos valores da arte, esses autores afirmavam
incisivamente os novos meios como o verdadeiro inimigo a ser combatido. Eles
acreditavam que “a indústria cultural não sublima, mas reprime”, e se as obras de
arte são ascéticas, “a indústria cultural é pornográfica e puritana”125. Conclusão,
essa anarquia para eles não se dava apenas enquanto subversão, mas como
“depravação da cultura” e “espiritualização forçada da diversão”126.

Exemplo desse discurso é a fala de Antonio Cândido num texto de 1973, intitulado
Literatura e Subdesenvolvimento. Nesse texto, ele profere um discurso nacionalista
centrado muito mais nos valores conservadores da arte e da literatura. Ele coloca
que, na relação com o outro, no caso do Brasil, dois momentos podem ser
destacados: o primeiro diz respeito à noção de “país novo”, fase do que chama de
“consciência amena de atraso”, o segundo, relaciona-se ao momento vivido, cuja
“noção de país subdesenvolvido” é o foco, fase denominada por ele de “consciência
catastrófica de atraso”127.

123
Outros aspectos expostos nesse texto como, por exemplo, o seu teor manifesto contra o fascismo
escapa ao nosso interesse imediato aqui nesse trabalho, assim procuramos apreender apenas os
liames que dizem respeito ao anúncio das mudanças de perspectivas com relação ao conceito e
função da arte. Ibidem, p. 244.
124
Cf.: ADORNO, Theodor W. & Max Horkheimer. Indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. In. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio
de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
125
Ibidem, p. 131.
126
Ibidem, p. 134.
127
Essa distinção ajudaria a compreender, nas palavras de Candido, aspectos fundamentais da
criação literária, definidas a partir do combate, no primeiro caso, à “consciência amena de atraso” e,
no segundo, à “consciência catastrófica de atraso”. Neste último, imersa numa etapa folclórica de
comunicação oral, a grande massa, quando alfabetizada, seria absorvida pela indústria cultural:
história em quadrinhos, fotonovelas, programas televisivos etc. Essa catequização às avessas, como
Candido chama, se daria através da imposição de valores duvidosos dirigidos a públicos inermes que
seriam bem diversos dos que o homem culto busca na arte e na literatura. Devemos lembrar que o
discurso de Candido aparece como datado: contexto da implantação do programa MOBRAL
(Movimento Brasileiro de Alfabetização), estabelecido pela lei nº 5379, de 15 de dezembro de 1967.
Cf.: CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Disponível em:
http://www.pacc.ufrj.br/literaria/litsub.html. Acesso em: 20 jan. 2007. Para aprofundar esse debate,
82

Candido tem razão ao referir que a relação com o outro no Brasil sempre se deu por
meio da noção de atraso cultural. No entanto, as saídas apontadas talvez não
ajudassem tanto, uma vez que reservava à arte e à literatura a tarefa de resistir à
invasão milionária e alienante dos meios de comunicação de massa. Essa forma de
pensar os mass media acarretou às linguagens como telenovelas, fotonovelas e
história em quadrinhos, uma diferenciação marcada pela alienação e pela falta de
valor estético intelectual, pois passaram a ser entendidas como linguagens menores,
se comparadas à arte e à literatura.

Os argumentos de tais estudiosos, no que diz respeito às apropriações de AVEJ,


fazem lembrar um livro intitulado Super-homem e seus amigos do peito128, escrito
pelos chilenos Ariel Dorfman e Manuel Jofré. Em plena década 70, em meio ao
governo de Salvador Allende, e marcado pelo confronto socialismo/capitalismo,
esses estudiosos buscaram discutir as implicações político-ideológicas do advento
da indústria cultural para o momento histórico vivido. Sobretudo, procurando
caracterizar as chamadas “mercadorias” dos mass media a partir dos valores que
difundem e sua ideologia dominadora subjacente. E o principal foco das questões
levantadas foram as histórias em quadrinhos.

Como emanação da classe dominante para que os dominados não se desenvolvam,


Jofré afirmava naquele momento que os quadrinhos impediam o conhecimento do
homem sobre si mesmo, sobre os outros, sobre o mundo. Sendo um universo
fechado, “os quadrinhos transformam qualquer leitor numa criança, no sentido de
que não exige exercício intelectual reflexivo nem crítico. Basta saber ler, basta ter
olhos, para chegar às histórias em quadrinhos”129, afirma esse autor.

Em suma, os autores reconheciam nas histórias em quadrinhos um inimigo voraz a


serviço da ideologia dominante. Ideologia que encontrava na disposição desse meio
um verdadeiro aliado. Para eles, um gênero em que predomina a rapidez da ação

deve-se consultar: SANTIAGO, Silviano. Intensidades discursivas. In: Cosmopolitismo do pobre:


crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
128
Cf.: DORFMAN, Ariel, JOFRÉ, Manuel. Super-homem e seus amigos do peito. Trad. Robert Moses
Pechman e Felipe Doctors. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
129
Claro é, no entanto, que a leitura destes autores aparece datada, uma vez que o Chile estava
atravessando os conflitos de um período ditatorial entre os anos 1970-1973. Eles acreditavam que,
em certa medida, as histórias em quadrinhos eram utilizadas como recurso ideológico-alienante para
fins de integração. Ibidem, p. 90-91.
83

130
“não permite pensar nem refletir sobre o que está acorrendo” . Afinal, pergunta
Jofré, “como pode haver realização humana numa atividade tão mínima como ler
história em quadrinhos?”. Uma coisa, portanto, parece certa para esses autores “os
quadrinhos são uma arma” 131.

Desse modo, talvez a apropriação às histórias em quadrinhos seja um dos aspectos


mais interessantes em AVEJ. E, de alguma forma, acabam questionando o
posicionamento de autores como os citados acima. Não apenas pela presença
efetiva desses textos, mas pela forma como Solha vai montando a estrutura da
narrativa. As histórias em quadrinhos têm um papel preponderante para o
entendimento do que se pretende expressar e, em certos aspectos, chegam mesmo
a funcionar como fator elucidativo132. As histórias em quadrinhos explicam,
informam, permitem conhecer o discurso mítico, enfim, permitem conhecer os
propósitos de AVEJ:

AVEJ, p. 46.

García Canclini, em Culturas híbridas, poderes oblíquos133, ao analisar os processos


de hibridação, identificou as histórias em quadrinhos como verdadeiros gêneros
impuros. Ser impuro para esse autor não é algo ruim, muito pelo contrário, García
Canclini reconhece nessa impureza dos quadrinhos formas de situar-se em meio à
heterogeneidade. Ele expõe que os quadrinhos permeiam um tipo de linguagem que

130
Ibidem, p. 97.
131
Ibidem, p. 92-93.
132
Aliás, o quadrinho Cinco por Infinitus chega a ser referenciada pelos autores chilenos. Ibidem, p.
139-140.
133
Cf.: GARCÍA CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op. cit. 2006,
84

já nasceu híbrida, ou melhor, que já nasceu oblíqua. A obliqüidade funciona como o


lugar de intersecção e bifurcação a partir do qual brotam os cruzamentos. Isso é
importante para esse autor porque é através dos poderes oblíquos que se podem
precisar as articulações entre cultura e poder.

Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens


e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens
em um relato de quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a
potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado
134
em imagens estáticas .

Para esse autor, os quadrinhos são o que se pode chamar de um lugar fronteiriço,
uma vez que, nesse espaço, dialogam o culto, o popular e o massificado. Ele
acrescenta que se nos quadrinhos interagem personagens representativos de partes
mais estáveis do mundo, com figuras literárias e do meio massivo, esta linguagem
não faz mais do que reproduzir o real. Talvez as afirmações de García Canclini
possam confirmar bem mais as apropriações de Solha.

Quer dizer, não fora dito ainda aqui, mas existe a possibilidade dessas apropriações
serem de um autor personagem. De certo que AVEJ poderia, nesse caso, ser
interpretada como um caderno de anotações de leituras de um autor, logo permearia
as apreensões de uma escrita autobiográfica135. Mas uma coisa é certa, o assunto
quanto a esse eu-autor tem relação também com a questão da aura, pois esse
personagem vive no limiar entre o culto ao gênio artístico e a apropriação da cópia e
da reprodução.

Na verdade, esse eu-autor aparece poucas vezes, mas está lá. É difícil perceber sua
presença porque as cenas nesse livro, como já destacado, são como transposições
de imagens e acontecimentos. E como esse eu-autor não habita o espaço do teatro
grego, torna-se ainda mais difícil identificá-lo. Mas é ele quem estabelece a relação
entre o conjunto de textos ali expressos. É ele quem torna possível o impossível
desse diálogo, pois que surge como aquele que cria (?), elabora (?) e cola (?) os
fragmentos que compõem o teatro planetário.

134
Ibidem, p. 341.
135
Para a verificação das transposições de cenas em que esse eu (autor?) aparece pode-se verificar
os capítulos 08 (páginas 51-55), capítulo 22 (páginas 90-92), capítulo 30 (páginas 113-114), capítulo
37 (páginas 133-137).
85

E, de fato, eu sentia que não era o gênio motor que produzia tudo aquilo.
Sentia que tinha entrado numa espécie de... memória do mundo (grifo
nosso), numa espécie de... imaginação exterior... e independente de mim
mesmo. Eu estava num daqueles que Jung chamava de Grandes Sonhos. E
tive outros. Num deles eu me vi numa rua de Nova York. Na versão original
deste livro (grifo nosso) juntei esse sonho ao que Lucas tivera, da
passagem da muralha. Em vez de Nova York botei Jerusalém como já
desaparecida no desastre de 70. Lucas andava na calçada, normalmente,
através de um tráfego intenso de mulheres, até que chegou a uma
constatação que o fez esquecer de tudo o mais, embora não percebesse,
no Lucas que via caminhar na rua, nenhuma demonstração de espanto:
“Mas eu estou sonhando!”... Perplexo, acordei entendendo que tivera uma
Revelação. Lucas, entretanto, não acordou. (AVEJ, p. 52)

O autor personagem de AVEJ é aquele que passa por conflitos existenciais,


concebe-se criador, mas um criador de sonhos. Acredita no culto ao gênio, mas
contraditoriamente efetua cópias e reproduções de imagens. O seu olhar mais
parece o olhar atento de um leitor. O autor é um leitor de textos vários. Reconhece
aquilo que pretende enunciar nos quadrinhos, nos contos de fadas, nos textos
sagrados, na figura de Rembrandt. Ele cultua a cópia que seu olhar efetua, ele
cultua as suas marcas. Seu gênio criador parte da “memória do mundo”.

Botei Marcos tentando esclarecer aquilo tudo: “Li, nas Metamorfoses do


Diabo, de Lefebvre (grifo nosso), que o Gênesis dos hebreus atribui ao
Príncipe do Mal o espanto com que se inaugura o conhecimento, a própria
procura do conhecimento, ao mesmo tempo que a ligação entre o gozar e o
conhecer... (AVEJ, p. 52)
..........................................................................................................................
Foi Mateus (foi meu pai) quem deu ao cunhadinho (quem me deu), de
presente, o livro “Primeiro Encontro Com A Arte”, das Edições
Melhoramentos. Nele o menino se deparou (eu me deparei) com a pintura
universal, espalhada pelos grandes museus do mundo – e o belíssimo Auto-
Retrato do Artista Com A Barba Nascente, de Rembrandt, que estava – por
incrível que possa parecer – logo ali, em (São Paulo) Cesaréia! Pronto!:
aquele era o Filho Dileto que a Grande Arte e a Revolução inacessíveis lhe
enviavam. (AVEJ, p. 90)

O autor vive a certeza de saber que não é ele quem cria porque tudo já fora criado:
todas as informações, todas as certezas e todas as incertezas. Se esse autor é
Solha? O próprio texto procura instigar essa pergunta – como se pudéssemos obter
uma resposta clara. O fato é que é difícil afirmar aquilo que não aparece expresso.
Michel Foucault afirma, em O que é um autor?, que “não é possível fazer do nome
próprio do autor uma referência pura e simples”136. O nome do autor representa,

136
Cf.: FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Trad. Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro.
Vega, Passagens, [1992], p. 42.
86

sobretudo, uma função no corpo do discurso, servindo para caracterizar certo modo
de ser desse discurso137.

AVEJ, p. 25.

AVEJ brinca com a figura aurática do autor. Constrói uma escrita que deixa
vestígios, tais quais marcas de anotações de leituras, grifos que permitem
reconhecer os rastros de uma escrita. Dessa forma que AVEJ aceita que as
seguintes perguntas intervenham: quem cria os vestígios? Quem escreve? Quem
cola?138 Esse “eu” que se inscreve nesse discurso fragmentado descreve um
movimento duplo na sua própria inscrição: ainda que sua presença seja autoral, ela
apaga-se do discurso como autor e aparece como leitor. Mas, ao mesmo tempo,
reenvia o interesse pelo nome instaurado139, pois as cenas que se superpõem aos
acontecimentos e fragmentos de AVEJ não deixam afirmar a ausência de sua figura,
afinal, existem riscos, rasuras e grifos140 que não permitem tal esquecimento.

137
O discurso para Foucault é tomado como uma instância de poder: “o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder que
queremos nos apoderar”. Cf.: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collègge
de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.
138
Ibidem, p. 78.
139
Seria essa a tão propalada morte do autor? Ora, o autor não deixa de existir, afirma Foucault, “o
autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos”. Esse é o jogo
da função autor. Ibidem, p. 80-81.
140
Tem-se que para Jacques Derrida, em Glossário de Derrida, a rasura aparece como elemento
regulador da polissemia. A rasura pretende estabelecer “uma lógica da suplementariedade na própria
sintaxe em que se inscreve”. Cf.: SANTIAGO, Silviano (sup.) Glossário de Derrida. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1976, p. 74.
87

Antoine Compagnon, em O trabalho de citação141, chamaria a esse leitor/autor de


bricoleur, aquele que trabalha com o que encontra tal qual uma costureira,
recortando aqui, costurando ali. Semelhante àquele homem da tesoura de que nos
fala Compagnon, o bricoleur recorta o essencial da leitura, aquilo que lhe chama a
atenção, aquilo que lhe apraz. É esse movimento que tem o privilégio, segundo
Compagnon, de apontar simultaneamente para duas direções: a extirpação e a
apropriação. É como um ato de agrupar, unir entre si elementos distintos como por
um apetite que justapõe e combina.

Silviano Santiago, em O entre-lugar do discurso latino-americano142, afirma que o


discurso do autor latino-americano, pela sua própria condição histórica, habita o
espaço fronteiriço do entre-lugar. Nesse autor, segundo Santiago, “as palavras do
outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus
olhos”143. No jogo apropriativo desse outro, se realiza o ritual “antropofágico da
literatura latino-americana”144. Através do deslocamento de saberes tácitos, o autor
de AVEJ habita o espaço conflituoso do entre-lugar. A escritura do outro faz parte da
aventura maior do grande texto que conta a verdadeira estória.

Esse é o sentido ritual da escritura desse livro, cruza gêneros fazendo conviver o
erudito com o popular, o culto com o massificado, o autor com o leitor, enfim,
experimenta deslocar esses lugares. Em meio a tantos poderes oblíquos, constata
García Canclini, responder ao que é arte não diz de uma questão apenas estética. É
necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção
do jogo cultural, pois são nesses lugares que se pode ter uma noção das relações
estabelecidas entre os cruzamentos e seus possíveis (não mais impossíveis)
diálogos.

141
Cf.: COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996, p. 11-30.
142
Cf.: SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In. Uma literatura nos
trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Para o aprofundamento
do conceito de entre-lugar, logo de suplementariedade, foi-nos importante consultar a fonte de
referência de Silviano no texto de Jacques Derrida. Cf.: DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o
jogo no discurso das ciências humanas. In. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques
Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005.
143
Ibidem, p. 21.
144
Ibidem, p. 26.
88

García Canclini afirma que apenas dessa forma se pode dar conta do estudo sobre
os processos de hibridação. Afinal de contas, “como analisar as manifestações que
não cabem no culto e no popular, que brotam de seus cruzamentos ou em suas
145
margens?” . Resta-nos então assumir a tais manifestações enquanto poderes
oblíquos, lugares que tornam possível precisar as articulações entre a cultura e o
poder.

É na trama dessa obliqüidade, afirma esse autor, que se encena a perda do autor e
do roteiro. Espaço no qual se torna difícil, senão impossível, falar de unidade (ou,
como prefere Benjamin, unicidade). Em virtude da descrença nos grandes relatos
que permitiam a reorganização e a hierarquização dos períodos e dos estilos, o
roteiro desfaz-se enquanto história para assumir a “co-presença tumultuada de todos
146
os estilos” . Desse modo, ao autor não resta mais do que experimentar a
descontinuidade do mundo e dos sujeitos147.

Como parte do processo de desterritorialização dos poderes, tem-se que “não há


história da qual falar, nem sequer importa a história da arte e da mídia; saqueiam-se
imagens de todas as partes, em qualquer ordem”148. A eficácia da obliqüidade define
então que “todas as artes se desenvolvem em relação com outras (...). Assim as
culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em
comunicação e conhecimento”.

Já foi dito aqui que AVEJ é uma produção estranha, e cada vez mais se confirma
essa assertiva. Ela vive no limiar mesmo do entre-lugar: cultua a aura e o gênio
artístico, mas copia e reproduz; encena o culto ao herói em pleno teatro grego, mas
profana o corpo desse herói construindo-o a partir de outros supers. AVEJ é um ser
de fragmentos, um corpo em/de pedaços, pois habita o culto e o popular, o erudito e
o massificado. Em suma, brinca com as fronteiras que foram impostas a esses

145
Cf.: GARCÍA CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op. cit. 2006, p. 283.
146
Ibidem, p. 329.
147
Para esse autor, então, no jogo das descoleções surgem os chamados gêneros impuros, lugares
que desde seu nascimento abandonaram o conceito de unidade e assumiram a intersecção entre o
visual e o literário, entre o culto e o popular. Fazendo parte desses gêneros estariam inseridas as
histórias em quadrinhos. Tal qual evidenciado por Solha, García Canclini reconhece a potencialidade
da visualidade dos quadrinhos: “Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar outras
ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de
quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo
que pode ser condensado em imagens estáticas”. Ibidem, p. 339.
148
Ibidem, p. 305.
89

espaços, questionando a crença que afirmava a impossibilidade de assumir um


diálogo entre essas linguagens. Dentro desse livro tudo se mistura, pois, talvez
diante tantos fragmentos, não importe tanto saber por qual acesso se entrou.

3.2 A nova textualidade

No texto A lógica cultural do capitalismo tardio149, Frederic Jameson anuncia a


presença de uma nova estética da textualidade ou da écriture. Textualidade que
seria tomada não como um novo estilo, mas como uma dominante cultural. Ele
expõe nesse texto que, desde o início dos anos 1960150, momento em que se
constata uma crise quanto ao fim “disto ou daquilo”, em termos de ideologia, de arte
e da história sociopolítica, pode-se falar na instauração de uma nova intensidade.
Intensidade que aponta, sobretudo, para o imediatamente heterogêneo e caótico, a
saber:

O apagamento da antiga (característica do alto modernismo) fronteira entre


a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou comercial, e o
aparecimento de novos tipos de texto impregnados das formas, categorias e
conteúdos da mesma indústria cultural que tinha sido denunciada com tanta
151
veemência por todos os ideólogos do moderno.

Essa textualidade, acredita Jameson, pôde ser confirmada de forma muito visível –
sem incorrer no perigo de estar sendo catastrófico –, observando as transformações
ocorridas na arte, na arquitetura, na história, nos processos revolucionários e,
principalmente, na própria forma de pensar a subjetividade. E, de uma forma ou de
outra, todas essas transformações levaram-no a crer que estavam relacionadas à

149
Cf.: JAMESON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In. A lógica cultural do capitalismo
tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 2000.
150
Para um estudo mais aprofundado sobre as opiniões de Frederic Jameson sobre a crise quanto
aos prognósticos sobre o futuro e o surgimento de uma nova dominante cultural quanto capitalismo
tardio, tendo nos anos 1960 como momento chave, foi consultado o texto Periodizando os anos 60.
Nesse texto, ele faz um esboço histórico desse momento, tentando traçar, em termos de
periodização, as transformações em relação à história da filosofia, as práticas políticas
revolucionárias do período e como tudo isso aparece relacionado ao que se produziu em termos
culturais a partir da emergência de uma nova fase de ciclo econômico. Cf.: JAMESON, Frederic.
Periodizando os anos 60. In. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Pós-modernismo e política. Rio
de Janeiro: Rocco, 1990.
151
Ibidem, p. 28.
90

nova fase do capitalismo (tardio) que se processava agora em âmbito global, é claro,
sempre com restrições quanto à relação dominador/dominado.

Isso não quer dizer, afirma Jameson, que toda a produção cultural na lógica do
capitalismo tardio, também chamado por ele de período pós-moderno, apareça
caracterizado como tal. Mas parece existir, segundo este autor, “um campo de forças
em que vários tipos bem diferentes de impulso cultural têm que encontrar seu
caminho”152. Para tal discussão, Jameson destacou algumas características que
constituem o pós-moderno: uma nova falta de profundidade que encontra lugar na
cultura da imagem e do simulacro, e uma nova temporalidade que aponta para uma
estrutura esquizofrênica153.

Jameson nota que as novas relações socioculturais impostas pela cultura do


espetáculo, em referência a Guy Debord, imprimiam maneiras diversas de pensar o
mundo e representá-lo. Fato este que marcava “o aparecimento de um novo tipo de
achatamento ou falta de profundidade”154. Em termos artístico-literários, essa falta
de profundidade, diz esse autor, não remetia à materialidade renovada da obra,
momento no qual se consolida o desvelamento de seu mundo referencial, mas
insurgia a favor da superficialidade na sua forma mais literal.

Tomemos a leitura de AVEJ. Longe de buscar uma experiência única e completa,


AVEJ problematiza a relação entre texto e o que está fora dele, incorporando
inúmeros elementos recortados da história, do ficcional e do contextual. Essa forma
de relação não pressupõe a constituição de personagens bem estruturados,
utilizando aí as palavras de Maria Lúcia Fernandes Guelfi155. A opção por uma
linguagem literalmente recortada não pressupõe, em suma, a presença de uma
história com personagens e núcleo narrativo que pretenda traduzir a vida de uma
família e seus conflitos pessoais, por exemplo.

152
Ibidem, p. 31.
153
Jameson destaca ainda mais duas características, no entanto, nos parece que estes já constituem
o cerne de todo o discurso de Jameson, a saber: “a profunda relação constitutiva de tudo isso com a
nova tecnologia” e “a missão da arte política no novo e desconcertante espaço mundial”. Ibidem, p.
32.
154
Ibidem, p. 35.
155
Esse termo fora utilizado por Guelfi para referir-se às construções narrativas de Roberto
Drummond, considerando deste autor as produções do chamado Ciclo da coca-cola. Cf.: GUELFI,
Maria Lúcia Fernandes. O tempo do clichê e a estética do olhar na ficção contemporânea. Revista
Ipotese, Juiz de Fora. Disponível em: http://www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/8/cap011.pdf Acesso:
12 set. 2006.
91

Os personagens de AVEJ não são construídos segundo normas de verossimilhança


e coerência. Somos informados apenas de qualificativos sem muitas profusões:
Mateus, um velho neurótico; Lucas, um anarquista; Marcos, um andrógino; e João,
um garoto de muletas com poderes de vidência. Não se tem uma identidade fixa,
nem um quadro estável de atributos sociais e psicológicos como: nome, idade,
situação social, profissão, relações de parentesco etc. A única preocupação dos
quatro evangelistas parece ser com seu papel fictício. Completamente
descomprometidos, agem como se estivessem desligados de um universo
referencial.

Em AVEJ, as figuras humanas são evocadas de modo indireto mesmo, ou seja, por
meio de simulacros de imagens que as identificam: heróis, super-heróis e
superstars. Guelfi chama a esse modo de relação com as linguagens de
teatralidade, percebida como deslocamento e diluição da auto-identidade da obra.
Assim, a autora define teatralidade como “contaminação de condições exteriores, de
fora da obra, pela qual se substitui a idéia de obra em si pela idéia de obra-como-
processo”156.

Em produções que exacerbam a questão do olhar enquanto experiência vital e


performance, explica Guelfi, a leitura desloca-se para o âmbito da linguagem, ou
melhor, para se pensar a relação entre as linguagens. Em suas palavras, “a
linguagem é tomada no sentido de discurso, isto é, uma linguagem historicamente
ativada em formas apropriadas a contextos socioculturais específicos”157.

Dessa relação talvez derive a impossibilidade de definir de forma precisa AVEJ: trata
de história, mas não é um romance histórico, não diz de uma relação com o
documental; trata de super-herói, mas não é uma história em quadrinhos, apesar de
conter uma porção delas; trata de religião, mas não é um livro catequista; trata de
guerra, mas não conta a história dessa guerra; trata de superstar, mas não é um
filme de Hollywood; enfim, trata de muita coisa, mas parece não admitir nenhuma
definição.

156
GUELFI, op. cit. 124.
157
Ibidem, p. 120.
92

Em AVEJ, portanto, coerência/incoerência, harmonia/desarmonia se confluem para


expressar a característica mais fundamental desse livro: a desordem, o caos. O que
se observa é que AVEJ foi propositalmente construída a fim de exacerbar essas
sensações. Num jogo que reúne arte e vida, Solha escolhe objetos, cenas,
fragmentos, criando assim efeitos de deslocamentos que interferem na seqüência
das ações, se é que se pode falar em seqüência.

Disto deriva então o que Jameson chamou de estética esquizofrênica. Uma estética
que se apresenta como “um eterno presente aos olhos”158, congelada na imagem
em que a realidade se transformou. A estética esquizofrênica caracteriza-se por não
ter a experiência da continuidade temporal. “Com a ruptura da cadeia de
significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes
materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados
no tempo”159, explica Jameson.

Essa descontinuidade temporal é possibilitada a partir do que Jameson chamou de


crise da historicidade, quando a nova textualidade, na sua esquizofrenia, já não
consegue dar conta de estabelecer o sentido histórico dos acontecimentos. Então, a
atemporalidade acaba por intensificar-se e, dessa forma, a apreensão dos
acontecimentos não é mais do que um devir louco. Dessa atemporalidade intensa
AVEJ parece falar por si:

TRINTA E TRES ANOS ANTES, debaixo da sombrinha alaranjada/ que


dividia a luz do sol em gomos/ a mulher de Mateus ostentava/ a grande
esfera do abdome. (AVEJ, p. 20)
..........................................................................................................................
SIM. E SÉCULOS ANTES Ciro cruzara em furioso galope na chuva todo
seu vasto exército encharcado de águas, lamas e luzes, e avistou as torres,
depois toda a babilônia do outro lado do vale doirada por um sol
extraordinariamente forte. (AVEJ, 78)
..........................................................................................................................
MUITOS SÉCULOS AINDA MAIS PARA TRÁS, NA ESTÓRIA, uma árvore
fez terra com uma nuvem densa e um raio explodiu. (AVEJ, 80)
..........................................................................................................................
QUARENTA ANOS DEPOIS, Mateus viu!: a implosão balofa na base de
colunas que sustentava o Templo se inchar numa almofada de pó e o
edifício se afundar inteiro, desintegrando-se num desfiladeiro de tijolos que
se despejavam no vazio. (AVEJ, p. 144)

158
Ibidem, p. 38.
159
Ibidem, p. 52.
93

O excesso de termos que remetem a momentos e épocas não identificadas não


permite captar a experiência do tempo. A interposição de acontecimentos e imagens
em AVEJ aparece justamente como um impasse histórico, pois os modos de
construção de AVEJ são modelados mais em termos espaciais do que temporais.
Não existe uma preocupação em apresentar um progresso linearmente histórico dos
fatos e cenas. Tudo é apenas captado no instante daquilo que o olhar, em meio a
tantos fragmentos de textos e imagens, consegue, permite e deseja apreender.

AVEJ, p. 38.

No entanto, essa falta de profundidade foi tomada também por Jameson como
acrítica. Ele diz que se o sujeito não consegue apreender o complexo temporal, “fica
difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra
coisa que não ‘um amontoado de fragmentos’ e em uma prática da heterogeneidade
a esmo do fragmentário, do aleatório”160. Pergunta-se então: Poder-se-ia constatar
alguma criticidade nas apropriações e na textualidade de AVEJ? De certo que todo o
presente trabalho já é uma resposta afirmativa a essa pergunta161.

Na epígrafe citada no início deste capítulo, José Gil, escritor português, no texto
Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro, afirma que é “nos períodos
transitórios, de intensa mudança ‘cultural’, que surgem as mais variadas

160
Ibidem, p. 52.
161
Tânia Pellegrini, no texto Ficção brasileira contemporânea, opta, referindo-se à fala de Jameson,
por assumir a ficção contemporânea como uma assimilação sem resistência. Cf.: PELLEGRINI,
Tânia. Ficção brasileira contemporânea: assimilação ou resistência. Revista Novos Rumos, ano 16,
n° 35, 2001.
94

aberrações”162. Nesse texto, José Gil procura demonstrar como os monstros, seja de
qualquer ordem, constituem justamente momentos de exacerbação de conflitos. De
certo, segundo ele, que o fim do século XX não escapa a tais monstruosidades,
afinal, é nesse instante que os monstros parecem mais espreitar o dia-a-dia da
sociedade.

Gil explica que, desde a antiguidade, os monstros sobejam a história da


humanidade. Sendo um híbrido por “natureza”, através de sua monstruosidade
aterradora, pode-se descobrir “formas de linguagens e de sociabilidade
avançada”163. Através dos monstros, diz este autor, exigimos justamente que estes
nos provoquem inquietações, questionem nossas certezas sobre a identidade
humana. Os monstros existem, em suma, para pôr em destaque a nossa
instabilidade e ressaltar a nossa falta de certezas.

(...) o homem ocidental contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez o


contorno da sua identidade no meio dos diferentes pontos de referência
que, tradicionalmente, lhe devolviam uma imagem estável de si próprio.
Daí o intenso fascínio actual pela monstruosidade. Os monstros são-lhe
164
absolutamente necessários para continuar a crer-se homem.

AVEJ é uma dessas aberrações de que nos fala este autor. Aberrante porque AVEJ
procura questionar a estabilidade da identidade, ameaçada desse modo, como
afirma Gil, de indefinição. A identidade textual, a identidade do herói, a identidade
literária, a identidade do autor, enfim, AVEJ alcança o espaço da heterogeneidade.

Aliás, Jeffrey Jerome Cohen escreve, em A cultura dos monstros: sete teses165, que
para entender a cultura por meio dos monstros que ela gera é necessário ter em
conta que o monstro é: 1. um corpo cultural que nasce nas encruzilhadas e habita os
deslocamentos; 2. O monstro sempre escapa porque é um ser de fronteiras,
portanto, não propício ao fechamento, ele é suplementar; 3. O monstro resiste a
qualquer classificação, pois é a própria crise das categorias; 4. o monstro representa
a diferença instaurada; 5. O monstro cruza fronteiras que não podem, nem devem,
162
Cf.: GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In. SILVA, Tomaz Tadeu
(org). Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p. 172.
163
Ibidem, p. 170.
164
Ibidem, p. 170.
165
Cf.: COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In. SILVA, Tomaz Tadeu. (org).
Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p.25-55.
95

ser cruzadas; 6. O monstro então é o impossível concretizado; 7. O monstro nos


questiona, enfim, porque o criamos?166

Respondendo a essa pergunta, temos que se torna cada vez mais difícil definir o riso
da festa de AVEJ como algo acrítico, pois seu valor demanda justamente da mistura
de discursos que encerra o jogo da suposta acriticidade. Nesse sentido, se existe
algo importante no ritual da festa de AVEJ, é a incorporação das linguagens de que
se apropria. Talvez essa forma de apropriação aponte para uma diversa maneira de
pensar o diálogo com o outro. Vejamos a especificidade de AVEJ no que diz respeito
aos acontecimentos que marcam o final dos anos 1970.

Silviano Santiago, no texto denominado A Democratização no Brasil (1979-1981)167,


diz que o instante traçado aponta para dois momentos importantes no Brasil (que se
estende à América Latina): o “fim do século XX” e a ascensão do tema da
democratização no (grifos do autor) país168. Segundo Santiago, neste momento,
tem-se um diálogo muito mais centrado na cultura do que na arte, ou seja, muito
mais relacionado ao antropológico do que ao literário.

A ascensão desse tipo de diálogo aparecia circunscrita devido à quebra de


oposições quanto ao fim de muitos paradigmas da modernidade, por exemplo,
erudito/popular/pop, linguagem literária/linguagem informativa. A quebra dessas
fronteiras foi proporcionada a partir do momento em que a questão da unidade
cultural era substituída pelos contatos multiculturais.

Naquele momento, pensar o multicultural abria brecha para se questionar a idéia de


uma integridade nacional, expandindo o diálogo para novas identidades culturais e
sociais. Aliás, essa temática surgia como o espaço para novos problemas e

166
Donna J. Haraway levantou algumas questões quanto à metáfora dos monstros, no seu O
166
Manifesto ciborgue . Ela começa dizendo que seu texto é um mito político, pleno de ironia, pois para
esta autora, a ironia tem haver com contradições, com a vontade de manter “juntas, coisas
incompatíveis, porque todas são necessárias e verdadeiras”. A ironia é o humor sério, diz ela.
Haraway afirma ainda que uma narrativa ciborgue constitui toda uma estratégia retórica e política,
permitindo pôr em jogo os territórios da produção, da reprodução e da imaginação ontológica. Uma
narrativa ciboguiana abre a possibilidade de se tecer questionamentos sobre as identidades. Cf.:
HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século
XX. In. SILVA, Tomaz Tadeu. (org). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
167
Cf.: SANTIAGO, Silviano. Democratização no Brasil. In. Cosmopolitismo do pobre: crítica literária e
crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
168
Ibidem, p. 134.
96

reflexões inspirados na democratização. O conservadorismo da arte era substituído


pelo debate centrado na perspectiva cultural. Falava-se em fronteiras,
transcendência dos limites da individualidade, polissemia de significados,
incorporação do outro.

Enfim, intervinha na discussão sobre o debate cultural pensar a alteridade a partir da


relação com o outro. Fato este que rendeu, acrescenta Santiago, a denominação de
uma “cultura adversária”. Cultura que naquele momento passava a ser entendida por
sua acriticidade: mito da cordialidade brasileira; aceitação passiva dos padrões
impostos pela sociedade de consumo; endosso da sociedade do espetáculo169. Com
isso, é importante lembrar que, para Santiago, a democratização não surgia como
afirmação do sonho utópico pela igualdade, mas surgia do discurso sobre a
diferença e a partir de uma concepção problematizadora da identidade nacional170.

É nesse sentido que se torna difícil considerar um texto com as características de


AVEJ como uma esquizofrenia aleatória, quando muitas questões encenadas no seu
corpo surgem como tributárias dos conflitos que eclodiam no âmbito histórico-cultural
do final do século XX. Um período que viu os mais diversos universos, situados em
qualquer lugar do planeta, se interligar através de redes comunicacionais; que viu as
subjetividades serem questionadas e passarem a delinear, como afirma Suely
Rolnik171, cartografias mutáveis e colocar em cheque seus contornos habituais. A
esquizofrenia da nova textualidade, portanto, não quis mostrar apenas a
canibalização aleatória, como quer Jameson, mas permitiu repensar o próprio
conceito de caos:

Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que
a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos, repensá-
lo, reposicionar-se diante dele – mesmo que muitas vezes a insistente
evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento e
conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se

169
Ibidem, p. 148.
170
Ítalo Moriconi Jr., no texto O pós-utópico, diz que esse momento identifica-se, ao contrário, como
um contexto de crise e esgotamento do sonho utópico dos projetos nacionais. Atingir o cerne do
pensamento sobre o presente significava aderir ao agora e não pressupor um núcleo essencial, nem
uma totalidade da realidade que conteria o segredo das múltiplas determinações que se esboçava. A
crença da linearidade da História, com sua expectativa otimista de avanço global, apresentava-se
como ultrapassada, o global era um fato. E esse fato também presumia, sobretudo, a afirmação da
contaminação inevitável. Cf.: MORICONI Jr. Ítalo. O pós-utópico: crítica do futuro e da razão
imanente. Revista, TB, Rio de Janeiro, jan. – mar., 1986.
171
Cf.: ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: subjetividades em tempos de globalização.
http://www.caosmose.net/suelyrolnik Acesso: 08 de nov. 2007.
97

estariam operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu


172
conceito de caos e ordem, assim como da relação entre ambas?

Quando Rolnik aponta para a necessidade de repensar o caos, é também para a


reformulação da subjetividade que está a referir-se. Sendo a subjetividade um eterno
vir-a-ser, estreitamente ligado ao ambiente sociocultural, suas mudanças ou
mutações, como quer a autora, estão relacionadas à dinâmica dos universos que
participam da constituição deste ambiente. Desse modo, dizer dos contornos de uma
subjetividade é afirmar que forças estão aí em jogo e que cartografias estão
provocando as sensações que a constituem.

A perda de instabilidade que AVEJ dramatiza então é mais do que uma


esquizofrenia a esmo. Esse livro apreende, sem dúvida alguma, a lógica da
textualidade esquizofrênica, mas essa lógica permitiu adensar a imensa diversidade
de universos que naquele momento sociocultural começavam a delinear uma nova
reconfiguração. O caos instaurado na sua textualidade trazia mais do que tematizar
a incoerência e a desarmonia173, o caos era uma forma de pôr em destaque a
instabilidade das certezas que durante tanto tempo pareceu-nos guiar. “O medo não
é mais o de não conseguir configurar-se segundo um certo mapa, pois múltiplos são
os mapas possíveis.”174

Em suma, se insistimos aqui por diversas vezes em afirmar que a textualidade de


AVEJ surge como parte de uma solicitação da realidade sociocultural delineada
naqueles anos, não foi por acaso. Até porque, talvez, mais do que nunca, essa
textualidade esteja de fato muito presente. Afinal, a consolidação da dinâmica
socioeconômica toma hoje cada vez mais dimensões globais. E, se quanto a esse
texto nos vemos confrontados com o caráter precário e incerto do caos das
subjetividades (histórica, temporal, textual, ficcional, literária, autoral...), estamos
certamente também diante do caráter criador desse caos, e a partir do qual o Teatro
Planetário de A Verdadeira Estória de Jesus surge como parte dessa criação.

172
Cf.: ROLNIK, Suely. Novas figuras do caos: mutações da subjetividade contemporânea. Disponível
em: http://www.caosmose.net/suelyrolnik Acesso: 08 nov. 2007.
173
Cf.: DORFLES, Gillo. O elogio da desarmonia. Trad. Maria Ivone Cordeiro. Portugal: Edições 70,
Livraria Martins Fontes, 1988.
174
ROLNIK, op. cit. p. 08.
98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então você sente que esse é o fim da história


Acha isso tudo muito satisfatório
Bem eu digo a você meu amigo
Isso pode parecer o fim
Mas a continuação
É você quem faz
175
Sim você é um herói

Queen, do filme Flash Gordon.

A leitura de AVEJ permitiu retomar e repensar, de certa forma, o que foram os anos
1970 no que diz respeito ao debate entre literatura e sociedade dos mass media.
Ressaltemos que isso sob o ponto de vista de um livro meio que esquecido do
turbilhão cultural que aí eclode. Apesar de que, essa contradição de estar inserido
em determinado espaço sociocultural, e ao mesmo tempo não destacado em relação
a este, permitiu inquirir também sobre o que deve ou não ser lembrado por nossa
memória literária. Aliás, podemos e/ou devemos lembrar de autores e produções
que ainda não foram lembrados? Talvez essa seja de fato uma pergunta implícita
em todo este trabalho.

Lembrança foi uma palavra que ajudou, sem dúvida, a repensar esse período. Isso
porque, nela parece residir a certeza de que todos os acontecimentos e fatos
existiram, e existiram mesmo. No entanto, a lembrança diz respeito ao passado, e
quando ela é contada, sabemos que a memória se atualiza sempre a partir de um
ponto de vista presente. Para quem não viveu esse período então, restou-nos a
tarefa de relê-lo através da memória daqueles que lá estiveram. Ouvimos a fala de
Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, Flora Sussekind e
especialmente Evelina Hoisel com seu recurso ao ritual da festa. Ou ainda pudemos
ler AVEJ, numa perspectiva mais ampla, através da leitura efetuada por Edgar Morin
em As estrelas. Todos, de alguma maneira, textos escritos no calor da hora.

175
Letra no original: So you feel it’s the end of the story/ Find it all pretty satisfactory/ Well I tell you my
friend/ This might seem like the end/ But the continuation/ Is yours for the making/
Yes you’re a hero.
99

Recorrer a essa memória não foi difícil, pois as transformações que se processaram
naqueles anos no âmbito cultural provocaram logo várias investigações. Afinal, não
foram poucas as mudanças. Mas é importante não esquecermos que grande parte
dessas transformações foi atribuída não tanto à emergência da indústria cultural,
mas ao quadro histórico-político instaurado com o golpe de 64: a ditadura militar. E
de forma mais específica, às mudanças provocadas com a implantação do regime
censor. Entanto, não se pôde negligenciar a constituição de uma sociedade dos
mass media, já que esta passava muito visivelmente a delinear a própria sociedade.
Nesse caso, em sua maioria, as leituras sobre o período, de uma forma ou de outra,
acabaram esbarrando na temática da indústria cultural.

Nesse sentido, não apenas a distância, mas também os operadores teóricos


presentes hoje, permitiu-nos apontar para caminhos outros de leitura tanto em
relação a AVEJ, quanto ao que ali fora produzido. Afinal, desde a revolução político-
cultural de 68, e as barricadas do desejo176, quarenta anos se passaram. Nesse
sentido, Evelina Hoisel no texto intitulado Supercaos atual177, com a propriedade que
tem sobre o assunto, em específico sobre PanAmérica, destacara a atualidade do
caos instaurado com a ascensão da nova dinâmica socioeconômica global que
eclodira nos anos 1970. Tema atual principalmente “em relação às questões mais
prementes do debate que se realiza a respeito da arte e da literatura na
contemporaneidade”.

Sob o ponto de vista do Planetarismo de que nos falou Affonso Romano de


Sant’Anna, AVEJ sem dúvida alguma trouxe sua contribuição. Mas não podemos,
nem queremos, afirmar que AVEJ fora a única a exacerbar as apreensões quanto às
novas formações textuais que surgiram com a emergência da nova sociedade.
Nesse sentido, pudemos citar aqui o precursor PanAmérica, de Agrippino de Paula,
A morte de D. J. em Paris e O dia em Ernest Hemingway morreu crucificado, de
Roberto Drummond, e ainda podemos acrescentar o livro Catatau178, de Paulo
Leminski. Diríamos muito presumivelmente que se houvesse existido um movimento

176
Cf.: MATOS, Olgaria C. F. Paris 1968: as barricadas do desejo. 3 ed. São Paulo: Brasiliense,
1989.
177
Cf. HOISEL, Evelina. Supercaos atual. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-08-
12mat_49419.htm. Correio Brasiliense, Brasília, Domingo, 12 agos. 2001. Acesso: 20 de out. 2006.
178
Cf.: LEMINSKI, Paulo. Catatau (prosa experimental). Curitiba, Ed. do Autor, 1975.
100

planetarista, em termos de periodização, PanAmérica seria assumida como


precursora quanto às apropriações planetárias e AVEJ marcaria o fim deste ciclo.

Fala-se em fim de ciclo porque, como pudemos constatar, nos anos 1970 a
sociedade dos mass media não se encontra ‘naturalizada’ como hoje. Assim, a
construção do que chamamos aqui de nova textualidade assustava, e muito. Textos
fragmentados, narrativas esquizofrênicas, a ascensão do olhar quanto ao enunciado,
flashes de imagens, enfim, eram livros estranhos. E não era apenas a sensação de
estranhamento que mexia com o conservadorismo da tradição literária, também a
temática dos valores impressos pelos media revelavam muitos questionamentos.

O discurso construído na relação com os novos meios de comunicação esboçava,


sobretudo, uma posição político-cultural no que diz respeito à arte. Nesse sentido,
AVEJ, por estar situada no final dos anos 1970, já aparece mais influenciada pelo
discurso quanto à democratização na arte e na literatura. Afinal, AVEJ não se
preocupa tanto em afirmar a chamada “ideologia dominante” dos mass media. Fato
que marcou de forma muito intensa o final dos anos 60 e início dos anos 70.

Hoje, a textualidade que fora pensada enquanto um experimento ontológico naquele


momento é tomada na atualidade como um fato. Parece-nos que em meio à
consolidação do global, muitas questões que giravam em torno dessa textualidade,
do caos e da esquizofrenia, foram substituídas pela diluição e apropriação efetiva da
heterogeneidade. Não estamos falando de decadência do experimento efetuado
naqueles anos, muito pelo contrário, houve sim a consolidação daquelas questões,
que passaram a ser assumidas. Assim, tornar-se-ia difícil atualmente dizer que
produções podem ou não ser inseridas no chamado planetarismo, afinal de contas,
tudo hoje é planetário.

Mais interessante ainda é vermos os valores quanto à chamada obra de arte e da


indústria cultural migrarem de um lado a outro. Fala-se em arte seqüências, fala-se
em clássico dos quadrinhos, fala-se em sétima e em nona arte. Ao mesmo tempo,
escritores literários são vistos ganhando a vida exercendo tal função e mesmo
escrevendo visando um mercado e ou ainda determinado público leitor179. Em suma,

179
Cf.: PELLEGRINI Tânia. A literatura e o leitor em tempos de mídia e de mercado. Disponível em:
http://www.unicamp.br/iel/memoria/ensaios/pellegrini.html Acesso: 20 jan. 2007.
101

se nos anos 1970 questionavam-se os estranhos limites entre arte e cultura de


massa, cada vez mais hoje se confirmam as frágeis fronteiras entre ambas180.

Dessa forma que AVEJ trouxe a sua contribuição ao atenuar a questão da


heterogeneidade. Ao efetuar uma leitura de seus modos de construção, por
exemplo, dá para entender, agora, quando Renato Ortiz diz em Cultura brasileira e
identidade nacional181 que “toda identidade se define em relação a uma outra, ela é
uma diferença”. AVEJ foi elaborada seguindo essa premissa, a partir das mediações
textuais, de vias diagonais para gerir conflitos, deu às relações culturais ali
esboçadas um lugar proeminente sobre identidades em (des)construção. Ante a
impossibilidade de construir uma ordem textual, esse livro erigiu-se nos mitos, na
literatura, no cinema, na religião, nas histórias em quadrinhos.

Aliás, várias vezes nesse texto utilizamos a metáfora da fronteira para designar esse
livro. Ora, as fronteiras são os lugares de simbiose entre práticas político-culturais,
mas não podemos esquecer de que em toda fronteira há arames farpados, cercas
elétricas e soldados policiando e guardando os limites. Contudo, uma coisa parece
certa, sempre existe um lugar que proporcione a passagem de um lado a outro.
Existem certas astúcias dos migrantes que possibilitam os contatos, como diz García
Canclini. Nesse ponto, talvez possamos definir Solha como um escritor astucioso.

Fica claro, no entanto, que as pretensões estruturais e temáticas de AVEJ


produziram o atenuamento de um texto hermético, com muitas informações, muitos
textos e plasticamente desestrutural. AVEJ não foi escrita para ser lida tão
facilmente. Nesse aspecto, parece surgir mesmo como tributária dos experimentos
realizados no final dos anos 1950 pela poesia concreta. Em suma, AVEJ parece
viver a contradição de ser uma produção contraditória.

Como já mencionado várias vezes aqui neste trabalho: AVEJ vive o limiar entre culto
e o popular, o erudito e o massificado. De certa forma, essa contradição talvez
venha confirmar ainda mais o porquê de alguns críticos considerarem Solha um
escritor pós-moderno. Afinal, o que é o pós-moderno senão um ser que vive o
momento pós-, sabendo que não pode, e talvez mesmo não consiga, se
180
Cf.: FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Frágeis Fronteiras entre arte e cultura de massa.
http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum Acesso: 25 set. 2006.
181
Cf.: ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 07.
102

desvencilhar da modernidade? Um ser que apesar de exacerbar na sua identidade


cultural a fragmentariedade182 de sua existência planetária (ou global), encontra-se
apegado à tradição.

Aliás, o próprio tema trabalhado em AVEJ aparece permeado pela contradição. No


espaço textual fragmentado, o teatro grego surge como lugar onde as apropriações
acontecem. É o lugar ritual onde se efetiva a construção do herói. Herói mítico-
religioso, mas também mágico-extraordinário. O herói de AVEJ é a contradição de
ser um super. Ora apresentado como um Jesus Cristo, ora apresentado como
superstar, o herói é contraditório também por ser planetário. Afinal, para dar conta
do espaço cênico do teatro planetário de AVEJ apenas sendo um herói hiperbólico.

182
Cf.: HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu Silva, Guaracira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
103

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