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Masculinidade e Modernidade em Eça de Queirós
Masculinidade e Modernidade em Eça de Queirós
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(…) nenhum elemento daquele padrão pode ser entendido fora da sua relação com as
mulheres e com o sistema de género como um todo. (Sedgwick, 1985:1)
O professor George L. Mosse, por sua vez, chama a atenção para o facto de que
o conceito moderno de masculinidade se disseminou de tal maneira na cultura ocidental
nos séculos XIX e XX, que se tornou praticamente invisível para historiadores e outros
estudiosos. Enfatiza ainda o facto de que o apelo a um ideal de masculinidade se tornou
um verdadeiro lugar-comum da cultura moderna, endossado pelas mais diversas
correntes políticas, científicas e pedagógicas, num amplo espectro sócio-cultural, não
obstante diferenças étnicas ou sociais:
A esse respeito, cabe ainda sublinhar dois aspectos centrais a todo o debate. Por
um lado, o pressuposto, amplamente compartilhado no espaço cultural da modernidade,
de que é a sexualidade que define "a verdade interior" dos indivíduos, consoante a
intuição seminal de Foucault, sempre retomada por outros estudiosos; por outro, a
notável estabilidade das identidades de género que os indivíduos assumem como
expressão fidedigna dessa sua suposta "verdade interior", apesar da patente
arbitrariedade das mesmas, conforme se evidencia em qualquer estudo intercultural.
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totalidade da obra romanesca queirosiana. Nesta, a inautenticidade do mundo
moderno – e da sociedade portuguesa, em particular – é pensada e explorada com
notável coerência, ao longo dos vários romances, como sendo sobretudo uma crise do
masculino e de um conjunto de valores e práticas a ele ligados.
O que me seduziu logo foi a sua esplêndida solidez, a sã e viril proporção dos
membros rijos, o aspecto calmo de poderosa estabilidade com que parecia assentar na
vida, tão livremente e tão firmemente como sobre aquele chão de ladrilhos onde
pousavam os seus largos sapatos de verniz resplandecendo sob polainas de linho. [...]
Não sei se as mulheres o considerariam belo. Eu achei-o um varão
magnífico – dominado sobretudo por uma graça clara que saía de toda a sua força
máscula. Era o seu viço que deslumbrava. (Eça de Queirós, 1997, v. II: 65s, o grifo é do
original)
O aspecto físico do homem manifesta, pois, uma série de atributos morais que se
reputa estarem ligados à masculinidade, tais como segurança, liberdade, tranquilidade,
dinamismo e ordem, atributos estes cujas incidências sociais e políticas seria ocioso
sublinhar.
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n'A Ilustre Casa de Ramires, temos a passagem de um estilo de vida efeminado a outro
inequivocamente masculino, como processo de regeneração pessoal e nacional
encarnado pelos protagonistas respectivos, Jacinto e Gonçalo. No entanto, ao lado de A
Ilustre Casa de Ramires, é em O Crime do Padre Amaro e n'Os Maias que Eça explora
de maneira mais sistemática e complexa essa contraposição.
N'Os Maias, quando João da Ega, endividado, resolve abandonar a vila Balzac e
recolher-se à província, acaba sendo vítima de chantagem por parte de um policial que
era amante da mãe do pajem que o servia. Segundo o policial, "seria fácil provar como
na villa Balzac se passavam 'coisas contra a natureza', e que o pajem não era só para
servir à mesa..." (Eça de Queirós, 1997, v. I: 1.239). Assim também, n’ O Conde de
Abranhos, num momento em que Alípio se indispõe politicamente com o governo, é
vítima de várias acusações, entre as quais a de que "era dado em Coimbra a deboches
contra a natureza". (Eça de Queirós, 1997, v. II: 1.013)
O registro desse tipo de calúnia em dois romances aponta para pelo menos três
aspectos de vital importância para a temática que estamos a estudar: em primeiro lugar,
mostra a emergência da ideia de heterossexualidade exclusiva como traço distintivo da
masculinidade no contexto das classes médias europeias no século XIX; indica ainda a
consciência da instabilidade inerente à identidade masculina assim definida, de tal sorte
que nenhum homem está ao abrigo de se ver "acusado" de homossexualidade com
aparente verosimilhança; finalmente, essa mesma possibilidade aponta para a
especificidade da discriminação anti-homossexual, por isso mesmo que se trata, ao
contrário de todas ou quase todas as outras formas de discriminação, de um preconceito
contra uma forma de comportamento que, portanto, é passível tanto de ser dissimulada
quanto de ser desmascarada. Como escreve Leo Bersani, "a diferencia del racismo, la
homofobia es en su totalidad una respuesta a una posibilidad interna" (Bersani,
1998:41). Em síntese, essas calúnias assacadas contra João da Ega e Alípio Abranhos
mostram o quanto a repressão à homossexualidade é, na verdade, uma forma de
controlo de todo o sistema de género e, através dele, de todo o corpo social, conforme
vimos com Chauncey e Sedgwick.
No âmbito dos estudos literários, o recurso ao conceito de homossociabilidade
masculina é particularmente rendível, na medida em que ajuda a superar as numerosas
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aporias a que a (falsa) dicotomia entre as noções de amizade e de homossexualidade
leva na análise de textos literários (Cf. Popp, 1992:53s). Os conceitos de
homossociabilidade e de desejo homossocial, pelo contrário, enfatizam a continuidade
básica entre os laços de solidariedade ou rivalidade entre homens e o homoerotismo, a
despeito da negação enfática dessa continuidade em contextos culturais específicos. A
esse respeito, cremos que os romances de Eça são particularmente ricos e reveladores
das estratégias e ambiguidades da homossociabilidade masculina e das suas conexões
possíveis com o homoerotismo.
João Eduardo por fim era um homem; tinha a força dos vinte e seis anos, os
atractivos dum belo bigode. Ela teria nos braços dele o mesmo delírio que tinha nos
seus... (Eça de Queirós, 1997, v. I:350).
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intenso. Dâmaso admira Carlos, dedica-se a ele, quer ser como ele. O dia em que, pela
primeira vez, foi recebido no Ramalhete pareceu-lhe belo "como se fosse feito de azul e
ouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incomodado e ainda
deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes..." (Eça de Queirós, 1997, v. I:1.170).
O seu próprio quarto tem várias marcas da amizade que o unia ao neto de Afonso da
Maia, inclusive um retrato dele a cavalo, e deixa patente o sentimento de emulação que
lhe inspirava.
Cresceram. E aquela amizade sempre igual, sem amuos, tornou vida de ambos
um interesse essencial e permanente. Quando a mãe de Jorge morreu, pensaram mesmo
em viver juntos, habitariam a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge
queria comprar um cavalo; mas conheceu Luísa no Passeio, e daí a dois meses passava
quase todo o seu dia na rua da Madalena.
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atribuirmos a ele uma identidade, um comportamento ou um desejo homossexuais,
unicamente com base na sua amizade por Jorge e no silêncio acerca da sua vida afetiva
e sexual? Não estaríamos assim a mimetizar a opressão homofóbica, que vê a
(homo)sexualidade como um segredo que precisa de ser revelado e exposto à
curiosidade geral? (Cf. Sedgwick, 1990:67s). De que natureza seria essa "verdade" do
texto, afinal supostamente revelada, e o que ela acrescentaria à leitura de O Primo
Basílio? Que tipo de saber se estaria a produzir? Como nos adverte Dennis Allen, a
crítica literária frequentemente confunde operações retóricas com procedimentos
hermenêuticos, o que é particularmente verdadeiro nos estudos sobre literatura e
homoerotismo (Cf. Allen, 1994:23).
[...] la principal forma en la cual los hombres intentaban demostrar que habían tenido
éxito en lograr la masculinidad era mediante la problematización de otras formas de
masculi-nidad, el posicionamento de lo hegemónico contra lo subalterno, la creación
del otro. (Kimmel, 1998:215)
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No que tange às diferenças étnicas, chama a atenção a caracterização de uma
personagem judia de Os Maias, o velho comerciante Abraão. Além de aspecto físico
repulsivo (desdentado, barrete sujo), ele mostra-se subserviente ao extremo, tanto na
linguagem quanto na postura física ("curvado em dois") ao cumprimentar e ao
despedir-se de Carlos da Maia (Cf. Hilliard, 1982), abrindo mão assim da postura erecta
e altiva que é uma das características básicas do comportamento masculino, segundo o
modelo hegemónico. No mesmo romance, cabe observar ainda o facto de, pelo menos
duas vezes, se atribuírem a Pedro da Maia – que, como vimos, é apresentado como
fraco, covarde, pouco homem – "olhos de árabe, negros e lânguidos" (Eça de Queirós,
1997, v. I:1.051 e 1.366).
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impregnada, podemos considerar como um verdadeiro núcleo ideológico do universo
queirosiano: "Os homens nasceram para trabalhar, as mulheres para chorar, e nós, os
fortes, para passar friamente através!..." (Eça de Queirós, 1997, v. II:104)
Referências bibliográficas:
BRISTOW, Joseph, Effeminate England: Homoerotic Writing after 1885, New York:
Columbia University Press, 1995.
EÇA DE QUEIRÓS, José Maria d', Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1997, 2 v.
ERIBON, Didier, Traverser les frontières, In: Les Études Gay et Lesbiennes: Colloque
du Centre Georges Pompidou 23 et 27 juin 1997, Paris: Centre Georges Pompidou,
1998, p. 11-25.
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GRÜNER, Eduardo, El retorno de la teoría crítica de la cultura: una introducción
alegórica a Jameson y Zizek, In: JAMESON, Frederic & ZIZEK, Slavoj, Estudios
Culturales: Reflexiones sobre el Multiculturalismo, Buenos Aires/Barcelona/México:
Paidós, 1998, p. 11-64.
KIMMEL, Michael S., El desarrollo (de género) del subdesarrollo (de género): la
producción simultánea de masculinidades hegémonicas y dependientes en Europa y
Estados Unidos, In: VALDÉS, Teresa & OLAVARRÍA, José (ed.), Masculinidades y
Equidad de Género en América Latina, Santiago de Chile: FLACSO-Chile, 1998,
p. 207-217.
MOSSE, George L., The Image of Man: The Creation of Modern Masculinity,
Oxford/New York: Oxford University Press, 1996.
SEDGWICK, Eve Kosofsky, Between Men: English Literature and Male Homosocial
Desire, New York: Columbia University Press, [s.d.].
---, Construire des significations queer, In: ERIBON, Didier (ed.), Les Études Gay et
Lesbiennes: Colloque du Centre Georges Pompidou 23 et 27 juin 1997, Paris: Centre
Georges Pompidou, 1998, p. 109-116.
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