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REFLEXÕES SOBRE O LOBOLO E OS RITOS DE INICIAÇÃO FEMININOS EM

MOÇAMBIQUE A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DA INTERSECCIONALIDADE

Helena Santos Assunção1


Aline Beatriz Miranda da Silva2

Resumo: A proposta do presente trabalho é fruto de reflexões conjuntas a partir das experiências de
pesquisa realizadas pelas autoras em Maputo (2014) e Nampula (2015) em Moçambique, durante 5
meses cada. A interlocução com mulheres do sul e do norte do país, bem como com associações de
mulheres, nos permitiu observar a relevância e as reinvenções de práticas sociais “tradicionais”
como o lobolo (no sul) e os ritos de iniciação femininos, no norte do país. Essas práticas têm sido
objeto histórico de incômodo, desde os missionários cristãos, o Estado colonial português, até o
Estado Socialista pós-independência e seu projeto modernizante e racionalizante. Atualmente, tanto
os ritos de iniciação quanto o lobolo ainda são objetos de intervenção por parte do Estado
Moçambicano e de ONGs que atuam na região, devido ao problema dos casamentos prematuros e
da evasão escolar das meninas, bem como das violências praticadas no caso dos ritos. Nesse
sentido, pretendemos, neste trabalho, discutir a respeito das controvérsias que envolvem as práticas
corporais femininas e o lobolo em Moçambique, tendo como base a perspectiva do feminismo
interseccional e mobilizando autores [Granjo (2004); Bagnol (2005); Arnfred (2015)] que apontam
para um ponto de vista êmico sobre essas questões, no intuito de complexificar a compreensão das
mesmas.

Palavras-chave: Moçambique. Mulheres. Lobolo. Ritos de iniciação. Interseccionalidade.

Introdução
A proposta de refletir, a um só tempo, sobre o lobolo e os ritos de iniciação femininos em
Moçambique é uma tentativa inicial de discutir essas práticas a partir de uma perspectiva
interseccional, que evoca um ponto de vista êmico sobre as questões em torno dessas práticas. O
tema surgiu através do diálogo entre as autoras e, especialmente, do compartilhamento de certa

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional - UFRJ. Realizou pesquisa de
campo em Moçambique entre janeiro e junho de 2015, integrando com outros três estudantes brasileiros a primeira
equipe da pesquisa “A Vale em Moçambique: controvérsias sociotécnicas em África e alhures” financiada pelo edital
CAPES/AULP e coordenada pelo prof. Eduardo Vargas (UFMG). Durante este período, desenvolveu em paralelo uma
pesquisa com mulheres de Nampula, e a partir disso realizou sua monografia intitulada “Amarrando corpos, pessoas e
objetos: as capulanas no norte de Moçambique”. Atualmente continua desenvolvendo a pesquisa sobre as capulanas na
província de Nampula para o mestrado.
2
Graduanda em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte, Brasil. Entre julho e
dezembro de 2014 realizou uma mobilidade acadêmica para Moçambique no âmbito do projeto “Descrição e
Documentação de Línguas Moçambicanas/Fase 1”, coordenado pelo prof.Doutor Fábio Bonfim e financiado pela
CAPES/AULP. Durante a mobilidade, cursou algumas disciplinas na Universidade Eduardo Mondlane, estudou
Xirhoga, umas das línguas faladas na Província de Maputo, e, paralelamente ao projeto das línguas moçambicanas,
dedicou-se a uma pesquisa sobre as reivindicações de direitos e agenda política das viúvas em Maputo, capital do país.

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insatisfação com a perspectiva teórica e ativista (Arthur et.al (2011,2012), Osório & Macuacua
(2013), UNICEF (2014), dentre outros) que compreende os ritos de iniciação femininos (e as
técnicas corporais a eles associados) e o lobolo exclusivamente como práticas que colocam as
mulheres em uma situação de vulnerabilidade.
Essas práticas têm sido alvo de denúncia e perseguição desde os missionários cristãos, o
Estado colonial português, até o Estado Socialista pós-independência, que assumiu uma política de
modernização e desenvolvimento, tendo como objetivo central a criação de uma cidadania
moçambicana3.Nesse contexto, o governo da FRELIMO4 atacou a diversidade dos grupos sociais do
país e condenou diversas práticas culturais vistas como legados de um passado tribal e obscuro
(GEFFRAY, 1991). No período de política socialista em especial, que durou até os anos 1990, a
perseguição às práticas tradicionais foi marcada, principalmente, pelos slogans “abaixo aos ritos de
iniciação”, “abaixo ao lobolo”, “abaixo ao tribalismo”, “abaixo aos curandeiros” (PINHO, 2012).
Atualmente, tanto os ritos de iniciação quanto o lobolo continuam sendo objetos de intervenção por
parte do Estado Moçambicano e de ONGs que atuam na região, mas com o argumento pautado no
problema dos casamentos prematuros e da evasão escolar das meninas, bem como das violências
praticadas no caso dos ritos.
A partir do trabalho de campo realizado em 2014 junto a algumas organizações de defesa
dos direitos das mulheres em Maputo, sul de Moçambique, e em 2015, através da interlocução com
mulheres da cidade de Nampula, norte do país, foi possível perceber a relevância e as reinvenções
do lobolo (no sul) e dos ritos de iniciação (na região norte). Nas organizações de mulheres,
enquanto as ativistas e advogadas falavam do lobolo como uma prática a ser combatida, na medida
em que poderia dificultar o divórcio e o processo de divisão de bens, as viúvas entrevistadas, por
outro lado, contavam com satisfação sobre terem sido “loboladas” e defendiam que a realização
dessa cerimônia tinha um valor excepcional quando comparado ao casamento civil. Do mesmo
modo, em Nampula, as mulheres falavam com recorrência acerca dos ritos de iniciação, apesar de
terem alguns conteúdos secretos aos não-iniciados, e mostravam as técnicas e marcas corporais a
eles associados como uma forma positiva de “agradar os homens”. Tendo em vista este cenário, a
produção teórica e ativista, ao apresentar uma leitura sobre a construção social da identidade de

3
Sobre a continuidade de políticas e leis de regulação sobre o corpo da mulher em Moçambique ver Pinho (2012; 2015).
Pelas limitações do texto, não poderemos fazer um histórico detalhado deste processo. Se as citações recaem mais sobre
o período pós-independência, isso se deve mais à bibliografia empregada e à proximidade do período citado, do que a
uma crítica enfatizada sobre o Estado socialista.
4
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) é o partido socialista que está no poder desde a independência do
país, em 1975. A OMM (Organização da Mulher Moçambicana) é um braço da Frelimo que possui ampla capilaridade e
força de mobilização junto às mulheres em todo o território moçambicano.

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gênero e do corpo feminino como algo obrigatoriamente atrelado a um comportamento submisso e
fruto de opressão, pareceu insuficiente para analisar as nossas experiências de pesquisa em
Moçambique.
Desta forma, pretendemos, neste trabalho, discutir a respeito das controvérsias que
envolvem as práticas corporais femininas e o lobolo em Moçambique, tendo como principal base a
abordagem das autoras Brigitte Bagnol, Esmeralda Mariano e Signe Arnfred. Acreditamos que o
olhar dessas autoras sobre questões ditas “tradicionais” evocam uma perspectiva interseccional
(mesmo que não se trate de um projeto acadêmico explícito de teoria feminista interseccional 5), na
medida em que nos permitem repensar questões importantes das teorias feministas “clássicas”, ou
“ocidentais” - tais como a sexualidade ou o matrimônio - a partir das experiências, práticas e visões
de mundo em outros contextos, como ocorre em Moçambique.

A controvérsia do lobolo
O desenvolvimento da pesquisa sobre as reivindicações de direitos e a agenda política das
viúvas em Moçambique possibilitou o trânsito por diferentes organizações da sociedade civil, tais
como a Avimas (Associação de Viúvas e Mães Solteiras), a Muleide (Associação Mulher, Lei e
Desenvolvimento), a WLSA ( Mulheres e Lei na África Austral) e o Fórum Mulher (Organização
de Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento). Nesses espaços, o lololo (ao lado da
poligamia, dos casamentos prematuros e dos ritos de iniciação e purificação6) era um tema muito
discutido entre as ativistas e advogadas, além de aparecer na maior parte das cartilhas produzidas
por algumas dessas organizações. Aos poucos, foi possível perceber que o lobolo era sempre
descrito como um preço de negociação das mulheres, uma prática que reflete a desigualdade entre
os gêneros e reforça a inferioridade das mulheres, consistindo assim em uma grave violação dos
Direitos Humanos.
Em contrapartida, como mencionado na introdução, algumas viúvas entrevistadas por mim,
falavam com entusiasmo sobre o fato de serem “loboladas” e faziam questão de contar o processo

5
A teoria feminista interseccional surgiu nos anos 1980 a partir da emergência do feminismo negro, que questionava a
categoria “mulher” enquanto conceito universal. A norte-americana Kimberlé Crenshaw foi quem cunhou o termo
feminino interseccional, o qual diz respeito a uma abordagem que pauta a multiplicidade das diferenciações e articula a
categoria de gênero a outros marcadores sociais, tais como raça, etnia, nacionalidade e classe. (PISCITELLI, 2008)
6
O rito de purificação da viúva (kutchinga/ kupitakufa) é uma prática realizada em diferentes regiões do país e prevê a
relação sexual entre a viúva e um cunhado. Atualmente, esse rito é apontado como uma das práticas responsáveis pela
propagação da epidemia do HIV/AIDS (TEMBE, 2003) e tem sido discutido entre os médicos tradicionais, na tentativa
de eliminar a relação sexual do rito, para que se faça apenas uma purificação simbólica, através do banho de ervas
(BRITO, 2016, p.70).

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de realização da cerimônia7. Por outro lado, não investiguei a fundo se, de algum modo, as viúvas
associam os seus problemas de divisão de bens e herança ao pagamento do lobolo, concordando
assim com a perspectiva das ONGs, mas ainda que o façam, não deixam de afirmar a importância
de sua realização8. Então, de um lado eu identifiquei a visão das organizações da sociedade civil e,
do outro lado, a colocação das viúvas. Nesse contexto, comecei a perceber que essa perspectiva que
compreende o lobolo como “preço da noiva”, apesar de já ter sido reconsiderada na literatura
antropológica, ainda estava muito presente no discurso político das ONG’s que atuam no país.
Assim, aos poucos a controvérsia acerca do lobolo começou a ganhar forma9. Para discutir essa
controvérsia, mobilizo a seguir as proposições de Paulo Granjo (2004) e Brigitte Bagnol (2005)
autores que trazem contribuições diferenciadas para o exercício reflexivo proposto aqui10.
“O lobolo do meu amigo Jaime” (2004) de Paulo Granjo, foi um dos primeiros trabalhos
contemporâneos a apresentar uma descrição etnográfica de uma cerimônia do lobolo. O antropólogo
procurou entender o lobolo de seu amigo Jaime a partir do que Max Gluckman chamou de situações
sociais, afirmando que muitos acontecimentos, tensões e contradições perpassariam a cerimônia. O
ponto interessante da abordagem do autor é que ele demonstra como o lobolo contemporâneo pode
ser realizado por motivações diferentes e desvinculadas do valor monetário em si, relacionadas aos
problemas conjugais e ao universo espiritual. O próprio lobolo de Jaime e de sua companheira Elza
foi motivado não pelas obrigações morais dessa instituição, mas desdobrou-se devido a problemas
conjugais, associados a algumas pendências com os espíritos dos antepassados. Além desse aspecto,
o antropólogo chama atenção para o fato do valor despendido na cerimônia ter sido levantado
juntamente entre Elza e Jaime, o que demonstra mais uma possibilidade nova da
contemporaneidade, especialmente para famílias de classe média. Granjo fala ainda da possibilidade
de fazer o pagamento do lobolo “a prestações”, no caso daquelas famílias desfavorecidas
economicamente.

7
Como este artigo é fruto de duas pesquisas diferentes, cada uma com trabalho de campo específico, o narrador do texto
ora aparecerá no plural, ora no singular.
8
As dificuldades das viúvas no que tange à divisão bens é uma questão complexa e que ultrapassa as dificuldades nas
instâncias judiciais em si. Na verdade, antes mesmo de se instaurar um processo legal de divisão de bens, muitas viúvas
relatam que foram forçadas pelos parentes do marido a sair de suas casas sem levar nenhum pertence. Algumas viúvas
que entrevistei, inclusive, relataram situações como essas. O debate sobre essas questões, entretanto, deve ser pensado
não só a partir dos limites e alcances da legislação sobre herança e sucessão, mas, principalmente, sobre as
especificidades das alianças familiares existentes no Sul de Moçambique.
9
É importante destacar que o debate sobre esta prática não está restrito apenas ao ambiente das ONGs ou ao âmbito
estatal, quando a legislação e as políticas públicas estão em pauta. Jacimara Souza Santana (2009) em seu trabalho
sobre a discussão do lobolo na revista Tempo, mostra, por exemplo, que no pós-independência, o lobolo foi a prática
cultural mais debatida na revista
10
Além de Granjo (2004) e Bagnol (2005), poderia mencionar, por exemplo, os trabalhos de Omar Thomaz (2012) e
Aina Azevedo(2015).

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Além das novas motivações, Granjo discute também a influência da realização do lobolo nas
relações cotidianas. O lobolo não só interferiria nas relações sociais, definindo as pertenças
linhageiras e as posições de cada membro do grupo, mas também provocaria uma mudança no
tratamento social dos noivos a partir da realização dessa cerimônia. De um lado, o antropólogo
observa a afirmação do masculino, mostrando que o homem que realiza o lobolo passa a ser um
exemplo a ser seguido na comunidade. De outro lado, a mulheres “loboladas” são invejadas pelas
demais e passam a ser mais respeitadas, na medida em que são encaradas como mulheres
“completas”, adultas.. Tendo em vista as conversas e entrevistas com viúvas nas ONG’s em
Maputo, foi possível perceber, assim como o autor defende, que de certo modo a realização do
lobolo ainda manifesta-se como algo a ser valorizado. Neste sentido, a análise de Granjo nos mostra
que essa prática, além de reconfigurar a vida social e religiosa e afirmar identidades, pode ser
acionada para reconfigurar a vida conjugal, indo muito além da “dominação masculina” relacionada
ao pagamento monetário.
A antropóloga Brigitte Bagnol, em sua tese de doutorado, intitulada “Gender, self, multiple
identities, violence, and magical interpretations in lovolo practices in Southern Mozambique”
(2005), procura pensar o lobolo considerando o contexto sócio-político de Moçambique, levando
em consideração as transformações pelas quais essa prática passou ao longo do tempo. O mais
interessante é que a autora afirma que, no começo dos anos 1990 logo após o fim da guerra entre a
RENAMO e a FRELIMO, a sua primeira tentativa de estudar o lobolo no sul de Moçambique fazia
parte de um estudo sobre prostituição e estava ancorada em uma perspectiva de Direitos Humanos,
que procurava interpretar essa prática enquanto uma forma de exploração sexual da mulher e de
casamento forçado/prematuro. No entanto, já no final dos anos 1990, a autora começou a refletir
sobre as limitações de analisar o lobolo apenas com base nessa perspectiva e iniciou uma
empreitada para investigar melhor o conceito dessa instituição social, acompanhando
etnograficamente inúmeras cerimônias na região Sul de Moçambique.
Aos poucos, ela foi percebendo que o lobolo ia muito além da relação homem-mulher,
estando associado também a crenças religiosas, à relação com os espíritos ancestrais (assim como
discutido por Paulo Granjo) e, principalmente, a uma forma de construção de identidades,
especialmente em um contexto marcado por tanta perseguição a essa prática. Dessa maneira, na
medida em que Bagnol acompanhava as cerimônias do lobolo, ela percebia que o estudo dessa
prática estava sendo extremamente importante para seus interlocutores que, através da pesquisa,

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encontraram um meio para se libertar de alguma forma da opressão sofrida no período pós-
independência. (BAGNOL, 2005, p.29).
Bagnol afirma ainda que, para uma melhor compreensão acerca do lobolo, seria preciso
entender que a identidade dos indivíduos passa pelas diferenças de gênero, classe, raça, etnia e
idade, sendo essa prática capaz de revelar a relação entre essas múltiplas faces da identidade dos
sujeitos (BAGNOL, 2005. p. 6). Portanto, o lobolo tem efeitos não só sobre os estatutos, os direitos,
o acesso aos recursos, mas também sobre a construção e incorporação de identidades. Com base
nessa perspectiva, a antropóloga demonstra que existe violência na realização das cerimônias do
lobolo, mas que não é exclusivamente uma violência de gênero. A violência existe também nas
esferas espiritual e geracional (BAGNOL, 2005, p.33). Dessa forma, Bagnol tenta compreender o
lobolo como a maneira pela qual as mulheres constroem suas identidades e afirmam sua agência na
sociedade moçambicana contemporânea, o que é demonstrado, principalmente, pelo fato de suas
interlocutoras, independente de classe, nível educacional ou de estar casando com um homem
moçambicano ou estrangeiro, fazerem questão de realizar a cerimônia. (BAGNOL, 2005, p. 19)
Nesse sentido, com base nos trabalhos de Paulo Granjo (2004) e Brigitte Bagnol (2005), o
intuito desta sessão foi mostrar, ainda que de forma breve, como pode ser limitante uma leitura do
lobolo apenas como uma forma de opressão às mulheres. As proposições dos dois autores nos
mostram que a realização do lobolo faz parte de um processo complexo, que vai além do dinheiro,
estando relacionado às relações sociais e espirituais e à construção de identidade. Desta forma,
precisamos levar mais em conta o que as mulheres estão dizendo sobre essa prática. Se para elas a
realização do lobolo tem uma importância excepcional, mesmo que de um lado isto represente certa
dependência econômica (dificultando o divórcio e aquisição de herança), é preciso pensar em
soluções que pautem muito mais a independência financeira delas e o maior acesso à justiça (com a
aplicação dos princípios da Lei da Família11), do que o fim do lobolo em si.

A controvérsia dos ritos de iniciação femininos

11
Falo de acesso à justiça, pensando principalmente na Lei da Família (Lei nº10/2004) , que regulamenta a divisão de
bens e o divórcio (mesmo em caso de uniões não registradas, como o lobolo ou casamento religioso).

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Se na região sul de Moçambique o lobolo é um tema de controvérsias, na região norte o
mesmo ocorre com os ritos de iniciação. É necessário pontuar que as macro-diferenças entre o sul e
o norte do país passam não somente por questões econômicas e políticas (o norte sendo mais
desfavorecido), mas também por questões sociais/culturais como a patrilinearidade no sul e a
matrilinearidade no norte, e a existência ou não de práticas como o lobolo ou ritos de iniciação.
Os ritos de iniciação, sobretudo os femininos, são alvos de crítica por parte da mídia
moçambicana e de organizações internacionais como a UNICEF ou a WLSA 12. O relatório “A
situação das crianças em Moçambique” (2014) da UNICEF aponta que
“Estes importantes acontecimentos são marcos de vida que representam a passagem
para a vida adulta, endossando como uma norma social a ideia que, uma vez
passadas pela iniciação logo no começo da puberdade, a rapariga já está pronta para
o casamento e para a procriação (Matsinhe et al., 2010). Isto pode contribuir para a
prática generalizada do casamento prematuro, a que se segue a gravidez na
adolescência com todos os riscos associados, como o baixo peso à nascença, a
obstrução fetal e a mortalidade materna e neonatal. Além disso, os ritos muitas vezes
inculcam nas raparigas uma noção de submissão ao homem.” (UNICEF, 2014, p.56).
De forma semelhante, o relatório produzido pela ONG WLSA Moçambique, Os Ritos de
iniciação no contexto actual: ajustamentos, rupturas e confrontos. Construindo identidades de
gênero (2013), de autoria de Conceição Osório e Ernesto Macuacua, partindo da perspectiva dos
Direitos Humanos e da igualdade de gênero, descreve a associação entre os ritos de iniciação, os
casamentos prematuros, a desigualdade de gênero, e, sobretudo, a dominação masculina. Para eles,
embora “o grupo etnolinguístico makhuwa” seja matrilinear, sua orientação é patriarcal e isso é
perceptível pelos ritos de iniciação masculinos e femininos (Osório e Macuacua, 2013, p.181)13.

12
Ver, por exemplo, a reportagem “Ritos de iniciação - o lado escuro” (2014) de Gilberto Macuacua, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=jc3qPP5dpuU.
13
“Relativamente à vida sexual constata-se que as cerimónias rituais das jovens concentram-se na aprendizagem de
como “tratar” sexualmente os parceiros, porque são eles a garantia da sobrevivência cultural da comunidade em termos
de reprodução das hierarquias e da conservação da coesão comunitária. Neste sentido, as matronas têm como função
assegurar que o mandato masculino para a dominação se cumpra. (...). Isto não significa que, devido mais à
modernidade do que ao conhecimento tradicional sobre o corpo, aprendido nos ritos, as jovens não possam resistir para
desenvolver dispositivos que, agradando o parceiro, lhes confere algum poder. Mas esse poder é limitado e constrangido
pelos atributos e pelos dispositivos que disciplinam o corpo. Isto significa que o poder das mulheres é um poder
necessário para a construção das relações de dominação. As mulheres têm o poder dos que não têm poder,
conformando-se, resistindo ou arranjando formas de contra poder, que mais das vezes têm como premissa a
naturalização e reafirmação do poder masculino, nas quais se inserem algumas práticas ensinadas durante os ritos.”
(Osório e Macuácua, 2013).Versão resumida do relatório, disponível no site http://www.wlsa.org.mz/ritos-de-iniciacao-
resultados-da-pesquisa/ , último acesso 13/02/2017.

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Quando estive em trabalho de campo em Nampula - província do grupo étnico makhuwa -
em 2015, pude perceber como o “combate aos casamentos prematuros” era um tema recorrente na
mídia, na escola e na agenda política do país, e como isso incidia diretamente em uma
problematização ou até acusação dos ritos de iniciação como práticas “atrasadas” que impunham
uma barreira para o desenvolvimento da criança e da mulher moçambicana. Isso me intrigou
porque, ao mesmo tempo, para as pessoas com quem eu conversava todo dia, - sobretudo mulheres
de 30 a 50 anos, vizinhas e amigas no bairro de Natikiri/ Murrapaniua, onde eu residia e fazia
pesquisa - os ritos de iniciação eram um momento de aprendizagem necessário para que a mulher se
tornasse mulher, ou uma “mulher completa”. Elas inclusive queriam me ensinar e me mostrar
algumas das práticas corporais que fazem parte da construção do corpo feminino ali - o
alongamento dos pequenos lábios vaginais (ithuna), sobretudo, mas também o uso de miçangas nos
quadris, por exemplo - e queriam que eu também ensinasse outras mulheres quando regressasse à
minha terra para que “as brasileiras” também pudessem saber “agradar os homens”. Trata-se de
conhecimentos sobre o próprio corpo e sobre a sexualidade que são valorizados tanto pelas
mulheres quanto pelos homens naquele contexto.
A questão levantada por Osorio e Macuacua, na esteira dos direitos humanos e igualdade de
gênero, é que essa expertise sexual das mulheres seria apenas mais um aspecto da dominação
masculina. Essa hipótese me parecia destoar muito do tom e da maneira como minhas interlocutoras
abordavam esses assuntos, como uma esfera de poder ou de saber-poder feminino, e a ideia de uma
falsa consciência, de um falso empoderamento proposta pelos autores não me satisfazia.
Em contraposição a essa abordagem, encontramos o recente trabalho de Signe Arnfred
“Female Sexuality as Capacity and Power? Reconceptualizing Sexualities in Africa” (2015). A
autora inicia o artigo observando que a sexualidade é um assunto muito pouco tratado dentro das
teorias feministas africanas, ao contrário dos estudos feministas ocidentais, nos quais a sexualidade
aparece como um tema central. Arnfred propõe que, enquanto no Ocidente a sexualidade constituiu
uma esfera de subjugação e objetificação feminina, na África a sexualidade foi – e ainda é em certa
medida – uma esfera de capacidade e poder femininos. Para embasar seu argumento, ela discute
outras duas obras recentes de feministas africanas14 e utiliza o próprio material de campo de sua
experiência em Moçambique entre 1981-1984, quando trabalhava para a OMM, e como
pesquisadora, entre 1998-2005.

O ensaio de Nkiru Nzegwu “‘Osunality’ (or African Eroticism)” (2011) e o livro de Bibi Bakare-Yusuf’s “Thinking
14

with Pleasure: Gender, Sexuality and Agency” (2013).

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Nos anos 80, a Frelimo fazia uma campanha contra os ritos de iniciação (entre outras
práticas “tradicionais” consideradas como opressivas e degradantes para as mulheres), enquanto as
mulheres do norte de Moçambique, sobretudo em contextos rurais, tentavam defender a manutenção
dos rituais e atentar para sua importância social naqueles grupos15. Os grupos étnicos do norte de
Moçambique são matrilineares, ao contrário dos grupos do sul (patrilineares). Sendo as decisões e
as visões prevalecentes na OMM e na Frelimo tomadas por mulheres e homens provenientes do sul,
muitas vezes não se atentava para as especificidades dos sentidos e práticas dos grupos do norte.
Arnfred argumenta, por exemplo, que os rituais são sim opressivos e por vezes violentos para as
meninas que estão se iniciando, mas que se trata mais de uma opressão inter-geracional, das
mulheres mais velhas sobre as meninas, do que uma opressão patriarcal.
Após a pesquisa que realizou entre as mulheres do grupo étnico macua na província de
Nampula, entre 1998-2005, Arnfred aponta que durante os ritos de iniciação, as meninas são
educadas como especialistas sexuais, instruídas sobre como seduzir e ter relações prazerosas com
homens que elas precisam para engravidar. A preparação sexual do corpo feminino passa pelo
alongamento dos pequenos lábios (que se inicia antes da puberdade), as tatuagens e escarificações, e
o uso de missangas nos quadris. Esses três elementos, bem como os movimentos/danças sexuais ou
de preparação para o ato sexual, constituem o erotismo feminino. Segundo Arnfred, todos esses
elementos poderiam ser interpretados como subordinação feminina em um contexto patriarcal, mas
para ela esse não parece ser o caso: as mulheres com quem a autora realizou a pesquisa tinham
orgulho de sua maestria sexual e pareciam apreciar os encontros sexuais tanto quanto os homens
aos quais elas encantavam.
“In this social arrangement women emerged as sexual agents, men as the ones
being seduced. Older women were the seasoned experts, particularly those whose
business it was to act as experts of female initiation; these women would often also
be diviners, with special gifts and capacities in relation to the world beyond. In
Makhuwa contexts it is not just the living who belong to lineages, but also the dead,
the ancestors, and the yet unborn, and women are seen as central in reaching out to
these sectors.” (Arnfred, 2015, p.155-156). (grifo meu)

15
Esta não é a primeira ocasião na qual os ritos de iniciação se tornam objeto de intervenção por serem considerados
“práticas indesejadas” por parte do Estado. Osmundo Pinho, em “O ‘Destino das Mulheres e de sua Carne’: regulação
de gênero e o Estado em Moçambique” (2015) discute a contínua regulação e produção da mulher, do seu corpo e das
relações de gênero e parentesco, analisando tanto documentos coloniais da “Direção de Serviços e Negócios Indígenas”
(1941-1946) que regulava a “mulher indígena”, quanto documentos oficiais da Frelimo do “Boletim do Ministério da
Justiça”, entre 1980 e 1987.

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Todas essas práticas corporais convergem para o objetivo de possibilitar a gravidez das
mulheres – pois seduzir o homem é trazê-lo para as linhagens de parentesco e garantir a continuação
da linhagem pela reprodução - mas o fator do prazer também está presente. A autora propõe, então,
pensar nessas práticas como “capacitações sexuais” (sexual capacity building).
Há diversos pontos importantes nas sugestões e reflexões de Arnfred. Diferentemente da
interpretação de Osorio e Macuacua, a autora não entende que os homens sejam responsáveis pela
“sobrevivência cultural da comunidade” e pela “manutenção da coesão comunitária” como eles
apontam. Ela sugere que são as mulheres que desempenham um papel central na conexão entre
vivos, mortos, os “ainda não-nascidos” e ancestrais, que também compõem as linhagens. Nesta
leitura, os homens aparecem como sujeitos “capturados” pelas mulheres através de seus
conhecimentos sexuais, com o objetivo da reprodução e continuação da linhagem matrilinear. As
mulheres são agentes, capacitadas através da sexualidade, nessa dinâmica de sedução e reprodução.
O que me parece mais interessante na proposta de Arnfred é que os ritos de iniciação e os
conhecimentos sexuais e corporais atrelados a eles conseguem ser pensados de uma forma que não
deslegitima o próprio discurso das mulheres como um “falso poder”, e parece fazer mais sentido
com a lógica da matrilinearidade própria deste contexto. Dessa forma, acredito que a perspectiva do
feminismo interseccional, ou de um feminismo que busque um ponto de vista êmico sobre as
questões que envolvem atritos entre “tradições locais” e o “Estado moderno” sejam mais
interessantes do que as perspectivas de um feminismo universalista baseado nos direitos humanos.

Reflexões finais
Esperamos com estas breves reflexões sobre o lobolo e os ritos de iniciação femininos ter
contribuído para complexificar um debate tão atual quanto controverso no contexto moçambicano.
Tentamos, ao levantar uma bibliografia que privilegia a etnografia e uma tentativa de apreensão de
um ponto de vista êmico sobre essas práticas, entender outras formas possíveis de atuação do
Estado e de ONGs, por um lado. Por outro lado, percebemos como estes saberes situados podem
contribuir para a construção de um conhecimento antropológico, e também de uma teoria feminista
que consiga incorporar outras práticas e visões sobre a sexualidade ou o casamento, por exemplo.
Neste sentido, apostamos no olhar interseccional em detrimento do feminismo “clássico”
universalista, que parece ser a principal orientação teórico-política dos agentes que tomam essas
práticas como objeto de intervenção.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
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Reflecting on the lobolo and female initiation rites in mozambique from an intersectional
perspective
Abstract: the object of this article is the result of the authors’ joint reflection based on their
research experiences carried out in Maputo (2014) and Nampula (2015) in Mozambique, for five
months each. The interlocution with women from the south and north of the country, as well as with
some women's associations, allowed us to observe the relevance and reinventions of "traditional"
social practices such as the lobolo (in the south) and the initiation rites (and the body techniques
with them associated, such as tattoos and stretching of the labia minora) in the north of the country.
These practices have been a troublesome historical object since the Christian missionaries, passing
through the Portuguese Colonial State, until the post-independence Socialist State and its
modernizing and rationalizing project. At present, both the initiation rites and the lobolo are still
objects of intervention by the Mozambican State and NGOs operating in the region due to the
problem of early marriage and school drop-out among girls, as well as the violence perpetrated in
the practice of such rites. In this sense, our goal in this work is to discuss the controversies
involving female corporal practices and the lobolo in Mozambique, based on the perspective of
intersectional feminism and resorting to authors [Granjo (2004); Bagnol (2005); Arnfred (2015)]
that point to an emic point of view on these questions, in order to complexify their understandings.
Keywords:Mozambique. Women. Lobolo. Initiation rites. Intersectionality

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