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Narciso Mahumana. Departamento de Antropologia.

Instituto Superior de Estudos de Desenvolvimento


Local (ISEDEL). Maputo – Manhiça – Maluana

Texto de Apoio da Cadeira de Antropologia Médica1

Notas sobre a Modernidade e Tradição

A biomedicina é uma cultura médica herdada dos países “ocidentais” e ja endógena em muitos países
do Mundo. Esta tradição médica foi globalizada e encontrou diferentes tradições médicas autóctones
em muitos dos actuais países em desenvolvimento, incluindo Moçambique. Estas tradições médicas
são geralmente designadas como medicina tradicional, uma vez que os seus paradigmas e práticas –
tais como as concepções do corpo, saúde e doênça, as representações de saúde que estabelecem
uma relação entre os vivos e os ancestrais bem como a comunicação com agentes espirituais – são
autóctones e parte da tradição local2. Ao longo do tempo, um significativo conjunto de estudos
considerara estas práticas médicas e paradigmas de forma preconceituosa. Estudos clássicos olhavam
para as formas locais de vida ou para as culturas locais como se fossem primitivas ou estáticas (vide
Radcliffe-Brown 1952; Buhrmann 1984). Por exemplo, no seu estudo sobre o povo Xhosa, Buhrmann
(1984) considera este povo como sendo intuitivo e irracional, em contraste com os povos ocidentais,
que ele considera metódicos e racionais.

Durante os anos 60, em Moçambique, esta linha de pensamento considerava as práticas sociais
“tradicionais” como retrógradas e selvagens, em comparação com as oriundas da Europa e outros
países industrializados (vide Rita-Ferreira 1960; 1966; 1967/8). Rita-Ferreira (1967/68) faz a dicotomia
entre culturas rurais e urbanas, afirmando que os rituais moçambicanos e o conhecimento dos
espíritos ancestrais são primitivos e são um fenómeno campesino dissociado da vida urbana 3. Essa é
a razão, acrescenta este autor à sua argumentação, por que as pessoas modernas da capital de
Moçambique, Maputo, têm de se deslocar ao campo quando têm necessidade de praticar esses
rituais. Alguns estudos e abordagens rejeitam esta oposição binária entre modernidade e tradição,
entre urbano e rural (vide Honwana 2002; West 2005), e demonstram que nas cidades, as práticas
tradicionais continuam a ser levadas a cabo, apesar de terem sido perseguidas pelo colonialismo e
condenadas pela ideologia materialista do Estado durante o regime socialista. Outras obras

1 Ano lectivo 2014


2 Aqui entende-se por tradição os padrões socioculturais de conhecimento, significados e práticas de
comportamento transmitidos de geração para geração através do processo de socialização (Honwana 2002;
Matusse 1998).
3Os centros urbanos, arquitectados pelos processos de urbanização, são vistos pelas teorias da modernização
e as cadeias a elas associadas como sendo um dos traços característicos fulcrais da modernidade (Gardner &
Lewis 1996).

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Narciso Mahumana. Departamento de Antropologia. Instituto Superior de Estudos de Desenvolvimento
Local (ISEDEL). Maputo – Manhiça – Maluana
argumentam que “as tradições nunca foram estáticas, mas sim [sempre] dinâmicas e adaptáveis”4
(vide Good 1994; Mamdani 1996; Ranger 1983). Assim, dificilmente uma tradição pode ser a imitação
exacta das práticas sociais anteriores.

Fazer a dicotomia entre tradição e modernidade pode ser considerado uma atitude de etnocentrismo,
uma vez que vê as mudanças sociais como um processo evolutivo, o que significa que todas as
sociedades e toda a história humana têm de seguir a mesma direcção que é seguida pelas do
Ocidente. É uma postura que considera que as culturas ocidentais progrediram mais do que, por
exemplo, as africanas, em termos de desenvolvimento humano. A falácia binária entre moderno e
tradicional vê as mudanças socioculturais como sendo unidireccionais, e o Ocidente como o ponto de
partida de todas as sociedades para a mudança.

Os debates contemporâneos vêem a modernidade como sendo algo que está em todos os cantos do
mundo; como sendo algo sem padrões fixos de significados sociais partilhados por todos (Gardner &
Lewis 1996). Isto significa que todas as culturas são modernas e têm elementos de tradição. Assim, o
que é chamado medicina tradicional é dinâmico e satisfaz os interesses contemporâneos das
comunidades. Mesmo o Estado e seus dirigentes viram-se para estas práticas e para os líderes
tradicionais para obter a legitimidade local e representar o Estado. Por exemplo, quando se constrói
uma escola ou uma ponte, ou está a ser realizado um evento político, há sempre lugar para uma
cerimónia tradicional com a presença tanto dos líderes “tradicionais” como dos líderes “oficiais”, com a
finalidade de pedir a bênção dos espíritos ancestrais 5 (vide Notícias 2005. 12. 02). Embora com
algumas nuances problemáticas, Comaroff & Comaroff (1999) dão conta de narrativas sobre cultos
espirituais e mão-de-obra fantasma na África do Sul dos nossos dias, que vêem como uma
consequência da globalização e das políticas neo-liberais do pós-Apartheid...

De acordo com Rofel (1999), a modernidade é um padrão heterogéneo de pretensões, conhecimento e


aspirações usado pelas pessoas para se colocarem na sociedade em relação às outras. L. Rofel
sugere que as pessoas do Ocidente usam símbolos da sua modernidade para construir a sua
identidade e reivindicar a sua diferença relativamente às sociedades não ocidentais.

As discussões e as reivindicações sobre modernidade e tradição estão bem associadas a questões de


cultura e poder. Melhor, as culturas de qualquer país são geridas por instituições e agências, e esta
gestão reflecte as relações de poder prevalecentes (Fox 1990). As pessoas, agências e instituições
tendem a dominar-se umas às outras. A biomedicina não é só um símbolo da modernidade, ela é

4“Traditions were never static but [always] dynamic and adaptable”.


5 Vide Comaroff and Comaroff 1993, para mais informação sobre práticas rituais em África.

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também um idioma usado para a expressar e um conjunto de expectativas culturais para pacientes e
provedores de cuidados de saúde. Sendo os médicos da biomedicina agentes, símbolos e produtos da
modernidade ocidental não é surpreendente que vejam a medicina autóctone como antagónica e a
excluam dos processos de planificação de saúde pública. Neste caso, o espaço social e político da
saúde pública é disputado pelas tradições médicas existentes e (ao nível do Estado) é dominado pela
biomedicina.

BIBLIOGRAFIA

1. Comaroff, J. & Comaroff, J. 1999. Occult Economies and the Economy of Abstraction: Notes from
the South African Postcolony. American Ethnology. 26 (2).

2. Gardner, C & Lewis, D. 1996. Anthropology, Development and the Post-modern Challenge.
London/Chicago: Pluto Press.

3. Honwana, A. 2002. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessões de Espíritos e Integração


Social Pós-guerra no Sul de Moçambique. Maputo: PROMÉDIA.

4. Mamdani, M. 1996. Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism.
Princeton: Princeton University Press.

5. Matusse, G. 1998. A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia


Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Cidade de Maputo: Livraria Universitária da UEM.

6. Rofel, L. 1999. Other modernities: gendered yearnings in China after socialism. California
University Press: Berkeley.

7. West, H. 2005. Kupilikula: Governance and the invisible Realm in Mozambique. Chicago: The
University of Chicago Press.

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