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Revista de Legislação

ede
Jurisprudência
Secção de doutrina

Revisitação de algumas ideias-mestras da teoria das proibições de prova em processo penal


(também à luz da jurisprudência constitucional portuguesa)
jorge de Figueiredo Dirt:

Colaboração premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo
à cooperação com a operação Lava Jato
]. j. Game: Canotillm |Nuna Brandão
Simulação e terceiros de boa fé (breve apontamento)
António Pinto Monteiro

Situação e desafios da protecção dos direitos fundamentais na União Europeia


Rui Manuel Maura Rumor

Secção de jurisprudência

Um, Dó, Li, Tá? De quantos/de que gerentes se faz a vinculação de uma sociedade por quotas?
Alexandre de Soveral Mnrtim

Ano 146.0
N..) 4000

2016
RvasrA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCIA
N.u 4000
16

2. No acórdão 198/2004 de que foi re- princípios cons-


esra via à aplicação de outros
lator Rui de Moura Ramos, lançando mão de titutivos fundamentais do processo penal.
casos em que a jurisprudência americana tem Nesta medida, o fruto da árvore envenenada
admitido exceções ou limitações à doutrina ou o efeito à distância sofrem de limitações
do fruto da árvore envenenada, o Tribunal que, em certos casos concretos, e' verdade, aca-
Constitucional salientou que se trata de uma barão por pôr em questão a própria proibição
doutrina que abre “espaço à ponderação das de prova. Mas seja como for, também a dou—
situações concretas”. Tal ponderação de inte— crina do efeito à distância, ml como a da prova
resses jusrificaré que, “em determinadas cir- proibida, não haverá de furtar-se — dentro
cunstâncias, se projete a invalidade de uma de limites derivados de posição expressa con-
prova proibida, para além de nela própria, trária do legislador ou, sobretudo, de violação
noutras provas e, em circunstâncias distintas, da essencial dignidade humana — ao princí-
se recuseta] projeçãow". O Tribunal Consti- pio básico da ponderação dos valores confli—
tucional concluiu, no caso, que "o entendi- ruanres e eventualmente da otimização do
mento do arrigo 122°, n.º 1 do Código de conflito de valoraçõcs.
Processo Penal, (..,) Segundo o qual este abre
a possibilidade de ponderação do sentido das JORGE DE. FIGUEIREDO DIAS
provas subsequentes, não declarando a invali-
dade destas, quando estiverem em causa de—
clarações de natureza confessória, mostra—se
constitucionalmeme conForme'ªº'ª). Também
aqui parece-me de saudar este entendi— Colaboração premiada e auxílio
mento“) no sentido de que a doutrina do
fruto da árvore envenenada não tem de con- judiciário em matéria penal:
duzir necessariamente (& sempre) à invalida- a ordem pública como obstáculo
ção de todas as provas posteriores à prova ile—
galmente logmda.
à cooperação com a operação
Lava Jato“)
3.Conclusivamente, devo pois afirmar
que apergunta sobre se a proibição de prova 1. A Procuradoria—Geral da República re-
consrirui ou não o fruto da árvore envene- cebeu, em 2015, um pedido de cooperação
nada, se possui ou não um efeito à distância, judiciária internacional apresentado por auto—
não deve ser respondida com um “sim” ou um ridades da República Federativa do Brasil, no
“não" rotundos. Pode dizer-se que sim, para âmbito da operação Lava Jato, para prestação
deste modo se dar a entender que, no caso, a de auxílio judiciário em matéria penalm.
violação da proibição possui um efeito que É por demais sabido que os múltiplos pro—
em princípio persííte perante as provas alcan— cessos penais abertos no contexto da operação
çadas por seu único intermédio. Mas também Lavajato — promovida pelo Ministério Pú-
neste enquadramento não deve dizer-se que o blico Federal (MPF) brasileiro e contando
efeito à diSEância seja absoluto e se furte por com a intervenção de várias instâncias judi-
ciais, em especial a 13.3 Vara Federal Crimi—

(һ Ponto 2.2.4.


(ª"-']
Ponto 2.3.1.
“‘9 Em anotação crítica n est: acórdão do Tribunal l" O presente estudo contou com a colaboração de
Ana Paula Gonzarri, doutoranda da Faculdade de Di-
Constitucional e discordando da conclusão a que che-
gou, Helena MQRÃO, «Efêito-à-diszânrin das proibições reito da Universidade de Coimbra..
(" Cfr. o comunicado do Gabinete de Imprensa da
de prova e declarações confessórias —— o acórdão n.D
198/2004 do Tribunal Constitutional e o argumento PGR de 21—07-2015, in: www.ministeriopublico.pt/si-
“the car is our of the bag"», RPCC 22 (2012). tes/dcfault/files/documcnros/de/esclarccimenro
p. 689 ss. _lava_jaw_e_pr.pdf.
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nal de Curitiba e o Supremo Tribunal Fede- e à própria Constituição Federal brasileira.


ral (STF) — têm sido insmurados e Tendo a operação Lava Jaro sido edificada es—
desenvolvidos fundamentalmente mediante rc- sencialmente a partir desses acordos, os vicios
curso a um especial meio de obtenção de que os afectam não poderão deixar de ser ti-
prova do direito processual penal brasileiro, o dos em coma na avaliação da admissibilidade
instituto da Colaboração Premiada, previsto e das prestações de auxílio judiciário que ao Es-
regulado pela Lei n..) 12.850, de 2 de Agosto [ado português sejam requeridas pelo Estado
de 2013. brasiieiro no seu âmbito, mormente à luz do
Constitui ainda facto público e notório princípio da ordem pública.
que, ao menos inicialmente, as pedras basila- Ressalve-se que a nossa apreciação crítica
res da investigação Lava Jam foram os acor—
não versará sobre a bondade constitucional da
dos de colaboração premiada firmados entre
colaboração premiada instituída pela Lei bra-
o Ministério Público Federal, de um lado, e
sileira n.° 12.850/13 no quadro do sistema
Paulo Roberto Costa 6 Alberto Youssef, do
jurídico brasileiro ou sequer do português,
outro, no âmbito de várias acções penais da
mas tão-só, e muito mais singeiamente, sobre
operação Lava Jato em que os mesmos figu—
a compatibilidade dos referidos convem: acor-
ram como réusº). De facto, foi através da co—
dos de colaboração premiada com princípios
laboração probatória prestada por aqueles réus
estruturantes das ordens jurídico-constitucio-
Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, as-
nais do Brasil e de Portugal, atenta a relevân-
sente em acordos de colaboração premiada“),
cia da ordem pública como obstáculo à coo—
que o Ministério Público Federal alargou a
peração judicia'ria em matéria penal solicitada
amplitude da investigação, dirigindo—a a no—
ao Estado português.
vos factos e a novos sujeitos, fundamental-
mente na esfera da empresa brasileira Petro—
bras“). § 1. Lvmlímção do problema: a ofensa 21 or-
dem pública cama fimrlrzmento da rezªm/z
Neste estudo procuraremos evidenciar as
de auxílio
graves desconformidades do conteúdo desses
acordos de colaboração premiada em relação
2. De há muito que soa como consensual
a0 instrumento normativo brasileiro que re—
gula [a] institute, a já referida Lei n.° 12.850,
a necessidade da cooperação judiciária inter—
nacional para o processamento penal. Uma
necessidade que no contexto da internaciona-
lização do crime“) numa era de um mundo
(ª)
É o próprio MPF que, no seu xii: dedicado no globalizado se exasperou ao ponto da impres-
caso Lavajato, apresenta Alberto Youssef & Paulo Ro- cindibilidade. Não obstante, como e’ evidence,
berto Costa comu as (ªlgums centrais do esquema de
a sua materialização deve concretizar-se de
corrupção objecto da invesrigagio (http://lavajarotmpf.
mp.br/emenda—o—caso).
acordo com as regras e dentro dos limites es—
(ª)
O “Termo de Acordo de Colaboração Premiada” tabelecidos pelos instrumentos normativos,
de Paulo Roberto Costa encontra-se disponível art/int, in: nacionais e internacionais, que lhe são aplicá-
http:/ls.conjuncom.br/dl/acordo-delncno-premiada—paulo— veis.
-roberto.pdf. Poderá igualmente ser consultado anil”: o Os actos interestaduais de cooperação de—
“Termo de Colaboração Premiada” de Alberto Youssef:
vem conformar—se com as normas imperativas
http:/lpulitica.estadao.com.br/blogs/fausro-macedo/wp-
-con(ent/uploadslsites/41/2015/01/acordodcla%
de direito internacional público (ius fogem)“,
C3%A7%C3%A30youssef.pdf
(‘n
Cfi'.hIrp://1avajato.mpEmp.br/a[uacao-na—la—in-
(5)
s[anda/invesdgacao/hisrorico. O acordo de colabora— ANABELA MIRANDA RODRIGUES
IJosE Lurs Lo—
ção premiada firmado entre o MPF e Paulo Roberto PES Polítim Criminal Eurºpeia:
DA MOTA, Para 1mm
da Costa (27-084014) foi homologado pelo STF, por Quadra : [mrmmmmx jurídica: t/n Caapmzçãa ]ua'iri/í-
decisão do Ministro Teori Zavascki, cm 29-09-2014; ria em Matéria Perm! n0 Expayo da Uni㺠Europeia,
e o acordo celebrado entre o MPF 6 Alberto Youssef Coimbra Editora, 2002, p. 151
(24-09-2014) foi homologado pelo STF, também por “” Cfr. 0 art. SBP da Convenção de Viena sobre o
decisão do Ministro Teori Zavascki, em 19-12-2014. Direito dos Tratados assinada em 23 de Maio de 1969.
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nelas avulrando os direitos humanos”) como 3. Neste sentido, tanto na lei nacional
limites cooperação. Outro elemento rele-
à como em convenções e tratados que vinculam
vante a considerar em matéria de cooperação o Estado português em matéria de coopera—
são os tratados entre as nações. Instrumentos ção judiciária internacional deparamos com
que, em todo caso, devem estar em confor- plúrimas referências à ordem pública como
midade com as referidas regras de iu; (agem, obstáculo ao auxílio judiciário em matéria pe—
que, por incorporarem valores supremos do na]. Realidade normativa que, aliás, é igual-
ordenamento jurídico internacional, são ine— mente característica do ordenamento brasí—
gociáveísºª'. leiro.
Além de conforme ao direito internacio— Assim, 0 art. 18.º, n.º 21, all’nea 6), da
nal público, a cooperação deve ainda obser— Cºnvenção Ila: Nações Unidas contra (z Crimi-
var igualmente os ordenamentos jurídicos dos nalidade Organizada Damnation!!! (Convenção
Estados cooperantes. É nesta última vertente de Palermo/M) e o art. 46.0, n.° 21, alínea [7),
que encontramos o pzmtttzm mliem do pro- da Convenção das Nações Unidas contra a Car-
blema objecro da presente reflexão: a exigên- mpçãv (Cºnvenção de Mir/51(1)“) — de que Por—
cia de respeito pela ordem pública estadual tugal e Brasil são parte — autorizam os Esta-
que lhe é inerente como princípio rector da dos requeridos a recusar o auxílio judiciário
cooperação judiciária internacional estatal. quando considerem que a execução do pedido
Uma exigência que é há muito tida entre nós é susceptível de pôr em causa a sua ordem pú—
como imperativa”), determinando a inadmis- blica. Também é lícito aos Estados signatários
sibilidade dc aplicação de instrumentos jurí— da Convenção de Auxílio judiciária em Matt'-
dicos incompatíveis com os princípios funda- Penal ent-re or Emu/a: Membros da Camu—
rz'tz
mentais do direito nacional vigente“). Dela nidade das Paim de Língua Parmgmm, entre
decorrem, na realidade, limites à cooperação os quais se incluem Portugal e o Brasil“), re-
interestadual“), dc acordo com uma dúplice cusar o auxílio quando considerem "que o
teleologia. De uma banda, a ordem pública cumprimento do pedido ofende a sua segu-
cumpre uma função de defesa do Estado (de'— rança, a sua art/em pública ou outros princí-
feme de ['Ettzt): a soberania estadual não pode pios fundamentais” (arr. 3.0, n.° 1, e))“7’.
ser ferida, funcionando como barreira aos ac-
tos de cooperação”. De outra, procura acor-
rer à necessidade de protecção do visado (pra- (”1An. 18.» (Auxilio judiciário), n.º 21. b): “0
tection du delinqmmt), garantindo o respeito auxílio judiciária par/mi rer rmzmda: (...) b) Se 0 Es-
dos seus direitos &ndamentais“3). tado Partc requerido considerar que :1 execução do pc-
dido é susceptível dc pôr em causa a sua soberania, a
sua segurança, a ma ordem pública ou outros interesses
(7) essenciais". A Convenção, adoptada em 15-11-2000 e
Considerando os direitos fundamentais do ser
entrada em vigor em 29-09-2003, foi aprovada pela Re-
humano como uma das dimensões essenciais das nor-
solução da Assembleia da República n.” 32/2004, d:
mas de in: mgr)”,
RAFAEL CASADO RAIGÓN, Nam:
2/4, c entrou em vigor cm Portugal em 28—10-2007.
fuóre tl Ius
Cogens Innmmiorml, Servicio de Publica—
('” Art. 46 (Mutual legal assinante), n. 21, “Mu-
ciones de la Universidad dc Córdoba, 1999, p. 64. [2):
(a) mal legal arr/stance may be rgfitmfl &) [ft/Jt equated State
ANTONIO CASSFSE, Diritto Internazionale, 2ª ed.,
Party [amid/tr tlm: exemtínn aft/7e reqtmt is likely to prej—
11 Mulino, 2013, p. 215.
(º)
udice in yawn/gm}; recur/9; arder public ar athzr mm-
ANTONIO FERRER CORREIA, Dim‘ta Internacio-
tia/ íntzrem”. A Convenção, adoptada em 15—11—2000
nal Privada, Coimbra, 1950, p. 503.
eentrada em vigor em 31-10-2003, foi aprovada pela
Ҽ) SERGIO M. CARBONE / PAOLA
IVALDI, Lezíam' Resolução da AR n.º 47/2007, de 21/9.
di Diritto Internaziºnale Primaz, Ccdam, 2000, p. 57. (l5)
Segundo o Aviso n.u 181/2011, dc 10/08, a
"" R. KOERING-JOULIN, "Commcnrairc de la que-
Convenção encontra-se em vigor no Brasil desde 01-
stion IV. Structures et méthodcs dc la coopération in-
08-2009.
ternationale :( tégionale en mari‘crc pénale", Ram: 1n- (17)
Resolução da AR n.º 46/2008, dc 12/9. Con»
terrmtr'umtlt d: Drºit Pena/t, vol. 55, 1984, p. 22. siderando 0 art. 20.“ desta Convenção da CPLP, tomou
“2’ KOEMNG-JOULIN, cit., p. 23. ela o lugar do Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria
“31
KOERJNGJOULIN, cit., p. 22. Pena] assinado por Portugal e Brasil em 07—05—1991.
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Ainda neste sentido, estabelece 0 art. 2.0 da outras palavras: o direito de reenvio e o di-
Lei da Cooperação judiciária Internacional em reito de conflitos procuravam identificar a or—
Matéria Penal (Lei n.º 144/99) que o âmbito dem jurídica adequada para encontrar a solu-
da cooperação eventualmente a prestar pela ção de casos concretos. O direito estrangeiro
República Portuguesa está subordinado à pro— era “aceite de forma amiga", sem haver gran-
tecção da ordem pública, prevendo-se ainda des preocupações na definição de parâmetros
que o cumprimento de cartas rogatórias &' re— materiais vinculativos da sua aplicação na or—
cusado quando a solicitação se dirigir a acto dem jurídica interna de outro país.
que seja contrário à ordem pública portuguesa
(art. 152.º, n.º 4, b))”ª). 5. Cada Estado garante unicamente a sua
Temos assim que tanto as Convenções que própria ordem jurídica e não é garante da or—
prevêem e regem o auxílio judiciário em ma- dem jurídica de outros Estados. Como coro—
téria penal entre os Estados de Portugal e do lário lógico desta garantia, o direito vincula,
Brasil como a lei portuguesa crígem a ofensa no seu âmbito de soberania, todos os descina-
à ordem pública como Fundamento para a re- tários e, em consequência desta vinculação,
cusa de auxílio. ele vale como direito aplicável pelas várias au-
toridades de execuçâo (executivo, administra—
§ 2. Ordem pública e jmfimdnmenmlidade ção) e pelas várias entidades dotadas de juris—
dirtío. Se deslocarmos esta distinção validade/
4. Atento o relevo do topo; da ordem pú- aplicação para a convocação de direito estran-
blica no âmbito do auxílio judiciário em ma— geiro, é indispensável concluir que o direito
téria penal, impõe-se que nela nos detenha— estrangeiro não vale no plano interno, po—
mos mais de espaço, começando por enfrentar dendo, porém, por força dos mecanismos de
a questão de saber como é que o problema da colisão, poder ser aplicado numa outra ordem
cooperação internacional em matéria penal jurídica estrangeira. Se não fosse assim, assis—
obriga, hoje, a rever a tradicional récnica do rir-se—ia à transposição directa do direito
reenvio estudada no direiro internacional pri- criado por entidades estrangeiras na ordem in—
vado, o âmbito onde sempre conheceu o seu terna de outras constelações normativas esta-
maior fulgor dogmático. Corn efeito, nos vá- duais. Ele pode e deve ser aplicado segundo
rios domínios em que a ordem pública era as medidas jurídicas da ordem originária por—
mobilizada — colisão de aplicação de normas que os vários pedidos ou reenvios não implí-
de diferentes ordenamentos, reconhecimento cam a ºutorga imperativa dos standards mare—
de sentenças judiciais, cooperação internacio- riais de uma ordem jurídica à aplicação do
nal — não cram, em princípio, questionadas direito estrangeiro.
as premissas valorativas dos vários ordenamen- Em [Odo o caso, e este é um ponto im-
tos convocados. Como acenruava a doutrina portante, os mecanismos de cooperação e de
do "direito de conflitos” e a teoria geral do reenvio não podem :er instrumento: jurídica—
direito internacional privado, as ordens jurí- mmte neutrais, indiferentes a quaisquer di-
dicas consideravam-se iguais e equiordenadas, mensões normativo—materiais da ordem jurí—
havendo apenas que resolver os problemas téc- dica a quem se “rega" a aplicação de direito
nicos dos vários critérios de conexão (jm mn- estrangeiro. Como vem acentuando com ri-
guínix, jm wii, intensidade de conexão)”. Por gor a moderna doutrina e metódica do direito
de conflitos'z'“, o direito internacional privado
não constitui qualquer comando jurídico fora
(“ª' da ordem jurídica estatal. Dada a crescente
Ainda nestes precisos termos, o art. 232.ª,
nº 1, b), do CPP.
“ª“ Cfr. ZIEGLER, “Võlkerrechtlíche Verpflichnungcn
zur Anwendung oder nur freundlichc Beachcung frcm- (ª")
Cfr. DIRK LOOSCHELDERS, [ntemaziumz/er Priva—
den Red-It?", in: S. Leíble/M. RuEert (orgs.), Võ/ker- trzc/yt, 6.I cd., Springer, 2000, anotações aos artigos 3
fzr/lr und [PR, 2006, p. 43. :1 6 de EGBGB.
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jmfzmz/rtmmmlizaçãa das ordens jurídicas es— princípio do (lucrar regi: mmm e da restrição
(amis, o ponto básico a esclarecer e'
o de sa— do seu âmbito de aplicação ao exercício de
ber se a aplicação de direito estrangeiro pode poderes nacionais e não de actos de poderes
fazer-se à margem dos direitos Fundamentais externos —, alguma doutrina mais recente
— sobretudo os direitos, liberdades e garan— não deixa de salientar que, se o direito cons-
tias e direitos análogos. Desde logo, as nor— titucional não pode aniquilar o direito estran—
mas reguladoras da aplicação de direitos es- geiro, ele exige que as normas de direito es-
trangeiros —- sejam elas normas ordinárias trangeiro não deixem de estar vinculadas aos
internas, sejam normas convencionais inter— direitos Fundamentais quando aspiram a ser
nacionais — são jurídico-normativamente de— aplicadas num outro ordenamento juridicom‘.
pendentes ou subordinadas às normas consci- Por outras palavras: se na aplicação do direito
estrangeiro o juiz não pode tornar-se juiz deste
tucionais, sobretudo as normas constitucionais
positivadoras de direitos fundamentais ou de
direito, isso não significa que o direito estran—
geiro possa ser imune ao controlo a partir dos
princípios jurídicos nucleares de um ordena-
direitos fundamentais e da ordem pública por
mento constitucional.
estes densificada. É que, em último termo, a
Em termos menos abstractos e tendo
aplicação de direito estrangeiro —— no caso
agora directamente em vista 0 regime de ma-
concreto, de direito processual penal “cris-
pemção em matéria penal, a aplicação de di-
mado de sérias desconformidades constitucio-
reitos estrangeiros pelos órgãos jurisdicionais nais” — significa exercício do poder estadual
e pelas entidades de investigação devem ser
nacional que, de forma mediata, na aplicação
primariamente confrontada e controlada atra- do direito estrangeiro, não pode divorciar-se
vés da aplicabilidade e validade imediata e di—
dos resultados roncreta: afirit/a: segundo a sua
recta de normasjugªimdmnmmis. Deve relevar- conformidade ou desconformidade com o di-
—se que esta aplicabilidade não se reconduz a
reito constitucional nacional, sobretudo do mí—
uma eficácia externa mediata dos preceitos jus- cleo mentia! de direitos, liberdades e garantias.
Fundamentais. É que, mesmo tratando-se de Nesta perspectiva, os direitos fundamen-
direito internacional privado — o que não é tais são nacional e internacionalmente “cons—
aqui o caso, dado que se tem em vista a apli— titucionalizados" como medida da ordem pú-
cação de normas penais & processuais penais blica””. Se os direitos liberdades e garantias e
—, o controlo jusfundamcntal resulta imedia- os direitos constitucionais judiciais densiflcam
tamente da eventual densificação da própria a ordem pública, isso significa que a apiica—
arf/em púb/im pelos direitos e liberdades fun< ção de direito estrangeiro não pode deixar de
damentais. Como opera esta densificação da ser excluída quando conduzir a resultados in-
ordem pública através de direitos fundamen— sustentáveis no plano da mºdem públímjmfim-
tais? (lamental. A insustentabilidade pauta—se por
esta ordem pública jusfundamental sempre
6. Em primeiro lugar, a invocação de or- que esteja em causa a restrição do seu núcleo
dem pública sempre teve uma “função nega— essencial, nas suas dimensões materiais e pes-
tiva” quanto à aplicação de direitos estrangei- soais. As consequências jurídicas da violação
ros‘l”. ou seja, sempre foi convocada para o desta ordem pública será a inaplicabilidade do
estabelecimento de restrições à aplicação de direito estrangeiro, no sentido de que dele não
direito estrangeiro. podem ser extrinsecados quaisquer efeitos ju—
Em segundo lugar, embora o direito cons-
titucional não fosse, em princípio, conside—
rado uma medida directa de controlo do di-
reito estrangeiro — dada a prevalência do
121)
Cfr. KLAUS STERN, Smmmbz, III/1, Munchen,
1988, p. 1240,
(25)
Cfr. CHRISTOPH OHLER, “Grundrechte und ln-
ternationale: Privatrechr”, in: Merten/Papier, Handbuch
“ª" Cfr. G. KLGEL / K. SCHURIG, International“ der Gnmdrer/ne in Drum-bland mm’ Europa, Bd. VI/Z,
Priunrrecht, 9.“ ed., C. H. Beck, 2004, p. 516. C. E Muller, p. 660.
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rfdicos dentro da ordem normativa nacio— afloram, cremos ser oportuno desenvolver um
“alum. esforço de delimitação e precisão conceitual
As violações da ordem pública, ral como da figura da colaboração premiada e dos prin-
esta acaba de ser caracterizada, não se limitam cípios constitucionais que com eia podem ser
às hipóteses da aplicação do direito estrangeiro postos em perigo.
pelo órgão judicial nacional. Desde há muito Nas últimas duas, três décadas tem—se as-
que a ordem pública está presente no reco— sisrido, nos processos penais das mais diversas
nhecimento de sentenças estrangeiras e de ou— paragens, a um alastramento de práticas pro—
rros acros dc cooperação. Nesre contexto, po- cessuais que admitem a concessão a arguidos
dem estar em causa violações jurídico—materiais em processos criminais de benefícios penais a
e jurídico—processuais enxertadas em actos de-
troco de uma sua actuação colaborante com
cisórios, desde actos de investigação aré a ac— as autoridades policiais ou judiciárias em pre-
tos judicativodecisórios. O fundamento para
juízo de terceiros, regra geral, sob a forma de
o controlo destes actos concxiona—se com a
delação com elas pactuada. Trata—se, em todo
produção de efeitos jurídicos na ordem jurí-
caso, de um fenómeno que está muito longe
dica interna, exigindo-se, por isso, um proce—
de representar uma novidade, antes consti—
dimento recognirivo dos limites de ordem pú—
ruindo uuma prolongada realidade na história
blica particularmente cuidadosos.
do Direito Penalmª'. Tão antiga, de milénios,
Nos desenvolvimentos seguintes procura—
quanto controvertida, porém; pelos inarredã-
remos conferír estabilidade sistémico—norma-
veis problemas e dilemas éticos, morais e ju—
tiva & esta reserva de ordem pública através
da suspensão reflexiva incidenre sobre as di—
rídicos que lhe são inerentesªº).
mensões desvianres de acordos de colaboração O nomen juri: dado pelo legislador brasi—
premiada fundantcs da operação Lavajato e leiro à figura de que tratamos presra—se a equí-
seu relevo para a prestação de auxílio judiciá— vocos, que só serão evirados se os seus con-
rio a essa operação requisitada ao Esrado por- tornos forem recortados com rigor. De
rugués. Verificar—se-fi que existem contradições colaboração no processo penal poderá falar-sc
profundas com a ordem jurídica portuguesa a muitos títulos, como o da testemunha que

no modo como os acordos de colaboração pre- depõe sobre uma certa realidade com relevo
miada são assumidos (: accionados pelas auto— penal que perccpcionou & sobre a qua] é ques-
ridades judiciárias brasileiras. Além de contra— tionada, 0 do arguido que livremente confessa
dições em sede probatória, acumulam-sc o seu crime ou 0 do cidadão que mata lara-
refracções processuais perturbadoras da reserva pría denuncia um delito alheio e até aí des—
de juiz e da própria reserva de lei em matéria conhecido das autoridades, etc. Embora nes—
penal e processual penal. Utilizando os termos [as várias situações estejam em causa
da Convenção de Haia, aproximamo—nos dos contributos que poderão ser úteis à descoberta
limites não apenas da ordem pública jusfun— e esclarecimento de um crime, podendo por
damentalmeme densificada, mas também da isso assumir—se como actos de colaboração
violação dos princípios jurídicos fundamen— com o processo, é evidente que não é nada
rais de um Estado de direito, onde se incluem disto que a Lei n.“ 12.850/13 rem especifica-
o núcleo essencial dos direiros judiciais cons- mente em vista.
[irucionais e internacionais.

§ 3. O instituto da colaboração premiada e a ª” JOSE LUIS GUZMÁN DALBORA, “Do prémio da


seu enquadramento constitucional felonin na história jurídica e no direiro pena] contem-
porâneo", Re:/im: Portugucm de Ciência Criminal,
7. A fim de avançarmos na nossa reflexão 2/2011, p. 209.
(ªº)Para uma reflexão sabre as vantagens e os ma-
crítica sobre as múltiplas questões que aqui
les daatribuição de benefícios ao criminoso fundada na
denúncia e traição dos seus comparsªs no crime, logo
CESARE BECCARIA, Dei Del/ini : delle [ªm, 1764, Cap.
ª'“ Cfr. OHLER, 0/7. cit., p. 667. 37 (“Atrenrari, Complici, Impunità").
22 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCM NP 4000

O colaborador tido em mente pela Lei n.º que visam estimular a sua colaboração, mas
12.850/13 não é uma simples tertemun/Jtz que que não teriam razão de ser se nenhuma pu-
é chamada ao processo para relatar aquilo de nição criminal pudesse ir associada ao crime
que rem directo conhecimento sobre uma rea- delatado.
lidade criminal já objecto de uma investiga— A colaboração premiada inscrita na Lei n.º
ção ou de um processo em cutso e à qual é 12.850/13 não se identifica ainda com uma
estranho. Tal como no direito português, tam- outra realidade processual que em numerosos
bém no direito brasileiro, em geral, qualquer países tem feito o seu curso sob o rótulo de

cidadão que, em virtude de factos que pes» jmtiça negociada“. Apesar de se tratar de um
soalmenre percepcionou, esteja em condições movimento inspirado na experiência norte-
de contribuir para a descoberta da verdade —a.mcricana da plea bargaining, o seu acolhi-

material, tem o dever de colabora; com o pro— memo nos sistemas processuais de civil law
cesso, declarando, com verdade, tudo aquilo tem ocorrido através da adopção de precedi—
que sabe (art. 203.0 do CPP brasileiro). E ob— mentos que, Formal e materialmente, se mos-
viamente, não lhe poderá caber qualquer van- tram completamente distintos do modelo
tagem por ªssim colaborar com a justiça, cum- norte-americano da barganha“). Em ordena—
prindo o seu dever legal. Como tal, um mentos processuais de tipo continental que, à
contributo dessa natureza, pura e simples- semelhança do brasileiro, assentando embora
mente testemunhal, não pode ser objecto de num paradigma acusatório são marcados por
um acordo de colaboração premiada. um princípio da legalidade ou da obrigatorie-
Na colaboração premiada a que se refere dade da promoção processual e assim pela in—
a Lei n.° 12.850/13 também não esta’ em disponibilidade do objecto do processo e pela
causa um denunciante que nada tenha que imutabilidade da acusação, os esquemas pro—
vet corn o crime que delatou ou pretende de- cessuais penais de natureza negociada deixam
latar às autoridades. Via de regra, e de acordo de fora a delação de terceiros, circunscre—
com o principio do Estado liberal, a comuni- vendo-se à confissão de crime: próprio:. É o
cação de crimes às autoridades policiais ou ao que sucede, por exemplo, com os acordos so-
Ministério Público brasileiros por um cidadão bre a sentença penal na legislação alemã
comum a eles totalmente alheio constitui uma
(§ 257C da StPOW” ou com o patteggizzmmta
faculdade e não um dever (art. 51°, § 3.°, e italiano (art. 444 do CPP italiano)“). As van—
art. 27.° do CPP—B). De todo modo, aquele tagens penais que num e noutro caso são ace-
que dá a descobrir ao Estado um crime deste
nadas a0 arguido da acção penal reportam—se
até ai desconhecido não deverá ser agraciado
com quaisquer vantagens, económicas ou
penais.
No que a estas últimas respeita, não ha-
(27)
Cfr. FRANÇOISE TULKENS, “Una giustizia nego-
ziara?", in: Mireille Delmas—Marry / Mario Chiavario
verá por que falar em benefícios penais para
(orgs.), Procedurz Pmali D'Eurapa, 2.I ed,, Cedam.
o delator se este revelou um crime de outrem
2001, p. 624 e ss., e NUNO BRANDÃO, “Acordos sobre
insusceptivel de imediata ou mediatamente a sentença penal: problemas e vias de solução", julgar,
fundar uma sua própria responsabilização pe— n.º 25, 2015, p, 164 e ss.
nal. Se 3 descoberta desse crime de modo al- (28)
No sentido da insolvabilidade constitucional da
gum poderá acarretar uma consequência pe— plea bargaining num sistema processual de matriz acu—
nal para o delator, é então patente que a satéria continental como o português, JORGE DE FI-
colaboração por ele prestada está fora do âm- GUEIREDO DIAS, Amrdm Sub” a Sentença zm Prurzrro
Penal. O "Fim" dº Estado dt Direito ou um Novo “Prin-
bito da colaboração premiada a que se refere
cipia”?, Porto, C. D. do Porto da Ordem dos Advoga—
a Lei n.º 12.850/13. Com efeito, esta baseia—
dos, 2011, p. 16 e s. epitm'm.
—se na premissa de que o colaborador é sus-
ªº) CLAUS Roer / BERND SCHUNEMANN, Snafber-
ceptível de responsabilização criminal fundada fizhrnum/Jt, ZB.ª ed.. C. H. Beck, 2014, § 17/7 e ss.
no delito por si delatado, sendo esse 0 mo- e § 44/59 e ss.
tivo pelo qual lhe são prometidos benefícios (ªº) PAOLO TONINI, Diritto Processual: Penal:: Ma-
penais caso auxilie a investigação. Benefícios mml: Brent, 9.3 ed., Giuffré Editore, 2013, p. 560 e ss.
Nº 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCIA 23

a um crime dele próprio, traduzindo—se numa premiada apresenta-se como um meio de ob-
atenuação da sua responsabilidadc fundada na tenção de provas incriminatórias tanto do pró-
auto-incriminação ou na admissão de culpa— prio colaborador como de terceiros, sendo
bilidade. A mitigação da punição fundada no exacto denominá-la também, como é corrente
contributo para a responsabilizacio de com- na doutrina penal brasileira, como delação pre-
participantes no crime fica à sua margem. miada‘33‘. Na medida em que tem assim como
finalidade precípua a incriminação de tercei-
8. A colaboração premiada que encontra— ros, pelo menos, por um crime de organiza-
mos no art. 4.° da Lei n.° 12.850/13 distin— ção criminosa, a colaboração premiada apre—
gue-se destas várias modalidades de colabora- senta-se como um meio processual idóneo a

ção com a justiça penal que enunciámos. É


atentar contra direitos fundamentais das pes-
isso que se percebe logo a um primeiro olhar, soas visadas pela delação, desde logo e de

mesmo que ainda superficial, sobre o insti— forma imediata, o direito à honra, mas ainda
tuto. também, potencialmente, a liberdade de loco-
Qualificada pela Lei n.° 12.850/13 como moção, a propriedade ou a reserva íntima da
urn meia de obtenção de prova — e não, na— vida privada.
turalmente, como um meio de prova —, a Dado que, numa lógica utilitarista, o Es—
colaboração premiada é um instrumento atra— tado admire negociar aqui a própria justiça,
vés do qual se procura incentivar um mem- nomeadamcnte, a justiça penal que deveria re-
bro de uma organização criminosa a revelar servar à conduta criminosa do colaborador,
pessoas e factos com ela relacionados mediante com o fim de perseguir criminalmente outras
uma promessa estadual de vantagens penais pessoas, afigura-se altamente problemática a

(mpl/t e S 5.0 do art, 4.0) ou processuais pe— compatibilização deste meio de obtenção de
nais (§ 4.“ do art. 4.0). A colaboração consis- prova com o cânone do Estado de direito e
tirá, pelo menos, na prestação de depoimento dos princípios constitucionais — penais e pro-
pelo colaborador e eventualmente ainda no cessuais penais, mas não só — que dele se
fornecimento de ourros meios de prova (v. g., projccram ou gravitam na sua órbita.
prova documental) ou na participação em ou—
tros actos de natureza probatória. Se essa co— 9. Uma eventual admissibilidade constitu—
laboração For determinante da produção de cional de princlpio da institucionalizagio le—
algum dos resultados previstos nos cinco in- gal da colaboração premiada, como aquela que
cisos do mput do art.º 4.º — colaboração dita tem vindo a ser sufragada pelo Supremo Tri—
efa-azº" — o colaborador deve, em princípio, bunal Federal brasileiro, não pode desconsi—
beneficiar da vantagem que anteriormente derar os perigos constitucionais que lhe vão
pactuou com o Ministério Público como con- necessariamente colados à pele. De modo que,
a ser afirmada tal admissibilidade, só poderá
dição para colaborarºªl.
No fundo, e reduzindo a questão ao es- sê-lo como uma solução exceptional para fazer
sencial, o Estado promete ao arguido impu- face a prob/emas criminais excepcionais, pela
nidade ou atenuação da sua responsabilidade sua gravidade e complexidade de investigação,
e esrritamente subordinada a uma exigência
penal a troco de meios de prova úteis para a
investigação da organização criminosa a que de reserva de lei e aos princípios da proibição
pertence. Por isso, em geral, a colaboração da excesso e da intangibilidade do núcleo essen-

(ª"
minmm. Axpmo: Penais : Processuais da
2“ ed., Atlas, 2015, p. 59 e s.
1311
i
EDUARDO ARAUJO DA SILVA, Orgªnizações Cri-
n 12. 850/2013,

Ac. do STF de 27-04—2010, HC 99736, 5 Ac.


‘33’
Cfr., por outros, JACINTO COUTINHO / EDWARD
CARVALHO, "Acordos de delação premiada e o conteúdo
ético mínimo do Estado", Revista I’nrtngmm a': Ciência
Criminal, 1/2007, p. 95 e ss., e GUILHERME DE SOUZA
NUCCI. Organização Criminom. Comentário; à Lei
do Superior Tribunal de Justiça brasileiro de 15—06- 12.850. de 2 de Agºstº de 2013, Revista dos Tribunais,
2010, HC 97509/MG. 2013, p. 47.
24 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDENCJA N.° 4000

rial do: direitas fimd/zmentzzir. E deverão ser separação de poderes, que se procura garantir
sujeiras a este rigoroso crivo de constituciona- e efectivar através da prerrogativa de reserva
lidade não apenas as normas legais quando to- de lei formal insira no princípio da legalidade
madas pelo seu valor facial, isto é, digamos penal, seria frontal e irremissivelmente aba-
assim, quando “lidas” ao pé da letra, mas ram— tido se ao poder judicial fosse reconhecida a
bém as interpretações normativas adoptadas faculdade de ditar a aplicação de sanções não
pelo Ministério Público e/ou pelo juiz nas previstas legalmente ou de, sem supedéneo le-
suas intervenções processuais no âmbito de gal, poupar o réu a uma punição. É o que su-
acordos de colaboração premiada sob invoca— cedcria, por exemplo, no caso de atenuação
ção de determinada regra legal ou da conju- de uma pena de prisão para lá da redução de
gação de vários preceitos legais. “em are’ 2/3 (dois terços)” prevista no capur
A mobilização do instituto da colaboração do art. 4.° da Lei n.º 12.850/13 ou de con-
premiada está dependente da verificação de cessão de um perdão judicial em relação a um
uma pluralidade de condições e pressupostos crime não contemplado pela Lei n.º
de ordem material e processual e da obediên- 12.850/13. Em tais casos, o juiz substituir-se—
cia a específicos riros processuais, todos eles —ia ao legislador numa tão gritante quanto

legalmente larimbados e insusceptiveis de der— constirucionalmenre intolerável violação de


rogaçâo ou ultrapassagem pelos sujeitos pro— princípios fundamentais do (e para o) Estado
cessuais intervenientes no pacto de colabora- de direito como são os da separaç㺠de pode-
ção premiada. res, da legalidade criminal, da reserva [le lei e
da igualdade na aplicaç㺠n'a lei.
9.1. Pelo que já se adiantou, bem se com— Além de se projectar sobre os acordos de
preende que o primado do princépio da lega— colaboração premiada numa vertente material,
lidade deva aqui valer em coda a sua pleni— o princípio consrirucional da legalidade cri-
tude. Desde logo, deve valer no plano material, minal cobra neles aplicação também num
com o seu sentido próprio de que “só a lei é plano processual. De facto, constituindo ele “a
competente para definir crimes (...) 6 respec- mais sólida garantia das pessoas contra possí-
rivas penas"‘3“. Possíveis exclusões ou arenua— veis arbítrios do Estado, não se vê porque não
ções de punição de colaboradores fundadas haja ele de esrender—se, na medida imposta
em acordos de colaboração premiada só serão pelo seu conteúdo de sentido, ao processo pe—
admissíveis se :5 na estrira medida em que be— nal, cuja regulamentação pode a todo 0 mo—
neficiem de directa cobertura legal, como ma- menro pôr em grave risco a liberdade das
nifestação de uma clara vonrade legislativa pessoas““).
nesse sentido. Dito de outro modo: é termi- Assim, do princípio da legalidade crimi-
nantemente proibida a promessa e/ou a con— nal decorre ainda que é na lei, e só na lei e
cessão de vantagens desprovidas de expressa com estrita subordinação ao iter processual
base legal. por ela definido, que poderá ancorar—se qual—
Só desre jeito, além do mais, será respei— quer solução penal ou processual adoptada no
tada a função de salvaguarda de competência processo fundada numa colaboração premiada.
(kompetenzwrzlareml'e Fun/mon) que, a par da Logo porque, à partida, será de esperar que a
função de garantia da liberdade (fi‘eiheirx— lei haja plasmado os esquemas processuais
gewz’ihrleixtmde Flmktíon), conforma estrutu-
ralmente o princípio constitucional da legali-
dade criminalºª'. Na verdade, o princípio da
Beck., 2015, Arr. 103 Abs. 2, nm, 178 e ss.
“""“
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direita Pram'mal
Perm/, 1, Coimbra Editora, 1974, p. 96 e s. Posição aco-
”“ J. J. GOMES CANOTILHU / VITAL MOREIRA, lhida recentemente pelo Tribunal Constitucional por-
Constituição da República Portuguzm Anotada, I, 4.“ ed., tuguês no Ac. n.º 324/2013, 4. (www.rribunnlcunsritu-
Coimbra Editora, 2007. Art. 29.º, 111. cional.pr). Ainda nesm direcção, AURY LOPES JR.,
º“ MAUNZ / Dume / SCHMIDT-ASSMANN, Grun- Direita Fromm/zl Penal, 11.“ ed., Ed. Saraiva, 2014,
(lgemz Kommentar. 74. Ergãnzungsliefcrung, C. H. Cap. VI.
N.a 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCLA 25

que, do ponto de vista do legislador, se mos— Transpostos estas várias dimensões em


tram constitucionalmente conformes e estabe— que, no fundo, se projecta o princípio cons—
lecem os equilíbrios axioldgicos, sistemáticos titucional da legalidade processual penal para
e político—criminais tidos como necessários e o âmbito da colaboração premiada, manifes—
adequados. Equilíbrios que, como se intui sem tam—se todas clas de modo convergente numa
diflculdade, ficam sob imediata ameaça de imposição de rigorosa observância de todas as
ruptura em caso de implementação de proce- determinações legais que ditam os termos pro—
dimentos contm ou até mesmo pmeter legem. cessuais que regulam a sua formação e efecti—
Mas não só. vação. Uma obrigação de conformidade pro—
Sendo este um domínio de obtenção de cessual que, como e’ evidente, deve também
prova susceptível de contender com direitos ela set examinada pelo juiz no acto de homo—
fundamentais dos visados pela delação, faz—se logação previsto no §7.° do art. 4.0 da Lei n.°
nele sentir com particular intensidade o prin— 12.850/ 13 — devendo a homologação ser re-
cípio da formalidade do processo (]unizflirmí— cusada se 0 procedimento que culminou no
g/eeít des Wlfzbremyª", que impõe uma exigên- acordo de colaboração premiada ou os passos
cia de conformidade formal do procedimento processuais futuros que nele são convenciona-
com a regulação legal que para ele vale: num dos não se ajustarem aos quadros processuais
processo penal democrático só é admissível legalmente previstos — e, mais tarde, no acto
uma responsabilização penal baseada em fac— de eventual concessão dos benefícios antes
tos apurados dc modo processualmente válido, pactuados.
proscrevendo—se uma procura da verdade a
todo o cusw. Ora, e’ pelo cumprimento es-
9.2. Com especial relevo para a questão
crupuloso das formalidades prescritas pela lei
que nos ocupa e ainda corn directa filiação no
que este desiderato fundamental poderá ser al—
princípio da legalidade apresenta—se o princí-
cançado. Também aqui a legitimação demo— pio do juiz natural, rambém designado na ex—
crática da decisão judicial só e’ portanto alcan-
periência germânica, porventura com maior
ça'vel através de um determinado procedimento
propriedade, como princípio dojuiz legal, con-
prévia e formalmente definido, devendo reco—
sagrado no art. 5.0, LIII, da Constituição bra—
nhecer—se, com Roxin e Schfinemann, que
sileira: “Ninguém será protermtz'o nem senten-
num processo penal de um Estado de direito
ciadº smãa pela autoridade competente”.
a protecção da formalidade do processo não
Consiste ele essencialmente “na predetermina—
é menos importante do que a condenação dos
ção do tribunal competente para o julga—
culpados e o restabelecimento da paz jurí-
mento, proibindo a criação de tribunals ad
dicaªª).
hoc ou a atribuição da competência a um tri—
A segurança e previsibilidade que por esta bunal diferente do que era Iegalmente com-
via se procuram imprimir ao processo consti-
petente a data do crime””). Garantia que não
tuem, de uma outra perspectiva, o indispen— se circunscreve, em todo caso, ao julgamento,
sável penhor de um cabal e efectivo exercício
abrangendo todas as esferas e fases da jurisdi-
do direita de tl'cfem do arguido. A ampla de—
ção penal.
fesa que a este deve ser garantida só é exerci—
Esta garantia do juiz legal é imprescindí-
tével num quadro processual estável e com re—
ve] para a salvaguarda da confiança comuni—
gras bem definidas, que permitam ao arguido
taria no sistema de justiça penal, defendendo-
saber, em cada memento, aquilo com que —o de manipulações atrabiliarias na designação
pode contar.
do juiz da causa que comprometam a isenção
e imparcialidade que devem constituir a

ºf”) Roxm / SCHUNEMANN, Smfiwfi/yremrzrbr”, §


1/2 c $ 24/ 19. (ªº) GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA. CRP
(ªº) Idem, ibidem. Anotada, 14, Art. 32.". XVI.
26 REVISTA DE LEGISMÇÃO E DE ]URISPRUDENCIA N.“ 4000

marca-de—água do múnus judicial e assim a Neste nosso contexto dos acordos de co-
própria realização da justiça no caso. laboração premiada, a salvaguarda da garantia
O princípio do juiz natural impõe, antes do juiz natural passa por uma imposição de
de mais, que a definição do juiz competente interpretação da Lei n.º 12.850/13 que per—
resulte da lei””). No plano da fonte, com mita assegurar uma relação de congruência sub-
efeito, só a lei pode instituir o juiz e definir— jectiva entre o acto de homologação do acordo
—lhe a competência. Esta dimensão, dita posi- de colaboração premiada e a decisão de con—
tiwz‘“), do princípio do juiz legal abrange não cessão das vantagens neste previsras. Homo—
só as regras legais propriamente ditas corn re- logando o acordo, o juiz não se limita a de—
levo para a determinação da competência, clarar a sua validade legal, mas também, de
como também ainda eventuais regulamentos, certo modo, assume um compromisso em
regimentos, em, complementares emanados nome do Estado: ocorrendo a colaboração nos
pelo próprio sistema judiciário de que a termos pactuados e sendo ela eficaz, em prin-
mesma esteja dependente. Todas essas prescri- cípio devem ser outorgadas ao réu colabora—
ções devem possuir natureza geral e abstracta, dor as vantagens que lhe foram prometidas.
de modo a evitar a manipulação da fixação da
Por essa razão, a competéncia para a ho-
competência relativamente a certos casos ou
mologação deve ser deferida ao tribunal que
pessoas. Um receio que, tradicionalmente, era
à partida se anteveja como o competente para
sentido sobretudo em relação a0 poder execu—
o julgamento da causa em Lª instância e as—
tivo‘“), mas que é hoje acompanhado por
sim para a aplicação ao réu das sanções cri-
preocupações voltadas para 0 interior do pró-
minais pelos crimes por que vier eventual-
prio poder judiciário.
menre a ser condenado. Este princípio—regra
A esta vinculação a uma ordem taxativa
deve articular—5e, no piano sistemático consti—
de competência legalmente determinada encon—
tucional, com outras normas onde se preveja
tra-se associada, numa tl'imemãa negntímz, um
competência. especial de outro tribunal, como
conjunto de proibições de variada ordem, fun-
é o caso da competência do STF quando um
dadas essencialmente na prescrição da arbitra—
ou mais denunciados no acordo de colabora-
riedade ou mesmo da discricionariedade no
ção beneficiem de prerrogativa de foro privi—
acto de fixação da competência. Designada—
legiado ante o STF (Constituição Brasileira,
mente, a proibição de jurisdições de excepção,
arr. 102.°/I//b). De outro modo, teríamos a
isto é, tribunais [ld hoc formados para inter—
vir em determinado processo ao arrepio do homologar o acordo e a comprometer—sc com
quadro legal de natureza geral e abstracta de- uma certa solução um tribunal que não esta-
finitério da competência, e a proibição de de— ria depois em condições de honrar um tal
saforamento mediante transferência do pleito compromisso, por não ser 0 tribunal compe-
do tribunal legalmente competente para um tente para a sentença.
outro que não encontra na lei justificação para O mesmo vale para os acordos pós—sen—
aquisição de competência para intervir no tenciais previstos no § 5.° do art. 4.0 da Lei
caso. n.º 12.850/13, tendo em vista uma redução
da pena já aplicada e transitada em julgado
ou uma progressão do seu regime de execu—
ção. Competenre para a homologação só po-
(40)
Sobre o que se segue, JORGE DE FIGUEIREDO derá ser (i) o tribunal que river a seu cargo a
DIAS / NUNO BRANDAO, Sujeito; Pmmmai: Panair: a execução da pena já em cumprimento, pois
Tribunal, 2015. https:I/apps.uc.pt/mypage/files/nbran— só ele terá competência para conceder tais be—
dao/1083, p. 32 e ss.
“" nesses ao condenado que entretanto se dispôs
Ac. do TC n.° 614/2003 (11.).
Ҽ a colaborar; ou (ii) o Tribunal Supremo (STF)
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Sobre o princípio
a quem a Constituição confere competência
jurídico-constitucional do «juiz-natural»", Rtm'rta de Le-
gislação (jurisprudência. no 111 (1978), nº 3615, especial pela individualização no ml de pes-
p. 85 s. soas com prerrogativas de foro privilegiado de
N.º 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDENCIA 27

alguns denunciados nos acordos (CRB, art. A garantía (/11 independência elm tribunais
102.°/I/b). no âmbito das suas intervenções em proces—
sos em que hajam sido firmados acordos de

9.3. Em geral e na presente matéria em colaboração premiada está por seu tumo de—
particular, o princípio do juiz legal guarda pendente da existência de condições para que
uma estreita proximidade com os principle: da possam livremente tomar as decisões que lhes
jmísdícíonnlídade e da índepmzlêncía judírial. competem sem obediência a qualquer outra
A circunstância de a pena ou o seu regime de instância ou poder que não os da lei e da
execução poderem decisivamente resultar da— Constituição. Como é sabido, a prerrogativa
quilo que houver sido pactuado entre o Mi- da independência judicial declina—se numa au—
nistério Público e o réu é susceptível de com— tonomia no exercício da jurisdição por força
prometer o monopólio judicial em matéria de da qual a existência de uma “qualquer relação
aplicação de penas criminais se determinadas hierárquica no piano da organização judicial
cautelas não forem observadas. Além disso, na não poderá ter incidência sobre o exercício da
eventualidade de sobre o acordo incidirem dis— função jurisdicional"‘“’.
tintas decisões judiciais homologatórias, uma É óbvio que, intraprocessualmente, uma
eventual pretensão de um tribunal de atribuir instância judicial deve acatar e dar efeito ao
à sua homologação uma eficácia que extrapole
que um tribunal superior haja determinado
os escritos limites da sua jurisdição coloca sob
no âmbito da apreciação de um recurso ou
ameaça a jurisdição dos demais tribunais efec- impugnação de uma decisão por si anterior—
tivamente competentes para o efeito e do mente tomada. Mas fora isso, e tirando o caso
mesmo passo a independência destes. excepcional das súmulas vinculantes do STF
Quanto ao primeiro pomo, relativo ao (art, 103.º-A da Constituição Federal)”5’, em
princípio dajurz'sdiríamzlidade, o regime da Lei nenhuma outra hipótese estará um tribunal
n.º 12.850/13 só será constitucionalmente sol- sujeito ao entendimento que uma outra corte
vente no que a ele diz respeito se o tribunal judicial tenha relativamente a um caso que
competente para a homologação do acordo de entre na sua competência jurisdicional, mesmo
colaboração premiada e para a efectivação das que esta última se [rate da mais alta instância
vantagens convencionadas tiver urn realpaa’er judiciária do país““).
decisa'ria sobre a outorga dos benefícios penais Assim sendo, deverão considerar-se invá-
que constem de tal acordo. Não sendo esse o lidas cláusulas como a seguinte: ”Homologado
a acordo perante a Suprema F‘ibzmal Federal ou
caso, se, na prática, a obtenção de um regime
o Superior F'íbumzl de justiça, valer/í em todo
punitive dc favor decorrer exclusiva e mate—
rialmente do pactuado entre Ministério Pú- faro e instância que l/Je seja infirm; ”slando
blico e réu, será manifesta a afronta à máxima
da jurisdicionalidade em sede de aplicação e
execução de penas. Este é, na realidade, um e FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, Sujeira: Prom-
daqueles domínios nucleares em que, tanto de nmí; Permit: 0 Tribunal, p, 7.
jure como de facto, devem ser os tribunais a “4‘ GOMES CANOTILHO. Dim'ta Cnlmimrimml e
deter o monopólio não apenas da última, mas Darín da Cvmtimiçã07 , p. 663, e desenvolvidamenrc A.
CASTANHEIRA NEVES, O Instituto da: 'Hszmr": 11 Fun-
também, desde logo, da primeira palavra,
ção jurídim da: Suprema; ”“i/munir, Coimbra Editora,
como manifestação da reserva absoluta de ju—
1994, p. ]0l e ss.
risdição dos tribunais judiciais nas matérias de (‘5’ Se não é inconsrirucional, par beneficiar de ex—
foro criminal‘”). presso respaldo da própria Constituição, a súmula vin-
culanre é porém allamenre questionável sob o pontu de
vista metodológico — cfr.. por último, MICHELE TA-
RUFFO, "A jurisprudência entre a casuística e a unifor—
midadc",julgttr. n.’J 25. 2015, p. 22 epzmim.

e
(43)
). j. GOMES CANOTILHO, Direito Camtitucíwml
Darín dn Cnmtituiçãa, 7.:I ed., Almedina, p. 664 e s.,
(ªº) FIGUEIREDO DIAS
Pracwzmi: Pen/11:: o
/ NUNo
Tribunal, p. 9
BRANDÃO,
e s.
n
g'eiro:
28 REVISTA DE LEGISLAÇÃO 5 DE ]UIUSFRUDENCIA N.º 4000

demecemz’ria nm homologação perante outras § 4. O conteúdo e os limite: da cºlaboração


ílzftâzzci/zs)'(ªª. Além de se rrarar de um pacto premiada legalmente admissível
de atribuição de competência que não rem
qualquer cabimento em processo penal, por— 10. Realizado este enquadramento geral
que contrario ao princípio do juiz natural, um jurídico-constitucional de questões penais e
acordo desta natureza é ainda incompatível processuais penais envolvidas no regime legal
com o principio da independência judicial. da colaboração premiada, pretendemos dirigir
Pertencendo ao STF a competência para a nossa atenção para o concrero clausulado
o julgamento em 1.‘1 instância de determinada dos termos de colaboração premiada que fun—
pessoa, em virtude do foro especial que a esta daram a expansão da operação Lava Jam, pon—
cabe, será o STF quem, em momento ante— derando—o à luz das coordenadas constitucio—
rior, devera’ inrervir em sede de homologação. nais que avançámosªªº“. Antes, porém, para
Em todo caso, uma ral homologação somente esse efeito será imprescindível desenvolver um
poderá projectar os seus efeitos sobre os fac- esforço de exegese da regulação inscrita na Lei
[OS que formam o objecto do processo e 50— n.º 12.850/13, a base legal invocada para a
bre as pessoas submetidas à jurisdição de l.a celebração daqueles acordos.
instância do STF. Se um cidadão comum à
partida excluído desca jurisdição acabar por a) O âmbito normativo da Lei n° 12.850:
ser julgado em 1.“ instância pelo STF, em vir— crimes de e da organização criminosa
tude de uma válida aplicação de regras legais
de conexão processual, a homologação ante— 11. O instrumento processual da colabo-
riormente proferida poder-lhe-a' ser estendida. ração premiada integra—se numa regulação pe-
Ja’ não sera assim, porém, se 0 STF não nal e processual penal mais ampla que tern o
deriver competência para o processamento em seu cerne na figura da organização criminosa.
1.“ instância de ml réu. Neste quadro, o juízo Do mesmo passe que incrimina a promoção,
homologarorio do STF figurará perante o juiz a constituição, o financiamento e a integração
competente para a causa como o juízo de uma numa organização criminosa, a Lei n.°
qualquer outra corte de l.-1 insrancia, não o 12.850/13 dispõe sobre especificos meios de
podendo vincular, dada a independência recí- obtenção de prova que poderão ser mobiliza—
proca que entre ambos intercede. Nessa me— dos para a investigação criminal e processa-
dida, não estará esse juiz obrigado a outorgar mento do crime de organização criminosa e
ao co-réu colaborador as vantagens a ele pro— de crimes conexos. Esra limitação do alcance
metidas num acordo por si não homologado normativo da Lei n.“ 12.850/13 resulta direc—
enquanto juiz legalmente competente para o ramenre do objecto estipulado logo no seu art.
processo. Nestes termos, sob pena de violação l.° — “Esta Lei define ºrganização [rímínam e
do princípio constitucional da independência dispõe sobre a investigação criminal, o: meia: de
judicial, não poderá reconhecer-se validade à obtenç㺠de pram, infiaqfies pen/1i: correlata: e
auto—atribuição de eficacia judiciária erga am— a procedimento criminal a ser aplicada” — e
nes que frequentemente constam das homolo- está em consonância com a releologia politico—
gações dos Termos de Colaboração Premiada —criminal que lhe é subjacente.
proferidas pelo STF‘“). É tendo em conta a especial gravidade e
danosidade social da própria existência de uma
associação criminosa e as dificuldades investi—
garérias com que as instâncias formais de con-

W) Termo de colaboração premiada outorgado pelo


Ministério Público Federal e Alberto Youssef.
“E"
Vg, “Arm: 0 exposro, homologo o “Termo de “9' Como referimos no inicio, teremos em conside-
Colaboração Premiada" (...) a fim de que produza seus ração, nomeadamente, os específicos (ermus de colabo—
jurídicos e legais efeitos perante qrmlquerjuízo au tribu- ração premiada convencionadas pelo Ministério Público
nal nacional" (itálico nosso). Federal com Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef.
N.º 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO F. DE JURISPRUDENCIA 29

trolo do crime frequentemente deparam na


se espettfim flmbz'to de um dado processo em que
sua detecção e perseguição penal que se justi- ten/nz xítío pactuada. Funcionando a colabora—
fica a criminalização da pertença a uma orga— ção premiada como um meio de obtenção de
nização criminosa e a previsão de específicos prova, terá ela necessariamente de emergir
instrumentos probatórios a ela dirigidos espe- num certo contexto processual pré-existente,
cialmente sensíveis para os direitos, liberdades a fim de favorecer a recolha de provas úteis
e garantias fundamentais dos cidadãos. Con- ao esclarecimenro dos factos objecto do pro-
siderando estes fundamentos político—crimi— cesso. Um processo, aliás, em que, tratando-
nais e atento o dever estadual de estrita ob- —se de uma colaboração pré—sentencial, o co—

servância do princípio da proporcionalidade laborador deve ser co—re’u, já que só deste


em sentido amplo, temos para nós que o re- modo é que terá sentido acenar—lhe corn de—
gime legal da Lei n.° 12.850 [em urn âmbito rerminados benefícios como contrapartida de
normativo bem delimitado, circunscrevendo— uma sua colaboração. De mais a mais, só exis-
-se ao delito de organização criminosa e aos tindo um processo, e no contexto de um pro-
crimes 3 ela ligados, isto e', aos crimes da or- cesso, será viável o acro de homologação ju-
ganização (as infracções penais correlatas a que dicial.
se refere o arr. l.° da Lei n.° 12.850/13). Queremos com isto significar que a cola-
Crimes externos à organização criminosa boração premiada não só não pode ser pac—
caem fora da alçada da Lei n.° 12.850/13 e tuada fora de um processo, como não pode
não podem ser objecto de perseguição crimi— rer efeitos Fora do seu processo, designada-
nal com recurso aos meios de obtenção de mente, em relação a crimes legalmente insus-
prova nela consagrados e definidos, designa— ceptíveis de processamento conjunto com
damente, a colaboração premiada. Pois não aqueles que já formam o objecto processual
foi para esses fenómenos criminais que rais dos autos em que o acordo e’ celebrado.
meios foram especificamente pensados e pos— Acresce que a limitação da eficácia aqui assi—
tos à disposição da investigação criminal pelo nalada não pode deixar de ter em conta a uri-
legislador federal. A não ser assim, ficaria lização destes acordos de delação não apenas
aberro caminho para que meios de investiga- para promover processos contra rerceiros (no-
ção excepcionais pudessem banalizar—se e ser meadamente os delarados) mas também para
usados para a repressão de crimes ou contex- proteger outros visados (ex: famílias de dela-
tos criminais cuja gravidadc de modo algum rores) que são poupados ‘a acção persecutéria
juscificaria intromissões tão severas na esfera do MP em virtude de acordo celebrado corn
dos direitos de liberdade dos cidadãos como 0 colaborador.
as que são inerentes aos meios de obtenção cle
prova enunciados no art. 3.0 da Lei n.°
12.850/13. ção premiada fzmdantes da operação
]nto: vantagens penais e processuais inde-
e
5 S. Vícios dos roncretas zzcarzlos de colabºra-
m
b) Limitação de eficécia da colaboração vida:
premiada a0 processo em que foi pac-
tuada
§ 5.1 Taxatividade legal dos benefícios pre—
12. Além de balizada pelos limites postos minis
pelo objecto estabelecido pela Lei n.° 12.850/13
— no sentido ora adiamado de que só poderá 13. A Lei n.° 12.850/13 prevê duas mo—
abranger a organização criminosa integrada dalidades de colaboração premiada“) — a
pelo colaborador e os crimes de tal organiza-
ção —, a colaboração premiada conhece ainda
uma limitação processual. Concreramenre, e
como transparece dos §§ 2.‘J e 5.º do art. 4.0 ”º) Decompondo a colaboração pré-sentencia] em
da Lei n.° 12.850/13, só pode ter eficacia no colaboração pré-processual e processual e per isso
30 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE
]URISPRUDENCIA Nº 4000
pré—sentencial e a pós—sentenciª”) — 5 para de reputar-se como inadmissr’veis num
cada uma delas prevê específicos e meio
autónomos de obtenção de prova que contende
benefícios penais e processuais penais suscep- com di-
reitos Fundamentals de terceiros como e'
tíveis de serem concedidos ao colaborador. o caso
da colaboração premiada.
A colaboração pode começar por ser pac- Do princípio da legalidade resulta de igual
tuada no período que vai ate’ à
prolação da modo uma proibição de combinação dos es—
sentença, antes ou depois do oferecimento
da quemas processuais desenhados na lei
denúncia / acusação (art. 4.°, §§ l.º a 40, da que, na
prática, redunde na criação jurisprudencial de
Lei n.º 12.850/13). Nesta fase, podem as par-
soluções que não se ajustam aos modelos pro-
tes convencionar mmz das seguintes
três van- cedimentais cunhados legalmente. Mais grave,
tagens, de natureza penal, enunciadas no m-
no plano da juridicidade, é a transmuração
put do art. 4.0 em termos alternatives (e não de
acordos de colaboração em instrumentºs nor—
cumulativosym: ou o perdão judicial; ou a re-
mativos inovadores, pr/m‘er e contra legem, vio-
dução da pena privativa da liberdade em até
lando a men/:1 de lei do parlamento na def}
2/3; ou ainda a subscituíção da pena privativa
níção de crimes e de penas. Assim, na fase
da liberdade por pena restritiva de
direitos. pré—sentencial não pode pactuar-se
Ainda nesta fase, se o colaborador não for o um
benefício só previsto para uma colaboração
líder da organização criminosa e for o pri-
pós-sentencia] (0. g., a progressão de regime
meiro a prestar cfectiva colaboração, e
§ 4.° de execução de pena privativa da
do art. 4.° admire a atribuição de um benefí- liberdade);
tal como é proibido conceder-se na fase pós—
cio processual: a abstenção de oferecimento
-sentencial um prémio so' admitido na fase an-
de denúncia.
terior (1/. g., o perdão judicial).
Se, pelo contrário, a colaboração só
for Sendo embora estas as coordenadas
acordada e efeCEivada após a sentença, nos ter- que,
em homenagem ao princípio da legalidade
mos do § 5.° do art. 4.°, “a pena pºt/erá cri-
:er minal, devem nortear a celebração de
reduzida ate' a metade ou rem' admitida a pro- acordos
de colaboração premiada, uma análise
gressão de regime ainda que ausente: a: fina do
requiri- conteúdo dos termos de colaboração
to: objectiuar”. premiada
permite percepcionar uma total subversão e
Como se antecipou supra, todos estes be-
manipulação dos quadros premiais definidos
nefícios estão rigorosamente subordinados
aos na Lei n.º 12.850/13.
ditames do princípio da legalidade criminal.
Nisto vai implicada a taxatividade do ca—
§ 5.2. Vantagens penais sem base legal: a re—
tálogo legal dos benefícios que poderão
ser dução da pena de multa
atribuídas ao colaborador: vantagens que não
se encontrem legalmente previstas
não podem 14. Apenas duas das três espécies de pe-
ser prometidas e concedidas. Não se nas
divisando tarimbadas pelo art. 32.° do Cédigo Pe—
no regime legal qualquer lacuna que
careça de nal brasileiro se encontram expressamente
integração, será ainda inaceitável a outorga de contempladas pelo caput
do art. 4.° da Lei n.°
privilégios extralegajs com base em argumen- 12.850/13, a pena privativa
da liberdade e a
tos de identidade ou maioria de razão
ou em pena restritiva de direitos. Não obstante, de
analogia. Técnicas que, alias, sempre seriam entre as várias propostas premiais
cumulativa-
mente oferecidas pelo Ministério Público Fe—
deral coma-5e uma redução da pena de multa
aludindo a três espécies dc colaboração que vier a ser aplicada ao réu, de forma a fazê-
premiada,
EDUARDO ARAÚJO DA SILVA, cit., p. 63 e ss. —la coincidir com o seu
6" Também designada pós-processual — patamar mínimoªª).
cfr.
EDUARDO ARAUJO DA SILVA, cit., p. 66.
(ª) CESAR ROBERTO BITENCOURT/PAULO
CESAR Bu— (53)
V.g.: “(...) o Minisre’rio Público Federal
SATO, Camentdn'a: à Lei de Organização Cfimimm, (MPF)
Lei propõe ao acusado, nos feitos acima especificados
n.” 12.850/2013. São Paulo, 2014, a na-
p. 129. queles que serão instaurados em decorrência
dos fatos
NP 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURJSPRUDENCIA 31

Trata«se, claramenre, de uma convenção laborações premiadas sob análise manifestam


sem qualquer esteio legal. Em lado algum se uma pretensão de projecção de efeitos sobre
faz referência na Lei n.° 12.850 à possibili— a fase executiva da pena de prisão que deverá
dade de um acordo de colaboração premiada vir a ser cumprida pelos colaboradores. E isto
versar sobre a pena de multa cominada para em dois sentidos: marcando o início da exe-
crimes pelos quais o réu possa vir a ser con- cução de ral pena, fazendo-o coincidir com a
denado (1/. g., o próprio crime de organização assinatura do Termo de Colaboração Pre—
criminosa, punr’vel com pena privativa da li- miada, mesmo antes portanro de este ser ju—
berdade e multa). Vantagem que, por se mos— dicialmenre homologadofis); e determinando
trar desprovida de cobertura legal, não poderá em que termos o colaborador passªrá do re—
ser prometida ou concedida. gime fechado para os regimes semi-aberro e/
Além de ferir o princípio da legalidade, o ou abertolsfi). Tal sucede, porém, num mo—
acordo dirigido a uma fixação anrecipada da mento em que os colaboradores não foram
exacta medida da pena de multa a aplicar ao ainda sequer julgados e condenados como cul—
réu colide com princípio n'a jmªíszíícianalidade pados da prarica de qualquer crime de que es»
e o primária da culpa. Afronta o primeiro, tejam indiciados nos processos em curso —
porque, de facto, transfere a competência para i. e., numa fase pré—sentencial.
a determinação da medida concreta da pena
do juiz para o Ministério Público. E atenta a) Pena sínejudírtío e sine judex
contra o segundo, porque, contrariando 0 dis-
posto no art. 59.° do Código Penal, torna a 15.1. Acordos de colaboração premiada
culpabilidade num faccor irrelevante para a fi— dotados de cláusulas esripuladoras de que o
xação do quantum da perm. Como afirma Fí- cumprimento de pena privativa da liberdade
gueiredo Dias a propósito do lugar paralelo se inicia a partir da assinatura do acordo de
dos acordos sobre a sentença, dc modo aqui colaboração premiada e que "o colaborador
inteiramente válido, “um acordo sobre a me- cumprirá imediaramente após a assinatura do
dida concreta da pena não pode ser considerado
admissível, pois que tal significaria uma
violação do princípio da culpa e aproximaria (55)
Mg,: “(...) o Ministério Público Federal (MPF)
de novo o acordo da troca, negócio ou bar- propõe:10 acusado. nos feitos acimª especificados c na-

ganha. Ao tribunal, e só a ele, pertence pon- queles que serão instautados em decorrência dos fatos
derar todas as circunstâncias do caso que re— relevados por intermédio da presente colaboração, os

levam para a culpa e a prevenção e, em função seguintes benefícios legais, cumulativamente: (m) l. :|
aplicação au Colaborador de penas privativas da liber-
delas, encontrar o exacto quantum de pel-law”).
dade, nos Feitos acimn especificados e naqueles que se-
rão instaurados em decorrência dos fates revelados por
§ 5.3. Vantagens penais sem base legal interme’dio da presente colaboração, as quais depois de
(cont.): as progressões de regime pactuadas unificadas resultem em, no mínimo 30 (trinta) anos de
reclusão. (...) § 6. O Colaborador cumprir.-í imedinra—
menre após a assinatura do presente acordo a pena pri—
15. Além cle incidir indevidamente sobre
vativa da liberdade em regime fechado : que se refere
uma pena que escapa ao catálogo inscrito no o inciso III da presents cláusula".
caput do art. 4.° da Lei n.º 12.850/13, as co- (ªº)Vg: “(...) o Ministério Público Federal (MPF)
propõe ao acusado, nos feitos acirna especificados e na-
queles que serão instaurados em decorrência dos fatos
relevados por intermédio da presents colaboração, os
relevado: por intermédio da presente colaboração, os seguintes benefícios legais, cumulativamente: (...) III.
seguintes benefícios legais, cumulativamente: (...) VI. 0 cumprimento pelc Colaborador de pena privariva da
3 aplicação da pcna de multa a que se refere o art. 58,
liberdade em regime fechado por lapso não superior a
caput. do Código Penal, em seu patarnar mínimo, cuja 5 (cinco) anos : não inferior a 3 (trés) anos, iniciando-
cobrança será realizada pelo Ministério Público Federal -se a partir da assinatura do presente acordo e de-
nos termos da legislação vigente". traindo-se o periodo já cumprido pelo Colaborador a
(54]
FIGUEIREDO DIAS, Acorda: sabre (I Sentença em título de prisão provisória após a deflagração da “Ope-
Frºmm Pena/, p. 51. ração Lava Jam".
32 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCLA N.º 4000

presente acordo a pena privativa de liberdade b) A pretensão de projecção de efeitos sobre


em regime fechado“” são clamorosamenre a fase executiva da pena de prisão
ilegais e inconsrirucionais.
O início de uma pena criminal, ainda para 15.2. Do mesmo passo que se arroga com—
mais por simples e directa determinação do peréncia para ditar o imediato cumprimenro
Ministério Público, sem que haja uma sen— da pena privativa da liberdade do réu colabo—
tença judicial que a decrete configura uma au— rador, o Ministério Público pactua ainda re-
têntica aplicação de pena sine judictío e sine gimes de progressão cle meio fechado para
judex. Nada que, obviamente, se possa aceitar semi-aberto e/ou meio aberro decorrido que
num Estado de direito, A jusesradualidade que seja determinado período. Tratos que são Fei—
deve caracterizar a República Federariva do tos sob a premissa explícita ou implicitamente
Brasil 6 comandar a acção de todos os seus assumida — e que acabámos de ver ser insus-
órgãos não consenre que um réu sofra a exe— tenta’vel — de que a pena privativa da liber—
cução de uma pena criminal sem um prévio dade já está em execução. Tal e’ insuscepti'vel,
e devido processo penal (art. LIV, daíª, porém, de iludir a realidade de 0 acordo ter
Consriruiqio Brasileira). Tal como não con— sido fechado sem que o réu colaborador haja
sente, por mor da reserva absoluta de jurisdi— sido judicialmenre senrenciado por qualquer
ção dos tribunais em maréria de aplicação e crime, estando, por isso, em causa uma cal/z—
execução de penas criminais, que uma deci- bomção premiada pré—sentencia].
são dessa natureza seja romada por um órgão Ora, como vimos já, nesta fase pré-sen-
externo ao poder judicial“), como é o Minis— tencial não é legalmente admirido qualquer
tério Público (arr. SP, XXXV e LIH, da Cons— pacto sobre um futuro regime de execução de
tituição Brasileira). Considerações que, natu- uma pena que, em abstracto, poderá vir a ser
ralmente, valem por inteiro na óptica da aplicada ao réu colaborador. O que bem se
ordem jurídico—constitucional portuguesa. compreende, pois só faz sentido admitir con-
O pacro de que a pena criminal a aplicar versações e decisões sobre 0 modo de cumpri-
a0 réu colaborador deverá iniciar—se ainda an— memo de uma pena de prisão depois de esta
tes de ser proferida a respectiva sentença viola ter sido definirivamente aplicada e de fixados
ainda o principia da presunção de inocência, OS factºs penalmente relevantes em que se
vertido no art. 5.°, LVII, da Constituição Fe— fundamenta. De outra forma ficariam subs-
deral: “ninguém será considerado culpado até o tancialmente ameagadas as próprias finalida—
trânsito em julgado de seªlztmçrt penal [antima— des de prevenção geral e especial que a pena
ta'ria". Estando o princípio constitucional- deve, via de regra, satisfazer.
mente consagrado nesres termos, isto é, com Nesta fase pré-semencial, o Ministério Pri-
uma amplitude que alcança o trânsito ern jul- blico Federal não está, portanto, habilitado
gado da sentença penal condenatória, será pela Lei n.° 12.850/13 a propor a um réu,
constitucionalmenre inadmissível uma anteci- como contrapartida da sua colaboração, qual—
pação processual do cumprimento da pena quer regime de progressão de pena. Como ral,
para um momento em que o réu não foi ainda deverá o Ministério Público abster-se de pro-
definitivamente dado como culpado da comis— merer aos réus que, prestando colaboração efi-
são do crime correspondente (nu/la poena sine caz, passarão para um regime muito mais
culpa). brando de execução de pena como é 0 do
cumprimento em meio aberto, quando sobre
eles pairem ameaças de aplicação de penas pri-
vativas da liberdade que podem ascender a de-
zenas de anos. Como é bom de ver, trata—se
”77
Cfr. o $ 6.D da cla’usula transcrita na penúltima de um incentivo à colaboração extraordinaria—
nota.
menre aliciante para o réu. Só que é um in—
(53)
Neste sentido, logo o fundamental acórdão do
centivo enganador, porque a Lei n.° 12.850/13
Tribunal Consrirucional Federal alemão de 06-06-1967,
in: BanCE 22, 49. não consente a concessão de um tal benefício.
N." 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URJSPRUDENCIA 33

Neste contexto, deverá repudiar-se 0 ar- não esse — será clara a ofensa ao princípio
gumento de que se o Ministério Público sem— do juiz natural.
pre poderia propor essa mesma vantagem de
progressão de regime após a sentença conde- § 5.3 Vantagens processuais sem base legal:
natória, então não ha’ razão para que o não suspensão dos procedimentos
possa fazer antes. Com efeito, as alterações de
regime de cumprimento de pena que o § 5.” 16. Arravés da combinação de várias cláu—
do art. 4.0 da Lei n.“ 12.850/13 permite são sulas, pactua-se nos Termos de Colaboração
apenas aquelas fundadas numa colaboração Premiada um expediente processual através do
posrerior à sentença. Convencionando-se com qual se procura poupar os réus colaboradores
o réu que a sua colaboração deverá iniciar-se à acção penal relativa a crimes objecto de de-
de imediato, antes de qualquer sentença, é evi— terminados processos e inquéritos policiais
denre que não é este o tipo de colaboração pendentes ou futuros. Nomeadamente, os cri—
que aquele preceito [em em ViSta, como se mes não abrangidos por eventuais sentenças
disse, uma colaboração pós-sentencia]. condenarérias que, uma vez transitadas em
De novo, a par desta afronta ao princípio julgado, ditem o cumprimento de penas de
da legalidade criminal, traduzida no ofereci- prisão de determinada duraçãoªºª. O que esta
mento e homologação de uma progressão de convenção da nºtoriamente a perceber é um
regime de execução de pena sem cobertura le— propósito de inércia na perseguição penal ao
gal, deparamos aqui também com uma viola- réu colaborador manifestado pelo Ministério
ção do prínczjvio do juiz natural. Resulta ela Público Federal. Inércia que perdurará até que
de 0 juiz competente para a homologação já não seja mais possivel proceder contra o
deste acordo de colaboração premiada (pré- réu, por [er entretanto sobrevindo a prescri—
-sentencial) não ser o juiz competente para ção do procedimento.
decidir da questão, já de ordem penitenciária, A ilegalidade deste pacto é também ela
da modalidade de execução da pena privativa manifesra.
da liberdade a cumprir pelo réu, caso ele ve- É certo que a Lei n.° 12,850/13 prevé, no
nha a ser condenado: o juiz de execução cri— § 2.0 do seu art. 413, a possibilidade de sus—
minal (art. 66.“, III, b, da Lei de Execução pensão do prazo para oferecimento de denún-
Penal brasileira). cia ou do próprio processo. Só que o faz não
Como se mencionou anteriotmente, deve
haver uma relação de congruência mbjm'íwz en-
tre o acto de homologação da colaboração pre— (ªº)
Vg: “(...) o Ministério Público Federal (MPF)
miada e o acto da efectivação dos benefícios propõe ao acusado, nos feitos acima especificados e na-
prometidos. Isto para assegurar que o Esrado queles que serão instaurados em decorrência dos fares
relevado: por intermédio d2 presenre colaboração, os
possa honrar o compromisso que assumiu com
seguintes benefícios legais, cumulativamente: (...)
o réu colaborador. A expectativa de que, neste
II. logo após o trânsito em julgado das sentenças con-
domínio da colaboração premiada, também denarérias que somem o montanre mínimo de 30
para o Estado para sunt serv/inda ficaria com- (trinra) anos de prisão a que se refere a alínea anterior,
prometida se aquela relação de congruência a suspensão em relação exclusivamente ao Colaborador

fosse quebrada. Por isso, o § 7.° do art. 4.0 de todos os processos e inquéritos policiais em trami—
tação pcranle a 13“ Vara Federal Criminal da Subseção
da Lei n.° 12,850/13 deve ser interpretada no
Judiciária dc Curitiba, assim como daqueles que serão
sentido de que a competência para a homo-
insraurados, inclusive perante outros juízos, em decor-
logação de um acordo de colaboração pre- rência dos fatos revelados a partir da present: colabo-
miada relative à progressão de regime peni— ração, com a respectiva suspensão de todos os prazos
tenciário pertence exclusivamente ao juiz de prescrieionais, por 10 (dez) anos. (...) § 2.“ Transcor-
execução criminal. Sendo ela, todavia, inter— rido o prazo de 10 (dez) anos sem a prática de fato
pelo Colaborador que justifique a rescisão desre acordo,
pretada no sentido que vai implícito nos acor—
voltarão a fluir os prazos prescricionais de todos os pro-
dos de colaboração premiada — isto é, dc que cedimenros suspensos nos termos do inciso II, até 2 ex—
a homologação pode caber a outro juiz que tinção da punibilidªde".
34 REVIsrA DE LEGISLAÇÃO E DE ]UNSPRUDENCM N.º 4000

para viabilizar a impunidade, por via proces- lio estadual da justiça penal proibição ge—
e da

sual, do réu colaborador, mas para favorecer nérica da acção penal privada e como expres—
a prestação da colaboração pretendida. De ma— são processual do dever estadual de protecção
neira que essas suspensões só são admitidas se de bens jurídicos com referente constitucio—
e na medida em que estejam a ser cumpridas mall“). Se é evidente que daqui não decorre
as medidas de colaboração pactuadas (“... até uma qualquer imposição de vigência absoluta
que sejam cumpridas as medidas de colabora- do princípio da obrigatoriedade“", também
ção"). Não 5e permite, assim, uma suspensão se nos aflgura de meridiana clareza que a sua
incondicionada como aquela que consta dos relevância no sistema do Estado de Direito
Termos de Colaboração Premiada. não se compadece com uma sua total 6 im—
Percebe—seaqui um intuíto defraudatério ponderada compressão como a que resulta da—
do regime que permica uma sobrestação do quela interpretação da disciplina legal da co—
procedimento através da omissão de denún- laboração premiada. O bloqueio total ali
cia inscrito no § 4.° do arr. 4.° da Lei n.º imposto ao funcionamento do princípio da
12.850/13. Neste preceito, () legislador per- legalidade da promoção processual é incom—
mite, na verdade, que o Ministério Público se patível com as injunções que para o Escado
abstenha de oferecer denúncia contra o cola— resultam do princípio constitucional do mo—
borador. Mas isso so se ele não for o líder da nopólio da administração da justiça penal e
organização criminosa e for a primeira a pres- tem como reverso a desprotecção dos bens ju—
rar efecriva colaboração. Estamos, pois, pe— rídicos tutelados pelas infracções criminais em
ranre um caso especial de derrogação do prin— que se consubsranciam os novos factos apura—
cípio da legalidade da promoção processual, dos“? Aniquilamento absoluto, e como tal
cujo accionamento está naturalmente sujeito desproporcionado e arbitrário, dos valores e
a estes apertados pressupostos. princípios consrirucionais enunciados que, em
Prevendo a lei um mecanismo processual nosso modo de ver, implica a inconstitucio—
próprio para subtrair o réu colaborador à ac— nalidade da referida norma criada por via in-
ção penal, é evidente que não pode ele ser terpretativa.
subverrido e contornado através da criação de A interpretação em desconformidade da
mecanismos sem sustentação legal destinados Constituição estende—se a várias fugas a0 prin—
a alcançar o resultado para o qual a lei previu cípio da obrigatoriedade da acção criminal: (i)
uma via processual própria. Lograr-se—ia dessa a montante, descortina—se na renúncia a priori

forma chegar a esse mesmo resultado prescin- da investigação de novos factos, estejam ou
dindo da reunião dos pressupostos de validade
estabelecidos pela lei para conceder ral Vanta—
gem. A fraude à lei aí perceptível revela à sa- (sº'
Sobre esre dever, desenvclvidamente, JOSH IbEN—
ciedade a violação do prínrt'pio comtímcianal SEE. “Das Grundrecht als Abwehrrechr und als staarli-
da legalidade processual. Che Schuerflicht", in: Isensee / Kirchhof (orgs.), Htm-
A isso acresce um também ele notório sa- dlmtl) de: Smatxrzrbtx der Bzmdnrepublí/z Deutschland,
3.ª ed., IX, § 191, C. F. Muller, 201 hpmsim; e KLAUb
crifício do principio da obrigatoriedade da pra—
STERN, “Die Schuupflichrenfunktion der Grundrechre:
moçãa prºcessual, dado que por esta via é posto
Eine jurisrische Entdeckung", Die Óffentliche Vem/rtl-
um travão absolutamente genérico e impon- tung, 2010, p. 241 e 55, E para uma sua consideração
derado ‘a perseguição de crimes do colabora— na dimensão processual, ROBERT ALEXY, Theoria der
dor entretanto apurados, por mais graves e so- Gnmdrtc/m, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986, p.
cialmente prejudiciais que sejam. 428 e 55.
(ªº PEDRO CAEIRO, «Legalidade e oportunidade: a
Julgamos não ser necessário encarecer a
perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta" e
transcendência do princípio da obrigatorie-
o fetiche da "gesrão eficiente" do sistema», Rez/im: da
dade da promoção processual, que constitui Minirte'ria Público, n.D 84, 2000, p. 33 e ss.
verdadeiramente uma das amarras do processo (53)
Nesta direcção, a propósito da chamada figura
penal à ideia de Estado de Direito material, da “testemunha da coma”, Roxm / SCHDNEMANN, Stra-
como correspectivo do princípio do monopó- filerfit/mmret/If’", $ 14/ 19.
N.“ 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDENCLA 35

não em relação com o processo em causa; e ção, essencialmente, na obtenção de meios


(ii) a jusante, mas ainda na fase de inquérito, probatórios — mzm'me, de declarações auto—
o vício de inconstitucionalidade incide sobre e hetero-incriminatórias dos réus colaborado-
a suspensão dos inquéritos em curso contra o res— através de uma colaboração processual
delator. Relativamente ao ponto (i) é consti- recebida a troco da promessa da concessão de
tucional & legalmente incontornável a obser— vantagens penais e processuais penais que, à
vância da obrigatoriedade da acção penal, pois face da Lei n.º 12.850/13. não podem ser
o MPF não pode comprometer—se a não in- concedidas.
vestigar e determinar o arquivamento de fac- O engodo do réu com promessas falsas e'
tos novos que não conhece, quer estejam ou um método que, pelo seu carácter enganosa,
não relacionados com o processo. No que se merece, há séculosl, a censura das leis e dos
refere ao ponto (ii) — transacção sobre a sus— cultores das ciências penais. Para não ir mais
pensão de processos ou Sºbrestamento dos in— longe, já no antigo direito português, Pascoal
quéritos em curso, fora dos casos de suspen- de Melo Freire advertia os juízes, quanto ao
são legalmente previstas —, é também “modo como se deve inquirir o réu", que “não
indiscutível obrigatoriedade de promoção
a se deve usar persuasões dolosas e promessas de
processual, vedando—sc, por isso, a possibili— impunidade tm de pena bruna/a”“). Uma dou-
dade de transacção e inerente não cumpri- trina à época também veiculada por Pereira e
mento da obrigação de investigar. Sousa, ao recomendar que “deve evitar-se a
suggestão, e não deve usar—se de dolosas per-
§ 6. A incomtítucionalídade ilegalidade de
e suasões; e fitlmx prome::a5”“"’.
utilização de provas proibidas e rt sua pra— Como não poderia deixar de ser, esta praí-
jeq‘fio sobre a ordem pública portuguesa biçãa de film: promessa; ao arguido para, por
via delas, levá-lo a colaborar com o processo
17. Aqui chegados, temos como seguro é aindª hoje acolhida, implícita ou mesmo ex-
que os acordos de colaboração premiada ana- pressamente, pela generalidade das legislações
lisados e os actos homologatórios que sobre processuais dos Estados orientados pela ma—
eles incidiram padecem dc tantas e tão osten— triz do princípio do Estado de direito. É o
sivas ilegalidades e inconstitucionalidades que caso, por exemplo, do Código de Processo Pe-
de forma alguma pode admitir—se o uso e a nal português, cujo art. 126.º, n.D 2, alínea e)
valoração dc meios de prova através deles con- — em concretização do art. 32.º, n.º 8, da
seguidos. Estamos em crer que os pactos de Constituição portuguesa —, qualifica como
colaboração aqui considerados emergem ofensivas da integridade física ou moral das
mesmo como exemplos paradigmáticas de mé- pessoas, e como [al proibidas, as provas obti-
todos proibidos de obtenção de prova no âm- das, mesmo que com consentimento delas,
bito da delação premiada. Por isso que, logo mediante pramm'rz de vantagem legalmente
à cabeça, caem sob a directa e imediata san- inadmissível. Provas que assim são taxadas
ção constante do inciso LVI do art. 5.º da
Constituição Brasileira: “são inadmissíveis, no
a: prom: obtidas por meia: ilícitos”.
processo,
A proibição de valoração inerente a esta
autêntica proibição de prova que envolve os re—
feridos termos de colaboração premiada colhe (º” PASCOAL JOSE DE MELO FREIRE DOS REIS, Insti-
ainda assento no mput do art. 157.0 Código tuições n': Direita
Criminal Pºrtuguês, 1794, p. 99 (con-
de Processo Penal Brasileiro, segundo o qual sultou-se a versão disponível online em http:/[www.
"são inadmissíveis, devendo ser fd.unl.pr/Ancxos/lnvesrigncno/1012.pdf) (itálico nosso).
dmntmnhadm
(º“ JOAQUIM PEREIRA E SOUSA, Primeira Lin/im m-
do processo, as [mn/tz: ílícítm, (mim entendida;
bre o Pmmm Criminal, 2.'1 ed., Lisboa, 1800. § 221,
a: obtidas em violação a norm/z: mmtimu'onai; p. 133 (disponível em http:/lwww.fd.unl.pt/Anexos/In-
ou legais". Funda-se esta proibição de valora— vestígacªo/1072.pdf) (itálico nosso). O A.
36 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURJSPRUDENCIA N.° 4000

como absalummenre nulas‘é’l, não podendo ser protecção do seu direito fundamental à não
usadas“). auto—incriminaçâo, a uma ideia de processo
É também nesta direcção, e igualmente no fizir e à preservação da rectidão ética que deve
quadro dogmático da doutrina das proibições set timbre do Estado. Todas estas dimensões
de prova, que se inclina a experiência proces- essenciais para uma concepção da estaduali-
sual penal alemã, louvando-se no § 13621, n.° dade consonante com o princípio rector do
1, última proposição, da StPO: apromerm de Estado de direito, postas directamente em xe—
uma vantagem não legalmente prevista e' proi— que pelos acordos de colaboração premiada
bídzzm). Nesta base, conclui-se, una voce, ser subjua'íce, implicam necessariamente uma di-
inadmissível a oferta de uma promessa de uma recta recondução da questão a0 âmago do
vantagem desprovida de cobertura legal como ideário das proibições de prova. Pois são pre—
contrapartida de um depoimento ou de um cisamente elas que fundam a máxima cogên—
certo conteúdo do depoimento“). Entre tais cia que às proibições de prova Cleve set asse—
promessas ridas como proibidas conta—se, na— gurada como expressão de autênticos direitos
turalmente, a garantia de impunidade ofere— de defesa (Abwebrrerhte) do cidadão na sua re-
cida a um co—réu para que incrimine um seu lação com o Estadoºº).
cúmplicewl Nos acordos de colaboração premiada em
Cremos não poder set senão este também apreço começa por saltar à vista a ofensa pal—
o enquadramento a atribuir aos acordos de mar garantía fimdrzmenml mmm (l auto-in-
51

colaboração premiada a que vimos Fazendo re— crímínrzçãa, consagrada expressamente pelo art.
ferência na seara do direito processual penal 5.º, LXIII. da Constituição brasileira na sua
brasileiro, mediante recurso ao art. LVL íª, dimensão nuclear do direita ao silêncio. Só ver—
da Constituição Brasileira e ao art. 157.° do dadeiramente poderá reconhecer-se um m’ma
CPP—B. tenemr re impmm arrume ali onde uma qual—
Só um absoluto e total repúdio da admis- quer colabotagio processual do suspeito ou do
sibilidade de provas arrancadas através de fal- arguido represente uma expressão autêntica da
sas e ilegais promessas fará jus ao respeito pela sua liberdade de decisão. Para que essa cola-
dignidade pessoal das pessoas enganadas, à boração possa assumir-se como uma manifes-
tação de auto-responsabilidade e do direito
fundamental do réu à sua autodeterminaçãoº"
é imperioso que a sua prestação se desenvolva
(ªº) Nesre sentido de que “a interdição &' absolum no num ambiente de plena liberdade e informa-
caso do direito à integridade pessoal", GOMES CANO-
ção. Declarações extorquidas arravés de mani—
'[lLHO / Vl 1'.\L MORURA, CRP Anotªr/(!, I‘, An. 32.“,
pulações e enganos não representam um exer-
XV. com :| concordância dc toda a doutrina e jurispru-
dência comum e constitucional (cfr. Ac. do TC n.° cício de liberdade e autodeterminação, mas a
426/2005, www.tribunalconstitucionalpt).
"“Cfr. MANUu. DA Cos l'A ANDRADE, Sab)? as Prai—
biçãej de Pram rm Fromm; Pum], Coimbra Editora, ”ª" Para uma síntese dos fundamentos político—cri-
1992. p. 209 e ss., : PAULO PlNl'O DE ALBUQUERQUE, minais e axiolégico-releolégicos da figura das proibições
Cnmmm’rio do Códigº de Prat-crm Pen/ll, 4.“ ed., Univ. de prova, COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prom
Católica Editora. 201]. Art. 126.", nm. 21. :m Fromm Penal, p. 117 e ss. Cfr. :u'nda, em sentido
ӻ" No original:
§ [36a (Verbotene Vernehrnungs- convergente, MAMA THEREZA ROCHA DE A5515 MOURA,
merhoden; Beweisverwertungsverbote): (1) (...) Die A Ilícimd: mt Obtençãa da Prova e sua Aferição, 1., in:
Drohung mit einer nach seinen Vorschriften unzuliz'ssi— www.3mbim-juridlcocombr.
gen Mafinahme und das Verrpmlmr eine: gtílleitl) m'- (7') Como esclarece COSTA ANDRADE, Sobre a:
r/Jz' uargest/Jmen Vorm'b rim! utrbatm".
Praibifo’e: de Frm/rl em Processo Penal, p. 121 e s., “o
[ºº' HERBERT
DIEMER, in: Karim/lan Knmmmmr zur que aqui está fundamentalmente em jogo é garamir que
Stmfiraztrmrtlmmg, 7." ed., C. H. Beck, 2013, § 1363, qualquer contribute do arguido, que resulte em desfa—
nm. 32. vor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e li-
'ºº' DIEMER, idem, ibidem, e GERD PFEIFFER. Srmf— vre de autorresponsabilidade. Na liberdade de declara-
pruztflom'mmg, 5.“ ed., C. H. Beck, 2005, § 1362, ção espelha-sc, assim, o estatuto do arguido como
nm. lO. aurénrim .mjeiru procemml".
N,0 4000 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE ]URISPRUDENCIA
37

sua mais lídima negação. Nesta ordem de pelo Ministério Público com a promessa de
ideias, é pacífico que depoimentos recolhidos vantagens que a lei não quis atribuir ao cola—
de um suspeito com recurso a0 engano, como borador: a impunidade deste, resultante da
sucede quando para esse efeito lhe são prome- proibição de valoração contra si das declara—
tidos benefícios destituídos de fundªmento le- çõesauto-incriminatórias prestadas; e a incri-
gal, representam uma ofensa à sua integridade minação dos terceiros por ele delatados em
moral e não podem, pura e simplesmente, ser tais declarações.
usados contra ele. Além disso, a defesa da matriz ética do
O atentado à dignidade pessoal dos réus Estado e, do mesmo passo, do carácter equi-
dererminado pelo procedimento ludibríoso tativo do processo impõem uma cortante de—
identificado não se esgota no facto de eles se- marcação de práticas processuais insidiosas e
rem levados a acusar—se a si mesmos em vir— desleais, o que só se consegue com (: isola—
tude de um engano em que o Estado os faz mento e completa extirpação dos meios de
incorrer. Radica ainda também na instrumen— prova através delas obtidos. Permitir que tais
talizagio de que são alvos para um fim que provas pudessem sobreviver contra terceiros,
lhes é estranho, a perseguição criminal de ter- isto é, as pessoas atingidas pelas delações de—
ceiros. O que estes acordos de colaboração las constantes, significaria pactuar com con—
premiada revelam e' uma tentativa de (I ou- dutas anti-éticas e representaria ainda uma de-
trtmce criar condições para a obtenção de pro- missão em relação ao compromisso de protecção
vas incriminarérias de pessoas suas parceiras e promoção dos cidadãos inerente ao princí-

no crime. Para isso, lança-se mão do instru- pio do Estado de direito que deve constituir
mento insidioso das promessas falsas, com sa- a pedra—de—toque da acção de todos os órgãos

crifício das mais elementares garantias de de- estaduais, mnxíme no domínio processual pe—
fesa próprias do escatuto processual do nal. A porta que assim seria escancarada para
a disseminação de tão deletérias práticas seria
arguido. Este vê—se assim manipulado para fins
a mesma por onde não tardaria a entrar a des-
que lhe são alheios, fazendo desembocar esta
confiança da comunidade no sistema de jus—
prática processual num atentado contra a dig—
tiça penal e concomitantemente o descrédito
nidade do réu, como se reconhece, desde
deste.
Kant, sempre que alguém é usado para a pros-
Tudo que, numa derradeira palavra, deve
secução de fins que [he são estranhos.
determinar uma irmtrítzt proibição de valora-
Postas assim as coisas, consideramos que
ç㺠das declarações auto- :3 hetero—incrimina—
a proibição de valoração de provas obtidas
térias produzidas por réus como contrapartida
deste jeito enganoso deve ser absoluta, projec-
de vantagens penais e processuais penais le-
tando—se não apenas na direcção do colabora- galmente indevidas propostas pelo Ministério
dor enganado, como também na da: terceira: Público Federal. Ou seja, uma proibição de
Visados pelas suas declarações delatóriasªª). Só
valoração mz erfêm processual deste: arguido: e
assim será minimamente assegurada neste do— ainda, simultaneamente, na esfêm pracmmzl
mínio a eficácia contra-fáctica de que as proi— da; demais pencas por Ele: incriminadtzs nos
bições de prova devem ser portadoras, mos- seus depoimentos delatórios.
trando que a ilegalidade não compensa. Até
porque se assim não fosse conseguir—se—ia atin- 18. Esta proibição de valoração que, nos
gir, por vias travessas, o resultado pretendido termos acabados de expor, deve ser oposta aos
contributos probatórios de réus que hajam ac—
mado animados por acordos de colaboração
premiada no âmbito da Operação Lavajato
(72)
Nesta direcção, pronunciando-se a favor de um viciados nos termos expostos deve, a nosso
carácter erga amrm das proibições de prova, ]OÁO
ver, projectar-se ainda numa rerum de auxílio
CONDE CORREIA, “Distinção cnrrc prova proibida por
violação dos direitos fimdamentais e prova nula numa
judiciária do Ministério Público português
perspectiva essencialmente jurisprudencial”. Rruixm da
com as autoridades brasileiras se 6 na medida
CE], n.º 4, 2006, p. 19s. em que for possível estabelecer uma conexão
38 REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDENCIA Nº 4000

entre os actos solicitados ao Estado português


e os contributos probatórios que o Ministério
Simulação e terceiros de boa fé“
(Breve apontamento)
Público Federal brasileiro logrou obter de réus
através dos meios enganosos identificados.
Uma recusa de auxílio que pode e deve
ocorrer se uma tªl ligação pudcr ser estabele-
1. O artigo 291.n do Código Civil
cida. Sendo esse o caso, ao prestar o auxílio
que lhe é requcrido pelo Estado brasileiro, o Como norma que o Código Ci-
se sabe, a

Estado português estaria a perpetuar e a com— vil destina àprotecção de terceiro de boa fé
em caso de negócio nulo ou anulado &' o art.
pactuar com práticas processuais que, segundo
291.º('). Servindo-nos do ensinamento de Or—
a Constituição portuguesa, são absolutamente
inadmissiveis por atentarem contra a integri— lando de Carvalho, terceiros, para este efeito,
são “os que, integrando—se numa e mesma
dade moral de pessoas submetida ao processo
penal (arr. 32.°, n.“ 8 da CRP). Uma colabo— cadeia de transmissões, vêem a sua posição
afecrada por uma ou várias causas de invali—
ração que, deste modo, representaria uma
clara e direct/t afmm ao prínrzjnío da ordem pú- dade anteriores ao acto em que foram inter—
venientes”(ª). Assim, se A vender a B e este a
blím pelo qual se deve pautar a cooperação
C, o último e' terceiro, tal como o seriam D,
judiciária em matéria penal oferecida pelo Es—
tado português (art. 2.º da Lei n.º 144/99); E ou quaisquer outros adquirentes que vies-
sem a inserir-se na mesma cadeia de transmis—
6 ofensa essa que constitui fundamento de re-
sões e vissem a sua posição afectada
por qual—
cusa de cooperação nos termos do art. B.“, n.º
1, e), da Convenção de Auxílio judiciária em
quer invalidade anterior ao acto em que
Matéria Penal entre o: Ertzztlax Meméra: da Co- participaram.
mzmidzm'e do: Paim de Língua Pormg‘uem. Servindo—nos deste exemplo, se o negócio
Como sustentámos supra, a cláusula de entre A e B vier a ser invalidado, a transmis—
ordem pública deve integrar o ideário da jus- são a C será também inválida, pois B carece
fundamcnmlidade postulado pelo princípio do dc legitimidade para o efeito (é uma transmis-
Estado de direito (art. 2.º da CRP). Seria, são a um domino), dada a referida invalidade,
pois, de todo cm todo incompreensível que devendo a situação ser reposra no nam qua
um órgão do sistema judiciário português, ante (art. 289.º). Todavia, se C estiver de boa
como é o caso da Procuradoria-Geral da Re- fé e se se verificarem os demais requisitos do
pública, admitisse como que “fechar os olhos” art. 291.º, C beneficiará da protecção desta
a práticas desleaís e enganosas atentatórias de norma, por força da qual a declaração de nu-
princípios fundamentais da ordem jurídico- lidade ou a anulação do negócio não prejudi-
—consritucional nacional — como o princípio
da legalidade criminal, o princípio da jurisdi-
cionalidade, o princípio do juiz natural ou o
"lEste trabalho vai ser publicado nos Esrudos cm
princípio da legalidade da promoção proces-
Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa An—
sual — e de direitos fundamentais das pessoas
dradc e faz parte do programa do Grupo “Contrato e
realizadas num processo penal de um Estado
desenvolvimento social" do Institute jurídico da FDUC,
estrangeiro para o qual é solicitada a sua coo— no âmbito do Projecto "Desafios Sociais, Incerteza e
peração. Presta: auxílio neste caso significaria, Direito" (UID/DIR/04643/2013).
enflm, renegar a jusestadualidade que deve (" Pertencem ao Código
Civil em vigor os preceiros
constituir a marca—de—égua da actuação das legais que citemos sem indicação da sua proveniência.
(” ORLANDO DE CARVALHO, Darín Geral
autoridades públicas portuguesas. do Direito
Civil. Sumária:“ desenvolvidas“ para we do; aluna; da 2."
Numa palavra, seria atentar contra a or-
Ano (1.“ Turma) do Curry jurídicº de 1980/81, ed. po-
dem pública do Estado português.
licop., Centelha, Coimbra, 1981, p. 135 (texto repu-
blicado em ORLANDO DE CARVALHO, Teºria Geral do
Direitº Civil, ed. da Coimbra Editora, sob a coordena-
J. J. GOMES CANOTILHO ção de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Gui-
NUNO BRANDÃO marães & Maria Regina Redinha, 3.‘ ed., Coimbra, No-
vembre de 2012, p. 170).

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