Você está na página 1de 4

EFEITO BORBOLETA NA MAÇONARIA: o caso de Dutty Boukman

Kennyo Ismail1

Efeito Borboleta é um fenômeno previsto na Teoria do Caos que acabou ganhando


popularidade, sendo interpretado como se o simples bater das asas de uma borboleta pudesse
desencadear uma série de acontecimentos que provocasse uma tempestade do outro lado do
mundo. Esse é o cerne da Teoria do Caos, que compreende que mesmo os sistemas mais
deterministas são imprevisíveis a longo prazo, frente a uma ínfima diferença nas condições
iniciais, tornando-se caóticos.i
Essa seria a justificativa para o fato da meteorologia realizar apenas previsões curtas e,
ainda assim, algumas dessas previsões falharem. Mas a aplicação da Teoria do Caos não fica
restrita à meteorologia, já que sistemas abertos de longo prazo também são objeto de estudo
de outras áreas do conhecimento, como nas ciências biológicas e nas ciências sociais.
Partindo desse pressuposto teórico, verifica-se um efeito borboleta observado na
história da Maçonaria. Neste caso, a inesperada mudança nas condições externas chamava-se
Dutty Boukman, cujo bater de suas asas em uma ilha no Caribe mudaria toda a Maçonaria.
Acredita-se que Dutty Boukman teria nascido na Jamaica e chegado à Ilha de São
Domingos como escravo de um inglês.ii Respeitado sacerdote Vodu,2 no final do século XVIII,
ele foi o grande líder de uma rebelião de negros escravizados que trabalhavam,
principalmente, nas plantações de cana, café e tabaco. Sob sua liderança carismática, os
oprimidos conseguiram o recuo dos colonizadores franceses, em 1791.
Nessa época, a ilha de São Domingos era a colônia mais rentável da França e
responsável por quase metade da produção de açúcar de todo o mundo. Mas para que isso
fosse possível, demandava-se centenas de milhares de escravos, o que gerava na ilha uma
proporção superior a oito escravos para cada francês.iii Então, pode-se acreditar que uma
revolução era iminente.
Em 1801, Napoleão decidiu pela retomada da colônia e retorno da escravidão.
Batalhas foram travadas até o início de 1802, quando as últimas lideranças locais se
entregaram. Contudo, a retomada do domínio francês durou apenas alguns meses, até que os
rebeldes se reorganizaram. A batalha final foi travada em novembro de 1803 que, vencida
pelos rebeldes, levou à independência do Haiti, declarada oficialmente em 1 de janeiro de
1804. E assim, o Haiti foi a primeira nação independente de toda a América Latina e Caribe.
Todo esse movimento de independência foi presidido por um Ritual Vodu realizado em
uma floresta chamada Bois Caïman, conduzido por Dutty Boukman, em agosto de 1791. Por
sua forte liderança, sua profecia de liberdade e a crença em sua invencibilidade, ele se tornou
a prioridade do exército francês, que o capturou, executou e degolou, em novembro daquele
mesmo ano, expondo sua cabeça publicamente. Isso o tornou um mártir, similar a William
Wallace, na Escócia; José Martí, em Cuba; e a Tiradentes, no Brasil.
E como o sacrifício de um porco, numa floresta de uma ilha do Caribe, conduzido por
um Sacerdote Vodu, pode ter afetado a Maçonaria em todo o mundo?

1
Kennyo Ismail é escritor, revisor técnico, editor, palestrante, professor e pesquisador. Na Maçonaria
Simbólica, é VM da Loja de Pesquisas "Dom Bosco #33" - GLMDF (2019-2021).
2
Vodu é uma religião de matriz africana popular no Haiti e com raízes comuns ao Candomblé no Brasil e
à Santería em Cuba.
iv
Figura 1: Cayman Wood Ceremony (JEAN-PIERRE).

Com a Revolta de São Domingos, os militares franceses tiveram que se evadir da ilha.
Dentre eles, estava o Conde de Grasse-Tilly. Nobre, com histórico militar na família, teria sido
iniciado, em 1782, na famosa Loja "Du Contrat Social", também conhecida como "Loja-Mãe
Escocesa" desde 1776, e que exercia liderança litúrgica sobre mais de trinta outras Lojas
francesas ditas "Escocesas".v

Figura 2: Conde de Grasse-Tilly (autor desconhecido).vi

Em 1789, Grasse-Tilly desembarca com sua família na ilha de São Domingos,


assumindo posto militar, bem como um latifúndio de propriedade de seu falecido pai. Com a
revolta de escravos, ele busca exílio em Charleston, Carolina do Sul, nos Estados Unidos da
América. E logo está envolvido nas atividades maçônicas locais. O nome de Grasse-Tilly consta
entre os chamados Onze Cavalheiros de Charleston, considerados os pais do Rito Escocês
Antigo e Aceito e fundadores de seu primeiro Supremo Conselho, também conhecido como
Supremo Conselho "Mãe do Mundo", atualmente o da Jurisdição Sul dos EUA, fundado em
maio de 1801.vii
Ainda, é sabido que o Rito Escocês Antigo e Aceito, com 33 graus, teria sido
desenvolvido pelos pais fundadores do rito com base no Rito de Heredom ou de Perfeição,
com 25 graus. Albert Pike, ao realizar profundos estudos e pesquisas sobre os oito graus
adicionais, concluiu que dois deles, o 31° e o 33°, eram originados da Loja "Du Contrat Social",
cujos rituais teriam sido fornecidos por Grasse-Tilly.viii Até mesmo o nome, "Rito Escocês
Antigo e Aceito" teria sido escolha posterior do Conde, quando de sua implementação na
França.
Isso já seria o bastante para destacar o impacto de Grasse-Tilly sobre a criação do Rito
Escocês Antigo e Aceito, seu formato e os graus que o compõem. Dos Onze Cavalheiros de
Charleston, ele era o único, de fato, francês, de onde o Rito de Heredom teria chegado, e tinha
sido membro da famosa "Loja-Mãe Escocesa", que, de certa forma, governou os chamados
graus escoceses. Assim, era, dentre os demais pais fundadores, o mais experiente naquele
caótico sistema maçônico que estava sendo em Charleston ordenado.
No entanto, a influência de Grasse-Tilly vai além. Se dependesse dos outros
fundadores, o Rito Escocês Antigo e Aceito talvez permaneceria, por muitos anos, restrito aos
Estados Unidos da América. Foi pelas mãos de Grasse-Tilly, portando carta patente do
Supremo Conselho "Mãe do Mundo", que foi fundado o segundo Supremo Conselho, em Porto
Príncipe, em maio de 1802.ix Também foi ele o responsável pela fundação do terceiro Supremo
Conselho, na França, em outubro de 1804, e pelo desenvolvimento dos rituais dos graus azuis
ou simbólicos para o Rito Escocês Antigo e Aceito, supostamente no mês seguinte. x
Deve-se observar que, neste período, eclodiam as chamadas Guerras Napoleônicas e o
Conde de Grasse-Tilly tinha suas obrigações militares enquanto braço direito do Marechal
Kellermann. Buscando conciliá-las, funda o Supremo Conselho da Itália, em 1806; das Duas
Sicílias, em 1809; e o da Espanha, em 1811. xi
O Marechal Kellermann era um homem com idade avançada, que não comandava
tropas em campo de batalha, participando da conquista política das batalhas por meio de seus
homens de confiança, como Grasse-Tilly. Assim, vê-se que a França, nesse período
napoleônico, adotou estratégia similar à do Império Britânico, que também tinha na
Maçonaria uma instituição participativa na consolidação sociopolítica de sua expansão.xii Por
meio de organizações maçônicas, era possível integrar a elite nativa com a elite
"colonizadora".xiii Essa integração, regulada pela hierarquia e moralidade maçônicas,
proporcionava uma elite nativa condizente com o conceito de "corpos dóceis",xiv além de redes
sociais e de poder úteis em iniciativas diplomáticas.xv
Algo que reforça esse entendimento é a manutenção francesa da "tradição maçônica"
de escolha de um representante de seu império como governante da organização maçônica
então criada na "colônia": Eugênio de Beauharnais, enteado de Napoleão, no Supremo
Conselho da Itália; Joaquim Murat, cunhado de Napoleão, no Supremo Conselho das Duas
Sicílias; Miguel José de Azanza, íntimo do irmão mais velho de Napoleão, no Supremo
Conselho da Espanha. A diferença observada é que, nos casos britânicos, as organizações
maçônicas eram criadas com status de subordinação (Grandes Lojas Provinciais), enquanto que
os Supremos Conselhos já nasciam independentes.
Fica evidente que Grasse-Tilly era a pessoa certa nos momentos e locais certos, tanto
para ajudar a criar como para expandir o Rito Escocês Antigo e Aceito. E assim, o Rito Escocês
Antigo e Aceito tornou-se a mola propulsora da Maçonaria no decorrer do século XIX, criando
um novo processo de reprodução maçônica, com seus Supremos Conselhos sendo fundados
concomitantemente, ou até mesmo antes das Grandes Lojas ou Grandes Orientes em
territórios ainda maçonicamente desocupados.
A partir daí, o Rito Escocês tornar-se-ia não apenas predominante em todo o mundo
maçônico, mas, via de regra, a pedra angular do mesmo, tendo sido protagonista ou partícipe
das principais mudanças, seja criação, cisão, fusão, ruptura, aliança ou tradição, que tenham
ocorrido nas principais jurisdições maçônicas nos últimos dois séculos.
E se não fosse o inesperado bater de asas daquela borboleta, Dutty Boukman, que
provavelmente nada sabia sobre Maçonaria; se não fosse aquele Ritual Vodu que ele conduziu
numa floresta úmida do Haiti, em agosto de 1791, sem qualquer relação com a Maçonaria,
nada disso teria acontecido. Grasse-Tilly não teria se exilado em Charleston e fornecido os
rituais de sua Loja-Mãe; os Onze Cavalheiros de Charleston não teriam se formado, ou pelo
menos não com aqueles irmãos; os 33 graus não teriam sido organizados, pelo menos não com
aqueles rituais; o Rito Escocês Antigo e Aceito não teria sido criado ou, pelo menos, nomeado
assim; os graus simbólicos do rito não teriam sido desenvolvidos; e, com absoluta certa, o Rito
Escocês não teria se espalhado pelo mundo de forma tão fácil e rápida.
Dutty Boukman é indiscutivelmente um herói e mártir da Independência do Haiti. Mas,
além disso, deve-se levar em consideração a possibilidade de que seu feito tenha extrapolado
o intento de liberdade de seu povo e as fronteiras de sua ilha. O que talvez não tenhamos
ainda um processador com capacidade de calcular é: como seria a Maçonaria Mundial sem a
ocorrência dessa variação? De todo modo, fica a conclusão de que um pouco de Teoria do
Caos pode colaborar para uma melhor compreensão do processo maçônico de se colocar
Ordem sobre o Caos (Ordo ab Chao).

NOTAS:
i
LORENZ, E. N. Deterministic nonperiodic flow. Journal of the Atmospheric Sciences, n. 20, 1993, p. 130-
141.
ii
GEGGUS, D. The Haitian Revolution in Atlantic Perspective. In: The Oxford Handbook of the Atlantic
World 1450-1850, CANNY; MORGAN (Ed.). Oxford: Oxford University Press, 2011.
iii
ROGOZINSKI, J. A Brief History of the Caribbean Revised. New York: Facts on File, 1999.
iv
JEAN-PIERRE, U. Cayman Wood Ceremony. Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/
Figura-5-Cayman-Wood-Ceremony-de-Ulrick-JeanPierre_fig2_323268400
v
DARUTY, J. E. Recherchessur le Rite Écossais Ancien et Accepté. Paris: Chez le F. Panisset, 1879.
vi
Retrato realista em óleo do Conde de Grasse-Tilly. Disponível em:
https://br.pinterest.com/pin/397583473358540493/
vii
HARRIS, R. B. Eleven Gentlemen of Charleston. Washington, DC: Supreme Council, SJ, USA, 1959.
viii
PIKE, A. Liturgy of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry, for the Southern
Jurisdiction of the United States of America. Vol. IV. Reprint Edition. Washington, DC: Supreme Council,
1962.
ix
COIL, H. W.; BROWN, W. M. Coil's Masonic Encyclopedia. New York: Macoy, 1961.
x
SIMON, J. REAA: Rituel des trois premiers degrés selon les anciens cahiers - 5829. Bonneuil-en-Valois:
Éditions de la Hutte, 2013.
xi
GOULD, R. F. The Concise History of Freemasonry. Mineola, NY: Dover Publications, 2007.
xii
HARLAND-JACOBS, J. “Hands Across the Sea”: The Masonic Network, British Imperialism, and North
Atlantic World. Geographical Review, Vol. 89, Issue 2, p. 237–253, 1999.
xiii
HARLAND-JACOBS, J. Builders of Empire: Freemasons and British Imperialism, 1717-1927. Chapel Hill:
The University of North Carolina Press, 2007.
xiv
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
xv
FREITAS NETO, E. C. REDES DE SOCIABILIDADE, REDES DE PODER: Maçonaria e Diplomacia Track 2 na
África Francófona. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais). Universidade Federal da Bahia.
Salvador, 197 p., 2019.

Você também pode gostar