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ISSN: 2238-1112

A Dança entre duelos e duetos: Aproximações teóricas e


propositivas entre Dança e Artes Marciais

Jonatas Lopes de Matos Santos (UFBA)

Dança como Área de Conhecimento: Perspectivas Epistemológicas, Metodológicas


e Curriculares

Resumo: Este artigo busca colaborar para discussões sobre as relações entre
dança e artes marciais trazendo experiências de aulas-laboratórios promovidos no
laboratório de contato-improvisação da Escola de Dança da UFBA - Salvajam. As
artes marciais vão além de sistemas de defesa pessoal, participam do fluxo cultural
de onde se situam colocando em diálogo saberes ancestrais, religiosidades,
sistemas de pensamento e reflexões a respeito do funcionamento da sociedade e
até da política (ANDRAUS, 2014). Os artistas marciais, para além de práticas de
movimentos em contextos combativos, são mídia dos ambientes que participam
(GREINER e KATZ, 2001). Além disso, a dimensão do conflito presente no combate
é um potente gerador de temas para criações em dança, fortalece o conhecimento
sobre si mesmo e tem implicações na forma como se produz poeticamente no
campo das artes da cena (ANDRAUS, 2016). Foram feitas cerca de quinze aulas-
laboratórios na Salvajam tendo como ponto de partida repertórios de artes marciais
ou experiências adquiridas por meio de práticas de artes marciais. A partir dessa
experiência pôde-se perceber três direcionamentos de atividades: práticas técnicas,
práticas arquetípicas e práticas mais indiretamente relacionadas a artes marciais.
Destarte, essa experiência abre espaço para a discussão sobre o que há de dança
nas artes marciais, e, também compreender horizontes possíveis para artes marciais
e dança juntos, duetar e duelar.

Palavras-chave: DANÇA. ARTES MARCIAIS. MARCIALIDADE.


MULTIRREFERENCIALIDADE DE REPERTÓRIO.

Abstract: This article seeks to contribute to discussions on the relationship between


dance and martial arts, bringing experiences from laboratory-classes promoted in the
contact-improvisation laboratory at Escola de Dança da UFBA - Salvajam. Martial
arts go beyond self-defense systems, they participate in the cultural flow from which
they are located, bringing into dialogue ancestral knowledge, religiosities, thought
systems and reflections on the functioning of society and even politics (ANDRAUS,
2014). Martial artists, in addition to practicing movements in combative contexts, are
the media of the environments they participate in (GREINER and KATZ, 2001). In
addition, the dimension of conflict present in combat is a powerful generator of
themes for dance creations, strengthens knowledge about oneself and has
implications for the way in which one poetically is produced in the field of performing
arts (ANDRAUS, 2016). About fifteen laboratory classes were held at Salvajam
having as a starting point martial arts repertoires or experiences acquired through
martial arts practices. From this experience, three directions of activities could be
perceived: technical practices, archetypal practices and practices more indirectly
related to martial arts. Thus, this experience opens space for the discussion about
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what is dance in martial arts, and also to understand possible horizons for martial
arts and dance together, dueting and dueling.

Keywords: DANCE. MARTIAL ARTS. MARTIALITY. REPERTOIRE


MULTIREFERENTIALITY.

1. Lutadores podem Dançar?

As artes marciais se desenvolveram ao longo das eras com diversas


abordagens a respeito de como melhor combater, no entanto, junto com esses
desenvolvimentos acompanharam características ligadas a cosmovisões particulares
de mundo, e as próprias subjetividades a respeito do que significaria lutar. Dentro de
comunidades de praticantes de artes marciais tradicionais1 é comum reconhecer
traços de pensamentos, metáforas e teorias que buscam nortear suas práticas a
dimensões subjetivas e até holísticas. Esses pensamentos colaboram para a
formação dos praticantes, constituindo artistas marciais, que expressam suas
subjetividades (e as subjetividades de suas tradições) através do movimento. O
acontecimento das atividades marciais nesse contexto se estabelece em um
panorama justamente interdisciplinar, pois se tratam de potenciais sentidos de forma
somática e delineada esteticamente das ideias ao corpo e do corpo às ideias; e com
potencial compositivo em propostas corporais para respostas complexas seja de
combate, seja por motivações marciais que vêm das subjetividades dos sujeitos.
Técnicas, golpes, reflexões e propostas de ação das Artes Marciais buscavam
solucionar questões nos planos físico e espiritual, em seus contextos de formação.
Há, nas Artes Marciais, contextos holísticos, assim como, em outros ambientes,
rituais materializam a chuva e jejuns purificam a matéria (humana). Bem como,
também, o dançar: nas diversas culturas, a(s) dança(s) corporifica(m) o(s)
espírito(s), e espiritualizam os corpos; marcializam a vida e vitalizam o conflito;
codificam e recodificam o humano – através de suas expressões artísticas e
culturais (BOURCIER, 1987; SEVERINO, 1988; REID e CROUCHER, 2009). No
entanto, o desenvolvimento da competitividade comercial, do capitalismo e da

1
Entendendo artes marciais tradicionais como as atividades marciais que agregam em suas
atividades tanto as dimensões culturais e encaminhamentos filosóficos quanto os próprios
desenvolvimentos corporais de atividades de combate, que seguem determinados tipos de tradições -
sejam familiares (como estilo da família Yang de Tai Chi), sejam as chamadas escolas (como
Shotokan de Karate). Uma perspectiva que estabelece uma certa oposição às compreensões
esportiva e competitiva das atividades de combate. 861
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globalização foram remodelando e transformando essas práticas ao longo tempo.


Porém, mesmo nesse novo cenário e novas configurações, se expressar por meio
de referenciais das Artes Marciais é poder estimular os potenciais de expressividade
já reconhecidos na práxis da luta, reconhecer e valorizar essas expressividades do
corpo, como sendo um interesse artístico, é uma preocupação cultural
transdisciplinar.
Perseguindo o que alguns artistas marciais mais compromissados à ideia
de efetividade2 falam pejorativamente que certas atitudes e perspectivas marciais
não são luta, mas dança, resolvi buscar o que seria dançar para entender o que
significaria, portanto, assumir essa artisticidade, contido poeticamente na
marcialidade: Incursões pelo campo da dança e das artes cênicas colaboraram para
compreender melhor essa expressividade.

2. Salvajam - Relatos de Encontros Marciais

Ao longo de 2017 eu passei a participar de oficinas e laboratórios de


dança e artes cênicas, assumindo minha experiência em artes marciais3 como
experiência em dança ou artes marciais. Essas experiências colaboraram para sentir
esses repertórios de movimentos e reflexões desobrigados do relacionamento
objetivo na dimensão da luta, colaborando até para revisões e atualizações desses,
percebendo os potenciais poéticos que existem nas artes marciais. Em 2018 conheci
e comecei a participar do laboratório de improviso e contato - Salvajam4, e pude
conhecer diversas atividades5 que se propunham a se articular em dança. Ao me
tornar colaborador no laboratório pude também propor aulas-laboratório6, convidar

2
Questionáveis, uma vez que muitas dessas visões marcam encaminhamentos claramente
competitivos influenciados pelo capitalismo neoliberal.
3
Sou instrutor formado pela arte marcial Hapkido, de acordo com a tradição Bum Moo Kwan,
praticante desde 2010, e praticante livre de Tai chi de acordo com a tradição Taiji Zen, Karate
Shotokan e Hema (Historical European martial arts - Artes marciais históricas europeias ou Esgrima
Histórica.
4
A Salvajam é um laboratório de improviso e contato que funciona por meio de ciclos de Jams
precedidas de aulas-facilitações propostas pelo público ou a convite dos colaboradores. Em tempos
não-pandêmicos funciona todas às sextas na Escola de Dança da UFBA, com coordenação da Profa.
Dra. Gilsamara Moura e do Dr. Leonardo Harispe (Leo Serrano).
5
Em linhas gerais eram atividades de artes cênicas, artes circenses, artes marciais, cultura hip-hop,
provocações inspiradas na cultura popular e práticas holísticas/contemplativas, se propondo a se
inserir numa atmosfera de contato-improvisação.
6
Sou colaborador junto com a artista-educadora Letícia Argôlo desde 2012.
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artistas e sugerir espaços alternativos. Pude mediar, no laboratório de CI, cerca de


quinze facilitações de procedimentos artísticos, com três principais direcionamentos:
O primeiro direcionamento que me dispus a tomar foi promover
procedimentos ligados a movimentos e princípios de artes marciais, propondo
improvisações inspiradas em técnicas de artes marciais. Aponto dois exemplos
desse direcionamento, o primeiro deles foi mais direcionado a pontos em comum,
aproveitando a aproximação dos princípios de movimentos semelhantes entre o
contato e improvisação e as artes marciais de contato como o Aikido, Hapkido e
Judo7, trouxe a aula-laboratório ―Da Pulsação ao Movimento‖ (Fig. 1).

Figura 1: Card de divulgação da Jam do dia 25/05/2018 com a


aula facilitação ―Da Pulsação ao Movimento‖ veiculado no
instagram, facebook e em algumas agendas culturais.

Essa facilitação trouxe os encaminhamentos técnicos inspirados no


princípio da água na arte marcial Hapkido, que versa sobre adaptabilidade ao refletir
a respeito das qualidades físicas da água e suas metáforas:

O Princípio da Água exige adaptação às circunstâncias e prontidão para


ajustar uma ação ou resposta com facilidade. Às vezes, caracterizado como
―tenacidade‖ ou ―implacável‖ pelas qualidades penetrantes do líquido, o
Princípio da Água é melhor representado pela maneira pela qual a água se
adapta à forma do recipiente que o contém. Dessa maneira, o praticante

7
Aproximações que ocorrem tanto a nível de procedimentos quanto a nível de influências ao longo da
história do próprio contato-improvisação.
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aceita tudo o que é dado para trabalhar e aproveita ao máximo.(GREEN,


8
2001, p.160 tradução nossa )

O princípio da Água não só está circunscrito aos ensinamentos do


Hapkido mas obteve também popularidade na cena das Artes Marciais por meio do
artista marcial e ator Bruce Lee. Em uma entrevista que ele deu para Pierre Berton
em 1971, Bruce Lee comenta sobre as temáticas dos seus filmes partindo de como
ele acredita que o artista marcial deveria ser:

Esvazie a sua mente, seja sem forma. Disforme, como a água. Se você
colocar água em um copo, ela se torna o copo. Você coloca água em uma
garrafa, ela se torna a garrafa. Você coloca água em um bule de chá, ela se
torna o bule. Agora, a água pode fluir ou pode explodir. Seja água, meu
9
amigo. (LEE, 1971 tradução nossa ).

Um princípio de origem zen-budista que tem tido no Hapkido um


laboratório corporal de aplicabilidade. O outro exemplo desse primeiro
direcionamento mais técnico foi a facilitação ―Explorando Extensões‖ (Fig 2).

Figura 2: Card de divulgação da Jam do dia 17/05/2019


com a aula facilitação ―Explorando Extensões‖ veiculado
no instagram, facebook e em algumas agendas culturais
de Salvador-BA.

8
original: The Water Principle calls for adaptation to circumstances and a readiness to adjust an
action or response with ease. Sometimes characterized as “tenacity” or “relentlessness” for the
penetrating qualities of the liquid, the Water Principle is better represented by the manner in which
water adapts to the shape of the container that holds it. In this way, the practitioner accepts whatever
is given to work with and makes the most of it (GREEN, 2001, p.160).
9
original: Empty your mind, be formless, shapeless - like water. Now you put water into a cup, it
becomes the cup, you put water into a bottle, it becomes the bottle, you put it in a teapot, it becomes
the teapot. Now water can flow or it can crash. Be water, my friend (LEE, 1971). 864
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Essa facilitação explorou mais o caráter laboratorial da Salvajam,


pensando o contato com a extensão de bastões, e a aula-laboratório foi inspirada
nas movimentações com espada e bastão.
O segundo direcionamento que foi proposto foi mais voltado ao que
poderíamos chamar de dimensão arquetípica das artes marciais. Para exemplificar
esse segundo direcionamento tivemos a facilitação ―Puxe seu Arco - Improvisação,
meditação, contato e Inspiração para o arqueiro de dentro e a dança de fora‖ (Fig 3):

Figura 3: Card de divulgação da Jam do dia 09/11/2018 com a


aula facilitação ―Puxe seu Arco - Improvisação, meditação,
contato e Inspiração para o arqueiro de dentro e a dança de
fora.

Nessa aula-laboratório, apesar de trazer técnicas básicas de arqueria de


acordo com princípios do Kyudo10 e do Pa kua11, busquei trazer ambiências
improvisacionais inspiradas nas dimensões que a figura do arqueiro traz.
Movimentamos tanto questões voltadas à dimensão marcial quanto fizemos
incursões em torno do potente simbolismo da figura do arqueiro caçador, que temos
tão próximo nos contextos religiosos brasileiros, Oxóssi, o orixá caçador.

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Tradicional arqueria japonesa.
11
Uma das tradições de arqueria chinesa. 865
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O terceiro e último direcionamento foram propostas inspiradas em


experiências com artes marciais mas que funcionam como laboratório de dança ou
experimento cênico, um encaminhamento mais indiretamente ligado às artes
marciais, no entanto, são inspiradas em vivências dentro de práticas de artes
maricias. Como exemplo desse terceiro direcionamento tivemos a aula-facilitação
―Sobre Instabilidades e Desequilíbrios‖ (Fig 4):

Figura 4: Card de divulgação da Jam do dia 29/03/2019 com a


aula facilitação ―Sobre Instabilidades e Desequilíbrios‖
veiculado no instagram, facebook e em algumas agendas
culturais.

Inspirado na prática do Zui Quan Wushu, conhecido popularmente como


Kung Fu estilo bêbado, que traz soluções de combate inspirados na instabilidade da
experiência da pessoa na condição ébria, fizemos experimentos laboratoriais de
movimento perseguindo a ideia de mover-se em instabilidade.
Na segunda metade de 2019 planejamos e fizemos entre 05 e 09 de
fevereiro de 2020 a 1ª Imersão Salvajam - Impro & Contato. A Imersão Salvajam foi
um evento de vivência compartilhada, um encontro de cinco dias e quatro noites
buscando perseguir formas de conectividade e escuta que viemos alimentando nos
ciclos anuais de Jams da Salvajam. Aulas-laboratórios ministradas pelos próprios
participantes com diferentes ambientes e diferentes abordagens, ocorreram no
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Centro Histórico da Ilha de Itaparica12, e tivemos práticas no centro esportivo local,


na praia e no Centro de Cultura, Ética Mirante do Solar e na praça principal. Nas
redes sociais do laboratório veiculamos alguns cards, como o exemplo a seguir (Fig
5):

Figura 5: Um dos cards de divulgação da 1ª Imersão Salvajam,


veiculado no dia 28/10/2019.

E, nesse contexto imersivo, experimentamos dimensões improvisacionais


de materiais de dança, artes cênicas, artes marciais, atividades meditativas e de
anatomia experiencial menos objetivamente ligados ao contato, mostraram
potenciais improvisacionais potentes dessas expressividades. Percebi (ao longo
desses anos trazendo marcialidades ao laboratório) que, por mais que o contato-
improvisação tenha sido provocado por uma relação entre encaminhamentos
contemporâneos de dança e a arte marcial Aikido, há bastante horizonte relacional
das artes marciais no contato-improvisação.
Esses três encaminhamentos podem ocorrer simultaneamente, o anseio
dessa discussão inicial, juntamente com essa revisão, é compreender melhor como
as artes marciais podem ser articuladas em dança. E, para além disso, como
encadear canais nos quais artistas marciais possam se associar e colaborar com a

12
Administrado pelo Prof. Dr. Pasqualino Magnavita. 867
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paisagem artística da dança. Importa que se discuta e relacione as expressividades


contidas nas Artes Marciais, pois, estão inseridos em colonialidades de gênero
calcados nas ideias de que: dançar é coisa de menina e lutar é coisa de menino.
Essas colonialidades colaboram para negar certas sensibilidades e subjetividades a
sujeitos dessas práticas. E há uma outra questão nesse contexto: a possibilidade de
abrir a discussão da poética e estética ligadas à marcialidade, se relacionando com
as subjetividades já acostumadas a lidar com lutas, resistências e dificuldades, o
que Boaventura de Sousa Santos provocou em comunicação oral13 que são os
Corpos Conhecimentos, corpos dentro dos contextos das Epistemologias do Sul
(SANTOS, 2020). Estar atento à arte marcial em si é se atentar também à dimensão
do conflito, que possibilita trabalhar arquetipicamente essa ideia, que se faz tão
necessário, especialmente em tempos frenéticos nos quais a pressa em se chegar a
resultados se sobrepõe à busca de qualidade pressuposta no fazer artístico
(ANDRAUS, 2016).

3. Duetos e Duelos - Dança e Artes Marciais em Perspectivas Teóricas

As artes marciais como vemos hoje passaram por várias transformações


e foram produzidas em diversos momentos e contextos diferentes. Talvez um ponto
de diferenciação do campo da dança seja que as artes marciais já foram recursos
estatais e lidas também como formas de armamentos (principalmente em momentos
que os embates não estavam tão distantes da extensão do corpo, os conflitos
contemporâneos contam com armas que atingem alvos muito mais distantes que a
disposição dos corpos). No entanto, essa pesquisa se volta a um entendimento de
artes marciais cujo sujeito se percebe em algum tipo de relação entre um fazer
estético-expressivo e um modo de vida de desenvolvimento pessoal e social. Essa
forma de lidar com o golpear e o combater não tem uma origem única e precisa, mas
podemos ver nas figuras arquetípicas de figuras divinas (deusas, deusas, heróis,
heroínas e espíritos), um exemplo que marca a própria palavra é o ―marcial‖ que
vem do deus Marte da mitologia romana, que era uma figura lida como virtuosa e
sábia (SEVERINO, 1988). No entanto, a circunscrição da ideia de artes marciais
como atividade individual e de desenvolvimento espiritual como temos disseminado

13
A possibilidade de epistemologias refletindo sobre o corpo em contexto de dessensibilização
subjetiva e controle através da dor. 868
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está ligada à difusão das práticas do extremo oriente, mais especificamente China,
Japão e Coreia. Todavia, se trata de uma articulação que pode ser relacionada com
práticas de diversas partes do mundo. O desenvolvimento dessa ideia fez com que a
―luta‖ fosse uma atividade não exclusiva do soldado, mas também do monge (como
pode ser visto na figura milenar do mosteiro Shaolin) e do errante que busca
desenvolver e cultivar seu espírito (como pode ser visto na figura dos Ronins -
Samurais desempregados do japão feudal) (SEVERINO, 1988).
Perseguindo esses fundamentos e origens do que tem se entendido sobre
o que seriam as artes marciais até então, Howard Reid e Michael Croucher
sintetizaram no livro ―Caminho do Guerreiro: o paradoxo das artes marciais‖, e uma
série de documentários. Fazendo entrevistas, pesquisas acadêmicas e documentos
sobre a origem desse ofício de artista marcial, Reid e Croucher (2009) apontam que:

Um processo de pensamento que deve ter começado quando o primeiro


homem passou deliberadamente uma rasteira em outro evoluiu e
transformou numa poderosa combinação de disciplinas intelectuais e
físicas, análogas às empregadas por um músico ou dançarino profissional
(REID e CROUCHER, 2009, p.16).

Há nas artes marciais, nessa perspectiva, uma performatividade mais


articulada que simplesmente a prática de golpes, pois,

quando um mestre de t‘ai-chi defronta-se com um adversário, ele leva ao


confronto milhares de anos de pensamento filosófico, religioso e prático.
Viveu quase toda a sua vida de acordo com princípios estabelecidos há
séculos e, nesse processo, fortaleceu o corpo e provavelmente também
garantiu para si uma vida longa e saudável. (REID e CROUCHER, 2009,
p.16).

Essa pesquisa de Howard Reid e Michael Croucher (2009) colabora para


situar as diversas artes marciais que compõem o imaginário dessas atividades e
parte de seus contextos.
É possível identificar no campo das Artes Marciais um espaço de
produção estética, onde se movimentam relações complexas, que geram repertórios
específicos, que, em trânsito, podem enriquecer outros campos de expressão. E os
estudos sobre Artes Marciais têm se transformado ao longo dos anos transitando
entre métodos de solucionar problemas de combate, atividade esportiva e cultivo
interior: o debate tem crescido no cenário internacional promovido pelos chamados
Martial Arts Studies (Estudos de Artes Marciais) por meio de figuras como Paul
Bowman, que busca tratar de Artes Marciais numa perspectiva transdisciplinar.
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Estudos de Artes Marciais têm surgido em áreas tão diversas como Antropologia,
Estudos Culturais, Estudos Cinematográficos, Direito, Gestão, Filosofia, Psicologia,
Sociologia, Ciência do Esporte, História, Medicina e muito mais, mostrando que se
trata de um fenômeno dinâmico e bastante transversal (BOWMAN, 2018). Essas
transversalidades passam diretamente pela reflexão do lugar do corpo na sociedade,
pois esse corpo se coloca como produtor de conhecimento (BOWMAN, 2015),
discussão essa que podemos relacionar com o conceito de corpomídia (GREINER e
KATZ, 2001).
Haveria então um potencial de encontrar nos processos das próprias
Artes Marciais diferentes tipos de produção de conhecimento, a proposta do
corpomídia numa perspectiva marcial tem particulares sensibilidades e estéticas
específicas (considerando todo esse horizonte de exploração conceitual bastante
múltiplo). Nesse horizonte conceitual, não há de se perder de vista ainda que o
corpo se manifesta de múltiplas formas, e que já se expressa em seu local na
cultura, nas suas relações e em seus próprios fazeres artísticos (KATZ e GREINER,
2015). Sendo assim, o que proponho é mais uma articulação estética e subjetiva
para o corpo: a marcialidade. Essa marcialidade ocorre no trânsito dos conceitos
que se relacionam e intercedem campos do cinema, tradições de pensamento e
narrativas que se articulam em forma de imagens seja num campo midiático, seja no
próprio meio das práticas marciais. Portanto, cada imagem configura um tipo
adaptativo para um determinado espaço-tempo, situação e composição
(BITTENCOURT, 2012), havendo assim substrato corpo-imagético nas
subjetividades das artes marciais para compor danças, (re)fazer imagens, duetar e
duelar.

4. Fronteiras e Relações

As Artes Marciais e as Danças se constituem como manifestações


expressivas do corpo, tendo como fronteira dessas linguagens (corporais) o próprio
corpo. Essas manifestações, ao explorar o potencial expressivo do corpo, já se
relacionaram. Nessa perspectiva, em primeira análise há dois encaminhamentos na
relação entre o lutar e o dançar: a Dança nas Artes Marciais e as Artes Marciais na
Dança.
Para pensar sobre a ótica relacional de Dança nas Artes Marciais é
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possível recorrer novamente à figura de Bruce Lee, que colaborou para uma
condição mais moderna da ideia de Artes Marciais. Uma de suas inquietações era o
aprofundamento da experiência do combate. Para trabalhar isso, ele desenvolveu
diversos estudos e conceitos, boa parte deles registrados no seu livro O Tao do Jeet
Kune Do14. Conceitos como ―trabalho de pés‖, ―timing‖, e ―sensibilidade do corpo‖
(LEE, 2016), estão relacionados, tanto direta quanto indiretamente com sua
experiência15 em Dança (MCGUIRE, 2019). Reconhecendo o próprio mover do
corpo em relação a ele mesmo (não necessariamente ligado a uma combatividade)
e o corpo que detém sensibilidade de movimento.
As práticas corporais alternativas ganharam espaço na Dança a partir do
fim do século XIX e início do século XX. É nesse cenário que se faz conveniente a
observação da abertura de caminhos para a proposta relacional de luta na Dança.
Incorporando principalmente Danças típicas e yoga, a Dança não só teve como
influência os repertórios das práticas corporais, mas também se nutriu de sistemas
de pensamento, como do Zen-budismo, Hinduísmo, dentre outros. Temos, na
história da Dança, vários diretores e coreógrafos de companhia que trouxeram
práticas corporais para preparação corporal dos bailarinos. Ruth St. Denis, Martha
Graham e Merce Cunningham são exemplos de nomes que movimentaram a Dança
relacionando com práticas do Oriente. No entanto, foi com Debora Hay e Steve
Paxton que as Artes Marciais tiveram relações mais diretas (ANDRAUS, 2014).
Debora Hay, na busca da Dança ligada à experiência de viver, passa a se relacionar
com Danças ritualísticas, meditação e Tai Chi Chuan. Estudou Tai Chi Chuan como
forma não violenta de Artes Marciais e uma forma de meditação cinética. Buscava
combinar a fluidez e flexibilidade do Tai Chi com Dança social, relacionando
dinâmicas de movimento e relaxamento à Dança (ANDRAUS, 2014). O dançarino e
coreógrafo americano Steve Paxton colaborou para a origem do contato-
improvisação (C.I.), aproveitando princípios fundamentais do Aikido para explorar e
desenvolver essa nova prática. Diferente do Tai Chi, a leveza e conservação da
energia do Aikido é trabalhada num sentido dialógico. Dessa forma, o contato
improvisação é uma Dança que busca trabalhar com a arte de desequilibrar,

14
Jeet Kune Do (traduzido ficaria como ―o caminho do punho interceptador‖) era a forma como Bruce
Lee orientava sua perspectiva de Artes Marciais. Depois se tornou uma arte marcial sistematizada
pelos seus alunos.
15
Bruce Lee foi dançarino de cha-cha-cha durante muitos anos e chegou a ser campeão em Hong
Kong. 871
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contrabalançar, encontrar bases do corpo, aprender a mecânica do corpo para lidar


com o peso de outra pessoa e técnicas de respiração (ANDRAUS, 2014). O contato-
improvisação também tem servido como espaço laboratorial de experimentação de
outras práticas, em eventos e festivais de contato-improvisação é comum ver
propostas de workshops de C.I. com Tai Chi, Artes Circenses, Kinomichi, etc.
Aponto dois provocadores de potenciais artísticos das artes marciais, num
sentido de ser referência, de como lutar pode ser uma atividade preenchida de
subjetividades: filmes de Artes Marciais (em especial os filmes do gênero Wuxia) e a
Capoeira.
Os filmes de Artes Marciais16, apesar de apresentarem, muitas vezes,
roteiros comuns do tipo cavalaria ou romântico, desenvolveram dinâmicas de
conflitos focadas nos repertórios corporais, por isso os combates representavam os
estilos de luta envolvidos e suas filosofias. Seja com inserção de fantasias ou
explorando uma figura mítica da história da China, os filmes chamados
popularmente de filmes de Kung Fu, ao longo dos anos foram dando visibilidade às
técnicas e ensinamentos de combate das artes marciais como práticas preenchidas
de sentido. A implementação das artes marciais japonesas, chinesas e coreanas nos
países do ocidente17 ocorreu antes da popularização do cinema de Artes Marciais,
porém, foi com a popularização dos filmes de Artes Marciais que os atores e
praticantes passaram a movimentar o sentido de atividade estética das Artes
Marciais no imaginário social.
A Capoeira abala conceitualmente as fronteiras da dança e da luta. Os
golpes envolvidos no Jogo de Capoeira buscam solucionar: combatividades, rítmicas
e musicalidades envolvidas (VIDOR e REIS, 2013). Essa simultaneidade garante a
sofisticação da execução, demonstrando que trabalhos marciais, em
desenvolvimentos de prática de dança, são encaminhamentos ricos em
possibilidades. A capoeira deixa na superfície a própria complexidade que há na
combatividade, como fenômeno de envolvimento também estético e somático. Ela
constrói um ambiente de performatividade improvisada em resposta às poéticas das
próprias tradições, da música envolvida e das histórias pessoais de cada
participante.

16
Em gênero literário e cinematográfico, originário da China, que mistura fantasia e artes marciais ou
ainda, basicamente luta de espadas em um mundo medieval imaginário.
17
Em especial nos Estados Unidos da América. 872
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5. Disposições Finais

Longe de definir o fenômeno das artes marciais como atividade de dança,


importa que seja reconhecível do fazer marcial qualidades que podem ser dispostas
em dança. As artes marciais têm sido objeto de estudo e pesquisa no campo da
educação física e se incorporado cada vez mais nas dimensões esportivas, no
entanto, se constituem atividades também expressivas, que manifestam fenômenos
que tocam a artisticidade dos fazeres de dança e cênicos. Houve relações diretas ao
longo da história da dança e indiretas por meio do campo do cinema, no entanto,
promover relações entre dança e artes marciais (considerando as diversas
atividades marciais que existem18) é aumentar a paisagem artística da dança e abrir
espaço para artistas marciais trazerem novas perspectivas de movimento. Para as
artes marciais, por sua vez, essa relação pode colaborar com a problematização da
necessidade de efetividade, liberando para que se movimentar também seja
subjetivo. Destarte, essas aproximações também contribuem para decolonialidade
de gênero, desconstruindo as históricas ideias de que a combatividade pertence ao
homem e a sensibilidade pertence à mulher, o que proponho é que dancemos
lutando, e lutemos dançando, todes.

Jonatas Lopes de Matos Santos


UFBA
jonatasldmsantos@gmail.com
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, Artista do Movimento (artista
marcial formado pela arte marcial Hapkido, de acordo com a tradição Bum Moo Kwan; dançarino
contemporâneo e de Contato-Improvisação) e Colaborador do Laboratório de Contato & Improviso -
Salvajam

Adriana Bittencourt Machado


UFBA
Bittencourt.a@uol.com.br
Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica PUC/SP. Licenciatura em Dança, Especialista em
Coreografia UFBA. Pesquisadora e Vicecoordenadora do
PPGDANÇA e pesquisadora do DMMDC.

Referências:

ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial na formação do artista da


cena. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.
ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial na formação do artista da cena:

18
Que em tantas culturas e civilizações têm suas relações com dança muito mais diretas, como lutar
se apresentar como atividades de dança. 873
ISSN: 2238-1112

repercussões poéticas. In: ANDRAUS, Mariana Baruco Machado (Org.).


Marcialidade e a cena: Técnicas e poéticas nas relações tradição-
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