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Resumo: Este artigo busca colaborar para discussões sobre as relações entre
dança e artes marciais trazendo experiências de aulas-laboratórios promovidos no
laboratório de contato-improvisação da Escola de Dança da UFBA - Salvajam. As
artes marciais vão além de sistemas de defesa pessoal, participam do fluxo cultural
de onde se situam colocando em diálogo saberes ancestrais, religiosidades,
sistemas de pensamento e reflexões a respeito do funcionamento da sociedade e
até da política (ANDRAUS, 2014). Os artistas marciais, para além de práticas de
movimentos em contextos combativos, são mídia dos ambientes que participam
(GREINER e KATZ, 2001). Além disso, a dimensão do conflito presente no combate
é um potente gerador de temas para criações em dança, fortalece o conhecimento
sobre si mesmo e tem implicações na forma como se produz poeticamente no
campo das artes da cena (ANDRAUS, 2016). Foram feitas cerca de quinze aulas-
laboratórios na Salvajam tendo como ponto de partida repertórios de artes marciais
ou experiências adquiridas por meio de práticas de artes marciais. A partir dessa
experiência pôde-se perceber três direcionamentos de atividades: práticas técnicas,
práticas arquetípicas e práticas mais indiretamente relacionadas a artes marciais.
Destarte, essa experiência abre espaço para a discussão sobre o que há de dança
nas artes marciais, e, também compreender horizontes possíveis para artes marciais
e dança juntos, duetar e duelar.
what is dance in martial arts, and also to understand possible horizons for martial
arts and dance together, dueting and dueling.
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Entendendo artes marciais tradicionais como as atividades marciais que agregam em suas
atividades tanto as dimensões culturais e encaminhamentos filosóficos quanto os próprios
desenvolvimentos corporais de atividades de combate, que seguem determinados tipos de tradições -
sejam familiares (como estilo da família Yang de Tai Chi), sejam as chamadas escolas (como
Shotokan de Karate). Uma perspectiva que estabelece uma certa oposição às compreensões
esportiva e competitiva das atividades de combate. 861
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Questionáveis, uma vez que muitas dessas visões marcam encaminhamentos claramente
competitivos influenciados pelo capitalismo neoliberal.
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Sou instrutor formado pela arte marcial Hapkido, de acordo com a tradição Bum Moo Kwan,
praticante desde 2010, e praticante livre de Tai chi de acordo com a tradição Taiji Zen, Karate
Shotokan e Hema (Historical European martial arts - Artes marciais históricas europeias ou Esgrima
Histórica.
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A Salvajam é um laboratório de improviso e contato que funciona por meio de ciclos de Jams
precedidas de aulas-facilitações propostas pelo público ou a convite dos colaboradores. Em tempos
não-pandêmicos funciona todas às sextas na Escola de Dança da UFBA, com coordenação da Profa.
Dra. Gilsamara Moura e do Dr. Leonardo Harispe (Leo Serrano).
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Em linhas gerais eram atividades de artes cênicas, artes circenses, artes marciais, cultura hip-hop,
provocações inspiradas na cultura popular e práticas holísticas/contemplativas, se propondo a se
inserir numa atmosfera de contato-improvisação.
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Sou colaborador junto com a artista-educadora Letícia Argôlo desde 2012.
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Aproximações que ocorrem tanto a nível de procedimentos quanto a nível de influências ao longo da
história do próprio contato-improvisação.
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Esvazie a sua mente, seja sem forma. Disforme, como a água. Se você
colocar água em um copo, ela se torna o copo. Você coloca água em uma
garrafa, ela se torna a garrafa. Você coloca água em um bule de chá, ela se
torna o bule. Agora, a água pode fluir ou pode explodir. Seja água, meu
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amigo. (LEE, 1971 tradução nossa ).
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original: The Water Principle calls for adaptation to circumstances and a readiness to adjust an
action or response with ease. Sometimes characterized as “tenacity” or “relentlessness” for the
penetrating qualities of the liquid, the Water Principle is better represented by the manner in which
water adapts to the shape of the container that holds it. In this way, the practitioner accepts whatever
is given to work with and makes the most of it (GREEN, 2001, p.160).
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original: Empty your mind, be formless, shapeless - like water. Now you put water into a cup, it
becomes the cup, you put water into a bottle, it becomes the bottle, you put it in a teapot, it becomes
the teapot. Now water can flow or it can crash. Be water, my friend (LEE, 1971). 864
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Tradicional arqueria japonesa.
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Uma das tradições de arqueria chinesa. 865
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Administrado pelo Prof. Dr. Pasqualino Magnavita. 867
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A possibilidade de epistemologias refletindo sobre o corpo em contexto de dessensibilização
subjetiva e controle através da dor. 868
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está ligada à difusão das práticas do extremo oriente, mais especificamente China,
Japão e Coreia. Todavia, se trata de uma articulação que pode ser relacionada com
práticas de diversas partes do mundo. O desenvolvimento dessa ideia fez com que a
―luta‖ fosse uma atividade não exclusiva do soldado, mas também do monge (como
pode ser visto na figura milenar do mosteiro Shaolin) e do errante que busca
desenvolver e cultivar seu espírito (como pode ser visto na figura dos Ronins -
Samurais desempregados do japão feudal) (SEVERINO, 1988).
Perseguindo esses fundamentos e origens do que tem se entendido sobre
o que seriam as artes marciais até então, Howard Reid e Michael Croucher
sintetizaram no livro ―Caminho do Guerreiro: o paradoxo das artes marciais‖, e uma
série de documentários. Fazendo entrevistas, pesquisas acadêmicas e documentos
sobre a origem desse ofício de artista marcial, Reid e Croucher (2009) apontam que:
Estudos de Artes Marciais têm surgido em áreas tão diversas como Antropologia,
Estudos Culturais, Estudos Cinematográficos, Direito, Gestão, Filosofia, Psicologia,
Sociologia, Ciência do Esporte, História, Medicina e muito mais, mostrando que se
trata de um fenômeno dinâmico e bastante transversal (BOWMAN, 2018). Essas
transversalidades passam diretamente pela reflexão do lugar do corpo na sociedade,
pois esse corpo se coloca como produtor de conhecimento (BOWMAN, 2015),
discussão essa que podemos relacionar com o conceito de corpomídia (GREINER e
KATZ, 2001).
Haveria então um potencial de encontrar nos processos das próprias
Artes Marciais diferentes tipos de produção de conhecimento, a proposta do
corpomídia numa perspectiva marcial tem particulares sensibilidades e estéticas
específicas (considerando todo esse horizonte de exploração conceitual bastante
múltiplo). Nesse horizonte conceitual, não há de se perder de vista ainda que o
corpo se manifesta de múltiplas formas, e que já se expressa em seu local na
cultura, nas suas relações e em seus próprios fazeres artísticos (KATZ e GREINER,
2015). Sendo assim, o que proponho é mais uma articulação estética e subjetiva
para o corpo: a marcialidade. Essa marcialidade ocorre no trânsito dos conceitos
que se relacionam e intercedem campos do cinema, tradições de pensamento e
narrativas que se articulam em forma de imagens seja num campo midiático, seja no
próprio meio das práticas marciais. Portanto, cada imagem configura um tipo
adaptativo para um determinado espaço-tempo, situação e composição
(BITTENCOURT, 2012), havendo assim substrato corpo-imagético nas
subjetividades das artes marciais para compor danças, (re)fazer imagens, duetar e
duelar.
4. Fronteiras e Relações
possível recorrer novamente à figura de Bruce Lee, que colaborou para uma
condição mais moderna da ideia de Artes Marciais. Uma de suas inquietações era o
aprofundamento da experiência do combate. Para trabalhar isso, ele desenvolveu
diversos estudos e conceitos, boa parte deles registrados no seu livro O Tao do Jeet
Kune Do14. Conceitos como ―trabalho de pés‖, ―timing‖, e ―sensibilidade do corpo‖
(LEE, 2016), estão relacionados, tanto direta quanto indiretamente com sua
experiência15 em Dança (MCGUIRE, 2019). Reconhecendo o próprio mover do
corpo em relação a ele mesmo (não necessariamente ligado a uma combatividade)
e o corpo que detém sensibilidade de movimento.
As práticas corporais alternativas ganharam espaço na Dança a partir do
fim do século XIX e início do século XX. É nesse cenário que se faz conveniente a
observação da abertura de caminhos para a proposta relacional de luta na Dança.
Incorporando principalmente Danças típicas e yoga, a Dança não só teve como
influência os repertórios das práticas corporais, mas também se nutriu de sistemas
de pensamento, como do Zen-budismo, Hinduísmo, dentre outros. Temos, na
história da Dança, vários diretores e coreógrafos de companhia que trouxeram
práticas corporais para preparação corporal dos bailarinos. Ruth St. Denis, Martha
Graham e Merce Cunningham são exemplos de nomes que movimentaram a Dança
relacionando com práticas do Oriente. No entanto, foi com Debora Hay e Steve
Paxton que as Artes Marciais tiveram relações mais diretas (ANDRAUS, 2014).
Debora Hay, na busca da Dança ligada à experiência de viver, passa a se relacionar
com Danças ritualísticas, meditação e Tai Chi Chuan. Estudou Tai Chi Chuan como
forma não violenta de Artes Marciais e uma forma de meditação cinética. Buscava
combinar a fluidez e flexibilidade do Tai Chi com Dança social, relacionando
dinâmicas de movimento e relaxamento à Dança (ANDRAUS, 2014). O dançarino e
coreógrafo americano Steve Paxton colaborou para a origem do contato-
improvisação (C.I.), aproveitando princípios fundamentais do Aikido para explorar e
desenvolver essa nova prática. Diferente do Tai Chi, a leveza e conservação da
energia do Aikido é trabalhada num sentido dialógico. Dessa forma, o contato
improvisação é uma Dança que busca trabalhar com a arte de desequilibrar,
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Jeet Kune Do (traduzido ficaria como ―o caminho do punho interceptador‖) era a forma como Bruce
Lee orientava sua perspectiva de Artes Marciais. Depois se tornou uma arte marcial sistematizada
pelos seus alunos.
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Bruce Lee foi dançarino de cha-cha-cha durante muitos anos e chegou a ser campeão em Hong
Kong. 871
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Em gênero literário e cinematográfico, originário da China, que mistura fantasia e artes marciais ou
ainda, basicamente luta de espadas em um mundo medieval imaginário.
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Em especial nos Estados Unidos da América. 872
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5. Disposições Finais
Referências:
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Que em tantas culturas e civilizações têm suas relações com dança muito mais diretas, como lutar
se apresentar como atividades de dança. 873
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Instagram: @salva.jam. Disponível em https://www.instagram.com/p/B4Ky19MFItq/.
Acesso em: 01 Jul. 2021
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