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Unidade I: História da Arte Narrativa

Tema: As principais formas e linguagem de expressão da arte narrativa

1. A arte narrativa: do surgimento à afirmação

No século XX, a partir do estruturalismo, surge uma espécie de teoria semiótica da teoria da
narrativa (ou narratologia) que se pressupõe estudar a narrativa em geral, como os Romances,
Filmes, Espectáculos, mitos, anedotas, canções, músicas e vídeos. Encabeçados por Roland
Barthes, este estudo pretendia encontrar uma gramática da narrativa, equivalente a que
Saussure encontra para a fala. É a partir desta fase que surgem as fichas de leitura e os estudos
sobre o narrador, actantes e as estratégias, que actualmente recebem o nome de elementos da
narrativa.

Segundo Vieira 2017, os primeiros estudos da narrativa começaram a partir da Poética de


Aristóteles, escrito em torno dos anos de 335 A.C, mais recentemente, Vladimir Propp (1928)
retomou ao prolema da narrativa que, analisando contos de fada russos, lançou os alicerces da
actual narratologia.

Na perspectiva de Ginzburg (2000), a Narrativa é caracterizada pelo domínio da ficção, isto é,


da construção imaginativa na elaboração, que mantém relações medianas, sejam simbólicas ou
alegóricas, com a realidade histórica. Este autor Sugere ainda que para se classificar os modos
da narrativa é imprescindível recorrer às noções teóricas tradicionais e modernas. Na visão
de Roland Barthes, a narrativa está presente em todos os tempos, todos lugares, todas as
sociedades, começa com a própria história da humanidade.

Para o filósofo alemão Walter Benjamin citado por Vieira (2017), a existência da narrativa
implica um significado profundo, afirmando que dentro da tradição de narrar histórias podem-
se desvendar as relações humanas ao longo da história.

a) A evolução na narrativa

A direcção evolutiva das formas narrativas estrutura-se em três partes. A primeira corresponde
à história antiga da narrativa, compreendendo os tempos primordiais e a formação do período
clássico greco-latino. A segunda parte realiza a passagem do núcleo clássico para a Idade
Média e tem o seu ponto culminante no período do pós-Renascimento, com o início da
formação do romance. Completado o círculo de invenção e amadurecimento do género, a

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terceira parte considera o Modernismo do século XX como um período de reinvenção, em que
a ficção empreende um movimento de retorno, dialogando com obras da tradição.

b) O Surgimento
Por caracterizar a história antiga da narrativa, a primeira parte acompanha o percurso
empreendido da oralidade à escrita, desentranhando as raízes fundamentais, por meio das quais
despontaram as formas originárias do género: o mito sacro e os rituais de fertilidade; as lendas;
o conto ficcional e folclórico. Dessas raízes surgiram os três fios principais com que se
construiu o tecido narrativo literário ancestral: o mítico, o mimético e o ficcional.
O amálgama desses materiais diversos (o mítico, o mimético e o ficcional) formalizou a síntese
épica, originando o tronco da árvore genealógica, cuja bifurcação, nos tempos de passagem da
oralidade à escrita, gerou o ramo da narrativa histórica e abriu os caminhos para a prosa
desenvolver, nos rumos do ramo ficcional, um sistema artístico de representação caracterizado
por uma natureza imaginativa com uma função predominantemente estética.

Para Motta (2007), Homero representa um marco divisor, o tronco da síntese épica chega ao
ápice, enquanto modelo de elaboração poética que a tradição deixou, com o engenho e arte que
Aristóteles teorizou. A partir desse ponto, o elemento transformador e de grande repercussão
na evolução do género foi o desenvolvimento da prosa escrita. Na passagem da oralidade à
escrita, com a gradativa mudança do verso para a expressão em prosa, a narrativa começa a
ganhar a configuração a que chegou e que mantém nos tempos atuais.

O desenvolvimento da prosa escrita provocou, no desenho da árvore, a divisão do tronco


formado pelo amálgama épico em dois ramos fundamentais. De um lado, cresceu o galho da
narrativa empírica; do outro, o ramo ficcional. Naquele, vê-se a herança e o desdobramento da
raiz da lenda; nesse, a projecção do fértil terreno da imaginação em que se nutriu a raiz
ancestral formada pelo conto imaginativo popular e folclórico. Com o andamento da narrativa
em prosa, o culto ao modelo épico dá lugar à celebração da diferença, no ramo da invenção
ficcional.

A divisão do tronco épico marca, nesse momento, um recorte cultural que distingue o mito da
História, e os fatos, da ficção. A narrativa em prosa que segue o fluxo factual, buscando um
efeito de “verdade”, dá origem à História, enquanto o outro ramo, de base totalmente ficcional,
impulsionado pelo efeito retórico e a busca da beleza, dá nascimento à narrativa de ficção
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grega, também conhecida como “romance” grego. A narrativa histórica, seguindo a progressão
da escrita e um conceito linear de tempo, contribui para a formação do género narrativo, à
medida que delineia, sob o comando de um impulso histórico, na cultura grega, um padrão de
narração biográfico, em terceira pessoa, e outro, já no período de domínio romano, de ordem
autobiográfica, na primeira pessoa.

Essa contribuição pode ser vista sob dois aspectos: primeiro, no desdobramento que esses
padrões narrativos tiveram na geração das formas consolidadas na Idade Média, como a
crónica, os anais e os diários; segundo, como concomitância e repercussão no lado oposto da
árvore, com o desenvolvimento do ramo ficcional, quando se desenvolveram dois padrões
narrativos, o biográfico, da narrativa grega, e o autobiográfico, da sátira latina. Com o
surgimento da narrativa grega em prosa escrita, a tradição cede seu lugar à invenção e ao
engenho do enredo conscientemente artístico. O rapsodo dá lugar ao narrador, uma invenção
do autor, que precisa encontrar novos mecanismos de verossimilhança para o convencimento
de seu novo destinatário: o leitor. Regida por um “impulso romântico” e um ideal de heroísmo
e beleza, a ficção grega projecta para a história do género o “padrão da biografia-busca”, nas
palavras de Scholes e Kellogg (1977, p.164), citado por Motta (2007).
Seguindo-se a trajectória desse modelo, pode-se acompanhar a história do género até o
Romantismo do século XIX, quando ele se completa e passa, a partir do Modernismo, a se
refazer, crítica e parodicamente, com a sua recriação em novas propostas de invenção.
Considera-se que a narrativa em prosa escrita grega molda um paradigma de representação
literária idealizado em contraponto ao paradigma realista alimentado pelo padrão da
“autobiografiaviagem”, construído pela prosa satírica latina. Os modelos referidos polarizam
as duas vertentes da criação literária, por meio das quais a prosa de ficção construiu, com
contribuições criativas e originais, as inúmeras possibilidades de actualização e combinação
dos elementos desses paradigmas, formando a história do género narrativo em prosa.

c) A Afirmação
Após a montagem dos paradigmas nomeados de “ideal” e “real”, vale a pena assinalar os
aspectos mais importantes da árvore, delineando a travessia do núcleo clássico da prosa
ficcional greco-latina, que passa pelo final da Idade Média e concentra no pós-Renascimento,
quando se dá o início da forma do romance. Com onó do reencontro dos ramos histórico e
ficcional, a árvore reata o fio mítico diluído, mas nunca perdido, aos fios mimético e ficcional
para tecer a nova forma narrativa, o romance, que substitui o amálgama épico e suas
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implicações histórico-culturais, inaugurando a história moderna do género. Tornando-se o
veículo de expressão da burguesia emergente, o romance permuta o sistema mitológico clássico
pela base bíblica do mito judaico-cristão. No final da travessia, a árvore da narrativa adquire
o seu formato adulto, configurando, no reencontro dos ramos histórico e estético, sob a regência
do fio mitológico cristão, a alegoria da “Árvore do Bem e do Mal”, que passa a indicar as
possibilidades de representação do ideal e do real.

A terceira e última parte do desenho da árvore, com os galhos provenientes de todas as


contribuições que formam a sua rica e complexa copa, caracteriza o Modernismo do século XX
como um período de reinvenção da linguagem da narrativa a partir das convenções da tradição.

d) O romance como catapulta do género narrativo

A narrativa épica, em versos, consolidou o ponto mais alto da tradição oral e iniciou o processo
de expansão da escrita. O romance, em prosa escrita, constituiu-se na forma dominante com
que a narrativa atingiu o seu círculo de divulgação e expressão mais altos, ao ponto de tornar-
se quase sinónimo de narrativa. Caracterizamos dois marcos principais atingidos pelas formas
narrativas: a poesia épica é referência obrigatória em qualquer trabalho dessa natureza pela
importância do seu momento histórico de definição, dominação e expansão. Por se colocar
como uma espécie de continuidade daquela forma, transmudada quando não mais correspondia
às exigências de um outro tempo, o romance tornou-se o veículo mais adequado para as
expectativas de expressão desse novo tempo.

Assim, o longo e sinuoso trajeto da evolução das formas narrativas, num percurso da oralidade
à escrita, pode ser simplificado em três macro-segmentos, correspondentes à formação da
síntese épica, ao processo de desagregação da mesma e a uma nova síntese resultante.
Historicamente e em linhas gerais, os três momentos distribuem-se pelos seguintes períodos:
apogeu da epopeia grega; durante o desenvolvimento da narrativa greco-latina até o período
vernacular do final da Idade Média e Renascimento; início da forma do romance, no pós-
Renascimento. Nessa divisão, a base propulsora do mecanismo evolutivo assenta-se no
conceito de tradição, herdado da narrativa oral pela primitiva narrativa escrita, e no seu vínculo
indissolúvel com o mythos, no sentido grego de enredo tradicional que pode ser transmitido e
como sinônimo de narrativa tradicional, na concepção de Aristóteles.

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Unindo o percurso evolutivo e o seu mecanismo gerador, também pode-se traçar uma reta
perfazendo os três macro-segmentos e, na sua extensão, percorrer a trajetória da evolução das
principais formas narrativas, das origens à epopeia e da epopeia ao início do romance. À
medida que o impulso tradicional perde a sua força nuclear, a literatura narrativa desenvolve-
se em dois sentidos antitéticos emergentes da síntese épica: o empírico e o ficcional.
Depois da divisão dos ramos empírico e ficcional, a convergência dos dois componentes
antitéticos formalizou uma nova síntese, considerada por Scholes e Kellogg (1977) como o
principal progresso na literatura narrativa pós-renascentista.

e) O Perfil histórico da narrativa a partir do núcleo clássico


O primeiro deles, do qual derivam os outros, está ligado ao distanciamento do impulso mítico
de se contar uma história. Esse movimento destaca-se por marcar, reiteradamente, um
esgarçamento no percurso das formas narrativas, interferindo na integridade do modelo,
representado pela poesia épica, para consagrá-lo, depois, em um novo parámetro. Nessa nova
situação, as invariantes passam a ser decantadas em um sistema mais aberto de
experimentações estéticas, provocadas pela busca da originalidade e das diferenças em relação
aos modelos.
Como decorrência do primeiro movimento, um segundo, situado no ponto de desagregação da
síntese épica, imprime um ritmo crescente de diferenciação entre as ordens factuais e ficcionais,
originando a narrativa histórica e a ficcional. Ambas serviram à história do género narrativo e
da sua linguagem específica, fornecendo recursos e protótipos formais. Mas, duas direções
diferentes de percursos marcaram, definitivamente, um distanciamento fundamental de seus
propósitos: a narrativa histórica buscou um cunho de veracidade, enquanto a narrativa ficcional
fez a sua opção pelo teor estético, originando-se a colocação, em primeiro plano, da natureza
estética e artística da ficção. Dessa maneira, a narrativa adquire o conceito específico de arte e,
dentro dele, as duas ordens não são tão irreconciliáveis, como o romance
provou, ao concretizar-se, como forma, justamente a partir da tensão desses dois impulsos, mas
com a determinante da natureza ficcional, que se vale dos efeitos de verdade do primeiro para
temperar a lógica imaginativa sempre prevalecente do segundo. Caso contrário, a narrativa
deixa o sítio maior da arte para emprestar as suas formas aos interesses da História.
Um terceiro movimento instaura um paralelo com o segmento prototípico do período clássico,
que reduplica a linha evolutiva por toda a Idade Média, até o momento, no pós-Renascimento,
em que a sua outra ponta ata o início da forma do romance. As variações dentro dessa repetição

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do padrão de desenvolvimento podem ser atribuídas a duas causas principais: influências do
cristianismo e da cultura mais desenvolvida dos tempos clássicos.

2. Linguagem de expressão da arte narrativa

Realça-se a existência de uma área estética de actuação circunscrita à prosa ficcional. Dentro
dos limites do campo ficcional e simbólico, importa notar a caminhada do mimético para o
abstracto, à procura dos elementos essenciais que fazem do género narrativo uma linguagem
artística específica, que o representa e constitui a sua forma de expressão que funciona como a
base artística do sistema retórico de representação. Separado do drama e da lírica, mas sempre
com eles dialogando e franqueando suas fronteiras, o género narrativo é visto numa perspectiva
evolutiva que passa da oralidade à escrita e da forma versificada para a prosa escrita contínua,
à medida que atravessa uma fase de formação e consolida-se num percurso de expansão.
O engenho da narrativa, de ritualístico e mítico, conquistou uma matriz retórica na tradição
oral: a poesia épica, que codificou uma poética narrativa ao desenvolver um tipo de enredo
catalisador das relações de enunciação, personagens, espaço e tempo. A partir dessa matriz,
tendo como fonte as ficções gregas e latina, a narrativa escrita patenteou o domínio estético e
formalizou as conformações gerais de um sistema básico, como matéria, linguagem e formas
de representação. Das engrenagens desse engenho mínimo partiram as direcções formais que
levaram a narrativa a conquistar o seu espaço na história moderna das artes, com a invenção de
uma nova forma, o romance, e com as invenções com que essa e as demais formas geraram na
história da humanidade.
Consideramos que as relações entre forma e conteúdo são geradas no interior de um sistema de
representação, de acordo com o funcionamento das partes do seu engenho artístico, cujas
engrenagens tecem as diferenciações do material simbólico no artefacto ficcional de um tecido
narrativo. Esse objecto de linguagem ganha expressão e arte pelos efeitos de sentidos e pelo
convencimento do trabalho retórico de uma linguagem que se totaliza na junção das
implicações do conteúdo de suas diversas matérias com as direcções formais de seu aparato
artístico. Como arte fabricada a partir da linguagem verbal escrita, a narrativa literária
condicionou a estrutura sequencial de sua natureza temporal na linearidade da prosa, que
passou a funcionar como um suporte de expressão na configuração de um texto, que lhe serve
como veículo de divulgação.
Seguindo a linha da escrita, a narrativa instaura uma analogia implícita com o texto em que se
fixa e recupera, da origem etimológica latina textu, a ideia de “tecido”, pressupondo, em sua

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arte, o ato e os efeitos de um “tecer”. Nessa analogia, o “tear” emerge como uma metáfora
apropriada para alojar as características do “tecer” e do “tecido”, que permeiam o fazer
inventivo do texto narrativo.
Motta (2007) diz ainda que, compreender o funcionamento do mágico tear do sistema narrativo
pressupõe desvendar alguns mecanismos desse engenho, acompanhando o trançado das linhas
de uma história, a partir do aparelho enunciativo movimentado pela agulha do artista tecelão.

O narrador, como parte do processo, tece a trama da intriga, manipulando os cordões de


actuação das personagens, cujos actos são ligados às engrenagens das coordenadas espácio-
temporais. Como resultado dos padrões seguidos pelo tecido narrativo, emerge uma “intriga
fingida” na estampa do bordado, como um produto original materializado pelos lances
inventivos, executados no interior do código e da gramática que regem a linguagem desse
sistema de representação. Ao empreender uma travessia pelas veredas do género e revisitar o
arcabouço do sistema artístico da narrativa, tentando compreender as leis que regem a matéria
simbólica de sua estrutura poética, pode-se clarear um pouco os bastidores de uma forma de
representação, por meio da qual o homem projeta os seus sonhos e pesadelos. Desse jogo de
luz e sombra, que constitui a atmosfera de um palco narrativo movimentando as possibilidades
representativas de um simbolismo idealista ou realista, emerge uma melhor compreensão dos
mistérios que governam as estruturas imaginativas da arte ficcional.

3. Narrativa

a) Épica

A narrativa é uma obra poética que foca um facto heróico de interesse natural, em que a lenda
e o maravilhoso mitológico se aliam para realçar os heróis nacionais de e as suas façanhas. Nos
poemas épicos, os acontecimentos históricos surgem aureolados de sobrenatural e os heróis
brilha aí como semideuses. Os heróis das epopeias pairam sempre nas alturas a meio da
distância entre o povo cuja amística personificam, e osdeuses, cuja forca imitam.

O poema “Ulysses”, do livro Mensagem, de Fernando Pessoa (1969), apresentando uma


resolução poética moderna, mas construído a partir de uma matéria épica — a fundação de
Portugal — pode figurar no lugar de um texto da época, idealizado no modelo poético
aristotélico, por desenvolver uma espécie de formulação teórica e crítica dessa síntese épica.

b) Ficção

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As narrativas ficcionais são aquelas, que nao se apegando a factos inteiramente empíricos,
zelam pela criatividade e imaginação humana. Neste ramo, encontram-se organizadas em três
momentos, nomeadamente: o conto, a novela e o romance. Estes ramos serão desenvolvidos
com maior destaque na unidade que se segue.

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Unidade II: Evolução e Teoria do Conto, Novela e
Romance

1. O Conto
a) Da Etmologia à definição

O termo conto deriva do latim “ comptu” que significa calcula, conto. Da área da artimetrica,
o vocábulo passou à literatura para designar o relato breve, oral ou escrito, de uma história de
ficção na qual participa um número reduzido de personagens, numa concertação espaço
temporal. Pela sua brevidade e concisão, bem como pela sobriedade de recursos que utiliza, o
conto é a narrativa mais eficaz de comunicação, detectando-se facilmente a intenção do autor.

Esta definição trazida pelo Dicionário Breve de Termos Literários converge com a definição
trazida por Ginzburg (2000). Para este autor, o conto é uma narrativa de ficção que relata um
episódios humanos, comoventes ou invulgares. Caracteriza-se por uma forma de concentração
de intriga, do espaço e do tempo pela unidade de tom e pelo número reduzido de personagens.
Sendo uma história curta, o conto distingue-se do romance não apenas pela menor expressão e
menor número de personagens, mas também por nele não se encontrar o fluir do destino
humano.

O conto, a mais antiga forma de narração em prosa, exerce uma atração especial sobre muitos
escritores, que encontram, neste género do modo narrativo, um meio de expressão da sua
individualidade artística. O conto possui, indubitavelmente, um lugar significativo nos campos
da criação, da teoria, da recepção e da crítica literárias, sendo uma fonte inesgotável de
perspectivas, temas, técnicas e um espaço propício à experimentação, sem deixar, todavia, de
apresentar vestígios das formas literárias que o originaram.

O século XIX foi, nas literaturas europeias e americana, o grande século do conto. Não se pode
ignorar nem desprezar os contos escritos até essa altura, mas escritores de talento como
Maupassant, Daudet e Flaubert, na França; Gogol, Turgenev, Chekhov e Tolstoy, na Rússia;
Hoffmann, na Alemanha; e Edgar Allan Poe, O. Henry, Stephen Crane, Jack London e
Sherwood Anderson, nos E.U.A, e muitos outros, revelaram-se mestres no cultivo do género,
inscrevendo-se numa tradição cuja qualidade não tem precedentes.

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Tentando elevar a ficção breve a uma posição privilegiada no cânone literário e no sistema de
géneros, Edgar Allan Poe exerceu uma das maiores influências literárias e críticas ao longo
desse século, podendo ser considerado um dos primeiros teorizadores do conto e,
provavelmente, um dos maiores responsáveis pela consolidação do género. Para o teorizador,
uma das mais importantes características do conto (e de quase todas as formas literárias) é a
unidade de efeito ou de impressão, que não é conseguida em composições demasiado curtas ou
demasiado longas .

A brevidade constitui um ponto comum entre o poema rimado e o conto e tem uma relação
directa com a reacção que o texto consegue provocar no leitor. Os dois devem ser lidos de uma
só assentada para se conseguir a unidade de impressão, com vista a manter o efeito desejado.
É, precisamente, a partir de um efeito central que o escritor vai construindo o texto. Enfim,
todas as escolhas feitas pelo autor na composição do texto devem contribuir para ressaltar esse
efeito. Esta proposta revela, claramente, uma intenção de domínio do autor sobre o leitor,
assente no extremo controlo dos materiais narrativos. O texto é apresentado como resultado de
um trabalho consciente, que se faz por fases, em função dessa intenção: a conquista do efeito
único. Estas considerações revelam já uma característica básica do conto: a economia narrativa.
Trata-se de obter o máximo de efeitos com o mínimo de meios, suprimindo tudo o que não
esteja directamente relacionado com o efeito, com vista a conquistar o interesse do leitor.

Na hierarquia dos géneros, Poe situa o romance abaixo do conto, porquanto, sendo longo, não
pode ser lido de uma vez. Logo, a interrupção da leitura acaba por impedir a verdadeira
unidade. Como não é susceptível de interrupções na leitura, o conto transmite melhor a intenção
do autor. Ao assumir esta posição, Poe contraria as correntes em voga na altura, defendendo
que as formas literárias não devem ser avaliadas de acordo com a quantidade mas sim
qualidade.
Nenhum estudo actual sobre o conto poderia omitir o nome de Edgar Allan Poe, visto acreditar-
se que foi ele quem forneceu as bases para o conto literário moderno. Ao longo da história da
teoria contística, podemos encontrar estudiosos que defendem as suas ideias, bem como outros
que as refutam.

Os que seguem a Poe reafirmam a importância do efeito único e da unidade de impressão no


conto e a relevância do género, produto do século XIX, no panorama da literatura, como
Brander Mathews. Foi ele quem colocou as ideias de Poe no cânone da crítica literária

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contística. Assim, quase meio século depois, as ideias de Poe foram retomadas e expandidas
por esse teorizador, num pequeno livro intitulado Philosophyofthe Short-Story(1901), o
primeiro estudo a descrever e a propor a poética de um género em particular: o conto literário
moderno. Mathews identifica um novo género, descreve-o como uma forma em prosa breve,
distinta da simples história curta, designando-a de Short-Story3. O seu trabalho constituiria a
base da teoria do conto durante um século.
Apesar de a teoria de Poe ser defendida e complementada por muitos estudiosos do conto,
como Cortázar, há igualmente teóricos que se opõem às suas propostas, principalmente os que
sustentam a dificuldade e mesmo a impossibilidade de delineação de uma teoria do conto. Além
disso, podem ser detectadas várias restrições na sua perspectiva, entre as quais a que se
relaciona com o efeito único, apontada por Nádia BattellaGotlib:

O conto evolui e se multiplica em diferentes possibilidades de construção. Todos os contos


provocam um efeito único no leitor? Não haveria os que provocam nele diferentes efeitos,
efeitos que podem, inclusive, ir sofrendo mudanças no decorrer da leitura, desde o extremo
cómico ao extremo sentimental.
Em 1976, nos EUA, verifica-se um reavivar do interesse pelo conto, bem como o início da
crítica e teoria contística como uma disciplina. Podemos encontrar, na altura, duas posições
teóricas: uma liderada por Suzanne Ferguson e a outra por Charles May5. Para a primeira, o
conto literário moderno é meramente narrativo num modo impressionista, não possuindo
nenhuma característica especial que o defina como género, ao passo que, para o segundo, o
conto não pode ser definido como um mero modo nem apenas com uma característica
individual, mas sim como um conjunto de relações e traços que definem a sua diferença
genológica específica em relação ao romance. A questão central é se o conto é um género
diferenciado ou se é apenas um romance curto, usando as mesmas estratégias e mecanismos
narrativos. Segundo May, o conto caracteriza-se por um realismo particular que o romance não
tem. A sua brevidade advém não só da extensão mas, sobretudo, do tipo de experiência ou
realidade que revela. Ao contrário da continuidade do fluir da vida quotidiana, retratada no
romance, o conto representa a vida em fragmentos de experiência, em intensos momentos de
realidade interior, possuindo um estilo que mostra através da omissão, um estilo que une o
lírico ao realista, e uma linguagem que usa estruturas simbólicas.

A maioria das tentativas de definição do conto baseia-se na sua extensão e conclui que a
brevidade é a característica principal do género. De facto, o conto parte da noção de limite e o

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primeiro limite que salta à vista é o físico. Alguns teóricos fixam, inclusivamente, o número
máximo de páginas que o conto deve ter. Explica-se que a diferença entre os dois não é a
extensão, mas sim a diversidade de procedimentos que cada um utiliza.

Deste modo, na distinção entre os dois géneros, parece consensual entre os teóricos que, ao
contrário do romance, o conto, sendo uma forma sintética e concisa, não gosta da divagação e
da dispersão. Saliente-se, no entanto, que esta brevidade, tão associada ao género, não pode ser
vista negativamente, explica Rosa Maria Goulart citado por Cabral (2013):
Se o conto não pode aprofundar todos os recursos de que dispõe uma narrativa mais extensa,
como são a novela e o romance, o mesmo beneficia de outros que lhe são peculiares e que
fazem dele um género independente e autónomo cuja brevidade em nada diminui a sua
dignidade genológica. (Goulart, “Rumos” pg:121)

b) As Dificuldades da afimação do conto

Segundo Chagas (2013), desde o início da teoria do conto, sempre houve a tendência de o
comparar e confrontar com o prestígio do romance na hierarquia dos géneros. Com efeito, um
dos paradigmas teoréticos mais seguidos é, precisamente, aquele em que o conto é definido em
contraste com o romance, iniciado por Poe e reafirmado, mais tarde, por Brander Mathews. A
relação entre os dois géneros deu origem a inúmeras teorias, mas a conclusão porventura mais
salutar será a de que o conto e o romance pertencem à prosa narrativa, usam técnicas e
estratégias narrativas que podem ser aproximadas, mas não é necessário falar do romance para
falar do conto. Será mais proveitoso comparar contos com contos, já que os dois géneros
possuem um modo de funcionamento estrutural e semântico-pragmático distinto.

No século XX, o conto reveste-se de novas características, que vieram revolucionar o género e
mostrar que este possui um carácter dinâmico, aberto à mudança. Por isso, muitos contistas
modernos utilizam técnicas inovadoras e introduzem novos temas no processo da criação
literária, o que revela a dificuldade (e, até mesmo, poder-se-ia dizer, a quase impossibilidade)
de se construir uma única e eterna teoria do conto literário. Com efeito, a esperança de se
alcançar uma definição do conto que possa ser extensível a todos os tempos parece remota6.
Aliás, a dificuldade em definir o género pode ser explicada, segundo Luís Beltrán Almería, por
uma das tendências que atravessam o campo da teorização literária: o cepticismo, que constitui
um dos sintomas da crise do pensamento contemporâneo (548). O teorizador explica esta
tendência, que sustenta que o debate acerca do conto literário deverá acabar.

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b) O conto na actualidade
As considerações actuais acerca do conto nem sempre revelam transparência e conformidade,
quer na caracterização dos elementos principais, quer numa possível definição genológica. Há
certos teorizadores, como DominicHead, que assumem uma postura crítica face às tendências
atuais na teorização do conto, sustentando que uma única definição do conto constitui um erro,
visto que a validez da definição de uma forma literária depende primacialmente da análise das
tendências dominantes e não tanto das características essenciais.
Podemos dizer que a fragmentação detectada na vida do homem actual e no próprio género
reflecte-se, igualmente, na teoria contística. A insegurança, o cepticismo e a falta de princípios
claros, especialmente na teoria dos géneros, originam a falta de consenso no seio da
investigação literária moderna quanto a uma lista de elementos individualizadores do género
contístico. Grande parte dos pressupostos metodológicos e estéticos da teoria do conto
tornaram-se obsoletos. O pós-modernismo apresenta uma enorme resistência à fixidez de
oposições binárias, incluindo as tradicionais conto/romance e conto/poesia. A mudança de
ênfase para o leitor com a teoria da recepção contribuiu para isso, pois introduziu a
possibilidade de uma variedade infinita de leituras e interpretações. A tentativa de definir uma
determinada forma literária em termos de características intratextuais, objectivas e imanentes
tornou-se inexequível com o declínio dos métodos literários formalistas. Enfim, o destino
actual do conto, grandemente influenciado pelo romance moderno, tem dificultado a tarefa de
construir uma teoria uniforme e tem originado o aparecimento de textos inovadores no campo
da produção contística.

Embora não tenha sido definido em termos rigorosos, o conto ganhou, definitivamente,
aceitação como género, e o seu futuro não estará no regresso ao arcaísmo de uma definição
formal e autoritária, mas sim na aceitação da sua natureza maleável e historicamente
contingente. Já não se pode falar do conto mas sim de “contos”. Além disso, multiplicaram-se
as formas genológicas e categorias em miniatura, havendo uma proliferação pós-moderna de
micronarrativas.

O processo de fragmentação do género conduziu a uma nova ênfase na origem oral do conto.
Em vez do contraste com o romance e da comparação com a poesia, surge a relação com a
tradição oral, na qual o conto mergulha as suas raízes. Com efeito, o conto teve origem na
prática social do recontar uma história a um público atento e interessado. Esta dimensão social
da cultura oral não desapareceu com a transformação do conto oral em conto escrito. A

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brevidade, característica essencial e certeza única da crítica actual, é uma consequência do
carácter oral do conto, porquanto não se pode manter os ouvintes numa espera eterna. O mesmo
se pode dizer do “efeito único” e da conexão princípio-fim, defendidos por vários teorizadores
do género. São leis ditadas pelas necessidades da oralidade. O conto tem uma alma oral e parece
que a contemporaneidade não se esqueceu disso. Sendo um género em constante mutação e daí
a dificuldade, se não mesmo, impossibilidade, de uma definição universal, o conto possui uma
característica em comum com o conto oral: a mutabilidade. Ora, os contos orais eram
transmitidos de boca em boca, havendo uma versão diferente por cada contador. Essa tendência
do conto literário moderno para a transformação, para a reformulação, para a reinvenção e para
a diversidade pode ser vista como um legado da tradição oral.
O conto caracteriza-se também pelo predomínio do diálogo sobre a própria narração, com uma
quase ausência de descrição e de dissertação.

2. A Novela

Segundo Reis e Lopes (2002), uma das dificuldades na definição do conceito de novela e na
análise das dominantes que a caracterizam é uma certa fluidez semântica que afecta o termo
em questão. Na língua portuguesa, assim como nas línguas alemã, italiana e francesa, o termo
novela (Novelle/novella/nouvelle) se refere a um tipo específico de ficção em prosa – embora
com limites imprecisos. Já nos países de língua inglesa e espanhola, a expressão short
novel/novela corta concorre com o uso do estrangeirismo italiano novellapara diferenciar a
novela do romance e do conto. É deste adjectivo latino, novus– o que é novo, o que traz notícia
de eventos desconhecidos –, que provém aquilo que tradicionalmente se atribui ao início da
tradição europeia desse tipo de narrativa e, também, a sua origem românica.

Reis e Lopes (2002) afirmam que a novela, originalmente, parece ter servido a um papel de
instrumento de diversão e entretenimento, pelo relato de aventuras e feitos heróicos, até que,
na sua versão em prosa, atingiu a maturidade com as novelas de cavalaria na Idade Média, e
com a novela sentimental, cultivada desde os primórdios do Renascimento, notadamente com
Boccaccio.
Reis e Lopes (2002) ainda afirmam que, de certo modo, a novela foi prejudicada, até o final do
século XVIII, pela relativa menoridade atribuída aos géneros narrativos. É com o Romantismo,
especialmente com o Romantismo alemão, que a novela assume a sua função de “evasão e

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divertimento, preenchendo os ócios da burguesia, assim como, por outro lado, aprofunda
investimentos semânticos dos domínios do aventuroso, do passional, mesmo do fantástico”

Assim, no final do século XVIII, a novela começa a assumir a sua face moderna, como um
produto do século XIX, e a ser objecto de reflexão. Silz (1962), citado por Massaro (2016),
chega a afirmar que a novela e as líricas alemãs desse período constituem as principais
contribuições dessa literatura ao século XIX, traçando um paralelo com os romances
produzidos na França, Rússia e Inglaterra.
É com os românticos alemães, na origem da reflexão estética moderna, portanto, que a
definição das características da novela, tal como a conhecemos hoje, teve início, principalmente
por meio de teorizações acerca de seus dispositivos narrativos essenciais.
Alguns dos mais importantes dos dispositivos destacados por essa tradição, segundo Silz
(1962), são:
1) A presença de um evento nunca antes relatado e que de fato aconteceu, proposta por
Goethe;
2) A existência de um ponto de virada surpreendente, proposta por Ludwig Tieck; e
3) Ouso de um único símbolo unificador, delimitando o isolamento e a concentração da
Novela em torno de um conflito central, proposta por Paul Heyse.

Reis e Lopes (2002) reconhecem essas múltiplas interpretações dadas ao género, destacando
a herança da tradição alemã na definição da novela e também a visão dos formalistas russos:
O conceito de novela deve muito, pois ao tratamento que lhe foi incutido nos períodos
românticos e pós-romântico. Mesmo com as dificuldades inerentes a um género narrativo de
facto movediço e sujeito a múltiplas interpretações, pode dizer-se que a construção da novela
implica o específico tratamento das fundamentais categorias da narração: na novela, a acção
desenvolve-se normalmente em ritmo rápido, de forma concentrada e tendendo para um
desenlace único, o que permitiu a Eikhenbaum assimilá-la a um problema que consiste em
colocar uma equação a uma incógnita.
Eikhenbaum, em Sobre a teoria da prosa (1971), citado por Massaro (2016) afirma que a
novela é uma forma mais elementar do que o romance, e que tira a sua singularidade do
princípio de construção e deconclusão, importantes para a economia da narrativa. Para o crítico
russo, "tudo na novela tende para a conclusão. Ela deve arremessar-se com impetuosidade, tal
como um projétil jogado de um avião, para atingir com todas as suas forças o objectivo visado".

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Chklovski(1971), afirma, em A construção da novela e do romance também citado por
Massaro (2016) que a novela se define pela brevidade e pela presença de apenas um fio
narrativo. Assim como Eikhenbaum, Chklovski entende a novela como uma construção
orientada para um final forte (revelação,Surpresa), e entende que esse género de ficção em
prosa supõe uma leitura contínua.
No que diz respeito à função do tempo, do espaço e da acção na novela, Evrard (1997) faz
algumas considerações. Para o crítico francês, o espaço, nesse tipo de narrativa, se restringe a
um número pequeno de lugares, aparecendo, geralmente, de maneira esquematizada ou
abstracta. O espaço pode servir como função referencial, criando "efeitos de real", ou seja,
servindo à verossimilhança; com uma função dentro do enredo, como, por exemplo, o uso de
lugares públicos onde personagens antitéticos se encontram; ou como função simbólica, que
permite compreender ou interpretar o texto ficcional. (Massaro,2016,pg:14)

Para Reis e Lopes (2002), o tempo na novela é representado quase sempre de forma linear,
sem desvios bruscos e anacronismos, acompanhando a simplicidade da acção. O espaço surge,
em certa medida, ofuscado por uma personagem que se caracteriza pela excepcionalidade, pela
turbulência ou pelo inusitado.

Reis e Lopes (2002) destacam ainda que essas dominantes que caracterizam a novela
relacionam-se com a sua extensão (menor do que o romance e maior do que o conto), mas
ressaltamque a extensão, em si, não constitui um critério distintivo, sendo o mais importante
que a novela"proceda a uma espécie de concentração temática, sem divergências por áreas
semânticas paralelasou adjacentes, podendo essa concentração ser reforçada por uma estrutura
repetitiva" (REIS;LOPES, 2002, p. 304).
Esse mesmo entendimento é corroborado por Gerald Gillespie, em Novella, nouvelle,Novelle,
short novel? A review of terms (1967). Gillespie afirma que a extensão do material que a novela
cobre não é um critério para a sua definição, mas sim a análise das técnicas de selectividade
dais quais ela lança mão para trabalhar esse material.
É seguindo o convite de Gillespie para estabelecer uma definição qualitativa da novela, a partir
das ferramentas de selectividade específicas desse género, que Judith Leibowitz empreende o
seu estudo sobre a concentração temática e a estrutura repetitiva da novela, a partir da definição
do seu propósito narrativo. A novela caracteriza-se sobretudo pela condensação espacial e
temporal, pela presença de um número ilimitado de personagens, que se movem numa intriga
linear, com uma acção que se desenvolve rapidamente.
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3. O Romance

É uma palavra de origem latina “ romanice”, termo que designa tanto a forma poética da
tradição popular, que canta feitos épicos.O romance é um tipo de texto dotado de pluralidade e
simultaneidade de acções, onde as acções implicam-se dramaticamente umas nas outras, de
total liberdade de espaço, que se alargam em relação a algumas acções e se estreiam em relação
a outras de maior densidade dramática e de tempo.

a) A historia do romance

Moretti, citado por Chagas (2013) sugere que, no século XVIII o romance formava um campo
disperso, descentralizado, cheio de variações simultaneamente legitimadas, que seria
substituído, no século XIX, por um campo estável, de pouca variação estrutural, que por sua
vez entraria em crise no Alto Modernismo e sua explosão de variação. No século XVIII,
escritores profundamente diferentes entre si – Sterne, Diderot, Fielding, Goethe, Laclos,
Richardson – foram igualmente integrados ao campo literário europeu, cuja diversidade não
estava pressionada à uniformização: não haviam pressões que seleccionassem prioritariamente
certos tipos de produção em detrimento de outros. Mas no século XIX as “condições
ambientais” se alteraram: mudaram as disposições do leitorado aberto, dos editores e da crítica.
Na consolidação da “seriedade burguesa” – o seu individualismo, a sua moralidade pública e a
sua austeridade doméstica, o seu ethos“protestante” de trabalho –, no afunilamento das
possibilidades de vida ambicionadas e praticadas pela burguesia.

Moretti identifica a formação de um leitorado selectivo, que buscava uma literatura que
confirmasse o seu entendimento do mundo orientando-o na vivência de uma realidade
fracturada entre esferas de sentido conflituantes. Esta combinação entre a desorientação social
e as expectativas pequeno-burguesas de realização pessoal teria favorecido a disseminação do
“romance de formação”, que respondia àquela tensão projectando no aprendizado alguma
conciliação possível entre sujeito e mundo. Uma vez seleccionada pelo público, esta função
conciliatória teria gerado uma “pressão selectiva” que levou à redução da variedade estrutural
do romance, até que o “século sério” naufragasse com a Primeira Guerra Mundial: quando
chega ao fim o “longo século XIX” o Bildungs roman entra em crise, a sua estabilidade
estrutural dando lugar a uma explosão de variação– foi a geração de Joyce, Proust, Kafka,
Musil. O romance, que estivera sob uma orientação dominante no século XIX, perdeu-a com
as mudanças no ambiente social, numa crise que favoreceu a exploração de novas variantes

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estruturais: as inovações do Alto Modernismo não teriam resultado, portanto, da busca pela
inovação por si mesma, mas de uma bifurcação histórica de grandes proporções que subtraiu à
noção de “formação” (Bildung) a sua credibilidade anterior. Se a Bildung não era mais levada
a sério, o Bildugsroman, em seu compromisso predominante com a conciliação, teve quebrada
a sua “homeostase” – a sua aptidão para o equilíbrio ambiental –, e o campo romanesco foi
reaberto para a variação estrutural.

No século XIX, então, as variações fenotípicas preservaram uma forte estabilidade estrutural;
no Alto Modernismo, a inadaptabilidade daquelas estruturas abriu o campo para a inovação:
nesta narrativa, a história é vista não da perspectiva de autores ou de obras, mas da crítica e do
leitorado aberto, em seu impacto sobre a adaptabilidade das estruturas: nenhuma inovação se
impõe por si mesma, mas apenas pelo crivo selectivo do sistema. Esta perspectiva
macroscópica deve, porém, se combinar com a microscopia. Na selecção natural, mutações e
recombinações de sequências de DNA produzem indivíduos dotados de singularidades
fenotípicas que serãoseleccionadas durante a história evolutiva da espécie; no campo literário,
a analogia recai sobre ao aparecimento, para o sistema literário, de obras dotadas de
características singulares que poderão – ou não – se rotinizarem ao serem mimetizadas por
outros escritores no decorrer do tempo. Em ambos os casos, da perspectiva do sistema o
surgimento da variação é imprevisível: ela não pode ser antecipada, pois não há nenhuma
directriz sendo passada a ninguém. Na literatura, tem-se o trabalho individual de escritores que
correrão o risco da rejeição pelos editores, pela crítica e pelo leitorado aberto: neste plano
microscópico a variação emerge pela recombinação de “procedimentos” – no vocabulário de
Chklovski (1971) – anteriormente dominantes, ou pela exaltação de velhas técnicas para o seu
uso em novas funções, ou pelo resgate de padrões estilísticos adormecidos que são recuperados
para dar novo movimento ao género, entre tantas possibilidades. Mas qualquer que seja o caso,
para a evolução não existe “criação” ex-nihilo, e sim a mobilização de códigos predisponíveis
tanto para a continuidade da “literatura normal”, quanto para a elaboração de variações
imprevistas: a inovação é um agenciamento de possibilidades disponíveis que nem por isso
deixa de aparecer, para o sistema, como uma surpresa, a ser tomada como um ponto zero para
inovações futuras. Mesmo que muitos elementos devam continuar presentes para que um
agenciamento aconteça, o seu reforço da preexistência não mitiga a sua possível singularidade:
a novidade combinatória, ou da “bricolagem”, não é “menos nova” apenas por
isso.(Chagas,2013)
b) A consolidação

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No século XX, o romance passou a habitar vários “nichos” simultaneamente: o leitorado que
mais directamente decide a história da literatura passou a incluir uma crítica literária muitas
vezes apartada do senso comum. James Joyce não produziu hereditariedade ao ser sancionado
pelo leitorado aberto, mas pela crítica especializada e por grupos selectos de escritores: ao
subsistir dentro de nichos diferentes, o romance conheceu modos e velocidades diferentes de
evolução, sempre explorando e intervindo no ambiente ao se adaptar a ele, num processo de
adequação-pela-intervenção como o dos castores e dos cupins. Tem-se, além disso, que a
explosão de variação estilística dos anos 20 se apoiava em códigos e formas desenvolvidos no
século XIX, pois estruturas genericamente bem-sucedidas serão sempre o ponto de partida das
variações futuras, garantindo que um romance, mesmo que esteticamente desviante, seja
reconhecido como romance. Vê-se, ainda, que no século XIX, momento de grande estabilidade
estrutural e menor variação individual, o romance conheceu a sua maior popularidade, e não
apenas pelo seu monopólio da produção de narrativas longas de apelo social difuso (antes do
surgimento do cinema): a sua constância formal consolidou hábitos de leitura e expectativas
estéticas que se modificam apenas lentamente. Por isso as inovações do Alto Modernismo não
eliminaram o romance tradicional, que continuou produzido em maior número; como na
evolução natural, espécies novas e espécies antigas convivem lado a lado sem maiores
problemas: o sistema jamais evolui integralmente em conjunto; a arte inovadora não muda
maioritariamente a arte sincrónica.
No século XIX, o valor atribuído por editores, críticos e pelo leitorado aberto andavam mais
ou menos próximos; no século XX, vários nichos conviveram sincronicamente, possibilitando
a homeostasia e a hereditariedade de tipos diferentes de romance.

4. A distinção entre romance, conto e novela.

A novela é um género narrativo não versificado, mais longo do que o conto e, geralmente,
menos longa do que o romance. Julga-se, porém, que a esta distinção superficial, se devem
sobrepor os critérios estruturais e qualitativos. Enquanto na novela predomina o evento, a
história linearmente contada, no romance avulta uma atmosfera psicopassional, o romance
configura um mundo de personagens mais denso e complexo, aproxima-nos do acontecer
quotidiano, resultando daí um ritmo temporal mais lento. Enquanto o conto se caracteriza pela
unidade de acção, de espaço e de tempo, pelo número reduzido de personagens, pelo
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predomínio do diálogo sobre a própria narração, com uma quase ausência de descrição e de
dissertação, a novela já admite pluralidade de acções (sucedendo-se linearmente umas às
outras), diversificação de espaço e de tempo, maior importância da narração. Aproxima-se, no
entanto, do conto pela pouca importância que dá à descrição e à dissertação.

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Unidade 3: Níveis e Métodos de Análise da
Narrativa

A Narrativa é um conjunto de acontecimentos de uma história envolvendo personagem cujo as


acções localizam-se no tempo e no espaço. Contudo, é onde podemos encontrar os elementos
da narrativa. (Reis, 1981;pg: 276-279.)

1. Categorias da narrativa literária


a) A personagem

Eikhenbaum, B.et al. (1971), diz que a personagem constitui um elemento estrutural
indispensável da narrativa romanesca. Sem personagem, ou pelo menos sem agente, como
observa Roland Barthes, não existe verdadeiramente narrativa, pois a função e o significado
das acções ocorrentes numa sintagmática narrativa dependem primordialmente da atribuição
ou de referência dessas acções a uma personagem ou a um agente. No âmbito desta óptica
funcionalista, Greimas, propôs substituir o conceito e o termo de personagem pelo conceito e
pelo termo actante. Os actantes são sempre substantivos ou equivalentes de substantivos, são
subordinados imediatos do verbo e podem classificar-se em “primeiro actante”, “segundo
actante” e “terceiro actante”. Semanticamente, o primeiro actante é aquele que realiza a
acção(sujeito), o segundo actante é aquele que suporta a acção(complemento directo) e o
terceiro actante é aquele em benefício ou em detrimento do qual se realiza a acção
(complemento indirecto).

2.O narrador,

Ainda na visão deEikhenbaum, B.et al. (1971), confirma que dentre as personagens possíveis
de um romance, há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas funções no processo
narrativo e na estruturação do texto_ o narrador. O narrador não se identifica necessariamente
com o autor textual e muito menos com o autor empírico_ identificaçãoesta típica de um
biografismo ingénuo ou preconcebidos_ pois ele representa, enquanto instância autonomizada
que produz intratextualmenteo discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia do
autor textual, constituindo este último, por sua vez, uma construção do autor empírico. Para
este autor existe narrador quanto à presença e narrador quanto ao nível.

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2.1 Narrador quanto à presença é quando o narrador é actuante na diegese que relata ou
quando não é actuante na diegese que ele Narra:

a)Narrador heterodiegético é aquele que conta ou narra uma história sem fazer parte dessa
história, ou seja, conta a história, mas não participa como personagem.

b)Narrador autodiegético é aquele que participa na história e desempenha o papel de


personagem principal ou protagonista.

c)Narrador homogiegético é aquele que relata uma história e ao mesmo tempo desempenha
o papel de personagem secundáriana história que conta.

2.2 Narrador quanto ao nível é referente às características que um narrador apresenta na


narrativa.

a)Narrador extra-diegética é narrador que conta a história da narrativa secundária,


que é aquela encontrada dentro da narrativa principal a que é denominada primária.
b) Narrador intra-diegético é o narrador que relata a história da narrativa primária
eque é considerada narrativa principal.

3. O narratário

Em muitos textos narrativos, existe um destinatário intratextual do discurso narrativo e,


portanto, da história narrada. É a esta instância à qual o narrador conta a historia, ou parte da
história, que daremos o nome de narratário. O narratário, destinatário, leitor e receptor, não
podem ser identificados ou confundido com o leitor implícito, com o leitor visado e com o
leitor ideal _ e muito menos com o leitor empírico _ embora a sua função no texto narrativo
tenha sempre correlações importantes com o leitor implícito e com o leitor empírico _ o
narratário representa uma das articulações mediadoras da transmissão da narrativa _ e possa
apresentar também correlações diversas com o leitor visado e com leitor ideal. Em suma, o
narratário apresenta-se como uma personagem, com caracterização psicológico, sociale muito
mais.O narratário divide-se em dois:

a) O narratário extradiegético: identifica-se com o leitor virtual (todo leitor que venha a ler
a obra). É a este narratário que se dirige o narrador (identificado com o próprio autor) em
“Vinagens na Minha Terra”, quando afirma: sim, leitor benévolo, e por esta ocasião tevou
explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. (… ) saberás, pois, o ò leitor, como
nós outros fazemos o que te fazemos ler. Da mesma forma, o esclarecimento que o narrador dá

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acerca de uma personagem ou de um acontecimento, por exemplo, dirige-se primordialmente
ao narratário extradiegético.

b) ONarratário intradiegético: tem o estatuto de uma personagem concreta, que, além de


narratário, pode também acumular esta função com a de interveniente na intriga do romance.
Assim, João da Cruz, personagem do “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, faz aqui
de narratário intradiegético quando o narrador, ao vê-lo sepultar, fala para ele, dizendo: Deus
terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza da tua alma!(…)
dorme o teu sono infinito, nenhum outro tribunal de cita a responder pela vidas que tiraste e
pelo o que fizeste da tua.

4. A Focalização

Segundo Borregana, focalização refere-se ao conceito identificado também por meio de


expressão como ponto de vista.Assim, considerado a ciência do narrador independente da
presença ou não presença ou não presença na diegese, podemos considerar:

a) O narrador omnisciente_ que narra como se conhecesse todas a historia, ate o que se
passa no interior das personagens, usando, mais a narração e a descrição comentada do
que o diálogo e a intervenção direita das personagens.
b) Focalização interna é aquela que interpreta com as suas palavras o pensar de uma
personagem, como que encarnando-a e emprestando-lhe a sua voz.
c) Focalização externa é o que narra só o que observa exteriormente, rejeitando toda a
introspecção; a sua ciência é objectiva (cinematográfico), as personagens são dadas
suas acções, atitudes e modos de falar.

5. O tempo

Genette, G. (1972), defende a ideia de que a diegese, como sucessão de eventos, comportando
um “antes” um “agora” e um “ depois”, é inconcebível fora do fluxo do tempo. Portanto, o
discurso narrativo, que institui o universo diegético, existe também, como sequência mais ou
menos extensa de enunciados no plano da temporalidade. Estes dois tempos, o tempo da
diegese ou tempo da história narrada, tempo do significado narrativo, e o tempo do discurso e
as suas inter-relações constituem um dos problemas mais importantes do romance, quer sob o
ponto de vista pragmático-semântico. O tempo da diegese comporta um tempo objectivo, um
tempo “ público”, delimitado e caracterizado por indicadores estritamente cronológicos
atinentes ao calendário civil _ anos meses, dias, sem esquecer em certos casos as horas.

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6. A Acção

Reis (1981) define a acção como o facto histórico no seu evoluir (por exemplo a viagem de
Vasco da Gama à India nos “ Os Lusíadas”) a acção deve ter unidade (as suas partes devem
constituir um todo harmonioso) e variedade (diferentes episódiosembelezam a acção sem a
unidade essencial: o Velho do Restelo e Gigante Adamastor pertencem à mesma acção
exaltadora do povo luso).

7. O Espaço

Duarte (1999), o espaço na narrativa é o lugar físico onde as personagens circulam, onde as
acções se realizam. Primeiramente, podemos analisar o espaço como interno e externo. No
primeiro caso as acções se dão dentro de um lugar fechado (casa, quarto, igreja, hospital, etc.),
já no segundo caso, as personagens circulam em ambientes abertos (praia, rua quintal, etc.) é
claro que numa narrativa muitas vezes os espaços são variados, vão desde um lugar fechado
(interno) a lugares abertos (externo).

Nestes casos, o que iremos observar é a predominância de um ou outro espaço em muitos casos
o espaço onde transcendem as acções adquire grande importância para o desenvolvimento da
narrativa, passando, às vezes, a ser fundamental dentro da trama, elemento essencial,
intimamente ligado ao tema abordado ou até mesmo pode se tornar personagem da história.

Neste sentido, é importante que seja considerado o espaço social pelo qual circulam as
personagens e o espaço psicológico, as suas atmosferas interiores. Entre os espaços físicos,
sociais e psicológico, são estabelecidos relações ao nível do discurso narrativo.

Personagem como protagonista ou herói

Eikhenbaumet al (1971) dizem que as personagens de um romance apresentam uma


personagem principal_ o herói ou protagonista _ e personagens secundárias, de importância
funcional muito variável. O protagonista representa, na estrutura dos actantes ou agentes que
participam na acção narrativa, o núcleo ou o ponto cardeal por onde passam os vectores que
confirma funcionalmente as outras personagens, pois é em relação a ele, aos valores que ele
consubstancias, aos eventos que ele suporta, que se definem o deuteragonista, a personagem
secundária mais relevante, o antagonista, a personagem que se contrapõe à personagem
principal _ e que e muitos textos, coincide com deuteragonista _ e os comparsas, as personagens
acessórias ou episódios. O herói espalha as ideias de uma comunidade ou de uma classe social,

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encarnando os padrões morais e ideológicos que essa comunidade ou essa classe valorizam.
Para além, do herói, existe também anti-herói que é aquele que não se conforma com os
paradigmas aceites exaltados pela maioria da comunidade, aparece como um individuo em
roptura e conflito com tais paradigmas,valorizando o que a norma social rejeita e reprime
(homossexualidade, adultério, sadismo, etc.).

Personagem plana/ desenhada e redondas

Para Duarte (1999), As personagens desenhadas (personagem tipo) são definidas linearmente
apenas por um traço, por um elemento característico básico que as acompanha durante todo o
texto. Esta espécie de personagem tende frequentemente para a caricatura e apresenta muitas
vezes uma natureza cómica ou humorística. A personagem plana não altera o seu
comportamento no decurso do romance e, por isso, nenhum acto ou nenhuma reacção da sua
parte podem surpreender o leitor. Por outras, as personagens planas são extremamente comadas
para o romancista visto que basta caracterizá-las apenas uma vez, a quando da sua introdução
no romance não sendo necessário cuidar atentamente do seu desenvolvimento ulterior. E a
personagem redonda ou modelada é mais incomoda o romancista, que tem de lhe dedicar
especial atenção, esforçando-se por a caracterizar sob diversos aspectos. As personagens
redondas, pelo contrario, oferecem uma complexidade muito acentuada e o romancista tem de
lhes consagrar uma atenção vigilante, esforçando-se por caracterizá-las sob diversos aspectos.

A enuciação na Narrativa

• Anacronia/prolepse (momento de avanço) consiste numa antecipação, no plano do


discurso, de um facto ou de uma situação que, em obediência à cronologia diegética, só
diriam ser narrados mais tarde. A prolepse é uma recurso de que os romancistas se
servem com frequência, porque permite comodamente esclarecer o narratário e ou o
leitor sobre os antecedentes de uma determinada situação. A analepse não afecta a
organização logicamente ordenada da narrativa, que não apresenta ruptura nem
sobreposições cronológicas susceptíveis de perturbarem o entendimento do leitor.
(Eikhenbaum, b.et al, 1971)

• Analepse (momento de recuo) é a designação dada a narração de os


acontecimentosocorridos no passado passado em relação aos eventos já narrados. No
decorrer de uma narrativa, seja ela em filme, obras literárias ou em outros meios,

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quando ocorre uma pausa para entrar em cena o facto já ocorrido, esta é chamado de
interrupção cronológica (Genette, G, 1972).

• A Elipse no discurso de determinados acontecimentos, originando-se, assim vazios


narrativos mais ou menos extensos. O narrador informa, por vezes, por vezes, o leitor
de que eliminou da narrativa factos que considerou irrelevantes, marcadores ate
escabrosos; mas outras vezes a elipse não é assinalada no texto, apercebendo-se o leitor
dela pela análise das sequências diegéticas e narrativas (Borregana, A, (s/d)).

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Unidade IV: Análise de textos Narrativos
1- Analisar um texto

Na perspectiva do Dicionário de Língua Portuguesa, análise é o estudo detalhado, investigação,


separação de um todo pelas partes que o formam, ou seja, uma decomposição.

As categorias da narrativa apresentam-se como factores cruciais para a produção de sentidos.


Para Berthes (1971), a condução para uma análise textual é necessária uma distinção das
instâncias de descrição e colocar estas instâncias numa perspectiva hierárquica.

Na perspectiva de Reis ( 1981), é necessáro ter em conta três subdomínios na análise da


narrativa: a da estrutura das acções (anacronias), o da sintaxe narrativa (discurso, focalização)
e o das relações narração/descrição.

Barthes(7 edicao) e Reis(1981) propõem uma análise estrutural da narrativa, partindo, o


primeiro, de duas noções basilares que condicionam indelevelmente toda a sua elaboração
teórica: por um lado, a noção de que a narrativa pode ser encarada como uma grande frase,
admitindo-se, como tal, que a análise estrutural baseie-se em modelos operatórios similares aos
da linguística. Por outro lado, a noção de que, a par dos níveis das acções e da narraçã o, a
estrutura de uma narrativa pode descrever-se numa perspectiva funcional.

1. Diegese e Discurso narrativo

Para Bravo (1973), o romance, como todo o texto narrativo, constrói e comunica sempre
informações sobre uma acção, sobre um processo ou uma sequência de eventos que são
produzidos e suportados por personagens. Tal sequência de eventos pode ser construído e
transmitida ao leitor segundo técnicas discursivas muito variáveis. Os formalistas russos
distinguiram na sequncia de acontecimentos comunicada pelo texto narrativo dois planos que,
embora interligados por uma relação de solidariedade, deveria ser conceptual e funcionalmente
contrapostos: por um lado, a fábula ( fabula), isto é, os acontecimentos representados nas suas
relações internas, nas suas relações cronológicas e causais, por outra parte, a intriga, que é a
apresentação dos mesmos acontecimentos, segundo esquemas de construção estética, no texto
narrativo.

Ao nível mais geral, a obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e
um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que

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teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundam com os da vida real. Esta
mesma história poderia ter-nos sido relatado por outros meios, por um filme, por exemplo; ou
poder-se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral uma testemunha, sem que fosse expressa em um
livro. Mas a obra é ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a história; há,
diante dele, um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que
contam mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhecê-los.

Para Genette( 1972), a história, a narrativa e a narração são níveis de consideração de um


mesmo objectivo a que ela chama a ʺrealidade narrativaʺ. Simplesmente, se é o discurso dessa
realidade narrativa que está em jogo, o plano da história, isso é a organização funcional e
sequencial do texto, será posto de parte assim como, portanto, qualquer observação quanto ao
sentido diegético dos elementos que compõem essa organização; é a narrativa enquanto
discurso e não a narrativa enquanto história que está aqui em causa. Aspectos de ordenação
(não em termos de definição e encadeamentos, mas em termos de percepção do sentido desses
encadeamentos, por outras palavras, o estudo da articulação temporal, e já não lógica, da
narrativa) aspectos de duração (o tempo encarado, não em função do sentido do seu
encadeamento mas em função da tentativa de estabelecimento de um ritmo da narrativa, de
uma alternância entre situações de relato que poderíamos apelidar de tónica e átonas através
dos meios de discurso que as formulam) aspectos de frequência (relações entre a narrativa e
diegese, consideração do meio escrito que homologam a história na narrativa ou, pelo contrário,
a distendem ou condensam, a pulverizam, repetem, a entrecortam ou simplesmente a
transcrevem a partir duma idealidade que funciona como modelo e que apenas em função
desses meios de escrita é perceptível), aspectos de modo (desenvolvimento e sistematização)
das questões levantadas pelo problema do ponto de vista condutor) e aspecto de voz (assunção
das condições de enunciação pela instancia narrativa) são os que se consideram neste trabalho.

Para alguns autores, considerando que as categorias binárias atrás referidas, não possibilitam
uma descrição adequada do texto narrativo, propõem modelos heurísticos e descritivos mais
complexos.

Assim, Lubomír Dolezel constrói um modelo estratificacional que compreende três níveis:

a) O nível dos motivemas, isto é, o nível das proposições que predica um acto em relação
a um actante (a função motivémica) especifica qual o acto praticado pelo actante). A
síntese dos motivemas esta regulada por “determinismo sequencial” de natureza logica

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e de natureza tipológica. Dolezel identifica a fábula dos formalistas russos com o nível
dos motivemas, definido aquele como ‘a ordem sequencial dos motivemas’’.
b) A estrutura dos motivemas. O motivo é definido como “: uma proposição que predica
uma acção em relação a um personagem” (character). Enquanto o motivema constitui
uma entidade invariante, pertencente a um plana émico, o motivo constitui uma
entidade variável, pertencente ao plano ético: o motivo realiza-se particularmente um
motivema, subistituindo um actante por uma personagem e o acto por uma acção. A
ordem sequencial dos motivos identifica-se com o conceito de intriga dos formalistas
russos.
c) A textura dos motivos, isto é, o subconjunto dos enunciados narrativos que, num dado
texto, verbalizam os motivos da intriga (outros enunciados do texto verbalizam
elementos diversos da estrutura narrativa: as personagens, por exemplo). A estrutura
dos motivos, variável em relação aos motivemas, seria invariável em relação a estrutura
(o mesmo motivo pode ser verbalizado variavelmente)

Cesare Segre, por sua vez, elabora um modelo quadripartido, em conformidade como qual se
descriminaram no texto narrativo os seguintes níveis:

a) O discurso, constituído por elementos linguísticos, e estilísticos e, eventualmente,


métricos
b) A intriga, constituída “ elemento de técnica da exposição, da construção e montagem
da narrativa”.
c) A fábula, constituída por materiais antropológicos, tema, motivos, etc. a fabula para
Segre, representa uma construção teórica em que se reordena segundo uma ordem
logica e cronológica, as acções da intriga, possibilitando assim descrever e explicar os
processos e as técnicas de narrar utilizados pelo escritor. Segre sublinha que a passagem
do conceito de intriga ao conceito de fábula equivale a transitar do plano éticopara o
planoémico.
d) Modelo narrativo, que “compreende as funções, elementos invariáveis de que só pode
mudar a escolha e, em parte a concatenação, mas co fortes construções de natureza
lógica e cronológica”.

O conceito de “fabula” de Segre é de natureza meta-textual e extratextual_ no caso dos


chamados textos narrativos naturais, a sua problemática apresenta ainda outros aspectos

29
relevantes, como seja a sua relação como referente empírico_, ao passo que os conceitos de “
discurso” e “ intriga”, não também meta-textuais , mas intratextuais

Gerard Genette com a sua obra Figures III difundiu largamente os termos e os conceitos de “
diegese”, “ diegético”, “ extra-diegético”, etc. a facilidade de formação e inegável utilidade
destes adjectivos desempenharam papel fundamental naquela difusão_, mas não explicou a
fundamentação de tal escolha terminológica, limitando-se a afirmar que “ dansl’usagecourant,
la diegese estl’universsptatio-temporeldesigné par lerecit’’. Em qual uso corrente? Cgenette
conhecia bem, ao escrever Figuras III, que em Platão e Aristóteles o termo “diegese” apresenta
um significado técnico bem claro, designado uma modalidade enunciativa e descritiva (e dai a
oposição platónica entre diegese e mimese). A verdade, porém, é que em grego significa
‘’história’’, “ conto”, “narrativa”, narrador.

1.1.Diegese/ história

Na perspectiva de Reis (1981), história ou diegese compreende a realidade evocada, as


personagens e os acontecimentos apresentados e poderia ser transmitida por outras formas de
linguagem (pela linguagem fílmica, por exemplo). E para outros pensadores, a diegese diz
respeito ao discurso ou narrativa e não a história (ou fabula). Em suma a diegese é o modo
definido e representado pela narração, representa as sequências ou desse rolar das acções no
discurso (ou narrativa) e não na história (ou fabula). A diegese não tem existência autónoma;
só existe através do discurso de um narrador. Dois romances sobre a mesma história (ou
fabula), teriam diegese diferentes.Para Platão e Aristóteles, o termo “ diegese” apresenta um
significado técnico bem claro, designado uma modalidade enunciativa e discurso (e daí a
oposição platónica entre diegese e mimese).

1.2.Discurso

O discurso diz respeito, não aos acontecimentos narrados, mas ao modo como o narrador que
relata a história dá a conhecer ao leitor esses mesmos acontecimentos. Em outras palavras, o
discurso é a forma como o narrador relata a história, isto é, a organização artística das
sequências narrativas, processos estilísticos usados. A mesma história (ou fábula) poderá servir
de base a vários discursos (ou tramas). Maurice Jean Lefebve diferencia a narração, “isto é, o
discurso propriamente dito, composto de palavras e de frases, susceptível de ser analisado de
um ponto de vista linguístico e retórico”, da diegese “ o mundo definido representado pela

30
narração”, “ o conjunto dos significados que são considerados como referindo-se a coisas
existentes.

A distinção entre diegese e discurso é pertinente semioticamente e apresenta eficácia


operatória, desde que não seja concebida como uma divisão rígida a que corresponderiam, no
texto narrativo, planos originária substantivamente diferenciados demarcáveis e caracterizáveis
como domínios existentes a si. Com efeito, nalguns teorizadores e critérios literários colhe-se
a ideia, implícita ou explicitamente formulada, de que a diegese ou a história teriam existência
própria independentemente do discurso narrativo. Em suma, a fábula é o que efectivamente se
passou: a intriga é o modo como o leitor tomou conhecimento disso. Uma asserção deste teor
induz a pensar que diegese de um texto, como uma sequencia de eventos que o texto pressupõe
e que seria, portanto, preexistente à estrutura verbal narrativa que transmite esses eventos de
determinado modo.

2. Retórica

Teixeira ( 2014) Retórica é uma palavra que tem origem no latim rhetorica, que veio do grego
rhêtorikê. E define-se como sendo a arte de usar uma linguagem para comunicar de forma
eficaz e persuasiva, ou seja, como sendo a arte do bem falar. A retórica nasceu no século V
a.c., na Sicília, e foi introduzida em Atenas pelos sofistas, desenvolvendo-se nos círculos
políticos e judicias da Grécia antiga. Originalmente visava persuadir uma audiência dos mais
diversos assuntos, mas acabou por tornar-se sinónimo da arte de bem falar, o que opôs os
sofistas ao filósofo Sócrates e seus discípulos. A retórica é composta de um sistema de recursos
e regras que actuam em vários níveis da construção discursiva e está relacionado com a
dialéctica e a oratória.

Apesar de ter sido criada pelos sofistas, Aristóteles é considerado o pai da retórica. Isso porque
ele aprofundou alguns conceitos desenvolvidos por seus antecessores e trouxeo tema para
muito mais perto da filosofia. Para o pensador, a retórica estava no patamar de outros dois
grandes saberes da época: a lógica e a dialéctica. Com o fim dos regimes oligárquicos e
monárquicos, a retórica passou a ganhar ainda mais espaço na antiguidade clássica.

Amossy (2006) afirma que, da própria delimitação do objectivo da retórica clássica, sobreleva
sua dimensão linguageira: trata-se de um discurso que só tem razão de existir no interior de um
processo de interacção, onde um locutor se amolda a imagem do alocutário, a fim de agir sobre
o seu pensamento.

31
Na retórica, a narração é uma das três partes em que se pode dividir o discurso. A narração
retórica refere factos para o esclarecimento do assunto e para possibilitar o desenrolar dos
objectivos do orador. A nível geral, pode-se dizer que uma narração apresenta sempre, pelo
menos, um actor (personagem) que passa por algumas situações. O personagem pode ser o
próprio narrador da história, ainda que esta característica não seja imprescindível para a
existência da narração. As narrações breves (curtas) como o conto têm em comum uma
estrutura argumental que inclui uma introdução (onde é apresentado o assunto da narração),
um desenvolvimento (que exibe o conflito principal) e uma conclusão (a resolução do conflito).
Compete ao narrador (que, como já foi referido, pode ser personagem da história ou não)
decidir a ordem e o ritmo da narração. Pode recorrer, por conseguinte, à anacronia, à analepse
e à elipse, ente outros recursos.

A análise de um texto narrativo, pressupõe uma viagem por todos estes aspectos, onde o seu
cruzamento vai permitir a construção e a produção de sentidos.

32
Referências Bibliográficas

• Motta, S. (2007). Árvore Genealógica das Principais formas Narrativas: Das


Origens ao Nascimento do Romance.Araraquara:intinerários (pg:265-275).
• CABRAL,M.(2013).O Estudo do Conto em Portugal: Do Século XVII à Atualidade.
Revista Mathesis.
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Brasil.in XIII Congresso Internacional da ABRALIC.Campina Grande.
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• Dicionário Breve de Termos Literários
• Massaro,F. (2016). Um breve panorama das teorias da novela.Porto Alegre:RS.
• Scholes,R & Kellogg,R. (1977). A natureza da narrativa. São Paulo:McGraw.
• Vieira,A. (2017). Do Conceito de Estrutura Narrativa à sua Crítica.in Psicologia:
Reflexão e Crítica (pp.599-608).Porto alegre
• Ginzburg,J. (2000). Notas Sobre Elementos De Teoria Da Narrativa, in Esse Rio Sem
Fim-Ensaios sobre Literatura e suas fronteiras. São Paulo:Pelotas
• Amossy, R. (2006). Nova retórica e Linguística do Discurso. In: KOREN
• Reis, C. (1981). Técnicas de Análise Textual: introdução à leitura crítica. Coimbra:
Livraria Almedina
• Chklovski,V.(1971). A Construção da novela e do romance. In TOLEDO, Dionísio de
Oliveira. Teoria da literatura: formalistas russos.Porto Alegre:Globo
• Genette, G.(1972). Discursoda Narrativa. São Paulo: Arcádia
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análise da construção polifónica de os Maias de queirós. Porto
• Paulinalli, M. (2014).Retórica, Argumentação e Discurso Em Retrospectiva. São Paulo;
UNISUL
• Marato, G.(2014). Modelos de Organização Retorica Em Textos Narrativos. São Paulo:
Bebedouro

33
Textos
Disciplina: Análises de Textos Narrativos

Contos, Novelas e Romances

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1-Contos
O cesto
Pela milésima vez me preparo para ir visitar meu marido ao hospital.
Passo uma água pela cara, penteio-me com os dedos, endireito o eterno vestido.
Há muito que não me detenho no espelho. Sei que, se me olhar, não reconhecerei os olhos que
me olham. Tanta vez já fui em visita hospitalar, que eu mesma adoeci. Não foi doença cardíaca,
que coração, esse já não o tenho. Nem mal de cabeça porque há muito que embaciei o juízo.
Vivo num rio sem fundo, meus pés de noite se levantam da cama e vagueiam para fora do meu
corpo.
Como se, afinal, o meu marido continuasse dormindo a meu lado e eu, como sempre fiz, me
retirasse para outro quarto no meio da noite. Tínhamos não camas separadas, mas sonos
apartados.
Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará.
Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou. Diferença está na marmita que adormecerá,
sem préstimo, na sua cabeceira. Antes, ele devorava os meus preparados. A comida era onde
eu não me via recusada.
Olho em redor: não mais a mesa posta o aguarda, pontual e perfumosa.
Antes, eu não tinha hora. Agora perdi o tempo. Qualquer momento é de meu debicar, encostada
a um canto, sem toalha nem talheres. Onde eu vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde
toda a luz há muito se pôs. Só tenho um caminho: a rua do hospital.
Vivo só para um tempo: a visita. Minha única ocupação é o quotidiano cesto onde embalo os
presentes para o meu adoecido esposo.
A meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida,
o riso me entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo à loucura.
Desde o mês passado que evito falar. Prefiro o silêncio, que condiz melhor com a minha alma.
Mas o não haver conversa nos deu outro laço entre nós. O silêncio abriu um correio entre mim
e o moribundo. Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem
de calar, de abafar o riso.
Já me ocorreu trocar fala por escrita. No lugar desse monólogo, eu lhe escreveria cartas. Assim,
eu descontaria no sofrer. Nas cartas, o meu homem ganharia distância. Mais que distância:
ausência. No papel, eu me permitiria dizer tudo o que nunca ousei.
E renovo promessa: sim, eu lhe escreveria uma carta, feita só de desabotoada gargalhada,
decote descaído, feita de tudo o que ele nunca me autorizou. E nessa carta, ganharia coragem

35
e proclamaria: – Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver. Não me vai fazer gastar
mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida.
Regresso a mim, ajeito no fatídico cesto o farnel do dia, nesse fazer de conta que ele me irá
receber, de riso aberto, apetite devorador. Estou de saída, para a minha rotina de visitadora
quando, de passagem pelo corredor, reparo queo pano que cobria o espelho havia tombado.
Sem querer, noto o meu reflexo.
Recuo dois passos e me contemplo como nunca antes o fizera. E descubro a curva do corpo, o
meu busto ainda hasteado. Toco o rosto, beijo os dedos, fosse eu outra, antiga e súbita amante
de mim. O cesto cai-me da mão, como se tivesse ganhado alma.
Uma força me aproxima do armário. Dele retiro o vestido preto que, faz vinte e cinco anos,
meu marido me ofereceu. Vou ao espelho e me cubro, requebrando-me em imóvel dança. As
palavras desprendem-se de mim, claras e nítidas: – Só peço um oxalá: que eu fique viúva o
quanto antes! O pedido me surpreende, como se fosse outra que falasse. Poderia eu proferir tão
terrível desejo? E, de novo, a minha voz se afirma, certeira: – Estou ansiosa que você
morra, marido, para estrear este vestido preto.
O espelho devolve a minha antiquíssima vaidade de mulher, essa que nasceu antes de mim e a
que eu nunca pude dar brilho. Nunca antes eu tinha sido bela. No instante, confirmo: o luto me
vai bem com meus olhos escuros. Agora, reparo: afinal, nem envelheci. Envelhecer é ser
tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a
pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.
E experimento, em vertigem, pose e lágrima. No funeral, o choro será assim, queixo erguido
para demorar a lágrima, nariz empinado para não fungar.
Dessa feita, marido, não será você, mas serei eu o centro. A sua vida me apagou. A sua morte
me fará nascer. Oxalá você morra, sim, e quanto antes.
Deponho o vestido na mesa da sala, bato porta e saio rumo ao hospital. Ainda hesito perante o
cesto. Nunca antes eu o vira assim, desvalido. Vitória é eu dar costas a esse inutensílio. Pela
primeira vez, há céu sobre a minha casa. Na berma do passeio, sinto o aroma dos franjipanis.
Só agora reparo que nunca cheirei meu homem. Nem sequer meu nariz não amou nunca. Hoje
descubro a rua, feminina. A rua, pela primeira vez, minha irmã.
Na entrada da enfermaria, o milesimamente mesmo enfermeiro me aguarda. Uma sombra lhe
espessa o rosto.
– Seu marido morreu. Foi esta noite.
Eu estava tão preparada, aquilo já tanto acontecera, que nem procurei amparo.

36
Depois de tanta espera, eu já queria que sucedesse. Mais ainda depois de descobrir no espelho
essa luz que, toda a vida, se sepultara em mim.
Saio do hospital à espera de ser tomada por essa nova mulher que em mim se anunciava. Ao
contrário de um alívio, porém, me acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar.
Em lugar do queixo altivo, do passo estudado, eu me desalinho em pranto. Regresso a casa,
passo desgrenhado, em solitário cortejo pela rua fúnebre. Sobre a minha casa de novo se tinha
posto o céu, mais vivo que eu.
Na sala, corrijo o espelho, tapando-o com lençóis, enquanto vou decepando às tiras o vestido
escuro. Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita.

Mia Couto, em “O Fio das Missangas”

37
Na tal noite
Vinte e cinco, Natal. O quissimusse, como se diz aqui. Mariazinha, à porta, espera a anual visita
de Sidónio Vidas, o episódico esposo. Ei-lo agora, em aparatosa aparição, santificado seja ele
e mais a sua vaidosa viatura. Ele nunca tanto chegara. Fazia como a chuva procede com as
fontes secas: inundava após ausência.
Mariazinha parece viúva, alinhada com seus dois filhos, na entrada da porta. Ela contempla o
volumoso Sidónio, parecendo uma gelatina a ser descolada do fundo da taça.
Mariazinha, atrapalhada, segreda aos miúdos: – Já sabem, ao sinal combinado, vocês
desaparecem das vistas! Os filhos rabeiam o olho na mãe, irreconhecendo-a: vestido cheiroso,
penteado de cabeleireiro, unhas de manicure. E receiam que, uma vez mais, seja mais
desencontro que encontro.
Havia sido assim desde o princípio: a noite sem núpcias, o esposo cadente, com juramento sem
prazo de viabilidade.
Os miúdos já sabiam: o pai trabalhava longe em país muitíssimo estrangeiro, a distância que
só lhe dava conveniência visitar a família na noite de vinte cinco. Cada ano, o pai chegava com
seus carros sempre novos. O remoto controlo accionado, num blip-blip mágico e, da bagageira,
como em atrelado de trenó, saltavam os presentes, alegria aos molhos.
Neste Natal, mais uma vez, muda o carro e toca mesmo. O pai faz abrir a mala do automóvel e
de lá espreitam embrulhos e celofanes. São mais os enfeites que os conteúdos, mas não é assim
mesmo a festa: feita de ilusão e brilhos maiores que as substâncias? Os miúdos, algazurrando,
precipitam-se sobre os presentes. E ali ficam, no quintal, entretidos com as lembranças.
Sidónio dá entrada na sala em pose de governante. A esposa segue-o, diminuta, protocolar. O
homem engrossa as vistas pela sala. Sobre o armário um improvisado presépio. Só as palhinhas
do menino nascente são genuínas. O resto é invenção desenrascada, tampinha de coca-cola,
arames e restos de lixos.
O marido senta-se à mesa, refastelado, dono. Vai desapertando a fivela do cinto para, em
prevenção, se valer por dois. Mariazinha assoma à porta da rua e, com um estalar de dedos,
reafirma a ordem: os filhos que se mantenham longe. Aquele momento era exclusivo dos dois,
a noite de todas as noites.
– Fritei um peixe, aquele que você morre pela boca.
Sidónio estala os dentes na língua e faz passar as espinhas pelos beiços. A esposa comendo em
pé, prato no apoio da mão, vai olhando o marido.
Resplandecendo no pescoço, o fio de ouro, ambos cada vez mais gordos. O ouro parece
autêntico. Falsificado é o portador, sem marca de origem, nem garantia de proveniência.
38
Sempre que vem, ele exibe acrescidos fios e anéis, ornamentos douradoiros. Para que
Mariazinha não pense que ele foi cavalo e regressa burro.
– Cuidado marido, cuidado a espinha na goela.
– Goela tem o pobre – emenda Sidónio.
– Gente como eu tem garganta, esta perceber? Sidónio Vidas arrota a marcar parágrafo na
refeição. Mais calado que um deus, distante, confiante.
Toca o telemóvel, altissonoro, ele grunhe sílabas de nenhum idioma. E desliga como se
desligasse não o aparelho, mas o interlocutor.
– Há sobremesa. Um docinho? – Estava com falta de açúcar, mas o vizinho, o Alves. .
– Pois é, açúcar com gentil cortesia do vizinho Alves.
O tom é irónico, magoado, suspeitoso. O vizinho Alves estava-se avizinhando de mais? –
Mariazinha, você me está ser fiel? – Eu? Sidónio, eu. .
Ela, desencontrada das palavras, derrama-se, chorosa. Podia ele, de humano direito, duvidar?
– Cale-se, mulher. Não diga nada.
Que aquela comoção lhe aflige a digestão. Sidónio vê-se obedecido.
Passa a mão pela barriga, com a mesma ternura com que as grávidas acariciam o vindouro
– Não quero esse doce.
– Mas, Sidónio, fiz para si, com tanto carinho. .
– Não me apetece, pronto.
Mariazinha recolhe o prato, junto com a lágrima. Na cozinha assoa-se, olhando pelo quebrado
vidro da janela a luxuosa viatura do marido. Quem vai à guerra dá e leva, se diz.
Mas ela tinha ido à paz e só tinha levado. Ali estava, o Mercedes, cheio de
auto--suficiência.
Em vez de inveja, porém, lhe vem um alegre preenchimento. Como se o automóvel fosse
propriedade sua e ela, alguma vez, viesse a espampanar suas larguezas nos estofos.
Regressa à sala e mantém-se encostada ao armário. O móvel abana e tombam os bonequinhos.
Cristo desaba do berço. Sidónio, pela primeira vez, concede olhar a esposa.
E confirma o ditado: que o homem é tão velho quanto a sua idade e a mulher é tão velha quanto
parece. Olha as mãos dela, nota o verniz. Mariazinha se esgateia, às pressas recolhendo aquela
vaidade.
– Pintei hoje de manhã, pedi ã vizinha uma tintinha emprestada.
– Sou capaz de ter que rever essa mesada.
– Ah, a mesada, já há dez meses que você não. .
– Tenho prioridades, Mariazinha.
39
Finda a refeição, descalçados os sapatos, Sidónio escomprida-se na cadeira e fecha os olhos,
todo atento aos seus próprios interiores. Sucede, então, o imprevisto. A mulher, subitamente
dengosa, se debruça sobre ele, aumentando a visão das suas carnes.
– Me está a apetecer dançar. Não quer ligari essa musiquinha, marido? – Qual música? – Essa
do seu telemóvel.
Sidónio levanta-se, arrastado. Os olhos dela ainda rebrilham, esperançosos. Mas não é para ela
que ele se ergue. São horas, está de abalada. À porta, ela ainda requer, em sussurro: – Para o
ano, você volta? – Não sei, mulher, não sei, você sabe, a coisa não está fácil. .
– Mas você pode trazer os seus outros. . os irmãos dos seus filhos. E pode trazer a. .
ela, também. Eu não me importo, Sidónio.
Mas o homem já não está na conversa. Chama os filhos para a despedida e ruma para o carro.
Enquanto ele se espreme para entrar na viatura, Mariazinha comenta para os miúdos: – Aquele
é um homem bom que ainda há nesse mundo.
E o mais novo, apertando a mão da mãe: – O pai é aquele que chamam de Pai Natal? Riso triste
vai esvanecendo no rosto da mãe, enquanto Sidónio desaparece no fundo escuro da estrada.
Mãe e filhos ficam contemplando a noite, como que esquecidos que havia casa onde reentrar.
De súbito, o mais velho sacode a saia da mãe e aponta: – Veja, mãe, está chegar o vizinho, o
senhor Alves.
Mariazinha, apressadamente, compõe vestido e sorriso, e murmura: – Já sabem, meninos, ao
sinal combinado, vocês desaparecem das vistas! A despedideira Há mulheres que querem que
o seu homem seja o Sol. O meu quero-o nuvem. Há mulheres que falam na voz do seu homem.
O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios. Para que ele seja a minha voz quando
Deus me pedir contas.
No resto, quero que tenha medo e me deixe ser mulher, mesmo que nem sempre sua.
Que ele seja homem em breves doses. Que exista em marés, no ciclo das águas e dos ventos.
E, vez em quando, seja mulher, tanto quanto eu. As suas mãos as quero firmes quando me
despir. Mas ainda mais quero que ele me saiba vestir. Como se eu mesma me vestisse e ele
fosse a mão da minha vaidade. Há muito tempo, me casei, também eu. Dispensei uma vida com
esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não me deixou a mim. Que eu já era outra,
habilitada a ser ninguém. Às vezes, contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem.
Lembro o tempo em que me encantei, tudo era um princípio. Eu era nova, dezanovinha.
Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeirissímo dia, dei conta de que, até então, nunca eu
tinha falado com ninguém. O que havia feito era comercia palavra, em negoceio de sentimento.

40
Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo.
Falar é outra coisa vos digo.
Dessa vez, com esse homem, na palavra e me divinizei. Como perfume em que perdesse minha
própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada Lembro desse encontro, dessa primogénita
primeira vez. Como se aquele momento fosse, afinal toda minha vida. Aconteceu aqui, neste
mesmo pátio em que agora o espero.
Era uma tarde boa para gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa
sem voar, quase nidificava. Vez voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente todo chegado
como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.
No entanto, algo nele aparentava distância. O último escapava entre os seus dedos.
Não levava o cigarro à boca. Em seu parado gesto, o tabaco aí mesmo se consumia.
Ele gostava assim: a inteira cinza tombando intacta no chão. Pois eu tombei igualzinha àquela
cinza. Desabei inteira sob o corpo dele Depois, medesfiz em poeira, toda estrelada no chão. As
mãos dele: o vento espalhando cinzas.
Nesse mesmo pátio em que se estreava me coração tudo iria, afinal, acabar. Porque ele anunciou
tudo nesse poente. Que a paixão dele desbrilhara.
Sem mais nada, nem outra mulher havendo Só isso: a murchidão do que, antes, florescia. Eu
insisti, louca de tristeza.
Não havia mesmo outra mulher? Não havia. O único intruso era o tempo, que nossa rotina
deixara crescer e pesar. Ele se chegou me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo
longe da boca. Meu peito era um rio lavado, escoado no estuário do choro.
Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai.
Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. por um cansaço
de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde
e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao
serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras.
A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se
vagarosa.
E tomba, no desamparo do meio-dia.
Deixem-me agora evocar, aos goles de lembrança. Enquanto espero que ele volte, de novo, a
este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrimento.
Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou
na vertigem. Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar
tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
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Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: o que brilho é
por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água.
Mesmo que surja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
Pedi-lhe que viesse uma vez mais. Para que, de novo, se despeça de mim. E passados os anos,
tantos que já nem cabem na lembrança, eu ainda choro como se fosse a primeira despedida.
Porque esse adeus, só esse aceno é meu, todo inteiramente meu. Um adeus à medida de meu
amor.
Assim, ele virá para renovar despedidas. Quando a lágrima escorrer no meu rosto eu a sorverei,
como quem bebe o tempo. Essa água é, agora, meu único alimento. Meu último alento. Já não
tenho mais desse amor que a sua própria conclusão. Como quem tem um corpo apenas pela
ferida de o perder.
Por isso, refaço a despedida. Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso.
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda
muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada, Ninguém no plural.
Ninguéns.

Mia Couto, em “O Fio das Missangas”

42
2-Novela

O Alienista
Machado de Assis
CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.
Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia.
—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando
as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos
casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um
juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno,
e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-
lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com
facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-
lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação
de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus,
porquanto não corria o risco de preterir os4
interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos.
A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro,
depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os
escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas
e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama,
nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do
esposo; e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a
total extinção da dinastia dos Bacamartes.

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Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou
inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe
chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não
havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada,
ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente
a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas
em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos
sabedores.
—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
—Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e
comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não
fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na
própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício
da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar
tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir
todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara
lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade
de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se
desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa,
vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse
à própria mulher do médico.
—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um
passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um
principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a
certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os
vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resolveu
autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil
achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o
uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um
coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas
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fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão
perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores,
que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o
escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é
que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença
começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo;
tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes.
Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela
consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e
profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por
tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia,
que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez
apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações
próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às
cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes
tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D.
Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriuse de jóias,
flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir
visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a
cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para
a sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão
ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.

CAPÍTULO II - TORRENTES DE LOUCOS

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista
o mistério do seu coração.
—A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como
o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: "Se eu conhecer
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quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada". O principal nesta minha obra da Casa
Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração.
Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.
—Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
—Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior
campo aos meus estudos.
—Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos,
eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de
quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-
se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a
existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por
exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um
discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego
e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer.
Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
—Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima
está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de
Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é
fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
—Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois
de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e
puramente científica, e disso trato...
—Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O
primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e
alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a
perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre,
à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um
desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armouse
de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa,
matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.
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O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim
do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho
de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda
a sua genealogia, que era esta:
—Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi
engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês
engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um
boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a
um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de
monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora
ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos
outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia
em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam
a terra; tal era o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por
interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias
hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por
organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa idéia ao boticário Crispim Soares,
aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes
deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita,
etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele
ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo
espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—9e acrescentava,—com o único fim de dizer
também uma chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus
enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí
passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um
estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões,
as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos,
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profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade,
doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais
atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta
interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as
substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham
nos seus amados árabes, como que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência.
Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e,
ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava
uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D.
Evarista.

Continua...

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3-Romance
Mia Couto-Excerto de Romance
Vinte e Zinco
20 de Abril
«Ninguém nasce desta ou daquela raça.
Só depois nos tornamos pretos, brancos
ou de outra qualquer raça»
Extracto do diário de Irene, parafraseando Simone de Beauvoir
Irene sacode as pernas. Em vão. O matope, já seco, se agarrara ao corpo como se fosse uma
outra pele. A irmã, Margarida, espera-a à porta.
— Francamente, Irene. São horas de voltar?
— São horas de tudo, mana.
— E onde estiveste, posso saber?
— Nas lagoas. Vê o que eu trouxe.
Da blusa ela retira um frasco velho. Suspende-o no alto para que se veja à transparência.
— Sabes o que é? É uma aguinha tratada.
— Voltaste à bruxa!
— Em África não há bruxas. Jessumina é uma mulher com poderes. Tu sabes, Guida, mas tens
medo de aceitar.
Irene dança em volta da irmã. A diferença de idades, na circunstância, se evidencia ainda mais.
Irene, mais moça, é dessas mulheres bravias, vivas de nascença. Ela tem corpo e rosto, tudo
em estado desejável. Se não fosse louca ainda havia esperança de se lhe arranjar pretendente.
Irene viera para África depois que seu cunhado Joaquim de Castro morrera. A viuvez é
demasiado pesada para se suportar em solidão. Por isso, Margarida requereu a presença de
Irene e lhe pediu o pleno exercício da irmandade. Em vão. Em Moçambique, a jovem Irene se
descaminhara, exilada do juízo e das maneiras. Se misturara com os negros, dera licença a
rumores e vergonhas.
Procedimentos que despergaminhavam a honra familiar. Já seu marido Joaquim de Castro
havia sido agente da PIDE. O filho Lourenço imitara-lhe as pisadas.
Esperava-se da família Castro que emanasse o exemplo. Não acontecia, devido a Irene. Afinal,
onde a noite mais escurece é em volta do pirilampo.
Margarida quase sente pena de Irene quando a olha agora, dançando com o frasco entre os
dedos. Quase podia ser compaixão. Mas é inveja. Assim, bela e feliz, Irene escapava à
cinzentura daquela casa, vergada sob silêncios e suspiros.
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Em tudo que fazia, Irene se acendia em fogo de dentro. Enquanto ela não passava da cepa
morta. A moça usufruía do lugar, sem fronteira de medo.

Passeava sozinha nos bairros dos negros. Sentava-se com eles. Bebia e comia com eles. Pelas
tardes, escapava ao tempo nos lagos de Nkuluine. Estava proibida, mas quem pode mandar em
loucura?
— Cá para mim ela não está tão louca como parece.
Lourenço desconfiava da autenticidade da tia. Pode-se enlouquecer assim, em tão breve tempo?
Se ele próprio, vivido nas durezas de África, se mantinha lúcido e pronto para dar a sua vida
por essa lucidez?
— Os horrores que eu vi e não perdi a razão.
Referia-se, todos sabiam, à morte de seu pai, Joaquim de Castro. Ele assistira a tudo no
helicóptero. O pai estava fardado e mantinha-se de pé, lutando contra o balanço. Seus gritos,
ásperos, sobrepunham-se ao ruído do motor. Mandava que os presos, de mãos atadas, se
chegassem à porta aberta do aparelho. Depois, com um pontapé ele os fazia despenhar sobre o
oceano.
Daquela vez, o pai decidira que Lourenço o devia acompanhar para ver esse espectáculo. Dizia:
experiências daquelas é que endurecem o verdadeiro homem.
— Você vai ver, filho: os cabrões esbracejam no ar como se quisessem ganhar
asas.
Anichado no canto do aparelho, Lourenço sofria de enjoo. Mas ele não podia confessar essa
fraqueza quase feminina. Passava-se ali prova tão macha e ele esverdeava, na iminência do
vómito? Forte, ser forte que os fracos não gozam a História. Palavras do velho Castro
esconjurando os mimos de Margarida.
Mariquices, isso é que dá cabo de um homem. Lourenço ansiava comprovar suas habilidades
para bravezas. Por isso, ali no helicóptero, ele se esforçava por não dar parte de frouxo. De
repente, um emaranhado de pernas se cruzou em redor de Joaquim de Castro.
Como tesouras de carne os membros inferiores dos presos enredaram o corpo do português. Os
prisioneiros lutavam, arrumados em prévia combinação. Cairiam eles, mas o Castro iria junto.
O português gritou, pediu ajuda ao filho. Mas este nem se mexeu. Olhos esbugalhados, viu o
pai ser ejectado do helicóptero.
Súbito, lhe pareceu eclodir um pássaro, composto em asas e plumas. Mas nada tombava sobre
o mar. Flutuavam penas dispersas como saídas de um buraco de nuvem. Essas plumas

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embaladas em hesitante brisa eram a única memória que lhe restara daquele momento. Para
além do barulho das hélices, sobre a cabeça.
Nunca mais haveria de suportar ventoinha. Fizesse calor de torrar, a ventoinha estava interdita.
Desde então, Lourenço tinha um único propósito em sua existência. Só uma ideia se trancara
em sua testa. Ele não era de falas, muito menos risos. Seco, mas artimanhoso. Sua ascensão na
polícia política se fez rápida, à força de muito serviço mostrado. E de muito mais serviço que
não podia mostrar.
Sua mãe Margarida receava pelo estado de seu único filho. Porque ele nem pensava em mais.
De sua vida não se despontava prazer, mulher, diversão. Às vezes, quando o via aparar com
mais cuidado o bigode, uma breve esperança se acendia. Logo frustrada, quando ele se
refugiava no solitário escritório. Assim, só e triste, se convocam as temíveis doenças. E, quem
sabe, os maus espíritos?
Sabe-se lá foi por isso que Irene contraíra aquele desjuízo dela.
— Irene não é nossa família, mãe.
Toda aquela raiva de Lourenço contra a tia afligia Dona Margarida. Porque, ao mesmo tempo,
na penumbra da sala onde o filho se fechava, sobrava sempre o álbum de fotografias da família.
Na manhã seguinte, as fotos da tia amanheciam fora do álbum. E a mãe, em silêncio, voltava a
guardar as imagens da adolescência de sua irmã. Como se reordenasse o tempo e corrigisse o
presente.
O rodar da maçaneta faz despertar Margarida. Irene continua dançando, volteando-se pela sala.
Lourenço, entrado na sala, estremece. Irene passa rodando, pernas deixadas nuas pelo arregaçar
da saia na cintura. Se percebe que aquela dança não é europeia. É ritmo africano. A mulher
branca se balança como se seu corpo albergasse o mundo dos outros. Dona Margarida se
apercebe da afronta. Urge criar desatenção. Ela se empenha em ser mãe: cumpre o ritual,
casaco em riste para abrigar o filho. Um gesto brusco fez saltar o casaco.
— Ela foi outra vez às lagoas!
Sempre embalada por uma inaudível música, Irene vai de encontro ao sobrinho e lhe mostra o
frasquinho. Margarida, em vão, gesticula. Recomenda recato à irmã. Mas Irene desafia o
sobrinho. A moça o que fazia? Abria janelas em noite de tempestade?
— Sabe o que é isto, sobrinho?
— Foi outra vez à porcaria das lagoas?!
— Dentro deste frasquinho está uma água que me deu Jessumina.

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Pára, afogueada. E explica com coração nas palavras: aquele era o líquido em que os abutres
lavavam os olhos. Aquela água apurava visões de quem delas carecia. E ela pedira aquele
líquido para lavar os olhos de Tchuvisco, o cego seu amigo.
— Não quero ouvir falar desse nome.
— Quem, Tchuvisco? E porquê, Lourenço?
— Esse nome não volta a ser pronunciado nestacasa. Eu não lhe disse que não a queria ver
mais com esse preto?
Irene ergue o queixo, em afronta. Sua voz solavanqueia entre agudos e rouquezas, entornando
frases nos fôlegos. Há ali o confronto deslocado de uma outra guerra. Nesse conflito, a voz de
Irene se engatilha, às vezes, fio tremente, outras vezes, espantada com sua própria grandeza.
— Lourenço, o menino não entendeu uma coisa: você não manda, você só dá
ordens. Entendeu?
— Pois eu lhe mando uma coisa: cubra essas pernas imediatamente.
Irene, em desafio, desabotoa a saia. A roupa lhe tomba, em suspiro, a seus pés. Depois, de um
puxão ela faz saltar os botões da blusa. Assim, em vasta nudez, se antepõe perante o sobrinho.
O homem reage com disparada violência. Arrancalhe das mãos o frasco e arremessa-o de
encontro ao chão:
— Veja o que faço à merda das suas mezinhas!
Os olhos de Irene se inflamam. Aos poucos seu rosto se lhe despertence. A mulher, vê-se, vai
perdendo a matéria e o volume do juízo. Levanta o cabelo com as duas mãos como se
entendesse domar a alma que lhe escapa. Com um áspero sibilo ela faz gelar a sala:
— Pois, eu vos digo: esta casa vai definhar, até nela apodrecer o espírito desse monstro que
foi esse teu pai.
Ali há só o tempo, enredado em silêncio. A um canto, Margarida se resume a lágrimas. Irene
prossegue, desdobrando a fala com lentidão:
— Haveis de enterrar mil vezes esse falecido. E será sempre enterro falso. Que esta terra
nunca,mas nunca o irá aceitar.
Despida e desfigurada, Irene se aproxima do cadeirão onde, em vida, Castro celebrava as
refeições. O lugar do falecido se conservara ali, intocável. Na mesa posta, talheres, pratos e
copo encenavam presença. O nome de Joaquim de Castro jamais se pronunciava, após seu
falecimento. Mas a cadeira se guardava como se aguardasse ressurgência. Em fúria, Irene
enfrenta o lugar do morto.

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Derruba a cadeira, atira o guardanapo ao chão. O sobrinho se ergue com decisão de violência.
O braço de Margarida lhe impede o gesto. Lourenço fraqueja no fazer, incompetente no calar.
De novo, Irene lhe faz frente:
— Pensas que tens o poder de matar? Pois esta gente, os pretos como tu lhes chamas, tem
poderes que desconheces. Esses que mataste ainda estão por aqui, deste lado da vida. Só matas
os que eles deixam morrer...

Texto Completo em “Vinte e Zinco” de Mia Couto, Editora: Caminho Portugal

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