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Feminicídios - Conceitos, Tipos e Contextos 2017
Feminicídios - Conceitos, Tipos e Contextos 2017
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ARTIGO ARTICLE
Femicides: concepts, types and scenarios
Abstract This text is a theoretical essay that Resumo Este texto é um ensaio teórico que dis-
discusses the concepts, types and scenarios of fe- cute os conceitos, os tipos e os cenários de feminicí-
minicides, and presents some proposals for the dios e apresenta algumas propostas para a preven-
prevention of these premature, unjust and avoid- ção destas mortes prematuras, injustas e evitáveis.
able deaths. The text revisits the original concept O texto traz o conceito original de femicídio pro-
of femicide proposed by Diana Russell and Jane posto por Diana Russel e Jane Caputti, caracteriza
Caputti and shows new and old scenarios where tipos e mostra cenários novos e antigos onde estes
these crimes occur. It points to patriarchy, un- crimes ocorrem. Aponta o patriarcado, entendido
derstood as being a hierarchical system of power como sistema hierárquico de poder entre homens
between men and women, as one of the main de- e mulheres, como um dos principais determinan-
terminants of these deaths. It ends by presenting tes destas mortes. Finaliza apresentando ações e
actions and proposals to prevent and combat these propostas para prevenir e combater estes crimes
gender crimes. de gênero.
Key words Femicides, Feminicides, Violence Palavras-chave Femicídios, Feminicídios, Vio-
against women lência conta a mulher
1
Escola de Enfermagem,
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. R. São
Manoel 963, Rio Branco.
Porto Alegre RS Brasil.
stelameneghel@gmail.com
2
Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Violência,
Criminalidade e Políticas
Públicas, Universidade
Federal de Pernambuco.
Recife PE Brasil.
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Meneghel SN, Portella AP
Ao caracterizar esse tipo de mortes não se em maior risco de morte, para que possam ser
pode deixar de analisar as novas configurações tomadas medidas de proteção14.
na organização social do trabalho, a crescente ur- Estudos sobre as rotas críticas percorridas
banização da população e os movimentos migra- pelas mulheres no enfrentamento das violências
tórios, os reflexos globais de mudanças de com- mostram que o sistema jurídico-policial é o mais
portamento incidindo em culturas de honra, a procurado e o setor saúde não tem funciona-
proliferação de máfias e organizações criminosas do como porta de entrada para o diagnóstico e
que têm explorado as mulheres e as descartado o acolhimento de casos32. Profissionais do setor
quando não são mais necessárias ou para intimi- saúde dificilmente consideram a violência con-
dar as instituições sociais e as outras mulheres. A tra a mulher como um problema de saúde pú-
coexistência de fenômenos tradicionais e moder- blica, embora tenha sido definida como tal pela
nos tem levado à vulnerabilização cada vez maior Organização Mundial da Saúde nos anos 1990.
dos grupos mais frágeis e sem redes de proteção, Dentre os motivos para esta omissão pode-se
incluindo as mulheres jovens, pobres e migran- elencar a não inclusão deste tema nos cursos da
tes, vítimas preferenciais deste tipo de crime. área da saúde, além da percepção conservadora
e tradicional sobre os papeis de gênero por par-
Enfrentamentos te dos operadores que acreditam que a violência
doméstica pertença à esfera do privado e que as
Para fazer frente aos femicídios, diz Dora mulheres instigam os homens à violência ou não
Munevar37 é preciso realizar as ações de nome- sabem se proteger. Essas percepções fazem com
ar, visibilizar e conceituar as mortes violentas de que, em muitas situações, a violência fique invi-
mulheres, o que constitui o exercício material do sibilizada nos serviços que não percebem nem
direito a ter direitos. Do mesmo modo, há neces- mesmo o risco de morte destas usuárias39,40.
sidade de definir os elementos objetivos e subjeti- Outro fator que obstaculiza a atuação dos
vos do tipo penal que sancione esses crimes. trabalhadores da saúde é a insuficiência ou ine-
Para o monitoramento dos feminicídios em xistência de equipamentos sociais como serviços
um território é preciso dispor de informações fi- especializados e casas de passagem que possam
dedignas. No Brasil, as declarações de óbito que albergar e proteger essas mulheres. O fato de
fazem parte do Sistema de Informação de Mor- realizar um diagnóstico de violência de gênero
talidade/DATASUS não contêm dados referentes perpetrada contra uma mulher e não ter recur-
à causa do crime, sendo impossível classificar as sos humanos e materiais para oferecer é uma si-
mortes femininas por agressão, como femicídios tuação que gera mal-estar, ansiedade e angústia,
ou feminicídios, já que não contam com infor- fazendo com que muitos trabalhadores prefiram
mação referente ao agressor e à intencionalidade ignorar este problema.
do evento. Outros documentos que se referem Também têm sido relatados, principalmente
aos óbitos femininos por agressão, mas não os por profissionais que atuam em regiões com a
tipificam são os prontuários de serviços de emer- presença do tráfico, sentimentos de medo e im-
gência, laudos periciais e inquéritos periciais, potência gerados pelo confronto com o crime or-
porém o acesso é restrito, o manuseio é difícil e ganizado. Para o profissional da atenção básica,
podem demandar um longo espaço de tempo até que está na ponta do sistema e se sente muitas
sua conclusão. vezes sozinho e sem apoio da retaguarda, efe-
Em 2006, o Ministério da Saúde implantou tuar um notificação de violência (que pode ser
o sistema de Vigilância de Violências e Acidentes lida como denúncia; que é anônima, mas muitas
(VIVA) no âmbito do Sistema Único de Saúde vezes que todos sabem quem a produziu) pode
(SUS), em dois componentes: (1) vigilância de significar exposição à retaliação por parte dos
violência doméstica, sexual, e/ou outras violên- agressores. Acrescente-se a dificuldade do Estado
cias interpessoais e autoprovocadas (VIVA-Con- brasileiro em proteger as testemunhas e/ou os de-
tínuo), e (2) vigilância de violências e acidentes poentes e o rompimento do sigilo que ocorre em
em emergências hospitalares (VIVA-Sentinela)38. muitas situações pelos trabalhadores que alimen-
Mesmo após a criação deste sistema, as violên- tam sistemas de informação ou pelos rituais jurí-
cias têm sido pouco notificadas, principalmente dicos que colocam frente a frente vítimas, réus e
aquelas contra a mulher. No Brasil, assim como testemunhas.
em outros países, ainda não há bases de dados Além do mais, os profissionais da saúde for-
fidedignas que indiquem a prevalência da violên- mados para oferecer ações técnicas frente às do-
cia contra a mulher e identifiquem as que estão enças sentem-se despreparados para lidar com
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modo a eliminar a impunidade característica da recebam formação teórica, mas educação con-
violência contra as mulheres44. tinuada que inclua a discussão dos casos na sua
Poderia se acrescentar ainda o caráter patriar- integralidade, o partilhar de experiências mesmo
cal da sociedade, que mantém as desigualdades as mais dolorosas, o apoio e a retaguarda para a
de poder entre homens e mulheres e segue consi- equipe e, principalmente, a capacidade de man-
derando estas como propriedade dos primeiros, ter viva a capacidade de se indignar, sentimento
que têm licença, portanto, para matá-las. que ajuda a elaborar o mal estar que nos atinge
Finalmente, na medida em que todas e todos ao nos defrontarmos com o sofrimento humano
somos afetados pelas violências, é preciso que os e com estas mortes prematuras, evitáveis, cruéis
trabalhadores sociais e de saúde, assim como os e iníquas.
operadores do setor jurídico-policial não apenas
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