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Uma teoria
da adaptação
2â edição
Tradução
André Cechinel
editora ufsc
© 2011 Linda Hutcheon
Direção editorial:
Paulo R oberto d a Silva
Editoração:
Carolina Pinheiro
Capa:
M aria Lúcia Iaczinski
Revisão:
Jú lio C ésar Ram os
Revisão técnica:
Genilda A zeredo
M areia Tiemy M orita K aw am oto
Ilustração de capa:
Ju lia A m aral
Ficha Catalográfica
(Catalogação na publicação pela Biblioteca U niversitária da Universidade
Federal de Santa Catarina)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida,
arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia
permissão por escrito da Editora da UFSC.
Impresso no Brasil
Adaptar é um pouco como redecorar.
Alfred Uhry
Linda Hutcheon
P refácio
5 Os três m odes o f engagem ent, traduzidos aqui como “con tar”, “m ostrar” e
“interagir”, são, no original, telling, show ing e interacting. A expressão “modos de
engajam ento” tam bém poderia ser traduzida como “modos de interação”.
P r e f á c io II 15
6
R em ediated, ou seja, recodificadas em diferentes m ídias.
P r e f á c io II 17
F am iliarid ad e e d e sp r e z o
7 Canal da televisão a cabo am ericana dedicado a film es, peças teatrais, música
e artes em geral.
C o m e ç a n d o a t e o r iz a r a a d a p t a ç ã o II 2 3
ii
Editora de quadrinhos norte-am ericana.
C o m e ç a n d o a t e o r iz a r a a d a p t a ç ã o II 31
12 Musical sam pling é o gesto de adaptar uma am ostra m usical para reutilizá-la
numa segunda música, por exemplo.
13 Ou Fanfic, isto é, ficção criada por fãs a p artir de um enredo “fonte” admirado.
32 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
14 Como a autora expõe, as cut-scenes são cenas (anim ações, im agens de filmes
etc.) que, em determ inados pontos de um jogo, atualizam o enredo. Durante
essas cenas, o jogador não tem controle sobre os eventos narrados.
C o m e ç a n d o a t e o r iz a r a a d a p t a ç ã o II 3 7
FICAÇÃO ESPECÍFICA
A daptação como p r o c e s s o
M odos de en g a ja m en to
15 M achine (máquina) + anim ation (animação). M achinim as são anim ações feitas
a partir de cenas de jogos de videogam es.
AS II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
S ituando a adaptação
( F o rm a s)
i
O quê? Il 75
Roubo [1972] [Cool Breeze]; ver BRAUDY, 1998, p. 331). Essa mesma
mudança de gênero também pode ocorrer às várias mídias dentro
de um mesmo modo de engajamento. A versão cinematográfica
atualizada da peça de Shakespeare, Ricardo III, de Richard Loncraine
[1995], já foi vista como um mistura dos filmes de época ingleses
com os filmes de gângster americanos (LOEHLIN, 1997, p. 72-74),
sem dúvida causando reações conflitantes por parte do público.
Quando a peça Romeu e Julieta foi transcodificada tanto para o
musical do palco (1957) como para o filme de Leonard Bernstein,
West Side Story (1961), seu foco genérico mudou juntamente com
a mídia, tal como ocorreu também quando o coreógrafo e poeta
hip hop Rennie Harris criou Rome and Jew el - uma alegoria política
de poder e desejo na qual Jewel/Juliet nunca é vista no palco,
permanecendo como projeção invisível do desejo e das políticas de
gangue masculinas. Esses últimos exemplos sugerem, entretanto,
que as propriedades formais das diversas mídias envolvidas nesse
modo particular de mostrar precisam ser diferenciadas umas das
outras.
24 Pan an d dissolve.
Oquê? Il 79
31
Fish-eye.
O quê? Il 95
32 F ilm ic dissolv e.
33 T im e-la p se dissolv e.
O quê? Il 101
34
O ffscreen.
104 II ÜMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
L
A trilha sonora é utilizada não só para sugerir a interioridade,
como também para reforçar a ambiguidade; os sons misteriosos
que ouvimos resultam da mente da governanta, ou indicam a
O quê? Il 107
A pr en d en d o com a prática
35
M aster a t A rm s, oficial encarregado da disciplina num navio.
112 II U m a TEORIA DA ADAPTAÇÃO
(A d a p t a d o r e s )
Q uem é o ad a pta d o r ?
36 The W ooster Group é um grupo de artistas que, desde a década de 1970, realiza
trabalhos experim entais para o teatro e outras mídias.
Q u e m ? P or q u ê ? Il 119
Esses vários adaptadores, entretanto, situam-se a diferentes vale para o cinema, é claro: em dado momento, uma adaptação de
distâncias do texto adaptado. A resposta de Zadie Smith à versão Ridley Scott teria focado nos marginalizados e mais fracos, e uma
televisiva de seu romance Dentes Brancos dá uma boa ideia da versão de David Lean de um romance clássico, qualquer romance
complexidade desse processo: “Televisionar significa observar clássico, enfatizaria o tema da repressão romântica e da frustração
uma ideia criativa percorrer seu lento e tortuoso caminho desde sexual (SINYARD, 1986, p. 124). Nesses casos, os diretores fazem
o roteirista, passando por produtor, ator, terceiro assistente de da adaptação de fato sua própria obra: o Satyricon (1969), de
direção, segundo assistente de direção, pelo próprio diretor, Fellini, é 80% Fellini e 20% Petrônio, de acordo com o próprio
pelo câmera, até chegar àquele pobre coitado que deve segurar o diretor (apud DICK, 1981, p. 151).
longo, peludo e cinzento Q-tip no ar para que a coisa toda possa O texto adaptado, portanto, não é algo a ser reproduzido,
acontecer. Televisionar é uma atividade de grupo” (SMITH, 2003, mas sim um objeto a ser interpretado e recriado, frequentemente
p. 1). Há um distanciamento progressivo do romance adaptado numa nova mídia. É o que um teórico chama de reservatório de
à medida que o processo avança da escrita do roteiro para a instruções - diegéticas, narrativas e axiológicas - , que podem
filmagem em si (quando designers, atores, cinegrafistas e diretores ser utilizadas ou ignoradas (GARDIES, 1998, p. 68-71), pois o
entram em cena), e então para a edição, quando som e música adaptador é um intérprete antes de tornar-se um criador. Mas
são acrescentados à obra como totalidade. O próprio roteiro é a transposição criativa da história de uma obra adaptada e seu
frequentemente alterado por meio da interação com o diretor e os heterocosmo está sujeita não apenas às necessidades de gênero
atores, sem mencionar o trabalho do editor. Como produto final, o e mídia, conforme explorado no segundo capítulo, mas também
filme pode estar bem distante, em termos de foco e ênfase, tanto ao temperamento e talento do adaptador, além de seus próprios
do roteiro quanto do texto adaptado. William Goldman vê o filme intertextos particulares que filtram os materiais adaptados. O
finalizado como a adaptação do estúdio da adaptação do editor escritor francês Michel Vinaver (1998, p. 84) considera sua própria
da adaptação do diretor da adaptação dos atores da adaptação do adaptação um processo de substituição, na qual o texto anterior
roteirista da adaptação de um romance que pode ser ele próprio dá lugar às suas intenções. Quando o diretor de cinema Bernardo
uma adaptação de uma narrativa ou de convenções genéricas (apud Bertolucci e o roteirista Gilbert Adair adaptaram o romance do
LANDON, 1991, p. 96). último, Os Inocentes Sagrados [The Holy Innocents] (1988), para o
A adaptação para encenação no palco pode ser quase cinema, Os Sonhadores [The Dreamers] (2004), o relacionamento
tão complexa quanto esse processo, porém não conta com as homossexual deu lugar ao hétero, do mesmo modo como as
intervenções estruturais do editor de um filme; o diretor é intenções de Bertolucci substituíram as de Adair.
considerado o responsável direto pela forma e impacto do todo. O filme e a ópera feitos a partir de Der Tod in Venedig, de
J á que as preocupações características do diretor, seus gostos e Thomas Mann, diferem por razões óbvias ligadas a convenções
sua marca estilística, tanto no teatro como no cinema, são as de de mídia e gênero, mas diferem também porque são apresentados
maior destaque e visibilidade, talvez todos os diretores devessem por seus criadores através do que podemos chamar de diferentes
ser considerados pelo menos adaptadores em potencial. O público filtros artísticos individuais. Visconti dá voz não somente à musica
acaba aprendendo que uma ópera produzida por Harry Kupfer é de Gustav Mahler, mas às pinturas de Monet, Guardi e Carrà, bem
aquela que, de modo autorreflexivo, coloca em primeiro plano toda como ao seu próprio filme Sedução da Carne [Senso] (ver CARCAUD-
a violência e tensão sexual subjacentes à obra. O mesmo também MACAIRE; CLERC, 1998, p. 160), criando assim um exuberante
1
124 II UMATEORIADAADAPTAÇÃO
P or que a d a pta r ?
O s ATRATIVOS ECONÔMICOS
A s RESTRIÇÕES LEGAIS
C a pita l cu ltu ra l
M otivos p e s s o a is e po lític o s
e o Irish Film Board patrocinaram a produção de 19 curtas- Garotos de Programa [My Own Private Idaho] (1991), de Gus Van
metragens adaptados da obra de Samuel Beckett, por diretores ou Sant, inclui em seus créditos: “diálogos adicionais de William
familiarizados com o trabalho do dramaturgo ou influenciados por Shakespeare”. Outros adaptadores mostram ter intenções ainda
ele. Contudo, em nome da fidelidade, os detentores dos direitos da mais fortes, contudo. A adaptação cinematográfica de Rainer
obra de Beckett proibiram quaisquer mudanças nos textos. Werner Fassbinder do livro Querelle de Brest (1947), de Jean Genet
Alguns covers musicais são concebidos abertamente como - Querelle (1982), simplesmente - , foi concebida por seu adaptador
tributos: o álbum Temptation, de Holly Cole, é uma homenagem a como “um questionamento inequívoco e decidido do texto literário
Tom Waits. Outros se destinam à crítica, no entanto: quando uma e de sua linguagem” (FASSBINDER, 1992, p. 168).
cantora como Tori Amos faz covers de músicas misóginas, o novo Uma adaptação pode ser claramente utilizada para realizar
ângulo vocal subverte a ideologia sexista das canções adaptadas: uma crítica social ou cultural mais ampla - ou para evitá-la, é
“’97 Bonnie & Clyde” é um cover da música de Eminem em que um lógico: a tentativa de contornar a política imperialista na versão
homem diz à sua filha que os dois (sem mais padrasto ou novos de 2002 do romance já tantas vezes adaptado de A. E. W. Mason,
irmãos) irão à praia, onde, logo ficamos sabendo, ele despejará o corpo As Quatro Plumas [The Pour Feathers] (1902), direção de Shekhar
da mãe assassinada. Essas palavras são assustadoras o suficiente Kapur e roteiro de Hossein Amini e Michael Schaffer, é, no
quando cantadas por um homem junto com os arrulhos gravados entanto, menos comum hoje do que as formas mais diretas de
da garotinha de Eminem, porém quando essas mesmas palavras são engajamento político. A motivação ideológica de Sally Potter para
cantadas pela mãe, numa voz de bebê, para a filha, elas se tornam fazer uma versão cinematográfica do livro Orlando, de Virgínia
uma dura citação condenatória do pai. Numa outra adaptação, a Woolf, conforme escrito na introdução do roteiro publicado, difere
garotinha desse horror, agora uma jovem mulher, canta “Strange do objetivo fem inista da autora, embora seja igualmente político:
Litile Girl” dos Stranglers (ver AMOS; POWERS, 2005, p. 288). Potter desejava adaptar - e, portanto, inevitavelmente mudar -
Em resumo, há inúmeros motivos para querer adaptar. As o texto não apenas para contar uma história que amava, mas
adaptações de Shakespeare, em particular, podem ser concebidas também para possibilitar “uma visão mais mordaz e satírica do
tanto como tributos quanto como tentativas de suplantar a sistema de classes inglês e das atitudes coloniais dele resultantes”
autoridade cultural canônica. Conforme Marjorie Garber (1987, (POTTER, 1994, p. xi). Os dramaturgos pós-coloniais e os
p. 7) observa, Shakespeare é, para muitos adaptadores, “um produtores de televisão contrários à guerra também têm utilizado
monumento a ser derrubado”. Testemunha e prova disso são os as adaptações para articular suas posições políticas. Esse tipo de
créditos do roteiro da versão cinematográfica de A Megera Domada intencionalidade política e histórica desperta hoje grande interesse
[The Taming o f the Shrew] (1966), de Franco Zeffirelli: “Paul Dehn, nos círculos acadêmicos, apesar de mais de meio século de rejeição
Suso Cecchi DAmico e Franco Zeffirelli, com agradecimentos crítica - que inclui form alistas, a Nova Crítica, estruturalistas e
a William Shakespeare, sem o qual eles estariam em busca de pós-estruturalistas - da importância da intenção artística para
palavras”. No entanto, o deslocamento irônico aqui não se dirigiu a interpretação. A suspeita ainda permanece em torno de outros
somente ao Bardo, mas também à adaptação cinematográfica tipos de motivações mais pessoais e, dessa forma, idiossincráticas,
anterior da peça, estrelada por Mary Pickford e Douglas Fairbanks. apesar do foco crescente no indivíduo nos queerstudies e nos estudos
Segue disso o elenco bastante comercial do filme na época, o par pós-coloniais, étnicos e feministas. No entanto, um manual para
Elizabeth Taylor e Richard Burton. Numa linha mais moderada, roteiristas afirma com segurança: “se o adaptador não se comoveu
136 || UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
J
Quem? Por quê? Il 137
A pr en d en d o com a prática
39
Louvai o Senhor, todos os povos”.
Q uem ? Por q u ê ? Il 139
por sua nova Priora, Madame Lidoine, que está fora do convento
no momento, mas por Marie de 1’Incarnation. Nessa versão, Marie
é apresentada como um contraste para a assustada Blanche;
filha natural de um aristocrata francês, elã é nobre de caráter e
nascimento, corajosa e decidida - uma mulher muito admirada
pelo narrador e, pelo que sentimos, pela própria autora.
Na novela, Blanche foge do convento após dizer que também
fará o voto. As irmãs são presas em Compiègne enquanto Marie
está em Paris, em parte, para procurar por Blanche. Apesar de ser
a instigadora do voto, Marie é ordenada por sua líder espiritual
a não retornar para Compiègne, onde seria sacrificada, mas a
continuar vivendo. Elã testem unha a morte das m ártires, tal como
o narrador que ouve as freiras iniciarem o “Salve Regina” - um
hino cantado quando uma freira está morrendo - e então o “Veni
Creator”; à medida que as mulheres morrem, o som do canto torna-
se cada vez mais silencioso. De repente, quando resta apenas uma
voz (a voz da freira mais velha), Blanche aparece e continua a
canção. Pálida, porém totalm ente sem medo, elã canta o resto do
hino antes que a multidão de mulheres a mate no local. O narrador
continua a história após o clímax, contudo, finalizando-a com o
futuro de Marie, que escreveria a história das freiras.
Blanche, entretanto, é o verdadeiro foco da história, e a
Baronesa von le Fort deixou claro, mais tarde, que essa personagem
tinha significado tanto pessoal quanto político para elã:
Elã nunca viveu no sentido histórico, mas tomou o sopro
de sua temerosa vida a p a rtir exclusivamente de meu
próprio interior, e elã nunca será capaz de se livra r disso,
de sua origem. Nascida do mais profundo horror de um
tempo que na Alemanha seria ofuscado pelo sentimento
antecipatório da história por vir, essa figura ficou diante
de mim como a “encarnação da angústia da morte de toda
uma época que se aproxima de seu fim ”. (VON LE FORT,
1956, p. 93, grifo nosso).
As próprias mudanças de Bernanos para as cenas de morte, em seu lugar (LEE, 1998, p. 177). Nas palavras de Constance: “On
no roteiro, entretanto, são reveladoras tanto em termos pessoais né meurt pas chacun pour soi, mais les uns pour les autres, ou même
quanto estéticos. Menos interessado na ação exterior do que no à la place des autres, qui sait?” (p. 57): “não morremos para nós
drama espiritual e psicológico do leito de morte, ele, inicialmente, mesmos, mas para os outros, ou até mesmo no lugar dos outros,
transform a a doente Priora em alguém da sua idade (59 anos), e quem sabe?” O significado dessas palavras não está claro até a
depois chama a atenção para esse detalhe acrescentado, fazendo última cena da peça. Nessa cena, Blanche deixa a multidão, sem
com que a jovem amiga de Blanche, a noviça Constance, comente mostrar medo algum, e segue tranquilamente para a sua morte no
que naquela idade, no final das contas, já é mesmo tempo de morrer. cadafalso. Blanche morre tranquilamente porque morre a morte
Bernanos também confere à Priora um traço bem documentado de merecida pela Priora - e concedida a elã.
sua própria composição espiritual e psicológica: ele a faz admitir A longa e angustiante cena da morte da freira sagrada foi
que meditou sobre a morte durante todas as horas de sua vida interpretada como a forma encontrada por Bernanos de acertar
(BERNANOS, 1949, p. 43; ver também MURRAY, 1963, p. 129). os termos de sua própria morte e de seu medo da dor física e da
As cartas e os diários de Bernanos, sem mencionar seus romances, desolação espiritual. De forma similar, a representação da morte
são testemunhos de sua duradoura obsessão acerca da morte e de de Blanche, cheia de dignidade e pela primeira vez sem medo, foi
sua chegada aparentemente sempre iminente. Essa obsessão fica lida como a projeção do que desejava para sua própria morte. Como
clara a partir das memórias de seus amigos (ver BOLY, 1960, p. 15), tal salto pode ser justificado a partir de traços textuais? Ora, essa
mas suas próprias cartas também são dolorosamente explícitas ideia de uma troca m ística de mortes foi puramente um acréscimo
(ver BÉGUIN, 1958, p. 31). de Bernanos. Aqueles que estudam seu trabalho, de fato, insistem
No leito de morte, a Priora de Bernanos, em sua dor física e que, apesar da “dívida” para com a novela e o roteiro, esse é um
em imenso sofrimento psicológico e espiritual, escandaliza Marie texto estritam ente bernanosiano, atravessado por todos os temas
de l’Incarnation ao contar-lhe que se sente abandonada por Deus. de sua obra inteira (AARAAS, 1988-1989, p. 16; GENDRE, 1994,
Elã então tem uma horrível visão da perseguição e destruição de p. 287-288; ver também HELL, 1978, p. 244). E eles não estão
sua ordem. Nessa versão da história, apenas Blanche é chamada equivocados, mesmo se sua insistência oculta uma necessidade
para ficar ao seu lado, e é somente a elã que a mulher à beira da pós-romântica de afirmar precedência a todo custo. Não um
morte pede perdão por seu medo. Com a face desfigurada pela dor mero adaptador, eles sugerem, mas sim um verdadeiro criador. O
e pelo desespero, a Priora morre uma morte terrível, totalmente escritor francês Julien Green, convocado pelas autoridades legais
inadequada para elã, conforme Constance depois observa, pergun em determinado ponto para tentar resolver as disputas sobre o
tando-se se Deus cometeu um erro ao designar uma morte tão verdadeiro “dono” da história, decretou que a invenção e a criação
horrível a essa mulher sagrada. Bernanos, a seguir, coloca nos dos personagens principais pertencem à Baronesa, mas que
lábios de Constance as palavras que marcariam a maior mudança Bernanos interpretou a lenda à sua própria maneira. Como coube
tem ática em sua adaptação tanto do roteiro como da novela: as a ele a tarefa de dar vida aos personagens, Bernanos permaneceu,
palavras que expressam sua extensão pessoal da doutrina Católica aos olhos do árbitro, o principal autor. Segundo Green, Bernanos
da Comunhão dos Santos. A conclusão lógica dessa doutrina, tomou em mãos o roteiro e fez dele, de modo legítimo e conforme
conforme Padre Owen Lee explica, é a ideia de que, como a Priora poderíamos esperar, algo verdadeiramente seu (MURRAY, 1963,
sofreu muito antes de morrer, outra pessoa teria uma morte leve p. 105-106). Resta certamente pouca dúvida de que sua versão da
U 6 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
( P ú b l ic o s )
Brenda Laurel observa que a grande maioria dos criadores de vida ao “mundo Barbie através de histórias”, conforme formulado
fan fiction e vídeos são meninas, sugerindo que o fascínio pelas em seu website (http://www.yenra.com/barbie-dvds/): “a Barbie irá
histórias continua na vida adulta. As histórias que as jovens preparar a cena para então estimular a imaginação das meninas
mulheres preferem ver adaptadas para o formato de jogos, elã a levar a história ao próximo nível” - o que significa desenvolver
mostra, são aquelas que, como Buffy, a Caça-Vampiros [Buffy the “uma conexão mais profunda com a linha Barbie”. Tendo isso
Vampire Slayer], de certa forma incidem sobre suas próprias vidas em vista, não é de surpreender que a compositora experimental
e sobre questões pessoais com os pais, os irmãos e sua aceitação irlandesa Jen nifer Walshe tenha criado uma ópera musical de
na escola. Garotos da mesma idade, a princípio, se sentem bonecas para a Barbie e seus amigos: como o título (XXX_LiveNude
envergonhados com coisas muito próximas de suas próprias vidas Girls) sugere, essa obra explora o lado mais sombrio da relação
e recorrem, por sua vez, aos exóticos cenários de ação dos super- narrativa das meninas com suas bonecas.
heróis. Parece que 81% dos jogos mais violentos são jogados por Embora vários desses exemplos e teorias sugiram prazeres
meninos, enquanto as meninas preferem jogos que envolvam a contaminados por uma familiaridade muito conservadora, sem
representação de papéis,40 como Sims, com maior interação social, falar em sua comercialização e consumo, há ainda outras razões
ou então jogos que permitam a imersão instantânea numa trama para a reação positiva à repetição com variação que é a adaptação
(e.g., uma adaptação como Nancy Drew). - o que Leo Braudy, ao discutir suas refilmagens cinematográficas,
Nesse caso, outro nome para o público das adaptações é, chama de “negócio cultural inacabado” ou “contínua relevância
obviamente, o de “fãs”, e a comunidade que eles constituem é histórica (econômica, cultural, psicológica) de uma narrativa
conscientemente alimentada pelos adaptadores, que percebem em particular” (BRAUDY, 1998, p. 331). Parte desse diálogo
que as mulheres mais jovens, em particular, necessitam ser contínuo com o passado, pois é isso que a adaptação significa
capazes de “apropriar-se do material cultural para a construção de para os públicos, cria o duplo prazer do palimpsesto: mais de
um significado pessoal” (LAUREL, 2005); é por isso que o modo um texto é experienciado - e de forma proposital. Na adaptação
interagir pode lhes parecer tão interessante, e é essa a razão pela cinematográfica de Tony Richardson (1963) de Tom Jon es (1749),
qual as histórias, em particular, são centrais ao prazer que sentem de Henry Fielding, reconhecemos o narrador manipulador e
com as adaptações. A partir da infância - como posso testemunhar controlador do romance no voice-over do filme, que conclui as cenas
por experiência própria -, as meninas criam mundos imaginários, a tempo de impedir indecências, ou que explica ironicamente as
repletos de sua própria história e geografia, de regras de conduta motivações dos personagens.
e de conhecidos, e elas habitam esses mundos imaginativamente. Esse é o prazer intertextual da adaptação que alguns
Qual a diferença entre, por um lado, enviar e-mails para os consideram elitista e outros veem como enriquecedor. Tal como
personagens de um jogo, em quadros de avisos organizados, a imitação clássica, a adaptação estimula “o prazer intelectual e
é claro, pelas companhias responsáveis pela adaptação, e, por estético” (DUQUESNAY, 1979, p. 68) de compreender a interação
outro, criar histórias para as bonecas Barbie? Em 2004, a Mattel, entre as obras, de abrir os possíveis significados de um texto ao
empresa criadora das bonecas Barbie, decidiu explorar esse último diálogo intertextual. A adaptação e a obra adaptada juntam-se na
passatempo e ofereceu DVDs que são um tipo de adaptação, pois dão compreensão do público em torno de suas complexas interações,
como no caso da adaptação televisiva de Tom Jon es feita pela
40 Os role-playing gam es, traduzidos aqui como “jogos de representação de BBC, na qual vemos um personagem chamado “Henry Fielding”
papéis”, são os fam osos RPGs.
162 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
42 Editora estadunidense conhecida p rincipalm ente por seu trabalho com jogos
de RPG.
Como? Il 165
pois esta, tal como as adaptações, ocupa-se dos públicos. Isso foi
certamente verdadeiro em outros séculos em relação às adaptações
dramáticas e operísticas para o palco. Vimos também que o Código
de Produção de Hollywood (1930-1966), elaborado pelo Padre
Daniel Lord, S. J. e patrocinado por Will Hayes, da “Motion Picture
Producers and Distributors of America”, decretou que os filmes não
poderiam baixar os padrões morais do público com representações
positivas do mal, do crime ou do pecado. Sinclair Lewis, Ernest
Hemingway, William Faulkner, Joh n Dos Passos - todos foram
considerados capazes de corromper o grande público que vai ao
cinema. Em vez disso, conforme acordado, as pessoas deveriam
ver dramas religiosos e histórias patrióticas edificantes. Quando
Adeus às Armas [A Farewell to Arms], de Hemingway, foi adaptado
para a tela em 1929, o romance já era tanto um hit na Broadway
quanto um sucesso editorial. Porém, essa era a história de um
nascimento ilegítimo, um amor ilícito e uma deserção do exército
- era uma crítica à guerra. O livro estava longe de representar o
Exército italiano positivamente. Logicamente, foram necessários
vários ajustes antes de Adeus às Armas poder ser levado à tela,
incluindo mudanças tão significativas no enredo e na motivação
dos personagens que Hemingway recusou-se a aceitá-las.
Relaciona-se intimamente com essas preocupações morais
e educacionais para com o público a ideia de que as adaptações
televisivas da literatura, em particular, podem agir como veículos
substitutos na ampliação do público literário, eliminando as
diferenças de classe inerentes ao acesso à literatura e à alfabetização.
Mas isso nem sempre funciona na prática: o Um Dante Televisivo [A
TV Dante] (1990), da BBC, codirigido por Peter Greenaway e pelo
artista Tom Philips, é exemplo disso. Embora a televisão aborde
um público em massa, esse programa permaneceu “obscuro”,
incompreensível sem notas explicativas (TAYLOR, 2004, p. 147).
O outro grande perigo relacionado ao desejo de adaptar para um
público maior é o de tornar o adaptador responsável por fazer com
que a experiência “substituta” “seja tão boa quanto, ou melhor
que (mesmo se diferente), a leitura das obras originais” (WOBER,
166 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
1980, p. 10). Será que essa experiência seria a mesma tanto para
o público que conhece o texto adaptado quanto para o que náo o
conhece? Em suma, como é que as adaptações são apreciadas como
adaptações?
P ú b l ic o s c o n h e c e d o r e s e d e sc o n h e c e d o r e s
M odos de en g a ja m en to r ev isit a d o s
T ip o s e g r a u s de im ersã o
47 Coll an d response.
48 W rap = “envolver”, isto é, telas cujo com prim ento, bem como formato
arredondado, dão a impressão de “abraçar”, “envolver” o espectador.
Como? Il 189
(C o n t e x t o s )
A VASTIDÃO DO CONTEXTO
A daptação t r a n sc u l t u r a l
Indigenização
50 Country an d eastern , gênero musical que com bina o country am ericano com
elementos da m úsica oriental.
204 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
por sua vez, foi criticado por ter se afastado do “impulso socialista
do romance de Steinbeck”, em sua adaptação de As Vinhas da Ira
[The Grapes o f Wrath] (1939; STAM, 2000, p. 73). Os números e
tipos possíveis de complexidades em adaptações intercultuais são
tamanhos que outro exercício de “aprendizagem com a prática”
parece necessário na próxima seção. Escolhi novamente um texto
que já foi adaptado em diversos momentos e lugares, assim como
para diversas mídias e gêneros. E também uma história cujo
significado político foi modificado pelas mudanças de contexto: é a
história de uma mulher chamada Carmen.
A pr en d en d o com a prática
P or que C a r m en ?
Indigenizando C arm en
H ist o r ic iz a r /d e sist o r ic iz a r
In c o r p o r a r /d e sin c o r p o r a r
58
‘Lovingly ripped o f f from the m otion picture, M onty Python an d the H oly G rail”.
226 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
Q ual é o a p elo d a s a d a pt a ç õ e s ?
BRUCKBERGER, Raymond. Tu f in ir a s s u r l ’é c h a f a u d , s u iv i d e L e B a c h a g a ,
Paris: Flammarion, 1980.
m é m o ir e s .
L
242 II UMA TEORIA DA ADAPTAÇÃO
CHAMBERS, Ross. F a c i n g it: AIDS diaries and the death of the author.
Ann Arbor: University of Michigan Press, 1998.
CHATMAN, Seymour. What novels can do that films can’t (and vice
versa). In: BRAUDY, Leo; COHEN, Marshall (Ed.). F ilm t h e o r y a n d
c r i t i c i s m : introductory readings. Oxford: Oxford University Press, 1999.
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R e f e r ê n c ia s II 243
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H utcheon e a te or ia da adaptação
L
criar vínculos com o leitor/espectador; a dupla visão da adaptação
como produto e como processo; as dificuldades de definir quem é
o adaptador em um contexto criativo múltiplo, que contribui para
a diluição da categoria autoral; as amarras legais e os atrativos
econômicos envolvidos no fenômeno da adaptação; os prazeres da
adaptação, que envolvem o reconhecimento do fam iliar e a surpresa
A p ê n d ic e A : H u t c h e o n e a t e o r ia d a a d a p t a ç ã o II 2 7 3
Linda Hutcheon