Você está na página 1de 16

Haroldo de Campos 


Transcriação

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 3 07/08/2013 09:25:06


Coleção Estudos
Dirigida por J. Guinsburg

Os organizadores agradecem a colaboração de: Célia Luiza Andrade Prado, Pérola


Wajnsztejn Tápia, Simone Homem de Mello e Sylmara Beletti.

Equipe de realização – Edição de Texto: Luís Fernando Pereira; Revisão: Márcia Abreu;
Sobrecapa: Sergio Kon; Produção: Ricardo W. Neves, Raquel Fernandes Abranches,
Sergio Kon, Elen Durando, Mariana Munhoz e Luiz Henrique Soares.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 4 07/08/2013 09:25:06


Marcelo Tápia
Thelma Médici Nóbrega
(orgs.)

haroldo de campos –
transcriação

apresentação e posfácio:
marcelo tápia

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 5 07/08/2013 09:25:06


© Ivan P. de Arruda Campos e Carmen de P. Arruda Campos

cip-Brasil. Catalogação na Publicação


(Sindicato Nacional dos Editoras de Livros, rj, Brasil)
t696

Haroldo de Campos – Transcriação / organização Mar-


celo Tápia, Thelma Médici Nóbrega. – 1. ed. – São Paulo: Pers-
pectiva, 2013.
256 p.: (Estudos ; 315)

Apêndice
isbn 978-85-273-0985-1

1. Literatura – História e crítica. 2. Poesia – História


e crítica. 3. Cultura. i. Tápia, Marcelo. ii. Nóbrega, Thelma
Médici. iii. Série.

13-03456 cdd: 809


cdu: 82.09
31/07/2013 01/08/2013

Direitos reservados à
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401-000 São Paulo SP Brasil
Telefax: (011) 3885-8388
www.editoraperspectiva.com.br

2013

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 6 07/08/2013 09:25:06


Sumário

Apresentação – Marcelo Tápia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xi

1. Da Tradução Como Criação


e Como Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
2. Texto Literário e Tradução . . . . . . . . . . . . . 19
3. Tradução: Fantasia e Fingimento . . . . . . . 27
O Enigma e Sua Decifração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
As Inscrições do Palimpsesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
O Imaginário Reconfigurado: Transficcionalização . . 33
A Ninfa e a Gueixa: O Haicai Recuperado . . . . . . . . . 34
4. Tradução, Ideologia e História . . . . . . . . 37
5. Para Além do Princípio da Saudade:
A Teoria Benjaminiana da Tradução . . . 47
A Tarefa Adamítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
A Clausura Metafísica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
O Silêncio: A Língua da Verdade . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 7 07/08/2013 09:25:06


A Usurpação Luciferina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Para Além da “Grande Saudade” . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
6. Paul Valéry e a Poética da Tradução:
As Formulações Radicais do Célebre
Poeta Francês a Respeito do Ato de
Traduzir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Paul Valéry e Walter Benjamin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Valéry e Borges: A Miragem do Duplo . . . . . . . . . . . . 66
Pierre Menard, “Poeta Puro” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Mallarmé: A Língua Suprema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
Por uma Tradução Anticadaverosa . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Da Metempsicose à Discussão por Analogia . . . . . . . 72
7. Da Transcriação: Poética e Semiótica
da Operação Tradutora . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Marcação do Percurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Tradução/Transcriação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Tradução/Tradição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Corte Paidêumico e Corte Sincrônico . . . . . . . . . . . . . 81
Tradição/Tradução/Recepção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
Impossibilidade/Isomorfismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Iconicidade e Tradução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Física e Metafísica da Tradução . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
Jakobson: A Física da Tradução . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
A Crítica de Meschonnic . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Benjamin: A Metafísica da Tradução . . . . . . . . . . . . . . 95
Obra de Arte e Comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
A “Língua Pura” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
A “Metafísica do Inefável” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
O “Lugar Semiótico” da Operação Tradutora . . . . . . 100
Contra a Teoria da Cópia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
8. À Esquina da Esquina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 8 07/08/2013 09:25:06


9. Tradução e Reconfiguração:
O Tradutor Como Transfingidor . . . . . 109
Tradição/Comunicação/Recepção . . . . . . . . . . . . . . . 111
Tradução e Recepção Distraída . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
Da Transficcionalidade: O Tradutor Como
Transfingidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
Apêndice – Morgenstern: O Fabulário Refabulado . 125
10. Das Estruturas Dissipatórias
à Constelação: A Transcriação
do “Lance De Dados” de Mallarmé . . . . . 131
11. O Que é Mais Importante: A Escrita
ou o Escrito? Teoria da Linguagem
em Walter Benjamin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
12. Tradução/Transcriação/
Transculturação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
13. A “Língua Pura” na Teoria da
Tradução de Walter Benjamin . . . . . . . . . 157
14. A Clausura Metafísica da Teoria da
Tradução de Walter Benjamin, Explicada
Através da Antígone de Hölderlin . . . . 173
15. Tradição, Transcriação, Transculturação:
O Ponto de Vista do Ex-Cêntrico . . . . . . 197
16. A Tradução Como Instituição
Cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Apêndice – Tradução da Parte Inicial de “A Tarefa


do Tradutor”, de Walter Benjamin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
Posfácio: O Eco Antropofágico – Marcelo Tápia . . . . . . . . 215

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 9 07/08/2013 09:25:06


4. Tradução, Ideologia e História 1

Em meu ensaio de 1962, “Da Tradução Como Criação e Como


Crítica”, procurei definir a tradução criativa (“recriação”, “trans-
criação”) como uma prática isomórfica (no sentido da cris-
talografia, envolvendo a dialética do diferente e do mesmo),
uma prática voltada para a iconicidade do signo. De uns anos
para cá, tenho preferido usar o termo paramorfismo para des-
crever a mesma operação, acentuando no vocábulo (do sufixo
grego para-, “ao lado de”, como em paródia, “canto paralelo”) o
aspecto diferencial, dialógico, do processo, aspecto, aliás, pre-
sente em meu ensaio de 1962 (quando falo, a propósito da
nova informação estética obtida via tradução, comparando-a
à resultante do texto original: “serão diferentes enquanto lin-
guagem, mas, como corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro
de um mesmo sistema”)2.

1 Publicado originalmente em Cadernos do MAM, Rio de Janeiro, n. 1, dez. 1983.


Posteriormente, na revista Território da Tradução, em 1984. [N. da O.]
2 Sobre a tradução de poesia como prática isomórfica/paramórfica, ver: A Trans-
criação do Fausto, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 ago. 1981, Suplemento de
Cultura, ano II, n. 62, p. 14. Análoga terminologia é adotada por José Paulo
Paes em recente colaboração ao referido suplemento: Sol e Formol/Sobre a
Tradução de um Poema de Karyotákis, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23
out. 1983, Suplemento de Cultura, ano IV, n. 176, p. 4.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 37 07/08/2013 09:25:08


38 HAROLDO DE CAMPOS – transcriação

Paolo Valesio usa uma terminologia semelhante, ao desta-


car a tradução icônica (iconic translation) como “a mais radi-
cal técnica de tradução enquanto meio de desmistificação das
ideologias linguístico-culturais”. Valesio propõe a seguinte defi-
nição: “Por tradução icônica entendo qualquer versão de L em
l, na qual as relações formais (morfonêmicas e sintáticas) são
privilegiadas às expensas das (e em contraste direto com as)
relações lexicais.” E acrescenta: “A importância da tradução
icônica reside no fato de que, pela radicalização do que está
presente, em certa medida, em toda tradução, ela desmistifica
a ideologia da fidelidade, [ou seja, procede de uma] efetiva crí-
tica dessa ideologia.”3
Assim como eu, no ensaio de 1962, sustentei, contra a opi-
nião de Sílvio Romero (endossada contemporaneamente por
Antonio Candido), a importância das “monstruosas”, “macar-
rônicas” traduções greco-latinas de Odorico Mendes, Valesio
ilustra sua tese, em 1976, com o exemplo de Vincenzo Monti
(1754-1828), tradutor da Ilíada para o italiano e, coinciden-
temente, um dos inspiradores da prática de traduzir odori­
queana. Se um estudante de grego aceitar a versão de Monti
como the real thing, correrá o risco de acolher uma “mistifica-
ção neoclássica, alatinada, da poesia grega”. Se o mesmo estu-
dante, depois de dominar o grego, imaginar que estará lendo
no original o “autêntico” texto homérico, ainda assim não se
salvará de equívoco e não poderá jogar de lado, com desprezo,
a Ilíada de Monti. Se o fizer, estará ignorando que “o que lemos
hoje é a versão, por um moderno editor de texto, das sucessi-
vas (três) leituras sobrepostas ao longo dos séculos a alguma
transcriação do poema, a qual é centenas de anos mais recente
do que o original irremediavelmente perdido”4.
Subestimar a “coerência crítica” da versão de Monti, por
outro lado, implica desconhecer o quanto essa tradução “des-
mistifica a ideologia da prístina simplicidade” que recobre
o chamado original grego. Valesio, neste particular, parece
homologar, em sede linguística, aquilo que Borges afirma,
com gosto de ficcionista, em “Las Versiones Homéricas”: “O

3 Paolo Valesio, The Virtues of Traducement: Sketch For a Theory of Transla-


tion, Semiotica, n. 18, 1976, p. 1.
4 Ibidem.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 38 07/08/2013 09:25:08


Tradução, Ideologia e História 39

estado presente de suas obras é parecido ao de uma compli-


cada equação que registra relações precisas entre quantidades
incógnitas.”5
Se passarmos do nível da “estrutura intratextual” (onde
atua por excelência a “transcriação” como prática paramórfica),
estaremos caminhando da estrutura para a função e, com isso,
perguntando pelos “fatores extratextuais”, pela historicidade
do texto (tentativa de “reconstrução de um mundo passado” e
de “recuperação de uma experiência histórica”), conforme nos
adverte o teórico Wolfgang Iser6.
Só que, no caso do que eu chamo “transcriação”, a apropria-
ção da historicidade do texto-fonte pensada como construção
de uma tradição viva é um ato até certo ponto usurpatório,
que se rege pelas necessidades do presente de criação. Nesse
sentido, parecem-me fecundas algumas colocações de Henri
Meschonnic: “A tradução, sendo instalação de uma relação
nova, não pode ser senão modernidade, neologia”; ou ainda:
“a poética da tradução historiciza as contradições do traduzir
entre a língua de partida e a língua de chegada, entre época e
época, entre cultura e cultura, relação subjectal e reprodução”7.
Donde, a meu ver, no limite, os critérios intratextuais que
enformam o modus operandi da tradução poética poderem
ditar as regras de transformação que presidem à transposição
dos elementos extratextuais do original “rasurado” no novo
texto que o usurpa e que, assim, por desconstrução e recons-
trução da história, traduz a tradição, reinventando-a.
Vejamos um exemplo:

The Rubáiyát, Omar Kháyyám (1049-1131)


“Transcriação”, por Edward Fitzgerald (1809-1883)
Ah make the most of what we yey may spend,
Before we too into the Dust descend:
Dust into Dust, and under dust, to lie,
Sans Wine, sans Song, sans Singer – and sans End!

5 Jorge Luis Borges, Las Versiones Homéricas, Discusión, 1932.


6 Wolfgang Iser, Problemas da Teoria da Literatura Atual: O Imaginário e os
Conceitos-chave da Época, 1979, em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da Lite-
ratura em Suas Fontes, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, v. II.
7 Henri Meschonnic, Propositions pour une poétique de la traduction, Pour la poéti-
que, II. Epistémologie de l’écriture, Poetique de la traduction, Paris: Gallimard, 1973.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 39 07/08/2013 09:25:08


40 HAROLDO DE CAMPOS – transcriação

Na célebre “transposição criativa” (Jakobson) de Edward


Fitzgerald, este “rubai” (quarteto) tem o número XXIII. Não o
encontrei na mesma numeração na coletânea do poeta persa
vertida para o português por Octávio Tarquinio de Sousa. O
texto mais semelhante com que nela me deparei foi:

XLI
Bebe um pouco de vinho, porque dormirás muito tempo debaixo
da terra, sem amigo, sem camarada, sem mulher. Confio-te um segredo:
as tulipas murchas não reflorescem mais.

O próprio tradutor esclarece que, não conhecendo uma só


palavra do persa, traduziu do inglês e do francês, dando pre-
ferência à interpretação do orientalista Franz Toussaint. Teria
assim tentado captar a “vibração” do original no seu “eu”. E
acrescenta, fiel à ideologia da secundariedade da tradução:
“Meu texto português é apenas o eco de um eco, a sombra de
uma sombra, para ficar neste lugar-comum, menos comum
que o da dupla traição.” Tudo isso permite tomar esse texto
como um paradigma do que seria uma versão “empática” ao
presumido “conteúdo” do original, que encerra o filosofema
da efemeridade da vida, do “imediatismo” cético, assim resu-
mido pelo tradutor: “Cumpre, pois, aproveitar intensamente o
momento atual, que passa rápido como o esplendor transitó-
rio da rosa… Para não perder a coragem de viver, é necessário
embriagar-se do momento presente, único bem verdadeiro…
O vinho faz perdoar a pena de viver…”8
Agora observemos como Augusto de Campos “transcriou”
o “rubai” de Kháyyám/Fitzgerald (também sem conhecer o
persa, mas guiando-se pela “forma semiótica”, pelo “intracó-
digo” do quarteto em inglês, como regulador das opções recon-
figuradoras do texto em português):

Ah, vem, vivamos mais que a Vida, vem,


Antes que em Pó nos deponham também,
Pó sobre Pó, e sob o Pó, pousados,
Sem Cor, sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem!

8 Octávio Tarquínio de Sousa, Rubáiyát de Omar Kháyyám, Rio de Janeiro: José


Olympio, 1942.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 40 07/08/2013 09:25:08


Tradução, Ideologia e História 41

A “recriação” de Augusto foi publicada com um ensaio


interpretativo, “A Língua do Pó, a Linguagem do Poeta”, no qual
o modus operandi do tradutor é micrologicamente descrito, a
começar da réplica à atomização monossilábica do original,
passando pelo registro dos efeitos fono-semânticos em jogo, e
a culminar na presença dominante da palavra dust como chave
da orquestração do texto e vetor do trabalho paramórfico a
ser levado a efeito pelo transcriador do poema em português9.
Exemplo característico de tradução icônica e de prática expe-
rimental regida por um modelo teórico de análise dos consti-
tuintes do “intracódigo” semiótico.
Paulo Rónai, num livro rico e informativo, A Tradução
Vivida, depois de considerar a tradução acima “particular-
mente bem-sucedida”, escreve:

Recriação antes que tradução, a quadra portuguesa guardou o


máximo possível do original: o sentido geral, a inspiração melancó-
lica, o ritmo, o esquema rímico, as aliterações e até a preponderância
de palavras monossilábicas, dificultada pela tendência polissilábica do
português, se comparado ao inglês.10

Todavia, o autor dessa obra pioneira que é Escola de Tra-


dutores (1956) descobre, no texto de Fitzgerald, algo que teria
escapado ao “agudo comentário” do transcriador brasileiro.

Há na quadra inglesa [prossegue], além da palavra-chave dust,


outra que também recorre quatro vezes. Esta palavra sans, à primeira
vista parece a conhecida preposição francesa. Ela, porém, existiu anti-
gamente em inglês com o mesmo sentido, apenas com pronúncia dife-
rente (sanz): no momento da tradução de Fitzgerald já devia ser um
arcaísmo. A intensidade intencional com que ele a emprega nesta qua-
dra deve ter algum motivo especial. Julgo tê-lo descoberto no fato dela
se encontrar repetida outras tantas vezes num famoso verso de As You
Like It (ato II, cena 7), em que Shakespeare descreve a velhice, Sans
teeth, sans eyes, sans taste, sans everything. Com razão podia Fitzge-
rald supô-lo conhecido de seus leitores, no espírito dos quais a remi-
niscência shakespeariana, sobreposta ao verso dele, só fazia acentuar a
atmosfera lúgubre de advertência. O que mostra que os poemas, além

9 Ensaio e tradução publicados em Suplemento Literário de Minas Gerais,


n. 13473, e republicados em Código, Salvador, n. 4, ago. 1980.
10 Paulo Rónai, A Tradução Vivida, [S.l.]: Educom, 1975; Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 41 07/08/2013 09:25:08


42 HAROLDO DE CAMPOS – transcriação

de sua existência individual, são elos de uma tradição poética que é pre-
ciso trazer de cor para senti-los integralmente. Porém o tradutor, até o
melhor, fica impotente em face desse resíduo que não se deixa reduzir.11

Algo, por seu turno, parece ter passado despercebido ao


avalizado estudioso, que tão pertinentemente soube reconsti-
tuir o elo intertextual perdido, remontando ao verso de Shakes-
peare, que teria servido de molde para a diagramação do de
Fitzgerald12. (Depois dessa verificação, não parece lícito supor,
como ainda o faz P. Rónai, que o poeta inglês, ao contrário
de Augusto, não se teria mostrado atento à “microestrutura”
do texto; pois não é disto mesmo que se trata na reapropria-
ção do verso persa pela via minuciosa do iterativo e aliterante
sintagma shakespeariano?) O que, porém, seria necessário
salientar, quanto à quadra brasileira, é que nela a tradução da
tradição (no eixo do interpretante, onde ocorre toda recep-
ção estética) se dá por outra via, implicando uma diferente
interação de “horizontes de expectativa”. O tradutor (“leitor-
-autor”), ao recriar Kháyyám via Fitzgerald, fez, deliberada-
mente, uma homenagem à arte de tradução como “recriação”
do poeta inglês. A homenagem, a partir do presente de pro-
dução do poeta-tradutor brasileiro, envolvia outra cadeia de
alusões, outra “intertextualidade”. Antes de mais nada, tratava-
-se de traduzir um poeta inglês que “inventara” a poesia de
um poeta persa para o Ocidente, ao transmutá-la, em 1859,
numa linguagem altamente eficaz e aliciante em sua brevidade.
“Fitzgerald fez o único poema bom do tempo que alcançou
o público; poema que é chamado, e o é em grande medida,
uma tradução/tresleitura (trans-or-mistranslation)”, opina Ezra
Pound. Da “microanálise” que efetuou, o tradutor brasileiro
depreendeu que as chaves do êxito estético-receptivo de Fitz-
gerald teriam sido a perícia na musicalidade rítmica e fônica
e a concisão epigrâmica. Homenagear essas duas qualidades
implicava prestar um tributo simultâneo a duas vertentes do
presente brasileiro de criação: a “bossa nova” à João Gilberto

11 Ibidem.
12 A informação sempre esteve ao alcance do tradutor brasileiro. Figura como
abonamento do verbete sans no cursivo The Concise Oxford Dictionary da
língua inglesa, que foi por ele consultado.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 42 07/08/2013 09:25:08


Tradução, Ideologia e História 43

e o verso de João Cabral; o envolvente pontilhismo atomístico


da “canção menos”, a enxutez do “canto sem”, entre ambos, o
lirismo concreto do próprio poeta Augusto de Campos (lem-
bre-se um poema como “cor som”). Assim como o leitor inglês,
contemporâneo de Fitzgerald, poderia recordar Shakespeare
no poeta persa e acrescer um reforço emotivo à atmosfera do
carpem diem fitzgeraldiano, o leitor brasileiro atual poderá
captar no “rubai” augustiniano a nostalgia elaborada de uma
espécie de metamúsica, que vai cantando, qual uma vibração
de corda, junto ao SEM daquele “Sem Cor, sem Sol, sem Som,
sem Sonho – sem!” (“Se diz a palo seco / o cante sem guitarra:/
o cantem sem: o cante / o cante sem mais nada”). Não à toa,
o poeta-tradutor radicalizou o desenho fônico do verso fitz-
gerald-shakespeariano, extremando o paradigma e colocando
a preposição sem, despida de referente relacional (o substan-
tivo end em Fitzgerald: o pronome indefinido everything em
Shakespeare), na posição relevante da rima, destacada no fim
do último verso do quarteto. Esse morfema vazio em lugar
estratégico é uma alusão metalinguística, um alerta à sensibili-
dade do receptor brasileiro. Diz-lhe que o transcriador não quis
simplesmente “diluir” o “Kháyyám” de Fitzgerald, vertendo-o
em prosa evanescente, garantida pelo “exótico”, ou reacondi-
cionando-o em ritmos lânguidos e rimas convencionais: antes,
propôs-se tributar o seu respeito à maestria artesanal do poeta
oitocentista com um novo tour de force, um novo lance de perí-
cia, sobreimprimindo a um canto sans um cante sem. Suponho
que este meu argumento não impressionará Paulo Rónai, que,
coerente com suas concepções do traduzir, objeta à “moder-
nização” de poemas de Catulo e Horácio por Ezra Pound. Do
meu ângulo de visada, todavia, fica evidente que aqui houve não
apenas uma “transcriação” do texto, mas uma “recriação” do
extratexto (do qual fazem parte, segundo W. Iser, tanto o refe-
rente contextual, quanto o intertexto citacional). Make it new.
Afinal, o próprio Fitzgerald, apenas um “amador” em cul-
tura persa, não hesitou em situar-se, com desenvoltura, na
polêmica dos “orientalistas” a respeito da interpretação mís-
tica ou realista dos versos de amor e vinho do poeta-astrô-
nomo dos Rubáiyát. Prefere, pro domo sua, à leitura esotérica,
na linha da filosofia sufi, uma outra, materialista, que lhe é mais

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 43 07/08/2013 09:25:08


44 HAROLDO DE CAMPOS – transcriação

congenial, à luz do epicurismo grego, e que responde tanto à


sua formação clássica, quanto a um certo mood do tempo, pro-
penso ao ceticismo voluptuário. O que lhe interessa, acima de
tudo, é tentar surpreender, por trás de alegorias e abstrações
onde outros poetas persas se deixariam perder, “o homem – o
Bonhomme – Omar em pessoa, com todos os seus humores e
paixões, posto diante de nós de maneira tão franca, que é como
se estivéssemos realmente à mesa com ele, após uma rodada
de vinho”13. Outra coisa não fizera Goethe, numa das suas
não propriamente traduções, mas “reimaginações” de poesia
persa do West-Oestelicher Diwan. Irrompendo figuradamente
em pleno paraíso islâmico, o irreverente Goethe sexagenário
convida o poeta Hafiz (1318-1390 ca.) a vir tomar com ele, em
lugar do “vinho do céu”, um dileto vinho renano, um Römer
da colheita de 1811… Ouçamos:

Geschwinde, Hafis, eile hin!


Da steht ein Römer Eilfer!
(Depressa, Hafiz, vem comigo!
Te espera um “Römer”, ano onze!)

Foi à ênfase deliberada nessa linha “epicúrea”, aliada à con-


cisão gnômica do epigrama, cuja arte lapidar Fitzgerald mos-
trou dominar com mestria sutil, a que não falta o “wit” dos
“metaphysical poets” (Donne é citado numa das notas à tra-
dução), que a coletânea dos Rubáiyát, livremente “transmuda-
dos” em inglês, deveu sua primeira “recepção” (Fitzgerald não

13 Cf. “Omar Kháyyám, the Astronomer-Poet of Persia”, introdução de E. Fitz-


gerald à sua edição dos Rubáiyát. Utilizo a reimpressão de 1911, MacMillan
& Co. Ltd., London. Peter Avery, leitor de literatura persa e fellow do King’s
College, Cambridge, na introdução a The Ruba’iyat of Omar Kháyyám (Pen-
guin Classics, 1981), numa nova tradução definida como “literal” em relação
ao original (a de Fitzgerald é considerada, em nota prévia, como mais “uma
fantasia do que uma tradução”), deixa expressa, não obstante, a seguinte ava-
liação: “Fitzgerald foi uma exceção entre os exploradores oitocentistas da poe-
sia persa, porque ele não estava em busca de um consolo espiritual, que, de
certo modo, lhe seria antecipadamente vedado por seu profundo ceticismo.
Ele apanhou com clareza a mensagem frequentemente desconsolada e cheia
de austeridade de muitos dos rubai que selecionou. Se todos eles pertencem
ou não a Omar Kháyyám, é algo que pode ser posto de lado. O que importa
é a profunda compreensão, por parte de Fitzgerald, da mente de um filósofo
e matemático medieval do Khurasan, tal como hoje Kháyyám pode ser visto.”

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 44 07/08/2013 09:25:08


Tradução, Ideologia e História 45

apenas recombinou e interpolou versos, mas ainda reorgani-


zou a ordem dos quartetos, alfabética no manuscrito-fonte, de
modo a dar-lhe sequência temática, aparentando o encadea-
mento das estâncias de um poema longo). Ezra Pound pro-
põe esse exercício no ABC of Reading: “Tente descobrir por
que o Rubáiyát de Fitzgerald teve tantas edições, depois de ter
passado despercebido, até que Rossetti encontrou uma pilha
de exemplares remanescentes num sebo.”14 De fato, foi na sen-
sibilidade plástica e no sensualismo hedonista (“carnalista”,
segundo a denúncia moralizante do crítico vitoriano Roberto
Buchanam), característicos do poeta-pintor-tradutor Dante
Gabriel Rossetti, representante de uma nova tendência esté-
tica (os chamados “pré-rafaelitas”), que os poemas compósitos
de “Omar” Fitzgerald encontraram o primeiro impulso para a
sua afirmação junto ao público e o seu resgate da indiferença
que cercou a primeira edição, lançada anonimamente em 1859,
em tiragem limitada. Tudo somado, terá razão Borges, para
quem, de resto, “a superstição da inferioridade das traduções,
entesouradas no consabido adágio italiano, procede de uma
experiência distraída”15. O grande escritor argentino, em “El
Enigma de Edward Fitzgerald” (texto que tende para o que se
poderia chamar, com o benefício da ironia borgiana, uma teo-
ria “metem-psicótica” da tradução), pondera: “Da fortuita con-
junção de um astrônomo persa que condescendeu à poesia e de
um inglês excêntrico que percorre, talvez sem entendê-los com-
pletamente, livros orientais e hispânicos, surge um extraordiná-
rio poeta, que não se parece a nenhum dos dois.”16 Refazer essa
alquimia, incluindo no seu “quimismo” ingredientes novos,
para reativá-la em nossa língua, compensando assim aqueles
que ficaram “recessivos” no câmbio forçoso de horizontes, é
um privilégio do “transcriador” de poesia. Sobretudo quando
esteja empenhado na reinvenção da tradição, para propósitos
produtivos (não meramente conservativos), na perspectiva,
agora, de um “transumanismo” latino-americano, necessaria-
mente “antropofágico”.

14 Ezra Pound, ABC of Reading, 1934.


15 J.L. Borges, Las Versiones Homéricas, Discusión, 1932.
16 Idem, El Enigma de Edward Fitzgerald, Otras Inquisiciones, 1952.

E315 PR-5 (LIVRO) Transcriacao.indb 45 07/08/2013 09:25:08

Você também pode gostar