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ARTIGO / ARTICLE

O Conceito de Representação Social na Abordagem


Psicossocial
The Concept of Social Representations in Social Psychology

Mary Jane P. Spink 1

SPINK, M. J. P. The Concept of Social Representations in Social Psychology. Cad. Saúde


Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 300-308, jul/sep, 1993.
Taking as a starting point the definition of social representation as a form of practical
knowledge, this paper aims at situating the social psychology approach among the other
disciplines which deal with the issue of knowledge. Accepting the implicit interdisciplinarity of
this field of study, the paper analyzes both the common aspects of the field and the specific
contribution of social psychology. In the transdisciplinary perspective, social representations
emerge as a multidimensional concept which allows for a critical analysis of both the nature of
knowledge and the relationship between the individual and society demonstrating its
compatibility with post-modern epistemology. The specific contribution of social psychology is
analyzed first from a theoretical point of view, emphasizing social psychology’s vocation for
studying social representations as socially structured fields which have structuring effects on
social reality. Second, the methodological contribution is discussed with special emphasis on the
use of qualitative methodologies, and more specifically the use of single case studies.
Key words: Social Representation; Social Psychology; Knowledge; Constructivism

INTRODUÇÃO partir das funções simbólicas e ideológicas a


que servem e das formas de comunicação onde
As representações sociais, segundo definição circulam.
clássica apresentada por Jodelet (1985), são Sendo formas de conhecimento, as represen-
modalidades de conhecimento prático orientadas tações sociais constituem uma vertente teórica
para a comunicação e para a compreensão do da Psicologia Social que faz contraponto com
contexto social, material e ideativo em que as demais correntes da Filosofia, da História, da
vivemos. São, conseqüentemente, formas de Sociologia e da Psicologia Cognitiva que se
conhecimento que se manifestam como elemen- debruçam sobre a questão do conhecimento.
tos cognitivos — imagens, conceitos, categori- Situá-las na ótica da Psicologia Social implica,
as, teorias —, mas que não se reduzem jamais portanto, discutir tanto aquilo que é compartil-
aos componentes cognitivos. Sendo socialmente hado pelas demais disciplinas — e que faz das
elaboradas e compartilhadas, contribuem para a representações sociais um campo transdis-
construção de uma realidade comum, que ciplinar — quanto a contribuição específica da
possibilita a comunicação. Deste modo, as Psicologia Social.
representações são, essencialmente, fenômenos
sociais que, mesmo acessados a partir do seu AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a ENQUANTO CONCEITO
partir do seu contexto de produção. Ou seja, a TRANSDISCIPLINAR

1
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Pensando primeiramente na transversalidade
Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. das representações sociais, não há dúvida de
Rua Monte Alegre 984, São Paulo, SP, 05014-001, que, estando situada na interface dos fenômenos
Brasil. individual e coletivo, esta noção tem, como

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O Conceito de Representação Social

aponta Jodelet (1989a), a vocação de interessar propriamente ditas: seu conteúdo e seu processo
a todas as ciências humanas. de elaboração.
Numa tentativa de pontuar as diferenças, Outra maneira de entender a transdisciplinari-
pensando mais especificamente nas abordagens dade aí implícita seria procurando explicitar as
da Psicologia e da Antropologia, Sperber (1989) múltiplas dimensões do campo de estudos das
introduz a questão do nível de análise. As representações sociais (Figura 1). Esta perspec-
representações, segundo o autor, podem ser tiva, adotada por Jodelet (1989a), tem a vanta-
abordadas, enquanto eventos intra-individuais, gem de abandonar a divisão de territórios
como representações mentais, estudadas pela disciplinares e assinalar a importância da defini-
Psicologia Cognitiva e pela Psicanálise, onde o ção precisa do aspecto a ser abordado no estudo
social é apenas uma sombra; como elementos das representações sociais.
centrais da comunicação, sendo então represen- A Figura 1, uma simplificação de um esque-
tações públicas, objeto de estudo da Psicologia ma apresentado por Jodelet (1989a), nos permi-
Social; ou, ainda, como elementos coletivos, te visualizar os dois eixos principais deste
comunicados repetidamente e distribuídos campo de estudos: no primeiro eixo, as repre-
igualmente numa determinada formação social, sentações constituem formas de conhecimento
sendo então representações culturais, objeto de prático orientadas para a compreensão do
estudo da Antropologia. Usando metáforas mundo e para a comunicação; no segundo eixo,
médicas, Sperber avança no esforço comparati- elas emergem como elaborações (construções
vo, assemelhando a Antropologia à Epidemiolo- de caráter expressivo) de sujeitos sociais a
gia: uma disciplina interessada na distribuição respeito de objetos socialmente valorizados. As
das representações em uma determinada popula- duas dimensões descortinam pressupostos de
ção. Já a Psicologia assemelhar-se-ia à Patolo- natureza epistemológica sobre a natureza do
gia, dedicando-se ao estudo das representações conhecimento.

FIGURA 1. O Campo de Estudos da Representação Social

Adaptado de Jodelet (1989a).

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As Representações Sociais nidade nas sociedades ocidentais. Esta contes-


como Formas de Conhecimento tação da retórica da verdade pode ser visualiza-
da como um movimento em três tempos: da
Buscando situar as representações sociais epistemologia clássica à incorporação do social,
entre as correntes mais tradicionais das teorias com a conseqüente relativização da objetivida-
do conhecimento, vale recorrer, como ponto de de, e, no terceiro momento, à ampliação do
partida, ao vernáculo. Excetuando-se o sentido olhar, de modo a ver o senso comum não mais
jurídico do termo “representação”, o Dicionário como cidadão de segunda classe, mas como
Aurélio (Ferreira, 1975) oferece duas defini- conhecimento legítimo e motor das transfor-
ções, que revelam o embate epistemológico mações sociais.
implícito nesta noção. Assim, segundo Fuller (1988),
Num primeiro sentido, representação é o
“conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, “a epistemologia clássica parecia viável
pela imaginação, pela memória ou pelo pen- exatamente porque pensava-se existirem
samento”; é, em síntese, a “reprodução daquilo `verdades’ cuja aceitação beneficiaria a todos
que se pensa” (Ferreira, 1975). Nesta definição, — ou, pelo menos, a todos os seres racionais —
a ênfase situa-se na natureza do conhecimen- e conseqüentemente não tinham efeitos
to, na possibilidade mesmo do conhecimento e globais na distribuição do poder. Esta é uma
da apreensão da realidade. Esta vertente nos maneira de expressar a `neutralidade’ do
remete aos estudos clássicos sobre ideologia e conhecimento científico. Ou seja, embora este
às brechas irreparáveis introduzidas aí pelo conhecimento possa ser usado de forma a
historicismo, pelo relativismo cultural e pela promover determinados valores, o
arqueologia foucaultiana, que abrem caminho conhecimento, enquanto tal, não é viesado a
para o paradigma construtivista. favor ou contra a realização de valores
As representações sociais, sendo definidas particulares”
como formas de conhecimento prático, inserem-
se mais especificamente entre as correntes que Já a Sociologia do Conhecimento, inaugurada
estudam o conhecimento do senso comum. Tal por Scheler, nos anos 20, e elevada ao estatuto
privilégio já pressupõe uma ruptura com as de disciplina por Mannheim, nos anos 30, vira
vertentes clássicas das teorias do conhecimento, de ponta-cabeça a questão da neutralidade do
uma vez que estas abordam o conhecimento conhecimento. Como aponta Fuller (1988), “se
como saber formalizado, isto é, focalizam o a concessão de garantia epistemológica envol-
saber que já transpôs o limiar epistemológico, ve, entre outras coisas, a aceitação social, e um
sendo constituídas por conjuntos de enunciados dos benefícios chave dessa concessão é o poder
que definem normas de verificação e coerência. de fazer pronunciamentos autoritativos, então,
Em nítido contraste, as correntes que se debru- conceder o selo de garantia epistemológica é
çam sobre os saberes enquanto saberes, quer uma forma encoberta de distribuir poder.” A
formalizados ou não, procuram superar a cliva- ideologia, neste contexto, não pode mais ser
gem entre ciência e senso comum, tratando vista como ilusão, mistificação ou falsa cons-
ambas as manifestações como construções ciência. Precisa ser vista como instrumento de
sociais sujeitas às determinações sócio-históri- dominação. Mesmo assim, a clivagem entre
cas de épocas específicas. ciência /verdade e senso comum/ilusão perma-
É óbvio que esta diferenciação não é um nece intata. O objeto de estudo é ainda o co-
mero artifício didático; é óbvio que ela implica nhecimento formalizado em disciplinas científi-
a constatação de importantes mudanças no cas. Introduz-se, sim, a questão do poder, ou
posicionamento quanto ao estatuto da objetivi- dos interesses; mas poder e interesses são ainda
dade e da busca da verdade. Trata-se, eviden- abordados a partir da perspectiva do campo
temente, de inserir o estudo das representações científico.
sociais entre os esforços de desconstrução da O terceiro movimento introduz uma nova
retórica da verdade, componente intrínseco da perspectiva, ampliando o conhecimento-objeto
Revolução Científica que inaugura a moder- de estudo para além da fronteira da história das

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O Conceito de Representação Social

idéias. Passa a abarcar, também, ou melhor, tido, reportando-nos a Wittgenstein (1953) e aos
sobretudo, o conhecimento do homem comum. interacionistas simbólicos por ele influenciados,
Neste terceiro movimento, o que está em pauta somos atores sociais engajados na construção de
é o desvelamento da teia de significados que identidades funcionais que nos permitem nego-
sustenta nosso cotidiano e sem a qual nenhuma ciar as relações sociais.
sociedade pode existir. É este alargamento do Este segundo sentido abre caminho para as
campo de interesses que torna possível uma modernas análises de discurso (Edwards &
arqueologia das idéias, no sentido foucaultiano, Potter, 1992), onde a ênfase não recai mais na
que se contrapõe à história epistemológica. estrutura lingüística ou nos conteúdos cogniti-
Esta mudança de perspectiva quanto ao papel vos, mas na organização social do discurso.
disciplinador das teorias do conhecimento, de Deixa, assim, de existir qualquer separação
um lado legitimando o saber não consubstan- entre linguagem e ação, seja pela mediação
ciado em disciplinas científicas e, de outro, cognitiva ou pela mediação do contexto social,
pondo na berlinda o selo de garantia epistemo- pois a linguagem é tomada como sendo con-
lógica, teve um papel fundamental na elabora- comitantemente ato.
ção do conceito de representações sociais em Partindo das considerações sobre o primeiro
Psicologia Social. Teve, antes de mais nada, o eixo apresentado na Figura 1, deparamo-nos
efeito de liberar o poder de criação dos con- com duas maneiras muito distintas de adentrar
hecimentos práticos, ou das teorias do senso este campo de estudos. Numa primeira vertente,
comum, tão freqüentemente aprisionados nos é o estatuto do conhecimento que está em
chavões de reprodução ou de (re)apresentação. pauta: sua natureza e seus pressupostos epis-
Ou seja, não se trata, neste terceiro movimento temológicos. Já na segunda vertente, a ênfase é
das teorias do conhecimento, de reabilitar o na funcionalidade. O conhecimento estudado via
senso comum enquanto forma válida de con- representações sociais é sempre um “conheci-
hecimento; trata-se, sobretudo, de situá-lo como mento prático”; é sempre uma forma compro-
teia de significados capaz de criar efetivamente metida e/ou negociada de interpretar a realida-
a realidade social. de. Nesta segunda vertente, a tendência tem
Moscovici (1988) reconhece amplamente que, sido de eliminar a expressão “representação
ao enfatizar o poder de criação das represen- social”, adotando, em seu lugar, a expressão
tações sociais, acatando sua dupla face de “práticas discursivas”, numa tentativa de elimi-
estruturas estruturadas e estruturas estruturantes, nar a confusão seminal do conceito de represen-
inscreve sua abordagem entre as perspectivas tação social, que, inevitavelmente, situa-se entre
construtivistas. Inscreve-a, entretanto, no movi- dois paradigmas: o da modernidade e o da pós-
mento maior, aqui denominado terceiro movi- modernidade.
mento das teorias do conhecimento. Aponta,
assim, a simultaneidade, ou, até mesmo, a O Sujeito como Produto
anterioridade, de sua obra e da obra de Berger e Produtor da Realidade Social
& Luckmann (1966), que cunhou a perspectiva
denominada “construção social da realidade”. O segundo eixo da Figura 1 nos remete,
Retornando ao vernáculo, se o primeiro necessariamente, à atividade do sujeito —
sentido atribuído à palavra “representação” tomado como indivíduo ou grupo — na elabo-
permitiu-nos situar os pressupostos epistemoló- ração das representações sociais. Ou seja, a
gicos do estudo das representações sociais, o representação é uma construção do sujeito
segundo sentido nos aproxima mais do teatro e, enquanto sujeito social. Sujeito que não é
como tal, de uma teoria da ação. Segundo o apenas produto de determinações sociais nem
Dicionário Aurélio (Ferreira, 1975), represen- produtor independente, pois que as represen-
tação é também o “ato ou efeito de represen- tações são sempre construções contextualizadas,
tar(-se)”, é uma “interpretação”. Nesta perspec- resultados das condições em que surgem e
tiva, não é mais a natureza do conhecimento circulam.
expresso em representações que está em pauta, É, ainda, uma expressão da realidade intra-
porém suas implicações práticas. Neste sen- individual, uma exteriorização do afeto. Con-

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forme diz Jodelet (1989a), “as representações A ESPECIFICIDADE DA ABORDAGEM


sociais devem ser estudadas articulando ele- DA PSICOLOGIA SOCIAL
mentos afetivos, mentais, sociais, integrando a
cognição, a linguagem e a comunicação às Tendo situado as representações sociais no
relações sociais que afetam as representações conjunto das disciplinas que se debruçam sobre
sociais e à realidade material, social e ideativa a construção do conhecimento e delineado
sobre a qual elas intervêm”. alguns pressupostos básicos que as inserem nas
Dois aspectos são particularmente relevantes correntes pós-modernas, resta-nos caracterizá-
neste segundo eixo do campo de estudos das las enquanto abordagem psicossocial. Em se
representações sociais. Em primeiro lugar, o tratando de um campo de estudo transdiscipli-
posicionamento sobre a relação indivíduo-
nar, mas sem cair na armadilha da compar-
sociedade, que foge tanto ao determinismo
timentalização disciplinar, cabe-nos, inevitavel-
social — onde o homem é produto da sociedade
mente, destacar a contribuição da Psicologia
— quanto ao voluntarismo puro, que vê o
Social, especialmente no que tange ao esforço
sujeito como livre agente. Busca um posiciona-
mento mais integrador que, embora situando o de superar a dicotomia entre indivíduo e socie-
homem no processo histórico, abre lugar para dade, e entre psicologismo e sociologismo.
as forças criativas da subjetividade. Em segun- De modo geral, como aponta Fuller (1988),
do lugar, ao abrir espaço para a subjetividade, “o psicologismo (...) envolve a avaliação do
traz para o centro da discussão a questão do estado mental que o produtor traz para o
afeto: as representações não são, assim, meras processo de conhecimento, enquanto o sociolo-
expressões cognitivas; são permeadas, também, gismo (...) envolve a avaliação das conseqüên-
pelo afeto. cias do processo de conhecimento — os produ-
Por que construções? Porque as represen- tos do conhecimento — sem levar em conside-
tações, sendo sempre representações de um ração os estados mentais do produtor”. Desta
sujeito sobre um objeto, não são nunca reprodu- forma, o sociólogo será antipsicologista se seu
ções deste objeto. Como indica a Figura 1, as relato não demandar que os agentes sociais em
representações são interpretações da realidade. pauta tenham qualquer conteúdo mental priva-
Dito de outra forma, a relação com o real nunca do, tal como desejos e crenças, que possa por
é direta; é sempre mediada por categorias em dúvida as expectativas de papel publica-
histórica e subjetivamente constituídas. Neste mente definidas. O psicólogo, por sua vez,
sentido, o construtivismo inerente à abordagem incorrerá em antisociologismo quando não levar
das representações sociais em Psicologia Social em conta os efeitos da presença real, imaginada
faz eco aos desenvolvimentos mais recentes no ou intuída de outros.
campo da ciência, caminho aberto pelas revolu- A Psicologia Social procura superar esta
ções na Física, a partir da constituição da Física
dicotomia visualizando o indivíduo e suas
Quântica, que resultararam, como aponta Bir-
produções mentais como produtos de sua socia-
man (1991), “na colocação paulatina do sujeito
lização em um determinado segmento social. A
do conhecimento no primeiro plano da produ-
individualidade, nesta perspectiva, emerge como
ção do objeto teórico dos diferentes discursos
científicos. Estes passam a ser considerados uma estrutura estruturada que tem potencial
como produções históricas e não a enunciação estruturante.
de verdades universais”. E, seguindo ainda o Retornando, então, às representações sociais,
raciocínio do autor, “reconhecer no registro isto equivale a dizer que estas formas de pen-
epistemológico a posição do sujeito na produ- samento prático são, concomitantemente, cam-
ção do objeto teórico da ciência é afirmar, ao pos socialmente estruturados que só podem ser
mesmo tempo, que este sujeito empreende um compreendidos quando referidos às condições
trabalho de interpretação do real e que a de sua produção e aos núcleos estruturantes da
interpretação é constitutiva da objetividade realidade social, tendo em vista seu papel na
científica”. criação desta realidade.

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O Conceito de Representação Social

As Representações Sociais No modelo proposto na Figura 2, o contexto


enquanto Campos Socialmente Estruturados social de longo alcance foi denominado imagi-
nário social, definido aqui como a “teia de
As representações sociais, sendo produzidas significados tecidos pelo homem ao longo da
e apreendidas no contexto das comunicações história da espécie” (Geerz, 1978). O imagi-
sociais, são necessariamente estruturas dinâmi- nário social seria, assim, o conjunto cumulativo
cas. É esta característica de flexibilidade e das produções culturais que circulam numa
permeabilidade que as distingue, conforme determinada sociedade sob formas as mais
afirma Moscovici (1989), das representações variadas: iconografia, literatura, canções, pro-
coletivas de Durkheim ou, mesmo, das repre- vérbios, mitos. Estas produções são filtradas
sentações culturais de Sperber (1989). É esta pelas representações hegemônicas constitutivas
característica, ainda, que as aproxima das da epistéme (Foucault, 1987), ou visão de
modernas análises de discurso influenciadas por mundo, de uma determinada época histórica.
Wittgenstein (1953), que, centradas na relação São, ainda, reinterpretadas pelo grupo, ou, mais
íntima entre linguagem e ação, focalizam jus- especificamente, pelo habitus, entendido, con-
tamente esta permeabilidade e esta flexibilidade. forme definido por Bourdieu (1983), como
Entretanto — e paradoxalmente —, o estudo disposições adquiridas em função de se perten-
empírico das representações sociais revela, cer a determinados grupos sociais.
freqüentemente, a concomitância de conteúdos Entretanto, as representações sociais não são
mais estáveis e de conteúdos dinâmicos, mais meras (re)combinações de conteúdos arcaicos
sujeitos à mudança. As representações sociais, sob pressão das forças do grupo. Elas são
portanto, são tanto a expressão de permanências também alimentadas pelos produtos da ciência,
culturais como são o locus da multiplicidade, da que circulam publicamente através da mídia e
diversidade e da contradição. Dito de outra das inúmeras versões populares destes produtos.
forma, como pode ser visualizado na Figura 2, A co-existência de permanências e novi-
as representações sociais são campos social- dade no campo socialmente estruturado per-
mente estruturados na interface de contextos mite entender melhor a questão da diversida-
sociais de curto e longo alcances históricos. de. Como aponta Geerz (1983), ao trabalharmos

FIGURA 2. As Representações Sociais no Contexto da Teia de Significados Construídos pelo Homem ao


Longo da História

Imaginário
Social

Epistéme

Meta-Sistema Habitus
de Normas

Ciência Senso Comum

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com o senso comum, não nos cabe catalogar os permite evidenciar os dois principais processos
conteúdos em busca do estável e do consensual, envolvidos na elaboração das representações
porque eles são essencialmente heterogêneos. postulados por Moscovici em 1961: ancoragem
Não nos cabe, também, buscar as estruturas e objetivação. A ancoragem refere-se à inser-
lógicas subjacentes, porque elas não existem. ção orgânica do que é estranho no pensamento
Ao aprofundarmos a análise do senso comum, já constituído. Ou seja, ancoramos o descon-
deparamo-nos não com a lógica e com a coe- hecido em representações já existentes. Mos-
rência, mas com a contradição. covici (1978) a concebe como um processo de
Aceitar a diversidade implícita do senso domesticação da novidade sob a pressão dos
comum, entretanto, não significa abrir mão do valores do grupo, transformando-a em um saber
consenso, pois algo sempre sustenta uma deter- capaz de influenciar, pois “nos limites em que
minada ordem social: pressupostos de natureza ela penetrou numa camada social, também se
ideológica, epistémes historicamente localizadas constitui aí num meio capaz de influenciar os
ou, até mesmo, ressonâncias do imaginário outros e, sob esse aspecto, adquire status
social. Afinal, as representações são elaboradas instrumental”. Em suma, a ancoragem é feita na
a partir de um campo socialmente estruturado e realidade social vivida, não sendo, portanto,
são frutos de um imprinting social. Mas, como concebida como processo cognitivo intra-in-
aponta Morin (1983), há zonas fracas neste dividual.
imprinting que permitem com que haja movi- A cristalização de uma representação nos
mento, mudança, abertura à novidade, novas remete, por sua vez, ao segundo processo : a
formas de ancorar fatos pouco familiares. objetivação. A objetivação é essencialmente
Ou seja, parece lícito afirmar que, se de um uma operação formadora de imagens, o proces-
lado buscamos os elementos mais estáveis, so através do qual noções abstratas são transfor-
aqueles que permitem a emergência de iden- madas em algo concreto, quase tangível, tornan-
tidades compartilhadas, de outro trabalhamos do-se “tão vívidos que seu conteúdo interno
com o que há de diferente, diverso e contraditó- assume o caráter de uma realidade externa”
rio no fluxo do discurso social. (Moscovici, 1988). Este processo implica três
etapas: primeiramente, a descontextualização da
As Representações Sociais informação através de critérios normativos e
enquanto Núcleos Estruturantes culturais; em segundo lugar, a formação de um
núcleo figurativo, a formação de uma estrutura
A diversidade e a contradição nos remetem ao que reproduz de maneira figurativa uma estrutu-
estudo das representações sociais não mais ra conceitual; e, finalmente, a naturalização, ou
como conteúdos, mas como processo. Processo seja, a transformação destas imagens em ele-
entendido não como mero processamento de mentos da realidade.
informações e elaboração de teorias, mas como É óbvio, assim, que a ênfase dada à função
práxis; ou seja, tomando como ponto de partida cognitiva, por mais que procure preservar a
a funcionalidade das representações sociais na realidade vivida e não reduzir a elaboração das
criação e na manutenção de uma determinada representações a processos cognitivos, acaba
ordem social. por privilegiar tais processos. Já a função
Nos diversos textos que lidam com as repre- afetiva de proteção de identidades nos remete à
sentações sociais enquanto formas de conheci- dinâmica da interação social e, mais especifica-
mento prático, são destacadas diversas funções, mente, à elaboração de estratégias coletivas ou
entre elas: orientação das condutas e das comu- individuais para a manutenção das identidades
nicações (função social); proteção e legitimação ameaçadas. O estudo de Jodelet (1989b) sobre
de identidades sociais (função afetiva) e famili- as representações da loucura numa comunidade
arização com a novidade (função cognitiva). rural, onde era desenvolvido um sistema de
A função cognitiva de familiarização com a albergamento de pacientes egressos de hospitais
novidade, transformando o estranho — poten- psiquiátricos, constitui um excelente exemplo
cialmente ameaçador — em algo familiar, nos da funcionalidade das representações para a

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O Conceito de Representação Social

manutenção da identidade grupal e para a representações sociais no seio do debate mais


defesa contra a ansiedade suscitada pela proxi- atual sobre a ciência, não só pelo questiona-
midade à doença mental. mento que suscita sobre a natureza do con-
Por fim, a função social exige uma análise hecimento e sobre a relação indivíduo-socieda-
mais microscópica das trocas sociais, tais como de, mas, sobretudo, por inseri-la dentro do
efetuadas na Psicologia Discursiva (Edwards & paradigma da complexidade (Morin, 1983).
Potter, 1992) ou na Etnometodologia, de tal Não se trata de buscar uma síntese, mas de
forma que seja evidenciado o processo de aceitar e trabalhar com a polifasia. Como diz
negociação constitutivo das relações sociais. Morin (1984),
Ao trabalharmos com o processo, distan-
ciamo-nos da perspectiva epidemiológica a que “o que me interessa não é uma síntese, mas
se referia Sperber (1989), que busca a distribui- um pensamento transdisciplinar, um
ção de conteúdos numa dada população. Quan- pensamento que não se quebre nas fronteiras
do a diversidade e o processo são privilegiados, entre as disciplinas. O que me interessa é o
quando o conteúdo é mera estratégia para fenômeno multidimensional, e não a disciplina
acessar o processo de elaboração, abre-se então que recorta uma dimensão nesse fenômeno.
a possibilidade de trabalharmos com estudos de Tudo o que é humano é ao mesmo tempo
caso. O indivíduo, nesta perspectiva, seguindo psíquico, sociológico, econômico, histórico,
a tradição vigotskiana (Vigoysky, 1978), é demográfico. É importante que estes aspectos
sempre uma entidade social e, como tal, um não sejam separados, mas sim que concorram
símbolo vivo do grupo que ele representa. para uma visão poliocular. O que me
Assim, o indivíduo no grupo, próprio das estimula é a preocupação de ocultar o menos
abordagens quantitativas, pode ser abordado possível a complexidade do real” (grifo
como sujeito genérico — como o grupo no nosso).
indivíduo —, contanto que tenhamos uma
compreensão adequada do contexto social por
ele habitado: seu habitus e a teia mais ampla de
significados na qual o objeto de representação RESUMO
está localizado. É esta, possivelmente, a contri-
buição mais valiosa da Psicologia Social para o SPINK, M. J. P. O Conceito de
estudo das representações sociais: a ênfase no Representação Social na Abordagem
processo de elaboração das representações a Psicossocial. Cad. Saúde Públ., Rio de
partir das práticas sociais que as definem e que Janeiro, 9 (3): 300-308, jul/set, 1993.
são por elas definidas, bem como a abertura da Partindo da definição de representação social
possibilidade de se trabalhar o particular como como forma de conhecimento prático, este
expressão do universal, através de estudos de artigo procura situar a abordagem da
caso social e historicamente contextualizados. Psicologia Social entre as demais correntes
que se debruçam sobre a questão do
conhecimento. Acatando a
CONCLUSÃO interdisciplinaridade intrínseca ao campo de
estudos das representações sociais, são
As múltiplas dimensões do campo de estudos analisados tanto os aspectos comuns às
das representações sociais, a interdisciplinari- diversas disciplinas como a contribuição
dade que lhe é intrínseca, as contradições e específica da Psicologia Social. Na
paradoxos com que se depara o pesquisador e perspectiva transdisciplinar, as representações
as inúmeras dualidades (campo estruturado/nú- sociais emergem como um campo
cleo estruturante; conteúdo/processo; contexto multidimensional que possibilita questionar,
histórico/ “aqui-e-agora”), que, a exemplo das de um lado, a natureza do conhecimento e, de
unidades subatômicas estudadas pela Física outro, a relação indivíduo-sociedade, inserindo
Quântica, têm um aspecto dual, apresentando-se este campo de estudos entre as correntes
ora como partículas, ora como ondas, situam as epistemológicas pós-modernas. A contribuição

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