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A CIDADE PRÉ-INDUSTRIAL COMO CENTRO DE

INFORMAÇÃO E COMUNIÇÃO*

Peter Burke

"La cité est un espace d'information où les habitants s'organisent pour mieux savoir, pour défaire

le secret tenu par le roi et la monarchie." (Farge 1992:289)

Tornou-se hoje lugar-comum afirmar que vivemos em uma "sociedade da informação" ou

em uma sociedade pós-industrial cuja base se deslocou, graças ao surgimento da comunicação

eletrônica, do "modo de produção" para o "modo de informação". 1 Talvez seja de alguma

utilidade, nesta sociedade, estudar em períodos mais remotos a informação, sua coleta, registro,

recuperação, disseminação e ocultamento. Talvez seja útil até mesmo ver o passado, como fazem

alguns sociólogos, em termos de surgimento, predominância e declínio de diferentes sistemas de

comunicação, orais, escritos ou impressos. E quando se aborda o passado dessa maneira, há

muito que dizer sobre as cidades. Manuel Castells, por exemplo, autor de um estudo recente de

sociologia urbana, fala da "cidade informacional" da década de 1980. 2

*
Nota: Esta tradução é de Francisco de Castro Azevedo.
1
Mark Poster, The mode of information (Cambridge, 1990).
2
Manuel Castells, The informational city (Londres, 1989).

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8, n. 16, 1995, p.193-203.


Castells contrasta dramaticamente presente e passado. Mas não devemos esquecer que, na

primeira fase da imprensa, aproximadamente de 1450 a 1800, de Gutenberg ao surgimento da

imprensa a vapor, as cidades já eram importantes no processo de comunicação. Inversamente, as

atividades relacionadas com a comunicação (para não chamá-las de "indústria da comunicação")

foram fundamentais para o crescimento e a prosperidade de algumas cidades. Nos primórdios da

Europa moderna, os principais centros de informação e comunicação eram um punhado de

grandes cidades, notadamente Veneza, Roma, Amsterdã, Paris e Londres. Por "grandes" cidades

entendo aquelas com população de cem mil habitantes ou mais, um grupo que se expandiu de no

máximo cinco na Europa em 1500 para pelo menos 25 em 1800, época em que Londres se

aproximava da marca de um milhão.

Este ensaio especulativo irá concentrar-se nas cinco cidades mencionadas. Ressaltará mais

as tendências comuns do que as variações ou contrastes locais entre cidades portuárias e capitais,

cidades do norte e do sul, católicas e protestantes etc. A escolha de grandes cidades não significa

que não tenham ocorrido mudanças expressivas na informação em outros lugares. A razão para

focalizá-las está simplesmente no fato de que nelas se encontra um volume maior de informação

e uma variedade mais ampla de instituições especializadas em sua difusão. O artigo divide-se em

três partes, que tratam respectivamente da difusão da informação no interior da cidade, da cidade

como sujeito de comunicação e da função de mediação da cidade nos sistemas internacionais de

comunicações.

1. A comunicação no interior da cidade

O ponto de partida será uma espécie de inventário dos recursos informacionais urbanos, a

começar pela palavra oral. As cidades há muito foram associadas com a capacidade de ler e

escrever, mas eu gostaria de lembrar que a comunicação oral predominou nos primórdios da

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cidade moderna. Pode-se pensar que, mesmo sendo verdadeira, esta afirmação não é

historicamente relevante, no sentido de que boatos e fofocas são impermeáveis à história, pois

podem ser encontrados em todos os lugares e em todos os tempos, enquanto os historiadores se

interessam pela mudança ao longo do tempo em sociedades específicas. Mas o ponto que eu

gostaria de enfatizar é que os boatos e as fofocas mudam ao longo do tempo em razão das

mudanças da microgeografia da comunicação oral e também do surgimento de novas instituições

que a sustentam e estruturam.

Naturalmente, houve também continuidades. A comunicação oral oficial, via proclamação

ou púlpito, permaneceu importante. 3 Locais particulares eram conhecidos como centros de

comunicação. Já foi dito, por exemplo, que o "mais importante veículo de persuasão" empregado

pelo governo inglês no período de 1534 a 1554 foi o púlpito do adro da catedral de St. Paul em

Londres. 4

As tavernas e barbearias continuaram a funcionar como centros de informação locais para

os homens, como o salão mantido pelo poeta-barbeiro Burchiello na Florença do século XV. As

fontes públicas desempenhavam as mesmas funções para as mulheres, enquanto as praças eram

acessíveis a ambos os sexos. Como o suq do Oriente Médio, os mercados das principais cidades

européias também devem ser vistos como centros de informação. 5 Havia locais centrais para o

intercâmbio de notícias em todas as cidades importantes. Em Veneza, por exemplo, havia o

Rialto para as notícias econômicas e a Piazza San Marco para notícias políticas.

O crescimento das cidades européias entre 1500 e 1800 criou condições excepcionais para

a disseminação das notícias orais. À medida que as cortes, que sempre foram centros de fofocas,
3
Michèle Fogel, Les cérémonies de l'information dans la France du 16e au 18e siècle (Paris, 1989).

4
Millar Maclure, The Paul's Cross sermons (Toronto, 1958), p. 20.
5
Ver Clifford Geertz, "Suq", em Clifford Geertz, Hildred Geertz e Laurence Rosen (orgs.), Meaning and order in
Moroccan society (Cambridge, 1979).

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se estabeleciam crescentemente nas capitais - Londres, Paris (Versalhes inclusive), Madri, Viena

etc. - as informações políticas passavam a ser canalizadas para as cidades com maior rapidez do

que no passado.

Esta foi talvez a razão da importância dos "pânicos morais", nos quais temores coletivos

se cristalizavam sob a forma de boatos, como o da "conspiração papal" para assassinar o rei

Carlos II (1678) ou de que se raptavam crianças em Paris (1750). É provável que histórias desse

tipo tenham sido contadas com freqüência, mas raramente foram amplificadas de maneira tão

rápida como eram agora, pelas redes de uma grande cidade. 6

Uma mudança mais visível neste período foi o aparecimento de vários especialistas em

tipos particulares de comunicação oral. Entre eles se incluíam os corretores de bolsas de valores;

os guias profissionais ou ciceroni, que mostravam Roma, Veneza ou Paris aos visitantes; os

cantores de baladas (e vendedores de baladas) que perambulavam pela cidade ou se

concentravam em determinados locais, como o Pont-Neuf em Paris; e os "mensageiros" das ruas

que anunciavam serviços clandestinos de casamento na Londres do século XVIII. 7

A emergência desses grupos profissionais está associada ao surgimento de várias novas

instituições de comunicação oral. Os historiadores da cultura pensarão naturalmente no

surgimento de academias, círculos literários e salons. Algumas dessas reuniões realizavam-se em

tavernas - na Paris do século XVII, por exemplo, Saint-Aman e outros poetas boêmios

encontravam-se na "Pomme de Pin". Outras aconteciam em casas particulares, como os famosos

salons parisienses organizados por grandes dames, como a marquesa de Rambouillet, cujo círculo

incluía o poeta Malherbe, o dramaturgo Pierre Corneille, o moralista La Rochefoucauld e a

6
Arlette Farge e Jacques Revel, Logiques de la foule (Paris, 1988; trad. ingl. The rules of rebellion, Cambridge
1991).
7
Sobre Roma, Gérard Labrot, Un instrument polémique (Lille e Paris, 1978), p. 191, 203; sobre Londres, Lawrence
Stone, Road to divorce (Oxford, 1990).

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romancista e poetisa Madeleine de Scudéry. 8 O êxito dessas instituições deveu-se ao aumento da

concentração de talentos literários na cidade, trazidos pelo crescimento urbano e pela

transformação das cidades em lugares da moda habitados pela nobreza pelo menos durante parte

do ano.

Outra instituição nova que contribuiu para tipos particulares de comunicação oral foi a

bolsa de valores - em Antuérpia (antiga bolsa em 1515, nova bolsa em 1531), Amsterdã, Londres

etc. - , que se desenvolveu a partir da tradição do suq do Oriente Médio e, mais imediatamente,

da lonja, que foi o ponto de encontro de mercadores no final da Idade Média na Espanha. Outro

fenômeno importante do período foi o aparecimento dos cafés. Não se tratava, evidentemente, de

uma invenção européia, mas da adaptação ao modo de vida ocidental de uma instituição que se

difundiu no Oriente Médio no século XVI. 9 Essa adaptação parece ter-se iniciado em Veneza,

mas logo espalhou-se pela Europa inteira. O primeiro café de que se tem notícia em Londres

abriu em 1651, e o primeiro de Paris em 1672. Em 1700, porém, o número desses

estabelecimentos em Londres já beirava os três mil.

O café de Covent Garden, freqüentado pelo poeta inglês John Dryden e seus colegas

intelectuais (os wits, como se chamavam na época), era uma espécie de salão para homens, e

observação semelhante cabe em relação a alguns dos clubes londrinos do século XVIII, como o

que uniu o Dr. Johnson com Reynolds, Goldsmith, Sheridan e outros. Esses grupos

proporcionavam um "espaço" ou "esfera" para discussões políticas, como foi sugerido por Jürgen

Habermas num estudo clássico sobre o tema e, no contexto da Paris do século XVIII, por Arlette

Farge, que atribui mais ênfase que Habermas à participação política popular. 10
8
Josephine de Boer, "Mens's literary circles in Paris 1610-60", Publications of the Modern Language Association, v.
53 (1938), p. 730-80; Carol Lougee, Le paradis des femmes (Princeton, 1976).
9
Ralph S. Hattox, Coffee and coffeehouses (Seattle, 1985).

10
Jürgen Habermas, Strukturwandel der Öffentlichkeit (Neuwied, 1965); Arlette Farge, Dire et mal dire: l'opinion
publique au 18e siècle (Paris, 1992).

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Também não se pode esquecer a comunicação visual. Basta pensar, por exemplo, nas

pinturas das igrejas católicas, que ainda eram "a bíblia dos pobres"; ou na sinalização das lojas,

que possibilitavam aos analfabetos se orientarem na selva urbana; ou nas pinturas dos edifícios

públicos italianos, como as conhecidas pitture infamanti, que retratavam traidores ou falidos e

pareciam desempenhar o duplo papel de instrumentos de opróbrio e de meio de difundir

informação (como os modernos cartazes "Procura-se"). 11

As cidades também eram importantes como teatros de comunicação multimídia,

especialmente de rituais, religiosos ou cívicos (procissões, entradas reais etc.), e das atividades

relacionadas com esses rituais (fogueiras, fontes jorrando vinho etc.). A principal mudança desse

período, e certamente de grande importância, foi a substituição das ruas, praças e igrejas como

principais locais de representações dramáticas por construções em geral projetadas

especificamente para esta finalidade, permanentes e cobertas. Entre elas estão os teatros

comerciais de Londres e Madri do final do século XVI, os teatros líricos da Veneza do século

XVII, as salas de concerto e os circos da Paris do século XVIII etc.

O surgimento dessas instituições, há muito estudadas pelos historiadores do espetáculo

mas não pelos historiadores urbanos, certamente estava relacionado com o aumento de tamanho

de certas cidades, que permitiu que atores, cantores e outros artistas permanecessem no mesmo

lugar e ainda assim pudessem representar para públicos diferentes todas as noites. Em Londres,

por exemplo, sabe-se que 27 espetáculos foram representados em 1600 e 24 em 1700, o que dava

aos aficcionados a oportunidade de assistirem a dois novos espetáculos por mês.

Todavia, a maioria das mensagens destinadas aos olhos apresentava-se na forma escrita

ou impressa. Os doutos sentiam que era cada vez mais importante viver nas grandes cidades para

poderem realizar pesquisas sérias, pois era impossível alguém reunir condições para comprar

todos os livros que eram agora publicados, mesmo a respeito de um único tema. As bibliotecas

11
Gherardo Ortalli, Pingatur in Palatio (Veneza, 1979).

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públicas ou semipúblicas eram fontes de informação concentradas em cidades como Roma,

Veneza, Florença, Paris e Londres. No século XVII Roma, por exemplo, orgulhava-se não apenas

da Biblioteca do Vaticano, mas também das bibliotecas Sapienza, Angelica, do Collegio

Romano, dos Agostinianos e outras. 12

Para o restante da população alfabetizada, folhear livros nas bancas dos livreiros era

talvez a maneira mais eficaz de conseguir as informações que desejava. Algumas das grandes

cidades, de Veneza a Amsterdã, contavam com notáveis concentrações de livreiros. Em geral,

dispunham de um quarteirão onde viviam os impressores e onde a informação impressa era mais

rapidamente colocada à disposição do público do que em qualquer outro lugar - em Londres, o

adro da catedral de St. Paul, o Temple Bar e o Royal Exchange; em Paris, o Palais-Royal, as

Tuileries, o Luxembourg, o Arsenal e o claustro dos agostinianos.

Os jornais eram naturalmente produzidos nas cidades e colocados à disposição de seus

habitantes enquanto as notícias estavam ainda frescas. Roma teve seus avvisi a partir do século

XVI. A Gazette de Paris data do início do século XVII. Amsterdã tornou-se um centro de

produção de jornais a partir do início do século XVII, não apenas para seus cidadãos, mas

também para exportação. Londres começou mais tarde, mas depois da prescrição da lei de

licenciamento assumiu a liderança e, por volta de 1712, tinha pelo menos 20 jornais concorrentes

- em geral, uma única folha que saía uma vez por semana.

As tavernas e, em grau maior, os cafés, também eram centros informais de comunicação

multimídia, no sentido de que podemos encontrar a cultura impressa e a cultura oral interagindo

nesses meios. Cartazes com as letras das baladas eram afixados nas paredes das tavernas para

ajudar os fregueses a se lembrarem delas - o karaokê do século XVII. Jornais podiam ser

vendidos nos cafés. O Evening Post, por exemplo, fundado em 1706, podia ser comprado em

12
Pietro Redondi, Galileo heretic (1983; trad. ingl. Princeton 1987), p. 80-6.

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cafés londrinos como o Will's, em Covent Garden, e o Tom's, ao lado do Temple Bar. Os

próprios cafés assinavam jornais, inclusive alguns de Paris e Amsterdã, e podiam ficar com até

cinco exemplares do London Gazette. Foi extremamente apropriado que o jornal do iluminismo

milanês, iniciado em 1764 e associado aos nomes de Beccaria e dos irmãos Verri, tivesse se

chamado Il Caffè.

Apesar do problema óbvio de medição, é difícil resistir à impressão de que a quantidade

de mensagens escritas ou impressas nas cidades aumentou no período, tornando o ambiente

urbano ainda mais inóspito para os analfabetos que antes. (Um ocidental perdido em Tóquio

talvez esteja em condição de imaginar os efeitos da consciência de que mensagens importantes

estão sendo comunicadas, combinada com a total incapacidade de decodificá-las.) As notícias

oficiais multiplicavam-se nas esquinas das ruas ou nas portas das igrejas. Em Londres, a partir de

cerca de 1600, cartazes colocados nas ruas anunciavam peças teatrais. Os nomes das ruas

passaram a ser escritos com freqüência cada vez maior nas paredes. Os números das casas

tornaram-se cada vez mais comuns em Paris, Londres e em outros lugares, especialmente no

século XVIII. 13

As cidades podiam contar ainda com locais particulares tradicionalmente, embora não

oficialmente, associados à comunicação clandestina. Em Londres, por exemplo, um dos locais

preferidos para conversas confidenciais era o "Paul's Walk", ou seja, a nave lateral da antiga

catedral de St. Paul. Para comunicações escritas, o local mais famoso foi seguramente a praça de

Roma hoje conhecida como Piazza Pasquino, onde comentários mordazes contra o governo eram

colados em uma estátua clássica mutilada. Mas essas "pasquinadas" tinham seus paralelos em

outras cidades. Rialto, o centro comercial de Veneza, era o lugar favorito para comentários

políticos irreverentes, como o conhecido ataque ao doge Leonardo Loredan afixado no início do

século XVI - o desenho do doge e de seu filho com um balão de fala em que se lia: "Pouco

13
Farge (1992), p. 98s; Fogel (1989), p. 102s; Daniele Marchesini, Il bisogno de scrivere (Roma, 1992).

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importa, desde que eu continue engordando, eu e meu filho Lorenzo." Na Itália, os grafites

políticos eram tão comuns nas grandes cidades (e tão freqüentemente registrados em periódicos e

crônicas) que se poderia virtualmente basear uma história política dessas cidades nessa fonte. 14

Outras cidades tinham os seus equivalentes da Piazza Pasquino. Em Paris, pelo menos por

um curto período, o pedestal da estátua de Luís XIV na Place des Victoires foi o lugar preferido

dos grafiteiros subversivos, até que as autoridades cercassem a estátua com uma grade. Em

Londres, a porta de St. Paul foi o local favorito para a afixação de "denúncias", notadamente

críticas à Igreja, desde a época dos lolardos até a Reforma; em 1555, por exemplo, um

contemporâneo descrevia "denúncias... vituperando... o sacramento". Comentários políticos,

como ataques ao cardeal Wolsey, eram pregados no mesmo local. 15 Boletins informativos

manuscritos, mais diretos em seus comentários que os impressos, eram vendidos em

determinados locais, como certos cafés de Paris no século XVIII. E, registre-se uma vez mais, nas

grandes cidades havia locais onde era possível encontrar livros proibidos.

2. A cidade como sujeito da comunicação

Na descrição do "surgimento", da "difusão" e do "aumento" dos diferentes tipos de

informação, é muito fácil adotar o que se pode chamar de tom "triunfalista" e passar a impressão

de que tudo caminhou da melhor forma possível e de que a comunicação se tornou sempre mais

eficiente com o passar do tempo. Talvez seja mais realista discutir essas mudanças em termos de

necessidades, como respostas à confusão provocada pelo crescimento das grandes cidades.

14
Peter Burke, "The uses of literacy in early modern Italy", em Peter Burke e Roy Porter (orgs.), The social history
of language (Cambridge, 1987), p. 21-42.
15
Susan Bridgen, London and the Reformation (Oxford, 1989) p. 47, 129, 153-4, 166.

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Todo turista sabe que, quanto maior a cidade, maior a necessidade de um guia, seja sob a

forma de uma pessoa ou de um livro. No início da Europa moderna, havia uma demanda de

ciceroni, como nos casos de Roma, Veneza e Paris, e também de livros-guia, como os de

Albertini para Roma (1510), de Sansovino para Veneza (1561) e de Bocchi para Florença (1591)

e os guias posteriores de Paris, Amsterdã, Londres etc.

No século XVIII, esses livros-guia passaram a acrescentar à descrição das igrejas e das

obras de arte algumas informações práticas, do tipo como negociar com os condutores de

cabriolés ou quais ruas deviam ser evitadas à noite. 16 Essa informação desatualizava-se

rapidamente, de modo que não chega a ser surpresa constatar que, a partir de 1722, um guia de

Madri para estrangeiros começasse a ser publicado anualmente.

Os venezianos produziram até mesmo guias especializados do mundo das cortesãs. O

Tariffa delle puttane (Veneza, cerca de 1535) era um diálogo em verso com os nomes, endereços,

atrações, críticas e preços de 110 cortesãs. 17 Foi seguido pelo catálogo de 1570 com 210 nomes, e

posteriormente por imitações que tratavam das atrações de Amsterdã e Londres. Nem sempre é

claro se esses guias se destinavam aos visitantes ou aos nativos, ou se de fato a intenção dos

autores era oferecer informações práticas ou pornografia, ou ambas as coisas. Pelo menos nos

casos venezianos, as informações fornecidas parecem ter sido genuínas.

Até mesmo os nativos das grandes cidades sentiam a necessidade cada vez maior de

orientação e informação sobre diversas formas de lazer ou sobre onde encontrar certos bens e

serviços. Para atender a esta necessidade, Théophraste Renaudot, mais conhecido como editor do

jornal oficial, a Gazette, criou em Paris o chamado Bureau des Addresses no início do século

16
J. C. Nemeitz, Sejour de Paris (Leiden, 1727, 2ª ed. 2 v.).

17
Barzaghi (1980), p. 155-91.

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XVII. A idéia do bureau era colocar em contato pessoas, como criados e patrões, que não

conheciam a existência uns dos outros. 18

Esta versão do século XVII das páginas amarelas não duraria muito tempo, mas a idéia foi

retomada no final do século pelo boticário Nicolas de Blegny, que apresentou as informações na

forma impressa, desta vez com o título de Le livre commode des addresses de Paris (1692).

Blegny parece ter sido prudente em publicar esta obra de referência sob o pseudônimo de

Abraham du Pradel, porque ela foi logo suprimida devido às queixas de invasão de privacidade

por parte de algumas pessoas influentes cujos endereços haviam sido listados. 19

Mas a demanda por esse tipo de informação persistiu, e no século XVIII o projeto foi uma

vez mais reavivado. O cavaleiro de Mouchy, mais conhecido como distribuidor de boletins

informativos manuscritos, também organizou, por volta de 1750, um bureau d'addresses na rua

Saint Honoré. Informações sobre as atividades de lazer em Paris eram colocadas à disposição do

público no século XVIII em periódicos como Affiches de Paris, Journal des Spectacles e

Calendrier des Loisirs.

Em Londres, a idéia de fornecer informações práticas aos habitantes da cidade foi

concretizada em meados do século XVII por Samuel Hartlib, cujo Office of Address ou Agency

for Universal Learning tentava combinar os serviços práticos oferecidos por Renaudot com um

projeto mais ambicioso de coleta e difusão de conhecimento sobre todos os assuntos. 20 Um

estrangeiro como Hartlib tinha razões para ser particularmente consciente da necessidade de

orientação em uma grande cidade. Seu projeto, como o de Renaudot, teve vida curta, mas,

também como Renaudot, teve imitadores. São exemplos o Office of Publick Advice em Londres

18
Howard M. Salomon, Public welfare, science and propaganda in seventeenth-century France (Princeton, 1972), p.
53-8.
19
Nicolas de Blegny, Le livre commode (1692; reimpr. Paris 1878).
20
Charles Webster, The Great Instauration (Londres, 1975), p. 67-77.

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(1657), que mantinha a publicação semanal Publick Adviser, além de oferecer mediação pessoal;

ou a central de inteligência estabelecida por um certo T. Mayhew em Londres, por volta de 1680,

no The Pea Hen, em frente a Somerset House, que se dedicava ao registro de imigrantes. As

agências de emprego ou "escritórios de registro" para criados tornaram-se cada vez mais comuns

na Londres do século XVIII. 21

Diferentemente do que aconteceu em Paris, em Londres, por volta de 1650, os anúncios

tornaram-se parte regular e substancial de certos jornais. Eles incluíam a descrição de objetos

perdidos e de bens colocados à venda (até mesmo tinta de carvão) ou a oferta de serviços

(médicos charlatãos, por exemplo). Anúncios de livros - informação sobre informação - eram

freqüentes, aparecendo, por exemplo, toda semana nas páginas do The City Mercury a partir de

1675.22

A iniciativa de Hartlib também se traduziu na publicação de várias obras organizadas por

editores, como a Collection of the names of the merchants living in and about the city of London

(1677); A new review of London, de R. Burrage (1722); The directory, or list of principal traders

in London, de J. Brown (1732; observe-se o uso do novo termo directory); The directory, de H.

Kent (1736); A complete guide to all persons who have any trade or concern with the city of

London (1740); New complete guide, de Baldwin (1768); The London register of merchants and

traders (1775); Merchants and tradesman's general directory, de Wakefield (1789). O diretório

comercial foi adaptado para o mundo social por P. Boyle, com The fashionable court guide, or

the town visit directory (1792). Esses diretórios há muito vêm sendo estudados pelos especialistas

em história econômica e social da cidade, mas também deveriam ser vistos como parte da

tendência de comercialização da informação.

21
David Ogg, England in the age of Charles II (Oxford, 1934, 2 v.), v.1, p. 97.
22
R. B. Walker, "Advertising in London newspapers, 1650-1750", Business History, v. 15 (1973), p. 112-30.

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Alguns desses fenômenos parecem ser conseqüência do crescimento da população urbana,

outros refletem a tendência econômica e social descrita por J. H. Plumb como "a comercialização

do lazer". Essa tendência é visível tanto no carnaval de Veneza ou nas touradas de Madri do

século XVIII quanto nas lutas de boxe ou nos concertos públicos de Londres. 23

3. A cidade como mediadora: Veneza e Amsterdã

Naturalmente, as cidades não são apenas centros de informação sobre elas próprias, mas

locais onde se coletam e transmitem informações vindas de outros locais e sobre outros locais.

Essas informações podiam ser de grande valor, e no início da Europa moderna havia pessoas

dispostas a tudo para obtê-las, como aqueles quatro nobres da Veneza do século XV que

chegaram ao ponto de destelhar parte do palácio do Doge para ouvir um relatório confidencial

oriundo de Istambul. Na bolsa de valores, as últimas notícias das Índias Orientais, por exemplo,

tinham o poder de fazer subir ou descer rapidamente os preços de bens e ações. Sabe-se que

alguns especuladores do período espalhavam boatos exatamente com este propósito. 24

Quando chegam a meados do século XV, com a entrada de Gutenberg em cena, os

historiadores da cultura geralmente desviam seu interesse do manuscrito para o impresso. No

entanto, é óbvio que a leitura e a escrita de manuscritos não desapareceram com a invenção da

imprensa. Seria mais exato afirmar que os manuscritos perderam algumas de suas funções. No

início da era moderna, as cidades eram centros de comunicação manuscrita, em particular de

leitura e escrita de cartas. Boa parte do comércio internacional estava nas mãos de uma diáspora

23
J. H. Plumb, The commercialization of leisure in eighteenth-century England (Reading, 1973); Peter Burke,
Popular culture in early modern Europe (London, 1978), p. 248-9; Neil McKendrick, John Brewer e J. H. Plumb,
The birth of a consumer society (London, 1982).

24
Jonathan Israel, "The Amsterdam Stock Exchange and the English Revolution of 1688", Tijdschrift voor
Geschiedenis, v. 103 (1990), p. 412-40.

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de famílias de mercadores, com seus escritórios principais em Florença, Gênova, Lucca ou

Nuremberg, e filiais em Antuérpia, Londres, Lyon, Sevilha, Istambul etc. Uma das atividades

mais importantes das filiais era enviar notícias para as sedes, possibilitando assim a criação de

um tipo de "banco de dados" disponível para a matriz da firma familiar. 25

Uma vez mais, na esfera da ciência havia redes que atendiam aos interesses dos eruditos,

como as de Marin Mersenne em Paris, de Samuel Hartlib e Henry Oldenburg em Londres etc.,

redes essas que dependiam das funções dessas cidades como centros do crescente sistema postal.

Na área política, Veneza tornou-se um centro importante de informações, por ter sido uma das

primeiras potências a adotar o sistema de embaixadores residentes. A principal função desses

embaixadores era coletar as informações que julgavam úteis para seu governo. Completada sua

missão, os embaixadores deviam descrever o Estado em que tinham vivido em relatórios

detalhados, as chamadas relazioni, que eram lidas em voz alta no Senado e depois guardadas nos

arquivos estatais.

Contudo, no final do século XVI já era possível comprar cópias de alguns desses

relatórios confidenciais. O mercado da informação clandestina incluía também uma demanda de

cópias manuscritas de livros proibidos. 26

Há muito mais o que dizer sobre as cidades mais importantes como centros de

comunicação impressa, de maneira que é melhor limitar este relato a dois exemplos, Veneza e

Amsterdã.

Por volta de 1500, tinham sido impressos mais livros em Veneza do que em qualquer

outra cidade da Europa - aproximadamente, 4.500 edições. No século XVI, a produção cresceu

para cerca de 15-17 mil edições, e o grande número de tipografias (cerca de 500) era uma das

25
Giorgio Doria, " Conoscenza del mercato e sistema informativo: il know-how dei mercanti-finanzieri genovesi nei
secoli xvi e xvii", em Aldo De Maddalena e Herman Kellenbenz (orgs.), La republica internazionale del denaro
(1986), p. 57-115.
26
Ugo Tucci, "Ranke and the Venetian document market", em Georg G. Iggers e James M. Powell (orgs.), Leopold
von Ranke (Syracuse, 1990), p. 99-107
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atrações da cidade para Aretino e outros escritores profissionais da época (que introduziam uma

nova profissão: os poligrafi, que não dependiam de patrões). 27 Os livros eram impressos para

exportação e para o mercado interno, muitas vezes em línguas que não o italiano, como grego,

hebraico, árabe, croata e armênio, o que era possível graças às subculturas de imigrantes

estabelecidos na cidade.

Poder-se-ia dizer que era lógico que Veneza se tornasse um centro de impressão, pois já

era um centro para outros tipos de comunicação, por ser um porto internacional e a capital do que

ainda era em parte um império marítimo. Como uma espécie de corretor entre o Oriente e o

Ocidente, Veneza constituía-se em um centro de informações sobre o Oriente, especialmente o

Império Otomano. O venezianos viajavam para Alexandria, Alepo, Tana, Pérsia, Índia e até

mesmo para Java.

Essa função comunicativa declinou no século XVII por várias razões, duas das quais

chamam mais a atenção. Em primeiro lugar, a tolerância veneziana para com outras culturas e

religiões, a atitude prática do "viva e deixe viver" dos mercadores, foi abalada pelo difusão da

Contra-Reforma. Em 1540, a Inquisição estabeleceu-se em Veneza e em 1549 produziu-se um

Index veneziano. Os livreiros começaram a ser interrogados sob a acusação de contrabandear

livros heréticos ou indecentes do estrangeiro. Tipógrafos como Gabriel Giolito transferiram seus

investimentos para a publicação de livros devocionais em italiano, destinados a um mercado

geograficamente mais limitado. Como resultado, Veneza tornou-se gradualmente menos

metropolitana e mais provincial, embora tenha permanecido como importante centro de

informação na Europa do leste até 1700. 28

27
Claudia Di Filippo Bareggi, Il mestiere di scrivere: lavoro intellettuale e mercato libraio a Venezia nel '500 (Roma,
1988).

28
Paul Grendler, The Roman Inquisition and the Venetian press, 1540-1605 (Princeton, 1977); Lucien Bély, Espions
et ambassadeurs (Paris, 1990), p. 98, 253s.

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Em segundo lugar, a descoberta do novo mundo enfraqueceu inevitavelmente a

importância de Veneza como centro de informação e centro comercial, porque deslocou o centro

de gravidade da Europa mais para o ocidente, na direção do Atlântico. O fluxo internacional da

informação depende claramente das rotas comerciais. Era, portanto, a vez de outra cidade, com

localização mais favorável, assumir o papel de centro europeu da informação e comunicação. O

famoso modelo de Braudel da seqüência das cidades comerciais européias pode ser aplicado à

informação, que era e continua sendo um bem comercializável. Nessa função, e também na do

comércio internacional em geral, Veneza foi sucedida por Antuérpia e esta por Amsterdã. 29

Como a Veneza do século XVI, a Amsterdã do século XVII era um abrigo seguro para os

imigrantes, especialmente os refugiados, entre os quais calvinistas ingleses e franceses, judeus

espanhóis e portugueses, europeus do leste etc. Entre 1650 e 1700, Amsterdã tornou-se o maior

centro europeu de produção de livros. O centro do centro era a tipografia da família Blaeuw, uma

das atrações turísticas da cidade, mencionada em guias do século XVII para visitantes, que

teciam comentários sobre as 15 máquinas impressoras - nove para texto e seis para ilustrações,

uma vez que os atlas eram a especialidade da firma. Amsterdã também foi descrita como o

"primeiro centro jornalístico da Europa ocidental". 30

Boa parte dessa produção destinava-se a mercados externos. Os folhetos noticiosos

impressos, por exemplo, eram produzidos em inglês, francês e alemão, enquanto as gazetas

manuscritas também eram de interesse para os governos estrangeiros, como o francês.


31
Aproveitando as subculturas da cidade, como já tinham feito os venezianos, os tipógrafos de

Amsterdã publicavam livros para exportação não apenas em francês, alemão e inglês, mas

29
Fernand Braudel, Le temps du monde (Paris, 1979).
30
Isabella H. van Eeghen, De Amsterdamsche boekhandel, 1680-1725 (Amsterdã 1960-78, 5 v. de 6); Folke Dahl,
"Amsterdam: earliest newspaper centre of Western Europe", Het Boek, v. 25 (1939).

31
Bély (1990), p. 259.

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também em árabe, hebraico e até mesmo em armênio e georgiano, tendo sido estas duas últimas

fontes tipográficas entalhadas pelo impressor húngaro Miklós Kis. Os impressores de Amsterdã

vendiam bíblias na Inglaterra mais barato do que as produzidas localmente. Um dos principais

livreiros de Amsterdã, Jan Janssonius, abriu filiais em Frankfurt, Berlim, Leipzig, Danzig,

Copenhagen e Estocolmo. Assim, Amsterdã pôde ser e foi descrita como um "entreposto

intelectual", cuja riqueza dependia em grau considerável da venda de informações. A tese que

vem sendo afirmada ao longo deste paper é de que todas as grandes cidades européias podem ser

estudadas de maneira profícua a partir deste enfoque. 32

Para concluir, algumas observações e comparações gerais. Algumas cidades do período

testemunharam e estimularam o surgimento da cultura política e da esfera pública antes do século

XVIII, o que foi destacado por Habermas. Amsterdã foi um centro importante de produção e

consumo de panfletos políticos no século XVII. Londres desempenhou um papel semelhante na

década de 1640, quando as instituições tradicionais de censura ruíram, e novamente na Crise da

Exclusão (cerca de 1679-81), na qual os meios de comunicação foram de grande importância

(procissões, petições, panfletos etc.). Na França, naturalmente, o final do século XVIII foi um

grande momento, antes e depois da Revolução. Na década de 1770, o novo jornal Annales

Politiques vendia 20 mil exemplares. Nos últimos seis meses de 1789 foram fundados 250

jornais, a maioria deles em Paris. 33

Uma das questões mais difíceis e interessantes com respeito aos primórdios da Europa

moderna é se, e até que ponto, esta parte do mundo deve ser vista como parte de uma unidade

maior. Braudel, por exemplo, apontou semelhanças entre tendências da população da Europa e da

32
David W. Davies, "The geographical extent of the Dutch book trade in the seventeenth century", Library
Quarterly, v. 22 (1952), p. 200-13; Graham C. Gibbs, "The role of the Dutch Republic as intellectual entrepot of
Europe in the seventeenth and eighteenth centuries", Bijdragen en Mededelingen betreffende de Geschiedenis van de
Nederlanden, v. 86 (1971), p. 323-49; W. D. Smith, "Amsterdam as an information exchange in the seventeenth
century", Journal of Economic History, v. 44 (1984), p. 985-1005.
33
Jeremy D. Popkin, Revolutionary news: the press in France 1789-99 (Durham, NC, 1990).

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Ásia. 34 Para colocar as tendências da informação em um quadro mais amplo e que permita

comparações, devemos nos voltar para as cidades do Japão Tokugawa, ou o Japão que vai do

início do século XVII a meados do século XIX.

Mutatis mutandis - casas de chá no lugar de cafés e teatros de bonecos (joruri) no lugar de

atores humanos - as principais tendências culturais e sociais na Europa e no Japão parecem ser

extremamente semelhantes. Nos séculos XVII e XVIII, três cidades japonesas em particular

cresceram de maneira muito rápida: a velha capital, Kyoto; o centro comercial Osaka; e a nova

capital Edo, depois Tóquio. Ao mesmo tempo, essas cidades desenvolveram novas formas de

cultura e comunicação. Entre elas, uma das mais importantes foi o kana-zoshi, o equivalente das

brochuras populares ocidentais. Esses livros eram impressos, não em caracteres chineses, mas em

cursivo silábico, mais simples e acessível a um número muito maior de pessoas. Pode-se avaliar o

êxito comercial dessa literatura popular pelo fato de que em 1626 existiam pelo menos 50

livrarias em Osaka. Os guias dessas três cidades proliferavam, incluindo os especializados em

templos, lojas, atores e (como em Veneza) cortesãs.

Os centros da nova cultura popular urbana eram os quarteirões do prazer das três grandes

cidades - Shimabara, Shimamachi e Yoshiwara. Muitos dos kana-zoshi descreviam este "mundo

flutuante", como eram chamados os quarteirões do prazer, e seus habitantes constituíam os

motivos principais do novo gênero de entalhes coloridos. As ukiyo-e, "pinturas do mundo

flutuante", hoje obras de arte famosas, destinavam-se originalmente a fornecer informações -

eram cartazes que anunciavam atores e cortesãs. 35

34
Fernand Braudel, Les structures du quotidien (Paris, 1979), cap. 1.

35
Howard Hibbett, The floating world in Japanese fiction (Londres, 1959); Richard Lane, Masters of the Japanese
print (Londres, 1962).

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E para terminar, uma interrogação: as semelhanças entre as tendências do Oriente e do

Ocidente eram coincidências ou não? As tendências paralelas na demografia apontadas por

Braudel podem ser explicadas por mudanças na ecologia global. No entanto, as tendências

paralelas na cultura parecem mais misteriosas. Pode-se excluir a explicação com base em

conexões, dado que o final do século XVII foi um período em que a comunicação entre a Europa

e o Japão foi virtualmente limitada a um pequeno grupo de holandeses na ilha de Deshima. A

explicação pelos efeitos da rápida urbanização na cultura soa mais convincente, mas acarreta o

perigo de reducionismo. Mas que outras explicações restam?

(Recebido para publicação em agosto de 1995)

Peter Burke é professor de história cultural na Universidade de Cambridge, onde é membro do

Emmanuel College.

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8, n. 16, 1995, p.193-203.


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