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Tobias Peucer:

progenitor da Teoria do Jornalismo


Jorge Pedro Sousa*

Resumo
Este texto pretende situar o papel de Tobias Peucer
Abstract
This article places Tobias Peucer as the founding fa-
enquanto progenitor da Teoria do Jornalismo, desta- ther of journalism theory emphasizing how this Ger-
cando a forma como esse pesquisador alemão, na sua man researcher in 1690 pointed out paths to research
tese doutoral, apresentada em 1690 à Universidade and thoughts that other authors only began to follow
de Leipzig, na Alemanha, apontou caminhos para a two hundred years later. Peucer discussed journalism
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pesquisa e reflexão que outros autores só começaram ethics, the relationship between journalism and his-
a seguir dois séculos mais tarde. Peucer reflecte so- tory e even agenda-setting, topics that are central to
bre ética “jornalística”, relações entre “jornalismo” e contemporary journalism.
história, critérios de noticiabilidade, o papel do mer-
cado na configuração da informação e mesmo sobre
agendamento, temas centrais da Teoria do Jornalismo
contemporânea.

Palavras-chave: Keywords
Teoria do Jornalismo; notícia; Tobias Peucer; história; ética. Journalism theory, news, Tobias Peucer, history, ethics.
Introdução consentem livremente em ser governados
Quando, em 1690, o alemão Tobias Peu- pelos primeiros, em favor do bem comum,
cer, um erudito de Görlitz que tinha es- que deve ser perseguido pelos governan-
tudado teologia e medicina, apresentou, tes. A sociedade ocidental dava os primei-
na Universidade de Leipzig, Alemanha, a ros passos em direcção ao liberalismo polí-
sua tese doutoral sobre as relações e re- tico. O período era também de pré-Revolu-
latos de novidades , diríamos hoje sobre
1 ção Industrial, aparecendo novos inventos
jornais e notícias, ou seja, sobre jornalis- a velocidade crescente.
mo, o tempo era de mudança política e so- Ora, quando mais uma sociedade está
cial. A Reforma Protestante tinha abalado sujeita à instabilidade e à mudança, mais
a autoridade da Igreja Católica e exigia as pessoas necessitam da comunicação
aos crentes um desenvolvimento pessoal social para satisfazerem necessidades in-
centrado na educação, propondo também formativas, compreenderem o mundo e
uma nova ética para os negócios e a polí- compreenderem-se a elas mesmas e obte-
tica, para o relacionamento interpessoal, rem orientação (Ball-Rokeach e De Fleur,
para o relacionamento entre as pessoas e 1986). O século XVII foi, assim, um perío-
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as instituições e ainda para a intervenção do de florescimento dos antepassados dos
nos assuntos públicos. A burguesia comer- jornais contemporâneos. Estas publica-
cial em ascensão, cada vez mais enrique- ções, porém, não tiveram sucesso unica-
cida, reivindicava protagonismo na gestão mente por causa do sig-nificado da refor-
da “coisa pública”, adivi-nhando-se a crise ma protestante para o desenvolvimento
do Absolutismo Régio. O “espaço público”, educacional de cada pessoa ou somente
na versão de Habermas (1989), começava devido ao desejo de intervenção sobre os 1
Peucer denominou a sua tese “De
a criar-se com as discussões racionais so- negócios públicos de burgueses enriqueci- Relationibus Novellis”, podendo a
terminologia referir-se quer aos perió-
bre negócios e política nos clubes de cava- dos e intelectuais. Na realidade, o floresci-
dicos da época no seu conjunto quer às
lheiros e cafés, em cidades como Londres mento da imprensa no século XVII deve-se notícias em si, os relatos (“relationes”)
de “novas comunicações” (“novellae”),
e Paris. Intelectuais como John Locke 2 à feliz confluência de vários factores além ou seja, de novidades ou notícias.
defendiam o direito à revolta contra dita- dos atrás referidos, entre os quais os se- 2
Jonn Locke publicou no mesmo ano
dores e tiranos, avançando com a ideia de guintes: em que Tobias Peucer apresentou a
sua tese, 1690, o livro Two Treatises
que governantes e governados devem es- a) O desenvolvimento da tipografia gutem-
on Government
tabelecer um contrato em que os segundos berguiana, surgida no século XVI, por volta

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de 1540; catástrofes e batalhas, mas também sobre
b) A expansão da indústria do papel, que assassínios e assuntos insólitos e surpreen-
satisfaz a procura crescente de um suporte dentes (milagres, feitiçaria, nascimento de
mais fiável do que o pergaminho ou o papiro animais estranhos, etc.). Muitas das “no-
para a indústria tipográfica; tícias” publicadas eram descarada e total-
c) A vontade de alguns negociantes, muitos mente falsas, abusando da credulidade de
deles proprietários de tipografias, que come- uma população pouco instruída, supersti-
çaram a ver nas notícias uma mercadoria ciosa e profundamente religiosa. Às vezes,
capaz de gerar lucro; os relatos noticiosos eram enquadrados pela
e) A necessidade de informações económicas moral cristã ou mesmo sob o prisma do con-
que alimentassem os negócios numa socie- tentamento ou descontentamento divino. A
3
Interessa-nos observar as publica-
dade capitalista em expansão; Gazeta Em que Se Relatam as Novas To-
ções existentes no último quartel do g) O aumento dos fluxos de informação, a das, Que Houve Nesta Corte, e que Vieram
século XVI e não antepassadas re-
motas dessas publicações, como, por nível nacional e internacional, que retro- de Várias Partes no Mês de Novembro de
exemplo, as Efemérides gregas, as alimenta o processo (as publicações aceleram 1641, antepassado dos jornais portugueses,
Actas Diurnas romanas ou ainda as
crónicas e folhas volantes medievais. os fluxos de informação e estes, por sua é um bom exemplo das relações de notícias
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4
Por vezes adquirem outras denomi-
vez, estimulam o aparecimento de novas do século XVII.
nações, como “gazetas”, “mercúrios” publicações). Algumas dessas relações de notícias ti-
ou mesmo “avisos”, embora esta úl-
tima designação seja mais frequente A imprensa existente no século XVII, nham periodicidade relativamente de-fini-
nas chamadas “folhas volantes”. objecto de estudo de Tobias Peucer, não da, outras não. Em alguns casos, a perio-
5
Não há acordo sobre a data em era homogénea e as suas raízes directas dicidade das publicações variava, de acor-
que aparece o primeiro diário, mas
remontam à Idade Média. Coexistiam vá- do com a informação disponível sobre os
alguns historiadores da imprensa,
como Costella (1984), dizem que foi rios tipos de publicações, podendo todas acontecimentos relevantes. As pri-meiras
o Daily Courant, surgido em 1702,
em Inglaterra. Outros autores, como elas ser consideradas antepassadas dos relações eram anuais ou bienais, passan-
Casasús e Ladevéze (1991), conce- jornais contemporâneos . As relações de
3
do depois a mensais, quinzenais, semanais
dem essa honra ao Leipziger Zeitung,
cuja publicação se terá iniciado em novidades (relações de notícias ) configu-
4
até chegarem à periodicidade diária5. Para
1660, em Leipzig, na mesma cidade
ravam-se como uma espécie de “compên- os contemporâneos de Peucer, a intensifi-
onde trinta anos após Tobias Peucer
apresentou a primeira tese doutoral dios noticiosos”, por vezes volu-mosos, cação dos fluxos de informação certamente
sobre “jornalismo”.
que reuniam notícias sobre pessoas im- pareceria ser vertiginosa, um pouco como
portantes, normalmente reis e aristocra- sucede agora connosco, ao observarmos o
tas, batalhas, acontecimentos das cortes, impacto da Internet e dos novos suportes e
dos novos meios de comunicação na socie- Pode afirmar-se zijo ou ao queixume, às vezes sob a forma
dade e nas pessoas. que a imprensa de poesia e de canções. De qualquer manei-
As folhas volantes, herdeiras directas ra, pode afirmar-se que a imprensa nascen-
nascente
das folhas volantes manuscritas da Idade te tinha um cariz essencialmente informati-
tinha um cariz
Média e dos avisos italianos e alemães, vo, embora por vezes enquadrasse os factos
essencialmente
constituíam um segundo modelo de pu- pelo prisma da moral cristã. Os jornais do
blicações. As folhas volantes, de pe-riodi- informativo, século XVII mostram, afinal, que, ao contrá-
cidade mais indefinida, normal-mente fa- embora por vezes rio do que por vezes se lê, a imprensa noti-
lavam de um único assunto. Havia folhas enquadrasse os ciosa não é uma invenção norte-americana
volantes de dois tipos. Um primeiro tipo, factos pelo prisma do século XIX, mas sim uma invenção euro-
mais “sério”, configurou-se como ante- da moral cristã. peia dos séculos XVI e XVII, que recupera
passado do jornalismo econô-mico, já que uma tradição noticiosa (nunca perdida) ini-
abordava essencialmente informação co- ciada com as Efemérides gregas e as Actas
mercial e por vezes quase publicitária (por Diurnas romanas.
exemplo, informações bancárias, criação Este texto tem a pretensão de evidenciar
de fundos para se-guros entre armadores, os dotes de pesquisador de Tobias Peucer,
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enumeração dos navios que chegavam a um observador sagaz da diversificada im-
um porto e da carga que transportavam prensa informativa da época em que viveu,
ou informação sobre a aceitação de mer- que elevou à condição de objecto de estudo,
cadorias para transporte marítimo...). As propondo uma primeira “teoria do jornalis-
folhas volan-tes do segundo tipo falavam mo” num tempo em que ainda nem sequer
dos mesmos assuntos que as relações de se falava de jornalismo, mas em que, para-
notícias (reis, rainhas e outras celebrida- doxalmente, o campo jornalístico se começa-
des; as-sassínios e assassinos; catástrofes; va a consolidar.
bata-lhas; trocas comerciais; milagres,
feiti-çaria, bizarrias da natureza e outros
as-suntos insólitos, etc.), mas nem sempre 1. As fontes de Peucer
com um propósito predominantemente in- Em favor da verdade histórica, é preciso
formativo. Nas folhas volantes, acontecia, salientar que Tobias Peucer não foi o pri-
frequentemente, que a informação servia meiro estudioso do século XVII a debru-
de pretexto à pregação moralista, ao rego- çar-se sobre os fenómenos pré-jornalísticos
desse tempo e muito menos o primeiro au-
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tor a contribuir para o entendimento do que engrandeçam ou denigram os factos e
jornalismo. Na rea-lidade, quando Peucer muito menos em invenções, como muitas
escreveu a sua tese, existiam já referentes vezes sucedia.
teóricos da retórica, da filosofia, da histó- Peucer, como se disse, contactou também
ria, da jurisprudência, da ética e da moral com diversos escritos de autores seus con-
que se podiam aplicar ao jornalismo emer- temporâneos que desenvolveram pes-quisas
gente. Alguns dos autores de que Peucer e reflexões sobre o papel das rela-ções de
se serviu eram seus contemporâneos, mas notícias, ou seja, sobre o papel dos jornais.
outros remontavam à antiguidade grega e Poderá mesmo falar-se de uma Escola Ale-
romana. mã de pensamento comuni-cacional, que
No campo da retórica, Peucer socorreu- teria sido a primeira escola de pensamento
se dos antigos filósofos e retóricos gregos comunicacional a surgir, mais de dois sécu-
e romanos, como Fábio Quintiliano ou Cí- Peucer socorreu- los antes da Escola de Chicago e de outras
cero, que, entre outros contributos para se dos antigos escolas alemãs, como a Escola de Frankfurt
os estudos jornalísticos, há mais dois mil filósofos e retóricos e a Escola da Periodística, também chama-
anos foram fixando para a posteridade a da Escola Publicística (onde pontificou Otto
gregos e romanos, 35
fórmula dos elementa narrationis para Groth).
que há mais dois
contar novidades (cir-cunstâncias de su- São três os autores do século XVII citados
jeito, objecto, lugar, tempo, causa e ma-
mil anos foram por Peucer: Christian Weise (uma citação);
neira, ou seja, “quem?”, “o quê?”, “onde?”, fixando para Ahasver Fritsch (duas citações) e Christo-
“quando?”, “porquê?” e “como?”), tantas a posteridade phorus Besoldus (uma citação).
vezes atribuída erroneamente aos ameri- a fórmula Christian Weise publicou, em 1685, a pri-
canos do século XIX. Peucer lançou tam- dos elementa meira reflexão sobre jornais baseada numa
bém mão de outros textos clássicos, como narrationis análise de conteúdo. O trabalho intitulava-
os de Luciano de Samosata, autor do sécu- se “Nucleus Novellarum ab Anno 1660 Us-
para contar
lo II, sobre historiografia. Este autor, que que 1676” e surgiu como apêndice do livro
novidades, tantas
Peucer subscreve, escreveu a obra Como Schediasma Curiosum de Lectione Novella-
se Deve Escrever a História, onde adopta
vezes atribuída rum. Nesse trabalho, Weise manifesta-se
um tom positivista, prescrevendo que a erroneamente aos crente no valor formativo, informativo e uti-
historiografia se deve basear em factos e americanos do litário dos jornais.
não em interpretações (enquadramentos) século XIX. No pólo oposto ao de Weise, o jurista
Ahasver Fritsch aborda a problemática Peucer aborda percepcionando, claramente, que a comuni-
do uso e abuso das notícias, na obra Dis- essencialmente cação jorna-lística, embora possa ter outras
cursus de Novellarum Quas Vocant Neue fina-lidades, serve essencialmente para in-
a vertente
Zeitung Hodierno Usu et Abusu, publi- for-mar. Esta percepção das qualidades do
informativa dos
cada em 1676, tendo adoptado um tom trabalho de Peucer é, de resto, corroborada
eminentemente crítico e negativo, acon-
jornais que (...) em por Casasús e Ladevéze (1991: 47).
selhando as pessoas a não crer em tudo o suma, dão notícias, Por outro lado, e esta é a tese que procu-
que liam. percepcionando, raremos demonstrar, em vários excertos da
Christophorus Besoldus não fez uma re- claramente, que tese de Peucer notam-se as preocupações do
flexão exclusiva sobre jornais e no-tícias, a comunicação autor com algumas das questões centrais
mas é na sua obra Thesaurus Practicus, jornalística, embora em torno das quais se tenta construir actu-
editada em 1629, na qual colateralmente almente uma teoria da notícia e do jorna-
possa ter outras
fala das notícias sob o ponto de vista ju- lismo: os conceitos de notícia e de jornais;
finalidades, serve
rídico, que pela primeira vez se usa a ex- as relações entre “jornalismo” e história; o
pressão “Neue Zeitungen” para referir os
essencialmente para contributo da retórica e da evolução históri-
jornais, que tendiam já para uma periodi- informar. ca para a estrutura das notícias; os critérios
36
cidade diária (Casasús e Ladevéze, 1991: de noticiabilidade; os constrangimentos à
52). produção de informação, etc.

2. Tobias Peucer, o precursor da Teo- a) O conceito de notícia em Peucer


ria do Jornalismo contemporânea
A definição peuceriana de “notícia” é es-
A tese doutoral de Peucer tem 29 capí-
sencialmente descritiva, mas também actu-
tulos interligados, todos de pequena di-
al e universal. Para o autor, os jornais “con-
mensão (um, dois ou três parágrafos). A
têm a notificação de coisas diversas aconte-
profundidade e a dimensão da obra não
cidas recentemente em qualquer lugar que
se equiparam a uma tese doutoral actu-
seja (...) como acontece na vida diária” (cap.
al. No entanto, há um tom de contempo-
IV), coisas essas que são “novas” (cap. XIX),
raneidade no entendimento peuceriano
têm “certa utilidade e actualidade” (cap.
do jornalismo. Peucer valoriza e aborda
XXIV) e satisfazem a “curiosidade” humana
essencialmente a vertente informativa
(cap. VIII; XIV e seguintes). Com esta des-
dos jornais que rela-tam acontecimentos,
crição dos jornais, Peucer evidencia cinco
contam novidades, em suma, dão notícias,
características das notícias: 1) pode haver
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notícias sobre tudo; 2) as notícias referem- de critérios de noticiabilidade que enquadram
se a acontecimentos actuais; 3) as notícias o que é e não é importante);
trazem novidades, são mesmo sinónimo de – condicionados por factores como o tempo e
novidades (novellae), são relatos de novi- contidos (o que evidencia os vários constran-
dades; 4) as notícias são úteis; e 5) muitas gimentos, nomeadamente os temporais, na
notícias têm sucesso porque satisfazem a produção das notícias);
curiosidade humana. – que se orientam para os acontecimentos (e
Para Peucer, as notícias são ainda re- não para as problemáticas);
latos “precipitados” (cap. VI), ou seja, su- – e que são novos, isto é, oferecem novidades,
jeitos à pressão do tempo, que se limitam o que satisfaz a curiosidade humana.
“somente a uma simples exposição, unica- Esta noção global de notícia avançada por Peu-
mente a bem do reconhecimento dos fac- cer é cheia de actualidade, levantando aspectos
tos históricos mais importantes” (cap. IV), centrais da teoria da notícia contemporânea.
onde se põe “por escrito a memória dos
Para o autor, os
acontecimentos”. Falam ainda de “coisas b) Relações entre jornalismo e história
jornais “contêm
singulares” (cap. XV) e como as possibili- Para Peucer, o “jornalista” é res-ponsável
a notificação de 37
dades de escolha de notícias são quase in- pela inclusão ou exclusão de alguns aconte-
finitas é preciso “estabelecer uma selecção coisas diversas cimentos na história, ques-tão central para
de modo a que seja dada preferência aos acontecidas autores contemporâneos como Nora (1977;
(...) [factos] que merecem ser recordados recentemente em 1983). Aliás, no trabalho de Peucer não é
ou conhecidos” (cap. XV). qualquer lugar totalmente visível uma diferenciação entre
Em suma, as notícias, segundo Peucer, “jorna-lismo” e história. “Jornalismo” e his-
que seja (...) como
são relatos: tória seriam, de certa forma, sinónimos e a
acontece na vida
– expositivos e escritos (o que implica o re- redacção da história é o grande referente
diária”, coisas essas
curso à linguagem); de que Peucer se serve para aconselhar os
– sobre singularidades (o que implica a
que são “novas”, “jornalistas” na sua actividade emer-gente.
remoção artificial dos acontecimentos do têm “certa utilidade São vários os excertos onde se evidencia a
todo real); e actualidade” percepção de Peucer. Para ele, fazer “jorna-
– seleccionados entre vários relatos possíveis e satisfazem a lismo” é essencialmente construir a histó-
segundo a sua importância (o que põe em rele- “curiosidade” ria da vida diária, fazer uma historiografia
vo a actividade de gatekeeping e a existência dos acontecimentos relevantes, dos “factos
humana.
históricos mais importantes” (cap. IV), pôr
“por escrito a memória dos acontecimen- No trabalho de (também nisto as variações foram poucas!).
tos” (cap. VI). Nos capítulos III e seguin- Mas mesmo não fazendo uma história eru-
Peucer não é
tes, Peucer diz, inclusivamente, que há dita e não sendo feitos por pessoas “doutas
totalmente visível
duas formas de história: a que se apresen- e insignes”, os jornais, segundo Peucer, têm
uma diferenciação
ta “como um fio contínuo, conservando a “utilidade pública”, sobretudo para as pes-
sucessão precisa dos factos históricos (...)
entre “jornalismo” soas (em especial os eruditos) conhecerem
[sendo] deno-minada universal”; e a que e história. os actos e os agentes do poder (cap. XXVI).
se apresenta sob a forma de “coisas espar- “Jornalismo” e Apesar desse enquadramento, Peucer ex-
sas” (Peucer cita Aristógenes), “histórias história seriam, plica também que os jornais, por força de
sem ordem” (Peucer cita Fest, citado por de certa forma constrangimentos como o desejo de lucro
Lactâncio), “miscelânea (...), história va- dos seus proprietários (cap. VIII), procu-
sinônimos (...)
riada ou multi-forme (...) [,] coisas desor- ram, antes de mais, satisfazer a curiosidade
denadas” (Peucer cita Aristóteles, citado humana e serem úteis, não fazer história:
por Laércio). Os jornais são, para Peucer, “os relatos jornalísticos não costumam es-
um exemplo des-ta última forma de escre- crever tendo em vista a posteridade, senão
ver história. Por outras palavras, os jor- tendo em vista a curiosidade humana” (cap.
38
nais são uma história desordenada, cons- XXIII). Por isso tivemos o cuidado de dizer
tituída por uma miscelânea de assuntos. acima que apesar de a escrita da história
Essa “história desordenada” que os jor- ser o grande referente de Peucer, não há.
nais apresentam é, segundo Peucer, fei- nos escritos deste autor, uma coincidência
ta por pessoas que “se encontram quase total entre a história e o jornalismo, no-
desprovidos daquilo que é necessário para meadamente se por história se en-tender o
estabelecer a história escrita (...) [como] que Peucer denomina de história universal.
conhecimento dos factos, competência, juí- No entanto, Peucer repisa que a ambição
zo elevado, documentos autênticos obtidos do “jornalista” deve ser es-crever história
em arquivos não suspeitos (...) e a lin- universal e que o “jorna-lismo” é responsá-
guagem e o estilo adequados à história” vel pela inclusão de alguns acontecimentos
(cap. XXVI). Peucer é, assim, bastante nessa mesma his-tória. Veja-se o seguinte
crítico para a forma como se fazia “jor-na- excerto do texto de Peucer: “se acontece que
lismo” na sua época, no que se aproxima a partir deles [jornais] as coisas narradas
dos críticos contemporâneos da imprensa passam também à história propriamente

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dita, há de se compreender que nem to- no “ressurgimento da história” a partir do
dos, mas somente de uns poucos, os que início do século XV; e finalmente o apareci-
foram registados com uma certa acurácia mento dos primeiros pré-jornais, denomina-
e aplicação é que passam à história” (cap. dos por “mercúrios” em honra de Mercúrio,
XXIII). Peucer pede, ainda, cuidado aos deus das comunicações.
historiadores do futuro que viessem a con-
c) Condições e constrangimentos da produ-
sultar os jornais do seu tempo, pois tomar
ção de informação
os jornais por “documentos con-fiáveis”
pode “obscurecer a memória da posterida-
A moderna teoria do jornalismo relembra
de” (cap. XXIII).
que a produção de informação se faz num
Peucer também chama a atenção para
campo onde intervêm várias forças, sofren-
o facto de as “notícias” serem historica-
do vários constrangimentos (Sousa, 2000;
mente conformadas, um tema repetido no
Traquina, 2002), que levam, inclusivamen-
campo da teoria do jornalismo por autores
te, a que por vezes se tenham notícias que
como Schudson (1978; 1988; 1996) ou Sou-
ninguém quer e não se tenham notícias que
sa (2000). Para o provar, Peucer relem-
todos querem. 39
bra, nos capítulos VI e VII da sua tese, o
As condições pessoais são um dos ele-
processo histórico que permitiu o apare-
mentos formatadores das notícias intuídos
cimento dos jornais do século XVII. Antes
por Peucer. Por exemplo, no capítulo XVII
de mais, o autor critica a “negli-gência dos Peucer repisa
da sua tese, o autor chama a atenção para
antigos” que não davam atenção à histó- que a ambição o facto de factores como o ódio ou o apoio
ria. Relembra, depois, “os escritores in- do “jornalista” aos “jornalistas” aos governantes ou ainda
signes, tanto gregos como latinos, que, de deve ser escrever a necessidade de adulação dos “jornalistas”
uma só vez, estabeleceram as bases (...)
história universal e condicionarem os enquadramentos das notí-
da história escrita”; os correios (troca de
que o “jornalismo” cias. A capacidade de julgamento noticioso
cartas com novidades) instituídas pelo im-
é responsável pela (news judgement), também uma qualidade
perador Augusto; o ensino da história na
pessoal do “jornalista”, é igualmente equa-
Alemanha, introduzido na época do impe- inclusão de alguns
cionada por Peucer como um factor forma-
rador Carlos Magno; “a relação dos factos acontecimentos
tador das notícias no capítulo XI da sua
históricos” nas crónicas medievais; os “ho- nessa mesma tese (“faz falta o juízo”7, clama o autor!) e no
mens sérios e doutos” que se aplicaram história. capítulo XVI (onde critica explicitamente a
“falta de capacidade de julgamento”). tendem a ser inevita-velmente dissonantes
O factor tempo é um dos factores de em relação à reali-dade, já que misturam
constrangimento à produção de infor-ma- “coisas falsas com coisas verdadeiras sem
ção (Schlesinger, 1977) para o qual Peucer culpa sua”. Tam-bém aconselha cautela na
chama indirectamente a atenção, quando consulta de documentos para fazer notícias,
relembra que as “notícias” são “relatos (...) que devem ser “autênticos, obtidos de ar-
precipitados” (cap. VI), elaborados “preci- quivos não suspeitos” (cap. XXVI).
pitadamente” (cap. XIX), muitas vezes em Dois derradeiros factores de constran-gi-
situações de incerteza. O pesquisador re- mento à acção jornalística consistem nas
força essas ideias relem-brando também sanções e ameaças de sanções (“é coisa pe-
que os periódicos são “impressos com in- rigosa escrever sobre aquilo que pode lhe
tempestiva frequência hoje em dia” (cap. mandar ao degredo” - cap. XVII) e na censu-
VII). ra prévia, comum no tempo de Peucer (cap.
Outro constrangimento intuído por Peu- XXVIII).
cer é a força do mercado. Peucer intuiu a
sua importância para o jornalismo, expli- d) A noticiabilidade
40
cando que “a busca de lucro tanto da parte A noticiabilidade é uma das áreas cen-
dos que confeccionam os periódicos, como trais da teoria do jornalismo, pois, em últi-
da parte daqueles que os comerciam” foi ma instância, permite a resposta à questão
uma das razões que levou ao aparecimen- “por que é que temos determinadas notícias
to dos jornais (cap. VIII). e outras não?”. Na realidade, o carácter no-
Peucer evidencia também que a depen- ticiável de um facto não o promove automa-
dência das fontes, quando o “jornalista” ticamente a notícia, já que há muitos outros
não presencia o acontecimento, pode tor- factores a ter em conta (ver, por exemplo:
nar-se um factor de cons-trangimento, já Sousa, 2000; Traquina, 2002), mas se um
que é “merecedor de mais credibilidade facto for enquadrado e percepcionado como
o testemunho pessoal” (cap. X). Por isso, sendo notável e potencialmente noticiável
no capítulo XIV da tese, de certa forma devido à obediência a um ou vários critérios
Peucer aconselha a con-trastação de fon- de noticiabilidade, então poderá mais facil-
mente vir a tornar-se notícia.
7
Ver a seguir uma citação mais com-
tes para assegurar a vera-cidade e credi-
pleta, no item sobre a ética “jornalísti-
bilidade das notícias, pois todas as fontes A ideia da existência de critérios de noti- ca” peuceriana.

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ciabilidade, critérios susceptíveis de per- Peucer intui-o em diversas passagens da
mitir a atribuição de valor noticioso a fac- sua obra. Por exemplo, no capítulo IV ele
tos e notícias que se sobrepõem à subjec- diz que os jornais são apelativos precisa-
tividade jornalística, é de Galtung e Ruge mente porque propõem ao “leitor curioso
(1965), que pela primeira vez apresenta- (...) variedade de carácter ameno”. Dito de
ram uma lista desses critérios. Mas essa outro modo, os jornais têm de ser variados,
dádiva à teoria do jornalismo está indicia- tematicamente equilibrados, um valor-no-
da em escritos muito anteriores, entre os tícia também referenciado por Galtung e
quais a tese de Tobias Peucer. Obviamen- Ruge (1965).
te, Peucer não falou de critérios de noti-
ciabilidade, nem de valores-notícia, mas e) A função de agendamento
tece várias conside-rações onde intui a As pesquisas desenvolvidas no âmbito do
sua existência e, mais do que isso, procura agendamento (agenda-setting) têm demons-
fazer uma lista do que deve e não deve ser trado que a comunicação jorna-lística tem a
noticiado (caps. XV e XVI), na qual se de- capacidade de agendar temas que são objec-
tecta a existência desses critérios. Assim, to de debate público, dependendo o sucesso
Peucer não falou 41
para ele as notícias devem versar: do agendamento de factores como a con-
de critérios de
– “coisas (...) acontecidas recentemente” (cap. versação interpessoal acerca desses temas
IV), o que destaca o critério da actualidade;
noticiabilidade, nem (McCombs e Shaw, 1972). Esta hipótese,
– “factos históricos mais importantes” (cap. de valores-notícia, que passa por ser anglófona e do século XX,
IV), o que destaca o valor da importância; mas tece várias também foi referida por Peucer há mais de
– temas de interesse cívico (o que é útil e as considerações três séculos. Ele explica, por exemplo, que
pessoas devem conhecer); onde intui a sua as notícias relatadas nos jornais são “pro-
– o que é insólito; existência e procura pagadas pela voz pública” (cap. IV) e que
– o que é negativo, como as catástrofes e as “os que [as] lêem podem satisfazer assim a
fazer uma lista do
gerras; sede de novidades dos companheiros e dos
que deve e não deve
– o que se passa com as pessoas ilustres (o grupos de amigos” (cap. XXIV) e ainda que
que evidencia o valor da referência a pessoas
ser noticiado na através dos jornais se podem conhecer “os
de elite); etc. qual se detecta a direitos entre os príncipes (...) juntamente
Os interesses e desejos da audiência existência desses com as deliberações, os artifícios e os cos-
também condicionam a noticiabilidade. critérios. tumes” (cap. XXVI). Sob este prisma, ao
publicitarem os actos de poder, os jornais Embora o jornalismo mais os seus conhecimentos.
são também úteis para a vida cívica, en- potencialmente
tendimento liberal do papel da imprensa. g) Os usos e gratificações
informe todos
O modelo dos usos e gratificações pro-
por igual, como a
f) A função do distanciamento social cura entender os usos que cada indivíduo
Peucer também intuiu um efeito comu-
informação é melhor faz da comunicação social para satisfazer
nicacional relevante dos jornais: a inten- aproveitada por uns necessidades e ser gratificado e foi sendo
sificação das diferenças de conhe-cimento. do que por outros, construído ao longo do século XX através
Este efeito do jornalismo, equa-cionado o jornalismo tende do contributo de vários autores, entre os
por Tichenor, Donohue e Olien em 1970, a distanciar as quais se destacam Schramm, Lyle e Parker
mostra que quem beneficia mais com as pessoas em termos (1961). No entanto, essa noção central so-
informações dos jornais é quem já tem co- bre os efeitos dos meios também se encon-
de conhecimento,
nhecimentos sobre os assuntos em causa tra em Peucer. Por exemplo, ele evidencia
uma forma de
e tem igualmente condições económicas em várias passagens que os leitores conso-
para aceder à melhor informação (Tiche-
controle social. mem jornais para, amenamente, satisfaze-
nor, Donohue e Olien, 1982). Por outras rem a sua curiosidade (cap. IV; cap. VIII;
42
palavras, embora o jornalismo poten- cap. XIV; cap. XXIV; cap. XXV) e o afã de
cialmente informe todos por igual, como saberem coisas novas (cap. XXIV). Essas
a informação é melhor aproveitada por razões, além da utilidade das notícias (cap.
uns do que por outros, o jornalismo ten- XXV), estão na base do sucesso dos jornais.
de a distanciar as pessoas em termos de Em suma, as pessoas, na época de Peucer,
conhecimento, uma forma de controle so- usavam os jornais com a mesma finalidade
cial. Uma das passagens da tese de Peu- das pessoas actuais: serem gratificadas. A
cer em que se nota a ideia do distancia- gratificação pessoal ocorre porque ao con-
mento social surge no capítulo XXVI, no sumirem notícias as pessoas entretêm-se
qual Peucer explicita que embora os jor- amenamente, satisfazem a sua curiosidade,
nais possam ser úteis a todos, eles são recebem informação útil e conhecem as no-
particularmente úteis para os “poucos” vidades.
que têm “um conhecimento da geografia,
4. Tobias Peucer: o autor do primeiro
dos negócios civis e sobretudo das coisas
do palácio”, que assim podem aumentar manual de jornalismo

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para a exposição dos factos:
Peucer é prescritivo ao falar das quali- 1) A exposição cronológica, tendo em conta “a
dades éticas e técnicas, equiparáveis à do sucessão exacta dos factos que estão inter-rela-
historiador, que deve ter quem escreve cionados e suas causas” (cap. IV), de maneira a
para jornais, podendo, por isso, ser consi- “preservar a ordem com que os acontecimentos
derado como o autor do primeiro manual se apresentam” (cap. XXI).
de jornalismo do mundo. 2) A exposição de acordo com uma ordem
arbitrária que respeite a natureza tema. Por
exemplo, para reconstituir o cerco e conquista
a) A técnica jornalística e a cobertura dos
militar de uma cidade, Peucer aconselha a
acontecimentos
que se fale dos autores (quem?), do motivo
Peucer distingue a forma ou economia
(porquê?), do local (onde?), da maneira de agir
(oikonomía) das notícias, da sua expres-
(como?) e da acção em si mesma (o quê?), por
são (lexis). Quer num caso quer noutro,
esta ordem.
Peucer poderia passar por um autor con-
No que respeita à expressão (lexis), Peu-
temporâneo.
cer aconselha a redigir as notícias numa
No que respeita à forma ou estrutura 43
“linguagem (...) pura” (diríamos hoje factu-
das notícias, Peucer salienta, num tom
al), de maneira “clara e concisa”, num tom
bastante actual, que, em princípio, toda
“nem oratório nem poético”, evitando “as
a notícia deve “ater-se àquelas circuns-
palavras obscuras e a confusão na ordem
tâncias já conhecidas que se costuma ter
A sugestão de sintáctica”, para conseguir “agradar” ao lei-
sempre em conta em uma acção tais como
Peucer, importada tor e evitar que a notícia seja confusa (cap.
a pessoa, o objecto, a causa, o modo, o lo-
XXII). Peucer, subscrevendo Lúcia, aconse-
cal e o tempo” (cap. XXI), ou seja, “quem?”, da retórica clássica,
lha ainda a que não se usem “palavras (...)
“o quê?”, “onde?”, “quando?”, “porquê?” e mostra bem que a
fora de uso, nem tão pouco (...) palavras
“como?”. Conforme se disse, esta sugestão fórmula dominante
próprias dos mercados e botecos”. Essencial-
de Peucer, importada da retórica clássi-
para a construção mente, o “jornalista”, de acordo com Peucer,
ca, mostra bem que a fórmula dominan-
de uma notícia está tem de cultivar “a linguagem e o estilo ade-
te para a construção de uma notícia está
muito longe de quados à história” (cap. XXVI). Finalmente,
muito longe de ser uma invenção anglo-sa-
ser uma invenção Peucer concilia técnica e ética jornalística,
xónica do século XIX. Uma vez respeitado
anglo-saxônica... pedindo aos “jornalistas” para não exage-
esse princípio, Peucer dá duas sugestões
rar na menção a miudezas, banalidades e Peucer concilia deiras e úteis” (cap. IX), pelo que quem es-
futilidades “de maneira ridícula e estúpi- técnica e ética creve para jornais tem de ter “as qualidades
da” (cap. XVI e cap. XIX), nomeadamente do bom historiador” (cap. IX), como “o juízo
jornalística,
quando não serve de nada sabê-las (cap. (...) para que, por meio dele, as coisas dig-
pedindo aos
XVI) nas de crédito sejam separadas dos rumo-
No que respeita ao processo de recolha
“jornalistas” para res infundados (...); as leves suspeitas e as
de informações, Peucer pede aos “jornalis- não exagerar coisas e acções diárias sejam separadas das
tas” para serem cautelosos quando recor- na menção coisas públicas e daquelas que merecem ser
rem a fontes, sejam elas pessoas ou docu- a miudezas, contadas” (cap. XI). Infelizmente, para Peu-
mentos, pois as fontes podem deturpar os banalidades e cer, nem todos os que escrevem para perió-
factos, enganando “jornalistas” e leitores futilidades “de dicos têm as qualidades do bom historiador,
(capí-tulos X, XIV e XXV). Daí que, como pois muitos “procuram falar de banalidades
maneira ridícula
vimos, Peucer defende que o melhor é es- (...) e minúcias (...) e omitem o que seria útil
e estúpida”,
crever-se sobre os acontecimentos que se de ler, envernizam (...) o que ouviram dizer
teste-munham directamente (cap. X).
nomeadamente por outros e, por fim, quando não têm coisas
quando não serve exactas, fazem passar por história as sus-
44
b) A ética jornalística, a qualidade jorna- de nada sabê-las. peitas e conjecturas dos outros” (cap. XI).
lística e as qualidades do jornalista Nesta passagem, Peucer faz uma profissão
Para Peucer, ética e qualidade “jorna- de fé em valores éticos intemporais do jor-
lísticas” sobrepõem-se, estando depen- nalismo, valores esses que, em última ins-
dentes das qualidades do “jornalista”. tância, lhe propiciam qualidade: intenção de
A ética jornalística peuceriana parte do verdade, para não enganar os leitores, até
diagnóstico que o autor fez da imprensa porque os jornais transmitem credibilidade
da sua época, à qual acusa de publicar (cap. XIV); e falar do que se deve, conhece e
“coisas de pouco peso” (cap. XVI) e “des- é útil e não do desconhecido e das banalida-
graças humanas”(cap. XVI) e ainda de des sensacionais, por vezes mentirosas ou
“anunciar fábulas falsas junto com histó- exageradas, que as pessoas querem saber
rias verdadeiras” (cap. VII), em parte por (cap. XIV; cap. XVI). A este propósito, Peu-
causa dos defeitos humanos, como disse cer socorre-se de Cícero, para exigir impar-
Séneca (citado por Peucer, cap. VII). As cialidade aos “jornalistas” e para relembrar
notícias, no entanto, deveriam ser “verda- que é preciso ter coragem para dizer a ver-

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dade (cap. XIII), embora, paradoxal mas dessa estrutura. Não são de rejeitar, obvia-
avisadamente, lembre os “jornalistas” que mente, as contribuições norte-americanas
“é perigoso escrever sobre aquilo que pode do século XIX para as mudanças que se ve-
lhe mandar ao degredo”, como as coisas rificaram no jornalismo, pelo contrário, mas
que “os príncipes não querem que sejam somente mostrar que algumas das alegadas
divulgadas”. Pede ainda bom-senso no jul- “inovações” não foram mais do que a recu-
gamento noticioso, de maneira a separar a peração de uma tradição europeia de con-
informação socialmente relevante daquela tar novidades, oralmente e por escrito, com
que não o é, evitando a difusão de notícias raízes na antiguidade clássica. A civilização
sem importância (cap. XV). ocidental é filha de Atenas e de Roma, o
Outra opção ética de Peucer assenta na que se nota também no jornalismo.
ideia de que não deve ser publicada infor- O texto de Tobias Peucer permaneceu na
mação que “prejudique os bons costumes obscuridade demasiado tempo, o que atra-
ou a verdadeira religião, tais como coisas sou a edificação de uma Teoria do Jornalis-
obscenas, crimes cometidos de modo per- mo, pois, conforme mostrámos, esse autor
verso, expressões ímpias dos homens” aponta nitidamente caminhos que só muito
45
(cap. XVIII), pelo que o autor, dentro do mais tarde foram trilhados. O que aconte-
espírito do seu tempo, admite a censura ceu a Peucer e ao seu texto mostra também
prévia das notícias , ainda que, sobretudo,
8
as dificuldades de universalização e acumu-
peça sobriedade e contenção na redacção. lação de conhe-cimento das ciências huma-
nas e sociais, quer porque recorrem pouco
à linguagem universalmente compreendida
Conclusões das ciên-cias, a matemática, quer porque
O texto de Peucer mostra, em primeiro muitos dos pesquisadores escrevem em lín-
lugar, que muitas das noções que se têm guas pouco dominadas internacionalmente,
sobre a “invenção” da imprensa infor- como foi o caso de Peucer, que escreveu em
mativa e da estrutura clássica da notícia latim num tempo em que essa língua es-
pelos americanos do século XIX precisa tava crescentemente em desuso em favor
de alguns ajustamentos, uma vez que, no do francês, primeiro, e depois do inglês. O
8
Isto mostra bem que não devemos
julgar os nossos antepassados pelos século XVII, já existia imprensa infor-ma- seu texto só se tornou conhecido universal
mesmos valores que analisamos a tiva e já se dominavam alguns aspec-tos e contemporaneamente quando foi tradu-
sociedade actual.
zido para alemão9 (1944), catalão10 e por- NORA, P. O regresso do acontecimento. In: AA.
tuguês11, entre outras línguas. Mas antes VV. Fazer História. Venda Nova: Bertrand.
tarde do que nunca, pelo que o resgate PEUCER, T. Os relatos jornalísticos. Comunica-

da sua obra permite-nos agora, 314 anos ção e Sociedade, n.º 33, pp. 199-214, 2000. (Tra-
dução de De relationibus novellis,
passados, perceber não só que muitas das
Leipzig: Tese (Doutorado em Periodística) –
preocupações de Peucer correspondem a
Universidade de Leipzig, 1690.)
preocupações bem actuais como também
SCHLESINGER, P. Newsmen and their time
que esse autor pode, com toda a justiça, machine. British Journal of Sociology, n.º 28, n.º
ser considerado o moderno progenitor e 3, 1977.
precursor da Teoria do Jornalismo. SCHRAMM, W.; LYLE, J. e PARKER, E. Tele-
vision in the Lives of Our Children. Stanford:
** Jorge Pedro Sousa Stanford University Press, 1961.
O autor é professor associado e pesqui- SCHUDSON, M. Discovering the News. A So-
sador da Universidade Fernando Pessoa, cial History of American Newspapers. New

Porto, Portugal. É doutor em Ciências da York: Basic Books, 1978.


SCHUDSON, M. Porque as notícias são como
Informação pela Univer-sidade de Santia-
46 go de Compostela, Espanha.
são? Comunicação & Linguagens, n.º 8, 1988.
SCHUDSON, M. The Power of News. Cambrid-
ge: Harvard University Press, 1996.
Bibliografia
SOUSA, J. P. As Notícias e os Seus Efeitos.
CASASÚS, J. M. e LADEVÉZE, L. N. Estilo y
Coimbra: Minerva, 2000.
Géneros Periodísticos. Barcelona: Ariel, 1991.
SOUSA, J. P. Elementos de Teoria e Pesquisa
GALTUNG, J. e RUGE, M. The structure of fo-
da Comunicação e dos Media. Porto: Edições
reign news. Journal of International Peace Re-
Universidade Fernando Pessoa, 2003.
search, n.º 1, 1965. PEUCER, T. De relationibus novellis.
9

TICHENOR, P. J.; DONOHUE, G. A. e OLIEN, In: KURTH, K. (Org.) Dieältesten


McCOMBS, M. E. e SHAW, D. L. The agenda-
C. N. Structure, communication and social po- schriften für und wider die zeitung
setting function of mass media. Public Opinion Brünn: Rudolf M. RohrerVerlag, 1944,
wer. Evolution of the knowledge gap hypothe- p. 163-184.
Quarterly, 36, 1972.
sis. Mass Communication Review Yearbook, 4,
MENDES DO NASCIMENTO, M. A. Tobias 10
PEUCER, T. De relationibus no-
1982. vellis. In CASASÚS GURI, J. M. Sobre
Peucer e o tripé do jornalismo. Idade Mídia,
TRAQUINA, N. Jornalismo. Lisboa: Quimera, els relats periodistics. Periodística
vol. 1, n.º 1, 2002. Barcelona: Soceitar Catalana de Co-
2002.
NORA, P. O acontecimento e o historiador do municació, n.º 3, p. 31, 47, 1990.

presente. In: AA. VV. A Nova História. Lisboa: 11


Ver bibliografia.
Edições 70.

Estudos em Jornalismo e Mídia,


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