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CONFLITOS, INDISCIPLINA E VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O QUE AS

REGRAS TÊM A VER COM ISSO?

CALIL, Juliana Alvim Bites Castro - GEPEC/UNICAMP


jubitescalil@gmail.com

ARAGÃO, Ana Maria Falcão de - GEPEC/UNICAMP


anaragao@terra.com.br

Eixo: Violências nas escolas


Agência financiadora: Não contou com financiamento

Resumo

O aumento da violência, da indisciplina e dos conflitos interpessoais nas escolas tem sido
percebidos por muitos educadores, alunos e pais, sendo tema recorrente na mídia e em
momentos de reuniões de estudo coletivo e de formação de professores. Fundamentada na
teoria construtivista piagetiana, a partir de uma notícia, divulgada pela imprensa, são
analisados neste artigo, os conceitos de conflitos interpessoais, indisciplina, autoridade e
construção/transgressão de regras no cenário escolar. Pretende-se também refletir acerca de
como a concepção sobre os conflitos e as regras podem interferir na qualidade das relações
interpessoais na escola e discutir de que maneiras podem ou não contribuir para a construção
da autonomia e a formação de personalidades mais éticas. O conflito é aqui entendido como
uma oportunidade de reflexão e construção de valores, entretanto, o desconhecimento dessa
possibilidade por parte de muitos professores interfere negativamente nas relações
interpessoais, na aprendizagem e no desenvolvimento da autonomia moral. Refere-se assim,
que o enfoque não pode ser na resolução do problema ou na punição, mas no que precisam
aprender com a situação. Por fim discute-se alguns procedimentos que estão sendo propostos
para lidar com os conflitos, dentre eles destaca-se as assembleias de classe e os círculos
restaurativos.

Palavras-chave: Conflitos interpessoais. Indisciplina. Regras na escola.

Introdução

Indisciplina, violência, ofensas, desrespeito são comportamentos presentes nas


queixas da maioria dos professores de escolas públicas e privadas do Brasil. Uma pesquisa
realizada pelo Ibope e a Revista Nova Escola, em 2007, com 500 professores de todo o país,
revelou que 69% deles apontavam a indisciplina e a falta de atenção entre os principais
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problemas da sala de aula. Os conflitos, que podem ser tanto causa como consequência da
indisciplina, assim como os demais conflitos naturais das relações entre pessoas, “podem ser
construtivos ou destrutivos, sendo que a atitude do educador será fator diferencial” (VINHA E
ASSIS, 2005, p. 1).
Da mesma forma, intervenção e orientação construtiva por parte do educador,
favorecem a construção de uma moral autônoma, levando o aluno a coordenar pontos de vista,
a conservar valores, ao estabelecer relações de respeito mútuo1.
Entretanto, historicamente, a escola busca inibir os conflitos, fazendo uso, muitas
vezes, da repressão, com ameaças, sanções e coação ( PARRAT, 2008; VINHA, 2000). Em
geral, essa maneira de agir está vinculada à concepção de conflitos e ao desconhecimento de
como se dá o desenvolvimento da moralidade por parte da equipe escolar, que, ainda que com
uma boa intenção, ao agir desta forma dificulta este desenvolvimento.
Como os conflitos tendem a ser evitados, já que não se sabe resolvê-los, a escola acaba
por impor um grande número de regras. Tais regras são impostas sem que haja a explicitação
do princípio2 que as regem, ou ainda, há as regras que não possuem princípios que as
justifiquem. Sem perceberem a necessidade de sua existência, não são legitimadas pelos
alunos e acabam sendo burladas. Segundo Parrat-Dayan (2008, p.5), “o desrespeito às regras
termina em indisciplina e violência, e, para prevenir, preconiza-se a participação dos alunos
na elaboração de regras”.
Proporcionar aos alunos que participem ativamente da construção das regras e das
demais decisões da escola, e que sejam capazes de agir em processos de resolução de
conflitos favorece-os tanto cognitiva quanto moralmente. Para isso, é essencial que os
educadores envolvidos, assim como todo o entorno educativo, esteja preparado para aderir a
projetos que viabilizem tais práticas, como as assembleias e aos Círculos Restaurativos.
Entretanto, são muitos os casos recentes divulgados pela mídia em que percebemos a
dificuldade de a equipe escolar em lidar com tais situações conflituosas e auxiliar os alunos a
desenvolver formas mais eficazes e cooperativas de lidar com as desavenças.
Neste artigo, a partir da análise de uma reportagem que traz uma situação de violência
e conflitos em sala de aula, pretende-se refletir acerca de como a concepção sobre os conflitos

1
Respeito mútuo, segundo Piaget (1994, p83)”é a forma de equilíbrio para qual tende o respeito unilateral,
quando as diferenças desaparecem entre a criança e o adulto, o menor e o maior, como a cooperação constitui a
forma de equilíbrio para a qual tende a coação, nas mesmas cirunstâncias.”
2
Segundo La Taille (2006, p.74) os princípios são “a matriz da qual são derivadas as regras”.
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e as regras podem interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e discutir de que
maneiras podem ou não contribuir para a construção da autonomia e a formação de
personalidades mais éticas.

Quadro teórico

O senso comum traz a ideia de conflito como algo sempre negativo, desgastante e que
deve ser evitado. Entretanto, segundo a teoria construtivista piagetiana, “os conflitos são
ótimas oportunidades para trabalharmos valores e regras. [...] Sua ausência reflete relações de
respeito unilateral.” (VINHA, 2000, p. 1-2).
Rego (1996) faz uma análise da dificuldade que os educadores têm tido para trabalhar
com a indisciplina e com os conflitos interpessoais no cotidiano da escola. A autora destaca
que a visão de professores e gestores sobre indisciplina contribui para o aumento dela e não
para sua resolução. São ideias como a de que disciplinado é aquele aluno que aceita, obedece
e segue as regras da escola sem questionar. Em tal perspectiva, indisciplinado seria aquele que
questiona, que se rebela, que desacata, provocando desordem e conflitos, sendo este
considerado alguém incapaz de se ajustar às normas da instituição. Desta maneira, as regras
passam a ser um mecanismo para a ordem que se almeja de controle e coerção dos alunos.
Concepções difusas a respeito dos conflitos interpessoais, de indisciplina, das
necessidades das regras e - da função pedagógica - permeiam todo o ideário educacional
(educadores, equipe gestora, alunos e pais). Educadores acreditam que a indisciplina esteja
relacionada às características dos novos tempos, como se a coerção exagerada de outros
tempos fosse indispensável à disciplina (entendida aqui como obediência e subserviência), o
que também demonstra, como esclarece Rego (1996), dificuldade em adaptar os projetos
pedagógicos às demandas atuais.
Quando se fala em conflitos no cenário escolar, atualmente, faz se necessário destacar
o conceito de limites, ou, mais exatamente, da falta de limites3. Teóricos como Freud (1991) e
Durkheim (1974), partiam da ideia de que a moralidade era imposta às crianças pela
sociedade e pelos adultos significativos a ela, assim, a tarefa dos professores era, também,
impor limites e cobrar de seus alunos obediência a eles. Já para Piaget, a conquista da moral

3
Refere-se aqui em limites restritivos e não, neste momento, nos limites que trazem a ideia de
superação, vitória.
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autônoma em uma construção contínua, que envolve tanto as dimensões afetivas e cognitivas
quanto a interação social:

Esta nova interpretação da moralidade humana faz cair os dois primeiros princípios
da educação moral tradicional. O primeiro, conforme o qual a moral é imposta de
fora para dentro, cai porque, se a gênese da moralidade leva necessariamente a uma
moral específica, é que há uma participação ativa da criança na construção de seu
universo moral. O segundo princípio, conforme o qual a educação moral depende
exclusivamente da influência dos adultos sobre as crianças, também cai porque,
segundo Piaget, são as relações entre iguais que promovem os ideais igualitários da
justiça, são as relações de cooperação (e não de obediência). (LA TAILLE, 2002, p.
29-30)

Entretanto as relações de cooperação e participação ativa do aluno não raro é


negligenciada pela escola. Muitas ainda veem a interação entre pares como sinônimo de
indisciplina. Apesar dos esforços para evitar ou conter conflitos, encontra-se um aumento de
sua ocorrência. Fante (2005), em uma pesquisa realizada em escolas públicas e particulares no
interior do estado de São Paulo, mostra que 47% dos professores dedicam entre 21 e 40% do
seu dia escolar aos problemas de indisciplina e de conflitos entre os alunos. Todavia, essa
dedicação de tempo com o conflito, não necessariamente, resulta em oportunidades para
trabalhar valores e refletir sobre relações humanas, ao contrário, os conflitos podem
transformar-se em discussões e reações impulsivas, sermões ou ainda, transferência de
problemas e responsabilidades pertencentes a escola para a família (VINHA e ASSIS, 2005).
Já, para a equipe pedagógica, muitas vezes a indisciplina é vista como uma dificuldade
do professor de exercer sua autoridade, de aplicar sanções e controlar o comportamento do
aluno. Vinha (2003) realizou um estudo de caso visando avaliar se o ambiente escolar
influenciava a maneira como os alunos se relacionavam e lidavam com seus conflitos
interpessoais. Aponta que a escola vê o conflito de forma negativa e prejudicial e,
consequentemente, os educadores, inseguros e despreparados, esforçam-se muito na tentativa
de contê-los, evitá-los e resolvê-los rapidamente. A autora destaca vários procedimentos para
lidar com os conflitos como por exemplo: dar mais atividades para ocupar as crianças o tempo
todo, tanto dentro como fora da sala de aula para que brigas e indisciplina não aconteçam.
Diante destas dificuldades em lidar com os conflitos e a postura de tentativas
ineficientes de contenção e controle dos comportamentos dos alunos, Kamii destaca três
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consequências sérias para as punições, castigos e mesmo as recompensas: o conformismo, a


rebeldia e o cálculo de risco.
Muitos professores que rotulam alunos julgam seu caráter e personalidade
prejudicando o surgimento do sentimento de vergonha, fazendo com que os alunos ajam de
maneira a manter o comportamento inadequado, mas já rotulado. La Taille (1996) faz uma
leitura interessante sobre o sentimento de vergonha, destacando a importância do
desenvolvimento desse afeto na construção de uma personalidade ética. Segundo o autor, a
vergonha de decair aos olhos do outro faz com que o indivíduo preze por ações morais. Neste
paradigma se faz necessário esclarecer que

[...] uma pessoa ‘sem vergonha’ é justamente alguém que, por um lado, ignora e
despreza o juízo dos outros (não reconhece o controle externo) e, por outro, não
considera condenável, aviltante, cometer certos atos condenados pela moral. A
imagem que tem de si não parece sofrer com a realização de atos imorais (ibid, p.16)

De acordo com Rego (1996) vale a pena considerar a perspectiva dos alunos sobre o
conflito e indisciplina que, entre outros, implica o sistema escolar. Queixam-se por exemplo,
do autoritarismo dos professores, da organização de tempo e espaços das aulas, da dificuldade
de dar sentido a certas matérias e conteúdos ministrados, da monotonia das aulas, da falta de
propostas que os desafiem, de ausência de regras claras etc. Referem-se que as práticas
pedagógicas que não levam em consideração o conjunto da escola (equipe pedagógica,
alunos...), e que não são pautadas no respeito mútuo, promovem, não raro, o sentimento de
injustiça e práticas violentas, já que refere-se que é através da cooperação, do diálogo.
Algumas pesquisas (TOGNETTA E VINHA, 2011, LEME 2004, VINHA,
2003,TOGNETTA, 2010) indicam que o modo de lidar com os conflitos interpessoais na
escola, em geral, é motivo de tensão por parte de professores e equipe pedagógica, que, na
maioria das vezes, utilizam recursos de regulação externa e com o propósito de evitá-los e
contê-los, traduzidos por coerções, vigilância constante, regras unilaterais e autoritárias,
enfim, um controle intenso dos comportamentos. Vinha (2003) destaca que um dos problemas
dessas formas de enfrentar os conflitos é que elas não promovem a oportunidade de vivenciar
situações conflituosas, naturais das relações humanas, o que não contribui para que os alunos
possam construir formas mais justas, cooperativas, responsáveis, não violentas e respeitosas
de se relacionar.
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Tognetta e Vinha (2007) em seus estudos sobre regras, destacam que não há como
negar que a vida em sociedade exige uma organização que seja capaz de nortear as relações.
Nesse paradigma, vale dizer que a escola também precisa de normas e regras que orientem o
seu funcionamento e as diversas relações interpessoais que a compõem. Contudo, esclarecem
que é extremamente relevante refletir sobre a maneira como são construídas, seu valor e
necessidade, em que princípios estão pautadas, e os processos de legitimação, já que todas
estas questões vão interferir na qualidade das relações interpessoais na escola e no
desenvolvimento moral.
As autoras discutem os dois tipos de regras como: as convencionais e as morais. As
primeiras são aquelas normas de condutas que auxiliam na organização do grupo, são
importantes, mas não se baseiam em princípios universais, portanto as regras morais são
comandos precisos provenientes de princípios (tais como igualdade, justiça, reciprocidade,
dignidade) e fazem referência diretamente às relações interpessoais e resolução de conflitos e
devem se basear no respeito mútuo e valores que levem em consideração o outro.
O que nos mostra Vinha (2003) é que escolas e educadores tendem a intervir mais
firmemente nas regras convencionais do que nas morais, perdendo uma oportunidade de
trabalhar valores e regras frente aos conflitos dos alunos, além do fato de ao agir assim,
acabam também, em muitos momentos, por ferir princípios morais. Uma das prováveis
consequências de se considerar mais graves as transgressões à autoridade do professor e às
regras que visam manter esse tipo de respeito unilateral4, é que pensar e obedecer são coisas
diferentes o que não deve ser, numa educação que visa o desenvolvimento da autonomia.
Segundo a teoria construtivista, se os educadores tiverem em mente quais são os
princípios que norteiam as próprias crenças e ações, refletirem constantemente sobre que tipo
de pessoas querem formar, bem como conhecerem o motivo pelo qual as regras são
obedecidas, fica mais fácil identificar o que realmente vale a pena exigir dos alunos. De
acordo com Piaget (1932 - 1994) ação moral não é aquela em que haja uma simples
obediência à regra por conformismo ou regulação externa. A moral reside no princípio
inerente da ação, no porque da regra. Quase sempre, as regras que não são obedecidas são
desnecessárias para instituição, isso se dá porque há um excesso de regras, necessárias e

4
Respeito peculiar da relação adulto criança, ou de outras relações onde o poder de atuação de um sobre o outro
é muito desigual, caracterizado pelo respeito maior da criança pelo adulto do que o inverso, estruturando uma
relação de coação. (Menin, 1996, p.50)
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desnecessárias na escola, sendo que tanto umas quanto as outras, normalmente sequer são
explicadas, ou seja são impostas e acabam por confundir e promover a manutenção da
heteronomia.
Macedo destaca (1994) que as regras devem ser destinadas a balizar relações e
precisam ser formuladas a partir dos problemas vividos. Outra característica é que devem ser
flexíveis, adequadas às particularidades de cada grupo, e ainda devem ser coletivas, isto é, os
integrantes devem participar ativamente de sua elaboração. Assim implica em regularidade e
cumprimento por parte de todos os envolvidos. Para Puig (1998, p.21) “respeitar a autonomia
pessoal e considerar os temas polêmicos por meio do diálogo fundamentado em boas razões
são algumas condições básicas para construir formas de convivência pessoal e coletiva mais
justas.”
A oportunidade de participar da elaboração de regras contratuais é de grande valia
para a aquisição de autonomia, além de favorecer nos envolvidos o sentimento de pertencer ao
grupo. Temas relacionados a conflitos não solucionados no cotidiano e insatisfações
recorrentes acerca de determinados comportamentos, podem ser debatidos em rodas de
conversas com as crianças pequenas e por assembleias de classe por crianças mais velhas,
como afirmam Tognetta e Vinha (2007).
As Assembleias (PUIG, 2000; ULISSES, 2004; VINHA, TOGNETTA, 2007;
DELVAL, 2007), buscam uma forma de resolução dialógica para os conflitos, e se
caracterizam por encontros periódicos com o objetivo de refletir sobre as ações do grupo.
Trata-se, portanto, de um espaço para o exercício da cidadania onde as regras são elaboradas e
reelaboradas constantemente, em que se discutem os conflitos e se negociam soluções,
vivenciando a democracia e validando o respeito mútuo como princípio norteador das
relações interpessoais. Sendo que um aspecto importante que deve ficar claro é que o
objetivo dessa prática é discutir princípios, atitudes e sentimentos e, a partir da análise destes,
construir, se necessário, as normas de regulação coletiva e as propostas de resolução de
conflitos.
É preciso ressaltar, ainda, que as assembleias são consideradas legislativas, não
judiciárias. A escolha da sanção, quando necessária, caberá ao professor ou especialista,
refletindo sobre qual a intervenção mais adequada.
Outro procedimento criado com o objetivo de restaurar relações rompidas por
conflitos é o Círculo Restaurativo, uma proposta de mediação que trata das desavenças do
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âmbito privada e teve origem na Justiça Restaurativa. Silva et al (2010) afirmam que os
círculos restaurativos na escola valorizam o diálogo, buscam considerar as necessidades das
vítimas e reparar os danos causados pelo conflito, enfatizando a participação ativa de todos os
envolvidos: alunos, professores, comunidade, família e rede de apoio. Esse tipo de prática
enfatiza as discussões de conflitos específicos e por isso acontecem no âmbito privado a partir
das necessidades de algum dos envolvidos. Por exemplo, quando uma aluna agride outra por
se sentir lesada por maledicências ditas a seu respeito, ou quando alguns alunos danificam,
durante um jogo de interclasses, o mobiliário escolar.
Os Círculos Restaurativos ou Círculos de Paz, por fim, envolvem a comunidade na
resolução dos conflitos. Geralmente, são praticados em casos abarcando problemas de
conduta, violência sexual e alcoolismo. Podem também ser usados como círculos de diálogo e
resolução de conflitos.
Ambos são procedimentos favoráveis para resolução cooperativa e dialógica dos
conflitos, assim como, contribuem com a ideia de restauração das relações.

Apresentando um caso da mídia

Visando ilustrar algumas das questões levantadas neste trabalho, foi analisada uma
reportagem publicada pela “Folha Online”5, cujo título é “Alunos colam professora na cadeira
em escola de Campinas (SP)”. Abaixo reproduzimos a reportagem com alguns recortes,
destacando o que nos pareceu mais importante ressaltar diante dos objetivos do presente
artigo:

Três alunos de 12 a 15 anos, da 5ª série da Escola Estadual Reverendo Eliseu


Narciso, no DIC 3, na periferia de Campinas (99 km de SP), colaram com uma cola
de secagem rápida uma professora de artes de 28 anos na cadeira dela no início da
aula. A professora --que não teve o nome divulgado-- ficou com as pernas feridas
com queimaduras de primeiro grau depois que a cola corroeu a sua calça jeans e
feriu a pele. O caso ocorreu na última sexta (19). A professora conseguiu se
desprender da cadeira e foi atendida em um pronto-socorro. Ela passou por exame
de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal). Segundo apuração da direção
da escola, os alunos aproveitaram a hora do intervalo para passar a cola na cadeira.

5
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u448193.shtml, acesso em 26 de agosto de 2011.
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Apenas um aluno de 12 anos admitiu ter participado do ato, mas outros alunos da
mesma sala contaram à direção da escola que outros dois estudantes estavam
envolvidos. O aluno que disse ter envolvimento prestou depoimento na Delegacia de
Infância e da Juventude e suas declarações foram encaminhadas para a Vara da
Infância e da Juventude, que definirá qual será a punição. Os pais do alunos também
serão ouvidos pela Justiça. O conselho da escola, formado por pais de alunos,
professores e pela direção da escola, se reúne na sexta-feira (26) para
determinar a punição aos alunos, que pode ser a transferência para outra
escola, suspensão ou advertência. "Nós já tomamos conhecimento de mais este
caso. A violência contra professores é cada vez mais frequente nas escolas. Há casos
de alunos que colocaram até tachinhas na cadeira do docente. É preciso implementar
medidas socioeducativas nestes alunos", disse o diretor da Apeoesp (Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Paulo Alves Pereira. "Não
há mais limites para os alunos como havia antigamente. São diversos os casos de
agressão física e verbal nas escolas", disse o professor e conselheiro da Apeoesp em
Campinas José Pereira da Silva. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
informou nesta terça-feira, por meio de sua assessoria de imprensa, que a diretora da
escola preferiu não comentar o caso. Em dezembro do ano passado, uma professora
de matemática da rede estadual em Rolândia (PR) também foi colada na cadeira por
estudantes na sala de aula. A cola também provocou ferimentos na docente, de 35
anos. 24/10/2008 - 23h03 Os três alunos foram separados e transferidos para
diferentes escolas da cidade.

Estabelecendo relações

A indisciplina, como vimos no quadro teórico, pode estar relacionada a práticas


pedagógicas ineficazes, à falta de diálogo, a um número enorme regras desnecessárias e/ou
que não apresentam princípios legítimos, ameaças, sanções que visam, entre outras funções, o
controle e silêncio na sala de aula, tornando o ambiente da escola bastante tenso e pautado em
reguladores externos.
Diante da reportagem descrita, podemos identificar que a concepção da escola acerca
do trabalho com conflitos interpessoais visa evitá-los ou, puni-los quando não conseguem
evitar, desconsiderando que essas situações, quando vistas como pedagógicas, contribuirão
para a construção de valores do aluno, pelo respeito ao outro e a si próprio, já que esses
momentos podem ser excelentes oportunidades para a coordenação de pontos de vista e
exercício do diálogo, impedindo com isso que os alunos aprendam a construir regras através
do acordo mútuo.
Na reportagem, o professor e conselheiro da Apeoesp em Campinas, José Pereira da
Silva, argumenta que “É preciso implementar medidas socioeducativas nestes alunos”. A fala
do professor nos indica a preocupação com as punições após um ato de violência por parte de
alunos na escola, o que diverge do que pensamos ser uma maneira restaurativa de lidar com
os conflitos interpessoais. Segundo a teoria construtivista piagetiana, o emprego das sanções
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expiatórias, ou seja, as sanções que visam apenas punir os infratores, sem que haja reflexão
sobre suas intenções e consequências de seus atos tanto para si quanto para o outro, não ajuda
que o aluno desenvolva a autorregulação necessária para a construção de valores morais e
consequentemente a capacidade de agir autonomamente que o leve ao respeito mútuo. Sendo
que as consequências de tais sanções acabam sendo justamente a baixa capacidade de
habilidade social, como podemos perceber na maneira com que os adolescentes agiram no
caso descrito, chegando a colar a professora na cadeira.
Outra possível consequência de não se trabalharem os conflitos interpessoais na
escola, e da utilização das sanções expiatórias é a que o aluno considera que desta maneira
“quita o débito” e sentindo-se livre para agir novamente.
Normalmente o meio com que as escolas lidam com os conflitos converge à descrita
na reportagem: O conselho da escola, formado por pais de alunos, professores e pela
direção da escola, se reúne na sexta-feira (26) para determinar a punição aos alunos, que
pode ser a transferência para outra escola, suspensão ou advertência, porém defendemos
que uma forma mais assertiva de lidar com os conflitos na escola tem sido a prática dos
circulos restaurativos, que visa incluir e favorecer a participação dos envolvidos em um
conflito utilizando da escuta ativa auxiliando a restauração das relações sociais.
Outra fala do professor, traz à discussão a questão dos limites e da autoridade do
professor em sala de aula: “Não há mais limites para os alunos como havia antigamente”.
Segundo La Taille (2002, p. 25),

Os limites, no seu sentido restritivo, indicam fronteiras que não devem ser
ultrapassadas, ações que não podem ser realizadas ou que não podem deixar de ser
realizadas, logo, os limites remetem à restrição de liberdade que, em termos morais,
chamamos de dever.

Todas as organizações sociais tem limites e deveres. Para garantir o bom


funcionamento das sociedades, existem deveres morais a serem respeitados, por exemplo, não
se deve agredir as pessoas. Quando esses limites são transpostos é preciso notar que há
questões morais a serem discutidas. Não houve somente a desobediência à autoridade, mas
também aconteceu o desrespeito a uma regra moral, daí a ideia do professor José Pereira da
Silva de que “não há mais limites”. La Taille (idem, p.30) argumenta que uma explicação
possível é a de que “o que pode estar acontecendo, hoje, com certas crianças e jovens, é que
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eles não desenvolveram um senso moral, não aceitam limites de forma alguma, recusam
qualquer restrição de liberdade”, já que “para que alguém conquiste a autonomia moral, é
preciso que aceite pertencer a uma comunidade moral”, sendo assim o que se pode concluir é
que há um excesso de limites não morais que provocam uma confusão quanto ao que
realmente deve ser restringido.
O teórico justifica a não “aceitação” de limites por parte de muitos jovens, como
consequência de alguns fatores: a indecisão de vários adultos em definir o que é permitido ou
proibido, certo ou errado para os jovens; o silenciamento de muitas figuras de autoridade
sobre seus próprios valores, por medo de serem autoritários; a falta de contato das crianças e
jovens com os deveres, silenciados pelos adultos. Como a autonomia moral é a superação da
heteronomia, uma vez sem conseguir passar por fases da heteronomia, como o respeito
unilateral, o jovem não é capaz de chegar à moral autônoma.
O fato de os alunos não terem respeitado a, tida como natural, autoridade do professor
em sala de aula, a ponto de passar cola em sua cadeira, é o que causa a indignação e acabou
merecendo destaque por parte da mídia. Talvez, se um aluno tivesse colado um outro aluno na
cadeira, o fato não tivesse tido tamanha repercussão. No entanto, reitera-se, há uma questão
de dever moral que deve ir para além da reflexão sobre o desrespeito à autoridade, ainda que
essa questão mereça também atenção.
Para La Taille (1999), a autoridade concedida aos sujeitos que representam a escola
não é natural, mas é delegada pelos pais e pela sociedade. Todavia, tal autoridade deve ser
legitimada pelos alunos “em razão de sua função social e de suas qualidades” (p. 19). O autor
afirma ainda que “o duplo objetivo da educação é, por um lado, garantir a conquista da
autonomia e da liberdade, por seus alunos e, por outro, ensiná-los que essa autonomia e essa
liberdade não os subtraem a certas exigências do convívio social”.
Não se trata, portanto, de minimizar a gravidade da atitude dos alunos contra a
professora no caso da reportagem em questão, pois se a escola pretende viabilizar a conquista
da autonomia, é preciso trabalhar para que não apenas ações como a dos meninos se repitam,
mas levantar as motivações de tal ação, discutindo e orientando os alunos à reflexão sobre o
episódio, os valores e princípios envolvidos, e as regras sociais e morais que foram quebradas.
11126

Considerações finais

Enfim, considerando a importância da participação e da compreensão de todos os


envolvidos no processo educacional acerca da construção e da função das regras da escola e
considerando ainda que as pesquisas apresentadas apontam para uma grande dificuldade por
parte de equipes pedagógicas e professores para lidar com conflitos e indisciplina na escola e
que a maneira como as regras são concebidas, elaboradas e legitimadas na escola interferem
na qualidade das relações interpessoais e no processo de ensino e de aprendizagem,
reiteramos a necessidade de que haja um investimento na formação dos professores a fim de
que os conflitos que ocorrem no cotidiano escolar passem a ser momentos de reflexão sobre
valores, sobre convivência e aprendizagem de resolução de problemas através do diálogo,
colaborando, assim, para a construção da autonomia moral.

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