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IDEOLOGIA E

CURRÍCULO
MICHAEL APPLE

Michael W. Apple profes­


sor da Universidade de Wis­
consin faz neste livro uma
análise crítica dos currículos
escolares. Analisa suas «co­
notações ideológicas e seu
enquadramento em sua es­
trutura escolar que repro­
duz desigualdades e opera o
controle social.
Seu estudo caminha no
sentido da compreensão
mais completa do modo co­
mo as instituições produzem
e reproduzem formas de
consciência que permitem a
manutenção da ordem so­
cial, sem que os grupos do­
trasiliense

minantes tenham de recor­


rer a mecanismos declara­
dos de dominação.
«iJfeOUtlUtA * CUKltlUlltJO M-AW*I

IDEOLOGIA E
RRÎCULO
MICHAEL APPLE
Michael W . Apple
Professor de Currículo e Ensino
Universidade de Wisconsin

IDEOLOGIA
E
CURRÍCULO

1982
c e n te n á rio d e m o n te iro lo b a to
< "Pyrighl (ç) Routledge & Kegan Paul, 1979.
I tlulo original em inglês: Ideology and curriculum.

Tradução:
( urlos Eduardo Ferreira de Carvalho

( 'u / > a :

Alfredo Aquino

Revisão:
Heitor F. Costa
José E. Andrade

editora brasiliense s.a.


01223 — r. general jardim, 160
sãopaulo — brasil
índice

1. A análise da hegem onia.......................................................— 9


2. Ideologia e reprodução cultural e ec o n ô m ic a....................... 43
3. A economia e o controle na vida escolar c o tid ia n a ............... 69
4. História do currículo e o controle social ................................ 95
5. O currículo oculto e a natureza do conflito ............................ 125
6. Modelo sistêmico de administração e a ideologia do con­
trole ............. . ................................................................... 159
7. Categorias do senso comum e a política de rotulação ......... 185
8. Além da reprodução ideológica .............................................. 229
Agradecimentos

Em outras de minhas obras, mas nesta em especial, várias


pessoas colaboraram com teses e argumentos. Naturalmente, nem
todas concordarão com tudo que nela se acha escrito, mas todas
compartilham uma sua característica. Cada uma delas transmitiu-
me ensinamentos que vieram a se constituir em contribuições para
este livro — por vezes pequenas, mas em sua maior parte grandes
contribuições. Entre essas pessoas encontram-se A nn Becker, Basil
Bernstein, Roger Dale, John Eggleston, Walter Feinberg, Michael
Elude, Barry Franklin, Maxine Greene, Dwayne Huebner, Cari
Kaestle, Daniel Kallos, Nancy King, Herbert Kliebard, Alan Lock-
wood, James Macdonald, Steve Mann, Vandra Masemann, Fred
Newmann, Michael Olneck, Daniel Pekarsky, Francis Schrag, Ste-
ven Selden, Jonas Soltis, Robert Tabachnick, Gary Wehlage, Philip
Wexler, G eoff W hitty e Michael F. D. Young. Devo muito também
a David Godwin, da Routledge & Kegan Paul. Bonnie Garski e
Barbara Seffrood, como sempre, deram provas de seus méritos,
amizade e estima na datilografia dos originais, na apresentação de
sugestões e na paciência que devotaram diante de minhas recon­
siderações.
Também se fa z necessária uma palavra àqueles ligados ao
seminário sobre “Ideologia e Conhecimento Escolar” em realização
na Universidade de Wisconsin. Muito do que se acha aqui escrito fo i
po r eles influenciado. Mais do que estudantes, são agora amigos e
participantes de uma busca coletiva por uma apreciação mais abran­
gente e crítica da ação das escolas.
H MICHAEL W. APPLE

Ê costume incluir nos agradecimentos algumas palavras sobre


a dedicação da mulher e dos filhos. Receio, no entanto, que palavras
sejam insuficientes para transmitir o quanto sou reconhecido a
minha esposa, Rima, cujo apoio, crítica e orientação na história da
mulher bem como na história da ciência foram -m e de grande impor­
tância. Este livro tornou-se uma realidade graças a seu apoio e aos
membros de minha família, cujas origens e lutas políticas contra a
opressão levaram-me a buscar minha formação política na esquerda
norte-americana.
Por fim , quero dedicar este livro a meus filhos, Peter e Paul.
Que eles e nós, seus pais, sejamos fortes o bastante para capacitá-los
a perseverar em nossa responsabilidade política.

Versões anteriores de alguns desses capítulos apareceram em


outras publicações: o Capítulo 2 na Comparative Education Review,
XXI I (Oct. 1978); o Capítulo 3 na Curriculum Inquiry, VI (n. 4,
1977); o Capítulo 4 em Community Participation in Education, Carl
Grant (org.), Boston, Allyn & Bacon, 1979; o Capítulo 5 em Inter­
change, II (n. 4, 1971); o Capítulo 6 em The Journal of Educational
Research, L X V I (Sept. 1972); e o Capítulo 7 em Schools in Search
of Meaning, James B. Macdonald e Esther Zaret (orgs.), Wash­
ington, Association fo r Supervision and Curriculum Development,
1975. Devo aqui meus agradecimentos a Raymond Williams e à New
Left Review pela autorização para transcrever passagens de “Base
and Superstructure in Marxist Cultural Theory” (1973).
1

A análise da hegemonia

i
Introdução

Há alguns anos, pediram-me que escrevesse uma exposição


pessoal para um volume que reeditava alguns de meus artigos. Na­
quele trabalho, procurei apresentar os tipos de compromissos polí­
ticos e pessoais que me pareciam constituir o conjunto básico dos
princípios que orientavam meu trabalho como educador.1 Em re­
sumo, sustentei com firmeza que a educação não era um empreen­
dimento neutro, que, pela própria natureza da instituição, o edu­
cador estava implicado, de modo consciente ou não, num ato polí­
tico. Afirmei que, em últim a análise, os educadores não poderiam
separar completamente sua atividade educacional dos programas
institucionais de tendências diversas e das formas de consciência que
dominam economias industrialmente desenvolvidas como a nossa.
Desde a redação daquela exposição, as questões tomaram-se-
me ainda mais instigantes. Ao mesmo tempo, auspiciosamente ob­
tive algum progresso na conquista de um a compreensão mais pro­
funda dessa relação entre educação e estrutura econômica, das liga­
ções entre conhecimento e poder. Fundam entalm ente, o problema

(1) Michael W. Apple. “ Personal Statement” . Curriculum Theorizing: The


Reconceptualists. Berkeley, McCutchan, p. 89-93.
10 MICHAEL W. APPLE

para mim passou a se constituir cada vez mais num a questão estru­
tural. Progressivamente procurei baseá-lo num conjunto de questões
críticas que têm sua origem num a tradição de argumentação neo-
marxista, tradição essa que me parece oferecer o modelo mais irre­
futável de organizar pensamento e ação quanto a educação.
Em linhas gerais, a abordagem que julgo mais fértil procura
“explicar os reflexos manifestos e latentes ou codificados dos modos
de produção material, dos valores ideológicos, das relações de classe
e das estruturas de poder social — raciais e sexuais, bem como
político-econômicas — sobre o estado de consciência das pessoas
num a situação histórica ou sócio-econômica determ inada” .2 Reco­
nheço que há muito aí para um a única frase. Mas a problemática
subjacente é ainda mais complexa. A abordagem a que me refiro
procura representar as formas concretas em que os program as estru­
turais predominantes (e eu acrescentaria alienantes) — as formas
básicas como são organizadas e dirigidas as instituições, as pessoas e
os modos de produção, distribuição e consumo — controlam a vida
cultural. Isto inclui práticas cotidianas como as escolas, e o ensino e
os currículos que nelas se encontram .3
Considero isto de importância excepcional para se examinar
as relações entre os conhecimentos manifesto e oculto transmitidos
pelas escolas, os princípios de seleção e organização desses conhe­
cimentos e os critérios e modos de avaliação empregados para se
"aferir o êxito” no ensino. Como afirmaram Bemstein e Young,
entre outros, a estruturação do conhecimento e do símbolo em
nossas instituições educacionais está intimamente relacionada aos
princípios de controle social e cultural num a dada sociedade.4
Adiante, terei um pouco mais a dizer a respeito disso. Por ora deixe-
me afirm ar que um dos nossos problemas básicos como educa­
dores e como seres políticos está em apreender formas de com­
preensão do modo como os tipos de recursos e símbolos culturais,
selecionados e organizados pelas escolas, estão dialeticamente rela­
cionados com os tipos de consciência normativa e conceituai “exi­
gidos” por um a sociedade estratificada.

(2) Donald Lazere. “Mass Culture, Political Conscioüsness, and English Stu-
dies” . College English, XXXVIII(April 1979), p. 755.
(3) Ihid.
(4) Veja-se, por exemplo, Basil Bemstein, Class, Codes and Control. Vo­
lume 3: Towards a Theory o f Educational Transmissions. London, Routledge &
Kegan Paul, 1975, p. 158.
IDEOLOGIA E CURRlCULO 11

Outros, em especial Bowles e G intis,5 enfocaram as escolas de


um modo que acentua ò papel economico das instituições educa­
cionais. A mobilidade, a seleção, a reprodução da divisão do traba­
lho e outras conseqüências tornam-se então os focos principais para
ii análise que desenvolvem. Freqüentemente se vê como elemento
determinante a manipulação econômica consciente por parte daque­
les que se acham no poder. Embora seja certamente importante,
para se dizer o mínimo, apresenta apenas um dos lados do quadro.
A posição economicista fornece um a apreciação pouco adequada da
forma como essas conseqüências são criadas pela escola. Não pode
esclarecer completamente quais são os mecanismos de dominação e
como funcionam na atividade cotidiana da vida escolar. Além do
mais, é preciso complementar-se um a análise econômica com um a
abordagem que se apóie solidamente num a orientação cultural e
ideológica, se estamos realmente dispostos a entender as formas
complexas em que as tensões e contradições sociais, econômicas e
políticas são “ m ediadas” nas práticas concretas dos educadores no
desempenho de suas atividades nas escolas. O enfoque, então, deve­
ria estar também nas mediações ideológicas e culturais que existem
entre as condições materiais de um a sociedade classista e a formação
da consciência dos indivíduos nessa mesma sociedade. Quero, por­
tanto, examinar aqui a relação entre a dominação econômica e a
cultural, examinar o que tomamos como dado e que parece produzir
“ naturalm ente” algumas das conseqüências parcialmente descritas
por aqueles cujo enfoque se centrou na economia política da edu­
cação.

Sobre a análise da hegemonia

Acho que estamos começando a ver mais nitidamente uma


série de coisas que antes se mostravam muito obscuras. Ao apren­
dermos a entender a forma como a educação age no setor econômico
de um a sociedade para reproduzir aspectos im portantes da desigual­
dade,6 também estamos aprendendo a desem aranhar um a segunda
esfera im portante em que opera a escolarização. Pois não existe

(5) Samuel Bowles e Herbert Gintis. Schooling in Capitalist America. New


York, Basic Books, 1976.
(6) A pesquisa a este respeito é descrita com mais clareza em Caroline Hodges
Perseli. Education and Inequality. New York, Free Press, 1977.
12 MICHAEL W. APPLE

somente a propriedade econômica, parece haver também um a pro­


priedade simbólica — o capital cultural — que as escolas preservam
e distribuem. Assim, podemos agora começar a adquirir um a com­
preensão mais completa do modo como instituições de preservação e
distribuição cultural como as escolas produzem e reproduzem for­
mas de consciência que permitem a manutenção do controle social
sem que os grupos dominantes tenham de recorrer a mecanismos
declarados de dominação.7 Ampliar nossa compreensão dessa repro­
dução está no cerne desta obra.
Não se trata, é claro, de um tem a fácil de lidar. O que tentarei
fazer neste capítulo introdutório será retratar, em traços gerais,
os tipos de questões incorporados na abordagem e no plano de
análise que orientam este livro. Em m inha discussão, recorrerei com
freqüência à obra do crítico social e cultural Raymond Williams.
Embora não seja muito conhecido entre os educadores (o que é
lamentável), seu trabalho a respeito da relação entre o controle da
forma e conteúdo da cultura e o desenvolvimento das instituições e
práticas econômicas que nos cercam a todos pode nos servir de
modelo, tanto a nível pessoal quanto conceituai, em virtude do tipo
de idéias e compromissos progressistas impostos por essa abor­
dagem.
Há três aspectos do plano de análise que precisam ser arti­
culados desde já: (1) a escola como instituição; (2) as formas de
conhecimento; e (3) o próprio educador ou educadora. Cada um
precisa ser situado dentro do sistema de relações mais vasto de que é
parte integrante. A palavra-chave aqui, evidentemente, é situado.
Da mesma forma que os analistas econômicos, como Bowles e Gin-
tis, quero dizer com isso que, tanto quanto possível, precisamos
recolocar o conhecimento que transmitimos, as relações sociais que
dominam as salas de aula, a escola enquanto um mecanismo de
preservação e distribuição cultural e econômica e, finalmente, a nós
próprios, enquanto pessoas que trabalham nessas instituições, den­
tro do contexto em que tudo e todos existem. Todos esses elementos
estão sujeitos a um a interpretação de seus respectivos lugares num a
sociedade complexa, estratificada e desigual. Devemos, no entanto,
ser cautelosos para não fazer um uso impróprio dessa tradição de
interpretação. Muito freqüentemente esquecemos a sutileza neces-

(7) Roger Dale et at. (eds.). Schooling and Capitalism: A Sociological Reader.
London, Routledge & Kegan Paul, 1976, p. 3.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 13

sària para começar a desembaraçar essas relações. Situamos a insti­


tuição e a nós próprios de um modo excessivamente determinista.
Dizemos que há um a correspondência total e exata entre economia e
consciência, a base econômica determinando “ automaticamente” a
superestrutura. Isto é muito fácil de dizer, infelizmente, e é por
demais mecanicista,8 pois esquece que existe, de fato, um a relação
dialética entre cultura e economia. Também pressupõe a idéia de
um a manipulação consciente da escolarização por um pequeno
grupo de pessoas que detêm o poder. Em bora isso tenha sido e ainda
seja algumas vezes assim — algo que de fato documentarei no
Capítulo 4, quando tratar de algumas das origens históricas da área
do currículo —, o problema é bem mais complexo. Portanto, para
seguir adiante, é preciso antes esclarecer o que se entende pela
noção de que as relações estruturais “ determ inam ” esses três aspec­
tos das escolas. Como demonstrarei, um a das chaves para a com­
preensão disso é o conceito de hegemonia.
É importante observar que existem duas tradições no emprego
do conceito de “ determ inação” . Por um lado, a noção de que pensa­
mento e cultura são determinados pela estrutura social e econômica
tem sido utilizada com a finalidade de implicar o que se disse logo
acima, um a correspondência total e exata entre a consciência social
e, digamos, o modo de produção. Nossos conceitos sociais são, aqui,
totalmente prefigurados segundo um conjunto preexistente de con­
dições econômicas que controlam a atividade cultural, incluindo
tudo que existe nas escolas. Por outro lado, existe um a posição um
tanto mais flexível que considera a determinação como um com­
plexo de relações que, no fim, são economicamente estabelecidas,
que exerce pressões e impõe limites sobre a prática cultural, inclu­
sive as escolas.9 Desse modo, a esfera cultural não é um “ mero
reflexo” de práticas econômicas. Pelo contrário, a influência, o
“reflexo” ou determinação, é mediada em alto grau pelas formas de
ação humana. É mediada pelas atividades, contradições e relações
específicas entre homens e mulheres concretos, como nós mesmos —
à medida que se ocupam com sua vida diária nas instituições que
organizam essa mesma vida. O controle das escolas, do conheci-

(8) Veja-se a análise do conceito de Althusser de “ superdeterminação” em


Miriam Glucksmann. Structuralist Analysis in Contemporary Social Thought. Lon­
don, Routledge & Kegan Paul, 1975.
(9) Raymond Williams. “ Base and Superstructure in Marxist Cultural Theo­
ry” . Schooling and Capitalism. Roger Daleer al. (eds.), op. cit., p. 202.
14 MICHAEL W. APPLE

mento e da vida diária pode ser, e é, mais sutil, pois compreende até
mesmo circunstâncias aparentem ente inconseqüentes. O controle é
investido nos princípios constitutivos, códigos e, especialmente, na
consciência e nas práticas do senso comum subjacentes a nossa vida,
assim como pela divisão e manipulação econômica diretas.
Raymond Williams, ao discutir a hegemonia, conceito mais
completamente desenvolvido na obra de Antonio Gramsci, fornece
um excelente resumo desses aspectos.10

A grande contribuição de Gramsci está em ter dado importância à


hegemonia e também em tê-la compreendido a uma profundidade
que julgo rara. A hegemonia pressupõe a existência de alguma coisa
que é verdadeiramente total, que não é apenas secundária, ou
superestrutural, como o fraco sentido de ideologia, mas sim que é
vivenciada tão profundamente, que satura a um tal ponto a sociedade
e que, conforme propõe Gramsci, constitui mesmo o limite do senso
comum para a maioria das pessoas que se acham sob seu domínio,
que acaba por corresponder à realidade da experiência social de
modo muito mais nítido do que quaisquer outras noções derivadas da
fórmula de base e superestrutura. Pois se a ideologia fosse meramente
uma noção abstrata imposta, se nossas idéias e suposições, e hábitos
sociais políticos e culturais, fossem apenas o resultado de uma mani­
pulação específica, de um tipo de treinamento aberto que pudesse ser
simplesmente encerrado ou destruído, então seria muito mais fácil
agir e mudar a sociedade do que vem sendo na prática. Essa noção de
hegemonia como que saturando profundamente a consciência de uma
sociedade mostra-se fundamental. (...) Ela ressalta os fatos da domi­
nação.

A idéia central engastada neste trecho é a forma como a


hegemonia atua para “saturar” nossa própria consciência, de m a­
neira que o m undo educacional, econômico e social que vemos e com
que interagimos, e as interpretações fundadas no senso comum que
a ele atribuímos, tornam-rse o mundo tout court, o único mundo.
Portanto, a hegemonia não se refere a um amontoado de signifi­
cados que residem em nível abstrato em algum canto no “ topo de
nossa mente” . Refere-se, antes, a um conjunto organizado de signi­
ficados e práticas, ao sistema central, efetivo e dominante de signi­
ficados, valores e ações que são vividos. Precisa ser compreendida a

(10) Ibid., p. 204-5.


IDEOLOGIA E CURRÍCULO 15

um nível diferente da “ mera opinião” ou “ manipulação” . Williams


deixa isso claro em seus argumentos referentes à relação entre a
hegemonia e o controle dos recursos culturais. Ao mesmo tempo,
mostra como as instituições educacionais podem atuar nesse pro­
cesso de saturação. Gostaria de citar aqui um de seus trechos mais
longos, um que, acredito, começa a apreender a complexidade e
que ultrapassa a idéia de que a consciência não é senãò um mero
reflexo da estrutura econômica, completamente determinada por
um a classe que conscientemente a impõe a um a outra. Ao mesmo
tempo, o trecho apanha o ponto fulcral do modo como o conjunto de
significados e práticas ainda leva ao controle econômico e cultural
desigual, e dele provém .11

[Hegemonia 1 é todo um corpo de práticas e expectativas; nossas


tarefas, nossa compreensão comum do homem e de seu mundo. É um
conjunto de significados e valores que, à medida que são experien-
ciados como práticas, apresentam-se como se confirmando recipro­
camente. Constitui, portanto, um sentido de realidade para a maioria
das pessoas na sociedade, um sentido do absoluto, porque experien-
ciados como uma realidade fora da qual é muito difícil para a maioria
dos membros de uma sociedade instalar-se em grande parte das áreas
de suas vidas. Mas não é, exceto na operação de um elemento de
análise abstrata, um sistema estático. Pelo contrário, só podemos
compreender uma cultura efetiva e dominante se entendemos o pro­
cesso social real de que ela depende: refiro-me ao processo de incor­
poração. Os modos de incorporação são de grande significado, e
incidentalmente em nosso tipo de sociedade apresentam considerável
importância econômica. As instituições educacionais são em geral os
principais agentes de transmissão de uma cultura dominante efetiva,
e esta é agora uma importante atividade econômica bem como cul­
tural; na verdade, são as duas simultaneamente. Além do mais, a um
nível filosófico, ao verdadeiro nível da teoria e ao nível da história das
diversas práticas, há um processo que chamo tradição seletiva: o
qual, nos termos de uma cultura dominante efetiva, é sempre dissi­
mulado como “a tradição”, o passado significativo. Mas a questão é
sempre a seletividade, a forma em que, de todo um campo possível de
passado e presente, escolhem-se como importantes determinados sig­
nificados e práticas, ao passo que outros são negligenciados e excluí­
dos. De modo ainda mais decisivo, alguns desses significados são
reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que apóiam ou ao

(11) Ibid., p. 205.


16 MICHAEL W. APPLE

menos não contradizem outros elementos dentro da cultura domi­


nante efetiva.
O processo de educação; os processos de uma formação social muito
mais ampla em instituições como a família; as definições e a organi­
zação prática do trabalho; a tradição seletiva a um nível intelectual e
teórico: todas essas forças estão implicadas num contínuo fazer e
refazer de uma cultura dominante efetiva, e delas, enquanto expe-
rienciadas, enquanto integradas em nossa vida, depende a realidade.
Se o que aprendemos fosse apenas uma ideologia imposta, ou se fosse
apenas os significados e práticas isoláveis da classe dominante, ou de
um setor da classe dominante, que é imposta a outras, ocupando
somento o topo de nossa mente, então seria — e com isto nos
daríamos por satisfeitos — uma coisa bem mais fácil de derrocar.

Observe-se o que afirma Williams nesta passagem sobre as


instituições educacionais. É semelhante à questão que formulei a
respeito da possível relação entre a escola como instituição e a repro­
dução da desigualdade. As escolas, segundo os sociólogos britânicos
do currículo, não apenas “preparam as pessoas” ; elas também
“preparam o conhecimento” .12 Desempenham a função de agentes
da hegemonia cultural e ideológica, de agentes da tradição seletiva e
da “ incorporação” cultural, segundo Williams. Mas, como insti­
tuições, não são apenas um dos meios principais de distribuição de
um a cultura dominante efetiva; entre outras instituições, e aqui
algumas das interpretações econômicas se mostram bastante fortes,
elas também ajudam a formar pessoas (com os valores e significados
adequados) que não veem nenhum a outra possibilidade séria para o
conjunto econômico e cultural agora existente. Isto faz dos conceitos
de ideologia, hegemonia e tradição seletiva elementos decisivos no
fundamento da análise política que se realiza nesta obra.
Por exemplo, como discuto mais adiante, as questões que cer­
cam o conhecimento que é realmente transmitido nas escolas, que
cercam o que se considera como o conhecimento socialmente legí­
timo, não são de pequena importância para a tom ada de consciência
da posição cultural, econômica e política da escola. Aqui, a ação
básica implica problematizar as formas de currículo encontradas
nas escolas, de m aneira que se possa desmascarar seu conteúdo

(12) Veja-se, por exemplo, Michael F. D. Young (ed.). Knowledge and Con­
trat. London, Collier-Macmillan, 1971.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 17

ideológico latente. É preciso levar muito a sério as questões acerca


da tradição seletiva, como as seguintes: A quem pertence esse conhe­
cimento? Quem o selecionou? Por que é organizado e transmitido
dessa forma? E para esse grupo determinado? O mero ato de for­
m ular essas questões não basta, no entanto. É tam bém necessário
que se procure vincular essas investigações a concepções diversas de
poder social e econômico e de ideologias. Desse modo, pode ter
início um a apreciação mais concreta das ligações entre o poder
econômico e político e o conhecimento que é tornado acessível
(e o que não é tornado acessível) aos estudantes.13
A tendência, digamos, nos estudos sociais, por um currículo
“voltado para a formação” vem a se constituir num exemplo. Ensi­
namos “pesquisa social” como um conjunto de “ aptidões” , como
um a série de métodos que possibilitarão que o estudante “ aprenda
como inquirir a si próprio” . Em bora este certam ente seja melhor
que os modelos de ensino mais automáticos, baseados na memo­
rização, que prevaleceram nas décadas passadas, pode ao mesmo
tempo despolitizar o estudo da vida social. Pedimos a nossos estu­
dantes para verem o conhecimento como um a construção social,
para verem como os sociólogos, historiadores, antropologos e outros
constroem suas teorias e conceitos. Entretanto, assim fazendo, não
os capacitamos a indagar por que existe um a determ inada forma de
coletividade social, como ela é m antida e quem dela se beneficia.
Existe no desenvolvimento do currículo e no ensino alguma
coisa como um a deficiência nervosa. Estamos dispostos a preparar
os estudantes para que admitam “ alguma responsabilidade pelo seu
próprio aprendizado” . É de interesse aqui, mas não esta em dis­
cussão, se esses objetivos são porventura realmente alcançados, com
base no que Sarason14 chamou de regularidades de comportamento
da instituição. De igual im portância é o fato de aquilo sobre o que se
“ reflete criticamente” ser em geral vazio, a-histórico, parcial e pos­
suidor de carga ideológica. Portanto, como irei dem onstrar no Capí­
tulo 5, por exemplo, a estrutura constitutiva da maioria dos currí­
culos escolares acha-se centrada em torno do consenso. São poucas
as tentativas sérias de tratar do conflito (de classes, científico, ou
outros). Pelo contrário, “ investiga-se” um a ideologia do consenso

(13) Michael W. Apple. “ Power and School Knowledge". The Review o f E du­
cation III (January-February 1977), 26-49, e capítulos 2 e 3 a seguir.
(14) Seymour Sarason. The Culture o f the School and the Problem o f Change.
Boston, Allyn & Bacon, 1971.
IN MICHAEL W. APPLE

que guarda pouca semelhança com os vínculos e contradições com­


plexas que cercam o controle e a organização da vida social. Por
isso, a tradição seletiva prescreve que não ensinemos, ou irá sele-
Iivamente reinterpretar (e, portanto, irá em seguida ignorar) a histó­
ria da classe operária ou a história da mulher. No entanto, ensi­
namos a história das elites e a história militar. Qualquer que seja a
economia ensinada, ela será dominada por um a perspectiva que se
origina da Federação Nacional das Indústrias, ou de algo que o
valha. E é difícil encontrar-se informações honestas a respeito de
países que se organizaram quanto a princípios sociais alternativos.
Naturalmente, estes são apenas uns poucos exemplos do papel da
escola na criação de um falso consenso.

Neutralidade e justiça

O próprio fato de que tendemos a reduzir nossa compreensão


das forças econômicas e sociais, que se encontram na base de nossa
sociedade classista, a um conjunto de habilidades, às técnicas do
“como fazer” , reflete um a questão muito mais ampla. Deixe-me
antecipar algumas das teses que irei desenvolver mais pormenori­
zadamente nos Capítulos 6, 7 e 8. Essa redução da compreensão
confirma a tecnização da vida em economias industrialmente desen­
volvidas. Nos termos de Habermas, formas utilitário-racionais, ou
instrumentais, de raciocínio e ação substituem os sistemas simbó­
licos de ação. Os debates políticos e econômicos, e até mesmo edu­
cacionais, entre pessoas reais em seu cotidiano, são substituídos por
considerações de eficiência, de habilidades técnicas. A “ responsa­
bilidade” através da análise de comportamento, modelos sistêmicos
de administração, e assim por diante, tornam-se representações
hegemônicas e ideológicas. E, ao mesmo tempo, as considerações da
justiça da vida social são progressivamente despolitizadas e trans­
formadas em enigmas supostamente neutros que podem ser resol­
vidos pelo acúmulo de fatos empíricos neutros,15 que, quando reali-
mentados em instituições neutras como as escolas, podem ser diri­
gidos pela instrumentação neutra dos educadores.

(15) O relato de Trent Schroyer desse processo é útil aqui. Veja-se The Cri­
tique o f Domination. New York, George Braziller, 1973.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 19

A reivindicação de neutralidade é importante nessa repre­


sentação, não apenas na vida social em geral, mas na educação
em particular. Presumimos que nossa atividade seja neutra, que,
por não tomarmos um a posição política, estejamos sendo objetivos.
Isto é significativamente adulterado, contudo, de duas formas. Em
primeiro lugar, existe um acúmulo crescente de provas de que a
instituição de ensino não é uma empresa neutra em termos de seus
resultados econômicos. Conforme deverei observar, como Basii
Bernstein, Pierre Bourdieu e outros procuraram expor, e como ficou
demonstrado com as citações extraídas da obra de Raymond Wil­
liams, neste capítulo introdutório, embora as escolas possam estar
de fato a serviço dos interesses de muitos, e isso não deveria ser
negado, ao mesmo tempo, no entanto, empiricamente elas também
parecem fazer as vezes de poderosos agentes da reprodução econô­
mica e cultural das relações de classe num a sociedade estratificada
como é a nossa. Essa é um a questão com muitas implicações; mas,
como deverá ser discutido na próxima seção deste capítulo e no
Capítulo 2, aum enta de m aneira impressionante a literatura sobre o
papel desempenhado pelas escolas na estratificação econômica e
cultural.
Deixe-me agora observar, na verdade reiterar, a segunda ra­
zão por que um a reivindicação de neutralidade tem pouco funda­
mento. Essa reivindicação ignora o fato de que o conhecimento que
agora se introduz nas escolas já é um a escolha de um universo muito
mais vasto de conhecimento e princípios sociais possíveis. É uma
forma de capital cultural que provém de alguma parte, e em geral
reflete as perspectivas e crenças de poderosos segmentos de nossa
coletividade social. Já na sua produção e propagação como merca­
doria econômica e pública — na forma de livros, filmes, materiais, e
assim por diante — é continuamente filtrado através de vínculos
ideológicos e econômicos. Valores sociais e econômicos, portanto, já
estão engastados no projeto das instituições em que trabalham os, no
“corpus formal do conhecimento escolar” que preservamos em
nossos currículos, nas nossas maneiras de ensinar, e em nossos
princípios, padrões e formas de avaliação. Uma vez que esses valores
agora agem através de nós, quase sempre inconscientemente, a
questão não está em como se m anter acima da escolha. Está, antes,
em quais são os valores que se devem, fundamentalmente, escolher.
Mas isto põe à frente um outro aspecto do problema — aque­
les valores firmemente arraigados que já residem não no topo, mas
bem no “ fundo” de nossa mente. Estão freqüentemente em dis­
20 MICHAEL W. APPLE

cussão as próprias categorias que utilizamos para avaliar nossa


responsabilidade social, as regras do senso comum ou constitutivas
que empregamos para avaliar as práticas sociais predominantes em
nossa sociedade. Entre as mais básicas dessas categorias incluem-se
tanto a nossa visão de “ciência” como, com igual importância, nosso
compromisso com o indivíduo abstrato. O caso é que nosso sentido
comunitário está desgastado. Encontramos formas de transform ar o
indivíduo concreto em um a abstração e, ao mesmo tempo, sepa­
ramos o indivíduo dos movimentos sociais mais amplos que pode­
riam conferir significado às carências, necessidades e visões “indi­
viduais” de justiça.16 Isto é fortemente sustentado pela noção de que
a pesquisa do currículo é uma “ atividade científica neutra” que não
nos prende aos outros de formas estruturais importantes.
Nossa incapacidade de pensar a não ser em termos indivi­
dualistas abstratos é mais um a vez habilmente expressa por Ray-
mond Williams, em sua demonstração de que a dominância do
indivíduo burguês distorce a compreensão de nossas verdadeiras
relações sociais com os outros e de nossa dependência para eles.17

Lembro-me do que me disse um mineiro sobre alguém de quem


comentávamos: “Ele é o tipo de homem que se levanta pela manhã,
aperta um botão e fica à espera de que surja alguma luz” . Todos nós
estamos, até certo ponto, nessa posição, na medida em que nossos
modos de pensar habitualmente suprimem grandes áreas de nossas
relações reais, inclusive nossa dependência real dos outros. O que se
pensa é em meu dinheiro, minha luz, nesses termos ingênuos, porque
partes de nossa própria idéia de sociedade estão completamente des­
gastadas. Dificilmente poderemos ter alguma concepção, em nosso
sistema atual, do custeio de nossas finalidades sociais a partir do
produto social, um método que nos mostraria incessantemente, em
termos reais, o que é e o que faz nossa sociedade. Numa sociedade
cujos produtos dependem quase que inteiramente de cooperação
complexa e constante e de organização social, esperamos consumir
como se fôssemos indivíduos separados, à nossa moda. Somos então
forçados ao tolo paralelo de consumo individual e impostos sociais —

(16) Parte do que se segue aqui apresenta-se de forma ampliada em Michael


W. Apple. “ Humanism and the Politics of Educational Argumentation” . Humanistic
I duration: Visions and Realities. Richard Weller (ed.). Berkeley, McCutchan, 1977,
p. 315-30.
(17) Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto & Windus,
1961, p. 298-300.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 21

o primeiro desejável e que se quer ampliar; estes lamentavelmente


necessários e que se quer ver limitados. Desse tipo de pensamento,
segue-se inevitavelmente o desequilíbrio físico. A menos que alcan­
cemos algum sentido realista de comunidade, nosso padrão de vida
continuará a ser distorcido. (...) Poderiam então ser adequadamente
discutidas questões não apenas do equilíbrio na distribuição de obras
e recursos, mas também dos efeitos de determinados tipos de tra­
balho, tanto sobre os usuários quanto sobre os produtores. (...) Ê
exatamente a falta de um sentido adequado de comunidade que está
nos prejudicando.

Encontram-se nesta passagem muitas das idéias de Williams,


embora entre elas se achem também as seguintes. O interesse pelo
indivíduo abstrato em nossa vida social, econômica e educacional é
exatamente este — o de que não passa de um a abstração. Não situa
a vida do indivíduo (e a nós próprios como educadores), enquanto
um ser econômico e social, no contexto das relações estruturais desi­
guais que produzem o conforto desfrutado pelo indivíduo. Pode
atuar como um a pressuposição ideológica que nos impede de esta­
belecer qualquer sentido genuíno de relacionamento com aqueles
que produzem nosso conforto, tom ando desse modo ainda mais
difícil superar a atrofia do compromisso coletivo. Portanto, a ênfase
superacentuada no indivíduo em nossa vida educacional, emocional
e social é idealmente adequada para m anter um a ética manipulativa
do consumo e o retraim ento da sensibilidade política e econômica.
Os efeitos latentes de se fazer do indivíduo um absoluto e de se
definir nosso papel como técnicos neutros a serviço da melhoria, por
conseguinte, tom am quase qué impossível que os educadores e
outros desenvolvam um a análise aguda da injustiça social e econô­
mica. Tornam seus currículos e práticas de ensino relativamente
impotentes para explorar a natureza da ordem social de que fazem
parte.
Um elemento excepcionalmente im portante neste tipo de
argumento é a idéia de relação. O que tenho em vista é o que poderia
ser melhor denominado “ análise relacional” . Implica ver a atividade
social — em que a educação entra como um a forma particular dessa
atividade — vinculada ao programa mais amplo das instituições que
distribuem os recursos, de modo que alguns grupos e classes sociais
têm sido historicamente favorecidos, ao passo que outros têm rece­
bido tratam ento menos adequado. Fundam entalm ente, a ação so­
cial, os acontecimentos e artefatos culturais e educacionais (o que
22 MICHAEL W. APPLE

Bourdieu cham aria de capital cultural) são “ definidos” não por suas
qualidades imediatamente evidentes. Em lugar dessa abordagem
mais positivista, atribuem-se racionalmente significados às coisas,
por meio de seus vínculos e ligações complexas com a forma como
um a sociedade é organizada e controlada. As próprias relações são
as características definidoras.18 Desse modo, para compreender,
digamos, as noções de ciência e de indivíduo, como são particular­
mente empregadas em educação, precisamos vê-las como categorias
basicamente ideológicas e econômicas, essenciais tanto à produção
de agentes p ara ocupar os papéis econômicos existentes quanto à
produção de tendências e significados, nesses agentes, que “farão”
com que aceitem esses papéis alienantes sem muito questiona­
m ento.19 Passam a ser assim aspectos da hegemonia.
Para compreender essas relações hegemônicas, cumpre lem­
b rar algo sustentado por Gramsci — de que existem duas condições
necessárias para a hegemonia ideológica. Não se trata apenas de que
nosso sistema econômico “produz” categorias e estruturas de senti­
mento que saturam nossa vida cotidiana. Ligado a isso, deve haver
um grupo de “ intelectuais” que empregam e conferem legitimidade
às categorias, que fazem com que as formas ideológicas pareçam
n eutras.20 Assim, um exame das categorias e dos procedimentos
empregados por “ intelectuais” como os educadores precisa ser um
dos primeiros enfoques de nossa investigação.
Por enquanto tenho visto de modo bastante geral o que julgo
pertencer muito mais à realidade que se acha por trás das escolas
enquaijto instituições, as formas de conhecimento que seletivamente
preservamos, reinterpretamos e distribuímos, algumas das catego­
rias que utilizamos para refletir sobre isso e o papel do educador
como participante “neutro” nos resultados em grande escala da
escolarização. Ainda restam, no entanto, algumas poucas observa­
ções finais a serem feitas quanto a este último aspecto do plano de
análise e abordagem que estou apresentando aqui — o próprio edu­
cador como ser político. Esta é um a questão muito pessoal, que é de
longe a mais difícil. Estou bastante cônscio da dificuldade, em ver-

(18) Apple. “Power and School Knowledge” . Op. cit.


(19) Ian Hextall e Madan Sarup. “ School Knowledge, Evaluation and Alie­
nation”. Society, State and Schooling. Michael Young e Geoff Whitty (eds.). Guil­
ford, Inglaterra, Falmer Press, 1977, p. 151-71.
(20) Carl Boggs. Gramsci’s Marxism. London, Pluto Press, 1976, p. 9; e
Persell, op. cit. , p. 7-11.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 23

dado da tortura, que se deve enfrentar ao responder ou até ao


lormular a questão de “ Onde eu me situo?” . Esse tipo de questão já
pressupõe ao menos um a percepção inicial das respostas às minhas
<Mitras perguntas quanto à relação entre capital cultural e controle
econômico e social. Exige um a análise de quais são os grupos e
( lasses sociais e econômicos que parecem ser favorecidos pela forma
como são organizadas e controladas as instituições em nossa socie­
dade, e de quais os grupos que não o são.21
O fato de ser tão difícil lidar com essa questão, o sentimento
de desamparo que se apodera de nós ao fazê-la (o que eu, como
educador, posso fazer agora?), demonstra a im portância absoluta
das proposições de Gramsci e de Williams sobre a natureza da
hegemonia. Submeter nossas atividades diárias enquanto educa­
dores a exame político e econômico rigoroso, ver a escola como parte
de um sistema de mecanismos de reprodução cultural e econômica,
não consiste apenas em desafiar as práticas educacionais dom inan­
tes. Se fosse “ apenas” isso, então poderíamos talvez m udar essas
práticas por meio do treinamento de professores, de melhores currí­
culos e assim por diante. Essas práticas podem precisar de m udan­
ças, é claro, e ainda há lugar para essas reformas gradativas, algu­
mas das quais são propostas mais à frente neste livro. Mas os tipos
de exame minucioso crítico que venho propondo desafiam todo um
conjunto de valores e ações que se acham “ fora” da instituição de
ensino. E a questão é exatamente esta, pois, se encarada seriamente,
pode levar a um conjunto de compromissos que podem ser total­
mente diferentes daqueles que muitos de nós aceitamos com base no
senso comum. Exige um a articulação progressiva de um a ordem
social e um compromisso com essa ordem, que tem em seus funda­
mentos básicos, não a acumulação de artigos, lucros e títulos acredi-
tícios, mas a maximização da igualdade econômica, social e educa­
cional.
Tudo isso está centrado em torno de um a teoria de justiça
social. Eu próprio me acho inclinado a defender algo que se encon­
tra à esquerda de um a posição rawlsiana. Pois, para que um a socie­
dade seja justa, é preciso que ela, como um a questão tanto de prin­
cípio quanto de ação, contribua para favorecer os menos favore-

(21) Veja-se Paul Baran e Paul Sweezy. Monopoly Capital. New York, Mon­
thly Review Press, 1968. Veja-se também a análise exemplar em Vicente Navarro.
Medicine Under Capitalism. New York, Neale Watson Academic Publications, 1976.
24 MICHAEL W. APPLE

eidos.2223 Isto é, suas relações estruturais devem ser tais, que equa­
lizziti não apenas o acesso às instituições culturais, sociais e princi­
palmente econômicas, mas tam bém o controle real dessas institui­
ções.21 Agora, isto exigiria mais do que o mero reparo da máquina
social, pois implica um a reestruturação das instituições e um rea­
juste fundamental do contrato social que supostamente nos une.
Essa teoria de justiça social que se encontra por trás de um pro­
grama como esse não pode originar-se apenas num a ideologia pes­
soal. Fundamenta-se também em um a série de exigências empíricas.
Por exemplo, a defasagem entre os ricos e os pobres em nações
industrialmente desenvolvidas. A distribuição e o controle de bens e
serviços de saúde, nutricionais e educacionais é basicamente desi­
gual nessas mesmas nações industrializadas.24 O poder econômico
e cultural está se centralizando cada vez mais em grandes corpo­
rações, que são menos sensíveis às necessidades sociais que aos
lucros. Após algumas conquistas sociais, o relativo progresso das
mulheres e de muitos grupos minoritários ou se estagna ou se atrofia
lentamente. Em virtude dessas e de outras razões, estou cada vez
mais convencido de que essas condições advêm “naturalm ente” de
um a determinada ordem social. Conforme demonstrarei nesta obra,
nossos dilemas educacionais, as realizações desiguais, os lucros desi­
guais, a tradição e a incorporação seletiva, também são natural­
mente “ advindos” desse program a social. Pode ser que essas institui­
ções sejam organizadas e controladas de m aneira a exigir mudanças
em grande escala em suas relações, caso devamos atingir algum
progresso na eliminação de quaisquer dessas condições.
Percebo que isto é muito controverso, para se dizer o mínimo.
Tampouco espero que todos aceitem tudo que venho escrevendo
aqui. No entanto, não cheguei primeiro à proposição de que nossas
questões educacionais são em sua origem éticas, econômicas e polí­
ticas, para então procurar comprovação disso. Pelo contrário, e isto

(22) John Rawls. A Theory o f Justice. Cambridge, Mass., Harvard University,


Press, 1971.
(23) Para uma discussão interessante do debate em educação sobre o prin­
cípio social de igualdade de oportunidade, veja-se Walter Feinberg. Reason and Rhe­
toric: The Intellectual Foundations o f Twentieth Century Liberal Educational Policy.
New York, John Wiley, 1975. Vejam-se também os artigos sobre o controle pelos
trabalhadores do local de trabalho publicados em Working Papers for a New Society
há alguns anos.
(24) Navarro, op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 25

é importante, fui convencido pelas provas a que todos temos acesso,


se estamos realmente dispostos a pesquisar e a questionar, se pode­
mos aprender a analisar a hegemonia. De fato, isto faz parte do
plano de análise que gostaria de explicar aqui. Uma coisa deveria
ficar clara: esse plano também requer um a boa dpse do antigo tra­
balho “ intelectual” , árduo e direto. Exige mais que um a quantidade
módica de leitura, estudo e debate honesto em áreas em que muitos
de nós temos apenas um a formação limitada. Estamos desacostu­
mados a ver a atividade educacional de um ponto de vista ético,
político e econômico, para não se dizer crítico, haja vista a natureza
verdadeiramente difícil (e o consumo de tempo e o desgaste emocio­
nal necessários) de ser um educador decente. Essa tarefa é dificul­
tada ainda mais pelo que poderia se cham ar de política de distri­
buição do conhecimento. Ou seja, os tipos de instrumentos e mode­
los que relacionei não são prontamente distribuídos pelas institui­
ções de preservação e distribuição cultural como as escolas e os
meios de comunicação de massa. Essas tradições críticas são elas
próprias vítimas da tradição seletiva. Se estão corretas minhas pro­
posições, aqui e em outras passagens da obra, a respeito da natureza
do conhecimento que se introduz nas escolas, isto pode ser lamen­
tável, mas é de esperar. Contudo, se não aceitamos a responsabi­
lidade de dominar essas tradições, de reaprendê-las, ignoramos o
fato de que os tipos de programas institucionais e culturais que nos
controlam foram construídos por nós. Também eles podem ser
reconstruídos.
Até o momento propus que qualquer apreciação séria do papel
desempenhado pela educação num a sociedade complexa deve apre­
sentar, como parte principal de seu plano, pelo menos três elemen­
tos. É preciso que ela situe o conhecimento, a escola e o educador
nas reais condições sociais que “ determ inam ” esses elementos. Pro­
ponho, ainda, que esse ato de situar deva ser orientado por uma
visão de justiça social e econômica, caso haja de ser significativo.
Por isso, sustento que a posição do educador não é neutra nem nas
formas de capital cultural distribuído e empregado pelas escolas
nem nos resultados econômicos e culturais do próprio empreendi­
mento de escolarização. Essas questões encontram melhor análise
através dos conceitos de hegemonia, ideologia e tradição seletiva,
e só podem ser entendidas plenamente por meio de um a análise
relacional.
Como foi mencionado, no entanto, existe um a tradição crítica
da educação que pretende levar a sério esse plano de análise rela-
26 MICHAEL W. APPLE

cional. Vejamos agora em mais pormenores essa tradição e o objeto


de estudo desta obra.

II

A tradição crítica e o ato de “situar”

Em seu prefácio à tradução inglesa da obra clássica de Karl


Mannheim, Ideology and Utopia, Louis W irth afirma: “ As coisas
mais importantes (...) que podemos saber a respeito de um homem é
o que ele admite como certo, e os fatos mais elementares e impor­
tantes a respeito de um a sociedade são os que raram ente encontram
discussão e que em geral são vistos como estabelecidos” .25 Ou seja,
para se adquirir discernimento, compreensão, da atividade desen­
volvida por homens e mulheres em um período histórico específico,
é preciso que se parta do questionamento daquilo que lhes é inques­
tionável. Como diria Marx, não se aceitam as ilusões de um a época,
as apreciações baseadas no senso comum das atividades intelectuais
e programáticas (embora sejam sem dúvida importantes); o inves­
tigador deve, antes, situar essas atividades em um campo de ação
mais amplo de conflito econômico, ideológico e social.
Como observei, a educação enquanto um campo de estudo não
possui um a forte tradição desse ato de “ situar” . De fato, caso fosse
preciso apontar um a das áreas mais ignoradas pela tradição crítica
em educação, ela seria exatamente esta, o estudo crítico da relação
entre as ideologias e a teoria e a prática educacional, o estudo da
extensão das suposições aparentemente fundadas no senso comum
que dirigem nosso campo com um a inclinação demasiadamente téc­
nica. Esse estudo iria revelar os interesses e compromissos políticos,
sociais, éticos e econômicos que são aceitos como “ a forma como a
vida realmente é” em nossas atividades cotidianas como educadores.
Os estudos das interligações entre ideologia e currículo e entre
ideologia e retórica educacional apresentam im portantes implica­
ções para a área do currículo e para a teoria e a política educacional
em geral. Pois, como demonstrarei ao longo desta obra, precisamos
examinar criticamente não apenas “como um estudante adquire

(25) Louis Wirth. “Preface" a Karl Mannheim. Ideology and Utopia. New
York, Harcourt, Brace & World, 1936, p. xxii-xxiii.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 27

mais conhecimento” (a questão dominante em nosso campo com


um a inclinação pela eficiência), mas “por que e como determinados
aspectos da cultura coletiva são apresentados na escola como conhe­
cimento objetivo, factual” . Como, concretamente, pode o conheci­
mento oficial representar configurações ideológicas dos interesses
dominantes num a sociedade? Como as escolas podem legitimar
esses padrões limitados e parciais do saber como verdades não-ques-
tionadas? Épreciso que sejam formuladas ao menos essas questões a
respeito de três áreas da vida escolar: (1 ) como as regularidades
diárias básicas das escolas contribuem para o aprendizado pelos
estudantes dessas ideologias; (2) como as form as específicas do
conhecimento curricular, tanto no passado como no presente, refle­
tem essas configurações; e (3) como essas ideologias se refletem nas
perspectivas fundam entais empregadas pelos educadores para orde­
nar, guiar e conferir significado à sua própria atividade.
A prim eira dessas questões se refere ao currículo oculto nas
escolas — a distribuição tácita de normas, valores e tendências que
se realiza simplesmente pelo fato de os alunos viverem as expec­
tativas e rotinas institucionais das escolas dia após dia durante anos.
A segunda questão nos pede para problem atizar o próprio conhe­
cimento educacional, para dar mais atenção ao “conteúdo” do
currículo, para indagar de onde provém e a quem pertence esse
conhecimento, a que grupos sociais apóia, e assim por diante. A
questão final procura tornar os educadores mais conscientes dos
compromissos ideológicos e epistemológicos que tacitamente acei­
tam e promovem com a utilização de determinados modelos —
digamos, um positivismo vulgar, modelos sistêmicos de adminis­
tração, funcionalismo estrutural, um processo de rotulação social,
ou de modificação do comportamento — em seu próprio trabalho.
Sem um a compreensão desses aspectos da vida escolar, sem uma
compreensão que os vinculasse seriamente à distribuição, qualidade
e controle de trabalho, poder, ideologia e conhecimento cultural
fora de nossas instituições educacionais, a teoria e a política educa­
cional apresentariam um a influência surpreendentemente menor do
que seria de esperar.
Sem dúvida, multiplicam-se os exemplos desse ato de situar,
de colocar a retórica e as técnicas educacionais em um contexto
maior, mais abrangente. Alguns historiadores da educação, como
Katz, Karier, Kaestle, Feinberg e outros, nos têm fornecido modelos
da relação entre, digamos, interesses burocráticos, econômicos e
ideológicos e a escolarização que são menos cônscios de seu valor
28 MICHAEL W. APPLE

que algumas das noções de nosso passado anteriormente aceitas.


Junto a isso, estão as análises correntes tanto da economia política
da educação quanto das possibilidades de reforma educacional fei­
tas por Bowles e Gintis, Camoy e Levin, e outros. Talvez menos
difundidas, mas nem por isso menos importantes, são as investi­
gações sociológicas relativamente recentes das ligações entre o conhe­
cimento escolar e esses interesses. Todos esses estudos são orienta­
dos, quer tácita quer muito evidentemente, pela convicção de que se
pode obter um a apreciação mais completa e honesta das questões
educacionais inserindo-as num quadro de diferentes concepções de
justiça, de igualdade social e econômica, e do que seja o poder
legítimo e de quem deveria possuí-lo.
Por exemplo, num a recente análise crítica da sociologia da
educação, The Sociology o f Education: Beyond Equality, Philip
Wexler reclam a um a reorientação radical da pesquisa sociológica
das escolas.26 Recorrendo a alguns dos trabalhos europeus e norte-
americanos sobre a relação entre ideologia e currículo, e entre as
escolas e a criação da desigualdade, demonstra que, para com­
preender satisfatoriamente como funcionam as escolas, precisamos
estudá-las como instituições que “preparam o conhecimento” , como
instituições que cumprem um a função ideológica. A sociologia da
educação deve tornar-se em grande parte a sociologia do conheci­
mento escolar. A tradição crítica do currículo, a compreensão socio­
lógica e o estudo de ideologias políticas e econômicas, portanto,
mergulham num a perspectiva unificada que nos permite sondar o
lugar das escolas na reprodução cultural, bem como econômica, das
relações de classe num a sociedade industrial.
A percepção de Wexler é muito estimulante por diversas ra­
zões. Vê a pesquisa social e educacional em grande prte como um
ato político, algo que adiante discutirei um pouco mais aprofunda-
damente. Também nos convida a voltar nosso enfoque para o conhe­
cimento e os símbolos a que as escolas e outras instituições cultu­
rais, manifesta e dissimuladamente, dão legitimidade. Isto não sig­
nifica ignorar o fato de que as escolas, segundo o velho ditado, não
apenas “ensinam conhecimentos” , mas também “ ensinam crian­
ças” . Requer, antes, um a compreensão do modo como os tipos de
símbolos organizados e selecionados pelas escolas estão dialetica-

(26) Philip Wexler. The Sociology o f Education: Beyond Equality. Indiana­


polis, Bobbs-Merril, 1976.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 29

mente relacionados ao modo como determinados tipos de estudantes


são organizados e selecionados e, finalmente, estratificados econô­
mica e socialmente. E tudo isso é abrangido por um a preocupação
com o poder. Quem o detém? Determinados aspectos do ensino —
a organização e a seleção da cultura e das pessoas (pois de fato isto é
o que fazem as escolas) — contribuem para um a distribuição mais
eqüitativa do poder e dos recursos econômicos, ou mantêm as desi­
gualdades existentes? Qualquer que seja a resposta que se dê a essas
questões, para entender como as escolas realizam isso, é essencial
que se façam duas coisas. Primeiro, deve-se ver como aS escolas
operam diretamente. O pesquisador deve compreender como as
regularidades diárias de “ensino e aprendizagem nas escolas” pro­
duzem esses resultados. Em segundo lugar, deve-se ter aquela sensi­
bilidade peculiarmente marxista diante do presente como história,
para ver as origens e os conflitos históricos que fizeram com que
essas instituições fossem o que são hoje. Sem esse duplo entendi­
mento será bem mais difícil compreender completamente as “ fun­
ções” econômicas e culturais de nossas instituições educacionais.
Uma forma de se refletir a respeito da cultura na sociedade é
empregando-se um a metáfora da distribuição. Ou seja, pode-se
pensar o conhecimento como distribuído desigualmente entre as
classes sociais e econômicas, grupos profissionais, grupos de dife­
rentes faixas etárias e grupos com poderes diferentes. Assim, alguns
grupos possuem acesso ao conhecimento que lhes é distribuído e que
não é a outros. A contraditória disso também é provavelmente ver­
dadeira. A falta de determinados tipos de conhecimento — onde se
localiza um grupo específico no complexo processo de preservação e
distribuição cultural — relaciona-se, sem dúvida, à ausência, nesse
grupo, de determinados tipos de poder político e econômico na
sociedade.
Essa relação entre distribuição cultural e distribuição e con­
trole do poder econômico e político — ou, mais claramente, a
relação entre conhecimento e poder — é reconhecidamente de com­
preensão bastante difícil, embora um a compreensão do modo como
o controle das instituições culturais aum enta o poder que determi­
nadas classes têm de controlar outras possa fornecer o discerni­
mento necessário da forma como a distribuição da cultura se rçla-
ciona à existência ou ausência de poder em grupos sociais.
Muitos educadores, se não a maioria, não estão muito fami­
liarizados com esse problema. Somos levados a perceber o conhe­
cimento como um “ artefato” relativamente neutro. Fazemos dele
30 MICHAEL W. APPLE

um “objeto” psicológico ou um “processo” psicológico (o que, em


parte, ele é, naturalm ente). Procedendo assim, contudo, despoli-
tizamos quase que totalmente a cultura distribuída pelas escolas —
embora exista um grupo cada vez maior de estudiosos do currículo e
de sociólogos da educação que estão levando muito mais a sério
questões como “A quem pertence esta cultura?” , “ Conhecimento de
que grupo social?” e “ No interesse de quem se transmite determi­
nado conhecimento (fatos, aptidões, propensões e tendências) em
instituições culturais como as escolas?” . Como observei em outro
texto,2728os melhores exemplos desse trabalho encontram-se em al­
guns volumes recentemente editados na Inglaterra. Entre eles in-
cluem-se Michael F. D. Young (ed.), Knowledge and Control-, Ri-
chard Brown (ed.), Knowledge, Education and Cultural Change;
Basil Bernstein, Class, Codes and Control. Volume 3: Towards a
Theory o f Educational Transmissions; Michael Flude e John Ahier
(eds.), Educability, Schools and Ideology ; e Rachel Sharp e Anthony
Green, Education and Social Control,M
O plano de pesquisa dessas obras e a perspectiva que estou
articulando aqui foram influenciados pela afirmação de Raymond
Williams de que a educação não é um produto como pão ou papel,
mas sim que deve ser vista como um a seleção e organização de todo
conhecimento social disponível em uma determinada época. Uma
vez que essa seleção e organização acarreta opções sociais e ideoló­
gicas conscientes e inconscientes, então uma tarefa primordial do
estudo do currículo será relacionar esses princípios de seleção e
organização do conhecimento à sua estrutura institucional e intera-
cional nas escolas e, em seguida, ao campo de ação mais amplo das

(27) Michael W. Apple. “Curriculum as Ideological Selection". Comparative


Education Review, XX (June 1976), 209-15; e Michael W. Apple e Philip Wexler.
C ultural Capital and Educational Transmissions” . Educational Theorv XXVII
(Winter, 1978).
(28) Michael F. D. Young (ed.). Knowledge and Control. London, Collier-
Macmillan, 1971; Richard Brown (ed.). Knowledge, Education and Cultural Change.
London, Tavistock, 1973; Basil Bernstein, Class, Codes and Control. Volume 3:
towards u theory o f Educational Transmissions. 2. ed. London, Routledge & Kegan
Paul, 1977; Michael Flude e John Ahier (eds.). Educability, Schools and Ideology.
London, Halstead, 1974; e Rachel Sharp e Anthony Green. Education and Social
Control: A Study in Progressive Primary Education. London, Routledge & Kegan
Paul, 1975. Uma critica de grande parte desse trabalho pode ser encontrada em John
Eggleston. The Sociology o f the School Curriculum. London, Routledge & Keean
Paul, 1977. s
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 31

estruturas institucionais que cercam a sala de aula.2q Essas ques­


tões carregam muitos sentidos, quando aplicadas ao que cada vez
mais se denomina sociologia do conhecimento escolar. Significa
que, por razões metodológicas, não se supõe que o conhecimento
curricular seja neutro. Pelo contrário, procuram-se interesses sociais
incorporados na própria forma de conhecimento. Essas questões
também implicam que se deva estudar o currículo em uso nas
escolas. Em lugar dos estudos de desempenho escolar baseados em
input-output, o pesquisador precisa “viver” nas salas de aula, ver as
intrincadas formas de interação que nelas ocorrem. Dessa maneira,
pode-se conseguir um a resposta mais precisa à pergunta de quais
são os determinados “ tipos” de estudantes que “ obtêm ” determi­
nados tipos de conhecimento e tendências, e de quais são estes
últimos. Isto evidentemente confere importância especial à análise
do processo de rotulação que ocorre nas escolas. Além do mais,
pode-se ver como o conhecimento é verdadeiramente criado e utili­
zado nas escolas. Finalmente, pode-se comprovar o ensino tácito de
um currículo menos manifesto, de um currículo oculto.
Todos esses dados são importantes para nossa compreensão
das formas como atuam as escolas para distribuir tanto a cultura
popular quanto a cultura de elite. Mas, a fim de levar a proposição
de Williams bem mais a sério, ainda é preciso dar um passo. O
pesquisador deve pensar estruturalm ente ou relacionalmente. É pre­
ciso que vincule esse processo de distribuição cultural as questões de
poder e controle fora da escola, o que traz os fatores políticos e
econômicos ao centro da pesquisa educacional. Isso consiste em um
rompimento bastante significativo com momentos anteriores da pes­
quisa social e educacional, que em geral argumentava (inexata­
mente) que sua posição subjacente era apolitica e que não m antinha
relações com a forma como o poder e os recursos eram distribuídos
na sociedade.
De fato, conquanto deverei explorar isto mais pormenoriza­
damente no Capítulo 2, a proposição geral defendida por aqueles
interessados, digamos, por uma análise da reprodução cultural e da
reprodução econômica é de que a pesquisa do conhecimento escolar
e as formas mais gerais de pesquisa educacional são, ao menos
tacitamente, um ato político. Contudo, ao mesmo tempo que argu­
mentam a favor de um compromisso político, querem argumentar 29

(29) Young, op. cit. , p. 24.


32 MICHAEL W. APPLE

contra um a determ inada filiação política que passou a dominar a


política educacional e o discurso sobre o currículo — a da tradição
liberal.
Na verdade, algumas das semelhanças entre esses estudiosos
interessados por um a apreciação mais crítica da escola como uma
força reprodutiva podem ser vistas mais exatamente no tratam ento
que dispensam à teoria educacional liberal, com sua relação de
dependência na ciência, na neutralidade e na educação como uma
forma de melhoria social. Como observa Feinberg, por exemplo,
uma grande fraqueza da teoria liberal surge de sua incapacidade de
ver os acontecimentos como indícios de sérias questões estruturais.
Transform a as preocupações educacionais em “ problemas” admi­
nistrativos, em vez de exemplos de conflito econômico, ético e polí­
tico.30
Em bora existam diferenças entre os fenômenos da escola,
aqueles que, como eu, têm procurado situá-los em seu contexto
social e econômico, parecem entrar em acordo quanto a um ponto
importante, o de que é preciso questionar a maioria dos principais
aspectos de um a visão liberal tanto da sociedade quanto da edu­
cação. Em bora certamente essa visão não seja homogênea nem uni­
tária, nem seja ela a única base da qual se origina a política edu­
cacional e curricular, vê-se o liberalismo como um a forma de melho­
ria social, em virtude de suas “ suposições e dimensões terem se
introduzido em padrões de prática educacional de modo mais deci­
sivo que qualquer outra ideologia” .31 Vê-se a política educacional
liberal — com sua ética de auto-realização supostamente baseada no
mérito — antes como um a linguagem de justificação, como uma
forma ideológica, que como um a descrição minuciosa do modo
como funciona a educação. Em bora de fato descreva determinados
aspectos da escolarização (alguns indivíduos e grupos realmente
saem-se bem na escola), deixa de ver a ligação entre, digamos, a
"form ação” de determinados tipos de pessoa e conhecimento, por
um lado, e, por outro, a reprodução de um a sociedade estratificada
que determina os papéis para os quais esses agentes são produzidos.
Mas o que se está exatamente questionando?32

(30) Feinberg, op. cit. , p. vii.


(31) Roger Dale et at. , op. cit. , p. 1.
(32) Ibid. , p. 1-2.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 33

Talvez a plataforma mais simples e mais importante da ideologia


liberal da educação seja a de que a educação cria e mantém a
mudança social. Essa confiança se apóia numa série de suposições
críticas. (...) A primeira é a de que a escolarização afeta fundamen­
talmente o nível de crescimento e progresso econômico através de sua
ligação com a tecnologia. Presume-se que o nível de crescimento
tecnológico determine o nível de crescimento econômico, e ele próprio
é visto como dependente do nível de escolarização. O sistema educa­
cional fornece pessoal tanto para fazer recuar as fronteiras do conhe­
cimento técnico quanto para consolidar esses avanços e trazê-los para
a nossa vida diária. Através do planejamento do potencial humano,
os imperativos evidentes do processo de produção técnica exercem
pressão sobre o sistema escolar para formar uma força de trabalho
diversamente especializada e qualificada. A expansão e diferenciação
das instituições educacionais é sustentada por uma confiança no
papel de apoio que a educação pode desempenhar no crescimento
tecnológico, e isto levou não só ao rápido crescimento do ensino
superior na década de 60 mas também à contínua ênfase no ensino
técnico e comercial.
A segunda suposição implica uma visão da educação como capaz de
corrigir as desigualdades sociais, de superar — através da equali-
zação das oportunidades educacionais — a injusta distribuição das
chances na vida. O sistema educacional é visto como um meio de
fornecer um canal para a mobilidade social, de implementar proce­
dimentos objetivos de seleção para o estabelecimento de uma merito-
cracia, em que a única qualificação para a ascensão é a “habilidade” .
O sistema educacional toma-se o mecanismo-chave da seleção social,
para o benefício da sociedade e do indivíduo.
Finalmente, a educação e a cultura, que ela produz e transmite, são
vistas como características indèpendentes e autônomas em nossa
sociedade. A política educacional é voltada para a produção tanto de
conhecimento quanto de indivíduos instruídos através do amparo à
pesquisa acadêmica e à reforma curricular. O idealismo na tradição
liberal mostra a cultura e a escolarização como forças politicamente
neutras para a mudança social.

Em contraposição a esse conjunto de suposições sobre edu­


cação e sua relação com um a ordem social, os estudiosos interes­
sados na análise da reprodução econômica e cultural interpretam o
aparelho cultural e educacional como elementos de um a teoria do
controle social. 33 Por isso, desafiam-se pelo menos três noções inter-

(33) Ibid., p. 2.
34 MICHAEL W. APPLE

relacionadas: a de que os processos de seleção são neutros; a de que


"a habilidade” (em lugar da sociabilização dos estudantes com
normas e valores social e economicamente relacionados) é o que as
escolas realmente enfocam; e se as escolas são realmente organi­
zadas para transm itir habilitações curriculares técnicas a todos os
estudantes, para que todos tenham oportunidades iguais no mundo
econômico.
Portanto, conforme demonstrado por Bowles e Gintis e por
mim mais à frente, as escolas podem não estar engrenadas para
selecionar e formar neutram ente um a “força de trabalho diversa­
mente especializada e qualificada” . Pelo contrário, parecem estar
preocupadas menos com a distribuição de habilitações que com a
distribuição de normas e tendências adequadas ao lugar que se
ocupa num a sociedade hierárquica. Mas devemos ser muito caute­
losos aqui para não nos excedermos num a forma muito determi­
nista, pois nem todas essas suposições liberais são totalmente incor­
retas. Como devo m ostrar no Capítulo 2, por exemplo, a educação
está ligada ao desenvolvimento técnico, mas de m aneira mais com­
plexa e basicamente menos justa e eqüitativa do que poderíamos
pensar com base no senso comum. Pois essa ligação entre o conhe­
cimento técnico e a escolarização ajuda a gerar, não a reduzir, a
desigualdade. Reunidas, no entanto, essas espécies de crítica que
são dispostas contra a tradição liberal fornecem a estrutura subja­
cente para um a análise mais crítica da escolarização e da “ sabe­
doria” convencional que a orienta. Todas incluem a reivindicação de
que boa parte da teoria curricular e da teoria educacional mais geral
tem se constituído em um conjunto de bitolas ideológicas que impe­
dem um a investigação mais séria e minuciosa tanto das estruturas
institucionais desiguais da sociedade norte-am ericana como da re­
lação entre a escola e essas estruturas.
No entanto, como pode algo que procura tão ardentemente
ajudar — como a teoria e a prática educacional liberal procura fazer
de modo tão claro — ser um a forma ideológica que oculta a reali­
dade da dominação? Afinal, bem poucos educadores dispuseram-se
a ir além da prestação de serviços a sua clientela. Podem os seus
motivos, suas ações, ter um a carga ideológica assim tão forte? De
modo a deslindar esse problema, a npção de ideologia é importante
aqui e exige um tratam ento mais aprofundado.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 35

Sobre a natureza da ideologia

O significado de ideologia é geralmente problemático. A maio­


ria das pessoas parece concordar que se pode empregar o termo
ideologia em referência a algum tipo de “ sistema” de idéias, cren­
ças, compromissos fundamentais ou valores quanto à realidade
social, mas neste ponto cessa o acordo.34 As interpretações divergem
tanto no que toca ao campo de ação ou extensão dos fenomenos que
são presumivelmente ideológicos como k função — o que as ideolo­
gias realmente fazem pelas pessoas que as “ detêm ” . As interpre­
tações do campo de ação da ideologia variam amplamente. Os fenô­
menos subjacentes a ele podem ser reunidos pelo menos em três
categorias: (1) racionalizações ou justificações muito específicas das
atividades de grupos ocupacionais determinados e identificáveis (por
exemplo, as ideologias profissionais); (2) programas políticos e
movimentos sociais mais amplos; e (3) visões de mundo, pontos de
vista, ou o que Berger e Luckmann e outros chamam de universos
simbólicos.
Funcionalmente, a ideologia tem sido avaliada historicamente
como um a forma de falsa consciência que distorce a imagem que se
faz da realidade social e serve aos interesses das classes dominantes
num a sociedade. Entretanto, também tem sido tratada, como ex­
pressa Geertz, como “ sistemas de símbolos que agem entre si” e
fornecem as formas básicas de tornar portadoras de “ sentido situa­
ções sociais que de outro modo seriam incompreensíveis” , 35 ou seja,
como criações inevitáveis e essenciais que funcionam como conven­
ções de significado compartilhadas, para tornar inteligível um a
realidade social complexa.
Essas distinções sobre a função da ideologia não passam, é
claro, de tipos ideais, de pólos entre os quais incide a maioria das
proposições sobre o que é e o que faz a ideologia. Essas duas propo­
sições ideais provêm na verdade de tradições, e têm seus advogados
contemporâneos. A primeira, que tem sido cham ada de a teoria do
interesse” , arraigada como é na tradição marxista, percebe o papel

(34) No exame que se segue, recorro à excelente análise da ideologia realizada


por Helen M. McClure e George Fischer. “ Ideology and Opinion Making: General
Problems of Analysis” . New York, Columbia University Bureau of Applied Social
Research. July 1969. Mimeografado.
(35) Veja-se, por exemplo, Clifford Geertz. “ Ideology as a Cultural System .
Ideology and Discontent. David Apter (ed.). New York, Free Press, 1964, p. 47-76.
36 MICHAEL W. APPLE

fundamental da ideologia como a justificação do capital investido


dos grupos políticos, econômicos ou outros, existentes ou confli­
tantes. O segundo polo, o da tradição que vê a ideologia como
“ deformação do real” , tem em Durkheim e Parsons seus advogados
mais conhecidos, em geral considera como a função mais im portante
da ideologia o seu papel de conferir significado em situações proble­
máticas, apresentando um a “ definição útil da situação” , por assim
dizer, tornando possível desse modo a atuação de indivíduos e de
grupos.
Mesmo com essas orientações bastante divergentes, parece
haver um a base comum entre os que estão preocupados com o pro­
blema da ideologia, na medida em que geralmente se considera que
ela apresenta três características diferenciadoras. Lida sempre com
a legitimação, o conflito de poder e um estilo especial de argumen­
tação. McClure e Fischer descrevem com clareza cada uma dessas
características.36

1) Legitimação — Os sociólogos parecem estar de acordo quanto ao


fato de que a ideologia está relacionada à legitimação — a justificação
da ação de um grupo e sua aceitação social. Isto é válido quer os
autores falem de racionalização do capital investido, de tentativas de
manter um determinado papel social”, quer falem de atividade
justificatória, apologética, (...) relacionada ao estabelecimento e à
defesa de padrões de opinião. Em cada caso, tratam como uma
questão primordial a legitimação da forma como uma atividade é
socialmente organizada. (...) Quando as suposições básicas subja­
centes a um programa social parecem estar sendo seriamente desa­
fiadas, a conseqüente necessidade de legitimação pode também to­
mar a forma de interesse pelo sagrado. (...) “A ideologia procura
sacralizar a existência submetendo-a ao domínio dos princípios fun­
damentalmente corretos.”
2) Luta pelo poder — Toda a literatura sociológica liga a ideologia às
lutas pela procura ou pela preservação do poder. Mas alguns autores
têm em mente o poder, ou a política, num sentido mais restrito, ao
passo que outros num sentido mais amplo. No sentido mais estrito
esses termos se referem à distribuição formal, numa sociedade, dè
autoridade e recursos, o que de modo geral ocorre dentro de um
domínio — a esfera da política. No sentido mais amplo, o poder e a
política envolvem qualquer esfera de atividade, e todos os seus aspec-

(36) McClure e Fischer, op. cit., p. 7-10.


IDEOLOGIA E CURRÍCULO 37

tos que tratam da distribuição de recompensas. (...) A luta pelo poder


está sempre em jogo nas disputas ideológicas, quer ou não os impli­
cados reconheçam expressamente essa dimensão.
3) Estilo de argumentação — Muitos autores observam que a argu­
mentação que se realiza no domínio da ideologia é caracterizada por
uma retórica muito especial e por uma comoção exaltada. (...) Vê-se
a retórica como altamente explícita e relativamente sistemática. (...)
Pelo menos duas razões podem explicar essa retórica.
Em primeiro lugar, a importância fundamental das suposições em
questão para a própria sobrevivência de um grupo cria uma pressão
por uma explicação mais articulada de suposições que distingam o
grupo exclusivamente, a fim de reforçar a solidariedade e a concor­
dância entre seus membros. Inversamente, pareceria existir uma
tendência para articular as suposições que são compartilhadas — ou
compatíveis — com aquelas contidas em sistemas de pensamento
antagônicos. Neste caso, a clareza é uma tática que procura persua­
dir, mobilizar apoio ou converter aqueles que se encontram de fora.
Em segundo lugar, qualquer explicação das suposições e das idéias
implícitas num modo de organização da atividade provavelmente
disfarça a qualidade imprecisa dessas suposições e idéias quando
postas em prática.

Essas características diversificadas da ideologia apresentam


importantes implicações para a análise tanto da teoria liberal quanto
da educação como um a forma hegemônica, pois logo teremos funda­
mentos para ver como a linguagem e a visão de m undo de ciência,
eficiência e “ ajuda” , e o indivíduo abstrato desempenham essas
funções ideológicas para a área do currículo. Pode-se ver desta dis­
cussão relativamente breve, no entanto, que a ideologia não pode ser
tratada como um simples fenômeno. Nem pode ser empregada
meramente como um a clava com a qual se ataca o adversário na
cabeça (Ah, ah, seu pensamento não passa de ideologia, passível de
ser ignorado!) sem que se perca alguma coisa durante esse processo.
Pelo contrário, qualquer tratam ento sério da ideologia tem de lutar
tanto com seu campo de ação quanto com sua função, com seu papel
duplo como um conjunto de regras que conferem significado, e sua
força retórica em discussões sobre poder e recursos.37

(37) Para uma discussão aprofundada da questão da ideologia, um dos tra­


balhos mais interessantes do ponto de vista analítico pode ser encontrado em Nigel
Harris. Beliefs in Society: The Problem o f Ideology. London, C. A. Watts, 1968.
38 MICHAEL W. APPLE

Por exemplo, nos capítulos finais, deverei examinar o papel


desempenhado pelos modelos dominantes de administração, ava­
liação e pesquisa do currículo. Deverei explorar como cada um deles
parece ajudar a dar sentido, a organizar nossa atividade como edu­
cadores de formas que tendemos a julgar econômica e culturalmente
neutras e úteis; como esses modelos e tradições dominantes cum­
prem funções retóricas fornecendo, aos meios de distribuição de
recursos e ao “ público” , um a visão de nossa aparente sofisticação;
e finalmente como esses modelos ao mesmo tempo disfarçam os
valores, interesses e funções sociais reais que os sustentam. Tanto o
campo de ação quanto a função terão de ser reunidos aqui para que
possamos avançar.
Mais um a vez, o meio mais proveitoso de refletir sobre as
características complexas, o campo de ação e as diversas funções da
ideologia encontra-se no conceito de hegemonia. A idéia de que a
saturação ideológica permeia nossa experiência vivida nos permite
ver como as pessoas podem empregar modelos que as auxiliam a
organizar seu mundo, bem como lhes possibilitam acreditar que são
participantes neutros na neutra instrum entação da escolarização
(como veremos, grande parte da linguagem utilizada pelos educa­
dores tem esse fim), enquanto ao mesmo tempo esses modelos
atendem a interesses econômicos e ideológicos específicos que lhes
são ocultados. Como observou Wexler, a fim de ver como isso
acontece, teremos de entrelaçar análises curriculares, sócio-polí­
ticas, econômicas e éticas de um modo tal que mostrem as conexões
sutis que existem entre a atividade educacional e esses interesses.
Nos capítulos que seguem, deverei dar início a essa tarefa
examinando mais pormenorizadamente as três áreas principais de
investigação que, como afirmei na segunda parte deste capítulo
introdutório, são essenciais a um a compreensão completa da relação
entre ideologia e experiência escolar. Eram elas: (1) as regularidades
básicas da experiência escolar e qual ensino ideológico dissimulado
ocorre em virtude delas; (2) quais compromissos ideológicos estão
engastados no currículo manifesto; e (3) os fundamentos ideoló­
gicos, éticos e avaliativos das formas em que costumeiramente pen­
samos, planejamos e avaliamos essas experiências. Os capítulos se
sucederão num a forma algo dialética — quando necessário, serão
reiterados e tornados mais sutis determinados argumentos críticos,
ou fundamentados alguns já surgidos anteriormente, e por vezes
serão apresentadas sugestões concretas para a ação por parte dos
educadores.
id e o l o g ia E CURRÍCULO 39

O último dado, a apresentação de sugestões concretas, elucida


uma contradição neste livro da qual estou muito cônscio. Em vista
do fato de que escrevo como um educador que se dirige a ou ros
educadores e, sem dúvida, a um grupo interessado de cientistas
sociais, analistas políticos e filósofos, estou consciente de ter sido
entendido. Pois, ao se em penhar num a análise critica sena, ainda se
pode ter um a obrigação ética de tornar a vida mais tolerável mais
poética e significativa, para os estudantes que vivem nas instituições
que aqui analiso. Desse modo, há reformas gradativas incorporadas
através deste volume. Algumas delas relacionam-se aos direitos estu­
dantis, outras dizem respeito ao emprego de procedimentos de pes­
quisa curricular ética e politicamente conscientes, e outras ainda,
que sugerem formas mais honestas de currículo. Essas sugestões são
dadas cautelosamente, quase que com um a certa relutância, embora
também sejam im portantes do ponto de vista tático. Afinal agir de
acordo com elas poderá levar à elucidação das possibilidades reais
de se modificarem aspectos da vida escolar e, o que talvez seja mais
importante, a um a necessidade de um a ação coletiva mais estrutu­
ralmente orientada. São apresentadas, ainda, na esperança de que
outros educadores percorrerão a trilha que me tem conduzido, de
um interesse pela compreensão ética e poética do currículo, para o
que felizmente se constitui nos primórdios de um a procura mais
m adura de um a ordem social justa que perm itira que essa com­
preensão seja novamente parte integrante de nossa expenencia.
Como se acha sucintamente apresentado no índice, os capí­
tulos seguintes dão conta da relação, por um lado, entre ideologia,
política e economia e, por outro, tanto do currículo manifesto
quanto do oculto, e das teorias educacionais dominantes. A pri­
meira área principal (a forma como as regularidades básicas ou o
currículo escolar oculto representam e transm item configurações
ideológicas) é tratada nos Capítulos 2, 3 e 5. A segunda area (a
relação entre ideologia e o próprio conhecimento curricular m ani­
festo) acha-se analisada nos Capítulos 2, 3, 4 e 5. A questão final
(como os compromissos ideológicos, políticos, éticos e economicos se
refletem em nossas teorias, políticas e práticas graduahstas) e exa­
m inada em quatro capítulos, 4, 6, 7 e 8. Dessa forma, o leitor
encontra um a oportunidade razoavelmente vasta de ver como a
sociedade exerce um a forte influência sobre as teorias educacionais,
o conhecimento manifesto e o não tão manifesto transmitidos pelas
escolas e os modos de avaliação e reformas gradativas empregados
pela escola.
40 MICHAEL W. APPLE

Deveremos inicialmente examinar o papel da escola na pro­


dução e na reprodução da hegemonia entre os estudantes. Uma vez
esclarecido isso, passaremos então ao exame da forma como a hege­
monia opera “ na m ente” de “intelectuais” como os educadores.
Cada capítulo tratara dessas tarefas da seguinte forma:
Capítulo 2, “ Ideologia e reprodução cultural e econômica” ,
aprofunda o exame das tradições agora dominantes no discurso do
currículo. O enfoque centraliza-se mais claramente na sociologia e
na economia do currículo pela análise do papel do currículo na
inter-relação entre a reprodução cultural e a econômica. Esse capí­
tulo irá explorar as ligações entre o acesso à distribuição do conhe­
cimento legítimo (e a ausência dessa distribuição) e a reprodução da
desigualdade cultural e econômica, com base no exame de alguns
dos papeis desempenhados pela escolarização no desenvolvimento
técnico.
Capítulo 3, “A economia e o controle da vida escolar coti­
diana” (em colaboração com Nancy King), examina o outro lado da
moeda. Centralizando-se nas relações sociais e nos currículos infor­
mais, assim como nos currículos formais, esclarece o ensino ideoló­
gico ou hegemônico, para cuja realização basta apenas a vivência
dos estudantes na escola por períodos de tempo prolongados. O
capítulo tem duas partes. Na prim eira fornece um a breve análise
histórica de como determinados tipos de conhecimento escolar com
um reconhecido interesse pelo controle social tornaram-se a estru­
tura subjacente para a organização da vida escolar cotidiana. Na
segunda, apresenta provas empíricas de um a experiência de jardim
de infância para docum entar o papel da escola na transmissão de
conhecimento econômico e ideológico e de tendências que apre­
sentam resultados bastante conservadores.
Capítulo 4, “A história do currículo e o controle social” (em
colaboração com Barry Franklin), procura abordar seriamente a
importância de se adquirir uma “ sensibilidade ao presente enquanto
história pelo exame das formas como essas tradições conservadoras,
em especial um compromisso com o consenso e a conformidade de
pensamento, introduziram-se nessa área. Esse capítulo dá continui­
dade e aprofunda consideravelmente o breve exame histórico reali­
zado na seção anterior. Devassa as origens das forças e compro­
missos sociais e econômicos que constituem o contexto ideológico
para a seleção dos princípios e práticas que ainda prevalecem na
área do currículo e na educação em geral.
Capítulo 5, “ O currículo oculto e a natureza do conflito” .
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 41

examina os interesses sociais ainda incorporados nas formas domi­


nantes do conhecimento curricular que hoje se encontram nas esco­
las, interesses que espelham um a série de pressuposições ideológicas
analisadas no Capítulo 4. Analisa o conhecimento manifesto nas
propostas e no material curricular amplamente aceito em ciências e
em estudos sociais, dando especial atenção mais um a vez à ideologia
do consenso que permeia o conhecimento escolar e à falta de distri­
buição de conhecimento curricular com maior poder político. É um
estudo do modo como a tradição seletiva opera para m anter um a
cultura dom inante efetiva.
Capítulo 6, “ Modelos sistêmicos de administração e a ideo­
logia do controle” , volta nosso exame para a forma como a hege­
monia opera na base da mente dos educadores, sondando o papel
das ideologias de administração na organização das escolas e na
seleção do conhecimento curricular. Demonstra tanto sua falta vital
de neutralidade ética, social e econômica quanto sua utilização
como mecanismos de quietismo político, consenso e controle social.
Capítulo 7, “ As categorias do senso comum e a política de
rotulação” , prossegue a investigação da saturação ideológica da
consciência dos educadores. Centraliza-se no modo como o capital
cultural dos grupos dominantes resulta no emprego de categorias
que “culpam a vítima” , a criança, ao invés da escola ou da socie­
dade que produz as condições materiais para o fracasso ou o êxito.
Comprova como, através de um complexo processo de rotulação
social, as escolas desempenham um papel fundamental na distri­
buição de diferentes tipos de conhecimento e tendências a diferentes
tipos e classes de pessoas. Esse capítulo analisa a forma como atuam
os rótulos escolares e como se originam de pressuposições ideoló­
gicas. Apresenta um modelo de análise neomarxista para reunir
conhecimento escolar, rótulos e as instituições que cercam a escola,
m ostrando como o desvio, os “problemas de desempenho” , e assim
por diante, são “ naturalm ente originados” do funcionamento coti­
diano da instituição.
Capítulo 8, “Além da reprodução ideológica” , tenta esclarecer
os papéis — tanto políticos como educacionais — que poderíamos
desempenhar na oposição de algumas forças culturais e econômicas
analisadas neste livro. Dirige a atenção novamente para a impor­
tância de um a compreensão das complexas inter-relações que há
entre as escolas e os aspectos da reprodução cultural e econômica,
para que se ponha em prática a ação adequada. O capítulo sugere
vários procedimentos para a pesquisa do problem a da sociologia e
42 MICHAEL W. APPLE

da economia do conhecimento escolar. Conclui com um a redefinição


do educador, redefinição que não se baseia nas compreensões origi­
nadas do papel do indivíduo abstrato, mas que está, pelo contrário,
fundada na definição de um intelectual orgânico cujo entendimento
e ação estão unidos pelo compromisso ativo contra a hegemonia.
Prossigamos agora com a procura exatam ente desse entendimento
adequado.
2
Ideologia
e reprodução cultural e económica

Reprodução cultural e econômica

Muitos economistas e não poucos sociólogos e historiadores da


educação têm um a forma especial de encarar as escolas. Veem a
instituição de ensino como alguma coisa semelhante a um a caixa
negra. Mede-se o input antes de os alunos ingressarem nas escolas,
e depois se mede o output durante o curso ou quando, “ adultos” ,
entram para a força de trabalho. O que realmente se passa dentro
da caixa negra — o que se ensina, a experiência concreta de crianças
e de professores — tem menos im portância nessa visão que as
considerações mais globais e macroeconômicas da taxa de retorno
do investimento, ou, mais radicalmente, que a reprodução da divi­
são do trabalho. Em bora sejam considerações importantes, princi­
palmente talvez o tratam ento, como observei no capítulo anterior,
do papel da escola como um a força reprodutiva num a sociedade
classista, pela própria natureza de um a visão da escola como um a
caixa negra não podem dem onstrar como se formam esses efeitos
dentro das escolas. Por conseguinte, esses autores são menos exatos
do que poderiam ser ao explicar parte do papel desempenhado pelas
instituições culturais na reprodução que querem descrever. No en­
tanto, como deverei dem onstrar aqui, é necessário alcançarem-se es­
sas explicações culturais, o que exige um a orientação diferente, em­
bora complementar, das que são em pregadas por esses e outros estu­
diosos.
44 MICHAEL W. APPLE

Existe uma singular combinação de cultura popular e de elite


nas escolas. Como instituições, elas se constituem em áreas excep­
cionalmente interessantes, e fortes política e economicamente, para
a investigação dos mecanismos de distribuição cultural num a socie­
dade. É im portante pensar as escolas como mecanismos de distri­
buição cultural, um a vez que, conforme observou o marxista ita­
liano Antonio Gramsci, um elemento decisivo para o aumento dá
dominação ideológica de algumas classes é o controle do conhe­
cimento que preserva e produz as instituições de um a determ inada
sociedade. Assim, nos termos de M annheim ,12 pode ser necessário
particularizar a realidade” que é selecionada, preservada e distri­
buída pelas escolas e outras instituições culturais, a fim de que essa
realidade possa ser vista como um a “construção social” específica
que pode não estar a serviço dos interesses de todos os indivíduos e
grupos da sociedade.
Agora passou a ser um lugar-comum, na literatura sociológica
e educacional contemporânea, referir-se à realidade como uma
construção social. Com isso, esses estudiosos, especialmente os de
tendência fenomenológica, querem dizer duas coisas. 1) Tom ar-se
pessoa é um ato social, um processo de iniciação em que o neófito
aceita um a determ inada realidade social como a realidade tout
court, como a vida realmente é” . 2) Em um a escala mais ampla, os
significados sociais que m antêm e organizam um a coletividade são
criados pelos padrões de interação entre as pessoas, fundados no
senso comum, à medida que elas seguem o curso de suas vidas.3
Agora, essa reinserção do elemento social no que passou a ser um
problema psicológico para a sociedade anglo-ocidental certamente
representa um progresso quanto à visão de muitos educadores de
que os padrões de significado que as pessoas empregam para orga­
nizar suas vidas e procuram transm itir através de suas instituições
culturais independem de influências sociais ou ideológicas. A noção

(1) Ihomas R. Bates. “ Gramsci and The Theory of Hegemony". Journal o f


the History o f Ideas, XXXVI, 36. April-June 1975.
(2) Karl Mannheim. Ideology and Utopia. New York, Harcourt Brace &
World, 1936.
(3) Naturalmente, isto é melhor colocado por Peter Berger e Thomas Luck-
mann. The Social Construction o f Reality. New York, Doubleday, 1966. O desafio
mais articulado à utilização dessas formulações "fenomenológicas” em educação
encontra-se em Rachel Sharp e Anthony Green. Education and Social Control:
A Study in Progressive Primary Education. London, Routledge & Kegan Paul, 1975.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 45

de que existe um a “ construção social da realidade e, porém, um


tanto geral, e não tão útil quanto poderíamos julgar para a com­
preensão das relações que existem entre as instituições culturais,
particularm ente as escolas, e a estrutura e o entrelaçamento das
formas sociais e econômicas em geral. Como expressa Whitty de
m aneira sucinta,4

Superenfatizar a noção de que a realidade e construída socialmente


parece ter levado a se negligenciar a consideração de como e por que a
realidade chega a ser construída socialmente em formas específicas e
como e por que determinadas construções da realidade parecem ter o
poder de combater a subversão.

Portanto, o princípio geral da construção social da realidade


não explica por que razão determinados significados sociais e cul­
turais, e não outros, são distribuídos através das escolas; nem ex­
plica tampouco como o controle do conhecimento que preserva e
produz instituições pode estar ligado à dominação ideológica de
grupos poderosos num a coletividade social.
O princípio contrário, de que o conhecimento não esta rela­
cionado de forma significativa à organização e ao controle da vida
social e economica, evidentemente tam bém é problemático, em bora
isto possa surpreender a muitos teóricos do currículo. Isto e mais
bem colocado por Raymond Willliams em sua análise crítica da
distribuição social da cultura.5

O padrão de significados e valores por meio dos quais as pessoas


dirigem toda a sua vida pode por um momento ser visto como autô­
nomo e como se se desenvolvesse por seus próprios termos; mas é
muito irreal, em última análise, desvincular esse padrão de um sis­
tema político e econômico especifico, o qual pode estender sua in­
fluência às mais inesperadas regiões emocionais e de comportamento.
A prescrição comum da educação, como a chave para a mudança,
ignora o fato de que a forma e o conteúdo da educação são afetados, e

(4) Geoff Whitty. “ Sociology and the Problem of Radical Educational Chan­
ge” . Educability, Schools and Ideology. Michael Flude e John Ahier (eds.). London,
Halstead Press, 1974, p. 125.
(5) Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto & Windus,
1961, p. 119-20.
46 MICHAEL W. APPLE

em alguns casos determinados, pelos sistemas reais de decisão [polí­


tica] e de base leconômical.

Tanto W hitty quanto Williams estão levantando questões bas­


tante difíceis sobre o que poderia se cham ar de relação entre ideo­
logia e conhecimento escolar, embora o contexto seja geralmente
britânico. Não é de surpreender a existência de um a longa tradição
crítica quanto às implicações entre cultura e controle na Inglaterra e
no resto da Europa. Sob um aspecto, os países europeus tiveram um
conjunto de antagonismos de classe menos oculto que os Estados
Unidos. O fato de que a tradição da análise ideológica é menos
evidente na crítica educacional e cultural norte-americana vem con­
firmar, no entanto, duas outras relações, a natureza a-histórica da
maioria da atividade educacional e a dominância de um a ética de
reformas gradativas por meio de modelos técnicos na maioria do
discurso sobre o currículo.6 A natureza a-histórica da área do currí­
culo é de grande interesse aqui. Qualquer um que esteja familia­
rizado com a intensa discussão em torno da Associação de Educação
Progressista, ao longo de sua história, logo constata que um dos
principais pontos de discussão entre os educadores progressistas era
o problem a da doutrinação. Deveriam as escolas, orientadas por
um a visão de um a sociedade mais justa, transm itir um determinado
conjunto de significados sociais a seus alunos? Deveriam interessar-
se apenas por técnicas pedagógicas progressistas em lugar de patro­
cinar um a determ inada causa social e econômica? Questões dessa
natureza atorm entaram no passado os educadores de inclinação
democrática, e a controvérsia persiste até nossos dias, em bora vei­
culada num vocabulário diferente.
De fato, como afirmou Stanwood Cobb, um dos primeiros
organizadores dessa Associação, vários educadores progressistas, ao
longo das prim eiras décadas deste século, foram muito cautelosos
até mesmo em formular a questão de qual o conteúdo real que
deveria ser ensinado e avaliado nas escolas. Em geral, preferiam
preocupar-se em primeiro lugar com os métodos de ensino, em parte
porque a determinação do currículo era vista como um a questão

(6) Herbert M. Kliebard. “Persistent Curriculum Issues in Historical Pers­


pective Curriculum Theorizing: The Reconceptualists. William Pinar (ed.). Ber­
keley. McCutchan, 1975, p. 39-50.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 47

inerentemente política que poderia dividir o movimento.7 A apre­


ciação de Cobb das causas estruturais mais amplas que se acham
por trás da escolha feita por esses educadores das esferas de ação em
que se deveria atuar pode ou não ser historicamente precisa. Perm a­
nece o fato de que, ao menos fenomenologicamente, muitos educa­
dores reconheceram que a cultura, preservada e distribuída pelas
escolas e por outras instituições culturais, não era necessariamente
neutra. Perceberam suas próprias ações como quase sempre oriun­
das daquele reconhecimento. Infelizmente, como observei, essas
questões, recorrentes e historicamente significativas, não inform a­
ram a discussão sobre o currículo nos Estados Unidos, tanto quanto
na Inglaterra e na França, por exemplo. Entretanto, cada vez mais
se admite que as escolas em sociedades industriais como a nossa
podem servir muito bem aos interesses de algumas classes sociais, e
nada bem aos de outras classes. Portanto, posso pensar em poucas
áreas de pesquisa que se me afigurem mais urgentes que a que
procura revelar as ligações entre significado e controle em insti­
tuições culturais.
Ainda que não possa apresentar no momento um a teoria
completamente elaborada de cultura e controle (embora autores
como Raymond W illiams, Pierre Bourdieu e Basii Bemstein tenham
começado a em preender essa tarefa),8 gostaria de fazer aqui um a
série de coisas. Em primeiro lugar, quero apresentar um a discussão
mais profunda do modelo básico de suposições de acordo com o qual
operam os mais recentes trabalhos a respeito da relação entre ideo­
logia e experiência escolar. Este será com parado com as tradições
que hoje prevalecem na pesquisa do currículo. Em seguida, estu­
darei um aspecto da discussão sobre as ligações entre o currículo e a
estrutura ideológica e econômica, e delinearei algumas proposições
gerais a respeito. Essas proposições deveriam ser vistas antes como

(7) Entrevista gravada realizada na Universidade de Wisconsin, Madison.


A necessidade de que os movimentos de reforma educacional de grande escala
tenham esta aura de cautela e imprecisão é analisada em profundidade por B. Paul
Komisar e James McClellan. “The Logic of Slogans” . Language and Concepts in
Education. B. Othanel Sm ithe Robert Ennis (eds.). Chicago, Rand MacNally, 1961,
p. 195-214.
(8) Veja-se, por exemplo, Raymond Williams. The Country and the City. New
York, Oxford University Press, 1973; Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron. Re-
production in Education, Society and Culture. London, Sage, 1977; e Basil Berns-
tein. Class, Codes and Control. Volume 3: Towards a Theory o f Educational Trans-
missions. 2. ed. London, Routledge & Kegan Paul, 1977.
48 MICHAEL W. APPLE

hipóteses que como um a comprovação final, e irão sem dúvida exigir


investigações históricas, conceituais e empíricas — para não m en­
cionar comparativas — a fim de dem onstrar sua fecundidade. Essas
hipóteses dirão respeito à relação entre qual currículo recebe status
elevado em nossa sociedade e seus efeitos econômicos e culturais.
Deverei dem onstrar a dificuldade de se cogitar os problemas pas­
sados e presentes de form a e conteúdo do currículo sem procurar
revelar o intrincado vínculo entre a reprodução cultural e a econô­
mica. Comecemos por um breve exame das tradições existentes —
como tipos ideais — que tendem a fornecer as bases assuntivas de
boa parte do estudo que hoje se faz sobre currículo.

As tradições de desempenho e de sociabilização

Grande parte das teorias e da crítica educacional e curricular


extraem seu estímulo finalístico e sua confiabilidade lógica das
diversas psicologias do aprendizado atualm ente disponíveis. Em ­
bora Schwab e outros tenham demonstrado ser um erro lógico tentar
derivar um a teoria do currículo (ou da pedagogia) de um a teoria do
aprendizado9 — o que muitos teóricos do currículo ainda não pare­
cem ter percebido — , existe um a outra dificuldade, que é mais
pertinente a esta m inha discussão. Como devo dem onstrar mais
pormenorizadamente adiante, a linguagem do aprendizado tende a
ser apolítica e a-histórica, ocultando assim a intrincada ligação
entre poder e recursos políticos e econômicos que se acha por trás de
um a considerável quantidade de organização e seleção curricular.
Em resumo, não é um instrumento lingüístico adequado para a
abordagem do que deveria ser um conjunto prioritário de questões
do currículo quanto a algumas das possíveis origens ideológicas do
conhecimento escolar. Em seus aspectos mais simples, podem-se
reduzir essas questões aos seguintes temas: “ O que é realmente
ensinado nas escolas?” , “Quais são as funções sociais manifestas e
latentes do conhecimento transm itido pelas escolas?” , “Como os
princípios de seleção e organização, empregados para planejar,

(9) Joseph Schwab. The Practical: A Language fo r Curriculum. Washington,


National Education Association, 1970; e Dwayne Huebner. “Implications of Psycho­
logical Thought for the Curriculum” . Influences in Curriculum Change. Glenys
Unruh and Robert Leeper (eds.). Washington, Association for the Supervision and
Curriculum Development, 1968, p. 28-37.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 49

ordenar e avaliar esse conhecimento, funcionam na reprodução


cultural e econômica das relações de classe num a sociedade indus­
trial como a nossa?” 10 Essas questões em geral não integram o jogo
de linguagem da psicologia. Examinemos a base conceituai, o tabu­
leiro em que são articulados jogos de linguagem desse tipo.
Parece haver duas formas bastante distintas em que os educa­
dores (e os psicólogos, sociólogos e economistas) investigaram o co­
nhecimento escolar. Uma está centrada em torno da questão do
desempenho acadêmico. A segunda está preocupada menos com
questões de desempenho que com o papel das escolas como mecanis­
mos de sociabilização.11
No modelo de desempenho acadêmico, não se problematiza o
conhecimento curricular. Pelo contrário, o conhecimento introdu­
zido nas escolas é geralmente aceito como dado, como neutro, de
m aneira que se podem fazer comparações entre grupos sociais,
escolas, crianças, etc. Portanto, o desempenho, a diferenciação e a
estratificação acadêmica, baseados em pressuposições relativamente
ainda não estudadas do que deva ser construído como conhecimento
de valor, constituem os interesses básicos que se acham por trás da
pesquisa. O enfoque tende a incidir na determinação das variáveis
que exercem forte influência no êxito ou no fracasso de um indivíduo
ou de um grupo na escola, tais como a “ subcultura do adolescente” ,
a distribuição desigual dos recursos educacionais ou, digamos, a
formação social dos estudantes. A m eta social é maximizar a produ­
tividade acadêmica.
Ao contrário do modelo de desempenho acadêmico, a abor­
dagem baseada na sociabilização não deixa necessariamente de
examinar o conhecimento escolar. De fato, um de seus interesses
fundamentais está em explorar as norm as e valores sociais transm i­
tidos pelas escolas. Contudo, devido a esse interesse, restringe-se ao
estudo do que poderia se cham ar de “ conhecimento moral” . Esta­
belece como dado o conjunto de valores sociais e investiga como a
escola, enquanto agente da sociedade, sociabiliza os estudantes com

(10) Essas questões são discutidas com mais profundidade no Capítulo 3 e em


Geoff Whitty e Michael Young (eds.). Explorations in the Politics o f School Know­
ledge. Nafferton, Inglaterra, Nafferton Books, 1976.
(11) Estou recorrendo à exposição perspicaz dessas duas tradições de pesquisa
em Philip Wexler. “ Ideology and Utopia in American Sociology of Education” .
Education in a Changing Society. Antonio Klostowska e Guido Martinotti (eds.).
London, Sage, 1977, p. 27-58.
so MICHAEL W. APPLE

seu conjunto “com partilhado” de regras e tendências normativas. A


pequena obra muito conhecida de Robert Dreeben, On What Is
Learned in Shools,12 pode se constituir aqui num excelente exemplo.
Naturalm ente, essas abordagens não são totalmente erradas e
contribuíram no passado para nossa compreensão das escolas como
mecanismos culturais e sociais, em bora talvez nem sempre da forma
pretendida pelas abordagens. De fato, um a vantagem das expli­
cações, digamos, da sociabilização feitas por Dreeben e outros é de
que elas intensificam nossa capacidade de elucidar o que se supõe
como certo, como senso comum, como dado, para que um a abor­
dagem como essa seja realmente aceita como um a explicação total­
mente convincente.13 Como tal, voltam-se para a natureza do signi­
ficado e controle nas escolas. É im portante o que aceitam taci­
tamente e que, por isso, deixam de questionar: num exame mais
atento, cada um a dessas duas tradições de pesquisa é problemática
à sua maneira. O modelo de desempenho acadêmico, influenciado
cada vez mais fortemente pelos interesses administrativos de con­
trole e eficiência técnica, começou a negligenciar o conteúdo real do
próprio conhecimento, deixando assim de considerar com seriedade
a possível conexão entre a economia e a estrutura do conhecimento
escolar, ao invés de discutir, digamos, a im portância da “ formação”
de estudantes totalmente determinados pela estrutura escolar, se “ se
deve observar a democracia rigorosamente” , e assim por diante. A
tradição da sociabilização, em bora perspicaz a seu modo, centra-se
no consenso social e nas paralelas que existem entre os valores
“ dados” de um a coletividade mais am pla e as instituições educa­
cionais. Ignora, portanto, em grande parte, o contexto político e
econômico em que funcionam esses valores sociais e por meio do
qual alguns conjuntos de valores sociais tornam-se os valores domi­
nantes (por definição de quem ?).14 Além do mais, ambas as tra ­
dições ignoram quase que inteiramente algumas das funções laten­
tes de forma e conteúdo do currículo escolar. E é exatamente isto o
que pretende examinar a tradição do que se passou a cham ar de
“ sociologia do conhecimento escolar” . 15

(12) Robert Dreeben. On What Is Learned in Schools. Reading, Mass., Addi­


son Wesley, 1968.
(13) Michael F. D. Young. “ On the Politics of Education Knowledge”. Edu­
cation in Great Britain and Ireland. R. Bell (ed.). London, Oxford, 1973, p. 201.
(14) Wexler, op. cit.
(15) Para um exame mais aprofundado das origens dessa tradição, ver Mi­
chael W. Apple. “Power and School Knowledge” . The Review o f Education III,
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 51

A sociologia e a economia do conhecimento escolar

Um ponto de partida fundamental dessa terceira tradição,


mais crítica, é o articulado por Young em sua proposição de que
existe um a “ relação dialética entre o acesso ao poder e a oportu­
nidade de legitimar algumas categorias dominantes, e o processo
pelo qual a acessibilidade dessas categorias a alguns grupos lhes
permite assegurar poder e controle sobre outros” . 16 Portanto, colo­
cada de um outro modo, a problemática implica examinar como um
sistema de poder desigual na sociedade é m antido, e em parte
reproduzido, por meio da “transm issão” de cu ltu ra,17 A escola,
como um im portante agente de reprodução cultural e econômica
(afinal, toda criança vai para a escola e esta exerce influências
significativas como um a instituição tanto de atribuição de títulos
acreditícios quanto de sociabilização), torna-se aqui, evidentemen­
te, um a instituição im portante.
Como a tradição de sociabilização, o enfoque dessas investi­
gações está centrado no modo como um a sociedade se estabiliza.
Qual é o lugar das escolas na manutenção da forma como são
controlados, produzidos e distribuídos os bens e serviços econômicos
e educacionais? E ntretanto, essas perguntas são orientadas por um a
postura mais crítica que a de Dreeben, por exemplo. Boa parte do
compromisso desses autores com essa determ inada espécie de pro­
blem a provém de um a afiliação com movimentos socialistas. Parte
de um princípio semelhante à posição que adotei no Capítulo 1. Isto
se assemelha de modo geral a um a teoria rawlsiana de justiça: isto e,
para que um a sociedade seja verdadeiramente justa, deve maxi­
mizar os privilégios dos menos privilegiados.18 Portanto, e preciso
questionar qualquer sociedade que aumente a relativa defasagem
entre, digamos, os ricos e os pobres no controle do “capital” econô­
mico e cultural e no acesso a ele (conforme dem onstram os últimos
relatórios econômicos, assim procede nossa sociedade, por exem-

26-49 (January-February 1977); e Michael W. Apple e Philip Wexler. "Cultural Capi­


tal and Educational Transmissions” . Educational Theory, XXVIII (Winter 1978).
(16) Michael F. D. Young. “ Knowledge and Control". Knowledge and Con­
trol. Michael F. D. Young (ed.), London, Collier-Macmillan, 1971, p. 8.
(17) Bourdieu e Passeron, op. cit. , p. 5.
(18) Analisei os compromissos conceituais e politicos mais profundamente em
Apple, “Power and School Knowledge” , op. cit.
52 MICHAEL W. APPLE

plo). Como é legitimada essa desigualdade? Por que é admitida?


Como diria Gramsci, como é m antida essa hegemonia?
P ara muitos desses pesquisadores, essa aparente estabilidade
social e ideológica está em parte “baseada na interiorização pro­
funda e em geral inconsciente pelo indivíduo dos princípios que
governam a ordem social existente” .19 No entanto, esses princípios
não são percebidos como neutros. São vistos como intimamente
interligados com a estratificação econômica e política.
Por exemplo, nas análises norte-americanas, britânicas e fran­
cesas feitas por Bowles e Gintis, Young e Bourdieu, e outros, a
percepção subjacente que o indivíduo possui da ordem social de que
faz parte fornece o lugar de compreensão. Assim, para dar um
exemplo, segundo um com entador britânico do livro de Bowles e
Gintis, livro que é interessante, porém mecanicista dem ais,20 “No
trabalho de Bowles e Gintis dá-se ênfase à im portância da escola­
rização na formação de diferentes tipos de personalidade que cor­
respondem às exigências de um sistema de relações de trabalho num
modo econômico de produção”-.21 Dessa forma, para Bowles e Gin­
tis, não somente a educação estabelece o lugar dos indivíduos num
conjunto relativamente fixo de posições na sociedade — um a distri­
buição de posições determ inada por forças econômicas e políticas
—, mas o próprio processo de educação, o currículo formal e o
oculto, sociabiliza as pessoas a aceitarem como legítimos os limitados
papéis que elas fundamentalmente ocupam na sociedade.22
Outros estudiosos de orientação semelhante adotam um a po­
sição comparável ao exam inar o efeito que as escolas podem exercer
na formação da consciência dos indivíduos. Assim, por exemplo,
Basil Bernstein afirma que, até um ponto significativo, formam-se,
“por meio da educação, as ‘estruturas m entais’ do indivíduo (isto é,
as categorias de pensamento, linguagem e comportamento) e que
essas estruturas mentais originam-se da divisão social do trabalho” .

(19) Madeleine MacDonald. The Curriculum and Cultural Reproduction.


Milton Keynes, Open University Press, 1977, p. 60.
(20) Samuel Bowles e Herbert Gintis. Schooling in Capitalist America. New
York, Basic Books, 1976.
(21) MacDonald, op. cit., p. 309. Este artigo também apresenta uma série de
críticas interessantes da dependência de Bowles e Gintis numa teoria da correspon­
dência.
(22) John W. Meyer. "The Effects of Education as an Institution” . American
Journal o f Sociology, LXXXIII (July 1977), 64.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 53

Na França, a investigação da relação entre a reprodução cultural e a


reprodução econômica está sendo realizada num veio paralelo por
Bourdieu. Ele analisa as regras culturais, que denomina habitus,
que vinculam o controle e a distribuição cultural e econôm ica.23
Bourdieu enfoca a capacidade do estudante de absorver o que
se poderia cham ar de “cultura de classe média” . Afirma que o
capital cultural armazenado nas escolas atua como um filtro eficaz
na reprodução de um a sociedade hierárquica. Por exemplo, as
escolas em parte reproduzem as hierarquias social e econômica da
sociedade mais am pla através do que aparentem ente é um processo
neutro de seleção e instrução. Consideram o capital cultural, o
habitus, da classe média como natural e o aplicam como se todas a£
crianças tivessem igualdade de acesso a ele. No entanto, “ ao tom ar
todas as crianças como iguais, em bora implicitamente favoreçam
aquelas que já adquiriram os meios lingüísticos e sociais para m anu­
sear a cultura de classe média, as escolas tomam por natural o que é
essencialmente um dom social, isto é, o capital cultural” . 24 Bour­
dieu pede-nos, então, para pensar o capital cultural como pensa­
ríamos o capital econômico. Exatamente como nossas instituições
econômicas dominantes são estruturadas de modo a que aqueles que
herdem ou já possuam capital econômico saiam-se melhor, da
mesma forma tam bém atua o capital cultural. O capital cultural (“o
bom gosto” , alguns tipos de cohhecimento anterior, aptidões e
formas de linguagem) é em geral distribuído por toda a sociedade e
isto depende em grande parte da divisão do trabalho e do poder
nessa sociedade. “ Selecionando em favor dessas propriedades, as
escolas servem para reproduzir a distribuição de poder na socie­
dade.” 25 Para Bourdieu, para compreender completamente o que
fazem as escolas, quem tem êxito e quem fracassa, não se deve ver a
cultura como neutra, como necessariamente contribuindo para o pro­
gresso social. Pelo contrário, deve-se ver a cultura, tacitamente
m inistrada pelas escolas, como contribuindo para a desigualdade
fora dessas instituições.
Além dessas questões, pois, está a afirmação de que teremos de
reconhecer que, como a pobreza, um desempenho fraco não é um a

(23) MacDonald, op. cit.


(24) Roger Dale et al. (eds.). Schooling and Capitalism: A Sociological Rea­
der. London, Routledge & Kegan Paul, 1976, p. 4.
(25) Ibid.
54 MICHAEL W. APPLE

aberração. Tanto a pobreza quanto os problemas curriculares,


como, por exemplo, o de um baixo índice de aproveitamento, são
produtos integrais da organização da vida econômica, cultural e
social como a conhecem os.26 Brevemente terei mais a dizer quanto a
se ver muitos problemas curriculares, como o do desempenho, como
“produzidos naturalm ente” por nossas instituições, quando consi­
derar o corpus formal do conhecimento escolar na próxima seção
desta análise.
Em vista de razões desse tipo, o que está fundamentalmente
afirmando essa terceira tradição?27

A suposição subjacente à maioria das teorias da “reprodução” é de


que a educação desempenha um papel mediador entre a consciên­
cia individual e a sociedade em geral. Esses teóricos sustentam
que as regras que dirigem o comportamento social, as atitudes, as
morais e as crenças, são filtradas desde o macronível da estruturas
econômicas e políticas até o indivíduo via experiência de trabalho,
processos educacionais e sociabilização familiar. O indivíduo adquire
uma consciência e percepção específica da sociedade em que vive. E é
essa compreensão e essa atitude para com a ordem social que [em
grande parte] constitui sua consciência.

As escolas, por conseguinte, “preparam ” tanto conhecimento


como pessoas. Fundam entalm ente, o conhecimento formal e infor­
mal é usado como um intrincado filtro para preparar as pessoas,
freqüentemente por classe; e, ao mesmo tempo, transmitem-se dife­
rentes tendências e valores a diferentes populações escolares, nova­
mente em geral por classe (e sexo e raça). Com efeito, para essa
tradição mais crítica, as escolas reproduzem de modo latente as
disparidades culturais e econômicas, embora com certeza isto não
seja absolutamente o que a maioria dos burocratas das escolas pre­
tendam.
Deixe-me parar por aqui, para esclarecer um a coisa: isto não é
sustentar que a cultura ou a consciência seja mecanicistamente
determinada (no forte sentido do termo) pela estrutura econômica.

(26) R. W. Connell. Ruling Class, Ruling Culture. New York, Cambridge


University Press, 1977. Será mais explorado no Capítulo 3 como isto realmente opera
especialmente através do complexo processo de rotulação que se efetua nas escolas!
(27) MacDonald, op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 55

Procura, antes, trazer ao nível da consciência e problem atizar histó­


rica e empiricamente a relação dialética entre o controle e a distri­
buição cultural e a estratificação econômica e política.28 Nossas
percepções comuns — as que são tiradas dos modelos de desem­
penho e de sociabilização — são, assim, equiparadas. O interesse
cognitivo” subjacente ao plano de pesquisa é ver relacionalmente,
caso assim se queira chamar, é pensar o conhecimento escolar como
oriundo dos conflitos ideológicos e econômicos que se acham tanto
“ fora” como “ dentro” da educação. Esses conflitos e forças impõem
limites (não determ inam mecanicistamente) às respostas culturais.
Isso exige sutileza e não apreciações que defendam um a correspon­
dência total e exata entre a vida institucional e as formas culturais.
Nem todos currículos nem toda cultura são meros produtos de
simples forças econômicas.29
De fato, desejo agora registrar um a advertência crítica. Existe
aqui um risco evidente, um risco que não pode passar despercebido.
Problematizar o “ conteúdo” real do currículo, submeter o que
correntemente se toma por conhecimento legítimo a rigoroso exame
ideológico, pode levar a um a qualidade vulgar de relativismo. Ou
seja, ver o conhecimento curricular manifesto e o oculto como pro­
dutos sociais e históricos tende em últim a análise a levantar questões
acerca dos critérios de validade e de verdade utilizados.30 As ques­
tões epistemológicas que poderiam ser formuladas aqui não são
desinteressantes, para se dizer o mínimo. No entanto, o que se acha
por trás dessas investigações não é relativizar totalmente nem nosso
conhecimento nem nossos critérios p ara garantir sua veracidade ou
falsidade (embora a tradição m arxista tenha um a longa história
dessa discussão, como a controvérsia entre os textos de Adorno e os
de Popper, por exemplo. Por sinal, temos muito a aprender com as
questões epistemológicas e políticas despertadas por essa discus-

(28) A natureza dupla dessa relação — como a cultura e a economia se inter­


penetram e influenciam uma à outra numa forma dinâmica — é mais bem examinada
por Raymond Williams, “ Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory” . New
Left Review, LXXXII (November/December 1973).
(29) Ibid. Veja-se também o capítulo final, “Aspects of the Relations Between
Education and Production” . In \ Bernstein, op. cit.
(30) Michael F. D. Young. “Taking Sides Against the Probable” . Rationa­
lity, Education and the Social Organization o f Knowledge. London, Routledge &
Kegan Paul, 1977, p. 86-96; e Michael W. Apple. “Curriculum as Ideological Se­
lection” . Comparative Education Review, XX (June, 1976), 209-15.
56 MICHAEL W. APPLE

são).31 Em vez disso, como acabei de mencionar, trata-se no plano


do conhecimento de pensar relacional ou estruturalmente. Em ter­
mos mais claros, dever-se-ia procurar as implicações sutis entre
fenômenos educacionais, como o currículo, e os resultados latentes
sociais e econômicos da instituição.
Esses objetivos evidentemente são semelhantes aos que são
freqüentemente associados aos teóricos críticos da Escola de F rank­
furt, que sustentaram que o contexto em que percebemos os fatos
sociais, a forma geral como conceitualmente organizamos nosso
mundo, pode ocultar o fato de que esses fenômenos aparentemente
comuns servem a interesses específicos.32 Mas esses interesses não
podem ser meramente supostos; precisam ser comprovados. A fim
de lançar algumas das bases dessa comprovação, precisaremos nos
voltar para algumas das hipóteses que, como antes referi, gostaria
de sugerir. Precisaremos explorar como a distribuição cultural e o
poder económico estão intimamente entrelaçados, não apenas na
transmissão do “conhecimento moral” segundo alguns dos teóricos
da reprodução, mas no corpus formal do próprio conhecimento
escolar.

Quanto ao problema do conhecimento de alto nível

A discussão nas seções anteriores deste capítulo convergiram


para o aprofundam ento de nossa compreensão das razões políticas,
econômicas e conceituais gerais enfocadas por aqueles estudiosos
interessados no problema de ideologia e currículo. Comparou-se
essa tradição crítica com os modelos de desempenho e sociabilização
predominantes na área.

(31) Veja-se, por exemplo, Albrecht Wellmer. Critical Theory o f Society. New
York, Herder and Herder, 1971, principalmente o Capítulo 1. Veja-se também a
discussão da posição tomada pelo filósofo marxista francês Louis Althusser, in:
Miriam Glucksmann. Structuralist Analysis in Contemporary Social Thought. Lon­
don, Routledge & Kegan Paul, 1974. Embora possa ser difícil lidar com “ a demons­
tração” das asserções sociais de orientação crítica usando-se a tradição positivista,
isto não quer dizer que seja inconseqüente a comprovação empírica de aspectos do
problema. Isto é excelentemente discutido em Connell, op. cit.
(32) Ian Hextall e Madan Samp. “ School Knowledge, Evaluation and Aliena­
tion” . Society, State and Schooling. Michael F. D. Young e Geoff Whitty (eds.).
London, Falmer Press, 1977, p. 151-71.
IDEOLOGIA E CURRlCULO 57

Gostaria agora de considerar um aspecto da relação entre a


distribuição cultural e o poder econômico e explorá-lo mais a fundo.
Quero empregar esse modelo crítico para incluir algumas especu­
lações sobre a forma como um conhecimento — particularm ente
aquele conhecimento considerado de maior prestígio nas escolas —
pode de fato estar ligado à reprodução econômica. Fundam ental­
mente, quero passar a cogitar algumas das questões associadas à
distribuição de conhecimento e à criação de desigualdade que auto­
res como Bourdieu, Bernstein, Young e outros procuraram levantar.
Em nossa mente, creio, deveria estar a idéia de Bourdieu que relatei
na última seção. Se você quer entender como as formas culturais e
económico-políticas trabalham interligadas, então pense em ambas
como aspectos do capital.
A fim de sondar as conexões entre essas formas, deverei usar a
linguagem das “transmissões” culturais, em verdade considerando
os artefatos culturais e o conhecimento como se fossem coisas. A
noção de “como se” deve ser entendida exatam ente como tal, como
um a metáfora para lidar com um processo ético mais complexo em
que, digamos, os estudantes não apenas recebem informação, atri­
butos culturais, etc., mas também transform am (e às vezes rejeitam)
essas tendências, propensões, habilidades e fatos previstos em signi­
ficados biograficamente relevantes.33 Assim, embora o ato de consi­
derar o conhecimento como um a coisa contribua para facilidade de
discussão, para um a simplificação metodológica, caso assim se
queira chamá-lo, é preciso que seja entendido exatamente como um
ato simplificador. (O fato de que é geralmente considerado como
um a coisa em nossa sociedade é sinal de sua reificação como um a
mercadoria em sociedades industriais.)34
Mais um a vez, um a das idéias de Michael F. D. Young é útil
aqui como ponto de partida. Ele afirma que “ aqueles que se encon­
tram em posições de poder tentarão definir o que se considera como
conhecimento, o grau de acessibilidade de qualquer conhecimento a
diferentes grupos, e quais são as relações aceitas entre diferentes

(33) Ver os artigos de Mehan e McKay em Hans Peter Dreitzel (ed.). Child­
hood and Socialization. New York, Macmillan, 1973; e Linda M. McNeil, “Economic
Dimensions of Social Studies Curricula: Curriculum as Institutionalized Know­
ledge” . (Tese de doutoramento nSo publicada, Universidade de Winconsin, Madison,
1977.)
(34) Whitty, op. cit.
58 MICHAEL W. APPLE

áreas de conhecimento e entre aqueles que têm acesso a elas e as


tornam acessíveis” . 35 Em bora isto esteja sem dúvida mais relacio­
nado ao modo como atua a hegemonia para saturar nossa consciên­
cia e nem sempre ou mesmo necessariamente seja um processo
consciente de manipulação e controle, podendo, portanto, ser um
pouco exagerado, levanta de fato a questão do relativo nível do
conhecimento e sua acessibilidade. Pois nessa afirmação encontra-se
um a proposição que poderia implicar que a posse de um conheci­
mento de alto nível, conhecimento a que se atribui importância
excepcional e que se vincula à estrutura de economias industriali­
zadas, está relacionada à não-posse por outros, e de fato parece
implicá-la. Fundam entalm ente, o conhecimento de alto nível “ é es­
casso por definição, e sua escassez está inextrincavelmente ligada à
sua instrum entalidade” .36
Esta é um a questão excepcionalmente crítica e precisa ser
discutida um pouco mais aprofundadamente. Tenho afirmado que
as escolas não apenas “preparam ” pessoas, mas que também “pre­
param ” o conhecimento. Ampliam e dão legitimidade a determ ina­
dos tipos de recursos culturais que estão relacionados a formas
econômicas desiguais. Para compreender isso, devemos pensar a
respeito das espécies de conhecimento que as escolas consideram
como as mais importantes, que elas querem maximizar. Definirei
isto como um conhecimento técnico, não para denegri-lo, mas para
diferenciá-lo, digamos, de estética, educação física, e assim por
diante. A concepção da maximização do conhecimento técnico é um
princípio útil, creio, para começar a revelar algumas das ligações
entre o capital cultural e o capital econômico.37

(35) Michael F. D. Young. “An Approach to the Study of Curricula as Social­


ly Organized Knowledge ’. In: Young. Knowledge and Control, op. cit. Há paralelos
interessantes entre o trabalho de Young e o de Huebner em seu enfoque sobre a
acessibilidade do currículo. Compare-se Dwayne Huebner. “Curriculum as the Acces­
sibility of Knowledge” . (Artigo não publicado apresentado no Grupo de Estudo da
Teoria do Currículo, em Minneápolis, em 2 de março de 1970, mimeo.).
(36) Bernice Fischer. "Conceptual Masks; An Essay Review of Fred Inglis,
Ideology and Imagination” . Review o f Education, I (November 1975), 526. Ver
também Hextall e Sarup, op. cit.
(37) O princípio de que as escolas servem para maximizar a produção de
conhecimento técnico foi primeiramente observado por Walter Feinberg em seu capí­
tulo “A Critical Analysis of the Social and Economic Limits to the Humanizing of
Education” . Humanistic Education: Visions and Realities. Richard H. Weller (ed.).
Berkeley, McCutchan, 1977, p. 249-69. Minha análise aqui deve muito à dele.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 59

Nosso tipo de sistema econômico é organizado de um a tal


forma que pode criar apenas um a determ inada quantidade de em ­
pregos e ainda assegurar elevadas taxas de lucro para as empresas.
Fundam entalm ente, o aparelho econômico está em sua maior efi­
ciência quando existe um índice de desemprego (medido) de apro­
ximadamente 4-6 por cento (embora saibamos que esta é um a
medida notavelmente imprecisa a que se deveriam acrescentar as
questões de índices muito mais altos para os negros, elevados níveis
de subemprego e de trabalho sem remuneração feito por muitas
mulheres no lar). Proporcionar trabalho útil para esses indivíduos
exigiria um corte nas taxas aceitáveis de lucro e provavelmente
exigiria pelo menos a reorganização parcial dos assim chamados
“ mecanismos de mercado” que distribuem empregos e recursos. Em
virtude disso, não seria um a metáfora inadequada descrever nosso
sistema econômico como produzindo naturalmente níveis especifi­
cáveis de subemprego e de desem prego.38 Podemos pensar esse
modelo como um modelo que está preocupado em primeiro lugar
com a maximização da produção de lucro e apenas secundariamente
com a distribuição de recursos e de empregos.
Agora, um modelo semelhante parece mostrar-se verdadeiro
quando pensamos o conhecimento em sua relação com um a econo­
mia como essa. Um a economia industrializada requer a produção de
elevados níveis de conhecimento técnico para m anter o aparelho
econômico funcionando eficientemente, e para tornar-se ainda mais
sofisticada na maximização de oportunidades para a expansão eco­
nômica. Dentro de certos limites, o que realmente se exige não é a
distribuição am pla desse conhecimento de alto nível à população em
geral. O que é mais necessário é maximizar sua produção. Enquanto
a forma de conhecimento é constante e eficientemente produzida,
a própria escola é eficiente, ao menos nesse im portante aspecto de
sua função. Assim, podem-se tolerar alguns fracos níveis de desem­
penho por parte dos estudantes de grupos minoritários, os filhos dos
pobres, e assim por diante. É de conseqüência menor para a eco­

(38) Andrew Hacker. “ Cutting Classes” . New York Review o f Books, XXIII
(May, 1976), 15. Hacker observa que, em seu emprego total, nossa economia pode
utilizar proveitosamente apenas cerca de 43% da população na faixa de trabalho.
Não é rentável empregar mais do que isso. “Alguns dos 57% desnecessários tornam-
se donas-de-casa, estudantes universitários, ou aposentam-se com pensões modestas.
Outro, no entanto, devem destinar-se a uma vida de pobreza, porque o sistema
econômico não lhes oferece alternativas."
60 MICHAEL W. APPLE

nomia do que para a produção do próprio conhecimento. Nova­


mente, a produção de um a determ inada “ m ercadoria” (no caso,
o conhecimento de alto nível) é de maior interesse que a distribuição
dessa determ inada mercadoria. Até o ponto em que não interfiram
na produção de conhecimento técnico, podem ser tolerados os inte­
resses por distribuí-los mais eqüitativamente.
Portanto, exatam ente como no “ mercado de bens” , em que é
mais eficiente ter-se um nível de desemprego relativamente cons­
tante, para de fato produzi-lo realmente, assim também as insti­
tuições culturais “ naturalm ente” criam níveis de desempenho insa­
tisfatório. A distribuição ou escassez de algumas formas de capi­
tal cultural têm menos im portância para este cálculo de valores do
que a maximização da produção do próprio conhecimento.
Isto, creio, explica parcialm ente o papel econômico da dis­
cussão sobre níveis culturais e m atrícula aberta a todos nas univer­
sidades. Tam bém esclarece algumas das razões por que as escolas e
os currículos parecem ser organizados para a vida universitária em
termos da predominância dos currículos centrados nas áreas de
conhecimento e o relativo prestígio oferecido às diferentes áreas
curriculares. A relação entre a estrutura econômica e o conheci­
mento de alto nível poderia também explicar algumas das grandes
disparidades nos níveis de distribuição de recursos para inovações
curriculares em áreas técnicas e nas artes, por exemplo.
A estrutura da tendência de áreas de conhecimento constitui
um exemplo interessante de muitas dessas questões sobre poder e
cultura. A abordagem centrada nas áreas de conhecimento não era
um desafio sério à visão tradicional do currículo. E ra antes um a
demonstração de que um a determ inada m ercadoria — no caso o
conhecimento acadêmico — não estava sendo efetivamente “barga­
nhada” por um a determ inada comunidade nas escolas.39 Mesmo
quando era aceita pela maioria dos burocratas das escolas como o
conhecimento curricular mais im portante e recebia grandes doses de
apoio federal para auxiliar sua adoção nas escolas, eram claras as
divergentes reivindicações de poder quanto a qual deveria ser o
conhecimento de alto nível.
Por exemplo, concederam-se recursos vultosos ao desenvolvi­

(39) Geoff Whitty e Michael F. D. Young. "The Politics of School Know­


ledge” . Times Educational Supplement, 20. (5 de setembro de 1973.)
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 61

mento do currículo de ciências e m atemática, ao passo que se deram


menos recursos às artes e às hum anidades. Isto ocorria e ainda
ocorre por duas razões possíveis. A prim eira é a questão da utilidade
econômica. Os lucros provenientes da maximização da produção de
conhecimento científico e técnico são facilmente notáveis e, pelo
menos na época, pareciam fora de controvérsia. Em segundo lugar,
o conhecimento de alto nível mostra-se como conhecimento à parte.
Tem um conteúdo (supostamente) identificável e um a estrutura
(ainda supostamente) estável40 que são tanto ensináveis quanto,
o que é fundamentalmente im portante, verificáveis. As artes e
hum anidades evidentemente têm sido encaradas como menos recep­
tivas a esses critérios, supostamente em virtude da própria natureza
de seu assunto. Portanto, aqui se encontra em operação um a propo­
sição dupla, quase circular. Vê-se o conhecimento de alto nível como
vantajoso, do ponto de vista macroeconômico, em termos de lucros
duráveis para a maioria das classes com poder na sociedade, e as
definições socialmente aceitas de conhecimento de alto nível im pe­
dem que se considere o conhecimento não técnico.
É im portante observar a ênfase nas considerações macroeco­
nômicas. Evidentemente, o conserto de aparelhos de tv é um a m até­
ria que, se bem aprendida, pode proporcionar lucros econômicos
àquele que a utiliza. Entretanto, a própria economia não será exces­
sivamente prejudicada se este não receber um a posição de prestígio.
De fato, se a análise de Braverman está correta — de que nossa
estrutura econômica exige a contínua divisão e desdobramento de
habilitações complexas em habilitações menos complexas e mais
padronizadas —, o controle econômico pode ser corroborado pela
falta de prestígio conferida a um a arte como essa. O mesmo
não parece se m ostrar verdadeiro quanto ao conhecimento téc­
nico.41

(40) Esta é uma reivindicação empírica, naturalmente, e é falsificável. Há


uma série de educadores e cientistas que discordariam dessa simplificação da ciência
e da matemática. Veja-se, por exemplo, Thomas Kuhn. The Structure o f Scientific
Revolutions. University of Chicago Press, 1970. Discutem-se exatamente agora quais
os aspectos dos "paradigmas” científicos que são estáveis. Ver Imre Lakatos e Alan
Musgrave (eds.). Criticism and the Growth o f Knowledge. Cambridge University
Press, 1970; e Stephen Toulmin. Human Understanding. Princeton University Press,
1972.
(41) Harry Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York, Monthly
Review Press, 1975.
62 MICHAEL W. APPLE

Há dois níveis em operação aqui. As regras sociais e econô­


micas constitutivas ou subjacentes tornam essencial que sejam ensi­
nados os currículos centrados nas áreas de conhecimento, que se
confira um status elevado ao conhecimento técnico, o que se deve em
grande parte à função seletiva da escolarização. Em bora isto seja
mais complexo do que posso exam inar aqui, é mais fácil estratificar
os indivíduos segundo “critérios acadêmicos” quando se emprega
conhecimento técnico. A estratificação ou a articulação em grupos é
im portante porque nem todos os indivíduos são vistos como deten­
tores da capacidade de contribuir para a produção da forma de
conhecimento necessária. Assim, o conteúdo cultural (o conheci­
mento legítimo ou de alto nível) é usado como um dispositivo ou um
filtro para a estratificação econômica,42 intensificando com isso a
contínua expansão do conhecimento técnico num a economia como a
nossa. Ao mesmo tempo, porém, poder-se-ia esperar que, neste
modelo constitutivo, os educadores fossem relativamente livres para
reagir (ou não reagir) a pressões econômicas mais imediatas, como
a educação de carreira e assim por diante.
Em resumo, uma razão im portante do predomínio na maioria
das escolas de currículos centrados nas áreas de conhecimento, do
fato de os currículos integrados encontrarem-se relativamente em
poucas escolas, deve-se ao menos em parte ao lugar ocupado pela
escola na maximização da produção de conhecimento de alto nível.
Isto está intim am ente relacionado ao papel da escola na seleção de
agentes para ocupar posições econômicas e sociais num a economia
relativamente estratificada que os analistas da economia política da
educação têm procurado retratar.
Junto com Young, sugeri aqui que algumas das relações entre
quem controla recompensa e poder num a sociedade, os padrões de
valores dominantes e a organização do capital cultural podem ser
mais bem reveladas pelo enfoque da estratificação do conhecimento.
Não seria ilógico asseverar que, com base no que demonstrei aqui,
tenderá a ser combatida qualquer tentativa de se fazerem alterações
de substância na relação entre conhecimento de alto nível e de baixo
nível, igualando, digamos, diferentes áreas de conhecimento. Isto

(42) A estreita relação entre os currículos acadêmicos, a distribuição de re-


cursos escassos, e a rotulação e a bitolação do aluno do nível secundário é docu­
mentada em James E. Rosenbaum. Making Inequality. New York, John Wiley &
Sons, 1976.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 63

também provavelmente significaria que tentativas de se utilizar cri­


térios diferentes para julgar o valor relativo de diferentes áreas
curriculares serão encaradas como incursões ilegítimas, como am ea­
ças àquela “ ordem ” específica.43
Não é difícil encontrar exemplos disso nas áreas de avaliação.
Por exemplo, a forma habitual de se avaliar o êxito dos currículos é
por meio do emprego de um procedimento técnico, comparando-se
input com output. O núm ero de pontos obtidos nos testes elevou-se?
Os estudantes dominaram o m aterial? Este é, naturalm ente, o mo­
delo de desempenho que descrevi acima. Quando educadores ou
analistas políticos querem avaliar de um outro modo, menos téc­
nico, seja observando a “ qualidade” daquela experiência curricular,
seja levantando questões sobre a natureza ética das relações envol­
vidas na interação, eles podem muito simplesmente ser demitidos.
O discurso científico e técnico em sociedades industriais tem mais
legitimidade (status elevado) que o discurso ético. O discurso ético
não pode ser facilmente operacionado num a perspectiva de input-
output. E, finalmente, os critérios “científicos” de avaliação resul­
tam em “conhecimento” , ao passo que os critérios éticos conduzem
a considerações puram ente subjetivas. Isto apresenta importantes
implicações para a visão que temos de nós mesmos como neutros, e
adquirirá significado maior quando mais tarde analisarmos o modo
como a ciência “funciona” na sociedade.
Um exemplo corrente poderia ser útil aqui. Após sólidas
reanálises de estudos que relacionam a escolarização à mobilidade
social, Jencks, em Inequality, concluiu ser bastante difícil fazer
generalizações a respeito dos papéis desempenhados pelas escolas
para aum entar as chances do indivíduo de um futuro melhor.
Assim, observa que poderia ser mais sensato dar menos enfoque à
mobilidade social e ao desempenho e mais enfoque à qualidade da
experiência concreta de um estudante nas salas de aula, alguma
coisa com insinuações estranham ente (embora agradavelmente)
deweynianas. No entanto, a idéia de Jencks de que devemos dar maior
atenção à qualidade de vida em nossas instituições educacionais tem
suas origens em considerações éticas e políticas e foi prontam ente
descartada. Seus critérios p ara fazer essa afirmação foram julgados
ilegítimos. Tiveram pouca validade no conjunto específico dos jogos

(43) Young. "An Approach to the Study of Curriculum as Socially Organized


Knowledge” . Op. cit. , p. 34.
64 MICHAEL W. APPLE

de linguagem de que participa a avaliação e, desse modo, receberam


pouco status.44
Observe-se um outro aspecto sobre o que ocasiona essa insis­
tência em critérios técnicos. Ela torna tanto os tipos de questão
formulados quanto as respostas que se lhes dão o reduto de espe­
cialistas, esses indivíduos que possuem o conhecimento de antemão.
Portanto, o relativo status do conhecimento está ligado aos tipos de
questões que se julgam aceitáveis, o que por sua vez parece estar
ligado à sua não-posse por outros indivíduos. A form a das questões
torna-se um aspecto da reprodução cultural, desde que essas só
podem ser respondidas por especialistas a quem já se distribuiu o
conhecimento técnico. A estratificação do conhecimento neste caso
mais um a vez envolve a estratificação de pessoas, embora menos a
um nível econômico.

Hegemonia e reprodução

Evidentemente, tudo isso está muito imbricado, sendo muito


difícil de deslindar, reconheço. Em bora nosso entendimento dessas
relações em aranhadas ainda seja experimental, desperta de um a
outra forma um a das questões a que me referi antes. Em vista das
sutis implicações nesse processo de produção de cultura, assim como
de reprodução econômica, como e por que é aceito? Surge, por­
tanto, mais um a vez a questão da hegemonia, da estabilidade ideo­
lógica, formulada pelos teóricos da reprodução.45 Pois é aqui que a
pesquisa de Bowles e Gintis, Bemstein, Bourdieu e outros sobre a

(44) A análise de Habermas do modo como as formas de utilitário-racionais,


ou instrumentais, de linguagem e ação passaram a dominar nossa consciência é de
grande esclarecimento aqui. Cf. Jürgen Habermas, Knowledge and Human Interests.
Boston, Beacon Press, 1971; e Michael W. Apple. “The Process and Ideology of
Valuing in Educational Settings” . Educational Evaluation: Analysis and Responsi­
bility. Michael W. Apple et al. (eds.). Berkeley, McCutchan, 1974, p. 3-34. Gosta­
ríamos de rastrear a valorização das formas utilitário-racionais de ação dentro do
crescimento simultâneo de determinados sistemas econômicos. O corpus do trabalho
de Raymond Williams fornece modelos fundamentais para esse tipo de pesquisa. Ver
The Long Revolution, op. cit.; e The Country and The City, op. cit.
(45) Críticas de algumas das pesquisas mais relevantes sobre a questão da
hegemonia podem ser encontradas em David W. Livingston. “On Hegemony in Cor­
porate Capitalist States”. Sociological Inquiry, XLVI (números 3 e 4, 1976), 235-50;
e R. W. Connell, op. cit., em especial os capítulos 7-10.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 65

reprodução social dos valores, normas e tendências transmitidos


pelo aparelho cultural de um a sociedade oferece parte de um a expli­
cação. Um a forma de reprodução (através da “sociabilização” e do
que se tem chamado de currículo oculto) que deveremos examinar
nos próximos três capítulos complementa um a outra (o corpus for­
mal do conhecimento escolar), cada um a das quais parece m anter
vínculos com a desigualdade econômica. É na inter-relação entre o
conhecimento curricular — o conteúdo que ensinamos, a “ cultura
legítima” — e as relações sociais da vida na sala de aula descritas
pelos teóricos da reprodução, que podemos começar a ver algumas
das relações reais m antidas pelas escolas com um a estrutura eco­
nômica desigual.
Observe-se novamente o que estou dizendo, pois faz parte de
um a discussão contra as teorias “conspirativas” , tão populares em
algumas críticas revisionistas da escolarização. Esse processo de
reprodução não é causado (no sentido profundo desse conceito)
por um a elite de administradores que se sentavam ou que agora se
sentam à volta de um a mesa para tram ar formas de “ liqüidar” seus
trabalhadores tanto no local de trabalho quanto na escola. Embora,
como veremos no Capítulo 4, um a explicação como essa possa des­
crever minuciosamente alguns aspectos da razão por que as escolas
fazem o que fazem ,46 não é um a explicação satisfatória da relação
de forças que realmente parece existir. Afirmo, ao contrário, que,
em virtude das formas econômicas e políticas existentes que agora
fornecem os princípios segundo os quais é organizada boa parte de
nosso cotidiano, esse processo reprodutivo é um a “ necessidade ló­
gica” para a contínua manutenção de um a ordem social desigual. O
desequilíbrio econômico e cultural segue-se “naturalm ente” . 47
Isto pode dificultar aos educadores, como nós, tratar do pro­
blema. Podemos, de fato, ter de encarar seriamente os compro­
missos políticos e econômicos que orientam os teoricos da repro­
dução. Uma análise educacional séria pode exigir um a teoria mais
coerente do Estado social e econômico de que fazemos parte. Em ­
bora tenha aqui explorado mecanismos culturais, é essencial, agora,
recordar a afirmação de Raymond Williams de que nem a cultura

(46) Ver também Herbert Gintis e Samuel Bowles. “Educational Reform in


the U.S.: An Historical and Statistical Survey” . New York, The World Bank, March
1977, mimeo.
(47) Raymond Williams. The Long Revolution, op. cit. , p. 298-9.
66 MICHAEL W. APPLE

nem a educação são variáveis independentes. Esquecer isso é ignorar


um campo primordial para ações e compromissos coletivos.
Parte desse interesse econômico é resumido por Henry Levin.
Numa recapitulação dos efeitos de intervenções educacionais de
grande escala pelo governo para tentar reduzir a desigualdade eco­
nômica por meio de reformas no currículo e no ensino, ele conclui

As políticas educacionais que visam resolver os dilemas sociais sur­


gidos do mal-funcionamento básico das instituições econômicas, so­
ciais e políticas da sociedade não são receptivas à solução através da
reforma e da politica educacional. A ação exeqüível pelo mais bene­
volente reformador educacional e pelo especialista político é limitada
pela falta de um eleitorado em favor da mudança e pela esmagadora
tendência do processo educacional na direção da reprodução social da
sociedade politicamente organizada. E existirá um resultado danoso
em nossos esforços se as tentativas de mudar a sociedade procurarem
desviar a atenção do centro do problema, criando e legitimando a
ideologia de que as escolas podem ser usadas para resolver problemas
que não se originaram no setor educacional.

Ainda mais um a vez, precisamos ser prudentes com esse tipo


de abordagem, pois pode nos levar de volta a ver as escolas nova­
mente como caixas negras. E isto é o que recusamos desde o prin­
cípio.

Algumas questões conclusivas

Quero encerrar aqui, sabendo muito bem que ainda muito


mais poderia e precisa ser dito sobre os tópicos que levantei. Por
exemplo, a fim de prosseguir com a relação entre o conhecimento
de alto nível e um a ordem social “externa” , seria preciso investigar a
história do surgimento concomitante de novas classes de funcioná­
rios públicos e o aparecimento de novos tipos de conhecimento “ile-48

(48) Henry M. Levin. "A Radical Critique of Educational Policy” . Stanford,


Califórnia, Occasional Paper of the Stanford University Evaluation Consortium,
March, 1977, mimeo., p. 26-7.
IDEOLOGIA E CURRlCULO 67

gítimo” .49 Essas questões evidentemente exigem muito mais refle­


xão sobre o problem a conceituai da relação dialética entre controle
social e estrutura econômica. Como um afeta o outro? Que papel
desempenha o próprio sistema educacional na definição de deter­
minadas formas de conhecimento como de alto nível? Que papel
exerce em ajudar a criar um processo de distribuição de títulos acre-
ditícios baseado na posse (e não-posse) desse capital cultural, um
sistema de títulos que fornece um a quantidade de agentes aproxi­
madamente equivalente às necessidades da divisão de trabalho na
sociedade? Essas questões implicam algo im portante, creio, pois
essa relação não é um a via de mão-única. A educação é aqui tanto
uma “causa” como um “ efeito” . A escola não é um espelho passivo,
mas um a força ativa, um a força que tam bém serve para legitimar as
ideologias e as formas econômicas e sociais tão estreitamente ligadas
a e la .50 E é exatam ente essa ação que precisa ser desvendada.
De costume, não se formulam questões desse tipo em currí­
culo, é claro. No entanto, precisamos lem brar que essas preocu­
pações não são totalmente novas no discurso que cerca a tradição
norte-americana. De fato, não devemos ver esse tipo de estudo do
currículo de tendência sociológica e econômica como sendo uma
tentativa de realizar um a “reconceituação do campo do curnculo,
embora esse nome tenha sido aplicado a algumas análises do poder e
do conhecimento .escolar.51 As questões que orientam este trabalho
precisam, antes, ser vistas como profundam ente fundadas na área
curricular, o que podemos ter infelizmente esquecido, dada a natu­
reza a-histórica da educação.
Precisamos apenas recordar o que estimulou os primeiros
reconstrucionistas sociais em educação (Counts, Smith-Stanley-Sho-
res, e outros) a começar a perceber que um dos temas que serviam

(49) Basil Bernstein fez algumas incursões intrigantes nesta área em seus
“Aspects of the Relations Between Education and Production” . In : Bernstein, op. cit.
Ver também Nicos Poulantzas. Classes in Contemporary Capitalism. London, New
Left Books, 1975; e Burton Bledstein. The Culture o f Professionalism. New York,
Norton, 1976.
(50) Veja-se o interessante ensaio de John W. Meyer, op. cit.. Também é de
alguma ajuda aqui a tentativa de Randall Collins de articular uma teoria dos
mercados culturais, em “ Some Comparative Principles of Educational Stratifica­
tion” . É, porém, um tanto confusa do ponto de vista conceituai. Veja-se minha res­
posta a ele em Harvard Educational Review, XLVII (November 1977), 601-2.
(51) William Pinar (ed.). Curriculum Theorizing: The Reconceptualists. Ber­
keley, McCutchan, 1975.
hK MICHAEL W. APPLE

no passado de orientação para trabalhos sobre currículo foi o papel


que as escolas exercem na reprodução de um a sociedade estrati­
ficada. Em bora esses autores possam ter sido muito otimistas ao ver
as escolas como poderosos agentes de correção desse desequilíbrio, e
embora vários deles finalmente tenham abandonado modificações
estruturais de grande escala em nossa sociedade politicamente orga­
nizada,52 o princípio de se examinarem as ligações entre as institui­
ções culturais e econômicas é legado valioso de nossa tradição. Ê
hora de torná-lo também nosso presente e nosso futuro.

(52) Walter Feinberg. Reason and Rhetoric: The Intellectual Foundations o f


Twentieth Century Liberal Educational Policy. New York, John Wiley, 1975
3
A economia e o controle
na vida escolar cotidiana
(em colaboração com Nancy King)

Como vimos no último capítulo, as escolas parecem contribuir


para a desigualdade na medida em que são tacitamente organizadas
para distribuir diferencialmente tipos específicos de conhecimento.
Isto está em parte relacionado tanto ao papel da escola de maxi­
mizar a produção de “ mercadorias” culturais técnicas quanto à
função classificatória ou selecionadora das mesmas em alocar pes­
soas para as posições “exigidas” pelo setor econômico da sociedade.
No entanto, como estamos passando a entender mais claramente,
as escolas também desempenham um importante papel na distri­
buição de tipos de elementos normativos e de tendências necessários
para fazer essa desigualdade mostrar-se natural. Ensinam um currí­
culo oculto que parece singularmente adequado a m anter a hege­
monia ideológica da maioria das classes que detêm o poder nessa
sociedade. Como colocado no Capítulo 2 pelos teóricos da reprodu­
ção, a estabilidade ideológica e social baseia-se em parte na interio-
rização, bem no fundo de nossa mente, dos princípios e das regras
do senso comum que dirigem a ordem social existente. Sem dúvida,
essa saturação ideológica será mais eficaz se feita nos primeiros anos
de vida. Nas escolas, isto significa que, quanto mais cedo, melhor,
basicamente desde o primeiro dia no jardim de infância. Os prin­
cípios e regras que são transmitidos darão sentido às situações dos
estudantes (as escolas são, de fato, organizadas de maneira a manter
essas definições) e ao mesmo tempo servirão aos interesses econô-
70 MICHAEL W. APPLE

micos. Estarão presentes, pois, ambos os elementos de um a ideolo­


gia efetiva.
Passemos a observar isto com mais atenção em primeiro lugar
sepultando alguns dos argumentos dos críticos mais românticos da
escolarização de que essas configurações ideológicas são transm i­
tidas porque os professores não se importam o suficiente. Então
poderemos ver quais normas e tendências economicamente arraiga­
das são realmente transm itidas em instituições de preservação e
distribuição cultural como são as escolas.

Escolarização e capital cultural

Um dos argumentos menos atraentes nos últimos anos tem


sido o de que as escolas são relativamente desinteressantes, enfa­
donhas ou o que seja, em virtude da apatia.1 Argumenta-se que as
escolas dissimuladamente ensinam tudo aquilo sobre o que os críti­
cos hum anistas tanto gostam de escrever e falar — consenso “com-
portam ental” , objetivos e normas antes institucionais que pessoais,
alienação do produto do trabalho, etc. — e que assim elas procedem
porque os professores, administradores e outros educadores real­
mente não sabem o que estão fazendo.
No entanto, um a perspectiva como essa é, na melhor das
hipóteses, enganosa. Em primeiro lugar, é completamente a-histó­
rica. Ignora o fato de que as escolas foram em parte projetadas para
ensinar exatamente essas coisas. O currículo oculto, o ensino tácito
de normas e expectativas^ sociais e econômicas, não é tão oculto ou
“ descuidado” como acreditam muitos educadores. Em segundo lu­
gar, ignora a tarefa básica desempenhada pelas escolas enquanto o
conjunto fundamental de instituições em sociedades industriais que
certifica a competência do adulto. Afasta as escolas de seu lugar
numa relação maior e muito mais poderosa de instituições econô­
micas e políticas que lhes conferem o significado. Ou seja, exata­
mente como em seu papel de maximizar a produção de conheci­
mento técnico, as escolas parecem, de modo geral, fazer o que se
espera que façam, ao menos em termos de fornecer tendências e
propensões “ funcionais” na vida futura numa ordem social e econô­
mica complexa e estratificada.

(1) Charles Silbermann. Crisis in thè Classroom. New York, Random House,
1970.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 71

Conquanto não haja dúvidas de que a apatia de fato exista não


apenas na opinião de Charles Silberman, não se constitui num
instrumento descritivo adequado — não mais que a venalidade ou a
indiferença — para explicar por que as escolas são tão contrárias à
mudança ou por que ensinam o que ensinam .2 Tampouco é um
instrumento conceituai adequado para pôr às claras o que, precisa­
mente, se ensina nas escolas ou por que alguns dos significados
sociais e não outros são utilizados na organização da vida escolar.
Ainda, não são apenas os críticos da escola que apresentam
uma análise muito simples do seu significado social e econômico.
Com m uita freqüência, o significado social da experiência escolar
tem sido aceito como não problemático pelos sociólogos da educa­
ção, ou apenas como problemas de manipulação pelos especialistas
em currículo e oqjros educadores com tendência a um a program a­
ção rígida de conteúdos. A área do currículo, mais do que outras
áreas educacionais, tem sido dominada por um a perspectiva que
poderia melhor chamar-se “tecnológica” , na medida em que o prin­
cipal interesse que orienta seu trabalho implica encontrar o melhor
conjunto de meios para se alcançar objetivos educacionais pré-esco-
lhidos.3 Como sugeri, contra essa base relativamente reformista e
não crítica, vários sociólogos e estudiosos do currículo, fortemente
influenciados pela sociologia do conhecimento tanto nas suas va­
riantes marxistas (ou neomarxistas) quanto fenomenológicas, co­
meçaram a questionar a falta de atenção para com a relação entre o
conhecimento escolar e os fenômenos extra-escolares. Vimos que um
ponto de partida fundamental para essas investigações foi muito
bem articulado por Michael Young, ao observar que existe um a
“relação dialética entre o acesso ao poder e a oportunidade para
legitimar algumas categorias dominantes, e o processo pelo qual a
acessibilidade a essas categorias a alguns grupos lhes permite a
garantia de poder e controle sobre outros” . 4 Fundam entalm ente,
assim como existe um a distribuição desigual do capital econômico

(2) Herbert Gintis e Samuel Bowles. ‘‘The Contradictions ol Liberal Educa-


tional Reform” . Work, Technology, and Education. Walter Feinberg e Henry Rose­
mont, Jr. (eds.). Urbana, University of Illinois Press, 1975, p. 109.
(3) Encontrará exame mais aprofundado no Capítulo 6 o fato de que isto nâo
é simplesmente um interesse “ intelectual” , mas incorpora compromissos sociais e
ideológicos.
(4) Michael F. D. Young. "Knowledge and Control” . Knowledge and Con-
trol. Michael F. D. Young(ed-). London, Collier-Macmillan, 1971, p. 8.
72 MICHAEL W. APPLE

na sociedade, há também um a semelhante distribuição do capital


cu ltu ral.5 Em sociedades industriais, as escolas têm importância
singular como distribuidores desse capital cultural, e desempenham
um papel fundamental ao dar legitimidade às categorias e formas de
conhecimento. O próprio fato de algumas tradições e o “conteúdo”
normativo serem construídos como conhecimento escolar é prova
suficiente de sua suposta legitimidade.
Quero demonstrar aqui que o problema do conhecimento
, educacional, do que se ensina nas escolas, tem de ser considerado
como -uma forma de distribuição mais ampla de bens e serviços
num a sociedade. Não se trata apenas de um problema analítico (o
que deve ser construído como conhecimento?), nem simplesmente
de um problema técnico (como devemos organizar e armazenar
conhecimento de modo que as crianças possam ter acesso a ele e
“ dominá-lo” ?), nem, tampouco, de um problema puramente psico­
lógico (como fazer para que os estudantes aprendam jc?). Trata-se,
antes, de que o estudo do conhecimento educacional é um estudo em
ideologia, a investigação do que é considerado conhecimento legí­
timo (seja conhecimento do tipo lógico do “ quê” , “como” ou
“p ara”) por grupos e classes sociais específicos, em instituições
específicas, em momentos históricos específicos. É, mais ainda, um a
forma de pesquisa de orientação crítica, na medida em que escolhe
enfocar como esse conhecimento, enquanto distribuído nas escolas,
pode contribuir para um desenvolvimento cognitivo e de tendências
que fortalece ou reforça os programas institucionais existentes (e em
geral problemáticos) na sociedade. Em termos mais claros, o conhe­
cimento manifesto e oculto encontrado nos equipamentos escolares,
e os princípios de seleção, organização e avaliação desse conheci­
mento, são seleções, dirigidas pelo valor, de um universo muito mais
amplo de conhecimento possível e princípios de seleção. Portanto,
não devem ser aceitos como dados, mas problematizados — ligados,
se assim se quiser cham ar — de modo que possam ser rigorosamente
examinadas as ideologias sociais e econômicas e os significados
padronizados que se encontram por trás deles. O significado latente
e a configuração que está por trás da aceitabilidade fundada no
senso comum de um a posição podem ser atributos mais im portan­
tes. E esses significados e relações institucionais ocultos raram ente

(5) John Kennett. “The Sociology of Pierre Bourdieu” . Educational Review,


XXV (June 1973), 238.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 73

são desmascarados se nos guiarmos apenas por reformas gradati­


vas.6 Como observado por Kallos, qualquer sistema educacional
possui “funções” tanto latentes quanto manifestas. Estas precisam
ser caracterizadas não apenas em termos educacionais (ou de apren­
dizado), porém, mais fundamentalmente, em termos político-econô­
micos. Em resumo, as discussões acerca da qualidade de vida edu­
cacional são relativamente desprovidas de sentido se não se reco­
nhecem as “ funções específicas do sistema educacional” . 7
Se estiver correta grande parte da literatura sobre o que taci­
tamente ensinam as escolas, então as funções específicas poderão ser
mais econômicas que intelectuais.
Neste capítulo, gostaria de enfocar alguns aspectos do pro­
blema da escolarização e do significado social e econômico. Deverei
ver as escolas como instituições que incorporam tradições coletivas
que cumprem determinadas finalidades hum anas que, por sua vez,
são os produtos de ideologias sociais e econômicas identificáveis.
Assim, nosso ponto de partida poderia ser melhor expresso com a
questão: "De quem são os significados reunidos e distribuídos atra­
vés dos currículos declarados e ocultos nas escolas?” . Ou seja, como
Marx apreciava dizer, a realidade não se achega com um rótulo. O
currículo nas escolas responde aos recursos ideológicos e culturais
provenientes de alguma parte e os representa. Nem todas as visões
de grupos são representadas nem se respondem a todos os signifi­
cados dos grupos. Como, então, as escolas atuam para distribuir
esse capital cultural? A quem pertence a realidade que “irrom pe”
nos corredores e nas salas de aula das escolas norte-americanas?
Deverei enfocar as duas áreas. Primeiro, apresentarei um a
descrição (que será consideravelmente aprofundada no Capítulo 4)
do processo histórico através do qual alguns significados sociais
tornaram-se particularm ente significados escolares e têm assim o
peso de décadas de aceitação por trás de si. Em seguida apresentarei
provas empíricas de um estudo de experiência em jardim da infân­
cia, para documentar a força e o poder de permanência desses
significados sociais. Finalmente, deverei questionar se as reformas

(6) Quanto à necessidade de se ver relacionalmente as instituições, consulte-se


Oilman. Alienation: M arx’s Conceptions o f Man in Capitalist Society. New York,
Cambridge University Press, 1971.
(7) Daniel Kallos. “Educational Phenomena and Educational Research” .
Relatório do Institute of Education, número 54, University of Lund, Lund. Suécia,
mimeo., p. 7.
74 MICHAEL W. APPLE

graduais, para a eliminação desses significados ideológicos, quer de


orientação hum anista ou de outras tendências, podem obter êxito
sozinhas.
A tarefa de lidar com conjuntos de significados nas escolas
tradicionalmente caiu sobre os ombros do especialista em currículo.
Historicamente, no entanto, seu interesse pelos significados nas es­
colas tem estado vinculado a noções diversas de controle social. Isto
não nos deveria surpreender. Deveria ser evidente, embora em geral
não o seja, que questões a respeito de significados em instituições
sociais tendem a se tornar questões de controle.8 Ou seja, as formas
de conhecimento (tanto os tipos declarado quanto oculto) encon­
tradas nos equipamentos escolares implicam noções de poder e de
recursos e controle econômico. A própria escolha do conhecimento
escolar, o ato de projetar contornos escolares, embora possam ser
feitos de modo não consciente, freqüentemente se baseiam em pres­
suposições ideológicas e econômicas que fornecem as regras do senso
comum para o pensamento e a ação dos educadores. Talvez as
ligações entre significado e controle nas escolas se tornarão mais
claras se refletirmos sobre um registro relativamente resumido da
história do currículo.

Significado e controle na história do currículo

O sociólogo britânico Bill Williamson demonstra que os ho­


mens e as mulheres “ têm de lutar com as formas institucionais e
ideológicas dos primeiros tempos como os limites básicos ao que
podem realizar” .9 Se essa noção deve ser levada a sério, então é
preciso entender o que se fornece e se ensina nas escolas em termos
históricos. Como observa Williamson, “As primeiras atitudes edu­
cacionais de grupos dominantes na sociedade ainda possuem in­
fluência histórica e são exemplificadas até mesmo nos tijolos e
no cimento dos próprios prédios das escolas” . 10

(8) Dennis Warwick. “Ideologies, Integration and Conflicts of Meaning” .


Educability, Schools and Ideology. Michael Flude e John Ahier (eds.). London,
Halstead Press, 1974, p. 94. Veja também Michael W. Apple, “Curriculum as
Ideological Selection” . Comparative Education Review, XX (June 1976), 209-15.
(9) Bill Williamson. “Continuities and Discontinuities in the Sociology of
Education” . In: Flude e Ahier, op. cit.,p . 10-11.
(10) Ibid.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 75

Se temos de ser honestos com nós mesmos, devemos reconhe­


cer que a área do currículo tem suas origens no terreno do controle
social. Seu paradigm a intelectual tomou forma pela prim eira vez no
início deste século e tornou-se um conjunto identificável de procedi­
mentos para seleção e organização do conhecimento escolar — pro­
cedimentos a serem transmitidos a professores e a outros educa­
dores. Naquela época, o interesse fundam ental na área do currículo
era o de controle social. Parte desse interesse é compreensível.
Muitas das im portantes figuras que influenciaram a área do currí­
culo (como Charles C. Peters, Ross Finney e, especialmente, David
Snedden) tinham interesses que transpunham tanto a área da socio­
logia educacional quanto os problemas mais gerais daquilo que real­
mente deveria acontecer nas escolas. A idéia de controle social
naquela época adquiria cada vez mais importância na American
Sociological Society e era um a idéia que parecia conquistar a im a­
ginação e a energia de muitos membros da intelligentsia nacional,
assim como de poderosos segmentos da comunidade comercial. Por
conseguinte, não é difícil ver como também conquistou aquelas
figuras generalistas, que eram tanto sociólogos como trabalhavam
com currículo.11
Mas um interesse pela escolarização como mecanismo de con­
trole social não foi tomado de empréstimo apenas à sociologia.
Os primeiros a se chamarem especialistas em currículo (homens
como Franklin Bobbitt e W. W. Charters) estavam preocupados de
maneira vital com o controle social também por razões ideológicas.
Esses homens estavam fortemente influenciados pelo movimento de
Administração Científica e pelo trabalho dos especialistas em quan­
tificação social;12 eram também orientados pela crença de que o
movimento popular de eugenia era um a força social “progressista” .
Assim, trouxeram o controle social para o centro do campo, cuja

(11) Barry Franklin. “The Curriculum Field and the Problem of Social Con­
trol, 1918-1938: A Study in Critical Theory” . Dissertação de doutoramento não
publicada, University of Wisconsin, Madison, 1974, p. 2-3.
(12) Ibid., p. 4-5. Veja também Steven Selden. “Conservative Ideologies and
Curriculum” . Educational Theory, XXVII (Summer 1977), 205-22. Dever-se-ia ob­
servar aqui que a própria Administração Cientifica não foi necessariamente uma
tecnologia neutra para criar instituições mais eficientes. Foi desenvolvida como um
mecanismo para a posterior divisão e controle do trabalho. Isto se acha em Harry
Braverman. Labor and Monopoly Capital: The Degradation o f Work in the Twen­
tieth Century, New York, Monthly Review Press, 1974.
76 MICHAEL W. APPLE

tarefa era desenvolver critérios de seleção daqueles significados com


os quais os estudantes entrariam em contato em nossas escolas.
Isto não significa dizer, é claro, que o controle social em si
mesmo seja sempre indesejável. É quase impossível intuir a vida
social sem algum elemento de controle, ao menos em virtude do fato
de as instituições, qua instituições, tenderem a responder às regula­
ridades de interação hum ana. Pelo contrário, houve historicamente
um conjunto específico de suposições — de regras do senso comum
— a respeito dos significados e do controle escolar que influenciou
fortemente os primeiros que trabalharam com currículo. Eles não
apenas adm itiram que a sociedade organizada deve manter-se atra­
vés da preservação de algumas de suas sedimentadas formas de
interação e significado (um “ fraco” sentido de controle social, muito
geral e totalmente compreensível). Tiveram também, perfeitamente
engastado em sua perspectiva ideológica, um “forte” sentido de
controle. Aqui, a educação em geral, e os significados cotidianos dos
currículos nas escolas em particular, eram vistos como elementos
essenciais à preservação dos privilégios sociais, dos interesses e do
conhecimento existentes, que eram as prerrogativas de um a parte da
população, m antidas às custas de grupos menos poderosos.13 Como
veremos consideravelmente em mais pormenores no Capítulo 4, isto
em geral tomou a forma de um a tentativa de assegurar o controle
especializado e científico na sociedade, de eliminar ou “ sociabilizar”
grupos raciais ou étnicos indesejados ou suas características, ou de
produzir um grupo de cidadãos economicamente eficientes, a fim
de, como expressa C. C. Peters, diminuir o desajustamento de
trabalhadores nas empresas. Esse último interesse, o substrato eco­
nômico da vida escolar cotidiana, adquire importância especial
quando, mais adiante neste capítulo, virmos o que as escolas ensi­
nam a respeito de trabalho e lazer.
Naturalmente, o controle social como idéia ou interesse não se
originou com as primeiras preocupações de utilizar o conhecimento
escolar para fins sociais conservadores. O controle social era um
objetivo implícito de muitos programas de reformas sociais e polí­
ticas desenvolvidos durante o século XIX tanto por meios estatais
quanto particulares. Era sua intenção, também, que a ordem, a
estabilidade e o imperativo do crescimento industrial pudessem ser
mantidos diante de uma diversidade de mudanças sociais e econô-

(13) Ibid.
IDEOLOGIA E CURRlCULO 77

micas.14 Como dem onstra a análise de Feinberg das origens ideoló­


gicas da política educacional liberal, mesmo nesse século muitas das
reformas “ propostas” , tanto nas escolas como em outras áreas,
atenderam latentemente aos interesses sociais conservadores de esta­
bilidadee estratificação social.15
A discussão apresentada até aqui não se destina a desmas­
carar os feitos de educadores e reformadores sociais. Pelo contrário,
é um a tentativa de colocar o debate corrente relativo à falta de
hum anitarism o nas escolas, o ensino tácito de normas e valores
sociais, e assim por diante, dentro de um contexto histórico mais
amplo. Sem um tal contexto, não se pode entender completamente a
relação entre o que as escolas realmente fazem e um a economia
industrialmente desenvolvida como a nossa. O melhor exemplo
desse contexto pode ser encontrado no processo de escolarização em
geral e nos significados curriculares em particular. Por trás de boa
parte dessa discussão acerca do papel da educação formal nos
Estados Unidos durante o século XIX encontra-se um a diversidade
de interesses pela padronização dos “ ambientes” educacionais, pelo
ensino, através da interação escolar cotidiana, de valores morais,
normativos e de tendências, e pela adequação ao sistema econômico.
Hoje esses interesses recebem o nome de “currículo oculto” , dado
por Philip Jackson16 e outros. Mas é a própria questão de sua
ocultação que pode nos ajudar a descobrir a relação histórica entre o
que se ensina nas escolas e o contexto mais amplo das instituições
que a cercam.
Deveríamos estar conscientes do que, historicamente, o currí­
culo oculto não era absólutamente oculto, mas constituiu, ao con­
trário, a função manifesta das escolas durante grande parte de seu
curso como instituições. Durante o século XIX, a progressiva diver­
sidade de atributos e estruturas políticas, sociais e culturais “ impul­
sionaram os educadores a recuperar com renovado vigor a lingua­
gem do controle e homogeneização social que dom inara a retórica
educacional desde o início do período colonial” . 17 À medida que o

(14) Ibid., p. 317.


(15) Walter Feinberg. Reason and Rhetoric: The Intellectual Foundations o f
Twentieth Century Liberal Educational Policy. New York, John Wiley, 1975.
(16) Philip Jackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Wins­
ton, 1968.
(17) Elizabeth Vallance. "Hiding the Hidden Curriculum” . Curriculum
Theory Network, IV (Fall 1973/74), 15.
78 MICHAEL W. APPLE

século avançava, a retórica da reforma — de se justificar a posição


ideológica contra outros grupos de interesse — não centralizou seu
enfoque apenas na necessidade básica de homogeneidade social.
Não bastava usar as escolas como um meio básico de inculcar
valores e de criar um a “ comunidade am ericana” . As crescentes
pressões de modernização e industrialização também criaram algu­
mas expectativas por eficiência e ajustamento ao sistema econômico
junto a algumas classes e a um a elite industrial. Como expresso por
Vallanee, “ a um a sociabilização estrita acrescentou-se o enfoque na
eficiência organizacional” . Portanto, as reformas, com maior efeito
na organização escolar, e fundamentalmente nos procedimentos e
princípios que dirigiam a vida nas salas de aula, eram dominadas
por interesses na produção, ajustados ao sistema econômico, e em
habilidades burocráticas, assim como pela linguagem que exprime
esses interesses. Nesse processo, as razões subjacentes para a re­
forma lentamente passaram de uma ativa preocupação com o con­
senso de valores a um a adequação ao sistema econômico.18 Mas isso
só poderia ocorrer se o período anterior, com sua busca de um
caráter nacional padronizado, em grande parte construído através
das características das escolas, tivesse sido aceito e considerado
como bem-sucedido. Desse modo, os contornos institucionais das
escolas, com suas formas cotidianas de interação relativamente
padronizadas, forneceram os mecanismos pelos quais poderia ser
“transm itido” um consenso normativo. E nesses contornos gerais,
nessas regularidades “comportamentais” da instituição, caso assim
se queira chamar, firmou-se um conjunto ideológico de regras do
senso comum para a seleção do currículo e para organizar a expe­
riência escolar com base na eficiência, na adequação ao sistema
econômico e nas exigências burocráticas. Aquele tornou-se a estru­
tura profunda, o primeiro currículo oculto, que envolveu a este
último. Uma vez que o currículo oculto tornou-se oculto, quando se
tornou estabelecido um contexto de aprendizado uniforme e padro­
nizado, e quando a seleção e o controle social foram considerados
como dados na escolarização, então aí pôde-se dar atenção às neces­
sidades do indivíduo ou a outros interesses mais “etéreos” . 19
Portanto, historicamente, um núcleo de significados fundados
no senso comum, que conjugava o consenso normativo e o ajuste ao

(18) Ibid.
(19) Ibid., p .18-19.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 79

sistema econômico, foi construído dentro da verdadeira estrutura da


educação formal. Isto não significa que não houve movimentos
educacionais significativos voltados, digamos, para a auto-realiza­
ção. Mas, antes, por trás dessas escolhas preferenciais quanto às
necessidades do indivíduo, havia um conjunto de expectativas mais
poderoso em torno da escolarização que proporcionava a estrutura
constitutiva da experiência escolar. Como diversos economistas
observaram recentemente, a “ função latente” da vida escolar mais
importante do ponto de vista econômico parece ser a seleção e a
produção de atributos da personalidade e significados normativos
que permitem que se tenha um a suposta chance no sistema econô­
mico.20 Como vimos, isto está estritamente vinculado, também, ao
papel cultural da escola de maximizar a produção de conhecimento
técnico. Desde que a escola é a única instituição importante que
figura entre a família e o mercado de trabalho, não é estranho que,
tanto histórica como presentemente, sejam distribuídos nas escolas
alguns significados sociais de valor diferencial.
Mas o que são esses significados sociais? Como são organi­
zados e dispostos na vida escolar cotidiana? É para essas questões
que nos voltamos agora.

A ideologia e o currículo em uso

Os principais interesses da seção anterior com a relação entre


ideologia e conhecimento escolar, entre significados e controle, ten­
dem a ser muito vagos, a menos que se possa vê-los como forças nas
atividades dos burocratas das escolas e dos estudantes, à medida
que se ocupam de suas vidas nas salas de aula. Como observado
pelos pesquisadores do currículo oculto e por outros, os modos
concretos pelos quais se distribui o conhecimento nas salas de aula e
as práticas comuns de professores e estudantes podem esclarecer as

(20) Gintis e Bowles, op. cit., p. 133. Esses significados normativos e atri­
butos da personalidade são distribuídos desigualitariamente a diferentes “ tipos” de
estudantes, em geral por classe social ou expectativa profissional. Nem todos os
estudantes adquirem os mesmos elementos de tendências nem são os mesmos os
significados a eles atribuídos pelo distribuidor de capital cultural. Ver Gintis e
Bowles, op. cit. , p. 136.
80 MICHAEL W. APPLE

conexões entre a vida escolar e as estruturas de ideologia, poder e


recursos econômicos de que as escolas fazem p a rte .21
Exatam ente como existe um a distribuição social do capital
cultural na sociedade, tam bém se dá um a distribuição social do
conhecimento nas salas de aula. Por exemplo, diferentes “ tipos” de
estudantes recebem diferentes “ tipos” de conhecimento. Isto é bem
docum entado por Keddie em seu estudo do conhecimento que os
professores possuem de seus alunos e do conhecimento curricular
que então lhes é transm itido.22 No entanto, embora a distribuição
diferencial do conhecimento em sala de aula exista de fato, e
em bora esteja estreitamente ligada ao processo de rotulação social
que se empreende nas escolas23 (algo que documentarei com mais
clareza no Capítulo 7), tem menos importância para minha análise
que aquilo que se poderia cham ar de a “ estrutura profunda” da
experiência escolar. Que significados subjacentes são negociados e
transm itidos nas escolas por trás dos conteúdos reais do currículo?
O que se passa quando o conhecimento é filtrado através dos profes­
sores? Através de quais categorias de normalidade e desvio esse
conhecimento é filtrado? Qual é a estrutura básica e organizadora
do conhecimento normativo e conceituai que os estudantes real­
mente recebem? Em resumo, qual é o currículo em uso? É apenas
atingindo essa estrutura profunda que podemos passar a demons­
trar como as normas sociais, as instituições e as regras ideológicas
são continuam ente m antidas e mediadas pela interação diária dos
atores comuns, na medida em que exercem suas práticas norm ais.24
Isto é verdadeiro especialmente para as salas de aula. As definições
sociais sobre o conhecimento escolar — definições que tanto estão
dialeticamente relacionadas ao contexto mais amplo das instituições

(21) Veja-se, por exemplo, Michael W. Apple. “Ivan Illich and Deschooling
Society: The Politics of Slogan Systems” . Social Forces and Schooling. Nobuo Shi-
mahara e Adam Scrupski (eds.). New York, David McKay, 1975, p. 337-60; e Mi­
chael F. D. Young. “An Approach to the Study of Curricula as Socially Organized
Knowledge” . In ; Young. Knowledge and Control, op. cit., p. 19-46.
(22) Nell Keddie. "Classroom Knowledge” . In'. Michael F. D. Young. Know­
ledge and Control, op. cit., p. 133-60.
(23) Ver John Eggleston. The Sociology o f the School Curriculum. London,
Routledge & Kegan Paul, 1977.
• (24) Este 6, naturalmente, um principio fundamental dos estudos etnometo-
doldgicos. Ver Peter McHugh. Defining the Situation. Indianapolis, Bobbs-Merrill,
1968; Roy Turner (ed.). Ethnomethodology. Baltimore, Penguins, 1974; e Aaron
Cicourel. Cognitive Sociology. New York, Free Press, 1974.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 81

sociais e econômicas circundantes quanto nele se sustentam — são


mantidas e reproduzidas pelas práticas comuns de ensino e avalia­
ção nas salas de aula.25
Deverei concentrar-me aqui sobre o jardim de infância porque
este corresponde a um momento decisivo no processo pelo qual os
estudantes se tornam aptos nas regras, normas, valores e tendências
“ necessários” à ocupação de funções na vida institucional como ela
agora se apresenta. Aprender o papel de estudante é uma atividade
complexa, que requer tempo e contínua interação com as expec­
tativas institucionais. Dando enfoque ao modo como isto ocorre e ao
conteúdo das tendências que constituem, tanto manifesta como
latentemente, parte do conhecimento no jardim de infância, pode­
mos passar a esclarecer o conhecimento de base que as crianças
empregam como princípios de organização para grande parte do
resto de sua carreira escolar.
Em resumo, as definições sociais interiorizadas no início da
vida escolar fornecem as regras constitutivas para a vida futura nas
salas de aula. Assim, os elementos que precisam ser examinados são
o que se constrói como trabalho ou lazer, “conhecimento escolar”
ou apenas “meu conhecimento” , normalidade ou desvio. Como ve­
remos, o uso do elogio, as regras de acesso a materiais e o controle
do tempo e das emoções, tudo isso resulta em contribuições impor­
tantes ao ensino de significados sociais na escola. Mas, como tam ­
bém veremos, são os significados atribuídos à categoria de trabalho
que elucidam com mais clareza o lugar possível das escolas na com­
plexa relação das instituições econômicas e sociais que nos circun­
dam a todos.
A experiência do jardim de infância serve de base para os anos
de escolarização seguintes. As crianças que freqüentaram o jardim
de infância tendem a demonstrar um a superioridade geral de desem­
penho nas séries do curso primário quando com paradas àquelas que
não freqüentaram o jardim de infância. No entanto, não deram em
resultados conclusivos as tentativas de determ inar exatamente quais
as técnicas de ensino e as experiências de aprendizado que contri­
buem mais diretamente para o “ desenvolvimento intelectual e emo­
cional” das crianças no jardim de infância. O treinamento do jardim

(25) Para maiores explicações a respeito desse aspecto, ver Basil Bernstein.
“On the Classification and Framing of Educational Knowledge". In: Michael F. D.
Young (ed.). Knowledge and Control, op. cit., p. 47-69.
82 MICHAEL W. APPLE

de infância parece exercer sua influência mais poderosa e perm a­


nente nas atitudes e no comportamento das crianças aclimatando-as
à sala de aula. As crianças são iniciadas em seus papéis como alunos
da escola prim ária em salas do jardim de infância; é a compreensão
e o domínio desse papel que é responsável pelo maior êxito na escola
prim ária de crianças treinadas no jardim de infância.
A sociabilização nas classes do jardim de infância inclui o
aprendizado de normas e definições das interações sociais. É o
desenvolvimento contínuo de um a definição ativa da situação pelos
participantes. De modo a atuar adequadam ente numa situação
social, os agentes precisam atingir um a compreensão comum dos
significados, limitações e potencial que os equipamentos fornecem
para sua interação. D urante as primeiras poucas semanas do ano
letivo, as crianças e o professor criam um a definição comum da
situação a partir da contínua interação na sala de aula. Quando um
conjunto comum de significados sociais é aceito, as atividades na
sala de aula decorrerão suavemente. Em geral, esses significados
comuns permanecem relativamente estáveis, a menos que o fluxo
de acontecimentos nesse contorno seja assistemático.
Deveríamos entender que, exatamente como na discussão an­
terior da metáfora da distribuição cultural, a sociabilização também
não é um processo em um só sentido.26 Até certo ponto, as crianças
numa sala de aula sociabilizam o professor, assim como elas pró­
prias tornam-se sociabilizadas. No primeiro dia de aula num a classe
de jardim de infância, o professor possui um conjunto de regras
comuns mais altamente organizado do que as crianças. De vez que
também ele detém a maior parte do poder de controle sobre os
acontecimentos e os recursos na sala de aula, é o seu conjunto de
significados que é dominante. É claro, mesmo os professores não são
livres para definir a situação na sala de aula da forma que esco­
lherem. Como vimos um pouco antes neste capítulo, a escola é um a
instituição bem estabelecida, e talvez nem o professor nem os alunos
possam perceber mais do que formas marginais de desviar-se signi­
ficativamente das regras e expectativas baseadas no senso comum
que distinguem as escolas de outras instituições.
A pluralidade dos significados num a sala de jardim de infân­
cia é um a fase decisiva na sociabilização das crianças. Os signifi-

(26) Robert MacKay. "Conceptions of Children and Models of Socialization".


Childhood and Socialization. Hans Peter Drietzel(ed.). New York, Macmillan, 1973,
p. 27-43.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 83

cados dos objetos e acontecimentos na sala de aula não lhes são


intrínsecos, mas sim formados através da interação social. Esses
significados, como outros aspectos da definição da situação, podem
variar por um período. Em um determinado momento, porém, eles
se tornam estáveis e provavelmente não devem ser rediscutidos, a
menos que o fluxo de acontecimentos na sala de aula deixe de ser
sistemático.
Os significados dos objetos e acontecimentos tornam-se claros
para as crianças à medida que participam do contorno social. O uso
dos materiais, a natureza da autoridade, a qualidade de relações
pessoais, as observações espontâneas, assim como outros aspectos
da vida cotidiana na sala de aula, todos contribuem para a progres­
siva conscientização da criança de seu papel na sala de aula e para a
sua compreensão do contorno social. Por conseguinte, como de­
monstrado no Capítulo 1, para se compreender a realidade social da
escolarização, é necessário estudá-la no contorno real da sala de
aula. Cada conceito, papel e objeto é um a criação social ligada à
situação em que é produzido. Os significados da interação na sala de
aula não podem ser supostos, precisam ser descobertos. A abstração
desses significados, junto com as generalizações e intuições deles
extraídas, pode ser aplicável a outros contextos, mas as primeiras
descrições, compreensões e interpretações do pesquisador exigem
que os fenômenos sociais sejam encontrados onde são produzidos,
ou seja, na sala de au la.27
A observação e a entrevista dos participantes em um a deter­
minada sala de aula de um jardim de infância público, considerado
por muitos burocratas de escolas como modelar, revelaram que os
significados sociais dos acontecimentos e materiais foram estabele­
cidos notavelmente no início do ano escolar. Como na maioria das
salas de aula, a sociabilização das crianças era um a prioridade pa­
tente durante as primeiras semanas do período escolar. As quatro
principais habilidades que a professora esperava que as crianças
aprendessem durante essas semanas introdutórias eram: comparti-

(27) Pode-se encontrar uma excelente análise dessa tradiçào “etnográfica” em


Philip E. D. Robinson. “ An Ethnography of Class rooms” . Contemporary Research
in the Sociology o f Education, John Eggleston (ed.). London, Methuen, 1974, p.
251-66. Para uma discussão mais aprofundada dessas questões metodológicas e uma
análise dos dados em que se baseia esta seção do capítulo, ver Nancy R. King. “The
Hidden Curriculum and the Socialization of Kindergarten Children” . Tese de Ph.D.
não publicada, University of Wisconsin, 1976.
84 MICHAEL W. APPLE

lhar, ouvir, dar início às atividades e seguir a rotina da classe. Por­


tanto, a declaração de seus objetivos para as primeiras experiências
escolares das crianças também constitui sua definição do compor­
tamento sociabilizado na sala de aula.
As crianças não participavam da organização dos materiais da
classe e relativamente não tinham poder para influir no curso dos
acontecimentos cotidianos. A professora não fez nenhum esforço es­
pecial para deixar as crianças mais à vontade na sala, nem para
diminuir sua indecisão quanto ao program a de atividades. Em lugar
de mediar os aspectos impostos pelo contorno, ela optou por exigir
que as crianças se acomodassem aos materiais como se apresen­
tavam. Quando o barulho de um a outra classe no corredor distraía
as crianças, por exemplo, a professora chamava-lhes a atenção, mas
não fechava a porta. Igualmente, os escaninhos onde as crianças
guardavam seus lápis, guarda-pó e tênis não tinham etiqueta, em­
bora as crianças apresentassem considerável dificuldade de lembrar-
se qual escaninho fora designado. Apesar de muitos lápis perdidos e
crianças chorando, a professora se recusava a perm itir que uma
estagiária pusesse etiquetas nos escaninhos. Ela disse à estagiária
que as crianças precisavam aprender a se lem brar de seu escaninho,
pois isto “é trabalho delas” . Quando um a menina esqueceu qual era
seu escaninho logo no dia seguinte à sua determinação, a professora
a mandou sair da classe, como um exemplo de um a “menina que
ontem não festava prestando atenção” .
Os objetos na sala de aula eram atraentem ente dispostos num
claro convite para que a classe entrasse em interação com eles. A
maioria dos materiais eram colocados no chão ou em prateleiras ao
alcance das crianças. Contudo, as oportunidades de interação com
os materiais na sala de aula eram rigorosamente limitadas. A orga­
nização do tempo realizada pela professora na sala de aula contra­
riava a acessibilidade dos materiais no contorno físico. Durante a
maior parte do período letivo do jardim de infância, não se permitiu
que as crianças manuseassem objetos. Os materiais, então, eram
organizados de modo que as crianças aprendessem a regular-se;
aprenderam a m anusear objetos ao seu alcance apenas com a per­
missão da professora. As crianças eram “punidas” por tocarem nas
coisas na hora errada e elogiadas nas ocasiões em que demons­
trassem controle. Por exemplo, a professora elogiou-as por sua pron­
ta obediência quando, ao lhes dizer que assim fizessem, elas rapida­
mente pararam de arremessar bolas ao cesto no ginásio; ela não fez
observação alguma quanto a sua destreza no treino com a bola.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 85

A professora deixou claro às crianças que os bons alunos do


jardim de infância eram quietos e cooperavam. Um a certa manhã,
um a criança trouxe duas grandes bonecas de pano para a escola e
colocou-as sentadas na sua cadeira. D urante o primeiro período de
aula coletiva, a professora se referiu a elas dizendo: “ M aria de
Trapo e João de Trapo são dois bons auxiliares! Não disseram uma
só palavra durante toda a m anhã” .
Como parte do aprendizado para dem onstrar comportamento
sociabilizado, as crianças aprenderam a tolerar a ambigüidade e o
desconforto da sala de aula e a aceitar um grau considerável de
arbitrariedade em suas atividades escolares. Exigia-se delas que
adaptassem suas reações emocionais para conformar-se àquelas
consideradas convenientes pela professora. Aprenderam a responder
a ela pessoalmente e à maneira pela qual ela organizou a sala de
aula.
Após duas semanas de experiência no jardim de infância, as
crianças estabeleceram um sistema de categorias para definir e orga­
nizar sua realidade social na sala de aula. As respostas que deram
nas entrevistas indicaram que as atividades na sala de aula não
possuíam significados intrínsecos; as crianças atribuíam significados
conforme o contexto em que cada atividade era exercida. A profes­
sora ou apresentou os materiais da classe como parte da instrução
ou, mais diretamente, discutiu e demonstrou sua utilização à classe.
Isto é grave. O uso de um determinado objeto — a maneira como
estamos predispostos a agir com relação a ele — constitui seu
significado para nós. Ao definir os significados das coisas na sala de
aula, a professora definiu as relações entre as crianças e os materiais
em termos de significados contextuais vinculados ao contorno da
sala de aula.
Quando interrogadas sobre os objetos da sala de aula, as
crianças responderam com notável acordo e uniformidade. As crian­
ças dividiam os m ateriais em duas categorias: coisas com que se
trabalha e coisas com que se brinca. Nenhuma criança organizou
seu material infringindo o que parecia ser o princípio que as orien­
tava. Aqueles materiais que as crianças usavam sob a direção da
professora eram materiais de trabalho. Entre estes, incluíam-se li­
vros, papel, argila, cola e outros materiais tradicionalmente asso­
ciados a tarefas escolares. Nenhuma criança escolheu usar esses
materiais durante a hora de “brincar” , no início do ano escolar. Os
materiais escolhidos pelas crianças durante a hora de recreio eram
rotulados como materiais para jogos ou brinquedos. Estes incluíam,
86 MICHAEL W. APPLE

entre outras coisas, jogos, pequenos objetos de armar, a casinha de


brinquedo, bonecas e o trenzinho.
O significado dos materiais da sala de aula, então, origina-se
da natureza da atividade em que são usados. As categorias de tra ­
balho e lazer surgiram como poderosos elementos de organização da
sala de aula logo no início do ano escolar. Tanto a professora quanto
as crianças consideravam as atividades de trabalho mais impor­
tantes que as de lazer. A informação que as crianças disseram ter
aprendido na escola eram todas as coisas que a professora lhes
dissera durante as atividades que chamavam de “ trabalho” . As
atividades de “recreio” eram admitidas apenas se houvesse tempo
para elas e se as crianças tivessem terminado suas atividades de
trabalho. Dados de observação revelaram que a categoria de tra­
balho tinha vários parâm etros bem definidos que a separavam niti­
damente da categoria de lazer. Primeiro, o trabalho inclui toda e
qualquer atividade orientada pela professora; apenas as atividades
de horas livres eram chamadas de “brincadeira” pelas crianças.
Atividades como colorir, desenhar, pôr-se em fila, ouvir estórias,
assistir a filmes, fazer faxina e cantar eram denominadas trabalho.
Trabalhar, então, é fazer o que se manda, não im portando a natu­
reza da atividade em questão.
Segundo, todas as atividades de trabalho, e apenas as ativi­
dades de trabalho, eram compulsórias. Por exemplo, pediu-se que
as crianças fizessem desenhos sobre temas específicos em diversas
ocasiões. Na hora do canto, a professora freqüentemente fazia inter­
rupções para estimular ou animar as crianças que não estavam can­
tando ou que estavam cantando sem vivacidade. Quaisquer opções
durante o período de trabalho eram restringidas para se adequarem
aos limites de procedimento uniforme aceito. Durante um a dança
indígena, por exemplo, a professora permitiu que as crianças “ sono­
lentas” roncassem se quisessem. Após um passeio ao posto do corpo
de bombeiros, pediu-se a todas as crianças que fizessem um de­
senho, mas se permitiu a cada um a delas que escolhesse como tema
qualquer trecho do passeio de que mais tivesse gostado. (É claro que
também é verdade que se mandou que cada criança ilustrasse a sua
parte favorita do passeio.) Ao introduzir um outro projeto de arte, a
professora disse: “ Hoje vocês vão fazer um cavalo. Podem fazer o
seu cavalo da cor que quiserem: preto, cinza ou castanho” . De outra
feita, ela enunciou, muito enfática, que as crianças podiam escolher
três cores para as flores que estavam fazendo com forminhas de
doce. As crianças ficaram boquiabertas de entusiasmo e aplaudi­
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 87

ram. Essas escolhas não alteravam o princípio de que se m andava as


crianças usar os mesmos materiais da mesma m aneira durante os
períodos de trabalho. De qualquer modo, a natureza das opções
acentuava o princípio geral.
Não somente toda atividade de trabalho era obrigatória, mas
também cada criança tinha de começar na hora determ inada. Toda
a classe trabalhava simultaneamente em todas as tarefas indicadas.
Além do mais, todas as crianças deviam completar as tarefas m ar­
cadas durante o período de trabalho especificado. Durante um inci­
dente típico, no segundo dia de aula, muitas crianças queixaram-se
que não podiam ou não queria term inar um longo projeto de arte.
A professora disse que todos deviam term inar. Um a criança, ao
perguntar se não poderia acabar da “próxima vez” , obteve como
resposta: “Você precisa term inar agora” .
Além de exigir que todas fizessem a mesma coisa ao mesmo
tempo, as atividades de trabalho também as ocupavam com os
mesmos materiais e produziam resultados semelhantes ou idênticos.
Durante os períodos de trabalho, apresentavam-se os mesmos m ate­
riais a toda a classe simultaneamente, e esperava-se o mesmo resul­
tado de cada criança. Esperava-se que todas usassem o material de
trabalho da mesma forma. Até procedimentos aparentem ente incon-
seqüentes tinham de ser seguidos por todas. Por exemplo, após a
aula coletiva no segundo dia de aula, a professora disse às crianças:
“Apanhem um a folha de papel e seus lápis e voltem às suas car­
teiras” . U m a criança, que pegara primeiro seu lápis, foi reinstruída
a pegar antes o papel.
Os resultados ou habilitações que as crianças demonstravam
ao final de um período de trabalho eram planejados para serem
idênticos, ou pelo menos semelhantes. A professora fazia um a
demonstração da maioria dos projetos de arte a toda a classe ailtes
de que as crianças apanhassem seus materiais. Elas então tentavam
realizar, tanto quanto possível, um produto parecido àquele feito
pela professora. Apenas as obras de atividade artística que eram
quase idênticas ao produto que a professora realizara como demons­
tração eram guardadas e expostas em classe.
Os períodos de trabalho, como definidos pelas crianças, então,
implicavam que todas trabalhassem simultaneamente, na mesma
atividade, com os mesmos materiais e orientadas para os mesmos
fins. A idéia que dirigia essas atividades de trabalho era fazê-las,
não necessariamente fazê-las bem. Já no segundo dia de aula,
muitas crianças term inaram rapidam ente suas tarefas, a fim de se
88 MICHAEL W. APPLE

juntarem aos amigos que se divertiam com os brinquedos. Nas aulas


de música, por exemplo, a professora exortava as crianças a can­
tarem alto. Não se referia às crianças, nem delas se esperava, har­
monia, ritmo, pureza de tom ou expressão. O que se exigia delas era
uma participação forte e entusiasta. Da mesma forma, a professora
aceitava qualquer projeto artístico apresentado pelas crianças em
que tivesse sido despendido tempo suficiente. As tarefas marcadas
eram compulsórias e idênticas, e, ao aceitar todos os produtos aca­
bados, a professora quase sempre aceitava trabalhos fracos ou de
qualidade inferior. A aceitação de um trabalho dessa ordem anulava
qualquer conceito de avaliação. Encontravam recompensa zelo, per­
severança, obediência e participação. Estas são características das
crianças, não de seu trabalho. Desse modo, o conceito de qualidade
estava separado do de um trabalho bem realizado ou aceitável e era
substituído pelo critério de participação adequada.
As crianças, entrevistadas em setembro e novamente em outu­
bro, utilizaram as categorias de trabalho e lazer para criar e des­
crever sua realidade social. Suas respostas indicam que as primeiras
semanas na escola são um tempo importante para o aprendizado da
natureza do trabalho na sala de aula. Em setembro, nenhuma
criança disse “ trabalho” quando lhe perguntaram o que as crianças
faziam no jardim de infância. Em outubro, metade das entrevistas
já respondiam com a palavra “ trabalho” . Em outubro, as crianças
falaram mais de trabalhar e menos de brincar do que em setembro.
A professora estava satisfeita com o progresso da classe durante as
primeiras semanas de aula e constantemente referia-se às crianças
como “ meus bons trabalhadores” . Em geral justificava a apresen­
tação das atividades de trabalho na sala de aula em termos de
preparação das crianças para a escola prim ária e a idade adulta.
Por exemplo, ela acreditava que as atividades de trabalho deveriam
ser compulsórias porque as crianças precisavam praticar o cum pri­
mento de ordens, sem o exercício de opções, como forma de prepa­
ração para a realidade do trabalho adulto. Esperava-se que as
crianças vissem o jardim de infância como um a preparação para o
primeiro ano. Ao acentuar a importância de colorir com capricho ou
pôr adequadam ente em ordem um a série de ilustrações, a professora
reiterou a necessidade dessas habilitações no primeiro ano e a difi­
culdade que teriam no ano seguinte as crianças que foram desa­
tentas no jardim de infância.
As crianças relativamente não tinham poder para influir no
fluxo dos acontecimentos diários, e valorizava-se mais a obediência
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 89

que a criatividade. Mais uma vez, essa atmosfera era vista como
um a ponte im portante entre o lar e as futuras situações de trabalho.
A professora esperava que as crianças se adaptassem à sala de aula e
tolerassem qualquer nível de incômodo que essa adaptação acarre­
tasse.
Portanto, como parte de sua iniciação na comunidade do
jardim de infância, as crianças também recebiam sua prim eira ini­
ciação na dimensão social do m undo do trabalho. O conteúdo das
lições específicas é relativamente menos importante que a experiên­
cia de ser um trabalhador. Os atributos pessoais de obediência,
entusiasmo, adaptabilidade e perseverança são mais valorizados que
a competência acadêmica. A aceitação inquestionada da autoridade
e da interação social nos contornos institucionais estão entre as pri­
meiras lições de um jardim de infância. Essas lições fundam-se na
aceitação progressiva, como naturais, como o trabalho tout court,
dos significados de conhecimento importante e sem importância,
de trabalho e lazer, de normalidade e desvio.

Além de um humanismo retórico

Como demonstrou Gramsci, o controle do conhecimento que


preserva e produz setores de um a sociedade é um fator decisivo no
aumento da dominação ideológica de um grupo de pessoas ou de
um a classe sobre grupos ou classes menos poderosos.28 Sob esse
aspecto, não é de pequena importância o papel da escola na seleção,
preservação e transmissão de concepções de competência, normas
ideológicas e valores (e com freqüência apenas o “conhecimento” de
determinado grupo) — todos esses engastados tanto no currículo
manifesto quanto no oculto.
Pelo menos dois aspectos da vida escolar cumprem funções
distributivas sociais e econômicas. Como demonstra a literatura
cada vez mais vasta sobre os currículos ocultos, e como demonstrei
aqui por meio de provas históricas e empíricas, as formas de inte­
ração na vida escolar podem servir de mecanismos para comunicar
significados normativos e tendências aos estudantes. Ainda, o corpo
do próprio conhecimento escolar — o que é incluído e o que se

(28) Thomas R. Bates. “Gramsci and the Theory of Hegemony” . Journal o f


the History o f Ideas, XXXVI (April-June 1975), 360.
90 MICHAEL W. APPLE

exclui, o que tem importância e o que não tem importância —


também serve em geral a um a finalidade ideológica.
Como será demonstrado no Capítulo 5, boa parte do conteúdo
formal do conhecimento curricular é dominada por um a ideologia
do consenso. O conflito, quer intelectual ou normativo, é visto como
um atributo negativo à vida escolar. Portanto, existe um tipo carac­
terístico de redundância no conhecimento escolar. Tanto a expe­
riência cotidiana quanto o próprio conhecimento curricular apre­
sentam mensagens do consenso normativo e cognitivo. A estrutura
profunda da vida escolar, a estrutura fundamental e organizadora
das regras do senso comum que é discutida, interiorizada e que
parece basicamente conferir significado à nossa experiência em
instituições educacionais, afigura-se estreitamente vinculada às
estruturas normativas e comunicativas da vida industrial.29 Como
poderia ser de outra forma?
Talvez possamos esperar um pouco mais da experiência esco­
lar do que o que se retratou aqui, em vista da distribuição de re­
cursos nos Estados Unidos e dos anseios de uma grande parcela de
sua coletividade. Uma hipótese que não deveria ser descartada de
imediato é que, de fato, as escolas realmente funcionam. De forma
singular, elas podem obter êxito na reprodução de um a população
que é mais ou menos equivalente à estratificação econômica e social
na sociedade. Assim, quando se pergunta a respeito das escolas:
“Onde está seu hum anitarism o?” , talvez a questão seja de trato
mais difícil do que se espera.
Por exemplo, este capítulo poderia ser interpretado como uma
declaração contra o compromisso de uma determ inada comunidade
com a educação ou contra determinadas espécies de professor, que
“poderiam ser mais capazes” . Isto seria fundamentalmente incor­
reto, creio. A cidade em que se conduziu este estudo tem uma
preocupação com a educação. Aplica boa parte de seus recursos em
escolarização e sente que faz jus à reputação de possuir um dos
melhores sistemas escolares da região, se não do país.

(29) As idéias de Habermas sobre os padrões de competência comunicativa


em "organizações” industriais avançadas sâo aqui de grande interesse como esquema
de interpretação. Ver, por exemplo, Jürgen Habermas. “Towards a Theory of Com­
municative Competence". Recent Sociology, n. 2. Hans Peter Dreitzel (ed.). New
York, Macmillan, 1970, p. 115-48; e Trent Schroyer. The Critique o f Domination.
New York, George Braziller, 1973.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 91

Igualmente, deveríamos ser cautelosos em não ver esse tipo de


professor como insatisfatoriamente treinado, mal-sucedido ou des­
cuidado. Com freqüência, se dá exatamente o contrário. A profes­
sora que foi observada é, de fato, considerada competente pelos
administradores, colegas e pais de alunos. Em vista disso, as ativi­
dades do professor devem ser entendidas, não apenas em termos dos
padrões de interação social que prevalecem nas salas de aula, mas
sim em termos do padrão mais amplo das relações sociais e econô­
micas na estrutura social da qual ele e a própria escola fazem p a rte .30
Quando os professores distribuem interpretações normativas,
digamos, de trabalho e lazer, como as interpretações históricas e
contemporâneas que foram aqui documentadas, faz-se preciso per­
guntar, junto com Sharp e Green, “ para que problemas essas solu­
ções são viáveis aos professores?” 31 “Qual é o modelo de interpre­
tação comum dos professores e a que conjunto de pressuposições
ideológicas ele responde?” . Dessa forma, podemos situar o conheci­
mento e a atividade em classe dentro do quadro mais amplo das
relações estruturais que — ou através do professor e das expectativas
dos pais, do contorno da classe, de quais são os problemas que se
consideram importantes para que sejam enfocados pelos professo­
res, ou através da relação entre as escolas e, digamos, o setor
econômico de um a sociedade — em geral determinam o que se passa
nas salas de aula.
Este capítulo não poderá sozinho defender completamente a
idéia de que as escolas parecem atuar de modo latente para aum en­
tar uma ordem social já desigual e estratificada. Juntam ente com os
demais capítulos, este confirma, porém, várias das análises recentes
que demonstram como as escolas, através de sua distribuição das
categorias sociais e ideológicas, contribuem para a promoção de um
quadro mais estático das instituições.32 Assim, minha proposição
não deveria ser vista como um a declaração contra uma escola em
particular ou quaisquer grupos específicos de professores. Pelo con­
trário, quero sugerir que os educadores precisam ver os professores
como “encapsulados” num contexto social e econômico que deter­

(30) Rachel Sharp e Anthony Green. Education and Social Control: A Study
in Progressive Primary Education. Boston, Routledge & Kegan Paul, 1975, p. 8.
(31) Ibid., p. 13.
(32) Ibid., p. 110-12. Ver também a análise que se encontra em Basil Berns­
tein. Class, Codes and Control. Volume 3: Towards a Theory o f Educational Trans­
missions. 2. ed. London, Routledge & Kegan Paul, 1977.
92 MICHAEL W. APPLE

mina os problemas por eles enfrentados e as limitações materiais às


suas respostas. Esse próprio contexto “externo” fornece legitimação
substancial para a alocação do tempo e das atividades dos profes­
sores e dos tipos de capital cultural incorporados na própria es­
cola.33
Se este for o caso, como veementemente sugiro que é, as
questões que formulamos devem ultrapassar o nível humanístico
(sem que se perca sua intenção emancipadora e humanística) para
alcançar um nível mais relacional. Embora os educadores conti­
nuem a perguntar o que há de errado nas escolas e o que pode ser
feito — se nossos problemas podem ser resolvidos com professores
mais humanísticos, com mais franqueza, com melhores conteúdos, e
assim por diante —, é de importância vultosa que passemos a
encarar seriamente questões como “No interesse de quem as escolas
atuam hoje?” , “Qual é a relação entre a distribuição de capital
cultural e de capital econômico?” e, finalmente, “ Podemos lidar
com as realidades políticas e econômicas de criar instituições que
intensifiquem o significado e diminuam o controle?” .
Sharp e Green resumem muito bem esse interesse por um
humanismo retórico:34

Queremos ressaltar que um interesse humanista pela criança torna


indispensável uma consciência maior dos limites de ação da auto­
nomia do professor, e colocar questões. “A que interesses atendem as
escolas, os dos pais e das crianças, ou os dos professores e do diretor?”
e “Que interesses mais amplos são atendidos pelas escolas?” e, talvez
mais fundamentalmente, “Como conceituamos ‘interesses’ na reali­
dade social?” . Por conseguinte, em vez de considerar a sala de aula
como um sistema social e, como tal, isolado dos processos estruturais
mais amplos, sugerimos que o professor que desenvolveu uma com­
preensão de seu lugar no processo mais amplo pode estar numa
posição bem melhor para entender onde e como é possível alterar essa
situação. O educador que é necessariamente um moralista deve se
preocupar com as precondições sociais e econômicas para a realização
de seus ideais. Em vez de afirmar a separação de política e educação,
como se faz com base nas suposições liberais fundadas no senso
comum, os autores admitem que toda educação seja em suas impli­
cações um processo político.

(33) Ibid., p. 116.


(34) Sharp e Green, op. cit. , p. x.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 93

Portanto, isolar a experiência escolar da complexa totalidade


da qual é parte integrante é uma análise por demais limitada. De
fato, o estudo da relação entre ideologia e conhecimento escolar é de
especial importância para nossa compreensão da coletividade social
mais ampla de que todos fazemos parte. Permite-nos passar a ver
como a sociedade se reproduz, como perpetua suas condições de
existência por meio da seleção e transmissão de determinados tipos
de capital cultural de que depende um a sociedade industrial e
classista, e como m antém coesão entre suas classes e indivíduos com
a propagação de ideologias que em últim a análise sancionam os
programas institucionais que podem determ inar a desnecessária
estratificação e desigualdade em primeiro lugar. Não temos meios
de entender essas coisas?
Ainda, como observei no Capítulo 1, uma compreensão plena
que procure ultrapassar os modelos positivistas que agora dominam
nossa consciência deve conjugar um a análise do que realmente se
passa nas escolas com um a apreciação de seu desenvolvimento, de
sua história. Apenas com esta conjugação podemos ver por que
razão essas experiências cotidianas são o que são. E é para essa
história am pla que agora iremos nos voltar.
4

História do currículo
e o controle social
(em colaboração com Barry Franklin)

Agora deve estar ficando mais claro que um a das formas como
as escolas são usadas para finalidades hegemônicas está na sua
transmissão de valores e tendências culturais e econômicas que
supostamente são “compartilhados por todos” , enquanto “garante”
ao mesmo tempo que apenas um número especificado de estudantes
é selecionado para os níveis mais elevados de ensino, em virtude de
sua “competência” para contribuir para a maximização da pro­
dução do conhecimento técnico também exigido pela economia.
Entretanto, não surgiu da noite para o dia este enfoque do consenso
avaliativo nas regularidades cotidianas da vida escolar e do conco­
mitante encaminhamento de tendências vinculadas à vida econô­
mica. Vem de um a longa tradição na educação norte-americana.
Tanto este capítulo como o seguinte irão enfocar esse problema. Em
primeiro lugar, examinaremos mais pormenorizadamente que no
capítulo anterior como ele surgiu historicamente através da resposta
das escolas a conflitos ideológicos e econômicos entre as classes
numa época de rápida passagem de um a economia baseada no capi­
tal agrícola para um a economia fundam entada no capital industrial
nos princípios deste século. Como veremos, as escolas não foram
necessariamente construídas para aum entar ou preservar o capital
cultural de classes ou comunidades, mas sim dos segmentos mais
poderosos da população. É bastante claro neste desenvolvimento o
papel hegemônico do intelectual, do educador profissional.
96 MICHAEL W. APPLE

Para dem onstrar que a ênfase na hegemonia ideológica não é


“simplesmente” de interesse histórico, mas que ainda domina o
próprio âmago da vida na sala de aula, deveremos retornar no
Capítulo 5 ao corpus formal do conhecimento escolar e investigar
novamente a ênfase no consenso.

Por um sentido do presente como história

Imagine-se vivendo num dos maiores guetos de uma cidade


norte-americana. Um outro membro da comunidade chega para
você e diz: “ Você bem sabe, as escolas funcionam” . Você o olha um
tanto incrédulo. Afinal, seus filhos estão se saindo relativamente
mal nos testes de inteligência e aproveitamento. A maioria dos
jovens dessa comunidade consegue empregos com remuneração in­
ferior à dos brancos. Muitos estão desalentados quanto a seu futuro.
Na escola há cada vez mais violência e vandalismo. O currículo
parece estar fora de contato com a realidade e a história de sua
gente. A comunidade sente, justificadamente, que tem pouco poder
de decisão no que se passa na instituição que deve educar seus
jovens.
Você expõe tudo isso a ele, explicando cada um desses tópicos
e tentando mostrar-lhe que ou ele está totalmente errado ou então é
um a das pessoas com menos percepção que você já encontrou.
Então ele diz: “ Concordo com tudo que você me disse. Todas as
coisas que você acabou de mencionar acontecem não apenas aqui,
mas em todos os Estados Unidos em comunidades onde vivem
pessoas que são pobres, privadas de direitos políticos e.culturais, ou
oprimidas” . Aqui ele começa a relacionar um conjunto im portante
de fatos. Cautelosamente, embora num tom um pouco apaixonado,
mostra que essas escolas “comunitárias” estão fazendo o que foram
historicamente construídas para fazer. Não foram construídas para
lhe dar controle; o caso é bem o contrário. Ã medida que ele fala,
isto começa lentamente a fazer sentido para você. Mais algumas
partes de um grande quadro começam a se ajuntar. E se ele estiver
certo? E se as escolas e o currículo que nelas se encontra evolveram
de uma forma tal, que os interesses de m inha comunidade devem se
submeter aos interesses dos mais poderosos? E se os programas
econômicos e sociais existentes exigem que alguns sejam relativa­
mente pobres e sem qualificação, e outros não? Então você começa a
alcançar um entendimento tácito do modo como as escolas podem
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 97

ajudar a m anter esse conjunto de programas institucionais. Você


começa a acreditar, mas acrescenta alguma coisa im portante que o
outro esquecera de verbalizar. Você diz: “ Sim, as escolas funcio­
nam ... para eles” . E ambos inclinam afirmativamente a cabeça.
Esse pequeno esboço literário pretendeu ser mais do que apenas
um exercício de imaginação. Pretendeu, antes, reiterar idéias que se
acham no centro deste livro: tanto de que as escolas têm um a histó­
ria quanto de que estão ligadas, através de sua prática cotidiana,
a outras instituições poderosas por meios que são em geral ocultos e
complexos. Essa história e essas ligações precisam ser entendidas se
devemos conhecer as reais possibilidades de nossa ação nas escolas
daquela comunidade hipotética.
A área do currículo desempenhou um papel im portante na
história da relação entre a escola e a comunidade. Devido a isso,
pode também servir como um exemplar excelente para um a análise
das ligações que as escolas mantêm com outras instituições. Dando
aqui enfoque a alguns dos momentos anteriores da área do currí­
culo, espero m ostrar que as conclusões das duas personagens da
estória imaginária de que partimos não são absolutamente tão im a­
ginárias. Elas fornecem, infelizmente, um a descrição precisa das
esperanças, dos planos e da visão conservadora de comunidade de
um a parcela significativa de um grupo de educadores que tiveram
grande influência sobre como e qual conhecimento se escolheu para
as escolas — e finalmente nelas se introduziu.
A fim de esclarecer esses pontos, existem várias questões que
precisamos form ular aqui. O que significava “comunidade” para os
educadores e intelectuais mais influentes no início da área do currí­
culo? Que interesses sociais e ideológicos orientaram seu trabalho?
Essas questões são fundamentalmente importantes por diversas
razões. Como se tem constantemente discutido aqui, não é fortuito o
conhecimento que se introduziu nas escolas no passado e que hoje se
introduz. É selecionado e organizado em torno de conjuntos de prin­
cípios e valores que provêm de alguma parte, que representam
determinadas visões de normalidade e desvio, de bom e mau, e do
modo como “ agem as boas pessoas” . Portanto, se devemos entender
por que o conhecimento de apenas alguns grupos foi primeiramente
representado nas escolas, precisamos ver os interesses sociais que em
geral orientaram a seleção e a organização do currículo.
Como demonstrarei aqui, os interesses sociais e econômicos
que serviram como a base para a atuação dos mais influentes espe­
cialistas em currículo não eram neutros nem fortuitos. Eles incor-
98 MICHAEL W. APPLE

poravam compromissos com estruturas econômicas e políticas edu­


cacionais específicas que, quando postas em prática, contribuíram
para a desigualdade. A política educacional e cultural e a visão da
forma como deveriam operar as comunidades e de quem deveria ter
poderes nelas serviram de mecanismos de controle social. Esses
mecanismos fizeram pouco para aum entar a relativa eficácia econô­
mica ou cultural desses grupos de pessoas que ainda hoje detêm
pouco poder. Mas, antes de exam inar as raízes que a área do currí­
culo deitou no terreno do controle social, observemos rapidamente a
perspectiva geral que sustém a análise crítica desenvolvida neste
capítulo.

Poder e cultura

O controle social e econômico ocorre nas escolas não somente


na forma de áreas de conhecimento que as escolas possuem ou nas
tendências que encaminham — as regras e as rotinas para m anter a
ordem, o currículo oculto que reforça as normas de trabalho, obe­
diência, pontualidade, e assim por diante. O controle é exercido
também através das formas de significado que a escola distribui.
Isto é, o “corpus formal do conhecimento escolar” pode se tornar
um a forma de controle social e econômico.1
As escolas não controlam apenas pessoas; elas também aju­
dam a controlar significados. Desde que preservam e distribuem o
que é considerado como o “conhecimento legítimo” — o conheci­
mento que “ todos devemos ter” —, as escolas conferem legitimação
cultural ao conhecimento de grupos específicos.2 Mas isto não é
tudo, pois a capacidade de um grupo tornar seu conhecimento em
“conhecimento para todos” está relacionada ao poder desse grupo
no campo de ação político e econômico mais amplo. Poder e cultura,
então, precisam ser vistos, não como entidades estáticas sem cone­
xão entre si, mas como atributos das relações econômicas existentes

(1) Estou empregando aqui o conceito de Dawe de que o controie envolve a


imposição de significado sobre um grupo dominado por um grupo dominante. Ver
Michael F. D. Young (ed.). Knowledge and Control. London, Collier-Macmillan,
1971, p. 4.
(2) Pierre Bourdieu. “ Intellectual Field and Creative Project” . In: Young.
Knowledge and Control, op. cit. , p. 161-88.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 99

numa sociedade. Estão dialeticamente entrelaçados, de modo que


poder e controle econômico estão interligados com poder e controle
cultural. O próprio sentido de ligação entre conhecimento ou con­
trole cultural e poder econômico mais um a vez serve de base para
nossa análise histórica.
Até o momento, duas coisas têm sido fundamentais a essa
abordagem. A prim eira é que se veem as escolas como que com­
preendidas na sua relação com outras instituições — econômicas,
políticas e culturais, onde as últimas têm relativa autonomia com
referência às primeiras. Ou seja, as escolas existem através de suas
relações com outras instituições mais poderosas, instituições que
estão unidas de um modo tal que produzem desigualdades estrutu­
rais de poder e de acesso a recursos. A segunda é que essas desi­
gualdades são reforçadas e reproduzidas pelas escolas (embora não
apenas por elas, é claro). Através de suas atividades curriculares,
pedagógicas e de avaliação, na vida cotidiana nas salas de aula, as
escolas desempenham um papel importante na preservação, senão
na criação dessas desigualdades. Junto com outros mecanismos de
preservação e distribuição cultural, as escolas contribuem para o
que se chamou de reprodução cultural das relações de classe em
sociedades industriais avançadas.3
Essas duas preocupações centrais — o problema de as escolas
estarem compreendidas num poderoso conjunto de instituições e o
papel da escola na reprodução de desigualdades — significam que a
escola é interpretada de uma forma diferente da que é geralmente
empreendida pelos educadores. Em lugar de interpretá-las como “ os
grandes agentes da democracia” (embora haja nisso um elemento de
verdade), vêem-se as escolas como instituições que não são necessa­
riamente ou nem sempre forças progressistas. Podem desempenhar
funções econômicas e culturais e incorporar regras ideológicas que
preservam e aum entam um conjunto de relações estruturais existen­
tes. Essas relações operam a um nível fundamental para ajudar
alguns grupos e servir de obstáculo a outros.
Isto não implica que todos os burocratas das escolas sejam
racistas (embora alguns possam ser de fato), ou que façam parte de

(3) Basil Bernstein. Class, Codes and Control. Volume 3: Towards a Theory
o f Educational Transmissions. 2. ed. London, Routledge & Kegan Paul, 1977. Ver
também Samuel Bowles e Herbert Gintis, Schooling in Capitalist America. New
York, Basic Books, 1976.
too MICHAEL W. APPLE

um a conspiração consciente para “m anter as classes inferiores em


seu lugar” . De fato, muitos dos argumentos em favor da “comuni­
dade” e sobre o currículo propostos por alguns dos primeiros edu­
cadores especialistas em currículo e intelectuais que examinarei
eram baseados nas melhores das intenções liberais de “ ajudar as
pessoas” . Pelo contrário, a proposta aqui oferecida é de que as
condições e formas de interação que possuem funções latentes são
“ naturalm ente” originadas das suposições e práticas, fundadas no
senso comum, que muitos dos educadores têm acerca de ensino e
aprendizado, comportamento normal e anormal. E essas funções
latentes incluem aspectos de que muitos educadores não têm cons­
ciência.
Como demonstrado em outra passagem, por exemplo, uma
im portante função tácita da escolarização parece ser a transmissão
de diferentes valores e tendências a diferentes populações escolares.
Se um conjunto de estudantes é visto como prováveis membros de
um a classe profissional e empresarial, então suas escolas e seu
currículo parecem estar organizados em torno de flexibilidade, op­
ção, pesquisa, etc. Se, por outro lado, vêem-se as destinações pro­
váveis dos estudantes como a de trabalhadores semi-especializados
ou sem especialização, a experiência escolar tende a enfatizar a
pontualidade, o asseio, a formação de hábitos, e assim por diante.
Essas expectativas são reforçadas pelos tipos de currículo e de testes
dados pela escola e pelos rótulos atribuídos aos diferentes tipos de
estudantes.4 Portanto, o conhecimento formal e informal transm i­
tido pelas escolas, os procedimentos de avaliação, e assim por
diante, precisam ser vistos como interligados, do contrário nos esca­
pará muito de seu significado real. Essas práticas escolares cotidia­
nas estão ligadas a estruturas econômicas, sociais e ideológicas que
se encontram fora do prédio da escola; precisam, pois, ser reveladas
tanto hoje quanto no passado. Será precisamente esse passado que
irá nos interessar aqui.

(4) Cf. Capitulo 7 neste volume e Michael W. Apple. "Power and School
Knowledge” . The Review o f Education, III (January/February 1977). Ver também
James E. Rosenbaum. Making Inequality: The Hidden Curriculum o f High School
Tracking. New York, John Wiley, 1976; e Herbert Gintis e Samuel Bowles. “The
Contradictions of Liberal Educational Reform” . Work, Technology and Education.
Walter Feinberg e Henry Rosemont Jr. (eds.). Urbana, University of Illinois Press,
1975, p.92-141.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 101

A urbanização e a função histórica da escolarização

Q ualquer esforço sério para compreender a quem pertence o


conhecimento que se introduz nas escolas deve ser, por sua própria
natureza, histórico. Deve começar com ver as idéias correntes sobre
currículo, pedagogia e controle institucional como resultados de
condições históricas específicas, como idéias que foram e são criadas
pelo papel que as escolas desempenham em nossa ordem social.
Portanto, se podemos começar a compreender as finalidades econô­
micas e ideológicas que as escolas cum priram no passado, então
podemos começar a ver também as razões por que movimentos
sociais progressistas que objetivam alguns tipos de reformas esco­
lares — tais como a participação da comunidade nas instituições e
controle delas — têm em geral êxito menor do que o que seus
defensores gostariam que tivessem. Podemos também começar a
elucidar algumas das razões por que as escolas fazem o que as vimos
fazer no capítulo anterior.
Para deixar isso claro, enfocarei sucintamente algumas das
finalidades históricas da escolarização urbana (o modelo a partir do
qual se criou a maior parte da escolarização pública), qual devia ser
seu papel “ comunitário” e como funcionava. Em seguida, deverei
me voltar para um exame histórico mais amplo do papel da escola­
rização que trata do conhecimento que os estudantes deveriam
“ receber” nas escolas — a área do currículo.
Devido à natureza a-histórica da educação, corremos o risco
de ignorar muitas das origens das escolas em cidades dos Estados
Unidos. Isto é lamentável, pois essas origens poderiam ajudar a
explicar por que muitas comunidades de trabalhadores, negros,
latinos e outros encontram pouco de sua própria cultura e lingua­
gem nas escolas. Pesquisas recentes do crescimento da educação nos
centros urbanos do leste dos Estados Unidos são bastante úteis a
esse respeito. Na cidade de Nova Iorque na década de 1850, por
exemplo, quando o sistema escolar público tomava-se cada vez mais
solidificado, viam-se as escolas como instituições que poderiam
preservar a hegemonia cultural de um a população “ nativa” am ea­
çada. A educação era a forma pela qual se deveria proteger a vida,
os valores e normas comunitários e os privilégios econômicos dos
poderosos. As escolas poderiam ser os grandes instrumentos de um a
cruzada moral para tom ar iguais a “nós” os filhos dos imigrantes e
dos negros. Portanto, para muitos que foram importantes no desen­
volvimento da escolarização, as diferenças culturais não eram abso­
102 MICHAEL W. APPLE

lutamente legitimas. Pelo contrário, essas diferenças eram encara­


das como a ponta de um iceberg feito de águas que continham em
geral impurezas e imoralidade. O historiador urbano Cari Kaestle
apanha excepcionalmente bem essa atitude quando cita um trecho
extraído de um relatório da Assembléia do Estado de Nova Iorque
que advertia que: “Como o vasto Atlântico, devemos decompor e
limpar as impurezas que investem contra nosso meio, ou, como o
lago do interior do país, receberemos seu veneno em todo nosso
sistema nacional” . 5
Kaestle observa ainda q u e :6

O Putman's Monthly usou a mesma metáfora e indicou a mesma


solução para o problema da poluição: “Nossos leitores concordarão
conosco que, para a defecação efetiva do curso da vida numa grande
cidade, existe apenas um agente retificador — um filtro infalível — a
escola”. (...)
A maioria dos mestres provavelmente não era contrária ao êxito de
números limitados de pobres por meio da educação, mas a missão das
escolas — e a maioria dos promovedores era bastante franca quanto a
isso — era inculcar atitudes de cooperação entre as crianças da
cidade, o que quer que as vicissitudes da vida urbana lhes pudessem
causar. Aculturação é, portanto, um termo mais preciso para o
objetivo da escola do que assimilação, embora os termos sejam em
geral usados como sinônimos. As escolas refletiam a atitude do pú­
blico nativo geral, que desejava norte-americanizar os hábitos, não o
status, dos imigrantes.

Essa missão moral da escola exerceu um efeito importante nos


tipos de seleção curricular e na política escolar geral, como bem se
pode imaginar. Mas isso não foi tudo. A cruzada para eliminar a
diversidade foi exaltada por um outro conjunto de fatores. A escala
dos problemas da cidade crescia à medida que aumentava a popu­
lação. Alguma coisa tinha de ser feita quanto ao rápido aumento de
número de crianças “ diferentes” para serem aculturadas. A res­
posta foi a burocratização — a consolidação aparentem ente sensata
das escolas e a padronização de procedimentos e do currículo,

(5) Cari F. Kaestle. The Evolution o f an Urban School System. Cambridge,


Mass., Harvard University Press, 1973, p. 141.
(6) Ibid., p. 141-2.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 103

ambas as quais promoveriam economia e eficiência. Assim, a ênfase


na aculturação e a ênfase na padronização, temas com que ainda
hoje se defrontam os membros de comunidades, estavam intim a­
mente entrelaçadas. Fundam entalm ente, “ a ética burocrática e a
missão moral dos mestres surgiram do mesmo problema — a rápida
expansão e diversificação da população — e elas tenderam para o
mesmo resultado — um sistema vigorosamente conformista” . 78
Essa missão moral com sua ênfase na conformidade cultural
não se encontrava apenas em Nova Iorque; nem se limitou ao início e
aos meados do século XIX. Os valores morais tornavam-se cada vez
mais unidos às ideologias e finalidades econômicas, à medida que o
país ampliava sua base industrial. As escolas de Nova Iorque, Mas­
sachusetts e em outras partes eram vistas cada vez mais como um
conjunto de instituições que “ form ariam ” pessoas que deteriam os
valores tradicionais da vida com unitária (um a vida que nunca pôde
realmente ter existido dessa forma ideal) e, também, as norm as e
tendências exigidas de um trabalhador diligente, económico e efi­
ciente para essa base industrial. Não apenas em 1850, mas princi­
palmente entre 1870-1920, a escola foi declarada a instituição fun­
damental que resolveria os problemas da cidade, o empobrecimento
e a decadência moral das massas e, progressivamente, adaptaria os
indivíduos a seus respectivos lugares num a economia in d u stria l/
O retrato feito por Marvin Lazerson do desenvolvimento da
escolarização nos centros urbanos de M assachusetts coloca esses
aspectos de um a forma bastante eficaz:9

Por volta de 1915, dois temas centrais tornaram-se manifestos nas


escolas da cidade de Massachusetts. Um lançava-se sobre os fer­
mentos de reforma das décadas entre 1870 e 1900 e via a educação
como a base da melhoria social. A escola atingiria e elevaria os
pobres, especialm ente p o r m eio de novas técnicas de tra n sm itir valo­
res m orais tradicionais. O segundo tema, progressivamente emer­
gente após 1900, acarretava a aceitação da ordem industrial e um
interesse em que as escolas refletissem aquela ordem. Fez da ade­
quação do indivíduo à economia a principal função da escola. Pelo

(7) Ibid., p. 161.


(8) Marvin Lazerson. Origins o f the Urban School. Cambridge, Harvard Uni­
versity Press, 1971, p. xv. Ver também Elizabeth Vallance, “Hiding the Hidden
Curriculum". Curriculum Theory Network, IV (Fall 1973/74), 5-21.
(9) Ibid., p. x-xi.
104 MICHAEL W. APPLE

ensino de habilitações específicas e de padrões de comportamento, as


escolas formariam trabalhadores e cidadãos melhores e mais efi­
cientes, e o fariam por meio de um processo de seleção (testes) e
orientação. Esses desenvolvimentos transformariam a idéia de igual­
dade da oportunidade educacional nos Estados Unidos por terem
tornado a segregação — por meio de currículo, classe social e papel
vocacional planejado — fundamental às atividades da escola. (Os
grifos são meus.)

Portanto, na base da escolarização estava um conjunto de


interesses que, reunidos, incorporaram um a ideologia conservadora.
“Nós” devemos preservar “ nossa com unidade” ensinando aos imi­
grantes nossos valores e adaptando-os aos papéis econômicos exis­
tentes.
Esse relato nos fornece um quadro geral do clima ideológico
da época, especialmente nas áreas urbanas do leste, quando come­
çou a se definir a área do currículo. Era um a clima que não só
impregnou a visão do público em geral, mas que tam bém influen­
ciou muitos intelectuais e educadores eloqüentes, mesmo aqueles
cujas origens estavam fora dos centros urbanos. Como veremos, nem
os membros da intelligentsia emergente nem os primeiros membros
da área do currículo ficaram imunes a essas visões. O papel da
escola tanto na parte ética quanto na adaptação à estratificação
econômica foi algo que abordaram com muita tranqüilidade. De
fato, a noção de imunidade é imprecisa. Muitos dos primeiros
líderes do movimento para tom ar a seleção e determinação do currí­
culo num a área de especialização profissional abraçaram convicta­
mente tanto a cruzada moral quanto a ética da adaptação ao sistema
econômico como funções patentes da escolarização. Viam os proce­
dimentos padronizados de seleção e organização do conhecimento
escolar como um a contribuição para ambas essas finalidades.
Examinando-se o trabalho de alguns dos mais fortes e influen­
tes desses intelectuais e especialistas em currículo, podemos come­
çar a ver os compromissos ideológicos que orientaram grande parte
da estruturação de currículos no passado. Pois, exatamente como a
visão da escolarização como um a instituição de aculturação lenta­
mente se uniu à visão da escolarização para a adaptação ao sistema
econômico na mente do público, assim também começou a vincular
as duas um a geração de educadores e cientistas sociais. Podemos
começar a entender, deste ponto, como um modelo curricular eco­
nômica e culturalm ente conservador adquiriu forma e tornou-se o
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 105

paradigm a que ainda domina a área. Ficará claro que, historica­


mente, a teoria e desenvolvimento do currículo estão fortemente
ligados e influenciados por necessidades e mudanças econômicas e,
como veremos, por um a noção muito interessante do que deveria ser
a “ comunidade” ideal.

A função social do currículo

Os primeiros membros mais importantes da área do currículo


— Franklin Bobbitt, W. W. Charters, Edward L. Thorndike, Ross
L. Finney, Charles C. Peters e David Snedden — definiram qual
deveria ser a relação entre a estruturação do currículo e o controle e
poder da comunidade, definição que continua a influenciar a área
do currículo contem porâneo.10
Ao delim itar o papel social básico que o currículo escolar
deveria exercer, a questão social e econômica fundamental que
preocupava esses primeiros teóricos era a industrialização e a divisão
do trabalho que lhe seguia. Essa divisão, conforme Bobbitt, substi­
tuiu o artesão pelo operário especializado. A pequena loja deu lugar
à grande corporação. Nessa situação, o indivíduo deixava de ser
responsável pelo projeto e produção de um único produto. Em lugar
disso, era responsável pela produção de apenas um a parte do pro­
duto, cuja natureza e especificações lhe eram fornecidas por um
supervisor. Além dessa estreita tarefa na produção de um segmento
de um produto maior, o trabalhador individual também dependia
de outros indivíduos, especialmente do supervisor, para direção e
orientação em seu trabalho. Além do mais, o indivíduo agora estava
quase que inteiram ente dependente de outros especialistas em ou­
tras linhas de produção quanto à sua comida, m oradia e todas as

(10) Selecionei estes autores como os primeiros membros mais importantes da


área do currículo porque acredito que sua identificação com a tendência por efi­
ciência social e com a psicologia behaviorista coloque-os na linha central da área. Não
incluo John Dewey e outros identificados com a educação centrada na criança e com a
tradição das necessidades/interesses da criança. Embora suas idéias sejam interes­
santes e importantes, exerceram pouca influência tanto na área do currículo à medida
que se desenvolvia quanto à prática escolar. Para uma discussão dessa posição com
referência a Thorndike, ver Clarence J. Karier. “Elite Views on American Educa-
tion” . Education and Social Structure in the Twentieth Century. Walter Laquer e
George L. Mosse (eds.). New York, Harper Torchbooks, 1967, p. 149-51.
106 MICHAEL W. APPLE

outras condições necessárias à sobrevivência física. Um a situação


como essa acarretou novas necessidades, que eram desconhecidas na
América rural, agrária, do século XIX. Por um lado, essa nova
classe operária, a que Bobbitt se referiu como “grupo de operários
associados” , precisava estar apta a desempenhar sua função espe­
cializada no modo hierárquico de organização que dominava a cor­
poração.11 E, por outro lado, esses operários precisavam de um
conhecimento suficiente de suas tarefas sociais e econômicas que
lhes permitisse trabalhar junto para a conclusão de um produto em
cujo projeto tiveram pequena participação.12
Bobbitt e Charters responderam a essa nova necessidade eco­
nômica de treinam ento especializado adotando os procedimentos do
mercado de trabalho. Tom aram de empréstimo à Administração
Científica e construíram um a teoria de estruturação do currículo
que se baseava na diferenciação de objetivos educacionais em termos
das funções específicas e limitadas da vida ad u lta.13 Isto não é de
pequena im portância, pois foi a necessidade na vida adulta de uni­
dade, cooperação e de um a atitude de aceitação entre esses operá­
rios especializados que levou os primeiros teóricos da área a definir
como um dos principais papéis do currículo o de desenvolver a
“com unidade” . O currículo seria utilizado para promover a “ inte­
gração social” . 14 Bobbitt, por exemplo, via o currículo como meio
de desenvolver o que chamou de “grande consciência de grupo” ,
o termo que empregou para designar o sentimento experimentado
pelo indivíduo de pertencer a seu grupo ou comunidade social e
econômica e seu compromisso com seus fins, valores e padrões de
com portam ento.15 No entanto, foi a própria definição de comuni­
dade que tornou esse modelo de seleção e determinação de currículo
um modelo excepcionalmente conservador.

(11) Franklin Bobbitt. The Curriculum. New York, Arno Press, 1971, Cap. 9.
(12) Ibid., p.95.
(13) Ibid., p. 42. Franklin Bobbitt. How to Make a Curriculum. Boston,
Houghton Mifflin, 1924, p. 29, 97; W. W. Charters. Curriculum Construction, New
York, Arno Press, 1971, Caps. 4-5.
(14) Harold Rugg et al. “The Foundations of Curriculum-Making” . The
Foundations o f Curriculum-Making, The Twenty-Sixth Yearbook o f the National
Society for the Study o f Education, Part II. Guy Montrose Whipple (ed.). Blooming­
ton, Public School Publishing, 1926, p. 16.
(15) Bobbitt, The Curriculum, op. cit.. Cap. 12.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 107

Homogeneidade social e o problema da comunidade

São im portantes aqui duas características dessa função social


que autores como Bobbitt e Charters atribuíram ao currículo. Pri­
meiro, estranham ente, ao definir sua finalidade, esses educadores
estavam preocupados em identificar essa função com as necessi­
dades da comunidade. Bobbitt de fato insistiu em afirm ar que a
tarefa do currículo deveria ser determ inada pela comunidade local
em que se situava a escola.16 Isto parece realmente progressista.
Contudo, a segunda característica pode nos obrigar a ser um pouco
mais prudentes, pois esses teóricos também viam como papel social
do currículo desenvolver um alto grau de consenso normativo e
cognitivo entre os elementos de um a sociedade. E ra a isso que se
referia Bobbitt como um a “ grande consciência de grupo” : 17

Como desenvolver um sentimento genuíno de pertencer a um grupo


social, quer grande quer pequeno? Parece haver apenas um método, e
este é: Pensar e sentir e AGIR com o grupo como parte dele à medida
que ele exerce suas atividades e se esforça por atingir seus fins. Os
indivíduos são amalgamados em pequenos grupos coesos, os peque­
nos grupos divergentes são amalgamados no grande grupo de coope­
ração, quando atuam juntos para fins comuns, com visão comum, e
com juízo unificado. (Os grifos são de Bobbitt.)

Esses dois aspectos da tarefa social do currículo são bastante


significativos. Ambas as questões, a comunidade e a “ afinidade de
pensamento” , eram temas comuns no pensamento social norte-ame­
ricano, especialmente nas áreas recém-surgidas da sociologia, psico­
logia e educação, durante os fins do século XIX e princípios do
século XX. A observação desses temas e do modo como foram
empregados durante esse período irá, acredito, ter muito a nos
inform ar a respeito da natureza da área do currículo e de sua res­
posta no passado e no presente à relação entre escola e comunidade,
a respeito de sua resposta ao problem a de a quem pertence o
conhecimento que deve ser construído como conhecimento legítimo.
Como o autor do trecho do Putman ’s M onthly que citei acima,
os membros formadores da área do currículo, bem como a maioria

(16) Bobbitt. How to Make a Curriculum, op. cit., p. 281.


(17) Bobbitt. The Curriculum, op. cit. , p. 131.
108 MICHAEL W. APPLE

dos primeiros líderes em sociologia, psicologia e educação, eram por


nascimento e criação membros de um a classe média nativa e rural,
de religião protestante e linhagem anglo-saxônica. Ao definir a
natureza, limites e interesses de seus campos de estudo, esses líderes
intelectuais, junto com outros cientistas sociais, refletiram e reafir­
m aram os interesses da classe média. Especificamente, refletiram o
que acreditavam ser o poder e a influência em declínio da classe
média no despertar da transição da América, no final do século XIX
e princípio do século XX, de um a sociedade rural, agrária, para
um a sociedade urbana e industrializada.18 Definiram os temas de
um a forma particular, como um problema de perda da comunidade.
Como vimos na discussão do crescimento da educação urbana,
o período em que esses futuros líderes chegaram à m aturidade, de
1865 a 1900, foi um a época de dúvida e medo para todos os peque­
nos fazendeiros, comerciantes e profissionais que constituíam a
classe média do país. Sentiram que estava em risco sua ordem
social, que eles viam como que arraigada na pequena cidade rural,
com suas relações pessoais profundas, diretas. Temiam a emergente
dominação de uma nova unidade econômica, a corporação. Tam ­
bém sentiam que um a nova classe social e econômica rica e pode­
rosa, composta pelos proprietários dessas corporações e por seus
financiadores, am eaçaria a segurança econômica e a influência polí­
tica da cidade pequena, causando danos à sua base econômica na
agricultura e na m anufatura de pequena escala. Mas o crescimento
de um a economia de corporações também estava ligado ao cresci­
mento dos centros urbanos. As cidades estavam sendo progressiva­
mente habitadas por imigrantes do leste e do sudeste da Europa e
por negros do sul rural. Essas pessoas diferentes eram vistas como
um a ameaça a um a cultura norte-americana homogênea, um a cul­
tura centrada na cidade pequena e sedimentada em crenças e ati­
tudes da classe média. A “ com unidade” que os antepassados ingle-

(18) Minha análise aqui não defende a tese de aspiração por status realizada
por Richard Hofstadter como uma explicação para o apoio da classe média às
reformas sociais do movimento progressista. Pelo contrário, estou apenas refletindo
as visões, que de fato documento ao longo deste capítulo, dos primeiros líderes da
sociologia, psicologia e educação. Para uma exposição da tese veja-se Richard Hofs­
tadter. The Age o f Reform. New York, Vintage Books, 1956, Cap. 4. Para uma
análise e crítica interessantes da tese sobre a aspiração por status, ver Robert W.
Doherty. "Status Anxiety and American Reform: Some Altematives”. American
Quarterly, XIX(Summer, 1962), 329-36.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 109

ses e protestantes dessa classe “lavraram de um deserto” parecia


desmoronar-se diante de um a sociedade urbana e industrial em
expansão.
Desses dois interesses, os primeiros representantes das novas
ciências sociais centralizaram a maior parte de sua atenção no
problema da imigração. Desconfiavam que esses imigrantes, que
pareciam ter um a taxa de natalidade mais alta que a população
nativa, logo excederiam em número “ a população nativa de boa
raça” . O número cada vez maior de imigrantes, com seus enclaves
urbanos e diferentes tradições políticas, culturais e religiosas, cons­
tituía um a ameaça a um a cultura homogênea. Essa cultura uni­
tária não era apenas a fonte da estabilidade da América e um a chave
para o progresso, mas era sinônimo, para esses membros da intelli-
gentsia, da própria idéia de dem ocracia.19
Em primeiro lugar, esses intelectuais falaram do tem a da
comunidade em termos de um a ameaça à existência da cidade rural.
Para Edward A. Ross, um dos primeiros sociólogos norte-am eri­
canos, as relações diretas, profundas e íntimas da cidade pequena
proporcionavam um mecanismo natural e espontâneo de controle
social.20 Para Ross e outros dos primeiros cientistas sociais, a cidade
pequena adquiria proporções quase místicas como a garantia da
ordem e estabilidade social. A cidade pequena, sua política, sua
religião, seus valores, passaram a ser vistos, na expressão do soció­
logo Robert Nisbet, como a própria essência da comunidade norte-
am ericana.21
Posteriormente e de modo mais fundamental, os membros
desse novo grupo de intelectuais (que na verdade deviam o surgi­
mento de suas profissões e as oportunidades que lhes eram ofere­
cidas tanto à urbanização quanto à industrialização) tom aram uma

(19) Esses temores pela industrialização e urbanização tiveram implicações


importantes para o desenvolvimento da área do currículo assim como pelas Ciências
Sociais em geral. Ver Barry M. Franklin. "The Curriculum Field and the Problem of
Social Control, 1918-1938: A Study in Critical Theory”. Dissertação de Ph.D não
publicada, University of Wisconsin, 1974. Quanto a uma análise semelhante do
desenvolvimento da área da sociologia educacional, ver Philip Wexler. The Sociology
o f Education: Beyond Equality. Indianápolis, Bobbs-Merril, 1976.
(20) Edward A. Ross. Social Control. New York, Macmillan, 1912, p. 432-6;
R. Jackson Wilson. In Quest o f Community: Social Philosophy in The United States,
1860-1920. New York, Oxford University Press, 1968, p. 89-99.
(21) Robert A. Nisbet. The Quest for Community. New York, Oxford Uni­
versity Press, 1967, p. 54.
110 MICHAEL W. APPLE

posição diferente ao definir o problema da comunidade, um a posi­


ção que não exigia deles a defesa da cidade pequena como uma
entidade física.22 Em vez disso, eles apanharam o que julgavam
constituir a base da capacidade da cidade pequena de preservar a
estabilidade, seu consenso em crenças, valores e padrões de compor­
tam ento, e idealizaram essa característica da vida de cidade pe­
quena como a base da ordem necessária a um a sociedade urbana e
industrial que então surgia. Para esses intelectuais, a noção de
comunidade passou a ser sinônimo da idéia de homogeneidade e
consenso cultural. Se a criação na cidade rural ensinou alguma coisa
a esses indivíduos, ensinou-lhes que a ordem e o progresso depen­
diam do grau em que eram comuns e compartilhados as crenças e o
comportamento. Aplicando essa visão à sociedade progressivamente
urbana em que viviam, defendiam a manutenção de um a cultura
unitária (o que eles entendiam por um sentido de comunidade)
arraigada nos valores, nas crenças e no comportamento da classe
média. Quando lhes pareceu que a homogeneidade cultural estava
se desfazendo, devido à urbanização, industrialização e imigração,
e que seu sentido de comunidade estava sendo obscurecido, agiram
“ atacando quaisquer que fossem os inimigos que sua visão de
m undo lhes permitia ver” . 23

Controle social e o problema da comunidade

Em nome do consenso cultural, esses primeiros cientistas so­


ciais “ atacaram ” com um a paixão especial os imigrantes do leste e
do sul da Europa. Adotando em geral um a perspectiva hereditária,
viam os imigrantes e os operários como inferiores à população na­
tiva. Em vista da alta taxa de natalidade, temiam que esses imi­
grantes viessem a am eaçar a existência das classes economicamente
privilegiadas com o que Ross denominou de “suicídio de raça” .24 De
m aneira mais imediata, no entanto, esses imigrantes foram perce­
bidos como um a ameaça à existência da própria democracia. C har­
les A. Ellwood, um outro dos primeiros sociólogos norte-america-

(22) Robert H. Wiebe. The Search for Order. New York, Hill & Wang, 1967,
Cap. 5.
(23) Ibid. , p. 44.
(24) Edward A. Ross. Foundations o f Sociology. 5. ed. New York, Macmillan,
1919, p. 382-5.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 111

nos, propunha que geneticamente os imigrantes não pareciam apre­


sentar “ a capacidade de autonomia e de instituições livres demons­
trada pelos povos do norte e do leste da E uropa” .25
Para lidar com essa suposta ameaça, os intelectuais aderiram
ao crescente movimento de fins do século XIX e princípios do século
XX de restrição à imigração.26 Entretanto, para assegurar a homo­
geneidade cultural em face da imigração que já ocorrera, viam a
necessidade de um a segunda linha de defesa. Fundam entalm ente,
perceberam que a imposição de significado poderia ser um instru­
mento de controle social. O im igrante poderia ser progressivamente
aculturado aos valores, crenças e padrões de comportamento da
classe média. Esse instrumento, de acordo com Ross, era a escola.
Ross raciocina de m aneira notavelmente semelhante às atitudes que
vimos ao tratar do clima ideológico que cercava o crescimento das
escolas u rb an as.27

Nacionalizar uma população numerosa exige instituições que disse­


minem determinadas idéias e ideais. Os czares contaram com a Igreja
Ortodoxa de cúpula azul em cada cidadela camponesa para russificar
seus adeptos heterogêneos, enquanto nós, americanos, contamos pa­
ra a unidade com a “escolinha de tijolos vermelhos” .

Foi nesse veio que Bobbitt e outros líderes formadores da área


do currículo usaram -no para servir à causa da comunidade. O currí­
culo poderia restaurar o que se estava perdendo.

A área do currículo e o problema da comunidade

Os primeiros membros mais influentes da área do currículo


pareciam em geral com partilhar dessas visões acerca da decadência
da classe média e a ameaça representada por imigrantes e outras
pessoas diferentes. Ross L. Finney, não apenas um dos primeiros
teóricos do currículo mas também um dos primeiros sociólogos da

(25) Charles A. EUwood. Sociology and Modem Social Problems. New York,
American Book Co., 1913, p. 220.
(26) Ibid., p. 217-21; Edward A. Ross. Principles o f Sociology, New York,
Century, 1920, p. 36-7.
(27) Ross. Principles o f Sociology, ibid., p. 409.
112 MICHAEL W. APPLE

educação, como os primeiros cientistas sociais e educadores via a


classe média am eaçada de cima por uma classe de capitalistas e por
baixo por um operariado imigrante, que se introduzia na população
em número cada vez maior para atender às exigências da industria­
lização de m ão-de-obra barata. Escrevendo num período de pós-I
Guerra M undial, ele refletiu a paranóia nacional conhecida como o
Medo Vermelho. Afirmava que os imigrantes do leste e do sul
europeus, que acreditava terem trazido consigo para a América uma
ideologia bolchevista, tentariam derrubar a nação e com ela a classe
média num a revolução semelhante à Revolução Russa de 1917.28
Ao fazer sua defesa da classe média, Finney lamentava a
perda da com unidade. Ele falava longinquamente do que via como
um a época mais serena na história do país, um a época em que a
industrialização não tirara a propriedade da riqueza da nação das
mãos daqueles que a produziram , processo que acabou por criar
classes e interesses sociais e econômicos conflitantes.29
A solução de Finney para esse problema era familiar. A nação
devia instilar os imigrantes com valores e padrões de comportamento
específicos. O operariado im igrante tinha de m anter os mesmos
firmes compromissos com seu trabalho que ele atribuía às pessoas
de sua própria classe. E ra esse compromisso, conforme acreditava,
que reduziria sua potencial am eaça revolucionária, fazendo com que
se sentissem satisfeitos no cumprimento de funções econômicas
“ mais humildes” que via como a futura sorte da “ m assa” da popu­
lação norte-am ericana num a sociedade industrial.30 Junto com
outros intelectuais de seu tempo, sustentava que, “ se a conduta de
um povo democrático deve ser confiável e harmoniosa, [seus mem­
bros] precisam pensar e sentir de modo semelhante” .31
Outros im portantes especialistas em currículo tiveram um
compromisso semelhante com o consenso cultural. Charles C. Pe-
ters, que como Finney foi tanto um influente teórico do currículo
quanto um sociólogo da educação, via os imigrantes como uma
ameaça à civilização norte-americana até que passassem a “pensar
e a atuar sobre assuntos políticos, sociais, econômicos, sanitários e

(28) Ross L. Finney. Causes and Cures for the Social Unrest: An Appeal to
the Middle Class. New York, Macmillan, 1922, p. 167-72.
(29) Ib id .,p . 43.
(30) Ross L. Finney. A Sociological Philosophy o f Education. New York,
Macmillan, 1924, p. 382-3.
(31) Ibid. , p. 428.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 113

outros, à m aneira americana aprovada” .32 De igual im portância,


Edward Thorndike, que fez mais do que ninguém para articular a
psicologia behaviorista que tem prevalecido na área do currículo
desde seus primórdios, via o negro da mesma forma como esses
educadores viam o imigrante. Ele não só duvidava de sua capaci­
dade de adaptação a instituições democráticas, como também o via
como um elemento indesejável na população da maioria das cidades
norte-am ericanas.33 Como deveríamos enfrentar esses elementos
indesejáveis? Uma vez que os negros já estavam aqui, como pode­
ríamos torná-los iguais a nós? Como poderíamos restaurar a comu­
nidade?
Exatamente comb nos primórdios, esses indivíduos voltaram-
se para as escolas. O currículo escolar poderia criar o consenso de
valores que era o objetivo de sua política social e econômica. Finney
a esse respeito sustentava que “um a propaganda muito mais sensata
para os operários é a que os aliará e am algamará com a classe
média. E um a tal aliança e amálgama deveria ser imposta às classes
inferiores, quer seus agitadores apreciem-na ou não, por meio de leis
invariáveis que tornem a graduação em nível secundário pratica­
mente universal” . 34
Mas quando esses cientistas sociais e educadores passaram a
se ocupar com a parte prática da natureza e projeto do currículo,
deu-se um a im portante m udança em seu raciocínio, m udança que se
mostrou im portante tanto para o futuro desenvolvimento da área
quanto para aqueles a quem esses desenvolvimentos afetariam. Em
vez de se referir à necessidade de homogeneidade em termos de
diferenças étnicas, de classe e raciais, começaram a falar acerca da
questão em termos de diferenças em inteligência. A “ ciência” tor­
nou-se a capa retórica, conquanto em geral inconsciente, para ocul­
tar decisões sociais e educacionais conservadoras, fato que adquirirá

(32) Charles C. Peters. Foundations o f Educational Sociology. New York,


Macmillan, 1924, p. 25.
(33) Thorndike aparentemente aceitou os pontos de vista do antropólogo
norte-americano R. H. Lowie de que “os negros revelam propensão inveterada ao
menos pelas formas monárquicas de governo” . Ver Edward L. Thorndike. Your City.
New York, Harcourt, Brace, 1939, p. 77-80. Para um exame do behaviorismo de
Thorndike e de sua influência na área do currículo, ver Barry M. Franklin. “ Curri­
culum Thought and Social Meaning: Edward L. Thorndike and the Curriculum
Field”. Educational Theory, XXVI (Summer 1976), 298-309.
(34) Finney. Causes and Cures for the Social Unrest, op. cit., p. 180.
114 MICHAEL W. APPLE

maior relevância quando passarm os a trata r dos usos que hoje se


fazem em educação da linguagem científica e técnica, nos Capítulos
6, 7 e 8, e a examinar seu emprego para disfarçar suposições
ideológicas e éticas.
Finney, por exemplo, pareceu ter m udado sua visão acerca do
que constituía o principal problem a enfrentado pela sociedade
norte-am ericana. A ameaça básica à classe média deixara de ser o
aumento do operariado imigrante. Mais importância tinha o fato de
que “ m etade da população tem cérebros de qualidade apenas me­
diana ou inferior, da qual um a porcentagem bastante considerável
tem, de fato, cérebros muito fracos” .35 Aliado a ele nessa visão do
problema encontrava-se Thorndike, que sustentava que os indiví­
duos com baixo quociente de inteligência constituíam um a ameaça à
própria existência da “civilização” .36 Bobbitt e outros progressiva­
mente codificaram suas idéias em termos científicos. De fato, até
advertiram contra o nacionalismo extremo e a aversão aos europeus
que ele engendrava.37 Agora, quando passaram a tratar diretamente
da questão da estruturação do currículo, parece que modificaram
sua visão do problem a de com unidade. O problema deixara de ser o
de m anter a hegemonia dos membros mais privilegiados da comuni­
dade, problem a identificado pela maioria dos primeiros líderes nas
ciências sociais, passando a ser o de m anter a hegemonia daqueles
com alto quociente de inteligência num a sociedade em que a massa
da população era julgada portadora, na melhor das hipóteses, de
inteligência mediana. Como veremos, isto se constitui menos num a
m udança do que se poderia pensar.

A diferenciação do currículo e a questão da comunidade

O traço central da'visão da estruturação do currículo que


dominou o pensamento desses primeiros educadores, e de fato ainda
domina o pensamento dos teóricos do currículo contemporâneos,
era que o currículo precisava ser diferenciado para preparar indi­
víduos com inteligência e capacidade diferentes para um a multipli-

(35) Finney. A Sociological Philosophy o f Education, op. cit., p. 386.


(36) Thorndike. Human Nature and the Social Order, op. cit., p. 440.
(37) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p. 158; William Bagley, “Supple­
mentary Statement” . In: Rugg, op. cit., p. 38.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 115

cidade de funções na vida adulta, diversas porém específicas.38 Esta


é um a questão decisiva. Essas funções adultas diversificadas im pli­
cariam responsabilidades sociais desiguais que concederiam poder e
privilégios sociais desiguais. Esses educadores acreditavam que os
indivíduos portadores de alto quociente de inteligência eram mais
virtuosos, mais dedicados ao trabalho e mais propensos a em pregar
seus talentos em benefício da sociedade que a maioria da população.
Conseqüentemente, Thorndike e outros sustentaram que as visões
desses indivíduos eram de maior significado social que as da maio­
ria. Por conseguinte, mereciam um a posição de destaque social e
político.39
Essa visão da distribuição desigual de responsabilidade e
poder refletia-se quando se referiam à forma como a diferenciação
do currículo atenderia a duas finalidades sociais — educação para
os que se acham na cúpula e educação para os que se acham na
base. Os dotados de quociente de inteligência elevado deveriam ser
educados para guiar o país, ensinando-lhes a compreender as neces­
sidades da sociedade. Também aprenderiam a definir convicções e

(38) Bobbitt. How to Make a Curriculum, op. cit., p. 41-2, 61-2; Edward L.
Thorndike. Individuality. Boston, Houghton Mifflin, 1911, p. 51; Edward L. Thorn­
dike. Education: A First Book. New York, Macmillan, 1912, p. 137-319; David
Snedden, Sociological Determination o f Objectives in Education, Philadelphia, Lip-
pincott, 1921, p. 251; Peters, Foundations o f Educational Sociology, op. cit., p. vii.
Finney adotou uma visão da diferenciação um tanto diversa da dos outros
primeiros teóricos da área. Defendeu o que parecia ser um currículo comum domi­
nado pelas áreas de conhecimento em ciências sociais. Mas fez uma distinção crítica
quanto ao modo como esses temas deveriam ser ensinados a indivíduos com diferente
capacidade. Àqueles com alto quociente de inteligência se deveria ensinar sua he­
rança social através de um estudo de Ciências Sociais. Seria um estudo que lhes
ensinaria a entender não apenas sua herança mas as exigências sociais que ela lhes
faria. Àqueles com baixo quociente de inteligência, dever-se-iam ensinar apenas as
próprias Ciências Sociais, mas seriam condicionados a responder a slogans apro­
priados que refletissem o conteúdo dessas áreas de conhecimento e as exigências
sociais que elas trariam em si. Ver Finney. A Sociological Philosophy o f Education,
op. cit., Cap. 15, p. 393-6, 406, 410. Quanto à importância da diferenciação do
currículo atualmente, ver Herbert M. Kliebard. “ Bureaucracy and Curriculum
Theory” . Freedom, Bureaucracy and Schooling. Vernon F. Haubrich (ed.). Wash­
ington, Association for Supervision and Curriculum Development, 1971, p. 89-93.
(39) Finney. A Sociological Philosophy o f Education, op. cit., p. 388-9;
Thorndike, Human Nature and the Social Order, op. cit., p. 77-9, 800-2; Edward L.
Thorndike. “A Sociologist’s Theory of Education” . The Bookman, XXIV (November
1906), p. 290-1; Edward L. Thorndike. Selected Writings from a Connectionist’s
Psychology. New York, Appleton-Century-Crofts, 1949, p. 338-9.
116 MICHAEL W. APPLE

padrões de comportamento adequados para atender a essas necessi­


dades. A massa deveria ser instruída a aceitar essas convicções e
padrões quer ou não os entendesse ou com eles estivesse de acordo.40
Como propôs Finney, “em lugar de tentar ensinar beócios a pensar
por si mesmos, os líderes intelectuais devem pensar por eles e semear
os resultados, por meio de memorização, em suas sinapses” . 41
Dessa forma a diferenciação do currículo baseada na “inteligência”
produziria homogeneidade cultural e, com ela, estabilidade na
sociedade norte-am ericana.42
Em resumo, o interesse dos primeiros a estruturarem currículo
estava na preservação do consenso cultural e, ao mesmo tempo, em
destinar os indivíduos ao seu “lugar” adequado num a sociedade
industrial interdependente. Bobbitt aludiu a esse interesse ao iden­
tificar as duas funções principais da vida industrial, moderna. Havia
o trabalhador “especializado” que mencionei um pouco acima neste
capítulo. Sua função era ser especializado em uma tarefa estrita
num a dada organização. Além disso, ele precisava de um conheci­
mento limitado da totalidade da organização que lhe permitisse ver
a im portância da sua função restrita no grande processo de pro­
dução e distribuição e para sua “ submissão disposta e inteligente”
aos propósitos da organização.43 O trabalhador “especializado”
precisaria de um a compreensão completa apenas de sua tarefa
específica. Fora dessa tarefa, conforme Thorndike, ele apenas preci­
sava “ saber quando não abstrair e onde encontrar o conhecimento
de que necessita” . 44 E havia o “ generalista” , termo em pregado por
Bobbitt para o gerente ou supervisor. Ele não precisava ser espe­
cializado em tarefa alguma, mas, sim, necessitava um a compreen­
são total dos objetivos da organização e um compromisso com eles,
que lhe permitisse dirigir as atividades dos “especializados” e a

(40) Finney. A Sociological Philosophy o f Education, op. cit., p. 386, 389;


Edward L. Thorndike. “ How May We Improve the Selection, Training, and Life
Work of Leaders” . How Should a Democratic People Provide for the Selection and
Training o f Leaders in the Various Walks o f Life. New York, Teachers College Press,
1938, p. 41; Walter H. Frost. David Snedden and Education for Social Efficiency.
Madison, University of Wisconsin Press, 1967, p. 165, 197.
(41) Finney. A Sociological Philosophy o f Education, op. cit., p. 395.
(42) Ibid., p.397-8.
(43) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p. 78-81, 95.
(44) Edward L. Thorndike. “The Psychology of the Half-Educated Man” .
Harpers, CXL(April 1920), 670.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 117

conquistar seu assentimento.45 Portanto, algumas pessoas com mais


sabedoria dirigiriam outras. O que poderia haver de errado nisso?
É exatam ente quem seriam essas pessoas que torna essa vida nada
neutra.

Etnicidade, inteligência e comunidade

Como vimos, ao definir a função do currículo muitos dos


membros mais influentes na área, em bora parecessem temer e ver
com maus olhos os imigrantes, passaram a discutir a questão da
defesa da comunidade como um problema do baixo quociente de
inteligência muito comum na população. Mas há provas para suge­
rir que essa redefinição não era sinal de um a m udança do ponto de
vista que compartilhavam com os primeiros líderes nas ciências
sociais. Em bora discorressem a respeito da diferenciação do currí­
culo em termos de inteligência, tanto Bobbitt quando David Sned-
den, outro que era tanto especialista em currículo quanto sociólogo
da educação, sugeriram que a diferenciação deveria ser feita tam ­
bém em termos de diferenças de classe social e formação étnica,
respectivam ente.46 Q uando Thorndike identificou os que na socie­
dade norte-americana possuiriam maior capacidade natural e alto
quociente de inteligência, ele apontou para o homem de negócios,
o cientista e o advogado.47 Essas eram ocupações que na sua época
eram quase que totalmente monopolizadas por membros da classe
média nativa. Os portadores de inteligência superior, portanto,
deviam encontrar-se predominantemente nesta classe e não nas mais
baixas. As massas sem inteligência eram os elementos de diversi­
dade na população, em primeiro lugar os imigrantes do leste e do sul
da Europa e, num grau menor, a população negra. Portanto, o que
os intelectuais norte-americanos viram originalmente como um pro­
blema cultural de diferenças étnicas e de classe foi redefinido, na
linguagem aparentem ente neutra da ciência, como um problema de
diferenças em inteligência, como um problem a de “competências”
diversas para contribuir para a maximização e o controle do conhe-

(45) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p. 78-86.


(46) Ibid., p. 42; David Snedden. Civic Education. Yonkers on Hudson,
World Book Co., 1922, Capitulo4.
(47) Thorndike. Human Nature and the Social Order, op. cit., p. 86-7, 783-5,
963.
118 MICHAEL W. APPLE

cimento moral e técnico “especializado” , despojando desse modo o


problem a de seu conteúdo econômico e social. O controle social,
portanto, tornou-se encoberto pela linguagem da ciência, algo que
persiste até hoje.48 Por meio do controle e diferenciação dos currí­
culos escolares, as pessoas e as classes também poderiam ser contro­
ladas e diferenciadas.
Por que o fizeram? Os téoricos formadores da área do currí­
culo, apesar de sua identificação com a classe média, passaram a ver
favoravelmente a industrialização e o surgimento das grandes em­
presas. Estavam especialmente enamorados da aparente eficiência e
produtividade dos processos industriais e, assim, incorporaram à
sua concepção de estruturação do currículo os princípios da Admi­
nistração Científica julgados responsáveis por ela.49 Mas, além dessa
confiança nos procedimentos das grandes empresas, estavam com­
promissados com seu modo hierárquico de organização como um
modelo para a própria sociedade. Isto pode ser visto de maneira
mais clara na visão de Finney para a sociedade norte-am ericana:50

Essa concepção de cúpula e base — levou-nos novamente à noção de


uma hierarquia graduada de inteligência e instrução. (...) No ápice
desse sistema devem estar os especialistas, que impulsionam a pes­
quisa para setores altamente especializados do front. Atrás deles,
vêm esses homens e mulheres que as universidades deveriam formar,
que estão familiarizados com as descobertas dos especialistas e são
capazes de relacionar um segmento com o outro. Esses líderes do
pensamento relativamente independentes proverão mudanças pro­
gressistas e reajustamentos constantes. Atrás desses, vêm os gradua­
dos no curso secundário, que são um tanto familiarizados com o
vocabulário dos que se acham acima deles, têm um sentimento de
familiaridade com as diversas áreas e um respeito pelo conhecimento
especializado. Finalmente, vêm as massas mais estúpidas, que repe­
tem osslogans dos que estão diante de si, imaginam que os entendem
e seguem por imitação.

(48) Para um exame desta tendência no pensamento social, ver Trent


Schroyer. “Toward a Critical Theory for Advanced Industrial Society” . Recent Socio­
logy n. 2. Hans Peter Dreitzel (ed.). New York, Macmillan, 1970, p. 212. Quanto à
adequabilidade desta visão, para interpretar-se a educação norte-americana, ver
Walter Feinberg, Reason and Rethoric. New York, John Wiley, 1975, p. 40.
(49) Kliebard. “Bureaucracy and Curriculum Theory”, op. cit., p. 74-80; e
Raymond E. Callaghan. Education and the Cult o f Efficiency. University of Chicago
Press< 1962, Cap. 4.
(50) Finney, A Sociological Philosophy o f Education, op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 119

Observe-se que essa visão de organização social não procura


eliminar toda a diversidade, mas, antes, controlá-la estreitando seu
campo de ação e canalizando-a para áreas que não parecem am ea­
çar os imperativos da estabilidade, social, produção de “conheci­
mento especializado” e crescimento econômico. Os industriais, por
exemplo, desde a década de 1880 até inícios da década de 20,
período em que esses teóricos am adureceram e levaram avante seu
trabalho, combateram o movimento nacional em favor da restrição
da imigração. Pelo contrário, tentaram diminuir a suposta ameaça
dos imigrantes à sociedade norte-americana instilando-os com ati­
tudes, crenças e padrões de comportamento da classe média. Ao
mesmo tempo, em pregaram sua aparente “ disposição” para traba­
lhar em troca de baixos salários para atender às dem andas de indus­
trialização por mão-de-obra b a ra ta .51 Aqui, os membros forma­
dores da área do currículo, ao contrário de alguns dos primeiros
cientistas sociais, pareciam com partilhar dessa visão m antida pelos
industriais.52 Podem ter acreditado que, em vista do crescente senti­
mento nativista do período em seguida à I G uerra Mundial, pode­
riam ser mais bem-sucedidos promovendo a integração de elementos
diversos da população num a sociedade hierarquicam ente organi­
zada se conceituassem essa diversidade em termos de inteligência e
não de etnicidade. No contexto da época, sem dúvida acreditaram
que a sociedade norte-am ericana estava mais inclinada a lidar com a
inteligência do que com a diversidade em etnicidade ou raça.53 Mas
indubitavelmente se sentiram seguros em sua convicção de que uma
comunidade “ real” poderia ser construída através da educação,uma
comunidade com líderes “ naturais” e discípulos “naturais” e em
que pessoas como “nós” pudessem definir como deveriam ser “ as
outras” .

(51) John Higham. Strangers in the Land. New Brunswick, Rutgers Univer­
sity Press, 1955, p. 51,187, 257, 303-10, Capítulo 9.
(52) Ross, em circunstâncias semelhantes, perdeu seu emprego na Stanford
University porque se irritou com a senhora Leland Stanford, esposa do fundador da
universidade e sua autoridade principal após a morte do marido. Atacou a comuni­
dade comercial por seu apoio à imigração chinesa irrestrita. Ver Walter P. Metzger.
Academic Freedom in the Age o f the University. New York, Columbia University
Press, 1955, p. 164-71; e Bernard J. Stern (ed.). "The Ward-Ross Correspondence II
1897-1901” . American Sociological Review, VII (December 1946), 744-6.
(53) Higham sustenta que na década de 20, período em que o currículo surgiu
como um campo de estudo e em que os educadores aqui em consideração realizaram
seu trabalho mais importante, os sentimentos nativistas norte-americanos afastaram-
se das tentativas de assimilação através de programas de americanização e, pelo
120 MICHAEL W. APPLE

Mas isso não explica tudo. A isto deve-se acrescentar o papel


da “ciência” m ais um a vez como fornecedora dos “princípios fun­
damentalm ente corretos” quanto aos quais deve haver consenso.
À medida que aum entava a justificação científica da estratificação,
à medida que se tornava mais sistemática, ela forneceu a solução
ideal para o problem a ideológico de justificar o poder de um grupo
sobre o outro, com batendo e finalmente ameaçando grupos. E essa
solução veio de duas formas: dando uma definição “adequada” da
situação desses indivíduos e servindo aos interesses dessas classes na
luta pelo capital econômico e cultural. Tratando a ciência como uma
forma de tecnologia, como um método neutro que poderia ser apli­
cado aos dilemas econômicos e culturais enfrentados por essas pes­
so as no esforço p ara reproduzir e produzir hegemonia, é evidente o
papel (o campo de ação e a função) de sua visão ideológica.
Esses “ reform adores” se defrontavam com um dilema de inte­
resse. Falando de modo geral, com a ruptura de uma ordem econô­
mica e social um a vez aceita — causada em parte pela rápida indus­
trialização, pela m udança de acumulação de capital agrícola para
capital industrial, o crescimento da tecnologia, a imigração, a desin­
tegração da vida com unitária, o aumento da “ necessidade” de divi­
dir e controlar a m ão-de-obra para aum entar os lucros, e assim por
diante —, os vínculos comunitários tornaram-se frágeis. Os signifi­
cados que proporcionaram os laços entre as pessoas tinham de ser
reconstituídos, em geral sobre novas bases. A forma da linguagem
da ciência e tecnologia forneceu esses laços de diversos modos para
os educadores, dando-lhes um a nova e completa ordem de signifi­
cados em torno dos quais poderiam se associar.54 Primeiro, ela
oferecia um modo de descrição que parecia mais poderoso que as
formas anteriores de discorrer sobre acontecimentos e política edu­
cacionais, um a forma de descrever a relação entre as escolas e os
problemas da sociedade, e para descrever o que se passava ou
deveria se passar nas salas de aula. Segundo, era um a linguagem

contrário, voltaram-se em defesa da restrição à imigração. Foi em 1924 que se


promulgou o ato Johnson-Reed, que estabeleceu firmemente o “princípio das origens
nacionais” , com as restrições que aplicou aos povos do leste e do sul da Europa, na lei
norte-americana. Ver Higham. Strangers in the Land, op. cit. , Cap. II.
(54) Dwayne Huebner. “ The Tasks of the Curricular Theorist” . Curriculum
Theorizing: The Reconceptualists. William Pinar (ed.). Berkeley, McCutchan, 1975,
p. 256.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 121

explanatória que se mostrava como se pudesse determ inar causas e


inferir razões quanto ao porquê de as coisas ocorrerem ou não ocor­
rerem dentro e fora das escolas. Terceiro, e muito importante, a lin­
guagem da ciência e tecnologia prosseguia a promessa de melhor
controle, dando aos educadores maior facilidade de predição e
manipulação. Ajudar-nos-ia em nossa m eta de levar diferentes estu­
dantes do ponto A ao ponto B rápida e eficientemente (embora, se os
fins e os meios de levar de A a B eram ética e economicamente
“justos” é um a das questões críticas que não foram adequadam ente
levantadas por essas pessoas), perfazendo de tal modo um longo
caminho em direção da criação das categorias e procedimentos que
até hoje sustentam o indivíduo abstrato, e o educador e o estudante
desvinculados.
Esses tipos de significados criados por esse sistema linguístico
eram declarados e provavelmente ajudaram a prover esses educa­
dores com um sentido da integridade de seus esforços. Afinal, quem
poderia queixar-se de ser mais capaz de descrever, explicar ou con­
trolar os acontecimentos? Contudo, as funções ideológicas latentes
da ciência e tecnologia como um sistema lingüístico tiveram igual ou
até mais im portância que as manifestas em oferecer um a “ definição
útil da situação” . A ciência, com sua suposta lógica de eficiência e
controle, exerceu um a função de legitimação ou justificação. Como
observa Huebner, a linguagem de legitimação serve para estabelecer
a reivindicação de um a pessoa de que ela sabe o que está fazendo ou
de que ela “ tem o direito, responsabilidade, autoridade ou legiti­
midade para fazê-lo” . 55 Em resumo, reafirm a a diversos grupos e
pessoas que o educador conhece e tem o direito de continuar a fazer
o que vem fazendo. Em vista da confiança cada vez maior nos
modelos industriais e de eficiência pelas classes que detêm o poder
no setor econômico da sociedade, a ciência e a tecnologia uniram-se
para criar um a form a de linguagem que vinculasse esses educadores
é intelectuais ao sistema de valores da ordem econômica mais
ampla.
Além do mais, não apenas justificou a atividade dos educa­
dores — afinal, criou de fato coesão entre os educadores e assenta-se
facilmente num a economia em desenvolvimento com sua exigência
de eficiência, conhecimento técnico, crescimento industrial e socia­
bilização com a “ democracia” —, mas também ajudou a recrutar

(55) Ihid. , p . 255.


122 MICHAEL W. APPLE

adeptos, indivíduos empenhados que trabalhariam pela causa.


Finalmente, atuou como um dispositivo de exortação que poderia
prescrever a ação que deveria ser realizada pelos diversos grupos e
individuos. Este foi inicialmente um uso político da linguagem em
que a ciência e a tecnologia transm itiam um imperativo lógico e um
compromisso ideológico necessários para convencer as pessoas a
aderirem a um movimento em favor do que parecia ser um a reforma
institucional de m elhoria.56
Em todas essas formas — descritiva, explanatória, prescritiva,
legitimadora ou justificatória, e exortativa —, a racionalidade da
ciência e da tecnologia era um expediente ideal para criar um novo
conjunto de significados, um a nova visão do “ sagrado” , se assim se
quiser, que reconstruiria os laços comunitários que haviam se tor­
nado tão frágeis, que recriariam a “ com unidade” . Mas isso não era
apenas o caso para educadores. Ciência, progresso, eficiência, cres­
cimento industrial e expansão, todos dentro dos limites de estabili­
dade social, tornaram -se tam bém um a parte integral da visão de
mundo ideológica da maioria dos setores mais poderosos da nação.
Seu resquício histórico ainda fornece as regras sociais constitutivas
para a vida cotidiana em sala de aula que examinei no Capítulo 3
(as origens da escolarização como um modo de preparar as crianças
para o “ trabalho” evidentemente são muito profundas) e para os
tipos de conhecimento formal considerados essenciais a um a eco­
nomia industrial que analisamos no Capítulo 2.

Conclusão

É este empenho em m anter um sentido de comunidade, ba­


seado em homogeneidade cultural e consenso de valores, que tem
sido e permanece um dos legados prim ários, embora tácitos, da área
do currículo. É um a função que está engastada na dependência da
área em procedimentos e técnicas tomados de empréstimo a grandes
empresas. Como veremos no Capítulo 6, estranham ente (embora
talvez não, diante do que vimos quanto ao passado da área), essa
dependência permanece hoje tão forte (com a dominação, por exem­

(56) Quanto aos usos da linguagem exortativa para criação do imaginário,


ver Murray Edelman. The Symbolic Uses o f Politics. Urbana, University of Illinois
Press, 1964.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 123

plo, de modelos sistêmicos de administração) como o fora há quase


sessenta anos, quando os líderes da área voltaram-se para a Admi­
nistração Científica para orientação na articulação da natureza da
estruturação do currículo. Desde que a tendência histórica desse
compromisso é construir a “comunidade” (e os currículos) que
reflete os valores daqueles que detêm poder econômico e cultural, é
um compromisso que pode estabelecer hoje a mesma ameaça aos
operários, mulheres, negros, latinos e índios americanos que esta­
beleceu no início do século XX aos negros e imigrantes do leste e sul
da Europa. Em vista da tendência de muitos teóricos do currículo
desde os princípios da área para articular seus compromissos con­
servadores na linguagem científica e aparentemente neutra de inte­
ligência e competência, também constitui um a ameaça que histori­
camente permaneceu desconhecida. Apenas vendo-se como a área
do currículo em geral serviu aos interesses conservadores de homo­
geneidade e controle social podemos começar a ver como funciona
hoje. Podemos ainda descobrir, infelizmente, que a retórica de
ciência e neutralidade mais oculta do que revela. No mínimo, em­
bora possa ser lamentável, não deveríamos esperar que a área do
currículo destruísse completamente seu passado. Afinal, como em
nossa história im aginária no começo desta análise, as escolas real­
mente trabalham ... para “eles” . Em educação, como na distribui­
ção desigual de bens e serviços econômicos, “ aqueles” que têm,
recebem .57
Se estamos de fato seriamente empenhados em tornar nossas
instituições sensíveis às comunidades, de formas diferentes das
atuais, o primeiro passo está em reconhecer as conexões históricas
entre grupos que detiveram o poder e a cultura que é preservada e
distribuída por nossas escolas. Pode nos levar a formular perguntas
semelhantes hoje. Talvez pudéssemos começar retornando à nossa
historieta inicial e perguntar novamente: “Para quem as escolas
trabalham ?” . Alguns educadores podem ficar muito transtornados
pela resposta. Mas quem foi que disse que tom ar consciência da
posição política tácita deveria deixar alguém à vontade?

(57) Para maiores explicações dessa relação, ver Michael W. Apple e Philip
Wexler. “Cultural Capital and Educational Transmissions” . Educational Theory,
XXVIII (Winter 1978).
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5

O currículo oculto
e a natureza do conflito

Sustentei no Capítulo 1 que, para entender a relação entre o


currículo e a reprodução cultural e econômica, deveríamos abordar
mais completamente a preservação e o controle de determ inadas
formas de ideologia, a hegemonia. Vimos agora como histórica e
presentemente algumas concepções normativas de cultura e valores
legítimos se introduziram no currículo. Entretanto, precisamos res­
saltar que a hegemonia é produzida e reproduzida pelo corpus formal
do conhecimento escolar, assim como pelo ensino oculto. Como as
citações de Williams indicaram um pouco acima, a tradição e incor­
poração seletivas atuam ao nível do conhecimento manifesto, de
modo que alguns significados e práticas são escolhidos como impor­
tantes (geralmente por um segmento da classe média1) e outros são
menosprezados, excluídos, diluídos ou reinterpretados. D a mesma
forma como muitos educadores e especialistas em currículo per­
deram a noção de suas origens históricas nos interesses de se m anter
o consenso através da seleção do conhecimento baseada num a visão
de um a sociedade estratificada por classe e por critérios de “ compe­
tência” , tam bém a tradição seletiva opera hoje para negar a impor­
tância tanto do conflito quanto da disputa ideológica séria. O que
em geral se constituiu no passado em um esforço consciente da

(1) Ver em especial a análise de Basil Bernstein em seu novo capítulo “As­
pects of the Relation between Education and Production” . Class, Codes and Control.
Volume 3: Towards a Theory o f Educational Transmissions. 2. ed. London, Rou­
tledge & Kegan Paul, 1977.
126 MICHAEL W. APPLE

burguesia de criar um consenso que não havia, tornou-se a única


interpretação viável das possibilidades sociais e intelectuais. O que
era a princípio um a ideologia na forma de interesses de classe
passou a ser agora a definição da situação na maioria dos currículos
escolares. Devemos analisar isso examinando alguns aspectos do
corpus formal do conhecimento escolar e ver como o que se passa
dentro da caixa negra cria as conseqüências que os teóricos da
reprodução econômica procuraram descrever. Mais um a vez, nossa
visão da ciência desempenhará um papel interessante e, neste caso,
mais direto.
Antes de prosseguir, porém, é importante observar que, para
que a escola continue a desempenhar de maneira relativamente
suave seus papéis históricos complexos, na maximização da produ­
ção de conhecimento técnico e na sociabilização dos estudantes com
a estrutura normativa exigida por nossa sociedade, ela tem de reali­
zar um a outra coisa que se relaciona com ambos os papéis e ajuda a
sustentá-los: tem de tornar legítima um a perspectiva basicamente
técnica, um a tensão da consciência que responde ao mundo social e
intelectual de m aneira acritica. Ou seja, a escola precisa fazer com
que tudo isso pareça natural. Uma sociedade baseada no capital
cultural técnico e na acumulação individual do capital econômico
precisa mostrar-se como se fora o único mundo possível. Parte do
papel d a escola, em outras palavras, é contribuir para a distribuição
do que os teóricos críticos da Escola de Frankfurt poderiam cham ar
de padrões utilitário-racionais de pensamento e ação.
Este é um elemento im portante na hegemonia ideológica,
pois, como se observou no Capítulo 3, para que se m antenham as
definições de situações de estudantes (como aquelas transm itidas em
sua experiência escolar inicial), essas definições precisam ser cons­
tantem ente confirmadas. Naturalm ente, essa confirmação deve
acarretar um a continuação dos padrões de interação que prevalecem
no jardim de infância. Mas, um a vez que os estudantes, à medida
que crescem, podem raciocinar verbalmente com alguma facilidade
e podem refletir sobre aspectos de suas condições sociais e culturais,
o próprio conteúdo do currículo adquire importância ainda maior.
É necessário haver um a justificação constante e cada vez mais
aperfeiçoada para a aceitação das distinções e papéis sociais ante­
riormente aprendidos. Essa justificação precisa estabelecer os lim i­
tes ideológicos de um a abordagem como essa, incorporando formas
“ adequadas” com as quais os estudantes possam começar a racio­
cinar, através da lógica, por que são de fato legítimas as instituições
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 127

e a cultura com que interagem cotidianamente. Isso exige que as


instituições, as regras do senso comum e o conhecimento sejam
vistos como relativamente pré-dados, neutros e basicamente inalte­
ráveis, pois todos continuam a existir por “consenso” . Portanto, o
currículo deveria acentuar suposições hegemônicas, que ignoram a
atuação real do poder na vida cultural e social e que apontam para a
naturalidade de aceitação, prebendas institucionais e um a visão
positivista em que o conhecimento está desvinculado dos atores hu­
manos concretos que o criaram. A chave para pôr isso a descoberto,
creio, está no tratam ento do conflito no currículo.

O conflito e o currículo oculto

O fato de as escolas normalmente mostrarem-se neutras e


serem patentem ente isoladas dos processos políticos e do debate
ideológico tem apresentado qualidades tanto positivas quanto nega­
tivas. O isolamento serviu para defender a escola de caprichos ou
modismos que em geral exercem um efeito destrutivo sobre a prática
educacional. Tam bém pode, no entanto, tornar a escola muito
insensível às necessidades das comunidades locais e a um a ordem
social em m udança. Os prós e contras da escola como um a insti­
tuição “ conservadora” têm encontrado discussão inflam ada em
torno dos últimos dez anos. Entre os mais notáveis dos interlocu­
tores encontram-se Edgard Z. Friedenberg e o Jules Henry maduro.
à parte das discussões do ensino de norm as relacionadas ao traba­
lho, o ensino oculto de um a ética da eficiência e do mercado e a
provável substituição de um sistema de valores de “classe m édia” e
em geral “esquizofrênico” pelos próprios significados biográficos de
um estudante têm sido alguns dos tópicos mais freqüentemente
postos em análise. Como vimos, boa parte do enfoque tem incidido
no que Jackson com muita propriedade rotulou de “currículo
oculto” — ou seja, nas normas e valores que são implícita porém
efetivamente transm itidos pelas escolas e que habitualm ente não são
mencionados na apresentação feita pelos professores dos fins ou
objetivos. De m aneira semelhante à que se encontra no Capítulo 3,
embora sem a m esma orientação política, Jackson trata amplamente
da forma como os estudantes aprendem a enfrentar os sistemas de
panelas burocráticas, recompensa e poder nas salas de aula: a larga
margem de espera que as crianças são obrigadas a sofrer, o pro­
fessor como o primeiro “patrão” da criança, e da forma como as
128 MICHAEL W. APPLE

crianças aprendem a dissimular alguns aspectos de seu com porta­


mento para se adaptarem ao sistema de recompensas existente na
maioria das salas de au la.2
Essas críticas da visão de mundo ideológica legitimada nas
escolas são incisivas, em bora tenham deixado de enfocar um a carac­
terística predominante da escolarização corrente que contribui signi­
ficativamente para m anter a hegemonia. Até agora é pouco o exame
sobre o modo como o tratam ento do conflito no currículo escolar
pode conduzir a um quietismo político e à aceitação por parte dos
estudantes de uma perspectiva do conflito social e intelectual que
atua para m anter a distribuição existente de poder e racionalidade
num a sociedade. Além de seu apoio às funções de formação e socia­
bilização da escolarização, o tem a do conflito é decisivo por duas
razões. O modo como é abordado ajuda a postular o sentido do
estudante dos meios legítimos de adquirir recursos em sociedades
estratificadas. Isso tem e terá cada vez mais importância em áreas
de classe operária e urbana. Pode ser muito premente que os estu­
dantes oriundos da classe operária e urbana, entre outras, desen­
volvam perspéctivas positivas quanto ao conflito e à mudança, pers­
pectivas que lhes possibilitem lidar com realidades políticas e a
dinâmica do poder de sua sociedade, complexas e freqüentemente
repressoras, de m aneira menos propensa a preservar os modos de
interação institucionais com uns.3 Também há sugestões program á­
ticas específicas que poderiam ser instituídas de modo razoavel­
mente imediato nos programas escolares para m inorar alguns dos
problemas (e que poderiam ser experimentadas também por razões
táticas).
Pode-se aprender um pouco a respeito da im portância do
ensino tácito ou oculto dos textos sobre a sociabilização política.
Está começando a ficar claro que o “aprendizado incidental” con­
tribui mais para a sociabilização política de um estudante que, di­
gamos, as aulas de Educação Moral e Cívica ou outras formas de
ensino deliberado de orientação de valor específicas.4 Ensina-se às

(2) Philip Jackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Winston,
1968, p. 3-37.
(3) Cf. Peter K. Eisinger. “Protest Behavior and the Integration of Urban
Political Systems” . Madison, University of Wisconsin Institute for Research on
Poverty, 1970, mimeo.
(4) Roberta Sigel (ed.). Learning About Politics. New York, Random House,
1970, p. xiii.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 129

crianças como lidar e se relacionar com a estrutura de autoridade da


coletividade a que pertencem por meio de padrões de interação a
que estão expostas até um certo ponto nas escolas.
Evidentemente, não é apenas a escola que contribui para o
“ ajustamento à autoridade” por parte de um estudante. Por exem­
plo, grupos de companheiros e em especial a família, através de suas
práticas de educação e de seu estilo de interação interpessoal, podem
afetar profundam ente a orientação geral de um a criança para com a
autoridade.5 No entanto, existe um forte indício nas últimas pes­
quisas de que as escolas são antes rivais acirrados da família como
agentes importantes de sociabilização política. Como expresso por
Sigel:6

[Há] provavelmente pouca dúvida de que as escolas públicas são um


núcleo de alternativas de escolhas mais para o tradicional que o
inovador, e menos para o radical. Conseqüentemente, facilitam a
sociabilização política dos jovens de posições não radicais e tendem a
muni-los com os instrumentos necessários para os papéis específicos
que se espera venham a desempenhar numa dada sociedade. É possí­
vel indispor-se com os papéis diferenciais que o governo e as escolas
atribuem aos estudantes, mas é provável que seria consideravelmente
mais difícil negar a eficácia da escola.

(5) Ibid., p. 104.


(6) Ibid. , p. 316. Uma afirmação como essa é tanto realista quanto critica.
De uma certa forma, os críticos das escolas (e este autor em grande parte) são
apanhados num dilema. É muito fácil denegrir as estruturas “educacionais” exis­
tentes (afinal, todos parecem fazê-lo); no entanto, não é muito fácil apresentar
estruturas alternativas. Aquele que apresentar reformas graduais para algumas das
condições mais enfraquecedoras corre o risco de na verdade ajudar a estabelecer e a
perpetuar o que pode muito bem ser um conjunto ultrapassado de programas insti­
tucionais. No entanto, não procurar melhorar as condições de formas que em geral
são modestas e experimentais é ignorar os seres humanos concretos que habitam as
escolas durante a maior parte de sua vida antes da idade adulta. Portanto, tenta-se
atuar dos dois lados da luta. Criticam-se as suposições ideológicas e econômicas
fundamentais que circundam as escolas da forma como se encontram hoje e, ao mesmo
tempo, paradoxalmente tenta-se tomar essas mesmas instituições um pouco mais
humanas, um pouco mais educativas. Ê uma posição ambígua, mas, afinal, assim é
qualquer situação geral. Minha discussão da natureza e da necessidade de conflito e
do ensino tácito que o acompanha mostra essa ambigüidade. No entanto, se a edu­
cação em particular tem alguma importância (e aqui se deve ler política e econômica),
então deveriam ser efetuadas mudanças concretas agora enquanto estão sendo arti­
culadas as críticas mais básicas. Uma não é desculpa para a outra.
130 MICHAEL W. APPLE

Dever-se-ia afirmar que as considerações negativas quanto ao


conflito ultrapassam a forma social com a qual é abertam ente consi­
derado em qualquer matéria, em Estudos Sociais, por exemplo, área
em que geralmente se encontra material e ensino a respeito de situa­
ções de conflito. Pelo contrário, abordagem negativa e muito irrealis­
ta parece endêmica a muitas áreas, e especialmente às ciências, área
em geral associada à objetividade e ao conflito não interpessoal.
Está se tornando cada vez mais claro que o corpus formal do
conhecimento escolar encontrado, digamos, nos livros de história e
em textos e material de Estudos Sociais vem apresentando, há anos,
um a visão um tanto tendenciosa da verdadeira natureza do volume e
do uso possível da competição destrutiva em que se em penharam
grupos deste e de outros países. O nosso ladó é o bom; o deles, o
ruim. “Nós” somos pela paz e queremos pôr um fim à luta; “ eles”
são amantes da guerra e visam dominar. A lista poderia ser am ­
pliada consideravelmente, em especial no que toca a questões de
raça e de classe.7 Precisamos ultrapassar este tipo de análise, ultra­
passar inclusive a obra dos historiadores revisionistas, cientistas
políticos, estudantes de sociabilização política e educadores, para
alcançar muitas das origens do ensino dessa orientação dominante.
Examinarei aqui duas áreas específicas — Estudos Sociais e Ciên­
cias. Procedendo assim, demonstrarei que a apresentação dessas
duas áreas (entre outras) nas escolas espelha e cria um a ideologia
que é orientada para um a visão estática: em Estudos Sociais, das
funções construtivas e até mesmo essenciais do conflito social; e, em
Ciências, da natureza do trabalho e o discurso científicos e do que se
chamou de ciência nas escolas é particularm ente interessante, uma
vez que é essencialmente um arquétipo da posição ideológica quanto
ao conflito que desejo esclarecer.
Duas suposições tácitas parecem ser proeminentes no ensino e
nos materiais curriculares. A prim eira centra-se num a posição nega­
tiva quanto à natureza e aos usos do conflito. A segunda enfoca
homens e mulheres enquanto receptáculos de valores e instituições,
não como homens e mulheres como produzindo e reproduzindo
valores e instituições. Essas suposições atuam como o parâm etro que
organiza experiências.

(7) Ver, por exemplo, Edith F. Gibson. “The Three D ’s: Distortion, Deletion,
Denial” . Social Education, XXXIII (April 1969), 405-9; e Sidney M. Willhelm. Who
Needs the Negro?, Cambridge, Mass., Schenkman, 1970.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 131

Regras básicas e suposições tácitas

O conceito de hegemonia implica que os padrões fundam en­


tais num a sociedade são ligados por suposições ideológicas tácitas,
regras, se assim se quiser denominá-las, que em geral não são cons­
cientes, bem como por controle e poder econômico. Essas regras
servem para organizar e legitimar a atividade de muitos indivíduos
cuja interação constitui um a ordem social. Analiticamente, é útil
distinguir dois tipos de regras — constitutivas ou básicas e de prefe­
rência.8 As regras básicas são como as regras de um jogo, são vastos
parâm etros em que se dá a ação. As regras de preferência, como o
nome sugere, são as opções que se têm nas regras do jogo. Tome-se o
caso do xadrez, por exemplo. Há regras fundamentais básicas (que
geralmente não são levadas a um nível de consciência) que diferen­
ciam o jogo de xadrez, digamos, do jogo de damas ou de outros jogos
que façam ou não uso do tabuleiro. E, no jogo de xadrez, há esco­
lhas dos movimentos que podem ser feitos dentro desse parâm etro
constitutivo. As escolhas possíveis para os peões incluem mover para
a frente (exceto ao “comer” um a pedra do adversário), as torres
movem-se para a frente ou para os lados, e assim por diante. Se o
peão de um adversário estivesse para saltar sobre três pedras para
colocá-lo em cheque, então é claro que ele não estaria seguindo as
“ regras do jogo” , nem estaria tampouco seguindo as regras tacita­
mente aceitas se, digamos, varresse todas as peças do tabuleiro e
gritasse: “ Ganhei!” .
No nível mais amplo, um a das regras constitutivas predomi­
nantes em nossa sociedade implica a noção de confiança. Quando
estamos dirigindo o carro por um a rua, confiamos em que o carro
que se aproxima da direção oposta ficará na sua faixa. A menos que
haja um a clara manifestação de desvio dessa regra, nunca traremos
ao nível da consciência como essa regra básica de atividade organiza
nossas vidas.9 Um a regra semelhante é a que postula os limites

(8) Helen McClure e George Fischer. “Ideology and Opinion Making: Gene­
ral Problems of Analysis” . New York, Columbia University Bureau of Applied Social
Research, July 1969, mimeo.
(9) A linguagem das “ regras de atividade” é menos problemática do ponto de
vista analítico do que a distinção que freqüentemente se faz entre pensamento e ação,
de vez que implica que a distinção é um tanto ingênua e permite que a ação — per­
ceptual, conceituai e física — seja a categoria fundamental da resposta de um indi­
víduo a sua situação. Embora usemos com freqüência as regras de atividade e supo-
132 MICHAEL W. APPLE

legítimos do conflito. As regras do jogo implicitamente determinam


as fronteiras das atividades em que as pessoas se empenham ou não,
os tipos de questões a serem formuladas e a admissão ou rejeição das
atividades de outros.10 Dentro dessas fronteiras, existem escolhas
entre um a série de atividades. Podemos recorrer às cortes de justiça,
mas não bombardeá-las; podemos discutir, mas não duelar; e assim
por diante. Um a suposição básica parece ser a de que o conflito
entre grupos de pessoas é inerente e fundamentalmente mau e deve­
ríamos esforçar-nos para eliminá-lo dentro do quadro estabelecido
de instituições, em lugar de ver o conflito e a contradição como as
“forças propulsoras” básicas na sociedade.
Em bora algumas das melhores escolas e salas de aula estejam
em plena atividade com questões e controvérsias, as controvérsias
freqüentemente apresentadas nas escolas dizem respeito a escolhas
dentro dos parâm etros de regras de atividade implicitamente susten­
tados. Pouca tentativa se fez para enfocar os próprios parâmetros.
O currículo oculto nas escolas serve para reforçar as regras
que cercam a natureza e os usos do conflito. Estabelece uma rede
de suposições que, quando interiorizadas pelos estudantes, determi­
nam os limites de legitimidade. Esse processo é realizado não tanto
pelos exemplos explícitos que mostram o valor negativo do conflito,
mas pela ausência quase total de exemplos que mostrem a impor­
tância do conflito intelectual e normativo em áreas de conhecimento.
O fato é que essas suposições são obrigatórias para os estudantes,
desde que em nenhum momento as suposições são expressas ou
questionadas. Pelo próprio fato de serem tácitas, de se fundam en­
tarem não no topo, mas na base de nossa mente, aum enta sua po­
tência como aspectos da hegemonia.

sições intercambiavelmente, dever-se-ia insistir que as suposições geralmente cono­


tam uma categoria de fenômenos menos inclusiva e são na verdade sinais dessas
regras e limites socialmente sedimentados que parecem afetar até mesmo nossas
percepções. Um estudo aprofundado dessas regras pode-se encontrar na literatura
etnometodológica e, naturalmente, no Wittgenstein velho. Veja-se, por exemplo,
•'Harold Garfinkel. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, N. L, Prentice-
Hall, 1967; e Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations. New York, Mac­
millan, 1953.
(10) Basicamente, o "sistema” que muitos execram não é apenas uma inter-
relação organizada de instituições, mas uma estrutura de suposições fundamentais
que atuam numa relação dialética com essas instituições.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 133

Dreeben examinou algumas das relações entre as suposições


básicas dominantes num a coletividade e o currículo oculto da escola.
Sustenta que os estudantes aprendem tacitam ente algumas normas
sociais identificáveis principalmente por tomarem parte nos encon­
tros e tarefas diárias da vida na sala de aula. É decisivo o fato de
essas normas aprendidas pelos estudantes se introduzirem em mui­
tas áreas da vida futura, de vez que ajuda a docum entar como a
escolarização contribui para o ajustamento individual a um a ordem
social, política e económica vigente. Em bora sua análise seja conser­
vadora, como vimos no Capítulo 2, ainda assim, para Dreeben, a
escolarização, o trabalho e a política nos Estados Unidos são bem
integrados. A prim eira age como um distribuidor de um a form a de
racionalidade que, quando interiorizada pelo estudante, permite-lhe
atuar nas “instituições ocupacionais e políticas que contribuem para
a estabilidade de um a sociedade industrial” , e em geral aceitá-las.11
Estudos Sociais e Ciências, conforme são ensinadas na grande
maioria das escolas, fornecem alguns dos exemplos mais explícitos
do ensino oculto. A m inha escolha dessas áreas se deve a duas razões
Primeiro, tem se formado um a literatura muito vasta e im portante
que está preocupada com a sociologia das áreas de conhecimento de
empenho científico. Essa literatura se ocupa com a “ lógica em uso”
dos cientistas (ou seja, o que os cientistas parecem realmente fazer)
enquanto contrária à “ lógica reconstruída” dos cientistas (ou seja,
o que os filósofos da ciência e outros observadores afirmam que
fazem os cientistas) que normalmente se ensina nas escolas.12 Se­
gundo, em Estudos Sociais os problemas que discutimos podem ser
esclarecidos de modo perfeito recorrendo-se a noções marxistas para
m ostrar que não são inevitáveis as visões do senso comum da vida
social freqüentemente encontradas no ensino de Estudos Sociais.
Examinemos inicialmente as Ciências. Assim fazendo, também
quero propor, como um a das sugestões que gostaria de fazer, con­
forme observei no Capítulo 1, um a visão alternativa, ou, melhor,
mais ampla, do esforço científico que deveria ser tom ada em consi­
deração por educadores e, especialmente, pelos que trabalham com
currículo, caso devam pelo menos enfocar as suposições ideológicas

(11) Robert Dreeben. On What Is Learned in Schools. Reading. Mass.,


Addison-Wesley, 1969, p. 144-5.
(12) Michael W. Apple. “Community, Knowledge and the Structure of Disci­
plines’’. The Educational Forum, XXXVII (November 1972), 75-82.
134 MICHAEL W. APPLE

inerentes a muito do que se ensina em nossas instituições educa­


cionais.

O conflito em comunidades científicas

Um a de minhas teses básicas é que a ciência, como apresen­


tada na maioria das classes do curso primário e, em grande propor­
ção, do curso secundário, contribui para o aprendizado, por parte
dos estudantes, de um a perspectiva basicamente irrealista e essen­
cialmente conservadora quanto à utilidade do conflito. As áreas de
conhecimento científico são apresentadas como corpos de conhe­
cimento (os “ quê” e “como” ), no melhor dos casos organizados em
torno de algumas regularidades fundamentais como em muitos
currículos de áreas de conhecimento e centrados na pesquisa, desen­
volvidos após a “ revolução Bruneriana” e, no pior dos casos, como
dados razoavelmente isolados que se dominam para testes. Quase
nunca é seriamente examinada como um a auto-realização. Exami­
nemos essa situação mais de perto.
Uma ciência não é “ apenas” um a área de conhecimento ou
técnicas de descoberta e formulação de justificações; é um grupo (ou
melhor, grupos) de indivíduos, um a comunidade de estudiosos nos
termos de Polanyi, à procura de elaborar projetos mais am plos.13
Como todas as comunidades, é dirigida por normas, valores e (prin-
cípios que são tanto manifestamente vistos como latentemente sen­
tidos. Por ser construída por indivíduos e grupos de estudiosos,
também possui um a história significativa de debate intelectual e
interpessoal. Em geral, o conflito é gerado pela introdução de um
paradigm a novo e quase sempre revolucionário que desafia as estru­
turas básicas de significado anteriormente aceitas pelo corpo de
cientistas, dividindo, desse modo, efetivamente a comunidade. Esses
debates estão relacionados aos modos de aquisição de conhecimento
verificável, ao que se deve considerar como exatamente científico,
aos próprios fundamentos básicos sobre os quais se sustém a ciência.
Também estão relacionados a situações como as de interpretações
conflitantes de dados, a da propriedade das descobertas e a muitas
outras questões.

(13) Michael Polanyi. Personal Knowledge. New York, Harper & Row, 1964.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 135

No entanto, o que se pode encontrar nas escolas é um a pers­


pectiva que está próxima do que se tem chamado de o ideal posi­
tivista, 14 Em nossas escolas, o trabalho científico está sempre taci­
tam ente ligado aos padrões aceitos de validade e é visto (e ensinado)
como sujeito sempre à verificação empírica sem influências externas,
quer pessoais ou políticas. As diferentes posturas em ciência não
existem ou, se existem, são empregados critérios “ objetivos” para
persuadir os cientistas de que um lado está correto e o outro errado.
Exatamente como ficará claro em nossa discussão do ensino de
Estudos Sociais, apresenta-se às crianças um a teoria consensual da
ciência, um a teoria que subestima as divergências sérias quanto a
metodologia, objetivos e outros elementos que formam os paradigmas
de atividade dos cientistas. Pelo fato de se m ostrar constantemente
o consenso científico, não se permite que os estudantes vejam que,
sem discordância e controvérsia, a ciência não avançaria ou avança­
ria a um ritmo mais lento. A controvérsia não apenas estimula
descobertas por atrair a atenção de cientistas para problemas funda­
mentais 15 mas tam bém serve para elucidar posições intelectuais con­
flitantes. Essa questão encontrará mais referências adiante em nossa
discussão.
Uma outra questão também decisiva é a de que muito prova­
velmente o padrão de “ objetividade” (é-se tentado a dizer “objeti­
vidade vulgar” ) que se apresenta e ensina nas escolas pode freqüen-
temente levar a um a separação do compromisso político. Ou seja,
pode não se tratar de neutralidade como patentemente se declara,
mas, sim, um reflexo do profundo tem or do conflito intelectual,
moral e político.16 O enfoque nas instituições educacionais do estu-
dante/cientista (que é em geral um observador passivo na maioria
das salas de aula, apesar da ênfase depositada na pesquisa pelos
teóricos e pelos especialistas em currículo) como um indivíduo que
verifica ou deduz racionalmente suposições comprovadas ou que
arm a e verifica hipóteses ou o que seja, este enfoque distorce a
natureza do conflito que em geral ocorre entre os defensores de so-

(14) Warren Hagstrom. The Scientific Community. New York, Basic Books,
1965, p. 256.
(15) Ibid., p. 264.
(16) Alvin Gouldner. The Coming Crisis o f Western Sociology. New York,
Basic Books, 1970, p. 102-3. Ver também Polanyi, op. cit.. Quanto às relações entre
concepções positivistas de objetividade e formas econômicas e de transmissão, ver
Jürgen Habermas, Towards a Rational Society. Boston, Beacon Press, 1970.
136 MICHAEL W. APPLE

luções, interpretações ou modos de procedimentos alternativos nas


comunidades científicas. Não pode possibilitar aos estudantes verem
as dimensões políticas do processo pelo qual os patrocinadores de
um a teoria alternativa vencem seus adversários. Tampouco pode
um a tal apresentação da ciência fazer mais do que ignorar siste­
maticamente a dimensão de poder implicada na retórica científica.
Não apenas se ignora o conflito histórico e contínuo entre
teorias contrárias nas áreas de conhecimento científico, mas tam ­
bém tem se dado pouca ou nenhum a atenção ao fato de que a veri­
ficação de hipóteses e a aplicação de critérios científicos existentes
são insuficientes para explicar como e por que se faz um a escolha
entre teorias antagônicas. Há muitos contra-exemplos que desfigu­
ram essa visão da ciência.17 Há muito mais sentido em observar que
a própria ciência não é necessariamente de todo acumulativa, nem
procede de acordo com um critério básico do consenso, mas, sim,
que é dirigida por revoluções conceituais que fazem com que grupos
de cientistas reorganizem e reconceituem os modelos com os quais
prpcuram entender e m anipular o m undo.18

A história da ciência é e deveria ser [vista I como uma história de


posturas antagônicas (ou, caso se queira, de “paradigmas” confli­
tantes) mas não se tornou nem deve se tornar uma sucessão de
períodos de ciência normal: quanto mais cedo inicie a luta, melhor
para o progresso.

Agora, não estou tentando levantar aqui um a causa em favor


de um a visão da ciência que declare que “objetividade” e “ neutra­

(17) Thomas Kuhn. The Structure o f Scientific Revolutions. 2. ed. University


of Chicago Press, 1970. O trabalho germinal de Kuhn é submetido a análise mais
aguda, e discutido com refutação e contra-refutação em Imre Lakatos e Alan Mus-
grave (orgs.). Criticism and the Growth o f Knowledge. New York, Oxford University
Press, 1970. Todo o volume é votado aos temas — epistemológicos e sociológicos —
levantados pelo livro de Kuhn. Ver também Stephen Toulmin, Human Unders­
tanding. Princeton University Press, 1972.
(18) Imre Lakatos. “Falsification and the Methodology of Scientific Re­
search Programmes” . Criticism and the Growth o f Knowledge. Imre Lakatos e Alan
Musgrave(orgs.). New York, Oxford University Press, 1970, p. 155. A ciência normal
refere-se àquela ciência que possui acordo (consenso) quanto aos paradigmas básicos
de atividade a serem utilizados pelos cientistas para interpretar e influenciar suas
respectivas áreas. Ver Kuhn, op. cit., para uma análise intensiva da ciência normal e
da revolucionária.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 137

lidade” , procedimentos de verificação de hipóteses e de pesquisa


não sejam de importância suprema. O que estou dizendo é que a
argumentação científica e a contra-argumentação constituem um a
grande parte do empreendimento científico e que as teorias e os
modos de procedimento (“estruturas de área de conhecimentos” ,
caso se prefira) atuam como normas ou compromissos psicológicos
que conduzem a controvérsia intensa entre grupos de cientistas. 19
Essa controvérsia é fundamental ao progresso em ciência, e é este
conflito constante que é ocultado aos estudantes.
Talvez essa questão possa ser esclarecida sondando-se mais
profundam ente algumas das características das áreas de conheci­
mento científicas em geral ocultadas na visão do público e quase
nunca ensinadas nas escolas. Em bora essa discussão tenha se cen­
trado no conflito nas áreas de conhecimento científicas, é algumas
vezes difícil separar o conflito da competição. Uma das omissões das
escolas é a falta de tratam ento de qualquer tipo do “ problem a” da
competição na ciência. Competição quanto a prioridade e reconhe­
cimento de novas descobertas é um a característica de todas as ciên­
cias estabelecidas.20 Basta ler o relato que Watson faz, em The
Double Helix, de sua disputa com Linus Pauling pelo prêmio Nobel
pela descoberta da estrutura do DNA, para se constatar quão in­
tensa pode ser a competitividade e quão humanos são os cientistas
como indivíduos e em grupos.
Pode-se também ver muito claram ente a competição entre
especialistas num a área de conhecimento, não necessariamente
quanto às “ fronteiras” do conhecimento, como no caso de Watson.
Aqui, como no futebol, a “m ercadoria” (se posso falar metafori­
camente) são estudantes exemplares que podem ser recrutados para
aum entar o poder e o prestígio de um a especialidade em surgi­
mento. Existe um a competição constante, mas em geral oculta,
entre subáreas de conhecimento em ciência quanto ao que se mostra

(19) Apple, op. cit. , e Michael Mulkay, “ Some Aspects oi Cultural Growth in
the Natural Sciences". Social Research, XXXVI (Spring 1969), 22-52.
(20) Hagstrom, op. cit., p. 81. E importante distinguir entre conflito e com­
petição. Ao passo que o conflito parece provir de algumas das condições que exa­
minamos ou examinaremos — novos paradigmas, divergência quanto a objetivos,
metodologia, etc. —, a competição parece ter suas bases no “sistema de troca” da
ciência. Ver, por exemplo, o exame de Storer do status do reconhecimento profis­
sional e da troca de mercadoria na comunidade científica, em Norman W. Storer.
The Social System o f Science. New York, Holt, Rinehart & Winston, 1966, p. 78-9.
138 MICHAEL W. APPLE

como quantidades limitadas de prestígio à disposição. O conflito


aqui é decisivo. As áreas cujo prestígio é relativamente alto tendem a
arregim entar membros com muito talento. As áreas com prestígio
relativamente mais baixo podem ter um período muito difícil de
arregimentação de adeptos a seus interesses específicos. Realistica­
mente, um fator prim ordial, se não o fator mais importante, na
pesquisa científica de alto nível é o nível do estudante e da “ mão-
de-obra” científica que um a especialidade possa recrutar. O prestí­
gio tem um a forte influência para atrair estudantes e pode ser
intensa a competição quanto ao prestígio relativo, em virtude dessas
conseqüências.21 Isto está evidentemente relacionado ao papel cul­
tural e econômico da escola em identificar esses “ trabalhadores”
que podem contribuir para a maximização do conhecimento.
M inha intenção aqui não é denegrir (embora, como obser­
varam Rose e Rose em seus últimos trabalhos, a atividade científica
pode e precisa avançar também através de uma posição ideológica
progressista com partilhada)22 nem apresentar um a visão demoníaca
da pesquisa em todas suas ramificações. É, antes, a de adotar uma
visão mais realista dessa pesquisa e os usos do conflito entre seus
praticantes. O conflito aqui é bastante “ funcional” . Induz os cien­
tistas em cada área a procurar estabelecer uma área de competência
em seus temas que lhes pertença especificamente. As pressões “ com­
petitivas” às vezes também ajudam a assegurar que não sejam
menosprezadas as áreas de pesquisa menos populares. Ademais, o
forte elemento de competição na comunidade científica pode enco­
rajar seus membros a aceitar riscos, a ultrapassar seus competi­
dores, aum entando desse modo a possibilidade de novas excitantes
descobertas23 (embora também possa ter sido um fator para ignorar
as contribuições das mulheres na ciência, como dem onstra a dis­
cussão de Olby das contribuições menosprezadas de Rosalind
Franklin à descoberta da estrutura do DNA).24
O conflito também é intensificado pela própria estrutura
normativa da comunidade científica. De fato, ela pode ser um
agente de contribuição significativo tanto para o conflito quanto

(21) Hagstrom, op. cit. , p. 130 e 173.


(22) Hilary Rose e Steven Rose (orgs.). The Radicalization o f Science. Lon­
don, Macmillan, 1976.
(23) Hagstrom, op. cit. , p. 82-3.
(24) Ver Robert Olby. The Path to the Double Helix. Seattle, University of
Washington Press, 1974.
IDEOLOGIA E CURRlCULO 139

para a competição. Entre as muitas normas que orientam o compor­


tamento dos cientistas, talvez a mais im portante para nossa dis­
cussão aqui seja a do ceticismo lógico. Storer o define como segue:25

Essa norma é diretiva, incorporando o princípio de que cada cientista


deveria se manter individualmente responsável por garantir a vali­
dade da pesquisa anterior realizada por outros na qual ele se baseia.
Não pode ser desculpado por ter aceitado uma idéia falsa e depois
alegado inocência “porque o Dr. X disse-me que era verdade” . Mes­
mo se em particular não pudermos acusá-lo de intencionalmente ter
substituído a verdade pelo erro, ele deveria ter sido devidamente
cético quanto ao trabalho do Dr. X desde o começo. (...)
O cientista é obrigado também por essa norma a tomar públicas suas
críticas do trabalho de outros quando julga que caíram em erro. (...)
Segue-se que nenhuma contribuição de um cientista ao conhecimento
pode ser aceita sem exame acurado e atento, e o cientista deve
duvidar de suas descobertas tanto quanto das dos outros.

Não é difícil ver como a norm a do ceticismo lógico contribui


para as controvérsias nas comunidades científicas.
São abundantes outros exemplos de conflito. Talvez um dos
mais im portantes para o nosso tema seja a existência de subgrupos
“ rebeldes” nas comunidades científicas. As especialidades que se
revoltam contra os objetivos e/ou os meios de um a área de conhe­
cimento maior são muito comuns na tradição científica. Esses gru­
pos rebeldes de pesquisadores são alienados do corpo principal do
discurso científico corrente em suas áreas específicas e podem voar
faíscas por causa do debate entre os rebeldes e os tradicionalistas.
Aqui, em geral somadas a essa situação, mesmo os debates habi­
tuais que associamos à ciência — isto é, discussões entre grupos e
indivíduos quanto a questões essenciais como conhecimento veri­
ficado e que tais — misturam-se a discussões sobre metas políticas.
Até mais significativamente hoje, está-se tom ando muito comum (e
felizmente, no meu ponto de vista) a discussão inflam ada e a dissen­
são quanto à posição política que um a área de conhecimento deveria
adotar e quanto aos empregos sociais de seu conhecimento.26

(25) Storer, op. cit., p. 78-9.


(26) Hagstrom, op. cit., p. 193-4. Periódicos como Science for the People,
Marxist Perspectives, Radical Science e Dialectical Psychology fornecem exemplos
interessantes e importantes desse debate, politicamente vinculado.
140 MICHAEL W. APPLE

Por enquanto tenho documentado a dimensão im portante do


conflito em comunidades científicas. Tenho sustentado que o conhe­
cimento científico da forma como é transm itido nas escolas tem,
com efeito, estado desvinculado da estrutura da comunidade da
qual se desenvolveu e que atua para criticá-lo. Os estudantes são
“forçados” , em virtude da própria ausência de um quadro realista
da forma como as comunidades científicas partilham o poder e os
recursos econômicos, a interiorizar um a visão que possui pouca
força para questionar a legitimidade das suposições tácitas sobre
conflito interpessoal que dirigem suas vidas e suas próprias situações
educacionais, econômicas e políticas. Não apenas lhes é apresentada
um a visão de ciência claramente irrealista, mas, o que tem mais
im portância para a m inha proposição, não íhes é m ostrado como o
debate e o conflito intergrupal (e daí de classes) e interpessoal
críticos se deram em favor do progresso da ciência. Quando essa
situação é generalizada, num a perspectiva básica da relação que se
m antém com os paradigm as de atividade econômicos e políticos
num a sociedade, não é difícil ver como serve para reforçar o quie-
tismo dos estudantes, conduzi-los a “ canais adequados” para modi­
ficarem essas estruturas, ou ajudar a justificar esse program a insti­
tucional, fornecendo as regras fundamentais de pensamento que
fazem com que qualquer outra visão do conhecimento pareça
não natural.

O conflito na sociedade

A segunda área de ensino em que há debate sobre currículo


oculto e o ensino tácito de suposições constitutivas sobre o conflito, e
que escolhi para enfocar explicitamente, é a de Estudos Sociais.
Como em nossa discussão da ciência, ao aprofundar a investigação
nesta área, irei propor um a visão alternativa ou mais am pla do
conflito na sociedade. Quero também relacionar alguns dos em pre­
gos sociais do conflito intelectual e normativo, empregos que são
ignorados na maioria dos debates sobre currículo encontrados nas
escolas.
Um exame de boa parte da literatura em Estudos Sociais
sugere uma aceitação da sociedade como basicamente um sistema
de cooperação. Observações em classe, como as relatadas no Capí­
tulo 3, realizadas em um extenso período de tempo, revelam uma
perspectiva semelhante. A orientação origina-se em grande parte da
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 141

suposição ideológica (talvez necessariamente inconsciente) de que o


conflito, e especialmente o conflito social, não é um a característica
essencial do sistema de relações sociais a que chamamos socie­
dade.27 #
Muito freqüentemente, representa-se um a realidade social
que aceita tacitamente “ a harm onia social” como sendo a forma
normal de vida, se não a melhor. Agora deve ficar claro que a
veracidade da afirmação de que a sociedade é um sistema de coope­
ração (se ao menos todos cooperassem) não pode ser determ inada
empiricamente. Ê essencialmente um a orientação de valor que aju­
da a determ inar as questões formuladas ou as experiências educa­
cionais planejadas para os estudantes. E as experiências educa­
cionais parecem ressaltar o que é fundamentalmente uma visão
conservadora.
A visão encontrada nas escolas apóia-se fortemente no modo
como todos os elementos de um a sociedade, desde o funcionário dos
correios e o bombeiro, no nível mais simples, até as instituições
específicas em cursos de Educação Moral e Cívica no secundário,
estão ligados uns aos outros num a relação funcional, cada um
contribuindo para a contínua preservação da sociedade. A dissensão
e o conflito interno num a sociedade são encarados como natu­
ralmente antitéticos à harmonia da ordem social. Novamente o
consenso é um a característica m arcada. Essa orientação tam bém é
clara na ênfase implícita sobre os estudantes (e o “ homem” em
geral) antes como pessoas que transm item e recebem valores que
como pessoas que produzem valores na maioria de sua experiência
escolar.28
De há muito se observou o fato de que existe um a série de
formas paradigm áticas de percepção do mundo social. Contudo,
também é importante observar que cada um a delas estabelece uma
determ inada lógica de organização sobre a atividade social e cada
uma tem determinadas pressuposições valorativas subjacentes, em
geral notavelmente diferentes. As diferenças entre a perspectiva
durkheim iana e a perspectiva weberiana, mais subjetivista, cons­
tituem um exemplo. Embora menos elaborada do ponto de vista
econômico que alguns de seus mais recentes trabalhos, a última

(27) Ralf Dahrendorf. Essays in the Theory o f Society. London, Routledge &
Kegan Paul, 1968, p. 112.
(28) Gouldner, op. cit. , p. 193.
142 MICHAEL W. APPLE

análise feita por Gouldner de teorias sociais funcionais estruturais,


especialmente as de Parsons, oferece um exemplo mais comum. Seu
exame, que possui um a longa tradição intelectual na sociologia do
conhecimento, levanta questões intrigantes a respeito das conse-
qüências sociais e políticas do pensamento social contemporâneo —
de que boa parte dos fundamentos de suas suposições é determinada
pela existência individual e de classe do pensador; de que oferece
uma “ representação parcial, muito seletiva, da sociedade norte-
am ericana” , formada para “evitar tensões políticas” , e que visa à
noção de que a estabilidade política, digamos, “ seria alcançada se
os esforços pela m udança social prudentem ente deixassem de m udar
as formas estabelecidas de distribuição e justificação de poder” . 29
Em resumo, os fundamentos desse paradigm a social usado para
organizar e orientar nossas percepções são basicamente orientados
para a legitimação da ordem social vigente. Pelo próprio fato de que
procuram considerar esses temas como equilíbrio social e preser­
vação do sistema, por exemplo, existe uma forte tendência para o
consenso e um a negação da necessidade do conflito.30 Como a
tradição da sociabilização da pesquisa do currículo discutida no
Capítulo 2 (que provém do modelo funcional estrutural), esse p ara­
digma admite a existência dos valores sociais, um perfeito acordo
entre a consciência ideológica dos intelectuais e as exigências da
reprodução das categorias hegemônicas nas crianças.
Contrário ao tipo de raciocínio funcional estrutural, Gouldner
defende um “paradigm a” diferente, fundado na busca do indivíduo
de transformar-se a si mesmo e à sua atividade, e que não coloca a
sociedade existente como parâm etro, mas, sim, como a possibilidade
de um a m udança estrutural básica através de um compromisso
apaixonado do indivíduo e de um envolvimento social. A questão da
legitimação, então, passa a ser menos um processo de estudar como
se desenvolvem as tensões institucionais e como podem ser “ assen­
tadas” , e mais um esforço para vincular as instituições com seu
desenvolvimento histórico e com sua necessidade de transformação
de acordo com princípios explicitamente escolhidos com base na
retórica política, econômica e ética. A perspectiva quanto ao conflito
dessa últim a posição é muito diferente daquela da postura criticada
por Gouldner.

(29) Ibid., p. 48.


(30) Ibid., p. 210-18.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 143

Em sua análise das suposições do pensamento social parso-


niano, por exemplo, Gouldner documenta o lugar do debate moral e
do conflito de valores, que estão no centro das ciências hum anas e de
sua compreensão da sociedade. Então, ele alarga consideravel­
mente as fronteiras do conflito possível. Essa posição talvez seja
mais evidente em sua crítica ao status teórico que Parsons confere a
um processo de sociabilização que implicitamente define “ homem”
fundamentalmente como um receptáculo de valores.31 Censura as
teorias sociais funcionalistas por serem incapazes de lidar com
“ aqueles que se opõem às instituições da ordem social e que lutam
para m udar suas regras e exigências feitas à participação” . Gould­
ner opõe-se a essa visão enfocando os seres humanos como enga­
jados num processo dialético de recepção, produção e reprodução de
valores e instituições.32 A contínua reprodução de valores num a
sociedade é um processo difícil e em geral leva ao conflito entre os
defensores de modelos de avaliarão divergentes. É a esse tipo de
conflito, entre outros, que Gouldner procura dar um lugar.
Pela sua própria natureza, os paradigm as sociais estão m u­
dando continuamente, em geral “ dirigidos” pelo conflito de classe e
contradições sociais e econômicas. De fato, os últimos trabalhos de
Gouldner podem ser vistos como um reflexo e um a parte dessa
mudança. Entretanto, deixam atrás de si reificações deles próprios
encontradas nos currículos tanto da escola prim ária quanto do nível
secundário. Isto pode ser precisamente verdadeiro no caso dos mo­
delos de compreensão da vida social que hoje se encontram nas
escolas. Esses modelos guardam um a semelhança notável com as
posições ideológicas inicialmente articuladas pelos primeiros edu­
cadores e especialistas em currículo analisadas no capítulo anterior.
Talvez não exista melhor exemplo da ênfase no consenso, na
ordem e na ausência de qualquer conflito nos currículos de Estudos
Sociais do que o encontrado em um dos conjuntos mais populares de
materiais didáticos, o “ equipam ento” de economia dos Science
Research Associates, Our Working World. É projetado para ensinar
os conceitos básicos de economia controlada aos alunos da escola
prim ária. O curso de estudos para a prim eira série que leva o

(31) Ibid. , p. 206.


(32) Ibid. , p. 427. Veja-se também a discussão interessante, embora às vezes
não crítica, em Peter Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction o f Rea­
lity. New York, Doubleday, 1966.
144 MICHAEL W. APPLE

subtítulo de “ Famílias no T rabalho” é organizado em torno da


interação social cotidiana, aquilo com que as crianças estariam
familiarizadas. Afirmações como a seguinte perpassam os m ate­
riais:33

Quando seguimos as regras, somos recompensados; mas, se infrin­


gimos as regras, seremos punidos. Assim, meu caro, eis por que cada
um se interessa. Eis por que aprendemos costumes e regras, e por que
os seguimos. Porque, se o fizermos, seremos todos recompensados
com um mundo mais bonito e mais ordenado.

Essa atitude mostrada para com a criação de novos valores e


costumes e para com o valor colocado num mundo organizado, sem
conflitos, parece indicar um conjunto mais essencial de suposições
relativas ao consenso e à vida social. Quando se percebe que os
estudantes são esmágados com exemplos dessa espécie durante todo
o dia, exemplos em que é bastante difícil achar qualquer valor
atribuído à desordem de qualquer natureza significativa, é hora de
se p arar para pensar.
Mesmo a maioria dos currículos centrados em torno da pes­
quisa, embora sem dúvida férteis, mostram um desprezo extraor­
dinário pela eficácia do conflito e pela sua tradição longa e firme­
mente estabelecida nas relações sociais. Por exemplo, as suposições
básicas de que os conflitos devem ser “ solucionados” dentro dos
limites aceitos e de que não é desejável a contínua m udança na
estrutura e no entrelaçamento dos programas institucionais podem
ser vistas nos currículos de Ciências Sociais centrados nas áreas de
conhecimento relativamente sofisticadas que se desenvolvem atual­
mente. Um desses currículos foi lançado pelo Centro para o Estudo
do Ensino, em 1970. Declaradamente apresenta uma abordagem de
“esquemas conceituais” que fundam enta um a hierarquia de gene­
ralizações que, idealmente, devem ser interiorizadas pelos estu­
dantes através de sua participação ativa no desempenho de papéis e
na pesquisa. Esses níveis de generalizações oscilam desde os muito
simples até os razoavelmente complexos e são classificados sob um a
vasta generalização “ descritiva” ou “esquema cognitivo” . Por exem­
plo, classificadas sob a generalização “A organização política (o

(33) Lawrence Senesh. “Recorded Lessons” . Our Working World: Families


at Work. Lawrence Senesh (org.). Chicago, Science Research Associates, 1964.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 145

governo) soluciona os conflitos e facilita as interações entre as pes­


soas” , vêm as seguintes subgeneralizações, relacionadas em com­
plexidade crescente:34

1. O comportamento dos indivíduos é governado pelas regras


comumente aceitas.
2. Os membros dos grupos familiares são governados por
regras e leis.
3. Os grupos comunitários são governados por meio de lide­
rança e autoridade.
4. A interação pacífica do homem depende dos controles
sociais.
5. O modelo de governo depende do controle pela partici­
pação no sistema político.
6. A organização política estável desenvolve a qualidade de
vida com partilhada por seus cidadãos.

Associados a essas generalizações “ descritivas” , a que os estu­


dantes devem ser conduzidos, estão os “enunciados apoiativos” , tais
como “ As regras ajudam a m anter a ordem” e “As regras ajudam a
proteger a saúde e a segurança” .35 Poucos irão se indispor com essas
afirmações. Afinal, as regras de fato ajudam. Mas, como as supo­
sições que prevalecem nos enunciados econômicos, as crianças se
defrontam mais um a vez com um a ênfase tácita num conjunto
estável de estruturas e na m anutenção da ordem.
O que é intrigante é a falta quase absoluta de consideração ou
até de referência ao conflito como um a área focal ou um a categoria
de pensamento nos currículos de Estudos Sociais mais comuns ou na
maioria das salas de aula observadas. Dos materiais mais populares,
apenas õs desenvolvidos sob a égide dos últimos trabalhos de Hilda
T aba referem-se a ele como um conceito-chave. No entanto, embora
o currículo de Estudos Sociais de T aba enfoque declaradamente o
conflito, e embora esse enfoque seja em si mesmo um bom sinal, sua
orientação é para as conseqüências sérias do conflito em vez de para
muitos aspectos construtivos tam bém associados ao próprio conflito.

(34) Center for the Study of Instruction. Principles and Practices in the
Teaching o f the Social Sciences: Teacher’s Edition. New York, Harcourt, Brace &
World, 1970, p. T-17. É questionável se muitos negros ou latinos nos guetos dos
Estados Unidos dariam apoio incondicional a essa “descrição”.
(35) Ibid., p. T-26.
146 MICHAEL W. APPLE

Mais um a vez o conflito é visto como “ disfuncional” , mesmo quan­


do representado como sempre presente.36
Como observado anteriorm ente, em grande parte, a socie­
dade, da forma como existe, tanto em seus aspectos positivos quanto
negativos, se m antém unida por regras do senso comum implícitas e
por paradigm as do pensamento, pela hegemonia assim como pelo
poder manifesto. Os materiais de Estudos Sociais como esse (e há
muitos outros a que não me referi) podem contribuir para o ensino
de reforço de algumas suposições básicas dominantes e, portanto,
um a estrutura de crença pró-consenso e antidissensão.
Essa visão está sendo contrariada de algum modo por uma
parte do conteúdo que agora se ensina sob a m arca de Estudos do
Negro e da Mulher. Aqui, a luta e o conflito quanto a um a base
comum são em geral explícita e verdadeiramente enfocados. 37
Em bora muitos especialistas em currículo possam achar essa adoção
manifesta de metas comunitárias um tanto antitética a suas próprias
inclinações, deve-se reconhecer o fato de que tem havido um a tenta­
tiva de apresentar um a perspectiva relativamente realista quanto à
história significativa e aos usos do conflito no progresso de classes e
grupos sociais, através, por exemplo, dos direitos civis e dos movi­
mentos pelo poder negro. Mesmo aqueles que não aprovariam ou
aprovariam apenas um a visão segura ou conservadora dessa m até­
ria, deveriam perceber a força e o verdadeiro valor de um a perspec­
tiva de se desenvolver um a consciência de grupo e um a coesão até
então impossíveis. Voltarei a essa questão na minha discussão geral
dos usos do conflito em grupos sociais.
Dizer, no entanto, que a maioria dos currículos de Estudos
do Negro apresenta essa mesma perspectiva estaria longe de ser
exato. Também se poderia apontar para a expansão agora manifesta
do material histórico sobre o negro em que figuram aqueles negros
que se mantiveram dentro dos limites considerados legítimos (regras
constitutivas) de protesto ou que progrediram nos campos aceitos da
economia, atletismo, educação ou arte. Em geral, não se encontra
referência a Malcom X, a Marcus Garvey ou a outros que formu-

(36) Maxine Durkin el al. The Taba Social Studies Curriculum: Communities
Around Us. Reading, Mass., Addison-Wesley, 1969, p. v.
(37) Nathan Hare. ‘‘The Teaching of Black History and Culture in the Secon­
dary Schools” . Social Education, XXXIII (April 1969), 385-8; e Preston Wilcox.
“Education for Black Liberation” . New Generation, LI (Winter 1969), 20-1.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 147

laram um a crítica forte aos modos vigentes de controle e atividade


econômicos e culturais. No entanto, é a solidez da apresentação
tácita da perspectiva do consenso que deve ser posta em destaque,
assim como sua ocorrência nas duas áreas examinadas neste capí­
tulo.
Não basta, no entanto, para nossos objetivos, “ m eram ente”
esclarecer como o currículo oculto obriga os estudantes a expe-
rienciar algumas discussões com regras básicas. É essencial que se
coloque um a visão alternativa e que sejam documentados os usos do
conflito social a que venho me referindo.
É possível combater a orientação do consenso com um con­
junto de suposições um pouco menos ligadas a ele, suposições que se
mostrem tão empiricamente comprovadas, se não mais, quanto
aquelas contra as quais levantei objeções. Por exemplo, alguns
teóricos sociais tom aram a posição de que “ a sociedade não é
basicamente um ordem em funcionamento harmonioso como um
organismo social, um sistema social ou um a estrutura social está­
tica” . Pelo contrário, são características dominantes a mudança
contínua nos elementos e a forma estrutural básica da sociedade. Os
conflitos são os produtos sistemáticos da estrutura em m udança de
um a sociedade e pela sua própria natureza tendem a levar ao
progresso. A “ordem” da sociedade, portanto, passa a ser a regula­
ridade da mudança. A “ realidade” da sociedade é conflito e fluxo,
não um “sistema funcional fechado” . 38 Tem-se afirmado que a
contribuição mais significativa para a compreensão da sociedade
feita por Marx foi perceber que uma fonte importante de m udança e
inovação é o conflito interno.39 Fundam entalm ente, portanto, cs
conflitos devem ser encarados como um a dimensão básica e em geral
benéfica da dialética de atividade a que se denomina sociedade.
Um exame de posições dentro dessa orientação geral e a ela
estreitamente ligadas pode ajudar a esclarecer a im portância do
conflito. Uma das perspectivas mais interessantes aponta para sua

(38) Ralf Dahrendorf. Class and Class Conflict in Industrial Societies. Stan­
ford, Stanford University Press, 1969, p. 57. Quanto a estudos concretos de conflito
tanto intra quanto interclasses em sociedades industrials, ver R. W. Connell. Ruling
Class, Ruling Culture. Cambridge University Press, 1977; e Nicos Poulantzas. Classes
in Contemporary Capitalism. London, New Left Books, 1975.
(39) Jack Walker. “ A Critique of the Elitist Theory of Democracy” . Apolitical
Politics. Charles A. McCoy e John Playford (orgs.). New York, Crowell, 1967,
p. 217-18.
148 MICHAEL W. APPLE

utilidade em impedir a reificação das instituições sociais vigentes,


pressionando indivíduos e grupos para que sejam inovadores e cria­
tivos ao realizarem mudanças nas atividades institucionais. Coser
expressa isso bem :40

O conflito intra e intergrupal numa sociedade pode impedir que as


acomodações e as relações habituais empobreçam progressivamente a
criatividade.
O entrechoque de valores e interesses, a tensão entre o que é e o que
alguns sentem que deveria ser, o conflito entre o capital investido e os
novos estratos e grupos exigindo sua fração de poder, têm produzido
vitalidade.

É-se energicamente levado a encontrar alguma coisa próxima


dessa orientação na maioria dos materiais e do ensino apresentados
nas escolas. As regras básicas de atividade que governam nossa
percepção tendem a levar-nos a representar o conflito como ini­
cialmente um a qualidade negativa num a comunidade. No entanto,
a “cooperação harmoniosa” e o conflito são os dois lados da moeda
social, nenhum dos quais é totalmente positivo ou negativo. Em bora
de fato Coser aqui se refira a um a perspectiva um tanto funciona-
lista, essa visão é, ainda assim, eficazmente colocada por ele num de
seus primeiros tratamentos desse tem a.41

Nenhum grupo pode ser inteiramente harmonioso, pois desse modo


seria desprovido de processo e estrutura. Os grupos exigem desarmo­
nia, tanto quanto harmonia, dissociação assim como associação; e os
conflitos dentro deles não são de modo algum fatores de ruptura. A
formação do grupo é consequência de ambos os tipos de processos.
A crença de que um processo destrói o que o outro construiu, de
modo que o que permanece no fim é o resultado da subtração um do
outro, baseia-se numa concepção errônea. Pelo contrário, tanto os
fatores “positivos” quanto os “negativos” formam relações de grupo.
Longe de ser necessariamente disfuncional, um certo grau de conflito
é um elemento essencial à formação do grupo e à persistência da vida
em grupo.

(40) Citado em Dahrendorf. Class and Class Conflict, op. cit.


(41) Lewis Coser. The Functions o f Social Conflict. Chicago, Free Press,
1956, p. 31.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 149

A regra básica de atividade que constitui o valor negativo


inconsciente associado ao conflito tende a levar ao planejamento de
experiências que se centrem na dimensão de conflito de “infração de
lei ou regra” , embora deveria ficar claro que o conflito conduz não
apenas à infração da lei mas é, com efeito, tam bém criação da lei.42
Realiza a tarefa notável de apontar para áreas que carecem de
correção. Além do mais, torna conscientes as regras mais básicas
que governam a atividade sobre a qual há conflito, mas que estavam
ocultas. Ou seja, desempenha a função singular de possibilitar aos
indivíduos que vejam os imperativos ocultos engastados nas situa­
ções que atuam para estruturar suas ações, libertando parcialm ente
os indivíduos p ara que criem padrões de ações relevantes a um grau
que em geral não é possível. Essas propriedades de criação de leis e
de ampliação da consciência, m antidas pelas situações de conflito,
apresentam, conjugadas, um efeito muito positivo. Desde que o
conflito acarreta inerentemente novas situações que em alto grau são
indefinidas pelas suposições anteriores, atua como um estímulo para
o estabelecimento de normas de atividade novas e possivelmente
mais flexíveis ou circunstancialmente pertinentes. Obrigando lite­
ralmente a atenção consciente, as questões são definidas e novas
dimensões podem ser exploradas e esclarecidas.43
A documentação dos efeitos positivos do conflito não chegaria
nem mesmo a ser adequada se se deixasse de mencionar um uso
importante, especialmente tendo-se em vista meu próprio compro­
misso em tornar a educação, em particular, mais sensível às neces­
sidades das comunidades e das classes a que serve. Refiro-me aqui à
importância do conflito em criar e legitimar um experiência cons­
ciente e especificamente de classe, étnica e sexual. Agora é bem
conhecido que um a das primeiras formas pelas quais os grupos se
definem é percebendo-se em luta com outros grupos e que essa luta
aum enta a participação dos membros nas atividades do grupo e os
torna mais conscientes dos laços que os unem .44 Não é de pouca

(42) Ibid. , p. 126. Talvez o melhor exemplo de material sobre a dimensão da


infração da lei alcançada pelo conflito seja um curso de primeiro grau, "Respeito
pelas Regras e pela Lei” (New York State Bureau of Elementary Curriculum Deve­
lopment, 1969). Um conjunto de materiais curriculares dá alguns passos interessan­
tes e úteis em permitir uma apreciação mais honesta do conflito. Ver Donald Oliver e
Fred Newmann (orgs.). Harvard Social Studies Project: Public Issues Series. Colum­
bus, Ohio, American Educational Publications, 1968.
(43) Ibid. , p. 124-5.
(44) Ibid. , p. 90.
150 MICHAEL W. APPLE

importância o fato de que a comunidade dos negros e de outras


etnias e a das mulheres tenham, a um grau significativo, se definido
ao longo dessas linhas “intragrupo e extragrupo” , um a vez que
possibilitam maior coesão entre os diversos elementos em suas res­
pectivas comunidades. Valendo-se de “sentimentos básicos” como
os de classe, raça e sexo, cria-se uma estrutura de significado
comum que torna plausível a existência contínua e singularizada de
um indivíduo e de um grupo.45 Da mesma forma como o conflito
parece ser o meio básico para o estabelecimento de autonomia
individual e para a diferenciação plena da personalidade do mundo
exterior,46 é também efetivo para a plena diferenciação da auto­
nomia comunitária. Fundam entalm ente, pode criar um a “pressão
para a articulação de suposições que distinguem aquele grupo, para
reforçar a solidariedade e a concórdia entre seus membros” , fator
que, como vimos no Capítulo 1, é um elemento im portante num a
ideologia forte.
Venho propondo um a visão alternativa da presença e dos usos
do conflito em grupos sociais. É provável que seja usada como um
fundamento mais objetivo para planejar currículos e orientar o
ensino de modo que o currículo oculto mais estático que os alunos
encontrem possa ser contrabalançado até um certo ponto. O enfo­
que explícito no conflito como um a categoria Íegítima de concei-
tuação e como uma dimensão válida e essencial da vida coletiva
possibilitaria o desenvolvimento pelos estudantes de um a perspec­
tiva política e intelectual mais viável e forte, a partir da qual perce­
bessem sua relação com as instituições econômicas e políticas exis­
tentes. No mínimo, um a tal perspectiva pode lhes fornecer um a

(45) Peter Berger. The Sacred Canopy. New York, Doubleday, 1967, p. 24-
e Clifford Geertz. “The Integrative Revolution: Primordial Sentiments and Civil
Politics in the New States” . Old Societies and New States. Clifford Geertz (org.). New
York, Free Press, 1963, p. 118.
A literatura sobre a história das lutas das mulheres para conseguir essa auto­
nomia está, reconhecidamente, tornando-se muito mais ampla. Algumas das contri­
buições recentes mais interessantes à história desse conflito podem-se ver em Gerda
Lerner, The Female Experience: An American Documentary. Indianápolis, Bobbs-
Merrill, 1977; Nancy F. Cott. The Bonds o f Womanhood. New Haven, Yale, 1977;
Linda Gordon, Woman's Body, Woman's Right. New York, Grossman, 1976; e Mary
P. Ryan. Womanhood in America. New York, New Viewpoints, 1975.
(46) Coser, op. cit., p. 33. Esta talvez seja uma das intuições mais frutífera
de Piaget.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 151

compreensão melhor das suposições ideológicas tacitas que atuam


para estruturar sua própria atividade.

Considerações programáticas com relação ao currículo

Existem várias sugestões para a estruturação do currículo que


poderiam pelo menos parcialmente servir para contrabalançar o
currículo oculto e a tradição seletiva mais evidentes em Ciências e em
Estudos Sociais como representativas do corpus formal do conheci-.
mento escolar. Em bora sejam por sua própria natureza ainda expe­
rimentais e apenas parciais, podem se mostrar muito importantes.
É essencial um a apresentação mais equilibrada de alguns dos
valores de ciências adotados, especialmente daqueles que se rela­
cionem ao ceticismo lógico. É preciso que se reconheça e enfoque a
importância histórica para as comunidades científicas da visão cé­
tica predominante.
Pode-se ver a história da ciência como um a dialética contínua
de controvérsia e conflito entre defensores dos programas e paradig­
mas de pesquisa conflitantes, entre as respostas aceitas e os desafios
a essas “verdades” . Como tal, a própria ciência poderia ser apre­
sentada com um a orientação histórica maior, documentando as
revoluções conceituais necessárias aos rompimentos significativos
por ocorrer.
Em lugar de aderir a um a visão da ciência como verdade,
a apresentação equilibrada da ciência como verdade-até-a-próxima-
informação, como um processo de m udança constante, poderia
impedir a cristalização de atitude. Nessa associação, tam bém , o
estudo de como procedem as revoluções conceituais na ciência con­
tribuiria para um a perspectiva contrária ao consenso como o único
modo de progresso.
A isto pode-se acrescentar um enfoque nos usos e dilemas
morais da ciência. Por exemplo, seria de fato útil individualizar a
história da ciência através de casos como os de Oppenheimer, Wat-
son e, intrigantemente, da controvérsia em torno do caso Veli-
kovsky.47 Quando consideradas em conjunto com um a análise séria,
digamos, do papel das mulheres na ciência e na medicina, essas
sugestões ajudariam a eliminar as pré-noções existentes nos currí­

(47) Mulkay, op. cit.


152 MICHAEL W. APPLE

culos atuais por meio da introdução da idéia de controvérsia e


conflito pessoal e interpessoal.48
Podem-se fazer diversas sugestões para a área de Estudos
Sociais. O estudo comparativo da revolução, digamos, norte-ameri­
cana, francesa, russa, portuguesa e chinesa serviria para enfocar as
propriedades da condição hum ana que causam o conflito interpes­
soal e são por ele aperfeiçoadas. Essa sugestão torna-se mais apro­
priada quando associada ao fato de que em muitos países a revo­
lução é o modo de procedimento legítimo (no verdadeiro sentido do
termo) para se corrigir injustiças. A isso poder-se-iam acrescentar os
estudos do imperialismo econômico e cultural.49
Uma avaliação mais realista dos usos do conflito nos movi­
mentos pelos direitos legais e econômicos de negros, índios, m u­
lheres, operários e de outros grupos sem dúvida tomaria parte na
formação de uma perspectiva dessas atividades e de outras seme­
lhantes como modelos legítimos de ação. O fato de que as leis
tiveram de ser infringidas e de que foram posteriormente anuladas
pelas cortes de justiça geralmente não encontram enfoque nos currí­
culos de Estudos Sociais. No entanto, foi através desses tipos de
atividade que boa parte do progresso se fez e se faz. Aqui, os estudos
comunitários e de movimentos sociais da forma como têm se efe­
tuado mudanças constitui um processo interessante, processo que
deveria se mostrar como de importância considerável. Isto sugere
quão decisivo é que a história da classe operária, por exemplo, seja
ensinada nas escolas. Quase sempre minimizamos a história das
lutas concretas em que os operários tiveram de se em penhar e os
sacrifícios a que se submeteram. Ao mesmo tempo, os estudantes
podem ser levados a fundar suas próprias experiências familiares e
pessoais também na história de classe e de grupo étnico. Há extensas
bibliografias sobre temas como os da história da classe operária, as

(48) Ver, por exemplo, Mary Roth Walsh. Doctor Wanted. No Women Need
Apply. New Haven, Yale, 1977; Edward T. James, Janet Wilson James e Paul S.
Boyer. Notable American Women 1607-1950. Cambridge, Mass., Belhnap Press,
1971; e H. J. Mozans. Woman in Science. Cambridge, Mass., Massachusetts Ins­
titute of Technology, 1974.
(49) Ver, por exemplo, Ariel Dorfman e Armand Mattelart. How to Read
Donald Duck. New York, International General, 1975; e Martin Carnoy. Education
as Cultural Imperialism. New York, David McKay, 1974. Um dos mais interessantes
livros para crianças que trata de algumas dessas questões é Pal Rydlberg et al. The
History Book. Culver City, Califórnia, Peace Press, 1974.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 153

lutas das mulheres, dos negros e de outros grupos, para nos auxiliar
no combate à tradição seletiva.50
Além dessas sugestões para mudanças curriculares específi­
cas, deveria ser observada um a outra área. Os “ paradigm as” socio­
lógicos também procuram dar a razão da realidade do senso comum
em que estudantes e professores se baseiam. As escolas são inte­
gralmente envolvidas nesta realidade e na sua interiorização. Po­
deria ser sensato levar em consideração em penhar os estudantes na
articulação e no desenvolvimento dos paradigmas de atividade na
sua vida cotidiana nas escolas. Um tal envolvimento poderia possi­
bilitar aos estudantes enfrentar e ampliar os discernimentos deci­
sivos de seu próprio condicionamento e liberdade. Esses discerni­
mentos poderiam virtualmente alterar o paradigma original e a
própria realidade do senso comum. Também se tornaria possível a
um grau maior um debate educacional concreto e significativo dos
estudantes com o processo de reprodução de valor e institucional.
Os currículos de ação social e as lutas pelos direitos estudantis,
embora limitados em sua própria aplicabilidade, em virtude do sério
risco de “ incorporação” , poderiam ser bastante proveitosos aqui por
dar aos estudantes um sentido de sua própria competência possível
de desafiar as condições hegemônicas em algumas áreas.51

Conclusões

A pesquisa sobre a sociabilização política das crianças parece


sugerir a importância do presidente e da polícia como elementos de
contato entre as crianças e as estruturas de autoridade e legitimi­
dade numa sociedade.52 Por exemplo, existe um laço inicial forte-

(50) Entre as bibliografias disponíveis, encontra-se Women in U.S. History:


An Annotated Bibliography. Cambridge, Mass., Common Women Collective, 1976;e
Jim O'Brien et al. A Guide to Working Class History. 2. ed. Somerville, Mass., New
England Free Press, s/d.
(51) As propostas para o currículo de ação social feitas por Fred Newmann
são de interesse aqui. Veja-se sua Education for Citizen Action. Berkeley, McCut-
chan, 1975. Para uma discussão de alguns dos problemas relacionados a essas pro­
postas, ver Michael W. Apple. "Humanism and the Politics of Educational Argu­
mentation” . Humanistic Education: Visions and Realities. Richard Weller (org.).
Berkeley, McCutchan, 1977, p. 315-30.
(52) David Easton"e Jack Dennis. Children in the Political System. New York,
McGraw-Hill, 1969, p. 162.
154 MICHAEL W. APPLE

mente pessoal entre a criança e esses representantes das estruturas


de autoridade. À medida que a criança amadurece, esses vínculos
muito pessoais são transferidos para instituições mais anônimas,
como o Congresso, ou p ara atividades políticas, como o voto. A
tendência para supervalorizar instituições impessoais pode ser uma
fonte muito importante da relativa estabilidade e durabilidade das
estruturas de autoridade nas sociedades industriais.53
No entanto, não é bastante seguro que essa formulação real­
mente responda às questões que se poderia formular com relação à
estabilidade política e social. A base das tendências e relações
políticas (concebidas de modo amplo) para com as estruturas polí­
ticas e sociais está num sistema de crenças que se m antém ele
próprio sobre padrões básicos de suposições “ determinados” pela
atividade social e econômica. Essas regras para a atividade (e jul­
gadas como um a forma fundamental dessa atividade) provavelmente
são mais importantes para a relação de alguém com sua vida e seu
m undo do que podemos perceber. Vimos examinando um a dessas
suposições ideológicas constitutivas.
É meu ponto de vista que as escolas distorcem sistematica­
mente as funções do conflito social em coletividades. As manifes­
tações sociais, intelectuais e políticas dessa distorção são múltiplas.
Elas podem contribuir significativamente para as bases ideológicas
que servem para orientar fundamentalmente os indivíduos em di­
reção de um a sociedade classista.
Os estudantes na maioria das escolas, e nos centros urbanos
em particular, recebem um a visão que serve para legitimar a ordem
social vigente, de vez que despreza sistematicamente a mudança,
o conflito, e os homens e as mulheres como criadores assim como
portadores de valores e instituições. Apontei para a solidez da
apresentação. Agora, novamente é preciso ressaltar um outro as­
pecto — o fato de que essas estruturas de significado são obriga­
tórias. Os estudantes as recebem de pessoas que são “ im portantes”
em sua vida, através de seus professores, outros modelos de papéis
sociais em livros e demais meios. Para m udar essa situação, devem
ser modificadas radicalmente as percepções dos estudantes de quem
devem considerar como os detentores do “ conhecimento especiali­
zado” . Em áreas de gueto, um a resposta parcial é, talvez, instituir
uma perspectiva mais radical nas escolas. Essa m udança pode ser

(53) Ibid. , p. 271-6.


IDEOLOGIA E CURRÍCULO 155

executada apenas pela atividade política. Como se mencionou antes,


pode ser muito provável que desvincular a existência educacional de
um educador de sua existência política seja esquecer que, enquanto
ato de influenciar, a educação também é inerentemente um ato polí­
tico. Ainda com essa sensibilidade política, deve também vir um a me­
dida justa de compreensão econômica e cultural que diga respeito ao
poder desses significados ideológicos, que os situe nos processos
sociais concretos quedos provocaram.
Portanto, não é de surpreender a existência dessas pré-noções,
tendo-se em vista o debate acerca da “lógica interna” de um a
determinada forma econômica e ideológica. A tradição seletiva que
analisei neste capítulo é uma conseqüência “ natural” das relações
entre nossas instituições culturais e econômicas. Quando um a socie­
dade “exige” , tanto a nível econômico quanto cultural, a maximi­
zação (não a distribuição) da produção de conhecimento técnico,
então a ciência que se ensina estará desvinculada das práticas hum a­
nas concretas que a mantêm. Quando um sociedade “ exige” , a um
nível econômico, a “produção” de agentes que tenham interiorizado
normas que enfatizem o empenho em trabalho em geral sem sentido
a nível pessoal, a aceitação de nossas instituições políticas e econô­
micas básicas como estáveis e dadivosas, uma estrutura de crenças
que se funde no consenso e uma lógica positivista e técnica, então
deve-se esperar que os currículos formal e informal, o capital cul­
tural, nas escolas, irão se tornar aspectos da hegemonia. A lógica
interna dessas tensões e dessas expectativas determ inará os limites,
as regras constitutivas, que irão se tornar nosso senso comum.
Qualquer outra resposta parecerá desnaturai, que é exatamente a
idéia m antida por Williams e Gramsci.
O ensino manifesto e oculto dessas visões da ciência e da vida
social combinam-se e justificam a prim eira sociabilização. Ambos
dificultam muito a consciência da saturação ideológica que se rea­
liza. Pois, se os “ fatos” do mundo baseiam-se mesmo em nossas
teorias deles, então o mundo que as pessoas vêem, os significados
econômicos e culturais que elas lhe atribuem, serão definidos de
modo a se autojustificarem. Atribuem-se os significados à forma
como o mundo “ realmente é” , e também se legitimam os interesses
econômicos e culturais que determinam por que é dessa forma. A
função ideológica é circular. Conhecimento e poder mais um a vez se
acham íntim a e sutilmente ligados através dos fundamentos de
nosso senso comum, através da hegemonia.
Uma das primeiras tarefas deste capítulo foi apresentar óticas
156 MICHAEL W. APPLE

que sejam alternativas àquelas que normalmente legitimam muitas


das atividades e debates que os especialistas em currículo planejam
para os estudantes. Ficará mais claro, à medida que este livro
avançar, que a própria área do currículo limitou suas formas de
consciência de modo que as suposições políticas e ideológicas que
cingem grande parte de seus padrões normais de atividade são tão
ocultas quanto aquelas encontradas pelos estudantes nas escolas.54
Apontei para as possibilidades inerentes a um a abordagem mais
realista da natureza do conflito como um a “ forma de consciência”
alternativa. Ainda quando já se tenha dito tudo, é ainda possível
levantar a questão de serem essas investigações teóricas heurística,
política e program aticam ente úteis.
Uma das dificuldades em procurar desenvolver novas perspec­
tivas é a distinção evidente e freqüentemente lem brada entre a teoria
e a prática, ou, para colocar na linguagem do senso comum, entre
“apenas” entender o mundo e mudá-lo. Essa discussão está arrai­
gada em nossa própria linguagem. É fundamental lem brar que,
embora Marx sentisse que a missão fundamental da filosofia e da
teoria não fosse apenas “compreender a realidade” , mas m udá-la, é
também verdade que, de acordo com Marx, o revolucionar o mundo
tem em suas bases um compreensão adequada dele. (Afinal, Marx
gastou boa parte de sua vida escrevendo Das Kapital, enquanto
também se engajou na ação política e econômica que serviram para
esclarecer a perfeição daquela compreensão. A ação e a reflexão
imergiram n ap rax is.)55
O risco significativo não é que a “ teoria” não ofereça modo
algum de criticar e m udar a realidade, mas que pode levar a um
quietismo ou a um a perspectiva que, como Hamlet, precisa de um
contínuo solilóquio sobre a complexidade de tudo, enquanto o m un­
do desmorona ao nosso redor. Seria importante observar que um a
comprensão da realidade existente não somente é um a condição
necessária para mudá-la, mas é um grande passo para realmente
efetuar uma reconstrução ética, estética e economicamente ade­
quada.56 No entanto, junto a essa compreensão do contorno social
em que operam os especialistas em currículo, deve haver também

(54) Dwayne Huebner. “Politics and the Curriculum” . Curriculum Cross­


roads. A. Harry Passow (org.). New York, Teachers College Press, 1962, p. 88.
(55) Shlomo Avineri. The Social and Political Thought o f Karl Marx. New
York, Cambridge University Press, 1968, p. 137.
(56) Ibid. , p. 148.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 157

uma tentativa constante para trazer a um nível consciente e agir


contra aquelas suposições epistemológicas e ideológicas ocultas que
ajudam a estruturar as decisões que tomam, os contornos que
projetam e as tradições que selecionam. Essas suposições funda­
mentais podem exercer um impacto significativo sobre o currículo
oculto que os estudantes tacitam ente experienciam e que ajuda a
reproduzir a hegemonia.
Sem um a análise e uma compreensão mais ampla dessas supo­
sições latentes, os educadores correm o risco muito real de continuar
a permitir que os valores ideológicos operem através deles. Uma
defesa consciente de um a visão e ensino mais realistas da dialética
da m udança social contribuiria sem dúvida para preparar os estu­
dantes com os instrumentos políticos e conceituais necessários para
lidar com a densa realidade que eles devem enfrentar. Mas podemos
conseguir o mesmo para os especialistas em currículo e outros
educadores? Podemos iluminar os instrumentos políticos e concei­
tuais necessários para enfrentar a sociedade classista em que eles
também vivem? A forma mais proveitosa de se começar essa tarefa é
documentar o que fazem agora seus instrumentos conceituais e
políticos. M antêm novamente um falso consenso? Como atuam
como aspectos da hegemonia? Quais são suas funções ideológicas
latentes? Com um a abordagem mais sólida da forma como as esco­
las ajudam na criação da hegemonia através da “sociabilização” dos
estudantes, é para esta tarefa — como opera a hegemonia na mente
dos educadores — que agora deveremos nos voltar.
6
Modelo sistêmico de administração
e a ideologia do controle

No Capítulo 4, vimos como, historicamente, a “ciência” fór­


um • o ti |u\tificação retórica que ocultou o fato de que os funda-
...... Im. *lo currículo baseavam-se cada vez mais em pressuposições
lilfoli'uilcns líssc processo não se encerrou, quer na forma como
mIhuiiooi visões da ciência e da vida social são selecionadas como o
im iln . Iim nio mais legítimo no currículo manifesto das escolas,
......... no. Iunções ideológicas da ciência como justificação para a
i . >|oImi c o processo decisório conservadores. Portanto, teremos de
lo*, sllgiir como funciona ideologicamente no presente a visão da
atlin ui, .lo enquanto ciência. Pois, da mesma forma como se m antém
Nlo g. munia nas escolas através do ensino tácito, tam bém um a visão
.o ilie o .las instituições e um a visão excessivamente técnica e posi-
II i la .la ciência tornaram-se um aspecto de um a cultura efetiva e
.1.... ...mie, graças à ação legitimadora dos “intelectuais” que a
(a. parecer um conjunto de categorias neutras que dá signifi-
. ml.>, .Ir modo que podemos agir adequadam ente para ajudar as
. i lanças.
leremos de formular diversas questões acerca da saturação
1.1. i.lógli a da consciência dos educadores, da mesma forma como
|o igoiilamos como a vida dos estudantes na caixa negra contribuiu
p.u .i I. i. produção econômica e cultural. Qual é o papel latente da
Mali iiluiii lingüística e lógica das perspectivas técnicas, de eficiência
> . le o li ficas" no currículo e na educação em geral? Como essas
. .o. (ji.iiiis c formas de consciência servem de mecanismos articu-
160 MICHAEL W. APPLE

ladores de interesses sociais e econômicos, quando são claramente


orientadas pelo ímpeto liberal de ajudar? Quem é “ ajudado” por
esses interesses? O indivíduo concreto ou o abstrato?
Os exemplares correntes dessas abordagens, aqueles que se
inserem na longa tradição de trabalho “ científico” com currículo
baseado nos modelos de desempenho e de sociabilização, são os
modelos sistêmicos de administração e objetivos “ comportamen-
tais” , avaliação educacional técnica e positivistamente orientada,
feita pelos “especialistas” , e terminologia e pesquisa clínicas. Cada
um desses abriu seu próprio caminho até a base da mente dos
educadores. Os dois capítulos seguintes dirigirão nosso enfoque
para essas áreas. A análise principiará com um a das tecnologias em
maior ascensão no arsenal retórico da educação, a dos modelos
sistêmicos de administração. A “ciência” desempenhará um papel
importante, fornecendo os “princípios fundamentalmente corretos”
quanto aos quais deve haver consenso. Desta vez, porém, o consenso
ideológico estará menos na mente dos estudantes e mais na dos
intelectuais, como os educadores. Em virtude de sua própria natu­
reza, esse conjunto de “princípios” ideológicos exerce um impacto
significativo sobre as perspectivas fundamentais que os próprios
educadores empregam para organizar, orientar e dar significado à
sua atividade, sobre os princípios utilizados para organizar e estru­
turar o conhecimento e os símbolos que as escolas selecionam e
distribuem. Pois incluem o filtro através do qual o conhecimento e
os símbolos são escolhidos e organizados. E, como em nossas dis­
cussões anteriores, eles parecem se autojustificar. Tornaram-se
parte de nosso senso comum.

Quanto à situação do campo específico

Há alguns anos, um conhecido especialista em currículo co­


meçou suas propostas em favor de objetivos “com portam entais” —
um dos princípios básicos e precursores dos “ modelos sistêmicos de
administração” em educação — com algumas observações bastante
interessantes. Ainda que apontasse para a necessidade de discussão
para se examinar os respectivos valores de diferentes posições quan­
to ao assunto controverso de se planejar atividades educacionais em
termos de “comportamentos mensuráveis do aluno” , ele fez algu­
mas observações que são muito pertinentes à análise deste Capítulo
IDEOLOGIA E CURRlCULO 161

do lugar ideológico da “ciência” no currículo. Com a permissão do


leitor, gostaria de citar essas observações.1

Nos últimos anos desenvolveu-se um debate muito intenso na área do


currículo e do ensino com relação aos méritos de se fixar os objetivos
educacionais em termos de comportamentos mensuráveis do aluno.
Como estou completamente compromissado, tanto racional quanto
emocionalmente, com a proposição de que os objetivos educacionais
deveriam ser determinados com relação ao comportamento, vejo esse
debate com uma certa ambivalência. Por um lado, provavelmente é
agradável manter-se uma discussão desse tipo entre especialistas em
nossa área. Passamos a nos conhecer melhor — entre um e outro
ataque. Verificamos os valores respectivos de posições contrárias.
Podemos auspiciosamente realizar simpósios tão estimulantes como
este. Entretanto, como um partidário na controvérsia, preferiria con­
tar com apoio unânime à proposição que endosso. Vocês sabem, os
outros é que estão errados. Aderindo a um dogma filosófico de que o
erro é mau, odeio ver meus amigos caindo em pecado.

Prossegue:

Além do mais, sua forma específica de pecado é mais perigosa que


algumas das perversões tradicionais de sociedades civilizadas. Prova­
velmente irá prejudicar mais pessoas do que as formas mais exóticas
de pornografia. Acredito que os que desencorajam os educadores a
explicar seus objetivos educacionais estão em geral permitindo, se não
promovendo, o mesmo tipo de raciocínio obscuro que em parte tem
conduzido ao baixo nível do ensino neste país.

Acho esta passagem de Popham muito interessante. Primeiro,


documenta a situação intelectual da área do currículo. Em bora
muitas das críticas específicas dessa área feitas por autores como
Joseph Schwab sejam tautológicas, acho-me inclinado a concordar
com sua sugestão de que se percebe a morte iminente de uma
disciplina na utilização cada vez maior que faz de argumentos ad
hom inem 2 como o que acabamos de citar. Segundo, e de interesse

(1) W. James Popham. “ Probing the Validity of Arguments Against Beha­


vioral Goals” , reimpresso. In: Robert J. Kibler et al. Behavioral Objectives and
Instruction. Boston, Allyn & Bacon, 1970, p. 115-6.
(2) Joseph J. Schwab. The Practical: A Language for Curriculum. Wash­
ington, D.C. National Education Association, 1970, p. 18.
162 MICHAEL W. APPLE

mais amplo, é o conjunto de suposições refletido na afirmação


citada, suposições que fornecem a base ideológica para o modelo
sistêmico de administração em educação. Essas suposições estão
relacionadas com a defesa tácita de uma visão que mais um a vez
nega a importância do conflito intelectual e ético, um a perspectiva
muito limitada do empenho científico, uma incapacidade de lidar
com a ambigüidade e, finalmente, um a separação obsoleta entre
questões morais e técnicas. O uso cada vez maior da linguagem
sistêmica em educação baseia-se neste conjunto de crenças que,
quando examinado, é quase sempre irrealista, e social e politi­
camente conservador.
De princípio, deixe-me esclarecer algumas de minhas pers­
pectivas. Do mesmo modo como vimos em nossa análise da forma
como o conhecimento oculto e manifesto encontrado nas escolas não
pode ser considerado independentemente das outras instituições eco­
nômicas e sociais de um a coletividade — que este conhecimento está
estreitamente envolvido com as instituições dominantes de uma
sociedade, reflete-as e ajuda a reproduzi-las —, é igualmente im por­
tante perceber-se que nossa própria atitude para com o planeja­
mento da escolarização e do currículo está também fundam en­
talmente ligada à estrutura da ordem social em que vivemos.3 Em ­
bora prefira evitar uma interpretação demasiadamente determinista
da consciência, tomarei a posição de que a estrutura básica da
maioria do conteúdo do currículo geralmente apóia e aceita a estru­
tura econômica, política, ideológica e intelectual existente que dis­
tribui oportunidade e poder na sociedade norte-americana. Não
peço ao leitor que compartilhe de todas as minhas percepções a
respeito da forma como esta estrutura tende para a sublimação dos
séntimentos humanos básicos e para a repressão de muitas pessoas.
O que peço é que as percepções não sejam descartadas de imediato e
que os especialistas deixem de agir de acordo com suposições tácitas
que impedem a concentração de seu enfoque nos seus compromissos
ideológicos e epistemológicos definidos. Parte da tarefa da crítica do
currículo é nos conscientizar dos resultados latentes de nosso tra­
balho, pois os valores agem continuamente através de sua utilização
e estão sedimentados na nossa própria atitude diante de nossos

(3) Cf. a análise da relação entre conhecimento e instituições em Peter L.


Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction o f Reality. New York, Dou­
bleday Anchor Books, 1966.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 163

problemas. Pode muito bem ser o caso de que atividades e conse-


qüências da escolarização quase sempre desiguais e problem á­
ticas não serão fundamentalmente modificadas até que deixemos
de procurar por soluções simples para nossos problemas. Parte da
resposta, mas somente parte dela, está em esclarecer nossas orien­
tações políticas e conceituais. Ê possível que ambas estejam consi­
deravelmente interligadas.
Gostaria de apresentar tendências nos modelos sistêmicos de
administração que em geral se acham vinculadas aos compromissos
sociais da área do currículo, compromissos que podem estar mais
ocultos que os defendidos pelos primeiros especialistas em currículo,
mas nem por isso menos poderosos. Documentam a forma como os
interesses ideológicos dos primeiros especialistas em currículo trans­
formaram-se de patentes interesses de classe em princípios “neu­
tros” de ajuda. Por exemplo, considerarei a linguagem sistêmica
como um a retórica social conservadora e representarei sua visão
errônea de ciência. Analisemos inicialmente o modelo sistêmico
como um a estrutura intelectual geral em educação. Deixe-me afir­
mar, contudo, que as considerações a serem feitas aqui aplicam-se
aos usos educacionais da lógica sistêmica, e não necessariamente ao
conceito sistêmico per se (embora esta última questão permaneça
discutível).

Os modelos sistêmicos e o controle técnico

Em geral os modelos sistêmicos de abordagem visam a um a


análise mais exata e “científica” . No entanto, a visão da atividade
científica que fundam enta a utilização desses modelos no plane­
jam ento educacional e do currículo baseia-se menos num a visão
precisa dos processos científicos que num exame a posteriori dos
produtos científicos. Uma distinção que se faz útil aqui é entre a
lógica em uso de uma ciência e sua lógica reconstruída.4 A lógica em
uso define o que os cientistas realmente fazem; e que não é neces­
sariamente a progressão linear de determ inar objetivos absoluta­
mente claros, de teste e verificação ou “falsificabilidade” de hipó­
teses (Popper) através de análises estatísticas ou outras, e assim por
diante. A lógica reconstruída define o que os comentadores, filó-

(4) Abraham Kaplan. The Conduct o f Inquiry. San Francisco, Chandler,


1964, p.3-11.
164 MICHAEL W. APPLE

sofos da ciência e outros denominam lógica da investigação cientí­


fica. Há um a tradição excepcionalmente longa na crítica à postura
educacional, desde Snedden até o presente, de tom ar de empréstimo
um a lógica reconstruída da atividade científica e esperar que ela seja
suficiente para analisar o complexo problema do planejamento do
currículo, isso sem falar na “pesquisa” do currículo.
Isto tem em geral tomado a forma do desenvolvimento de
procedimentos para assegurar a confiabilidade e para racionalizar e
explicitar tantos aspectos das atividades hum anas quanto possíveis,
quer se trate do pesquisador, do participante do processo decisório
em educação, quer do estudante. Huebner descreveu essa abor­
dagem como “ tecnológica” na medida em que procura empregar
formas rigorosas de raciocínio meios-fins ou processo-produto e está
de princípio interessada em eficiência, tendendo assim a excluir
outros modos de avaliação.5 Entre os exemplos incluem-se o tra­
balho inicial de Bobbitt, acima mencionado, sobre análise de “ ativi­
dade” , que pareceu cristalizar o paradigm a básico da área do currí­
culo, e a ênfase ultimamente conferida aos objetivos “comporta-
m entais” . Cada um desses procurou especificar os limites opera­
cionais da interação institucional e foi motivado por um a neces­
sidade de conclusão e confiabilidade. A linha dos objetivos “com-
portam entais” , por exemplo, procurou reduzir a ação dos estu­
dantes a formas especificáveis de comportamento manifesto, de
modo a garantir ao educador a confiabilidade dos resultados. Em ­
bora a necessidade de confiabilidade seja compreensível, em virtude
das grandes somas de dinheiro aplicadas em educação, sua super­
ficialidade perturba. A própria orientação “ com portamental” (as­
sim como muitos aspectos constitutivos dos modelos sistêmicos de
administração) tem sido efetivamente considerada nesses primeiros
trabalhos, tais como na análise do conhecimento realizada por Ryle
de seus sentidos de tendência versus sentidos de auto-realização, no
estudo de Polanyi de formas de conhecimento tácito e na magistral
análise de H annah Arendt da forma como a necessidade de confia­
bilidade em geral impossibilita a criação de significado pessoal e
efetivamente enfraquece a base da ação política.6 Essas análises,

(5) Dwayne Huebner. “Curricular Language and Classroom Meanings” . Lan­


guage and Meaning. James B. MacDonald e Robert R. Leeper (orgs.). Washington,
D.C., Association for Supervision and Curriculum Development, 1966, p. 8-26.
(6) Cf. Gilbert Ryle. The Concept o f Mind. New York, Barnes & Noble,
1949; Michael Polanyi. The Tacit Dimension. New York, Doubleday Anchor Books,
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 165

excluída a visão dos modelos sistêmicos como possibilitando um a


abordagem mais “científica” dos problemas educacionais, exigem
um exame mais aprofundado.
Diferentemente da incessante disputa por confiabilidade entre
os educadores, a atividade científica tem-se caracterizado menos
por um a preferência por um saber de rigor, por um a lenta e firme
acumulação de dados técnicos, do que podemos supor. O que a
maioria dos membros da comunidade científica rotulariam como
“boa ciência” é um processo que se constitui sobre um ato de fé,
uma sensibilidade estética, um compromisso pessoal e, de grande
importância, a capacidade de aceitar ambigüidade e incerteza.7
Sem essas qualidades, que m antêm a atividade científica como um
artefato essencialmente humano e em mudança, a ciência se torna
mera tecnologia. A visão da ciência utilizada para dar legitimidade a
boa parte do conteúdo do currículo, especialmente aos modelos
sistêmicos, tem mais a ver com o positivismo do século XIX que com o
discurso científico e filosófico atuais. Em bora a tendência de um
reducionismo ingênuo, por exemplo, na análise da ação hum ana
tenha se originado na filosofia em torno da década de 30,8 atual­
mente, como veremos, não tem havido grandes progressos na maio­
ria do conteúdo do currículo.
O problem a de se recorrer a um a lógica reconstruída se funda
na nossa crença na neutralidade inerente aos modelos sistêmicos de
administração. Parece haver um a suposição tácita de que esses
modelos são simplesmente técnicas “ cientificas” ; neutros, podem
ser aplicados a m anipular quase todos os problemas com que nos
defrontamos. No entanto, um a análise minuciosa revela algumas
questões provocativas com respeito a essa pré-noção.
Para serem precisos, os modelos sistêmicos de administração
não são neutros. Seu próprio interesse constitutivo está basicamente

1966; e Hannah Arendt. The Human Condition. New York, Doubleday Anchor,
1958.
(7) Ver, por exemplo, a discussão das teorias da luz, ondular versus partí­
culas, em Thomas Kuhn. The Structure o f Scientific Revolutions. University of
Chicago Press, 1970. Ver também Imre Lakatos e Alan Musgrave (orgs.). Criticism
and the Growth o f Knowledge. Cambridge University Press, 1970; e Michael Polanyi.
Personal Knowledge. New York, Harper Torchbooks, 1964.
(8) J. O. Urmson. Philosophical Analysis. London, Oxford University Press,
1956, p. 146.
166 MICHAEL W. APPLE

em efetuar e m anter o controle tecnico e o rigor científico9 nisto se


constituindo também sua conseqüência social. Como a lògica re­
construída do saber de rigor, os modelos sistêmicos visam, funda­
mental e inalteravelmente, às regularidades do comportamento hu­
mano; a linguagem das “ diferenças individuais” opera no sentido
oposto. É, pois, essencialmente manipulativo. A perspectiva mani-
pulativa é inerente às disputas por confiabilidade. De fato, é difícil
prever como uma exigência inflexível de exatidão nos objetivos e nas
especificações do comportamento possa ser menos manipulativa, em
virtude das propensões dos seres humanos para existir num a relação
dialética com sua realidade social — isto é dar significado à sua
própria e ultrapassar a estrutura e o entrelaçamento de significados
e instituições socialmente estabelecidos.10 É aqui na formação de
um indivíduo abstrato, que mantém um a relação acritica e total­
mente parcial com sua realidade social, que encontramos um exem­
plo básico da orientação conservadora tão profundamente sedimen­
tada nos modelos “tecnológicos” utilizados na educação.
Um aspecto semelhante é levantado por Sennett em sua dis­
cussão da tendência dos planejadores urbanos de criar sistemas cujo
ideal é que nada “ esteja fora de controle” , que a vida institucional
“ seja manipulada a cabresto tão curto [que] qualquer procedimento
das diferentes atividades deva ser regulado pelo minino denomi­
nador comum” . 11 Ele resume sua análise da tendência dos plane­
jadores de sistemas integrados de usar modelos tecnológicos e de
produção:12

Seu impulso foi dar vazão à tendência (...) dos homens de controiar
riscos desconhecidos, eliminando a possibilidade de experimentar a
surpresa. Controlando o quadro do que é acessível à interação social,
está domado o passo seguinte da ação social. A história social é
substituída pelo produto “passivo” do planejamento social. Imerso
nessa ânsia de préplanejar ao longo de linhas de montagem, está o

(9) Trent Schroyer. “Toward a Criticai Theory for Advanced Industrial So­
ciety” . Recent Sociologi, 2, Hans Peter Dreitzel (org.). New York, Macmillan, 1970,
p. 215; e Jürgen Habermas. “ Knowledge and Interest” . Sociological Theory and
Philosophical Analysis. Dorothy Emmet e Alasdair Macintyre (orgs.). New York,
Macmillan, 1970, p. 36-54.
(10) Peter L. Berger e Thomas Luckmann, op. cit., p. 129.
(11) Richard Sennett. The Uses ofDisorder. New York, Vintage Books, 1970,
p. 94.
(12) Ibid., p. 96.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 167

desejo de evitar o sofrimento, de criar uma ordem transcendente de


vida imune à diversidade e, portanto, ao conflito inevitável entre os
homens.

A ingenuidade filosófica e o aspecto notavelmente determi­


nista do modelo sistémico de adm inistração da forma como é apli­
cado em educação talvez seja mais evidente na exigência que se faz
aos que constroem sistemas educacionais, por exemplo, para que
"formulem objetivos de aprendizado específicos, determ inando cla­
ramente o que quer que se espere que o aluno venha a ser capaz de
fazer, saber e sentir como resultado de suas experiências de apren­
dizado” (os grifos são m eus).13 Mesmo um exame superficial das
análises psicológicas e especialmente das filosóficas da natureza das
tendências, consecuções e propensões, e de como essas são “trans­
mitidas” e ligadas a outros tipos de “conhecimento” , mostra a falta
de qualquer reflexão significativa sobre como os seres humanos, de
fato, operam na vida real.14 Além do mais, a mentalidade redu-
cionista em que os componentes de cognição se acham separados de
“ sentimento” e podem ser “comportamentalmente” especificados
interpreta de modo fundamentalmente errôneo a natureza da ação
hum ana.15 A própria idéia de que os educadores deveriam especificar
todos e mesmo os aspectos básicos da ação de uma pessoa substitui o
slogan da manipulação pela tarefa aterradora de fazer escolhas
morais.
Deveria ficar claro que o planejamento do currículo, a criação
de contornos educacionais em que os estudantes devem conviver, é
inerentemente um processo político e moral. Envolve concepções
ideológicas e políticas antagônicas onde a equação pessoal está
ligada à atividade educacional referente a valores. Ademais, um de
seus componentes básicos é o fato de influenciar outras pessoas — a
saber, os estudantes. A concepção comum em educação, no entanto,

(13) Bela H. Banathly. Instructional Systems. Paio Alto, Califórnia, Fearon,


1968, p. 22.
(14) Cf. Donald Amstine. Philosophy o f Education: Learning and Schooling.
New York, Harper & Row, 1967; e Stuart Hampshire. Thought and Action. New
York, Viking Press, 1959.
(15) Essa separação ingênua e os aspectos destrutivos da especificação do
comportamento podem ser mais bem vistos em discussões do pensamento cientifico,
especialmente a de Michael Polanyi, op. cit. Também é muito útil aqui a análise de
Susanne Langer da “ mente” em Philosophy in a New Key. NewYork, Mentor, 1951.
168 MICHAEL W. APPLE

tende a avançar num a direção bastante contrária à de considerações


morais e políticas. Pelo contrário, as esferas do processo decisório
são vistas como problemas técnicos que precisam apenas de estra­
tégias instrumentais e informação produzida por especialistas téc­
nicos,16 daí afastarem efetivamente as decisões da área do debate
político e ético e ocultarem a relação entre o status do conhecimento
técnico e a reprodução econômica e cultural. Em outras palavras,
ainda que os fundamentos lógicos, como os modelos sistêmicos,
dissimulem-se com a linguagem de “serem realistas” , existe um a
forte tendência em sua utilização para nivelar a realidade, para
definir as complexas questões de avaliação acima da contingência
usando um a forma de pensamento que é receptiva apenas à compe­
tência técnica. Fundam entalm ente, o emprego de modelos sistê­
micos qua fórmula tende a ocultar do educador o fato de que está
tom ando profundas decisões éticas e econômicas com relação a um
grupo de outros seres humanos.
Agora, a questão real não é que as técnicas sistêmicas produ­
zam informação e realimentação que possam ser usadas por sis­
temas de controle social. Elas próprias são sistemas de controle.17 É
tam bém im portante o fato de que o sistema de suposições subja­
centes a elas e a grande parte da área de currículo provêm de uma
ideologia tecnocrática (e funciona como tal) que em geral serve para
legitimar a distribuição de poder e privilégios em nossa sociedade.18
A própria linguagem usada por alguns dos defensores dos modelos
sistêmicos de adm inistração em educação transm ite suas pré-no-
ções. Conquanto se veja a m udança como im portante, ela é geral­
mente enfocada por noções como a de ajustamento ao sistem a.19 A
base do próprio sistema permanece inquestionada. O emprego de
modelos sistêmicos tem como pressuposto que as instituições de
ensino são fundamentalmente perfeitas. Ou seja, embora o “ nível do
ensino” seja geralmente fraco, o mesmo padrão geral de interação
hum ana é suficiente para a educação, se a instituição pode ser
“ afinada” , por assim dizer. Os problemas de escolarização devem
ser resolvidos por “modestos inputs de administração centralizada,
junto com serviços, pesquisa e consultoria especializados” . O baixo

(16) Schroyer, op. cit. , p. 212.


(17) Alvin W. Gouldner. The Coming Crisis o f Western Sociology. New York,
Basic Books, 1970, p. 50.
(18) Schroyer, op. cit. , p. 210.
(19) Banathy, op. cit. , p. 10.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 169

nível em educação é visto apenas em termos de falta de sofisticação


técnica, podendo ser efetivamente solucionado através da “ m ani­
pulação” .20 Desmentem essa percepção o crescente descontenta­
mento dos estudantes para com boa parte da estrutura de signi­
ficados obrigatória da escolarização e o desenvolvimento da crítica
sobre a relação entre escolarização e desigualdade.
Como o Tyler Rationale em currículo antes dele, o modelo
sistêmico de administração presume que a eficácia de um sistema
pode ser avaliada por “ quão rigorosamente o output do sistema
atende à finalidade para a qual ele existe” .21 No entanto, na disputa
por área de conhecimento, ignora-se virtualmente o processo polí­
tico pelo qual visões de finalidades em geral antagônicas unem-se
umas com as outras e chegam a algum tipo de compreensão. Nova­
mente, como Tyler, alguém — o gerente de um a instituição, talvez
— “ m anipula” num mundo irreal. Não avança um a compreensão
dos difíceis problemas éticos, ideológicos e mesmo estéticos de quem
decide o que deveriam ser essas finalidades, que existem no mundo
real da educação.
Agora, o próprio “planejamento de sistemas integrados” é um
procedimento analítico em si mesmo, com sua própria história e,
geralmente, seus modos de autocorreção, quando mantido dentro de
sua tradição. No entanto, a orientação educacional rotulada de
“planejamento de sistemas integrados” não se avizinha dessa sofis­
ticação, nem passa de um empréstimo de um a terminologia super­
ficial para ocultar a metáfora dominante que os especialistas em
currículo vêm usando para ver a escolarização há mais de cinqüenta
anos. Como ficou claro na minha prim eira análise histórica, essa
metáfora ou modelo representa a escola como um a fábrica, e tem
suas origens nos princípios do currículo como um campo de estudo,
especialmente no trabalho de Bobbitt e C harters.22 Em análise de
sistemas na área de programação de computador, os inputs e
outputs são informação; nos modelos sistêmicos utilizados em edu­

(20) Gouldner, op. cit., p. 161.


(21) Banathy,op. cit., p. 13.
(22) Herbert M. Kliebard. “Bureaucracy and Curriculum Theory". Freedom,
Bureaucracy and Schooling. Vernon Haubrich (ed.). Washington, D.C., Association
for Supervision and Curriculum Development, 1971, p. 74-93. Isto não é uma ligação
inconsciente com a obra dos primeiros teóricos, como o trabalho por vezes proble­
mático de Bobbitt. Ver, por exemplo, Robert Kibler et al. Behavioral Objectives and
Instruction. Boston, Allyn & Bacon, 1970, p. 105.
170 MICHAEL W. APPLE

cação, eles são geralmente os alunos. A escola é a instalação de


processamento e o “ homens instruído” é o “ produto” . 23 Em virtude
do fato de que a linguagem e as construções metafóricas de um a área
em geral ajudam a determ inar seus modos operacionais, o uso da
linguagem da criança qua produto é apropriado a preservar e inten­
sificar o caráter já notavelmente manipulativo da educação, um
caráter que se mostrou tão claro nas experiências concretas de
crianças do jardim de infância, como vimos no Capítulo 3. Esse
caráter também é estimulado pela relativa ausência de discernimento
dos educadores nas áreas dos modelos sistêmicos de administração.
Há um a forte tendência para se encontrar, na literatura sobre
os modelos sistêmicos de administração na área do currículo, pouco
mais que referências ocasionais, por exemplo, aos teóricos de sis­
temas mais criativos. Quase não se encontram referências ao estru-
turalismo de Von Bertalanffy nem à sutileza da forma como ele
procura abordar os problemas. Em bora se encontrem algumas pou­
cas referências a ele, é bastante evidente que as noções funda­
mentais sobre os modelos sistêmicos não são provenientes dessa
postura. Pelo contrário, vê-se um modelo que é na verdade tirado de
áreas como tecnologia e indústria de arm am entos.24 O que não se
encontra, é de importância considerável, em vista de nosso esforço
para sermos “ científicos” . O que se encontra, todavia, é a inserção
do modelo da escola como fábrica num conjunto de slogans para dar
à área legitimidade intelectual e econômica e um sentido de neutra­
lidade. O planejamento de sistemas integrados como campo de
estudo científico apresenta intrinsecamente mecanismos de autocor-
reção. A crítica contínua da pesquisa e das idéias e o conflito
intelectual, na área de sistemas, entre seus membros de convicções
divergentes fornecem um contexto que o mantém vivo. Os educa­
dores tomaram de empréstimo apenas a linguagem, em geral apenas
a linguagem superficial (o que chamei de lógica reconstruída), e,
daí, afastaram a terminologia de seu contexto de autocorreção.
Portanto, possuem pouco discernimento da discussão crítica cons­
tante na área de planejamento de sistemas integrados que lhe possi­
bilita permanecer forte. Temos de aprender ainda os riscos de nos
apropriarmos de modelos de áreas díspares e aplicá-los à educação.
Muito freqüentemente, os modelos tornam-se rapidam ente obso­

(23) Banathy, op. cit. , p. 17.


(24) Ibid. , op. cit., p. 2.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 171

letos, são representações intelectualmente imprecisas daqueles de­


senvolvidos pela área que os cedeu25 e fornecem pouco dos recursos
conceituais necessários para se abordar o problema complexo de pro­
jetar contornos e selecionar e preservar “tradições” que sirvam de me­
diação entre a procura de um estudante e de um grupo concreto por
significado pessoal e a necessidade de um a sociedade de m anter sua
produção de instituições e conhecimento socialmente estabelecido.
A análise de sistemas começou não como um a técnica de
administração, mas como um a forma pela qual se poderia esclarecer
a complexa natureza dos problemas. Procurou m ostrar como os
componentes de uma área estavam inter-relacionados e influíam um
sobre o outro. A análise de sistemas procurava aum entar nossa
compreensão de mudança e estabilidade — o subsistema A está
relacionado de modo X ao subsistema B, que por sua vez está
relacionado de modo Y ao subsistema C. A combinação criou
uma relação diferente, Z. Qualquer alteração de C, portanto, teria
profundas repercussões em A e B e em todas as ligações entre eles. O
modelo sistêmico, então, era um modelo para compreender, não
necessariamente para controlar. No entanto, muito especialistas em
currículo parecem estar empregando-o para controlar seus pro­
blemas sem antes entender a complexidade das relações entre eles.
Isto é um dos pontos em que Schwab está correto. Apenas quando
começamos a ver a natureza intrincada das relações entre os aspec­
tos do contorno educacional é que podemos começar a agir mais do
que como técnicos.26 A análise de sistemas é antes um modelo para
revelar possibilidades que um a representação do que deveria ser.
Como uma estrutura de adm inistração para tornar obrigatórios os
significados institucionais, para criar um falso consenso, está bem
longe de ser neutra, para se dizer o mínimo.

(25) Talvez um dos exemplos mais interessantes disto esteja no trabalho de


Snedden. Sua apropriação dos piores aspectos da sociologia serviu a interesses ideo­
lógicos conservadores. Ver Walter Drost. David Snedden and Education for Social
Efficiency. Madison, University of Wisconsin Press, 1967.
Um outro exemplo é o nosso uso cada vez maior da teoria do aprendizado. Não
apenas nos ensinou um pouco do que é aplicável à complexa realidade cotidiana da
vida educacional, mas temos permanecido persistentemente inconscientes dos pro­
blemas que a teoria do aprendizado apresenta em sua própria comunidade cientifica.
A análise mais completa das dificuldades conceituais pode ser encontrada em Charles
Taylor. The Explanation o f Behavior. New York, Humanities Press, 1964; e Maurice
Merleau-Ponty. The Structure o f Behavior. Boston, Beacon Press, 1963.
(26) Schwab, op. cit., p. 33-5.
172 MICHAEL W. APPLE

Ei ibora os defensores dos modelos sistêmicos procurem au­


m entar o status científico de seu trabalho, como demonstrei, o
conceito sistêmico que tomaram de empréstimo não faz parte do
ramo científico da lógica sistêmica. Pelo contrário, optaram por
apropriar-se dos modelos operacionais da comunidade com ercial.27
Isto, é claro, não constitui nenhum a novidade.28 Conquanto fosse
um pouco injusto sugerir que aqueles interesses “bem-sucedidos”
como Lockheed (que exigiu grande intervenção econômica estatal
para impedir que se fosse à bancarrota) são os principais defensores
dos modelos sistêmicos para realizações de grande escala, não seria
incorreto sugerir que a subestrutura comercial e econômica dos
Estados Unidos continua a produzir canais que fornecem meios
extremamente limitados de poder e controle iguais para grande
parte da população. É preciso que cada um questione se seus
modelos são de fato adequados para lidar com estudantes. Esta
questão torna-se ainda mais forte quando se percebe que o modelo
sistêmico de adm inistração foi criado para aum entar a capacidade
dos proprietários de controlar a mão-de-obra mais efetivamente,
aum entando os lucros e enfraquecendo os movimentos sindicais
emergentes logo no início deste século.29
Há outras questões que poderiam ser formuladas a respeito da
idéia de que os modelos sistêmicos são “científicos” e técnicas
neutras para estabelecer melhores práticas educacionais. Como ob­
servei, é um a dentre as suposições básicas que precisam ser exami­
nadas rigorosamente. Gostaria de aprofundar-me um pouco mais e
formular algumas questões a respeito de seu possível conservantismo
latente. Uma questão se refere à linguagem sistêmica como uma
retórica social; a outra se relaciona a um aspecto constitutivo dos
modelos sistêmicos da forma como são hoje aplicados em educação
— a saber, a especificação de objetivos educacionais e geralmente
“comportamentais” precisos na medida em que preservam taci­
tamente de forma inquestionável os modos predominantes de inte­
ração social num a economia desigual, enquanto aspectos da repro-

(27) Bruce R. Joyce et al. Implementing Systems Models fo r Teacher Educa­


tion. Washington, D.C., U. S. Department of Health, Education and Welfare, 1971.
(28) Veja-se Raymond Callahan. Education and the Cult o f Efficiency. Uni­
versity of Chicago Press, 1962.
(29) Esta história política e econômica é documentada com clareza em Harry
Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York, Monthly Review Press, 1975; e
Stanley Aronowitz. False Promises. New York, McGraw-Hill, 1973.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 173

dução. Examinarei então como a preferência atual por ordem no


currículo cumpre uma função semelhante. Examinemos primeiro a
questão dos modelos sistêmicos como um a linguagem.

Os modelos sistêmicos como retórica

O princípio wittgensteiniano de que o significado da lingua­


gem depende de seu uso é muito adequado para analisar a lingua­
gem sistêmica da forma como é aplicada no discurso sobre currí­
culo. De m aneira semelhante à forma como a linguagem da ciência e
tecnologia funcionou para os primeiros especialistas em currículo e
educadores que estudamos no Capítulo 4, a linguagem sistêmica
desempenha hoje um a função retórica e política. Sem um a com­
preensão disso, escapa-nos um aspecto capital. Um de seus usos
básicos, se não latentes, é persuadir os outros do nível sofisticado da
educação. Se um a área pode convencer aos órgãos de distribuição de
recursos, ao governo ou à população em geral de que estão sendo
empregados procedimentos científicos, quer ou não sejam úteis de
fato, aum enta a probabilidade de um a maior distribuição de recur­
sos financeiros e apoio político. Isto é importante, tendo-se em vista
o elevado status do conhecimento técnico e da ciência nos países
industrializados. (Infelizmente, não é a ciência per se, que é verda­
deiramente vista; é antes a tecnologia e sua aplicabilidade concreta.)
Expressar os problemas de um a área na terminologia sistêmica
evoca significados tácitos em um a audiência geral, significados que
apoiam um sistema de crenças pré-científico. De modo mais funda­
mental, de vez que a distribuição de recursos está se tornando
progressivamente centralizada sob o controle governamental, e de
vez que a “ experimentação” educacional quase sempre segue a
distribuição de recursos, a linguagem sistêmica tem como função
básica a tarefa política de produzir dinheiro a partir do governo
federal. Assim, pode-se esperar que a controvérsia “pequena ciên­
cia, grande ciência” que ainda se dá nas ciências físicas venha a
surgir tam bém na educação.30

(30) Cf. Derek J. De Solla Price. Little Science, Big Science. New York,
Columbia University Press, 1963; e Warren O. Hagstrom. The Scientific Community.
New York, Basic Books, 1965.
174 MICHAEL W. APPLE

Em vista da tendência alternativa pela descentralização, não


pode ser ignorada a questão da distribuição de recursos e controle.
Os modelos sistêmicos de administração apresentam uma tendência
pela centralização, mesmo sem a questão da distribuição de recursos
e retórica. A fim de ser mais eficaz, tantas variáveis quanto possível
— interpessoais, econômicas, etc. — devem ser subordinadas ao
próprio sistema e por ele controladas. A ordem e o consenso tornam-
se extraordinariamente importantes; o conflito e a desordem são
vistos como antitéticos ao funcionamento harmonioso do sistema. Ê,
portanto, mais um a vez ignorado o fato de que o conflito e a
desordem são extraordinariamente importantes para impedir a reifi-
cação de padrões institucionais de interação.31
O conteúdo dos modelos sistêmicos é vazio. A teoria sistêmica
é, por assim dizer, um conjunto formal ou metodologia, que pode ser
aplicado a problemas educacionais. Ou seja, seu formalismo concei­
tuai permite que seja aplicado de maneira supostamente “ neutra” a
um a série de problemas que exigem a formulação precisa de obje­
tivos, procedimentos e de dispositivos de realimentação. Uma vez
que a metodologia sistêmica veicula esse sentido de neutralidade, é
idealmente adequada para fomentar o consenso em torno de si. Esse
processo de formação de consenso, e o impedimento do conflito,
permite que os interesses gerenciais dirijam as questões a respeito de
escolarização (mas sempre dentro das “ determinações” das ligações
reais entre as instituições econômicas e culturais).32
Essa evocação de significados tácitos é decisiva no exame dos
modelos sistêmicos de administração. Não apenas se produzem
formas de solidariedade, mas também aum enta o quietismo polí­
tico. Por exemplo, pode ser o caso de que a escola comum e seus
fundamentos ideológicos nunca tenham servido para educar ade-

(31) Para um enfoque mais poético desse problema, ver Maxine Greene. “The
Matter of Mystification: Teacher Education in Unquiet Times” . Identity and Struc­
ture: Issues in the Sociology o f Education. Denis Gleason (ed.). Driffield, Nafferton
Books, 1977, p. 28-43.
(32) Gouldner, op. cit., p. 445. Uma visão instigante do modo como essas
"determinações” funcionam no controle da ação educacional pode ser encontrada no
trabalho do filósofo marxista francês Louis Althusser. Ver Alex Callinicos. Althus­
ser’s Marxism. London, Pluto Press, 1976. Ver também Michael Erben e Denis
Gleason. “ Education as Reproduction” . Society, State and Schooling. Michael
Young e Geoff Whitty (orgs.). Guilford, Inglaterra, Falmer Press, 1977, p. 73-92;
e Erik Wright. Classes, Crisis and the State. London, New Left Books, 1978.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 175

quadamente, digamos, as minorias raciais nos Estados U nidos.33


Pode ser o caso também de que as escolas tenham servido basi­
camente para dividir e distribuir as oportunidades que são consis­
tentemente desiguais em termos de classe económica. O que pode
fazer o emprego de fundamentos “ científicos” sofisticados pela invo­
cação de sentimentos de solidariedade, então, é impedir que um a
parcela da população veja que, da forma como são as escolas, elas
simplesmente não podem atender a muitas das necessidades de
minorias e de outros segmentos da população. O seu próprio status
institucional está compreendido num a diversidade de outras formas
institucionais — econômicas, por exemplo — que intensifica as
estruturas econômicas e políticas vigentes.
O quietismo aparece duplicadamente e visa a dois públicos.
Primeiro, a linguagem dos modelos sistêmicos de administração é
dirigida aos críticos da atividade educacional em exercício — utili­
zemos mais um a vez o exemplo dos grupos minoritários — e está em
geral associada à noção de “responsabilidade” , dando-lhes assim o
sentimento de que de fato se está fazendo alguma coisa.34 Afinal, ela
se mostra concisa e objetiva. Mas este não é o lado essencial. Os
moradores de guetos, por exemplo, podem não estar muito enamo­
rados da terminologia técnica e terem pouco poder político, tam ­
pouco têm influência na distribuição de recursos econômicos como o
segundo conjunto de grupos a que esta linguagem se destina. O
destinatário básico inclui os membros da classe média e da indús­
tria,35 cujo coração sempre bate com força diante da especialização
técnica e da lógica industrial. Mesmo quando os membros de mino­
rias sociais e de outros grupos determinaram por um período de
tempo que a vida escolar não ficou nem um pouco menos repressiva,
como em geral tem-se dado, o outro público, mais poderoso, devido
à profundidade da reconhecida aceitação dos benefícios advindos da
especialização técnica para resolver problemas humanos, irá prova­
velmente continuar a manifestar seu apoio. Portanto, o modelo
sistêmico de administração confere significado, define a situação.

(33) Colin Greer. “Immigrants, Negroes, and the Public Schools”. The Urban
Review, III (January 1969), 9-12.
(34) Michael W. Apple. "Relevance — Slogans and Meanings” . The Educa­
tional Forum, XXXV (May 1971), 503-7.
(35) Murray Edelman. Politics as Symbolic Action. Chicago, Markham,
1971.
176 MICHAEL W. APPLE

Ainda, a definição que postula serve aos interesses daquelas classes


que já “possuem” capital econômico e cultural.
P ara maior exatidão, deveria ser mencionado um outro p ú ­
blico. Este seria constituído pelos usuários da linguagem sistêmica.
Boa parte da história do discurso sobre o currículo neste últimos
cinqüenta anos tem revelado um a necessidade por parte dos que
trabalham com currículo de que sua área se mostre mais como uma
ciência. Não irei me alongar sobre a possibilidade de psicanalisar
essa necessidade de prestígio. Porém, um a função latente da teoria
sistêmica é, sem dúvida, que ela confirma psicologicamente os vín­
culos dos que trabalham com currículo com um a procura por um
grupo de referência — no caso, a comunidade científica, e, como
observei e observarei, um a comunidade científica erroneamente con­
cebida.
Deveria ficar claro, então, que as teorias sistêmicas não são
essencialmente neutras, nem estão apenas desempenhando uma
função “científica” . Por tenderem a fazer com que seus usuários e
outros públicos ignorem alguns possíveis problemas fundamentais
relacionados à escola enquanto instituições, os modelos sistêmicos
de administração tam bém atuam para formar e canalizar os senti­
mentos políticos que apoiam os modos existentes de acesso ao co­
nhecimento e ao poder.36
Além de desempenhar essas funções políticas associadas ao
apoio financeiro e “ afetivo” , a função retórica da terminologia
sistêmica e de metodologias técnicas tende a sustentar a dominância
das instituições existentes de um a outra forma. Lidando com um
tipo de conceito sistêmico em sociologia, Gouldner afirma que, com
exceção de servir para “desfocar as dimensões ideológicas do pro­
cesso decisório, desviando a atenção das diferenças nos valores
fundamentais e das conseqüências mais remotas da política social
para que sua pesquisa é aproveitada” , as perspectivas técnicas
supostamente não valorativas fornecem a solução para alguns pro­
blemas de gerência,37 não para as questões éticas, complexas e
fundamentais, com que se defronta, digamos, na educação com
respeito às formas adequadas de educar crianças, ou para as ques-

(36) Compare-se aqui coffl a discussão da teoria sistêmica em sociologia como


sendo uma teoria tácita de política conservadora, assim como em Gouldner, op. cit.
(37) Ibid. , p. 105.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 177

tões de educação versus treinamento, e de liberdade e autoridade.


Gouldner resume isto muito bem :38

À medida que(...) se ampliam os recursos, a ênfase nas metodologias


de rigor presume uma função retórica especial. Serve para fornecer
uma estrutura capaz de resolver diferenças limitadas entre os admi­
nistradores de organizações e instituições, que apresentam pouco
conflito quanto aos valores básicos ou a planejamentos sociais, por
dar a sanção de ciência a escolhas políticas limitadas referentes a
formas e meios. Ao mesmo tempo, sua ênfase cognitiva serve para
desfocar o conflito de valores que permanecem envolvidos nas dife­
renças políticas, e para enfocar a disputa em questões de fato, impli­
cando que o conflito de valores possa ser solucionado independente­
mente da política e sem conflito político. O positivismo [e perspec­
tivas tais como os modelos sistêmicos de administração que em parte
dele provêm, eu acrescentaria], portanto, continua a servir como
meio de evitar conflitos quanto a planejamentos. No entanto, apesar
desse caráter aparentemente neutro, imparcial, o impacto social [des­
sas perspectivas] não é casual ou neutro quanto aos planejamentos
sociais antagônicos; em virtude de [sua] ênfase no problema de ordem
social, em virtude de suas origens sociais, da educação e do caráter
de [seu] próprio quadro de funcionários, e em virtude das dependên­
cias criadas por [suas] exigências de recursos, [elas] tendem persis­
tentemente a apoiar ostatus quo.

A idéia de Gouldner é muito interessante e todos deveríamos


refletir sobre ela. Será o modelo sistêmico de administração “so­
mente” um modo pelo qual um a elite institucional e dirigente evita o
conflito quanto a valores básicos e visões educacionais? Fazendo
escolhas sobre opções limitadas dentro do quadro de modos de
interação existentes, evitam-se as questões sobre a base da própria
estrutura? Como, por exemplo, os modelos sistêmicos de adminis­
tração lidariam com a colisão de duas ideologias conflitantes sobre
escolarização em que os objetivos não pudessem ser facilmente
definidos? Essas questões exigem exame bem mais minucioso, caso
as instituições educacionais devam ser sensíveis aos seus diversos
públicos.
Venho insistindo ao longo deste Capítulo que se pode ver a
consciência dos próprios especialistas em currículo, como tam bém a

(38) Ibid., p. 105.


180 MICHAEL W. APPLE

com o consenso, porém, é preciso fazer um dano à ciência e mostrar


um profundo equívoco da história das áreas de conhecimento cien­
tífico.
Precisamos reiterar que a história da ciência e o desenvol­
vimento das áreas de conhecimento específicas não se deu por meio
do consenso. De fato, o progresso mais importante nessas áreas foi
ocasionado por conflito intenso, tanto intelectual quanto interpes­
soal, e por revolução conceituai.44 Ë decididamente por meio desse
conflito que se faz um avanço significativo, e não pela acumulação
de dados factuais baseados na resolução de enigmas criados por um
paradigm a de que todos devem com partilhar. A própria estrutura
normativa das comunidades científicas tende para o ceticismo e não
necessariamente para o consenso intelectual.45 A exigência de con­
senso, portanto, não é um a exigência de ciência.
O que a passagem citada deixa claro, no entanto, é o forte
compromisso pessoal gerado pelas formas de pensamento domi­
nantes. Isto é provavelmente verdadeiro em qualquer área. Coloca,
porém, algo como um elemento limitativo de nosso conceito tradi­
cional de neutralidade. O pensamento dominante, assim, forma
um compromisso psicológico e ético, um a norm a de com porta­
mento. Os cientistas estão intensa e pessoalmente compromis­
sados46 e esta é um a das fontes básicas de conflito nas áreas de
conhecimento. Por isso, exigir consenso é exigir um a falta de com­
promisso e é ignorar o valor decisivo do incerto e do conflito concei­
tuai no progresso de um a área de conhecimento. A exigência oculta
de um a falta de compromisso é de importância considerável. Os
modelos sistêmicos de administração, como mencionado, tendem a
impor soluções técnicas a dilemas morais — que é a forma adequada
para influenciar um outro ser hum ano, por exemplo. Se os compro­
missos morais estiverem pouco firmes, a tarefa de nivelar a reali­
dade torna-se muito mais fácil. Quando a “realidade” é desigual,
quando as classes com poder econômico e cultural controlam classes
sem esse poder, o nivelamento apresenta agudas conseqüências.

(44) Kuhn, op. cit. Para uma discussão mais aprofundada do lugar do con­
flito na ciência, uma discussão que sugira antes um modelo darwiniano que um
modelo revolucionário, veja-se Stephen Toulmin. Human Understanding. Princeton
University Press, 1962.
(45) Norman W. Storer. The Social System o f Science. New York, Holt, Rine­
hart & Winston, 1966, p. 78-9.
(46) Polanyi, op. cit. , p. 171.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 181

A procura de alternativas

Existem, porém, várias formas de se lidar com algumas das


possíveis dificuldades associadas ao emprego de modelos sistêmicos
de administração em educação. Em primeiro lugar, os educadores
devem se empenhar num a análise contínua e aprofundada de outras
formas de teoria sistêmica, que não sejam tom adas de empréstimo
aos interesses industriais. A ótica dos sistemas abertos e dos sis­
tem as biológicos poderia fornecer excelentes modelos de revelação
p ara exame aprofundado. Em segundo lugar, podem se absorver
nas questões e controvérsias na área de sistemas de modo que se
conscientizem das dificuldades técnicas e práticas concretas enfren­
tadas pela análise de sistemas enquanto um a área. Dessa forma, os
educadores podem impedir que novamente se venha a tom ar de
empréstimo conhecimento que é arrancado de seu contexto de auto-
correção, sendo, por isso, geralmente superficial ou parcial. Em bora
o uso de teorias sistêmicas tenha um a plausibilidade im ediata óbvia,
não faremos justiça à complexidade intelectual associada à própria
teoria sistêmica ou à intrincada natureza das relações institucionais
em educação (que os modelos sistêmicos podem ao menos p ar­
cialmente elucidar) se basearmos nossas análises em concepções de
sistemas a que se pode dar apenas um a pequena confiabilidade
dentro da comunidade de sistemas mais ampla. Existem alternativas
no discurso dos sistemas por serem exploradas de modo rigoroso
pelos educadores.
Essa análise não irá, porém, eliminar todas as dificuldades,
pois existem várias outras questões que poderiam ser levantadas
com respeito aos modelos sistêmicos de administração. Talvez um a
das mais decisivas centre-se em torno da verdadeira possibilidade de
se aum entar a burocratização e o controle social por meio da racio­
nalização total da educação. Isto não significa levantar o espectro de
um a m áquina burocrática que invada os interesses humanos. Pelo
contrário, pede-nos que sejamos realistas, se não trágicos. Quem
quer que esteja familiarizado com o crescimento de escolas urbanas
sabe que a história de racionalizar e centralizar o processo decisório,
não importando quais sejam os sentimentos possivelmente humanos
ou liberais que se acham por trás dela, tem quase que invaria­
velmente levado a um a cristalização e reificação institucional.47 O

(47) Podem-se encontrar análises históricas desse problema em Cari Kaestle.


The Evolution o f An Urban School System. Cambridge, Mass., Harvard University
182 MICHAEL W. APPLE

fato de não estarmos familiarizados com nossa própria história no


que diz respeito a “reformas” desta natureza apenas comprova a
simplicidade com que abordam os nossos problemas.
Não se encontram alternativas simples para um a ideologia de
administração e controle. Poder-se-ia facilmente expor os problemas
epistemológicos e psicológicos associados aos objetivos “compor-
tam entais” ,48 por exemplo; ou se poderia comprovar o fato de que a
Tyler Rationale no currículo é pouco mais do que um documento
administrativo que não trata adequadam ente da realidade concreta
das escolas. No entanto, esse tipo de atividade considera esses
princípios behavioristas como se fossem logicamente fundamen­
tados e cientificamente demonstráveis. Pode muito bem se dar que
eles não o sejam. Como tentei expor, o que de fato parecem ser são
expressões de um a consciência industrializada predominante, que
procura confiabilidade acima de tudo. Ou seja, são configurações
sociais e ideológicas que se originam e são um reflexo de um con­
junto de regras básicas de pensamento que fazem parte da suposta
realidade dos especialistas em currículo e outros educadores. São
aspectos da hegemonia que ajudam a criar um a “ realidade” , um a
realidade que nos leva a procurar por formas relativamente simples
de eliminar os dilemas humanos e as contradições sociais e econô­
micas implicadas na análise da diversidade e de concepções alter­
nativas de atividades com referência a valor. Pedir, então, por um
substituto ou por uma alternativa aos modelos sistêmicos de adm i­
nistração é confirmar a suposição de que finalmente os problemas
complexos podem ser solucionados dentro da estrutura aceita, sem a
necessidade ambígua e aterradora de envolvimento na tarefa de
desafiar ou de pelo menos esclarecer a própria estrutura. A tarefa
não é encontrar a alternativa aceitável que nos possibilitará “ sim­
plesmente” controlar melhor nossas escolas. Pelo contrário, é come­
çar a revelar os problemas associados a nossas visões de escola­
rização fundadas no senso comum e começar a abrir e a explorar
vias conceituais e econômicas que se mostrem férteis e que nos

Press, 1973; e David Tyack. The One Best System. Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1974.
(48) Michael W. Apple. “ Behaviorism and Conservantism” . Perspectives for
Reform in Teacher Education. Bruce R. Joyce e Marsha Weil (eds.). Englewood
Cliffs, N. J., Prentice-Hall, 1972.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 183

possibilitem ver e influir sobre a complexidade em vez de defini-la


ulém do m undo real.
As metáforas dos sistemas como modelos de compreensão
podem se m ostrar úteis aqui. Mas há questões prioritárias por
considerar. Precisamos aprender (talvez reaprender seja mais exato)
como se em penhar em debate ético e político sério.49 Nisto os
educadores podem ser orientados pelo trabalho de análise filosófica
que trata das formas de raciocínio ético e argumentação avaliativa.
Análises como as de Rawls em sua recente tentativa de explicar
posições morais verificáveis,50 adquirem grande im portância como
ponto de partida, dada a intensa controvérsia que hoje cerca as
escolas. E isto não é tudo. Precisamos reaprender nossa história. De
onde veio o modelo sistémico de administração na indústria? Como
ele funciona na acumulação de capital económico? Quem lucrou
com seu emprego? U m a vez levantadas essas questões, podemos
então começar a prever as possibilidades de diferentes combinações
institucionais para im pedir a reificação do presente no futuro. Con­
tudo, a área em geral carece de senso e imaginação estética, econó­
mica e histórica, disciplinadas, para prefigurar as possibilidades de
contornos educacionais e econômicos alternativos. É bem possível
que a necessidade de resultados operacionalmente pré-especificados
dim inua diante do desenvolvimento dessa imaginação.51
Finalmente, deve-se devotar um a parte significativa da área
do currículo à responsabilidade de se tornar um a “ ciência crítica”
(noção que irá exigir atenção mais séria no próximo capítulo). Sua
função básica é ser em ancipadora na medida em que reflete criti­
camente sobre o interesse predominante da área de m anter a maio­
ria, se não todos os aspectos do comportamento humano em insti­
tuições educacionais sob controle técnico supostamente neutro.52
Uma tal responsabilidade está fundada na análise relacional, na

(49) A análise feita por Arendt (op. cit.) das formas de discussão e de ação
política e pessoal da polis é útil aqui.
(50) John Rawls. A Theory o f Justice. Cambridge, Mass., Harvard University
Press, 1971.
(51) Veja-se o interessante debate em Interchange, II (n. 1, 1971) sobre alter­
nativas para os modos existentes de escolarização. Quase toda a questão é dedicada
ao tema. Quanto à necessidade de visão imaginativa em educação, veja-se William
Walsh, The Use o f Imagination. New York, Barnes & Noble, 1959; e Fred Inglis.
Ideology and the Imagination. New York, Cambridge University Press, 1975.
(52) Habermas, op. cit., p. 45.
184 MICHAEL W. APPLE

procura e no esclarecimento das pressuposições ideológicas e epis-


temológicas do conteúdo do currículo. Procura tornar o especialista
em currículo mais consciente de si mesmo. Apenas quando essa
dialética da consciência crítica se inicia, é que os especialistas em
currículo podem verdadeiramente afirm ar que estão preocupados
com educação e não com a reprodução cultural e econômica. É
então que podemos começar a analisar de modo rigoroso os pro­
blemas complexos do planejamento e avaliação das estruturas edu­
cacionais num a diversidade de form as,53 formas que respondem
menos às exigências econômicas e culturais de hegemonia e mais às
necessidades de todos os indivíduos, grupos e classes concretos que
constituem esta sociedade.
U m a palavra-chave aqui nesta últim a sentença, contudo, é
avaliar, pois as próprias formas que valorizamos comumente e refle­
timos em nossa atividade educacional constituem um a grande p ar­
cela do problem a ideológico que precisa ser esclarecido.
Como vimos, em virtude do status econômico e cultural de
formas técnicas e positivistas — formas que são transm itidas m ani­
festa e latentem ente bem no início da carreira escolar —, outras
formas de ação e reflexão são afastadas das considerações sérias
pelos educadores. Desse modo, exatamente como a m aneira em que
a tradição seletiva estabelece limites aos meios como os estudantes
podem refletir sobre a saturação ideológica que sofrem, tam bém os
tipos de conjuntos de valores e regras constitutivas, fundados no
senso comum, que os educadores empregam para avaliar o “êxito”
ou “fracasso” seu e dos estudantes determinam sua própria posição
ideológica e o funcionamento real de suas teorias, princípios e
modos de organização. A próxim a área que precisaremos investigar
é como os procedimentos básicos de linguagem e pensamento que
hoje prevalecem em educação, por um lado, conferem significado (e
latentem ente impedem que outras formas de significado sejam seria­
mente apreciadas) e, por outro, atendem a interesses particulares.

(53) Dois artigos de Huebner são muito importantes a esse respeito. Ver
Dwayne Huebner. "Curriculum as the Accessibility of Knowledge” . Artigo apresen­
tado no Grupo de Estudo de Teoria do Currículo, em Minneápolis, em 2 de março de
1970; e “The Tasks of the Curricular Theorist” . Curriculum Theorizing: The Recon-
ceptualists. William Pinar (ed.). Berkeley, McCutchan, 1975, p. 250-70.
7

As categorias do senso comum


e a política de rotulação

— Há o mensageiro do Rei, disse a Rainha. Ele está na prisão,


sendo punido; e o julgamento não começa senão na próxima quarta-
feira; e naturalmente o crime virá por último.
— Mas suponhamos que ele nunca cometa o crime?, disse
Alice.
— Isto seria muito melhor, não seria?, disse a Rainha, enro­
lando a argila em volta de seu dedo com um pedaço de fita.
Alice percebeu que não havia como negar isto. — Naturalmente
seria muito melhor, disse, mas não seria muito melhor sua punição.
— Você está errada nisto, de qualquer modo, disse a Rainha.
Você já foi punida alguma vez?
— Apenas por erros, disse Alice.
— E você ficou muito melhor por isso, eu seil, disse a Rainha
triunfantemente.
— Sim, mas então eu tinha feito as coisas pelas quais fui
punida, disse Alice. Aí está a diferença.
— Mas, se você não as tivesse feito, disse a Rainha, isto teria
sido ainda melhor; melhor, e melhor, e melhor!
Lewis Carrol, Alice no Fundo do Espelho

Ética, ideologia e teoria

Recorrendo ao im portante trabalho de Williams e de Gramsci,


demonstrei no início deste livro que o controle e a dominação são
freqüentemente investidos nas práticas e na consciência fundadas no
senso comum subjacentes a nossa vida, assim como pela manipu-
IH6 MICHAEL W. APPLE

lação econômica e política declarada. A dominação pode ser ideo­


lógica, bem como material.
Os modelos sistêmicos de adm inistração e os objetivos “com-
portam entais” não são os únicos exemplos da saturação da filosofia
educacional por configurações ideológicas. Em bora esses procedi­
mentos educacionais de fato desempenhem os papéis duais de uma
ideologia efetiva — dando definições “ adequadas” de situações e
servindo aos interesses daqueles que já possuem capital econômico e
cultural — estão ligados a outros aspectos de nosso aparelho con­
ceituai para formar um a pré-noção mais ampla que domina a edu­
cação. Desafiar o uso dos modelos sistêmicos de adm inistração e que
tais significa que também é preciso formular questões a respeito das
próprias categorias empregadas para organizar nosso pensamento e
ação em instituições culturais e econômicas como as escolas. Por
conseguinte, neste capítulo deverei examinar como essas categorias
do senso comum que empregamos para refletir sobre o próprio
objeto de que tratamos e as reformas parciais que delas se originam
são também aspectos da configuração hegemônica mais ampla de
um a cultura dominante efetiva.
O capítulo anterior ressaltou a importância de serem anali­
sadas as dimensões ética e ideológica de nossa visão dos estudantes,
observando que as duas estão entrelaçadas. Isto precisa ser exami­
nado com mais profundidade. Como sustentei, as questões educa­
cionais são, ao menos em parte, questões morais. Admitem escolhas
quanto às áreas relevantes de conhecimento especializado que os
educadores deveriam usar para compreender as crianças e as esco­
las. Como expressa Blum, “toda argumentação [e especialmente a
argumentação educacional, eu poderia acrescentar! apresenta um
compromisso moral na medida em que faz referência a um a escolha
autoritária com respeito ao modo como um fenômeno deve ser
entendido” . 1 Ademais, se as concepções da “ m oral” dizem respeito
a questões de dever ou virtude, então deveria ficar claro que as
questões educacionais tam bém são questões morais segundo esse
critério. Finalmente, pelo próprio fato de que os burocratas das
escolas exercem influências sobre os estudantes, seus atos não po­

(1) Alan F. Blum. “ Sociology. Wrongdoing, and Akrasia: An Attempt to


Think Greek about the Problem of Theory and Practice” . Theoretical Perspectives on
Deviance. Robert A. Scott e Jack D. Douglas (eds.). New York, Basic Books, 1972,
p. 343.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 187

dem ser pienamente interpretados sem o uso de um a marca de


pensamento ético. No entanto, há um a série de fatores que fazem
com que os educadores percebam seus problemas de formas signi­
ficativamente diferentes desta. Como essa relação causal é excep­
cionalmente complexa, não se pode esperar que este capítulo ex­
plore todos os aspectos da dificuldade. Isto exigiria um a extensa
pesquisa da relação entre ciência, ideologia e filosofia educacional2 e
uma análise mais completa da redução de concepções do hum ano e
das instituições a considerações técnicas em sociedades industriais
avançadas em que predominam grandes corporações.3 Auspicio­
samente, como os demais capítulos desta obra, este servirá de estí­
mulo à pesquisa destas áreas e, especialmente, dos meios pelos quais
os burocratas das escolas ignoram as implicações éticas e, como
veremos, políticas e econômicas de seus atos.
Em bora parte de m inha análise será mais teórica que, diga­
mos, os primeiros Capítulos a respeito do currículo oculto e m ani­
festo, na medida em que continuará a pesquisa da forma como a
hegemonia opera nas mãos de intelectuais como os educadores, são
excepcionalmente im portantes suas implicações na densidade coti­
diana da vida na sala de aula. Estou utilizando a idéia de um a
investigação teórica de um a forma muito específica quanto a este
aspecto de m inha análise, como um modo de afastamento das
categorias ideológicas e das suposições do senso comum que sus­
tentam a área do currículo. Parte deste tipo de orientação foi mais
claramente observada por Douglas em sua afirmação com referência
às diferenças entre um a posição naturalista e um a teórica. Ele se
expressa do seguinte m odo:4

Existem diferentes formas de fazer uso da experiência do senso


comum. (...) Há, especialmente, uma distinção fundamental entre
adotar a posição natural (ou naturalista) e adotar a posição teórica,
assim denominada já há muito tempo pelos fenomenólogos. Adotar a

(2) Cf. JQrgen Habermas. Knowledge and Human Interests. Boston, Beacon
Press, 1971; e Peter Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction o f Reality.
New York, Doubleday, 1966.
(3) Ver, por exemplo, Hannah Arendt. The Human Condition. New York,
Doubleday, 1958; e Albrecht Wellmer. Critical Theory o f Society. New York, Herder
& Herder, 1971.
(4) Jack D. Douglas. American Social Order. New York, Free Press, 1971,
p. 9-10.
188 MICHAEL W. APPLE

posição natural consiste basicamente em adotar o ponto de vista do


senso comum, de agir dentro do senso comum, ao passo que adotar a
posição teórica consiste em distanciar-se do senso comum e estudar o
senso comum para determinar sua natureza.

Ou seja, para Douglas e para mim, é preciso distanciar-se de


qualquer compromisso com a utilidade do emprego de suposições,
de modo que possam se tornar objeto de estudo. Dessa forma,
nossas pressuposições podem ser utilizadas como dados para enfo­
car o significado latente de grande parte do que inquestionavel­
mente fazemos nas escolas. Isto é particularm ente im portante, por­
que fornece a lógica básica que organiza nossa atividade e que em
geral atua como orientação tácita para determ inar o êxito ou o
fracasso de nossos procedimentos educacionais.
Não se trata, porém, de que essas configurações ideológicas
foram construídas conscientemente. O próprio fato de serem hege­
mônicas, e de serem aspectos de todo nosso ‘‘corpo de práticas,
expectativas e compreensão comum” , torna-as ainda mais difíceis
de lidar. Seu questionamento é difícil porque se baseiam em supo­
sições que são inarticuladas e que parecem essenciais à realização de
algum progresso em educação. Mas outros fatores contribuem para
a falta de discernimento crítico. Na área de educação, essas confi­
gurações são acadêmica e socialmente respeitáveis e são sustentadas
pelo prestígio de um processo que “ apresenta todos os sinais de ser
um a tradição válida, que não prescinde de tabelas de números e de
um a profusão de notas de rodapé e terminologia científica” . Além
do mais, os elementos altruístas e hum anitários dessas posições são
bastante claros, de modo que é difícil concebê-los como funcio­
nando principalmente para depreciar nossa capacidade de resolver
problemas sociais ou educacionais.5
Entretanto, uma pesquisa da história de muitos movimentos
de reforma que foram apoiados por pesquisas e perspectivas seme­
lhantes àquelas que continuamos a considerar aqui comprova o
interessante fato de que em geral as reformas gradativas apresen­
taram resultados muito problemáticos. Freqüentemente, acabaram
por prejudicar os indivíduos para os quais se voltaram. É instrutiva
aqui a análise de Platt da reforma do sistema judicial do m enor em

(5) William Ryan. Blaming the Victim. New York, Random House, 1971,
p. 1-2.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 189

fins do século passado. Ao tentar criar condições mais hum anas


para a juventude “problem ática” , essas reformas criaram um a nova
categoria de desvio cham ada “ delinqüência juvenil” , que no final
das contas serviu para reduzir os direitos civis e constitucionais dos
jovens.6 De diversas maneiras, ainda temos de nos recobrar dessas
“reformas” . Como demonstrarei neste capítulo, muitas das reformas
propostas pelos burocratas das escolas e as pré-noções que se encon­
tram por trás delas tiveram o mesmo efeito — essencialmente o de
prejudicar em vez de ajudar, ocultar questões básicas e conflitos
éticos em lugar de contribuir para nossa capacidade de enfrentá-los
honestamente.
Isto é especialmente o caso quanto ao tema principal deste
Capítulo, o processo de utilização nas escolas de perspectivas, ava­
liações e rótulos, clínicos, psicológicos e terapêuticos especializados
(e “científicos” ). Essas formas de linguagem e as perspectivas que
incorporam podem ser interpretadas não como instrumentos liberais
de “ ajuda” , mas, de um ponto de vista crítico, como mecanismos
pelos quais as escolas se empenham em anonimizar e classificar
indivíduos abstratos nas áreas sociais, econômicas e educacionais
pré-ordenadas. O processo de rotulação, portanto, tende a fun­
cionar como um a forma de controle social,7 um sucedâneo avaliativo
para a longa linha de mecanismos com que as escolas procuram
homogeneizar a realidade social, eliminar as percepções divergentes
e empregar meios supostamente terapêuticos para criar consenso
moral, ético e intelectual.8 Em nossa corrida por “ ajudar” , quase
sempre deixamos para segundo plano o fato de que esse processo
possa estar arrefecendo, de que o capital cultural daqueles que se
encontram no poder é utilizado como se fosse natural, aumentando,
assim, tanto o falso consenso quanto o controle econômico e cul­
tural, de que resulta a eliminação da diversidade, e que ignora a
importância do conflito e da surpresa na interação hum ana.

(6) Anthony Platt. The Child Savers: The Invention o f Delinquency. Univer­
sity of Chicago Press, 1969. Ver também Steven L. Schlossman. Love and the
American Delinquent. University of Chicago Press, 1977.
(7) Edwin M. Schur. Labeling Deviant Behavior. New York, Harper & Row,
1971,p. 33.
(8) Quanto à dominância de uma ética de controle social nas escolas, ver Cla­
rence Karier, Paul Violas e Joel Spring. Roots o f Crisis. Chicago, Rand McNally,
1973; e Barry Franklin. “The Curriculum Field and Social Control” . Tese de douto­
ramento não publicada, University of Wisconsin, 1974.
190 MICHAEL W. APPLE

Nada há de estranho quanto ao fato de em geral não enfo­


carmos os conjuntos básicos de suposições que utilizamos. Primeiro,
são conhecidos apenas de modo tácito, permanecem sem expressão e
são muito difíceis de formular explicitamente. Segundo, essas regras
básicas fazem de tal modo parte de nós, que não têm de ser expres­
sas. Pelo próprio fato de serem suposições compartilhadas, produto
de grupos específicos, e de serem comumente aceitas pela maioria
dos educadores (se não pela maioria das pessoas em geral), tornam-
se problem áticas apenas quando um indivíduo as infringe, ou então
quando um a situação rotineira torna-se significativamente altera­
da.9 Contudo, se devemos ser honestos para com as exigências de
um a análise rigorosa, é necessária um a investigação crítica dos
padrões de rotina de nossa experiência cotidiana.

Sobre a necessidade de consciência crítica

A área do currículo e a educação como um todo têm estado


voltadas p ara reformas graduais. Isto é compreensível, em vista da
ideologia liberal que orienta a maioria da atividade educacional e
em vista das pressões e do interesse da área em servir às escolas e aos
seus programas e objetivos. A acentuada absorção nas reformas
parciais causou, porém, alguns efeitos muito prejudiciais. Não ape­
nas nos forçou a ignorar questões e pesquisas que poderiam no final
das contas contribuir para nossa compreensão básica do processo de
escolarização,10 mas um a orientação como essa despreza'o papel
decisivo a ser desempenhado pela crítica, caso um a área deva per­
manecer vital. Uma atitude crítica é im portante por diversas razões.
Primeiro, os especialistas em currículo ajudam a estabelecer e a
m anter instituições que afetam aos estudantes e a Outros num a
multiplicidade de formas. Em virtude desses efeitos, devem estar
conscientes das razões e intenções que os orientam. Isto é espe­
cialmente verdadeiro quanto às finalidades ideológicas e políticas,

(9) Douglas, op. cit., p. 181. Ver também a discussão de regras de interpre­
tação e normativas em Aaron Cicourel. "Basic and Normative Rules in the Nego­
tiation of Status and Role” . Recent Sociology, n. 2. Hans Peter Dreitzel (org.). New
York, Macmillan, 1971, p. 4-45.
(10) Herbert M. Kliebard. “Persistent Curriculum Issues in Historical Pers­
pective” . Curriculum Theorizing: The Reconceptuaiists. William Pinar (org.). Ber­
keley, McCutchan, 1975, p. 39-50.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 191

manifestas e latentes.11 Como venho demonstrando ao longo desta


obra, de vez que as escolas como instituições estão tão interligadas
com outras instituições econômicas e políticas, e de vez que as
escolas em geral atuam sempre no sentido de distribuir conhe­
cimento e valores tanto através do currículo manifesto quanto do
oculto, que em geral atuam para apoiar essas mesmas instituições, é
necessário que os educadores se empenhem em analisar as formas
pelas quais permitem que valores e compromissos inconsciente­
mente operem através deles.
Segundo, é im portante dem onstrar que a própria atividade de
investigação racional exige um estilo crítico. A área do currículo tem
se caracterizado em demasia pela aceitação de posturas que descon­
sideram a complexidade da pesquisa e não tem realmente m udado
suas perspectivas básicas por décadas. Tem sido considerada com as
noções de sistematicidade, confiabilidade e controle como o ideal da
atividade program ática e conceituai, em seu enfoque da pesquisa e
de pessoas. Isto está vigorosamente espelhado na tendência de obje­
tivos “com portam entais” e na disputa por taxonomias que codificam
o comportamento “cognitivo” , “ afetivo” e “psicomotor” . Essas ati­
vidades se fundam num a concepção de racionalidade que é hoje
ineficiente. Não apenas é um tanto limitativa,12mas também histórica
e empiricamente inexata.
Nossa visão postula um a concepção de racionalidade baseada
na ordenação de crenças e conceitos em estruturas lógicas estreitas e
nos paradigm as vigentes que parecem prevalecer na área do currí­
culo em um dado momento. Ainda, qualquer concepção séria de
racionalidade deve estar relacionada não às posições intelectuais
específicas que um grupo profissional ou um indivíduo emprega em
um dado momento, mas, pelo contrário, as condições em que e à
maneira como este campo de estudo está preparado para criticar e

(11) Novamente estou utilizando o conceito de ideologia para me referir em


parte às visões de mundo fundadas no senso comum mantidas por grupos específicos,
nào apenas como visões "politicamente” parciais. Isto se segue da afirmação de
Harrys de que “as ideologias não são descrições disfarçadas do mundo, mas sim
descrições reais do mundo a partir de um ponto de vista específico, exatamente como
todas as descrições do mundo provêm de um determinado ponto de vista” . Nigel
Harris. Beliefs in Society: The Problem o f Ideology. Londón, A. Watts, 1968, p. 22.
(12) Veja-se a análise de Susanne Karier da necessidade de formas discursivas
e não discursivas de racionalidade em sua Philosophy in a New Key. New York,
Mentor, 1951.
192 MICHAEL W. APPLE

mudar essas doutrinas aceitas.13 Dessa forma, o fluxo intelectual,


não a “ imutabilidade intelectual” , é a ocorrência esperada e nor­
mal. O que se tem de explicar não é por que deveríamos m udar
nossa estrutura conceituai básica, mas, sim, a estabilidade ou a
cristalização das posturas que um a área utilizou durante um certo
tem po.14
A cristalização e a falta de m udança de perspectivas funda­
mentais não constitui de forma alguma um problema novo na área
do currículo. De fato, fez-se um esforço im portante na década de 40
para identificar e considerar exatamente esse interesse.15 O fato de
que muitos especialistas em currículo não estão conscientes das
verdadeiras tradições de abordagem da tendência da área para
fortalecer suas posições evidentemente aponta para a necessidade de
que se dê mais atenção à análise histórica na área do currículo.
O conservantismo intelectual freqüentemente é coerente com
um conservantismo social. Não se trata de que um a perspectiva
crítica seja importante “simplesmente” por inform ar a estagnação
da área do currículo. O que é ainda mais decisivo é o fato de que é
preciso encontrarem-se meios para esclarecer as formas concretas
como a área do currículo apóia os amplos interesses no controle
técnico da atividade hum ana, na racionalização, na manipulação,
“ incorporação” e burocratização da ação individual e coletiva, e na
destruição do estilo pessoal e da diversidade política. Estes são
interesses que prevalecem em sociedades industriais avançadas, e
contribuem muito para o sofrimento das minorias sociais e das
mulheres, para a alienação dos jovens, para a insatisfação e a falta
de sentido do trabalho para um a grande parcela da população, e
para a sensação cada vez maior de impotência e cinismo que pare­
cem predom inar em nossa sociedade. Os especialistas em currículo e
outros educadores precisam estar conscientes de todas essas conse-
qüências, embora existam poucas análises profundas do papel de­
sempenhado por nossa postura fundada no senso comum, forçando-
nos a um a relativa impotência diante desses problemas.
Em bora os educadores consistentemente tentem representar a
si mesmos como “científicos” , referindo-se aostatus “ científico” (ou

(13) Stephen Toulmin. Human Understanding: The Collective Use and Evo­
lution o f Concepts. Princeton University Press, 1972, p. 84.
(14) Ibid., p. 96.
(15) Alice Miel. Changing the Curriculum: a Social Process. New York,
D. Appleton-Century, 1946.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 193

técnico) e, por isso, neutro de sua atividade para lhe dar legiti­
midade, estão ignorando o fato de que boa parte da pesquisa atual­
mente realizada em Ciências Sociais está sendo vigorosamente criti­
cada por seu apoio a suposições e instituições burocratizadas que
negam dignidade e opção significativa ao indivíduo e a grupos de
pessoas. Esta crítica não pode ser facilmente afastada pelos educa­
dores, pois, ao contrário da atividade de muitas pessoas, a sua
exerce influência direta sobre o presente e o futuro de milhares de
crianças. Por serem a prim eira instituição por que passam os indi­
víduos para se tornarem adultos “competentes” , as escolas dão às
crianças pouca opção quanto aos meios pelos quais elas vivem seu
destino social. Como vimos e veremos, a terminologia “ científica
neutra” atua como um a tradição para ocultar este fato e, assim,
torna-se mais ideológica que ú til.16
Talvez um a das razões fundamentais da estagnação social e
intelectual da área implica nossa falta de interesse por um a tradição
menos positivista, um a falta de interesse que reflete o ideal posi­
tivista ensinado aos alunos. Temos estado pouco abertos a formas de
análise que efetivamente contrabalançariam nosso uso de marcas de
pensamento que incorporam os interesses de controle e confiabi­
lidade técnica e social. Essa falta de abertura nos levou a sermos
descuidados com as funções dos próprios sistemas de linguagem que
utilizamos e a menosprezar áreas cuja força está em seu interesse
por um a perspectiva crítica. Isto irá exigir um exame mais atento.

As coisas são como parecem?

Enfoquemos primeiro os recursos lingüísticos que utilizamos


para nos referir aos “estudantes” nas escolas. M inha proposição
básica será que boa parte de nossa linguagem, embora aparen­
temente neutra, não é neutra em seus efeitos nem imparcial com
relação às instituições de ensino existentes. Uma tese subjacente a
este argumento é de que nossa convicção de que as “técnicas neutras
da ciência e tecnologia” fornecerão soluções para todos os dilemas
com que nos defrontamos está mal colocada e tende a ocultar o fato

(16) Isto se encontra discutido também em Michael W. Apple. "The Process


and Ideology of Valuing in Educational Settings” . Educational Evaluation: Analysis
and Responsability. Michael W. Apple, Michael J. Subkoviak e Henry S. Lufler, Jr.
(orgs.). Berkeley, McCutchan, 1974, p. 3-34.
194 MICHAEL W. APPLE

de que boa parte de nossa pesquisa educacional serve e justifica os


sistemas de controle técnico, cultura] e econômico já existentes, os
quais aceitam como dada a distribuição de poder na sociedade
norte-am ericana.17 Boa parte desta discussão será estim ulada por
intuições provenientes da recente “teoria crítica” e da tradição
neo-marxista, em especial da forte noção de que nossas perspectivas
básicas ocultam nossas relações “ concretas” com outras pessoas
com quem partilham os conteúdos reais e simbólicos. A análise
utilizará idéias da pesquisa sobre o processo de rotulação para
aproxim ar essa questão inicial ao nosso caso.
Uma análise do processo de rotulação tem aqui im portância
considerável, pois a rotulação é o projeto final de nossos modos de
avaliar nossas próprias ações e as dos estudantes. Está diretamente
relacionada aos princípios que se acham por trás das práticas em
que nos empenhamos para diferenciar os estudantes de acordo com
sua “competência” e sua posse de determinados tipos de capital
cultural. Assim, como demonstrou Ian H extall:18

A diferenciação, (...) classificação [e avaliação] que realizamos nas


escolas está articulada com a divisão social do trabalho mais ampla,
mais abrangente. Isto não é reivindicar que exista uma ligação direta,
total e exata, entre diferenciação em educação e, digamos, a divisão
dos postos de trabalho. Naturalmente, uma suposição como essa seria
mecanicista e fácil. Mas, por meio de nossas atividades [de avaliação]
estamos ajudando a estabelecer a estrutura geral da força de trabalho
que o mercado por fim redistribui em categorias ocupacionais espe­
cíficas. Dessa forma, os procedimentos que ocorrem nas escolas
fazem parte do contexto político-econômico em que elas se localizam.
As diferenciações, as avaliações e o juízo de valor realizados nas es­
colas estão fortemente relacionados com formas precisas da divisão
social do trabalho.

(17) Podem-se encontrar enfoques perspicazes dessa tese em Roger Dale et al.
Schooling and Capitalism. London, Routledge & Kegan Paul, 1976; Dennis Gleeson
(ed.). Identity and Structure. Driffield, Nafferton Books, 1977; e Trent Schroyer.
“Toward a Critical Theory for Advanced Industrial Society” . Recent Sociology,
n. 2. Hans Peter Dreitzel(org.). New York, Macmillan, 1970, p. 210-34.
(18) Ian Hextall. “Marking Work” . Exploration in the Politics o f School
Knowledge. Geoff Whitty e Michael Young(orgs-). Driffield, Nafferton Books, 1976,
p. 67.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 195

Portanto, de vez que um meio bastante significativo pelo qual


os alunos são cultural e economicamente estratificados é através da
atribuição a eles de valores e categorias, é fundamental que exami­
nemos esses princípios e valores sociais do senso comum. Para isso,
precisamos recordar que alguns tipos de capital cultural — tipos de
desempenho, conhecimento, tendências, auto-realização e propen­
sões — não são intrinsecamente bons. Pelo contrário, tornaram -se
assim por causa das suposições específicas consideradas como cer­
tas. São em geral histórica e ideologicamente “condicionados” . As
categorias que utilizamos para pensar o que estamos fazendo com os
estudantes, o êxito e o fracasso deles e nosso, estão compreendidos
num processo de avaliação social. Os princípios básicos que utili­
zamos para planejar, ordenar e avaliar nossa atividade — concep­
ções de desempenho, de êxito e fracasso, de bons e maus alunos —
são construções sociais e econômicas. Não são autom aticam ente
inerentes a indivíduos ou grupos. Pelo contrário, são exemplos da
aplicação de regras sociais identificáveis ao que se deve considerar
bom ou m au desempenho.19 Desse modo, as próprias formas como
nos referimos aos estudantes fornecem excelentes exemplos dos
mecanismos através dos quais operam as ideologias dominantes. E
as últimas investigações dos teóricos críticos, quando criticamente
usadas, podem ser muito úteis para revelar esses mecanismos.
A palavra “ criticamente” é de im portância considerável aqui.
Há riscos de se empregar a própria teoria crítica não criticamente,
em especial porque ela tendeu a se tornar cada vez mais separada do
estudo de economia política que tão bem a complementa. Com esses
riscos em mente, porém, quero utilizar alguns aspectos do plano da
teoria crítica como modos de revelar como funciona a consciência do
intelectual. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos recordar que,
da mesma forma como um a posição demasiadamente determ inista e
economicista, por considerar as escolas como caixas negras, está
muito lim itada a um program a para que entenda como as escolas
criam o que os economistas políticos querem analisar, também
existem limitações significativas em qualquer análise totalmente
“cultural” .20 As duas precisam, antes, estar integradas p ara expli-

(19) Apple. “The Process and Ideology of Valuing in Educational Settings”.


Op. cit.
(20) Ver Phil Slater. Origin and Significance o f the Frankfurt School. Lon­
don, Routledge & Kegan Paul, 1977. Ver também a discussão de Marx da relação
196 MICHAEL W. APPLE

car completamente os papéis que as escolas desempenham na repro­


dução cultural e econômica das relações de classe. Portanto, a com­
binação de partes selecionadas do program a cultural dos teóricos
críticos (seu enfoque do controle da linguagem e da consciência, por
exemplo) com as teorias econômicas mais específicas das últimas
interpretações m arxistas da escola (as formas como a escola cola­
bora na “ alocação” de estudantes às posições adequadas na socie­
dade mais ampla, por exemplo) pode fornecer algum discernimento
quanto ao modo como as instituições educacionais ajudam a criar as
condições que sustentam esse sistema de alocações econômicas.
Antes de começar, porém, seria sensato examinar algumas
explicações possíveis da razão por que a crítica marxista teve uma
influência pouco significativa em nosso pensamento fundado no
senso comum. Isto é estranho, de vez que é considerada excepcio­
nalmente forte em outras áreas e na Europa, onde exerceu signifi­
cativa influência no pensamento filosófico e sociológico francês e
alemão, por exemplo, e nas práticas políticas e econômicas de
grandes grupos de pessoas.21
Existem várias razões por que a tradição marxista recons­
truída não encontrou um lugar sério na pesquisa educacional anglo-
americana. Em bora, historicamente, o marxismo ortodoxo tenha
influenciado, na década de 30, educadores como Counts e outros,
perdeu sua força devido à situação política que se seguiu, especial­
mente ao clima político repressor que ainda não superamos de todo.
A esse problema, é claro, podem-se acrescentar as interpre­
tações excessivamente deterministas e dogmáticas de aplicação da
análise marxista por muitos “ m arxistas” . Parte do problem a de se
aplicar pontos de vista críticos a sociedades industriais avançadas
como a nossa está em libertar esses pontos de vista de seu funda­
mento nesse dogmatismo.22 Não se deveria dizer, mas infelizmente é

dialética entre infra-estrutura e superestrutura no Capital, v. 1. New York, New


World, 1967, p. 459-507.
(21) Cf. Jean-Paul Sartre. Search for a Method. New York, Vintage Books,
1963; e Andre Gorz. Strategy for Labor. Boston, Beacon Press, 1967.
(22) Ver, por exemplo, a representação bem escrita da falta de dogmatismo
de Marx em Michael Harrington. Socialism. New York, Bantham Books, 1972. Para
uma reavaliação do suposto determinismo econômico de Marx, uma que reage a essa
interpretação, ver Bertell Oilman. Alienation: M arx’s Conception o f Man in Capi­
talist Society. Cambridge University Press, 1971.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 197

necessário, que a natureza rigidamente controlada de diversas socie­


dades modernas guarda pouca relação com as análises singular-
mente convincentes que se encontram na própria tradição marxista.
Nosso desprezo dessa tradição se relaciona mais ac passado da
sociedade norte-am ericana dominado pelo medo que aos méritos da
tradição crítica (em geral inexplorada). Tam bém confirma a idéia
que mencionei no início desta obra. A própria tradição tornou-se um
exemplo da forma como opera a tradição seletiva. Tornou-se vítima
da política de distribuição do conhecimento na medida em que
esquecemos nossas origens nesses interesses.
Há, ainda, outras explicações mais básicas e menos excessi­
vamente políticas para a atrofia e a falta de aceitação de um a
tradição intelectual e política m arxista em países como os Estados
Unidos. A visão atomista, positivista e rigorosamente empiricista,
tão predom inante em nosso pensamento (e muito eficientemente
ensinada, como vimos no Capítulo 5), tem dificuldades com a noção
criticamente orientada da necessidade de pluralidade e de conflitos
quanto às formas de se ver o mundo. Quanto a isso, a tradição
crítica m antém um a posição muito semelhante à da fenomenologia,
na medida em que a “verdade” de alguma coisa só pode ser vista
através do emprego da totalidade de perspectivas que se pode lançar
sobre ela. (Em bora, é claro, algumas são mais básicas que outras,
na medida em que as sutis interpretações econômicas, de classe e
culturais adotam um a função de organização nas questões formu­
ladas por essa tradição crítica.)23
Tam bém , a tendência nas sociedades industrializadas ociden­
tais de separar estritam ente o valor do fato dificultaria a aceitação
de um a posição que afirma que a maioria das categorias sociais e
intelectuais são avaliativas em si mesmas e podem refletir compro­
missos ideológicos, fato que irá adquirir importância excepcional
nesta discussão. Ademais, a longa tradição do individualismo abs­
trato e de um a visão fortemente utilitarista sem dúvida afastaria
tanto um a concepção mais social do “ homem” quanto um compro­
misso ideal que fosse menos propenso a ser gradualista e mais pro-

(23) Essa inter-relação sutil entre as interpretações culturais e de classe é


muito bem descrita por Terry Eagleton. Marxism and Literary Criticism. Berkeley,
University of California Press, 1976. Para uma discussão da teoria fenomenológica da
"verdade” , ver Aron Gurwitsch. The Field o f Conciousness. Pittsburgh, Duquesne
University Press, 1964, p. 184.
198 MICHAEL W. APPLE

penso a despertar questões básicas acerca da pròpria estrutura da


vida social e cultural que a sociedade aceita como d ada.24
Contrariam ente às suposições atomistas predominantes em
nosso pensamento fundado no senso comum, como vimos, um ponto
de vista crítico geralmente vê qualquer objeto “relacionalmente” .
Esta é um a chave im portante para entender o tipo de análise em que
se poderia ingressar a partir de um a perspectiva como essa. Isto
implica duas coisas. Primeiro, qualquer objeto de estudo deve ser
visto com relação a suas origens históricas — como se desenvolveu,
de que condições surgiu, etc. — e suas contradições latentes e ten­
dências para o futuro. Este é o caso, porque, no m undo altamente
complexo da análise crítica, as estruturas existentes são na verdade
alguma coisa semelhante a um movimento contínuo. Contradição,
m udança e desenvolvimento são a norm a e qualquer estrutura insti­
tucional é “ apenas” um estágio do processo.25 Portanto, a reificação
institucional torna-se problemática, como os padrões de pensamento
que sustentam essa falta de m udança institucional. Segundo, qual­
quer objeto de estudo é definido não apenas por suas características
evidentes, mas por seus vínculos menos claros com outros fatores.
São esses vínculos ou relações que tornam o tem a o que é, e que lhe
conferem seus primeiros significados.26 Desse modo, é considera­
velmente am pliada nossa capacidade de esclarecer a interdependên­
cia e interação dos fatores.
Aceitar essa visão relacional significa naturalm ente opor-se ao
conceito tradicional de que o que vemos é como parece. De fato,
somos enganados pelas suposições que damos por certas, o que
constitui um a limitação muito grave ao nosso pensamento e ação.
Isto é, qualquer coisa é sempre mais do que parece ser, especial­
mente quando se lida com instituições complexas e inter-relacio­
nadas, entre as quais se incluem as escolas.27 Será exatamente isto

(24) Charles Taylor. "Marxism and Empiricism” . British Analytic Philoso­


phy Bernard Williams e Alan Montifiore (orgs.). New York, Humanities Press, 1966
p. 227-46.
(25) Bertell Oilman, op. cit. , p. 18.
(26) Ibid. , p. 15. Denominou-se essa posição de “filosofia das relações inter­
nas . Estranhamente, essa visão tem uma longa tradição no pensamento norte-ame­
ricano, até mesmo na filosofia educacional. Ver, por exemplo, o trabalho de Whi­
tehead Process and Reality.
(27) Ibid., p. 90.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 199

que nos possibilitará fazer progressos em revelar ainda mais algu­


mas das funções ideológicas da linguagem educacional.
Pode-se fazer um a última observação. Historicamente, a teo­
ria crítica e boa parte da análise neomarxista foram reduzidas a
variantes do pragmatism o, especialmente por autores como Sidney
Hook e outros. Em bora não queira desm ascarar a tradição pragm á­
tica na educação norte-am ericana (afinal, ainda temos muito por
aprender com um estudo sério da análise de Dewey dos meios e fins
na educação, por exemplo), quero de fato fazer um a advertência
quanto ao ajustamento da análise crítica a nossas regras constitu­
tivas consideradas como certas. Este ajustam ento significa um a
perda do potencial de um a perspectiva crítica de ultrapassar algu­
mas das verdadeiras tendências conformistas do pragmatismo.
A posição pragm ática tende a ignorar a possibilidade de que algu­
mas teorias devem contradizer a realidade presente e, de fato, tra ­
balhar consistentemente contra ela.28 Essas críticas são testemunhas
da negatividade implícita em muitos program as institucionais cor­
rentes (econômicos, culturais, educacionais, políticos) e, portanto,
podem esclarecer a possibilidade de m udança significativa. Dessa
forma, o ato de crítica contribui para a emancipação na medida em
que mostra a forma como as instituições lingüísticas ou sociais
foram reificadas, ou coisificadas, de modo que os educadores e o
público em geral esqueceram por que surgiram e que as pessoas as
criaram — e podem, portanto, m udá-las.29
Então, é dupla a intenção dessa crítica e dessa tradição crítica
em geral. Primeiro, visa esclarecer as tendências para dominação,
alienação e repressão, injustificadas e quase sempre inconscientes,
em algumas instituições culturais, políticas, educacionais e econô­
micas. Segundo, através da exploração de efeitos negativos e contra­
dições de muito do que inquestionavelmente se passa nessas insti­
tuições, procura “promover a atividade de libertação [individual e
coletiva] consciente” .30 Isto é, examina o que deve estar aconte­
cendo, digamos, nas escolas quando se adota seriamente a lingua-

(28) Martin Jay. The Dialectical Imagination. Boston, Little, Brown, 1973,
p. 83. Quanto a uma história da posição ideológica adotada por muitos dos pragmá­
ticos em educação, ver Walter Feinberg. Reason and Rhetoric. New York, John
Wiley, 1975.
(29) Ibid., p. 268.
(30) Trent Schroyer. The Critique o f Domination. New York, George Bra-
ziller, 1973, p.30-1.
200 MICHAEL W. APPLE

gem e os slogans de muitos dos burocratas das escolas e então


mostra como essas coisas realmente agem de m aneira a destruir a
racionalidade ética e o poder institucional e político pessoal. Uma
vez que esse funcionamento real é submetido a exame minucioso,
tenta sugerir a atividade concreta que irá conduzir ao desafio dessa
atividade supostamente correta.

Linguagem institucional e responsabilidade ética

U m a das questões mais fortes levantadas há anos pela tradi­


ção crítica é nossa tendência para ocultar o que são as inter-relações
profundas entre as pessoas através do uso de um a linguagem mer­
cantil “ neutra” .31 A discussão de Williams da função ideológica do
indivíduo abstrato sugere parte desse problema. Os educadores não
são imunes a essa tendência. Isto é, os educadores desenvolveram
categorias e modos de percepção que reificam, ou coisificam, os
indivíduos, para que eles (os educadores) possam enfrentar os estu­
dantes antes como abstrações institucionais que como pessoas con­
cretas com as quais m antêm laços reais no processo de reprodução
cultural e econômica. Isto é compreensível, diante da complexidade
da educação em massa. No entanto, são profundas as implicações
do desenvolvimento dessa forma de linguagem e devem ser exami­
nadas acuradamente.
P ara realizar isso, um fato precisa ficar claro. De vez que as
categorias empregadas pelos especialistas em currículo e por outros
educadores são elas próprias construções sociais, tam bém implicam
a noção do poder de um grupo de “im por” essas construções sociais
a outros. Por exemplo, as categorias pelas quais diferenciamos
crianças “espertas” das “ tolas” , áreas “acadêmicas” de “ não aca­
dêmicas” , atividades de “ lazer” das de “ aprendizado” e mesmo
“estudantes” de “professores” são todas construções do senso co­
mum que surgiram da natureza das instituições existentes,32 Como
tal, devem ser consideradas como dados historicamente condicio­

(31) Shlomo Avineri. The Social and Politicai Thought o f Karl Marx. Cam­
bridge University Press, 1968, p. 117. Avineri coloca dessa forma: “ Em última
instância, uma mercadoria é uma expressão objetivada de uma relação intersubje-
tiva” .
(32) Michael F. D. Young. “ Knowledge and Control". Knowledge and Con­
trol. Michael F. D. Young(org.). London, Macmillan, 1971, p. 2.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 201

nados, não absolutos. Isto não quer dizer que sejam sempre neces­
sariamente erradas; pelo contrário, sugere a necessidade de com­
preendê-las pelo que são — categorias que se desenvolveram a partir
de situações sociais e históricas específicas que se conformam a um
modelo específico de suposições e instituições, cujo uso das cate­
gorias traz tam bém consigo a lógica das suposições institucionais.
Como mencionei, a própria área apresenta um a tendência
para “ disfarçar” as relações entre as pessoas como relações entre
“coisas” ou abstrações.33 Assim, questões éticas, como o problem a
profundam ente difícil relativo às formas pelas quais um a pessoa
pode procurar influenciar um a outra, não são geralmente enfocadas
como considerações importantes. É aqui que se tornam muito sérias
as categorias abstratas surgidas na vida institucional. Se um edu­
cador pode definir outro indivíduo como um “ aluno atrasado” , um
“problem a disciplinar” ou outra categoria geral, pode prescrever
“tratam entos” gerais que são aparentem ente neutros e úteis. No
entanto, pelo próprio fato de que as categorias se baseiam em abs­
trações institucionalmente definidas (o equivalente do senso comum
das médias estatísticas), o educador se liberta da tarefa mais difícil
de examinar o contexto institucional e econômico que fez com que
esses rótulos abstratos fossem atribuídos a um indivíduo concreto.
Portanto, a tentativa compreensível de reduzir a complexidade leva
ao uso de “tratam entos médios” aplicados para os que desempe­
nham papéis abstratos. Isto preserva o anonimato da relação inter-
subjetiva entre “educador” e “ aluno” , tão essencial caso devam
prevalecer as definições institucionais de situações. Protege, assim,
tanto a instituição quanto o educador de duvidarem de si mesmos e
da inocência e da realidade da criança.
Isto apresenta implicações im portantes, para a tradição crítica
do processo educacional. Usando categorias e construções acadê­
micas como as definidas pelas práticas institucionais existentes e
delas provenientes — cujos exemplos poderiam ser os estudos do
“ aluno atrasado” , “problemas disciplinares” e “ recuperação” — ,
os pesquisadores do currículo podem estar cedendo o prestígio retó­
rico de ciência ao que podem ser práticas inquestionáveis de um a
burocracia educacional34 e de um sistema econômico estratificado.

(33) Quanto à relação entre essa transformação de interação humana em


outras formas reificadas e uma estrutura política e econômica ideológica, ver
Ollmann, op. cit. , p. 198-9.
(34) Douglas, op. cit., p. 70-1.
202 MICHAEL W. APPLE

Isto é, não há um a tentativa rigorosa de examinar a culpabilidade


institucional. A noção de atribuição de culpabilidade tem grande
importância em minha análise. Scott deixa isto mais claro em sua
discussão dos efeitos de se rotular alguém como diferente ou des­
viado: 35

Uma outra reação comum ao se aplicar um rótulo de desviado a


alguém é que surge um sentimento na comunidade de que “se deveria
fazer alguma coisa quanto a ele”. Talvez o fato mais importante com
respeito a essa reação em nossa sociedade é que quase todos os passos
que se dão são dirigidos apenas ao desviado. Punição, reabilitação,
terapia, coerção e outros mecanismos comuns de controle social são
coisas que lhe fazem, implicando que as causas do desvio se encon­
tram na pessoa a quem o rótulo foi fixado, e que as soluções para os
problemas que apresenta podem ser alcançadas fazendo-se alguma
coisa por ela. Este é um fato curioso, especialmente quando exami­
nado em relação a essa base da pesquisa em Ciências Sociais sobre o
desvio que mostra de modo tão claro o papel crucial desempenhado
pelas pessoas comuns em determinar quem é rotulado de desviado e
como se comporta um desviado. Essa pesquisa sugere que nenhuma
das medidas de correção adotadas pode possivelmente ser bem-
sucedidas da forma pretendida, a menos que seja dirigida àqueles
que conferem os rótulos de desviado bem como àqueles em que são
aplicados. (Os grifos são meus.)

Em linguagem mais clara, na escola os estudantes são as


pessoas expressamente enfocadas. Dá-se primeiramente atenção a
seus “problem as” de comportamento, emocionais ou educacionais
específicos, e, portanto, existe um a forte tendência para afastar a
atenção tanto das inadequabilidades da própria instituição educa­
cional36 quanto de quais são as condições burocráticas, culturais e
econômicas que determ inaram originalmente a necessidade de se
aplicarem essas construções.
Vejamos agora um pouco mais aprofundadam ente a configu­
ração ideológica e ética que está em torno da idéia de culpabilidade.
Trata-se geralmente de que os rótulos institucionais, especialmente

(35) Robert A. Scott. “A Proposed Framework for Analysing Deviance as a


Property of Social Order” . Scott e Douglas, op. cit. , p. 15.
(36) Bonnie Freeman. “Labeling Theory and Bureaucratic Structures in
Schools” . Artigo nào publicado, University of Wisconsin, Madison, s/d.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 203

aqueles que implicam algum tipo de desvio, “ aluno atrasado” ,


“ problem a disciplinar” , “leitor fraco” , etc., podem mais um a vez
servir de “ tipos” encontrados nos contornos educacionais — atribuir
um status inferior aos que assim são rotulados. Isto é atingido por
meio de significados éticos. Geralmente o rótulo de “ desviado”
possui um a qualidade essencializadora, na medida em que a relação
total de um a pessoa (no caso, um estudante) com um a instituição é
condicionada pela categoria que se lhe aplica. Ela é isto e apenas
isto. A questão é semelhante à idéia de Goffmann de que a pessoa a
quem é aplicado o rótulo de desviado por outras pessoas ou insti­
tuições é geralmente vista como moralmente inferior, e freqüente-
mente se interpreta sua “condição” ou comportamento como prova
de sua “ culpabilidade moral” .37 Portanto, esses rótulos não são
neutros, pelo menos não em seu significado para a pessoa. Pelo
próprio fato de que os rótulos têm um quê de significação moral — a
criança não é apenas diferente, mas tam bém inferior —, sua apli­
cação produz um impacto profundo. D á ainda mais peso às idéias
que venho esclarecendo o fato de que esses rótulos, um a vez atri­
buídos, são perm anentes, devido à realidade orçam entária e buro­
crática de muitas escolas: restrições orçam entárias, as verdadeiras
relações estruturais existentes entre a escolarização e o controle
econômico e cultural, falta de conhecimento especializado para lidar
com os “problemas de aprendizado” de estudantes específicos, etc.,
tudo enfim que torna verdadeiramente difícil m udar realmente as
condições que fizeram com que a criança fosse um “ aluno atrasado”
ou qualquer outra categoria. De vez que apenas raram ente um
estudante é reclassificado,38 o efeito desses rótulos é imenso, pois
exigem formas de “ tratam ento” que tendem a confirmar a pessoa na
categoria institucionalmente aplicada.
Com freqüência se afirma que esses recursos retóricos como as
categorias e rótulos a que venho me referindo são na verdade usados
para ajudar a criança. Afinal, um a vez assim caracterizado, pode-se

(37) Scott, op. cit., p. 14. Ver também a discussão de desvio como uma
ameaça às pré-noções em Berger e Luckmann, op. cit.
(38) Cf. Aaron Cicourel e John Kitsuse. The Educational Decision-Makers.
Indianápolis, Bobbs-Merril, 1963. O fato de que esse processo de rotulação inicia-se
logo na entrada dos estudantes para a escola, com a progressiva cristalização dos
rótulos iniciais, acha-se documentado em Ray C. Rist. “ Student Social Class and
Teacher Expectation: The Self-Fulfilling Prophecy in Ghetto Education” . Harvard
Educational Review, XL(August, 1970), xx411-51.
204 MICHAEL W. APPLE

dar ao estudante “tratam ento adequado” . No entanto, pode ser


possível que, tendo-se em vista a realidade de vida nas escolas, e o
papel da escola na maximização da produção tanto de alguns tipos
de capital cultural quanto de agentes que são “ necessários” ao apa­
relho econômico de um a sociedade, a própria definição de um
estudante como alguém com necessidade desse determinado trata­
mento lhe é prejudicial.39 Como demonstrei, essas definições são
essencializadoras; elas tendem a ser generalizadas a todas as situa­
ções com que se defronta o indivíduo. Como exemplificado por
Goffmann, em “ instituições totais” — e as escolas com partilham de
muitas de suas características —, o rótulo e tudo o que vem com ele
será possivelmente usado pelos companheiros do indivíduo e por
seus responsáveis (por exemplo, outras crianças, professores e adm i­
nistradores) para defini-lo. Rege quase que toda a conduta para com
a pessoa e, o que é mais im portante, a definição no fim rege a
conduta do estudante para com esses outros, atuando assim para
apoiar um a profecia de auto-realização.40
M inha posição aqui não é negar que, no quadro institucional
da escolarização, existam “coisas” como “ alunos atrasados” , ou
“estudantes fracam ente motivados” que possamos identificar a p ar­
tir do senso comum, embora, como tenho discutido, essa linguagem
oculte a questão mais básica de pesquisar as condições em que um
grupo de pessoas rotula outras como desviadas ou aplica-lhes al­
gum a outra categoria abstrata. Pelo contrário, gostaria de m anter
que esse sistema lingüístico, como é aplicado comumente pelos
burocratas das escolas, não cumpre um a função psicológica ou cien­
tífica tanto quanto gostariam de supor. Claramente falando, serve
para abater e degradar aqueles indivíduos e classes de pessoas a
quem se conferem tão rapidam ente as designações.41
Um fato que submeteria essa discussão a um enfoque ainda
mais claro — isto é, que o processo de classificação, da forma como
funciona na pesquisa e na prática educacional, é um ato moral e
político e não um neutro ato de ajuda — é a prova de que esses
rótulos são maciçamente aplicados às crianças das minorias sociais

(39) Thomas S. Szasz. Ideology and Insanity. New York, Doubleday, 1970,
p. 149. O fato de que, uma vez assim rotulados os estudantes, fecham-se comple­
tamente outras oportunidades educacionais e econômicas é documentado com clareza
em James Rosenbaum. Making Inequality. New York, John Wiley, 1976.
(40) Erving Goff man. Asylums. New York, Doubleday, 1961.
(41) Szasz, op. cit., p. 58.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 205

pobres e étnicas, muito mais que aos filhos dos que são economi­
camente privilegiados e politicamente poderosos.
Além da documentação histórica apresentada no Capítulo 4,
existe um a recente e forte prova empírica para defender parte das
idéias aqui expostas. Por exemplo, vem confirmar esse quadro a
análise de M ercer do processo pelo qual instituições como as escolas
rotulam indivíduos como, digamos, m entalmente retardados.4243 São
desproporcionalmente rotuladas crianças com formações sócio-cul­
turais “ desviantes” e oriundas de grupos minoritários. Isto se deve
basicamente aos procedimentos de pesquisa nas escolas originados
quase que totalmente do que a autora chamou de dominância de
“ anglocentrismo” nas escolas, um a forma de etnocentrismo que faz
com que os burocratas das escolas atuem como se o estilo de vida,
a linguagem, a história e a estrutura de valor e normativa de seu
próprio grupo fossem as orientações “ basicas” com relação às quais
se deveria medir a atividade de todas as outras pessoas. Não apenas
os estudantes de formações sócio-econômicas inferiores e não bran ­
cas eram desproporcionalmente rotulados, mas, o que é ainda mais
im portante, os estudantes méxico-americanos e negros, por exem­
plo, que recebiam o rótulo de retardados mentais eram na verdade,
menos “ desviados” que os brancos. Isto é, tinham QI mais alto que
os “ anglos” que eram assim rotulados. Em vista dos argumentos de
Bourdieu citados no Capítulo 2, isto não nos deveria surpreender.
Ainda um outro fato deveria ser observado. A escola foi em
geral a única instituição a rotular esses estudantes “ desviantes”
como retardados, principalmente em virtude das pre-noções predo­
minantes de normalidade m antidas pelos burocratas das escolas.
Esses estudantes se saíram muito bem, um a vez fora das fronteiras
dessas instituições.
M ercer está correta ao menos em parte quando atribui essa
superdistribüição de designação de retardado mental à “ m aquina­
ria” diagnóstica, avaliativa e de teste da escola.4' Baseada como é
em formulações estatísticas que se conformam às suposições insti­
tucionais problem áticas relativas a normalidade e desvio extraídas
das estruturas econômicas e políticas existentes e freqüentemente
parciais, desempenha um im portante papel no processo de canalizar

(42) Jane R. Mercer. Labeling the Mentally Retarded. Berkeley, University of


California Press, 1973.
(43) Ibid. , p. 96-123.
206 MICHAEL W. APPLE

alguns tipos de estudantes em categorias preexistentes. O fato


lamentável de que essa m áquina de avaliação e recuperação, supos­
tam ente de auxílio, não satisfaz a realidade da criança é compro­
vado com o im portante estudo de Mehan da reconstrução por crian­
ças supostamente “ norm ais” do significado de um a situação de teste
e dos próprios instrumentos de avaliação.44 Fundam entalm ente,
o que ele descobriu foi que, mesmo nos testes de avaliação mais
individualizados, os que os aplicavam estavam propensos a usar
rótulos especulativos e imprecisos para resumir resultados ainda
mais especulativos e imprecisos. Os testes escolares na verdade obs­
cureceram a compreensão real das crianças dos materiais e tarefas,
não deram conta das diversas capacidades das crianças de racioci­
nar adequadam ente e não m ostraram “ as decisões de quantificação”
discutidas, ligadas ao contexto, que o aplicador de teste faz en­
quanto computa o comportamento das crianças como “correto”
ou “incorreto” . Em bora isto fosse especialmente verdadeiro quanto
às crianças “ desviantes” (neste caso, de língua espanhola), era
também notavelmente verdadeiro para todos os outros estudantes.
Se essa pesquisa está correta, dada a intensa pressão hoje por
“ responsabilidade” , a dominância da linha de teste processo-pro­
duto, então, sem dúvida levará a instituições ainda mais problem á­
ticas, anônimas e parciais do ponto de vista cultural e econômico,
devido aos rótulos que se originam do próprio processo de avaliação.
Não se pode subestim ar a importância que se dá aos testes nas es­
colas. Os rótulos que provêm dessas avaliações não são facilmente
abalados, e são de fato utilizados por outras instituições para pros­
seguir a atribuição de definições iniciada pela escola.
Isto é, deveria ficar claro que a escola não apenas desempenha
um a função central de atribuir rótulos às crianças no processo de
diferenciá-las e, assim, distribuir diferentes conhecimentos, tendên­
cias e visões de si mesmo a cada um desses grupos rotulados, mas,
tão im portante quanto isso, a escola ocupa a posição central num a
grande rede de outras instituições. Os rótulos imputados pelas esco­
las públicas são tomados de empréstimo por instituições jurídicas,

(44) Hugh Mehan. "Assessing Children’s School Performance” . Childhood


and Socialization. Hans Peter Dreitzel (org.). New York, Macmillan, 1973, p. 240-64.
Para maior discussão da forma como os modos dominantes de avaliação educacio­
nal ignoram a realidade concreta dos estudantes e funcionam de maneira política e
epistemológica conservadora, ver Apple. "The Process and Ideology of Valuing in
Educational Settings”, op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 107

econômicas, de saúde e com unitárias para definir o indivíduo tam ­


bém sem seu contato com elas.45
Portanto, enquanto instituições fortemente influenciadas por
modelos operacionais estatísticos e “ científicos” para definir norm a­
lidade e desvio, modelos que são consistentemente parciais diante
das regularidades sociais existentes, as escolas parecem ter um efeito
desproporcional em rotular estudantes. Como as escolas públicas
dependem quase que exclusivamente de um modelo estatístico para
seu quadro normativo, criam categorias de desvio que são preen­
chidas por indivíduos oriundos principalm ente de grupos sócio-eco-
nômicos inferiores e minorias étnicas.46 Deveriam ser evidentes as
implicações éticas, políticas e econômicas dessa criação de identi­
dades desviadas.
Isto torna muito significativa a noção de que o único meio
sério de entender a imputação de rótulos nas escolas é analisar as
suposições subjacentes às definições de competência que estes acar­
retam; e isto só pode ser feito em termos de um a pesquisa daqueles
que estão num a posição para impor essas definições.47 Portanto, a
noção de poder (qual o grupo econômico ou classe social que real­
mente o detém e como ele está sendo realmente usado) torna-se
fundam ental se devemos entender por que algumas formas de signi­
ficados sociais — a escolha autoritária a que se refere Blum num
trecho citado no início deste capítulo — são utilizadas para selecio­
nar e organizar o conhecimento e as visões empregadas pelos edu­
cadores p ara compreender, ordenar, avaliar e controlar a atividade
em instituições educacionais.

Poder e rotulação

A im portância, para nossa compreensão do processo de rotu­


lação, de um sentido da forma como opera o poder não deve ser
subestimada ao menos por um a determ inada razão. Tem-se desen­
volvido nos últimos anos um grande corpo de pesquisas sobre rotu­
lação. Foi fortemente influenciado pela fenomenologia social, pelo

(45) Mercer, op. cit. , p. 96.


(46) Ibid., p . 60-1.
(47) Michael F. D. Young. "Curriculum and the Social Organization of
Knowledge” . Knowledge, Education, and Cultural Change. Richard Brown (org.).
London Tavistock, 1973, p. 350.
208 MICHAEL W. APPLE

interacionismo simbólico e por outras perspectivas que tendem a


ver, em parte corretam ente, que os rótulos, como a “ realidade” , são
construções sociais.48 Porém essa tradição muito fenomenológica
tem geralmente estado pouco vinculada ao que chamei de análise
relacional. Por isso, precisamos ter desconfiança das limitações
significativas na análise comum de categorias e rótulos empreendida
por teóricos da rotulação e outros.
De fato, um enfoque não relacional da rotulação, um enfoque
que não esteja francam ente preocupado com as conexões entre o
poder econômico e cultural e as escolas, pode nos levar a um a
arm adilha conceituai e política em que com freqüência têm caído as
pesquisas feitas pelos “interacionistas simbólicos” , teóricos da rotu­
lação e sociólogos fenomenólogos da escola.49 Examinando o pro­
cesso de rotulação (aqui como um indicador da forma como a satu­
ração ideológica da mente dos educadores opera de fato na vida
escolar cotidiana), podemos esquecer que ê um indicador de alguma
coisa que está além de si próprio também. Pois, como demonstrou a
passagem de Whitty citada no início desta obra, o mero fato de que
essas categorias e rótulos são construções sociais não explica por que
existe esse determinado conjunto nem por que é tão contrário à
mudança.
A discussão de Sharp e Green da relação entre poder e rotu­
lação em seu estudo etnográfico de um a escola prim ária inglesa da
classe operária fornece várias observações significativas sobre esse
risco. Para Sharp e Green, a fenomenologia social, o interacionismo
simbólico, a teoria da rotulação e assim por diante não fornecem um
quadro analítico adequado para entender por que a estratificação e
rotulação de crianças se desenvolvem em instituições educacionais.
Não apenas o modelo é conceitualmente fraco, mas é inerentemente
menos político do que deveria, para que seja possível compreender a
complexa relação entre os significados, práticas e decisões fundadas
no senso comum nas escolas e o aparelho ideológico e institucional
que cerca essas instituições culturais.

(48) Alguns dos melhores trabalhos deste tipo em educação podem ser encon­
trados em David Hargreaves et al. Deviance in Classrooms. London, Routledge &
Kegan Paul, 1975.
(49) Uma série de dificuldades políticas da teoria de rotulação são expostas
por Ian Taylor e Laurie Taylor (orgs.). Politics and Deviance. London, Pelican, 1973;
e Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young. Critical Criminology. London, Routledge &
Kegan Paul, 1974.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 209

Sharp e Green estão de acordo com outros sociólogos britâ­


nicos que criticam a pesquisa de orientação fenomenològica como
parcial e fundamentalmente apolitica. Por exemplo, a maioria dos
estudos fenomenológicos visam enfocar a construção social da rea­
lidade da sala de aula, como as interações fundadas no senso co­
mum, tanto de professores como de estudantes, criam e m antêm os
conjuntos de significados e identidades que permitem que a vida em
sala de aula se processe de m aneira relativamente uniforme. Eis
aqui, no entanto, onde aqueles que, influenciados por visões m ar­
xistas e neomarxistas, querem avançar. Pois o m undo social, de que
a educação faz parte, não é simplesmente o resultado dos processos
criativos de interpretação em que se em penham os atores, um a
questão tão cara aos fenomenólogos sociais. É parcialm ente isto, é
claro. Mas o m undo cotidiano com que nos defrontamos em nossa
vida diária como professores, pesquisadores, pais, filhos, e assim
por diante, “é estruturado não apenas pela linguagem e pelo signi­
ficado” , por nossas interações simbólicas diretas e por nossas cons­
truções sociais em constante realização, “mas pelos modos e forças
de produção m aterial e pelo sistema de dominação que está relacio­
nado de alguma forma com a realidade material e seu controle” . 50
A descrição e análise fenomenològica de processos sociais e da
rotulação, em bora sem dúvida im portantes, levam-nos a esquecer
que existem instituições e estruturas objetivas no m undo exterior
que têm poder, que podem controlar nossas vidas e nossas percep­
ções. Enfocando como a interação social cotidiana reafirm a as iden­
tidades das pessoas e suas instituições, pode-se afastar a atenção do
fato de que a interação e concepção individual é lim itada pela
realidade material.
Não quero dizer que se deveria abandonar aqui a fenomeno­
logia social ou a teoria da rotulação. Pelo contrário, pode-se com­
biná-la com um a interpretação social mais crítica que veja a criação
de identidades e significados em instituições específicas como as
escolas como ocorrendo dentro de um contexto que em geral deter­
mina os parâm etros do que é discutível ou significativo. Esse con­
texto não reside apenas ao nível da consciência, ele é a relação de
instituições econômicas e políticas, relação que define o objeto das

(50) Rachel Sharp e Anthony Green. Education and Social Control. London,
Routledge & Kegan Paul, 1975, p. 25. Minha discussão aqui faz uso da excelente
análise teórica que se encontra nos dois primeiros capítulos de sua obra.
210 MICHAEL W. APPLE

escolas, que estabelece limites a esses parâm etros. Esses aspectos


têm im portantes aplicações para um a análise séria da rotulação em
sala de aula, a utilização de categorias “ neutras” por educadores e a
distribuição de diferentes tipos de conhecimento a crianças diferen­
temente rotuladas.
Por exemplo, boa parte da literatura a respeito da rotulação
de crianças nas escolas tende a se apoiar num a marca peculiar de
“realismo” . Isto é, presume que as identidades das crianças são
criadas quase que inteiram ente pelas percepções que os professores
têm dos estudantes em classe. Contudo, não se trata apenas de uma
questão de que a consciência dos professores forma a consciência
das crianças — por exemplo, um professor concebe um estudante
como “ realmente tolo” e, daí, a criança se torna “realmente tola” ,
embora haja algum elemento de verdade quanto a isso, sem dúvida.
Também envolve profundam ente as circunstâncias e expectativas
materiais objetivas que tanto criam quanto cercam o contorno esco­
lar. Como sustentam Sharp e G reen:51

Quando se toma em consideração a criação de identidade dos alunos,


por exemplo, a oportunidade do aluno de adquirir qualquer identi­
dade específica relaciona-se não apenas com as categorias conceituais
da prática que o professor traz em sua consciência, mas também com
as facetas da estrutura da organização da sala de aula que tem de ser
entendida em relação com uma série de pressões extraclasse, podendo
ou não ser apreciada pelo professor ou pelos alunos. É importante
tentar entender a estrutura social da sala de aula como produto tanto
do contexto simbólico quanto das circunstâncias materiais. Estes
últimos fatores tendem a ser subestimados no interacionismo social e
na fenomenologia social.

Portanto, os modos de interação em classe, os tipos de con­


trole, a criação e a rotulação de identidade dos alunos precisam ser
compreendidos como um a relação dialética entre ideologia e con­
torno material e econômico. Como observei antes, as concepções que
os professores fazem de competência, do que é “um bom desempe­
nho do estudante” , de conhecimento importante versus conheci­
mento sem im portância, de “comportamento adequado” , não são
idéias soltas. Essas produções mentais provêm de alguma parte. São
respostas ao que se percebe como problemas reais causados, em

(51) Ibid., p. 6.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 211

parte, pelas condições am bientais reais nas escolas e, freqüente-


mente, pelas condições econômicas e sociais externas. Portanto,
para compreender as escolas, é preciso que se ultrapasse o que os
práticos e teóricos educacionais consideram ser avançar, para então
ver as conexões entre essas idéias e ações com as condições ideoló­
gicas e materiais tanto dentro quanto fora da escola, que "deter­
m inam ” o que julgamos ser nossos problemas “ reais” . A chave para
revelar isto é o poder.
Entretanto, como venho dem onstrando neste livro, o poder
nem sempre é evidente como a manipulação e o controle econômico.
É em geral manifesto como formas de ajuda e como formas de
“ conhecimento legítimo” , formas que parecem fornecer sua própria
justificação por serem interpretadas como neutras. Portanto, o po­
der é exercido através de instituições que, seguindo seu curso natu­
ral, reproduzem e legitimam o sistema de desigualdade. E tudo isso,
é claro, pode de fato parecer ainda mais legítimo através do papel
dos intelectuais que exercem profissões de marcado interesse social
como a educação.
Isto naturalm ente é muito complexo, mesmo se tivéssemos de
obter apenas um a compreensão parcial, pois, pelo próprio fato de
que nos consideramos como profissionais com marcado interesse
social, nossa ideologia liberal dominante nos faria lidar com os
problemas de rotulação instituindo um a melhoria limitada. Intro­
duziríamos reformas como equipamentos generalistas. A noção que
se acha por trás dessas reformas é de que, ampliando a área de
escolarização, o processo de rotulação se tornaria secundário. As
crianças poderiam se destacar em qualquer área em que tivessem
talento. No entanto, esses tipos de reformas devem ser examinados
muito cuidadosamente. Podem ser contraditórios e na verdade criar
mais de um problema, da mesma forma como vimos no Capítulo
2 como os “ problemas de desempenho” são criados naturalm ente.
Na verdade, como expõem Sharp e Green, o que parece ocor­
rer é um aum ento da série de rótulos que podem ser aplicados em
equipamentos generalistas, especialmente aqueles situados nas áreas
operárias e culturalm ente diferentes, onde a rotulação se faz mais
intensa. Na sala de aula tradicional, o que se considera como
conhecimento generalista e significativo tende a se lim itar a “ áreas
acadêmicas” — matem ática, ciências e assim por diante. Portanto,
os alunos podem tender a ser rotulados, quando se utilizam critérios
de desempenho, num conjunto razoavelmente limitado de formas de
conhecimento público. Entretanto, em equipamentos generalistas,
212 MICHAEL W. APPLE

que são parte do sistema escolar público (com seu interesse histórico
pela estratificação social e “intelectual” e pelo consenso ideológico),
aum enta o que se constrói como conhecimento especificamente es­
colar. Há mais interesse pela “criança total” , se assim se quiser
cham ar. Por conseguinte, acrescentam-se atributos como emocio-
nalidade, tendências, atributos físicos e outros mais gerais aos currí­
culos acadêmicos comuns como áreas generalistas com as quais se
deve preocupar. O resultado latente parece ser o aumento da série
de atributos com os quais se podem estratificar os estudantes. Isto é,
m udando a definição do conhecimento escolar de modo que inclua
mais elementos pessoais e de tendências, está-se tam bém latente­
mente perm itindo a continuidade de um a maior possibilidade de
rotulação em equipamentos mais abrangentes. As identidades dos
estudantes podem ser ainda mais fixas que antes. Isto se dá prova­
velmente em virtude de que não são realmente mudados os objetivos
básicos da instituição — por exemplo, diferenciar os estudantes de
acordo com o “ talento natural” , maximizar a produção de conhe­
cimento técnico, etc. Ao mesmo tempo, é claro, as salas de aula
generalistas em áreas de classe média são idealmente adequadas
para ensinar o processo decisório, a flexibilidade, e assim por diante,
a estudantes que se tornarão adm inistradores e profissionais. Esta
descoberta não é comum, pois, se as salas de aula generalistas em
instituições tradicionais criam realmente um sistema mais poderoso
de estratificação, então seu funcionamento concreto tem de ser
interpretado em termos de reprodução e não apenas de reformas
graduais.
Isto se vincula muito estreitamente à discussão sobre currículo
oculto nos capítulos anteriores. À medida que as crianças aprendem
a aceitar como naturais as distinções sociais que as escolas reforçam
e ensinam, entre conhecimento de im portância e conhecimento sem
im portância, entre normalidade e desvio, entre trabalho e lazer, e as
sutis regras e normas ideológicas inerentes a essas distinções, elas
também interiorizam visões tanto da forma como as instituições
deveriam ser organizadas quanto de seu lugar adequado nessas ins­
tituições. Essas coisas são aprendidas um tanto diversamente por
diferentes alunos, é claro, e é neste ponto que o processo de rotu­
lação se torna tão importante para a diferenciação de classe social e
econômica. A rotulação dos estudantes e a ideologia de reforma
gradual das escolas que cerca sua decisão de utilizar determinados
rótulos sociais exercem um forte impacto sobre quais são os estu­
dantes que aceitam determinadas distinções como naturais.
IDEOLOGIA E CURRtCULO 213

Linguagem clínica, o especialista e o controle social

Como sustentei nos Capítulos 2 e 3, um a im portante função


latente da escolarização parece ser a distribuição desigual de formas
de consciência entre os estudantes. Sociologicamente, então, através
de sua apropriação dessas tendências e visões, os estudantes estão
aptos a serem encam inhados aos diversos papéis sedimentados por
toda a “ fábrica” de um a sociedade industrial avançada. O processo
de rotulação ocupa um lugar sutil mas essencial nesta distribuição.
Como as designações, categorias e recursos lingüísticos utilizados
pelos educadores e, especialmente, pelos membros da área do currí­
culo com convicções “ com portam entais” são considerados como
tendo status “ científico” e dispostos para “ ajudar” os estudantes,
existe pouca ou nenhum a constatação de que a própria linguagem
de que fazem uso é idealmente adequada p ara m anter a racionali­
dade burocrática (e os efeitos concomitantes de controle e consenso
social) que há muito tempo vem dominando a escolarização.52
Edelman tom a um a posição semelhante ao discutir a forma
como se utiliza o'sistema específico da linguagem das “profissões de
marcado interesse social” para justificar e dirigir o apoio público
para as práticas profissionais que apresentam profundas conseqüên-
cias políticas e éticas.53

Como as profissões de marcado interesse social definem os status das


outras pessoas (e o seu próprio), os termos especiais que empregam
para-categorizar clientes e justificar as restrições de seus movimentos
físicos e de sua influência moral e intelectual são especialmente reve­
ladores das funções políticas da linguagem e das múltiplas realidades
que ela ajuda a criar. A linguagem é tanto um indicador sensível
quanto um poderoso criador de suposições quanto aos níveis de com­
petência e mérito das pessoas. Exatamente como qualquer numeral
evoca em nossa mente todo o conjunto numérico, assim também uma
palavra, uma forma sintática ou uma metáfora com conotações polí­
ticas pode evocar e justificar uma hierarquia de poder em quem a
empregou e nos grupos que respondem a ela.

(52) Freeman, op. cit. ; e Herbert M. Kliebard. "Bureaucracy and Curriculum


Theory” . Freedom, Bureaucracy, and Schooling. Vernon Haubrich (org.). Wash­
ington, Association for Supervision and Curriculum Development, 1971, p. 74-93.
(53) Murray Edelman. "The Political Language of the Helping Professions” .
Artigo nâo publicado, University of Wisconsin, Madison, s/d, p. 3-4.
214 MICHAEL W. APPLE

A idéia básica de Edelman não é apenas que as formas de


linguagem empregadas por educadores e outros “organizam ” sua
realidade, mas também que essas formas latentemente justificam
status, poder e autoridade. São fundamentalmente ideológicas nos
dois sentidos do termo. Em resumo, é preciso exam inar a contra­
dição que há num a perspectiva liberal que existe para ajudar e que
ao mesmo tempo serve à distribuição de poder em instituições e na
sociedade.54 É difícil faltar essa contradição na linguagem utilizada
pelos burocratas das escolas.
Talvez este argumento seja mais bem resumido com a citação
de mais um a passagem de E delm an:55

Nos mundos simbólicos evocados pela linguagem das profissões de


marcado interesse social, especulações e fato comprovado provavel­
mente surgem unidos. A linguagem dissemina a incerteza na espe­
culação, altera os fatos para fazê-los servir às distinções de status e
reforçar a ideologia. Os nomes para tipos de doenças mentais, formas
de delinqüência e para a competência educacional são os termos
básicos. Cada um deles normalmente envolve um alto grau de falibi­
lidade do diagnóstico, prognóstico e da prescrição de tratamentos de
reabilitação, mas também acarreta restrições não ambíguas sobre os
clientes, especialmente seu confinamento e sujeição ao staff e às
regras de uma prisão, escola ou hospital. O confinamento e as res­
trições são convertidos em atos de liberação e altruísmo pela sua defi­
nição como educação, terapia ou reabilitação. A arbitrariedade e a
especulação no diagnóstico e no prognóstico, por outro lado, são
convertidas em percepções claras e específicas da acessibilidade de
controle (pelo “grupo de reforço’’). Sem levar em conta a arbitra­
riedade ou a inafiançabilidade técnica dos termos profissionais, sua
utilidade política é manifesta; eles dispõem o apoio popular aos
critérios profissionais, concentrando a atenção do público nos proce­
dimentos e racionalizando de antemão qualquer falha dos procedi­
mentos para atingir seus objetivos formais. (Meus grifos.)

Isto é, a linguagem supostamente neutra de um a instituição,


ainda que se baseie em dados altam ente especulativos e possa ser
aplicada sem ser realmente adequada, fornece um a estrutura que
legitima o controle de importantes aspectos do comportamento de

(54) Ibid., p. 4.
(55) Ibid., p. 7-8.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 215

um indivíduo ou de um grupo. Ao mesmo tempo, mostrando-se


científica e “especializada” , contribui para o quietismo do público,
centralizando a atenção em sua “ sofisticação” e não em seus rcsul
tados políticos ou éticos. Portanto, historicamente ultrapassadas e
social e politicamente conservadoras (e resultando com freqüênciu
em desastres educacionais), as práticas não apenas são levadas
avante, mas também se faz com que se mostrem como se fossem
realmente formas mais iluminadas e eticamente mais sensíveis de se
lidar com crianças.
Como em outras instituições onde exista pouca opção quanto
ao direito de um indivíduo (estudante, paciente, recluso) poder ir ou
vir quando lhe convier, definindo os estudantes por meio de uma
terminologia pré-científica e pré-clínica e terapêutica e, assim,
“ m ostrando” que os estudantes são culpáveis e que são de fato
“ diferentes” (não são adultos; não alcançaram um determ inado
estágio de desenvolvimento; têm campo de atenção limitado, são
“ cultural e lingüisticamente carentes” , etc.), os educadores não pre­
cisam enfrentar os aspectos em geral coercitivos de sua própria
atividade.56 Por conseguinte, não é preciso responder às questões
éticas e ideológicas da natureza do controle nos equipamentos esco
lares. A visão liberal, as perspectivas clínicas, a linguagem utilizada,
os rótulos de “ reforço” , tudo o define como pertencendo ao m undo
exterior.
É possível afirmar, então, que essas críticas são na verdade
genéricas diante das próprias perspectivas clínicas e dos rótulos dc
reforço como funcionam na educação, de vez que as suposições em
que se baseiam são elas próprias abertas ao questionamento.57 Esses
pontos de vista se distinguem por um a série de características notá
veis: cada um a delas, quando com binada com as demais, parec c
conduzir logicamente a um a posição conservadora para com os pro­
gramas institucionais existentes. A prim eira característica é que o
pesquisador ou o prático estuda ou lida com esses indivíduos que já
foram rotulados pela instituição como diferentes ou desviados. Ao
fazer isso, adota os valores do sistema social que definiram a pessoa

(56) Goffman, op. cit. , p. 115.


(57) Jane R. Mercer. “ Labeling the Mentally Retarded” . Deviance Ihc
Interactionist Perspective. Earl Rubington e Martin S. Weinberg (orgs.). New Vm k
Macmillan, 1968. Para uma abordagem mais completa da postura conservadora dr
pontos de vista clínicos e de reforço, ver Apple. “The Process and Ideology of Valiilng
in Educational Settings” , op. cit.
216 MICHAEL W. APPLE

como desviada. Além do mais, presume que os juízos feitos pela


instituição e baseados nesses valores são as medidas válidas de nor­
malidade e competência sem questioná-los seriamente.
A segunda é que essas perspectivas clínicas e de reforço apre­
sentam um a forte tendência para considerar a dificuldade como um
problema com o indivíduo, como alguma coisa que falta antes no
indivíduo que na instituição. Portanto, combinada com a suposição
de que a definição oficial é a única definição correta, quase que toda
ação se centraliza em m udar o indivíduo em vez do agente definidor,
o contexto institucional mais amplo. A terceira é a de que os pes­
quisadores e práticos que aceitam as designações e definições insti­
tucionais tendem a presumir que todas as pessoas dentro dessas
categorias são iguais. Existe um a suposição de homogeneidade.
Dessa forma, a complexidade individual é autom aticam ente nive­
lada. O processo real de formação de um indivíduo abstrato é ocul­
tado pela perspectiva pré-individualista.
Mas isto não é tudo, pois parece haver fortes motivações para
o uso já implícitas nesses rótulos e processos no conhecimento espe­
cializado que se encontra por trás deles. Isto é, os que empregam as
terminologias supostamente avaliativas e terapêuticas precisam en­
contrar (e, portanto, formar) indivíduos que se ajustem às categorias,
senão o conhecimento especializado é inútil. Isto é provavelmente
um fato educacional geral. Uma vez criado um recurso ou um a
perspectiva “ nova” (mas sempre limitada) para “ ajudar” as crian­
ças, ela tende a se am pliar para além do “problem a” para o qual foi
originalmente desenvolvida. Os recursos (no caso, avaliativos, tera­
pêuticos e linguísticos) também apresentaram o efeito de redefinir
antigas questões nessas outras áreas em problemas com os quais o
recurso é capaz de lidar.58 O melhor exemplo é a modificação de
comportamento. Em bora aplicável a um a lim itada série de dificul­
dades nas escolas, torna-se tanto um a linguagem avaliativa quanto
um a forma de “enfoque” de um a série mais am pla de “ estudantes-
problem a” . Portanto, por exemplo, seu emprego e aceitação cada

(58) Deve-se insistir numa questão interessante aqui. As pessoas que empre­
gam perspectivas clínicas para lidar com saúde ou desvio são propensas a rotular as
pessoas como “ doentes” mais do que como “sãs” na maioria dos casos, para evitar o
risco do que poderia acontecer ao “paciente” caso estivessem erradas. Aqui, pode-se
revelar mais uma motivação para “ encontrar” indivíduos que se ajustem a categorias
institucionais. Thomas Scheff. Being Mentally III: A Sociological Theory. Chicago,
Aldine, 1966, p. 105-6.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 217

vez maior em escolas de guetos e de membros da classe operária,


c em outros locais com crianças “ destruidoras , ou com classes
estudantis inteiras, como está se tornando cada vez mais o caso,
realmente atua como um disfarce para encobrir o fato político de
que a natureza das instituições educacionais existentes é insensível a
uma grande parcela de estudantes.59 Além disso, sua linguagem
atua para ocultar a relação alienante salário-produto que se tem
estabelecido e é cham ada de educação. Finalmente, a perspectiva,
que se define a si mesma como clínica, oculta as verdadeiras questões
morais que é preciso form ular com relação à adequabilidade da
própria técnica para lidar com estudantes que não têm opção de
estar num a instituição.
Um dos aspectos que complementam essa discussão é que
essas pessoas que são consideradas como diferentes ou desviadas
com relação às expectativas institucionais normais são um a ameaça
ao cotidiano das escolas, ao padrão operacional normal, que é cons­
tante e, com muita freqüência, relativamente estéril. Com respeito a
isso, o ato de rotular pode ser visto como parte de um complexo
processo de limitação. Atua para preservar a natureza frágil de
muitas relações interpessoais com as escolas de que dependem as-
“ definições adequadas de situações” . Porém, o que é mais im por­
tante, perm ite que pessoas como professores, administradores, espe­
cialistas em currículo e outros burocratas defrontem-se com este­
reótipos em lugar de indivíduos, de vez que as escolas não podem
lidar com as características diferenciadoras de indivíduos a um grau
significativo. Existe um bom número de pesquisas que sustenta o
fato de que os desvios de expectativas institucionais geralmente
resultam na imposição de limites por parte dos que se defrontam
com esses indivíduos “ desviados” .60 Portanto, aumentam-se a este-
reotipia e a rotulação e preserva-se a ilusão reconfortante de que as
crianças estão sendo ajudadas.

(59) Muitos pesquisadores críticos afirmaram que os "problemas de disci­


plina e de desempenho nas escolas são, de lato, indícios de conflito de classe emer­
gente” . Ver Christian Baudelot e Roger Establet. La Escuela Capitalista. Cidade do
México, Siglo Veintiuno Editores, 1975.
(60) Schur, op. cit., p. 51. Isto não significa que toda a rotulação se resolva
nisto. Significa, sim, que devemos começar a formular questões críticas sobre a forma
como rótulos específicos e a solidez da realidade dessas categorias representam uma
função nos equipamentos escolares.
218 MICHAEL W. APPLE

Mas como é que se mantém essa ilusão? As escolas são fre-


qüentemente avaliadas. Tanto os funcionários como o program a são
constantemente examinados com atenção, agora mais ainda em vir­
tude da dominância dos modelos sistêmicos de administração estu­
dados no Capítulo anterior. Muitos especialistas em pesquisa e ava­
liação despendem tempo e esforços na investigação dos efeitos da
escolarização. Ainda que esses especialistas vissem as escolas através
da ótica lim itada das tradições de desempenho e sociabilização, não
deveria parecer claro o funcionamento real dessa atividade coti­
diana? Não deveriam a forma como se realiza boa parte do trabalho
das escolas e o conhecimento especializado (clínico ou qualquer
outro) que figura por trás de suas funções ser reconhecidos como um
aspecto da reprodução cultural e econômica? Não lhes é clara a
forma como os “ intelectuais” empregam seu conhecimento especia­
lizado fundado no senso comum? Afinal, a maioria dos burocratas
das escolas e os pesquisadores preocupam-se verdadeiramente com
seu trabalho e com os estudantes que habitam essas instituições.
Infelizmente, esse reconhecimento é de difícil obtenção. Pri­
meiro, como tenho afirmado, um a razão importante é a m aneira
como funciona esse conhecimento especializado. É ideológica. For­
nece uma definição básica de um a situação complexa (da mesma
forma como as condições materiais de um contorno educacional
forneceram a justificação para o tempo e a atividade do professor,
no Capítulo 3), enquanto reproduz desigualdades estruturalm ente
baseadas de conhecimento e poder ao mesmo tempo. Segundo, há
obstáculos a essa consciência de si mesmo que já vem no próprio
papel e na perspectiva tanto do especialista em avaliação num a
sociedade industrial quanto no portador desse conhecimento espe­
cializado.
Não é de surpreender que as perspectivas básicas dos “espe­
cialistas” sejam tão fortemente influenciadas pelos valores domi­
nantes da coletividade a que pertencem e da situação social que
ocupam nessa sociedade. Esses valores dominantes necessariamente
afetam seu trabalho.61 De fato, como vimos, essas visões já estão
sedimentadas nas formas de linguagem e nas perspectivas implícitas
encontradas nos papéis sociais desempenhados por intelectuais e por
especialistas técnicos. O trabalho do avaliador já traz em si recursos

(61) James E. Curtis e John W. Petras (org.). The Sociology o f Knowledge.


New York, Praeger, 1970, p. 48.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 219

lingüísticos, programáticos, metodológicos e conceituais, e expecta­


tivas quanto ao modo como devem ser utilizados. Não é muito
comum que esses profissionais dêem as costas aos objetivos, proce­
dimentos e normas institucionalizados e ao conhecimento cum ula­
tivo que serve a esses objetivos dominantes, construído há anos na
área. Em parte, isto se deve a que esse conjunto de conhecimento e
valores dominantes é reforçado pela necessidade dos adm inistra­
dores institucionais de tipos especiais de consultoria “ especiali­
zada” . Este é um aspecto excepcionalmente im portante.
Pesquisadores e avaliadores são “especialistas contratados” .
Não quero com isso denegrir totalmente a posição que ocupam.
Antes, o papel do especialista na sociedade norte-am ericana é singu­
lar e conduz a algumas expectativas problemáticas nos contornos
educacionais.
Em vista do status do conhecimento técnico em economias
industriais, os “especialistas” estão sob considerável pressão para
apresentar suas descobertas como informação científica, como co­
nhecimento que tem, a um grau significativo, um a verificabilidade
científica e, portanto, um a plausibilidade inerente.62 Como vimos
no Capítulo 2, isto teve um impacto muito grande na rejeição das
afirmações políticas feitas por Jencks em Inequality, por exemplo.
Não apenas se espera que os especialistas, principalm ente os espe­
cialistas em pesquisa e avaliação educacional, expressem suas idéias
em termos científicos, mas, em virtude de sua posição no sistema
social, seus dados e perspectivas são considerados autoritários.
É considerável o peso e o prestígio atribuídos ao conhecimento
especializado.63 Contudo, nossa discussão da forma como os edu­
cadores se apropriaram de um a visão inexata da atividade científica
torna esse prestígio problemático. Essa apropriação leva a um a difi­
culdade considerável. Possibilita que os educadores pratiquem um a
pesquisa de pouca profundidade e, o que é mais im portante, é um
componente im portante em sua tendência para confirmar os p ara­
digmas de desempenho e sociabilização segundo os quais trabalham
os pesquisadores educacionais, conquanto um progresso substancial

(62) Jack D. Douglas. “Freedom and Tyranny in a Technological Society” .


Freedom and Tyranny: Social Problemas in a Technological Society. Jack D. Douglas
(org.). New York, Alfred A. Knopf, 1970, p. 17.
(63) Veja-se a discussio do papel do especialista em Alfred Schütz. "The
Well-informed Citizen: An Essay on the Social Distribution of Knowledge” . Collected
Papers II: Studies in Social Theory. The Hague, Martinus Nijhoff, 1964, p. 120-34.
220 MICHAEL W. APPLE

possa exigir um a nova estrutura para substituir a vigente.64 As


várias descobertas de diferença não significativa poderiam apontar
exatam ente para essa conclusão.
Em bora haja consideráveis dificuldades conceituais e técnicas
(para não falar das ideológicas) com a visão comum do que seja um a
pesquisa im portante, é evidente que, mesmo em vista dessas dificul­
dades, os burocratas de escolas e os que tomam parte no processo
decisório de fato consideram “ de valor” a informação que recebem
dos especialistas.
U m a das tarefas do especialista é fornecer à cúpula adminis­
trativa de um a instituição o conhecimento especializado que esses
burocratas exigem antes que sejam tomadas decisões. A instituição
burocrática, não o especialista, apresenta os problemas a serem
examinados. Assim, o tipo de conhecimento que o especialista deve
fornecer é determinado de antemão. De vez que o especialista não
arca com responsabilidade algum a até o resultado final de um
program a, suas atividades podem ser orientadas pelos interesses
práticos da cúpula adm inistrativa, aspecto que Gouldner deixou
bem claro. E o que os adm inistradores não estão procurando são
novas hipóteses ou novas interpretações que não sejam im ediata e
perceptivelmente relevantes aos problemas práticos existentes — o
ensino da leitura, por exemplo. Ê de importância considerável o fato
de que se espera que o especialista trabalhe com problemas práticos
conforme definidos pela instituição e que não apresente conselhos
fora desses limites. Tornou-se cada vez mais claro que, por quais­
quer razões (sociabilização num a posição, medo diante da pressão
política, um a confiança em que as técnicas de manipulação irão
solucionar todos os problemas, as “ determinações” ideológicas e
materiais que afetam a instituição, e assim por diante), a cúpula
administrativa de um a grande organização procura, e deve procu­
rar, reduzir o novo e o incerto de um a situação complexa com a qual
se defronte num a combinação praticam ente segura de “verdades
tradicionais” sobre os processos de escolarização.65 Entretanto,
poucas áreas são tão complexas quanto a da educação, no plano

(64) Michael W. Apple. “Power and School Knowledge” . The Review o f


Education, III (January/February 1977), 26-49; e Michael W. Apple. “ Making Cur­
riculum Problematic” . The Review o f Education, II (January/February 1976), 52-68.
(65) Florian Znaniecki. The Social Role o f the Man o f Knowledge. New York,
Harper & Row, 1968, p. 45-9.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 221

conceituai, ético e político, e a tradiçao critica raram ente ultrapas­


sou a superfície das complexidades implicadas. O fato de que essas
“verdades tradicionais” são menos eficazes, em vista das questões
formuladas pelos teóricos da reprodução e outros quanto à natureza
complexa dos problemas educacionais na área urbana e em outros
locais, em geral não é considerado im portante pelos que tomam
parte no processo decisòrio, pois, afinal, é papel do especialista lidar
com essa complexidade. Mas, como vimos, estamos presos num cír­
culo. O especialista deve fornecer assessoria técnica para ajudar a
resolver as necessidades da instituição; porém, a gama de questões e
os tipos de respostas que são realmente aceitáveis são ideologica­
mente limitados pelo que o aparelho administrativo já definiu como
“ o problem a” . Dessa forma, é vicioso o círculo de resultados incon-
seqüentes.
Isso certam ente não constitui um a novidade. O conhecimento
especializado tem sido utilizado há muito tempo pelos que parti­
cipam do processo político. Deveria ficar claro, no entanto, que,
desde o princípio da avaliação dos program as sociais e educacionais,
os tipos de assessoria necessários eram determinados basicamente
pelos objetivos políticos dos burocratas e em seu apoio, freqüente-
mente às custas da auto-responsabilidade da instituição à sua clien­
tela.66
Isto desperta um a questão muito provocadora. É possível ver o
funcionamento real de seu trabalho, estudar as conseqüências e os
processos reais dos program as educacionais, quando a ação e a
pesquisa utilizam categorias e dados derivados da própria institui­
ção e que a ela servem, sem que ao mesmo tempo se apóie o aparelho
cultural e econômico a que servem essas próprias categorias e
dados?67 Em virtude desse tipo de questão, dever-se-ia observar
desta vez um aspecto decisivo. Adquire, então, importância especial
para a pesquisa e avaliação do currículo e p ara outras finalidades

(66) Douglas. American Social Order, op. cit., p. 49. Ver também a discussão
de como o conhecimento especializado em manipulação foi utilizado para manter
uma ideologia de administração para controlar a força de trabalho, em David Noble.
America by Design: Science, Technology, and the Rise o f Corporate Capitalism. New
York, Knopf, 1977.
(67) Isto não significa que se ignorem dados oficiais. Como Marx mostrou no
Capital, os dados oficiais podem ser excepcionalmente importantes para esclarecer o
funcionamento real de um sistema econômico e as suposições que se encontram por
trás dele.
222 MICHAEL W. APPLE

educacionais argum entar contra a tentação de se utilizar não criti­


camente estatísticas oficialmente colhidas baseadas nessas catego­
rias oficialmente definidas que são em geral prontam ente acessíveis.
Pelo contrário, a questão m ais decisiva é: “ Quais são os funda­
mentos ideológicos destes dados?” .68 Formulando-se questões como
essa, podem-se esclarecer as implicações normativas muito fortes
que se acham envolvidas quando os educadores designam os estu­
dantes por alguma abstração institucional específica.
Sustentei que a distribuição de rótulos entre um a população
estudantil é na verdade um processo pelo qual um grupo social faz
juízos de valor sobre a pertinência ou não da ação de um outro
grupo. Se essa perspectiva está correta, então os fatores que venho
articulando sugerem que está por ser realizada boa parte da pes­
quisa que mostre como as estruturas ideologicamente hegemônicas
de grupos dominantes na sociedade norte-americana, quando im­
postas nas escolas, têm amplas implicações éticas, políticas e sociais
na medida em que podem colaborar na diferenciação dos indivíduos
de acordo com classe, raça e sexo bem no início de sua vida.
Estas são questões francamente difíceis. Ainda, no próprio ato
de procurar se livrar das responsabilidades e dilemas excessivamente
morais e políticos de influenciar os outros, os educadores têm feito o
que Szasz cham a de “ mistificar e tecnicizar seus problemas de
vida” . É muito significativa a relação disso com a dominância na
filosofia educacional de modelos psicológicos e metáforas baseados
num a imagem de “ciência de rigor” e neutra.69
As orientações que prevalecem na teoria do currículo e edu­
cacional, e que de fato a dominaram consistentemente no passado,
efetivamente ocultam e em geral negam as profundas questões éticas

(68) Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young. “ Advances Toward a Critical
Criminology” . Theory and Society, I (Winter, 1974), 441-76.
(69) O termo "ciência de rigor” refere-se aqui a áreas cujos interesses funda­
mentais refletem e estão dialeticamente relacionados aos interesses dominantes de
sistemas econômicos industriais avançados e, portanto, baseiam-se numa lógica de
processo-produto ou utilitário-racional. Estes interesses são por regras técnicas,
controle e confiabilidade. Entre as áreas que se poderiam apontar estão a sociologia e
a psicologia "comportamental” . Ver Jürgen Habermas. “Knowledge and Interest” .
Sociological Theory and Philosophical Analysis. Dorothy Emmet e Alasdair Mac­
Intyre (orgs.). New York, Macmilian, 1970, p. 36-54; e Michael W. Apple. "Scien­
tific Interests and the Nature of Educational Institutions” . Curriculum Theorizing:
The Reconceptualists. William Pinar (org.). Berkeley, McCutchan, 1975, p. 120-30.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 223

e econômicas enfrentadas pelos educadores. Como vimos, transfor­


mam esses dilemas em problemas de manipulação ou enigmas que
são passíveis de soluções “profissionais” técnicas. Talvez o melhor
exemplo seja a dependência quase que total da area em perspectivas
originadas da psicologia do aprendizado. A terminologia oriunda
dessa psicologia e suas áreas afins é bastante inadequada, um a vez
que ignora ou afasta a atenção do carater basicamente moral e
político da existência social e do desenvolvimento hum ano. A lin­
guagem de reforço, aprendizado, feedback negativo, e assim por
diante, é um recurso muito fraco para lidar com a contínua intrusão
de contradições sobre a ordem, com a questão do que conta como
conhecimento legítimo, com a produção e reprodução de significado
pessoal e instituições interpessoais, com a natureza reprodutiva da
escolarização e de outras instituições, e com noções como as de
responsabilidade e justiça na conduta social. Fundam entalm ente,
como a linguagem sistêmica de administração, a linguagem da
psicologia, conforme é exercida no currículo, “ anula o caráter
ético e político das relações hum anas e da conduta pessoal” .70
Por exemplo, boa parte de nosso esforço ativo para definir
objetivos operacionais e para colocar os “ resultados” do estudante
em termos de comportamento pode ser interpretado exatamente
como tal — trabalho ativo, se me permitem usar terminologia do
senso comum. Isto é, por causa da preocupação da área com a reali­
zação de seus objetivos e quantificação de output, afasta-se a aten­
ção das implicações políticas e morais decisivas de nossa atividade
como educadores. Dessa forma, mudam-se os meios em fins e as
crianças são transform adas em abstrações manipuláveis e anônimas
chamadas “ alunos” . Referindo-se à área da sociologia, embora o
mesmo pudesse ser dito acerca de um a grande parcela da linguagem
e da pesquisa sobre currículo, Friedrich expressa claramente parte
do problem a.71

Do que os sociólogos parecem completamente inconscientes é do


impacto permanente de chegar a conceber um de seus companheiros
como manipulável.

(70) Szasz, op. cit., p. 2.


(71) Robert W. Friedrich. A Sociology o f Sociology. New York, Free Press,
1970, p. 172-3.
224 MICHAEL W. APPLE

A linguagem — e a escolha entre símbolos que ela acarreta —


impregna toda a ação social significativa, tanto manifesta quanto
latentemente, consciente ou inconscientemente. A manipulação sim­
bólica do homem não pode ser totalmente isolada do restante das
relações simbolicamente mediadas de uma pessoa com as outras.
Como a vida intelectual do homem cada vez mais exige essa manipu­
lação simbólica, este corre o risco de conceber o homem em outras
áreas de sua vida em termos que convidam ou que são especialmente
receptivos a uma relação meios-fins em lugar daquelas que sustentam
uma atitude com relação aos outros como fins em si mesmas.

Portanto, o caráter manipulativo e as estruturas da dominação


ideológica de uma sociedade ampla encontram-se no discurso sobre
currículo, na linguagem de comportamento básico e de enfoque e
nas categorias utilizadas até para conceber as relações educacionais.
Cria, portanto, e reforça padrões de interação que não apenas refle­
tem, mas na verdade incorporam os interesses pela estratificação,
poder desigual, confiabilidade e controle que dominam a consciên­
cia em sociedades industriais avançadas.

Alguns contra-exemplos

Uma série de exemplos alternativos pode ser usada para de­


m onstrar que as concepções, categorias e rótulos que estou anali­
sando aqui são, de fato, ideológicos e fundados no senso comum e
não são pré-ordenados ou “ naturais” . Efn nossa sociedade, existe
um alto prêmio conferido à inteligência, especialmente com relação
à capacidade do estudante de aum entar a produção de conheci­
mento economicamente importante. As escolas são, é claro, parcial­
mente organizadas em torno desse conceito e o valorizam. É impor­
tante, mas não é a questão aqui, o fato de que o limitam a versões
muito restritas e principalmente verbais, versões que em geral incor­
poram o capital cultural dos grupos dominantes. Deveríamos obser­
var, antes, que é possível descrever outras concepções em torno das
quais nossas instituições educacionais e sociais poderiam ser organi­
zadas e projetada nossa tecnologia. Por exemplo, imagine-se um a
sociedade em que os dons físicos fossem a característica mais valo­
rizada, e não nossas definições demasiadamente estritas de compe-
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 225

tência e inteligência.7273 Aqueles que fossem desajeitados ou que


alcançassem apenas as categorias inferiores de dons físicos poderiam
então ser discriminados. A estrutura educacional da cultura catego­
rizaria os indivíduos de acordo com o “ nível de seus dons físicos .
A tecnologia seria projetada de modo que fosse necessária elegância
em movimento para que fosse utilizada.
Além dos dons físicos (que não é realmente um conceito tão
bizarro), também se poderia sugerir a possibilidade de avaliar, di­
gamos, a superioridade moral ou o compromisso coletivo, encon­
trado em estudantes em muitos países socialistas. Afinal, esses tipos
de elementos de tendência são algumas das coisas de que trata a
educação, não são? No entanto, como sugere vigorosamente a lite­
ratura sobre o currículo oculto, as regularidades basicas das escolas
excedem-se em ensinar o contrário. Por exemplo, devido à domi­
nância da avaliação individualista — tanto publica quanto privada,
de si mesmo e de seus pares — no subterfúgio dos equipamentos
escolares ensina-se efetivamente a ocultar sentimentos reais, como a
alegria diante do fracasso de outrem e do próprio, e assim por
diante. Isto ocorre apenas porque o estudante vive num a instituição
e tem de enfrentar sua densidade, poder e competitividade.71
As implicações desses contra-exemplos são muito significati­
vas, pois indicam que, para se mudarem as concepções dominantes
de competência na prática, pode ser preciso m udar as regularidades
básicas da estrutura institucional da própria escolarização. As pró­
prias regularidades estão entre os “ recursos de ensino” que comu­
nicam normas e tendências permanentes aos estudantes, que ins­
truem as crianças sobre “como é realmente o mundo . Ê importante
observar as implicações de cada um a dessas concepções alternativas
para as instituições comerciais, publicitarias e outras na sociedade.
Atuam como importantes alertas de que a crítica de muitas das

(72) Lewis A. Dexter. “On the Politics and Sociology of Stupidity in Our
Society” . The Other Side. Howard S. Becker (org.). New York, Free Press, 1964,
p. 37-49.
(73) Jules Henry. Culture Against Man. New York, Random House, 1963; e
Philip Jackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Winston, 1968. O
conceito de Coffman de “ajustamentos secundários” é muito útil para interpretar
partes do currículo oculto. Goffman, op. cit., p. 189. Algumas alternativas a essas
práticas pedagógicas podem ser encontradas em William Kessen (org.). Childhood in
China. New Haven, Yale University Press, 1975; e Geoff Whitty e Michael Young
(orgs.). Explorations in the Politics o f School Knowledge. Driffield, Nafferton Books,
1976.
226 MICHAEL W. APPLE

características das escolas e a crítica social, política e cultural devem


andar de mãos dadas. As escolas não existem num vácuo.
Por exemplo, parte do processo de rotulação que venho anali­
sando aqui tem em suas origens-um interesse pela eficiência. Isto é,
as escolas enquanto agentes do controle social e da reprodução cul­
tural e econômica em um certo sentido precisam operar como orga­
nizações eficientes, e a rotulação é de grande ajuda quanto a isso.74
Tanto quanto possível, a atividade deve ser racionalizada e transfor­
m ada em objetivo específico, de modo que a efetividade e a unifor­
midade do custo operacional sejam elevadas e a “perda” , inefi­
ciência e incerteza sejam eliminadas. Além do mais, o conflito e a
discussão quanto aos objetivos e procedimentos devem ser dimi­
nuídos, a fim de não se pôr em risco os objetivos e procedimentos
existentes. Afinal, é vultoso o investimento econômico e psicológico
nessas regularidades básicas. Devem-se desenvolver, então, técnicas
para controle e manipulação da diferença, a fim de impedir que
desordem de qualquer tipo significativo ultrapasse os limites da vida
institucional. Se se encontrar uma diferença significativa (quer inte­
lectual, estética, ética ou normativa), é preciso que seja incorpo­
rada, redefinida çm categorias que possam ser manipuladas pelas
suposições burocráticas e ideológicas existentes. Ignora-se o fato de
que essas suposições não são relativamente examinadas, e que se
autoconfirmam, já que os educadores empregam categorias que
delas se originam.
Contudo, é um a análise muito lim itada apontar as escolas
como os originadores desse interesse na educação por eficiência
acima de tudo. As origens dessa perspectiva estão num a ideologia
que fornece a estrutura constitutiva para pensamento e ação em
todas as sociedades industriais, um a ideologia instrum ental que
coloca em seu núcleo a eficiência, técnica padronizada, lucro, cres­
cente divisão e controle do trabalho e consenso. Conseqüentemente,
a compreensão das escolas e éspecialmeote da área do currículo no
que Kliebard chamou de “um modelo fabril” 75 faz parte de um
problema social mais amplo referente à falta de sensibilidade de
nossas principais instituições às necessidades e aos sentimentos hu­
manos. Perder isso de vista é perder muito do problema real.
Como vimos, porém, o reconhecimento da relação dialética

(74) Schur, op. cit. , p. 96.


(75) Kliebard. “Bureaucracy and Curriculum Theory” , op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 227

entre as escolas e o controle econômico e cultural não é alguma coisa


pela qual os educadores estejam acostumados a procurar. Isto faz
realmente parte de um problema de reconhecimento errôneo, que é
composto pela saturação ideológica da consciência dos educadores.
De vez que se utilizam as tradições de desempenho e sociabilização
acriticamente, vêem-se como naturais os rótulos, as categorias e o
conhecimento legítimo criados a partir dessas perspectivas. As rela­
ções concretas que essas “ diferenciações, avaliações e juízos de
valor” m antêm com a divisão social do trabalho e com o controle
econômico e cultural são obscurecidas pelo status científico aparen­
temente neutro das próprias perspectivas. Reunidas, fornecem um
meio ideal de hegemonia.
Existe um a combinação complexa de forças de trabalho aqui.
A tradição seletiva opera para que o capital cultural que contribuiu
para a ascensão de grupos e classes poderosas e para a contínua
dominação por eles transforme-se em conhecimento legítimo e seja
utilizado para criar as categorias pelas quais os estudantes são enfo­
cados. Por causa do papel econômico da escola em distribuir dife­
rencialmente um currículo oculto a diferentes grupos econômicos,
culturais, raciais e sexuais, as diferenças lingüísticas, culturais e de
classe serão enfocadas o máximo possível e rotuladas como des­
viadas. O conhecimento técnico será então utilizado como um filtro
complexo para estratificar os estudantes de acordo com sua “compe­
tência” para contribuir para sua produção. Isto, portanto, aum enta
o sentido da neutralidade desse'processo de estratificação econômica
e cultural e tanto oculta quanto torna mais legítimo o funciona­
mento do poder num a sociedade classista. Conforme expresso por
Bourdieu e Passeron, “Todo poder que consiga impor significados e
impô-los como legítimos, ocultando as relações de poder que são a
base de sua força, acrescenta sua própria força especialmente sim­
bólica àquelas relações de poder” .76
Ê na combinação entre o uso que as escolas fazem de perspec­
tivas neutras que incorporam os interesses de controle técnico e
confiabilidade e a forma como servem aos interesses de reprodução
econômica e cultural que elas realizam suas variadas funções. As
perspectivas técnicas, ensinadas aos educadores e por eles utilizadas
como meros procedimentos, complementam as necessidades de uma

(76) Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Reproduction in Education,


Society and Culture. London, Sage, 1977, p. 5.
228 MICHAEL W. APPLE

sociedade classista de maximização da produção de conhecimento


técnico, de distribuição de um a perspectiva acrítica e positivista e de
produção de agentes com as normas e os valores apropriados para
preencher as exigências da divisão de trabalho na sociedade.77 Isto é
um processo dialético. As escolas também legitimam o papel desse
conhecimento técnico e positivista. Podem, portanto, utilizá-lo como
um conjunto de procedimentos supostamente neutros, baseados em
“princípios fundamentalmente corretos” , para estratificar os estu­
dantes de acordo com sua contribuição para sua maximização e
para as necessidades econômicas. As formas culturais, pois, que
residem na base de nossa mente, que trabalham atreladas ao sis­
tema de relações que a escola m antém com o setor econômico,
ajudam a reproduzir a hegemonia ideológica e estrutural dos que
detêm o poder.
O currículo aberto, o currículo oculto, e a história de cada um
deles, estão vinculados às categorias que utilizamos para dar tão
facilmente significado à nossa atividade cotidiana, que por sua vez
está vinculada aos interesses sociais e os justifica. Pode ser difícil
ver os resultados de nosso trabalho programático e intelectual como
contribuindo com a hegemonia. No entanto, vendo como esses ele­
mentos se ajustam, relacionalmente, às estruturas reais de domina­
ção num a sociedade, podemos agora começar a entender os meca­
nismos através dos quais se dá nas escolas a reprodução econômica e
cultural. Assim, obtemos um quadro mais nítido de por que “ aque­
les que têm, recebem” . Em virtude de muitas das determinações que
examinei nesta obra, nas escolas como em outras instituições, eles
realmente recebem.

(77) Um recente e interessante estudo etnográfico da forma como essa produ­


ção de agentes opera ao nível cotidiano, um estudo que se afasta da visão das escolas
como caixas negras, pode-se encontrar em Paul Willis. Leaming to Labour. West-
mead, Saxon House, 1977.
8
Além da reprodução ideológica

Conhecimento concreto e poder real

Em seu sugestivo exame da formação da consciência ideoló­


gica em sociedades industriais, Stanley Aronowitz rastreia o desen­
volvimento de um a determinada idéia que passou a se sedimentar no.
fundo de nossa mente. A idéia e sua função ideológica são muito
semelhantes ao fio que guiou a análise nos capítulos anteriores e
especialmente no Capítulo 7. Ele sustenta que a hegemonia opera
em grande parte através do controle do significado, através da mani­
pulação das próprias categorias e formas de raciocínio que comu-
mente utilizamos. Portanto, existe um a “tendência interna do capi­
talismo p ara cada vez mais dar às relações entre pessoas o caráter de
relações entre coisas. A produção de mercadorias se impõe em todas
as partes do m undo social” .1 E o m undo social estratificado em que
vivem os educadores é representado pela reificação, a mercantili-
zação, da própria linguagem que utilizam. O controle cultural, pois,
como observaram Gramsci e Williams, atua como um a importante
força de reprodução. Através da definição, incorporação e seleção
do que se considera como conhecimento legítimo ou “ concreto” ,
através da postulação de um falso consenso sobre o que sejam fatos,
aptidões, esperanças e temores apropriados (a forma como todos
deveríamos avaliá-los), estão dialeticamente ligados o aparelho eco-

(1) Stanley Aronowitz. False Promises. New York, McGraw-Hül, 1973, p. 95.
Grifo de Aronowitz.
230 MICHAEL W. APPLE

nômico e o cultural. Aqui conhecimento é poder, mas basicamente


nas mãos daqueles que já o detêm, que já controlam o capital cul­
tural bem como o econômico.
Perfizemos um longo trajeto desde Marx para entender as
conexões entre quais idéias são consideradas como “conhecimento
concreto” num a sociedade e a desigualdade de poder econômico e
cultural em sociedades industriais desenvolvidas. A Ideologia A le­
mã, em que expressou que “ as classes dominantes irão dar a suas
idéias a forma de universalidade e representá-las como as únicas
racionais universalmente válidas” , ainda é um importante ponto de
partida, no entanto, para qualquer tentativa de explicação das rela­
ções entre conhecimento, ideologia e poder. Isto é, por complexa
que seja um a análise (e certamente deve sê-lo), um princípio orien­
tador fundamental dessas investigações é estabelecer as conexões
entre as idéias dominantes de uma sociedade e os interesses de
grupos e classes específicos.
Infelizmente, isso foi interpretado por muitos como um a teoria
conspirativa — por exemplo, há um número relativamente grande
de homens e mulheres no poder que conspiram conscientemente
para a supressão das classes inferiores. O próprio Marx sem dúvida
se referiu a alguma coisa mais complexa com essa afirmação. Sua
posição, que forneceu a estrutura constitutiva para a análise que
aqui se fez de ideologia e currículo, era de que, “ naturalm ente”
originados das relações de produção entre os indivíduos e grupos
sociais, encontram-se os “princípios, as idéias, as categorias” que se
conformam a essas relações de produção (desiguais) e as sus­
tentam .2
Minha prim eira frase foi um tanto enganosa, porém. Em bora
tenha dito “ Perfizemos um longo trajeto (...)” , é ainda problemático
determ inar quem deve ser incluído nesse grupo. Pois, como obser­
vei nos Capítulos 1 e 2, o pronome “nós” aqui se refere a indivíduos
e grupos de pessoas interessadas que se filiaram ao que poderia ser
denominado de tradição crítica neomarxista. E este “nós” em geral
não inclui os sociólogos da educação ou os pesquisadores de currí­
culo, talvez devido à intenção de reformas graduais (compreensível)
que orienta essas áreas.3

(2) Rob Bums. “ West German Intellectuals and Ideology” . New German
Critique, VIII (Spring, 1976), 9-10.
(3) Isto não implica que a melhoria seja necessariamente neutra. Como de­
monstrei nesta obra, as possíveis conseqQências políticas, econômicas e éticas de prá-
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 231

Como vimos, as tradições comuns tanto na sociologia da edu­


cação quanto na àrea do currículo consideram o conhecimento
escolar, aqueles “princípios, idéias e categorias” que são preser­
vados e alojados em nossas instituições educacionais como relativa­
mente neutros. O enfoque tem incidido na quantificação da aqui­
sição de informação, propensões, aptidões e tendências, e no efeito
dessa aquisição na vida futura. Q uanto maior a aquisição desse
conhecimento, o êxito comum desses “paradigm as” , tanto maior
será o sucesso da escola. A tradição alternativa que empreguei aqui,
profundam ente estabelecida na sociologia do conhecimento e na
sociologia crítica, compreende as formas do conhecimento curri­
cular um tanto diferentemente. Ela as vê como mecanismos poten­
ciais de seleção e controle sócio-econômico, e desse modo as têm
interpretado, ao menos em parte, através da ótica da afirmação
de Marx.
Essa tradição alternativa, porém, não é vista por seus partici­
pantes (o “ nós” ) como sendo meramente um a postura entre outras.
Pelo contrário, e aqui há total acordo de minha posição, o enfoque
tem estado nas questões prioritárias necessárias que devem ser feitas
antes (e talvez no lugar de) que se se empenhe nos tipos comuns de
pesquisa sobre o conhecimento escolar. Portanto, um conjunto prio­
ritário de questões com relação àquelas geralmente feitas sobre o
êxito e o fracasso das escolas (por exemplo: Os estudantes alcan­
çaram tal ou qual nível de conhecimento?) tem sido de um tipo
lógico e político diferente (A quem pertence esse conhecimento? Por
que está sendo transmitido a esse determinado grupo, dessa forma
determ inada? Quais são suas funções reais ou latentes nas comple­
xas conexões entre o poder cultural e o controle dos modos de
produção e distribuição de bens e serviços num a economia industrial
avançada como a nossa?). Apenas quando pudermos responder a
,-sses tipos de questões é que fará sentido investigar nosso relativo
sucesso em promover a aquisição de determinadas formas de capital
cultural.
Agora deveria ficar claro que esses tipos de investigações
l «i ioritárias têm a ver com questões ideológicas. Por razões políticas
c conceituais, tanto criticam os modos existentes de pesquisa de
, u i nculo quanto sugerem um program a de pesquisa séria como

u. ,i« gradualistas não deveriam nos deixar otimistas com relação a muitas dessas
4< Imimas.
232 MICHAEL W. APPLE

alternativa. Como ressaltaram Young e Bernstein, embora haja


alguma consciência do caráter ideológico dos aspectos da educação,
tem havido pouca ou nenhum a consciência, até muito recentemente,
de que a própria forma e conteúdo das mensagens da sala de aula,
da vida escolar cotidiana, incorporam “transmissões” ideológicas. A
fim de corrigir isto, a seleção e a transmissão de conhecimento e as
idéias que as orientam, então, precisam tornar-se um foco básico de
pesquisa crítica do currículo e sociológica das escolas.4
Visto por essa luz, o estudo do currículo, do que se considera
como o conhecimento escolar apropriado e os princípios usados para
selecioná-lo e avaliá-lo integram um problema maior. Ao longo
desta obra, m inha posição foi a de que essa investigação fornece
um a área através da qual podemos examinar a reprodução cultural e
econômica das relações de classe em sociedades estratificadas desi­
gualmente. Em virtude disso, é im portante observar que essas inves­
tigações da produção e reprodução de hegemonia adquirem seu
significado fundamental não “ apenas” em virtude de sua contribui­
ção para nossa compreensão, embora seja sem dúvida importante.
Seu significado provém também de situá-las num movimento poli­
ticamente progressista mais amplo. De fato existe uma questão
política a ser formulada aqui quanto à atuação desse movimento
político e econômico progressista (e a compreensão que o acom­
panha). Esse movimento deve incorporar um compromisso coletivo
para com essa compreensão. Esse compromisso com o progresso
com partilhado naturalm ente possui características de um a visão
neomarxista, quando posto em termos políticos, e encontra melhor
descrição nos últimos textos de Lucien Goldm ann.5

Na minha opinião, a principal característica específica do pensa­


mento marxista é o conceito de sujeito coletivo: a afirmação de que,
historicamente, a ação efetiva nunca é realizada por indivíduos iso­
lados, mas por grupos sociais, e de que é apenas em relação com estes
que se podem compreender acontecimentos, modos de comporta­
mento e instituições.

(4) Dennis Warwick. “ Ideologies, Integration and Conflicts of Meaning”.


Educability, Schools, and Ideology. Michael Flude e John Ahier (orgs.). London,
Halstead Press, 1974, p. 89.
(5) Lucien Goldmann. Power and Humanism. London, Spokesman Books,
1974, p. 1.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 233

Por objetivos retóricos, Goldmann exagerou um pouco sua


afirmação, mas as implicações de sua posição são muito importantes
na reflexão sobre nosso próprio trabalho. É somente através de
nosso compromisso de examinar coletivamente o trabalho produ­
zido, de usar e ultrapassar determinado nível de obsolescência, com
perseverança, que se poderia fazer algum progresso sério em nossa
compreensão coletiva de instituições como as escolas e influir sobre
elas.
Portanto, não deveríamos esperar que um a pessoa responda,
ou mesmo coloque, todas as questões importantes referentes ao que
poderia ser mais bem visto como a relação entre poder e conhe­
cimento. Certamente, não o fiz neste livro. Pelo contrário, grupos
concretos de pessoas filiadas a uma tradição social e intelectual mais
am pla tornam-se excepcionalmente importantes. Outros, talvez com
a crítica e a destruição do meu texto, serão conduzidos a um a futura
clareza política e conceituai.
Evidentemente, há ainda importantes passos a serem dados no
plano de análise da sociologia e da economia do conhecimento
escolar aqui articulados. Por conseguinte, gostaria de sugerir alguns
procedimentos que poderiam ser proveitosamente empreendidos por
essas análises. Em bora haja um risco em reduzir todo conhecimento
escolar a conhecimento ideológico, e isso seria um a asserção ingênua
do ponto de vista analítico (dois mais dois é ideológico?), muito há
ainda por ser feito quanto à questão de quais são os grupos espe­
cíficos que controlam a seleção do currículo nas escolas.6 A quem
pertence o capital cultural, tanto o manifesto como o latente, que é
introduzido no currículo escolar? De quem é a visão da realidade
econômica, racial e sexual, de quem são os princípios de realidade
econômica, de quem são os princípios de justiça social, que estão
engastados no conteúdo da escolarização? Essas questões lidam com
poder e recursos e controle econômicos (e com a ideologia e a eco­
nomia da indústria editorial também). São provavelmente bem mais
apreendidos por um a análise neomarxista do conteúdo cultural
real. Assim, precisam ser desmascaradas em suas representações
concretas nas escolas.
A fim de realizar isso, precisamos de um a sociologia crítica
radical das formas culturais que esteja ligada ao modo como esses

(6) Levei avante algumas propostas de pesquisa a esse respeito em Michael W.


Apple. ‘‘Politics and National Curriculum Policy” . Curriculum Inquiry, VII (n. 4,
1978), 355-61.
234 MICHAEL W. APPLE

artefatos culturais são distribuídos na sociedade. Por conseguinte,


o estudo da relação entre ideologia e currículo precisa ver-se a si
próprio como detentor de fortes ligações com apreciações sócio-
econômicas de outros mecanismos sociais que preservam e distri­
buem a cultura de elite e a popular. A obra de Lukacs, Williams, e
Goldmann, por exemplo, torna-se muito importante se devemos
começar a entender como o conteúdo e a forma do conhecimento
escolar (como o conteúdo e a forma de importantes romances e
dramas) estão relacionados com as estruturas do contorno social de
economias industriais avançadas de tendência individualista como a
nossa.7 O conhecimento que se introduz nas escolas — aqueles
“princípios, idéias e categorias legítimos” — origina-se de uma
história específica e de um a realidade econômica e política especí­
fica. Para ser entendido é preciso recolocá-lo naquele contexto sócio-
econômico.
Mas como isso deve ser realizado? Para abordar mais comple­
tam ente a relação entre ideologia e cultura, entre poder e conhe­
cimento, essas investigações exigem ligações entre nossas conside­
rações das formas que dominam as escolas e um a análise mais
estrutural dos tipos de possibilidades imaginativas, que são vistas
como legítimas pela sociedade mais ampla. Assim, por exemplo,
teríamos de investigar não apenas o conhecimento escolar manifesto
e o oculto e as bases ideológicas, éticas e avaliativas das formas como
comumente consideramos nossa atividade nas escolas, mas também
dos outros aspectos do aparelho cultural de uma sociedade. A tele­
visão e os meios de comunicação de massa, os museus e anúncios,
filmes e livros, todos fazem contribuições permanentes à distribui­
ção, organização e, acima de tudo, ao controle do significado so­
cial.8 Esses artefatos, quando acrescentados aos interesses pelos
currículos que enfoquei aqui, podem então ser ligados de uma tal
forma que podemos revelar como a organização cultural das quali-

(7) Ver, por exemplo, Fredric Jameson. Marxism and Form. Princeton Uni­
versity Press, 1971; Raymond Williams. Marxism and Literature. New York, Oxford
University Press, 1977; Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto&
Windus, 1961; e Lucien Goldmann. Towards a Sociology o f the Novel. London,
Tavistock, 1975. Examinei isto mais profundamente em Michael W. Apple. “ Ideo­
logy and Form in Curriculum Evaluation” . Qualitative Evaluation. George Willis
(ed.). Berkeley, McCutchan, 1978.
(8) Ver, por exemplo, Michael W. Apple e Jeffrey Lukowsky. "Television and
Cultural Reproduction” . Journal o f Aesthetic Education, noprelo.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 235

dades hum anas está relacionada às condições que se desenvolveram


historicamente de sistemas econômicos classistas como o nosso.9
Esses tipos de investigações não se mantêm sozinhos. Uma
teoria estrutural do conhecimento escolar, e o problema da repro­
dução cultural e econômica das relações de classe que se instaura
por trás dele, faz parte de uma tarefa mais ampla de demonstrar
tanto analítica quanto empiricamente que as desigualdades são
“ naturalm ente” oriundas dos programas econômicos, sociais e cul­
turais existentes. Essas desigualdades não são desajustamentos
fixos, mas, pelo contrário, são regularizadas. Estão dialeticamente
entrelaçadas e conectadas com questões de poder e controle econô­
mico e cultural.10 Portanto, qualquer interesse sério pela relação
entre ideologia e currículo torna-se ainda mais forte na medida em
que visa, também, a explicar a economia política da educação for­
mal. De fato, pode ser quase impossível haver um sem o outro.11
Ao longo deste livro, m inha posição incorporou um compro­
misso político. Implícita na minha exploração de alguns aspectos da
formas como as escolas e os intelectuais funcionam na reprodução
cultural e econômica das relações de classe encontra-se um a reivin­
dicação de que é muito difícil que a teoria educacional e social seja
neutra. Portanto, como afirmei no Capítulo 1, a pesquisa do currí­
culo e a pesquisa educacional mais geral precisam originar-se numa
teoria de justiça econômica e social, num a teoria que tenha como
seu principal enfoque aum entar o privilégio e o poder dos menos
privilegiados. Defender isso é também argumentar que tanto os
temas de nossas teorias e pesquisa quanto as explicações finais das
relações entre os fenômenos estudados são em geral tacitamente
juízos do tipo de sociedade em que vivemos.12 Talvez, à medida que
adquirirmos um juízo mais claro do tipo de sociedade em que vi-

(9) Eberhard Knõdler-Bunte. “The Proletarian Sphere and Political Orga­


nization” . New German Critique, IV(Winter, 1975), 53.
(10) Para uma abordagem interessante da forma como essa perspectiva tem
sido aplicada a uma área de política social diferente da educação, ver Ian Taylor,
Paul Walton e Jock Young. “Towards a Critical Criminology” . Theory and Society, I
(Winter, 1974).
(11) Samuel Bowles e Herbert Gintis. Schooling in Capitalist America. New
York, Basic Books, 1976, é o primeiro passo para uma economia política da edu­
cação. É, porém, falho na medida em que não leva em conta a reprodução cultural
com exceção de sua discussão das normas e das tendências que as escolas tanto
transmitem quanto reforçam.
(12) Taylor, Walton e Young, op. cit., p. 463.
236 MICHAEL W. APPLE

vemos, nossa compreensão dos papéis desempenhados pela escola


na reprodução dessa sociedade também irã adquirir maior nitidez.
Tentei m ostrar aqui aonde poderia proveitosamente chegar a busca
coletiva de um a compreensão como essa, tanto no plano conceituai
como no político. Pois, afinal, o juízo pessoal de nosso papel na
sociedade em que vivemos não é uma questão abstrata. É uma ques­
tão que todos devemos enfrentar. Fazer menos é ocupar o papel do
indivíduo abstrato, que não se encarrega de investigar as relações
concretas que se mantêm com grupos de pessoas que produzem as
condições que nos possibilitam realizar nosso trabalho. Deixar de
considerar isso relacionalmente de fato comprovaria a asserção de
Williams de que está desgastada nossa idéia de comunidade.
Talvez Williams tenha razão. As regras conceituais que utili­
zamos para definir nossas situações, para projetar nossas escolas
e selecionar e distribuir as tradições que devem ser preservadas e
distribuídas por elas mostram um claro menosprezo por essas apre­
ciações críticas. Vencer esse menosprezo exigiria um a teoria crítica e
coerente da ordem social em que vivemos. Mas esta é exatamente a
questão. Pois não apenas deixamos de situar o conhecimento que
transmitimos, as escolas que ajudamos a m anter e a nós mesmos nas
relações estruturais básicas de que fazem e fazemos parte, como
também reconhecemos erroneamente os lucros diferenciais dessas
próprias estruturas básicas.
Isto não é sem importância. Exatamente como nossas prá­
ticas, valores e teorias em educação fundadas no senso comum são
aspectos da hegemonia, nossa consciência (ou falta dela) do funcio­
namento das estruturas de nosso sistema político e econômico opera
de forma semelhante. Também nos força a não pensar estrutural
ou relacionalmente. Determina limites quanto ao campo interpre­
tativo que damos para definir nosso sistema econômico, cultural e
político. Pelo contrário, substituímos uma noção não crítica — que
é distribuída pelas escolas, pelos meios de comunicação e outros
mecanismos de uma cultura dominante efetiva — de democracia
pluralista que não apresenta um a definição adequada da forma
como o interesse e o poder realmente operam num a economia indus­
trial avançada.
A discussão de Navarro sobre a natureza do “ pluralismo”
numa sociedade classista é instrutiva aqui, especialmente seus argu­
mentos sobre a forma como um a visão de democracia pluralista
encobre os verdadeiros conflitos que existem e os usos diferenciais de
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 237

poder para determinados grupos obterem o que querem às custas dc


outros.13

Deixe-me acentuar aqui que a predominância de membros dos seto­


res industrial, bancário, etc. e da alta classe média em nossos corre­
dores políticos do poder não é a causa mas, sim, um sintoma do
padrão de dominância de classe em nossa sociedade. Deixe-me ainda
sublinhar que não presumo que a classe dominante seja uniforme ou
que todos seus membros compartilhem os mesmos interesses. De
fato, as classes sociais são divididas de acordo com os blocos de poder
que lutam por influência política, e é essa competição que geralmente
passa em nossos meios de comunicação e na academia como o "gran
de pluralismo norte-americano” .
Mas nessa competição por influência política, os blocos de poder da
alta classe média e da classe industrial e bancária consistentemente
exercem cada vez mais influência sobre os órgãos do Estado que os blo­
cos de poder que pertencem à classe média inferior e às classes
trabalhadoras. Como sugeriu Schattschneider, “A falha no paraíso
pluralístico está em que o coro celestial canta num tom muito espe­
cial. (...) O sistema é torto, tendencioso e desequilibrado em favor de
uma fração de uma minoria” . De fato, subjacentes e transcendentes a
esses interesses de blocos de poder específico, existem interesses de
classe muito mais importantes que são superiores para explicar o
comportamento político de nosso sistema. Portanto, muito freqüen-
temente a legislação federal produz um padrão consistente de efeitos
que beneficiam os 20% no topo mais do que os 80% que se acham na
base de nossa sociedade.

Portanto, capital econômico leva a capital econômico. E, ain


da que nossas convicções ideológicas nos façam crer que seja de
outro modo, a forma política e os interesses econômicos dos pode
rosos estão reunidos nos benefícios concretos naturalm ente origi
nados dessa conjuntura.
Tentei elucidar como essa estreita conexão entre poder e con­
trole que existe entre o governo e as classes dominantes, como
descreve Navarro, também existe entre a escola e esses grupos. C,
pois, conjugando a análise econômica e a cultural, e enfocando os
mecanismos históricos e presentes que permitem que os educadores
e as escolas continuem em seus papéis de reproduzir o indivíduo

(13) Vicente Navarro. Medicine ünder Capitalism. New York, Neale Watson
Academic Publications, 1976, p. 91.
238 MICHAEL W. APPLE

abstrato, a tradição seletiva, o consenso ideológico e a hegemonia,


que podem ser esclarecidos esses tipos de conexão.

Além da reprodução

Ao longo deste livro, utilizei a linguagem de distribuição e


reprodução. Essa linguagem tivera a vantagem conceituai de ajudar
a desvendar o poder que as instituições existentes têm para crescer,
para impor limites à ordem social e às nossas formas de consi­
derá-las, de modo que são maximizados os benefícios dos que detêm
o capital cultural e econômico. Mesmo com esse tipo de vantagem
conceituai, as próprias metáforas a que recorri podem ocultar al­
guma coisa. O conceito de reprodução pode levar a um a suposição
de que não exista (e talvez não possa existir) nenhuma oposição
significativa a esse poder.14 Não é este o caso. Á luta contínua por
direitos democráticos e econômicos empreendida por operários, po­
bres, mulheres, negros, índios, latinos e outros serve de forte alerta
para a possibilidade e a realidade de ação concreta. Boa parte dessa
luta permanece relativamente descoordenada e sem um a teoria coe­
rente de justiça social por trás de si. Parte dela foi “incorporada” em
procedimentos que não constituem ameaça alguma a quaisquer
interesses estabelecidos.15 O utra grande parte permanece sem re­
gistro nos meios de comunicação e sem registro no “conhecimento
legítimo” que encontramos nas escolas. No entanto, o próprio fato
de que novamente existem sérios movimentos democráticos de orien­
tação socialista e grupos de estudo no meio operário, de que existem
grupos de estudo da história da classe operária entre professores e
administradores em diversas escolas, de que existem polêmica, de­
bate e interesse renovado nas universidades, entre grupos oprim i­
dos, e em outros locais, por um a teoria marxista e ação coletiva —
tudo aponta para o problema de se utilizar o conceito de reprodução
não criticamente.
Certamente, devemos ser honestos quanto aos meios como o
poder, o conhecimento e o interesse estão inter-relacionados e m ani­
festos, quanto ao modo como a hegemonia é econômica e cultural-

(14) Agradeço à Professora Yolanda Rojas da Universidade da Costa Rica por


muitos desses argumentos.
(15) Ver a discussão da história de alguns aspectos do movimento trabalhista
norte-americano em Aronowitz, op. cit.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 239

mente preservada. Mas, também precisamos lem brar que o verda­


deiro sentido de futilidade pessoal e coletiva que pode surgir dessa
honestidade é ele próprio um aspecto de uma cultura dominante
efetiva. Enquanto forma ideológica, pode nos afastar da ação con­
creta sobre as condições que nos negam “ os valores que mais preza­
mos” .
Existe, entretanto, um outro lado dessa questão de um sentido
de futilidade. Envolve a crença simultânea de que qualquer ação a
nível de reforma gradativa nas escolas, no local de trabalho ou em
qualquer outro local apenas se prende a um sistema classista. Essa
posição é exatamente problemática.
É um a proposição estranha, creio, a noção de que toda ação
de reforma gradativa é uma espécie de suborno inconsciente pago
pelos reformadores liberais às mulheres, negros, operários e outros,
um suborno que os impede de fazer pressões por mudanças estru­
turais. Baseia-se num a suposição de probabilidade muito simplista.
Presume que há um a correspondência total e exata entre procurar
tornar a vida um pouco melhor hoje ou no futuro próximo e evitar
um a revolução que surgirá naturalm ente se apenas esperarmos que
as condições fiquem suficientemente más para isso. A lógica aqui é
muito estranha, para se dizer o mínimo. O status da palavra “ n atu­
ralm ente” é muito estranho, de vez que implica um retorno a um a
concepção mecanicista da história. Presume que existam leis im utá­
veis de desenvolvimento económico e político, leis que não são feitas
e refeitas pela prática hum ana concreta de grupos conscientes de
atores humanos.
Ademais, um a noção como essa é singularmente anistórica.
Como Aileen Kelly elucidou em suas observações sobre a relação
entre a política socialista e a reforma gradativa, essas lutas são
decisivas para melhorar as condições cotidianas de nossas institui­
ções econômicas e culturais. Elas podem transformar-se no que a
autora chama de “ lutas políticas” . 16 Isto é, apenas, com a ação
sobre questões cotidianas, uma estrutura crítica pode tornar-se sen­
sata. Não se em penhar nessa ação bem elaborada é perder a opor­
tunidade para a educação política e para pôr as teorias em p rá tic a.17

(16) Aileen Kelly. “ A Victorian Heroine: A Review of Eleanor Marx”. New


York Review o f Books, XXIV (26 January 1978), 28.
(17) Essa combinação de esforços nas questões cotidianas com os objetivos a
longo prazo é excepcionalmente relatada por William Hinton. Fanshen. New York,
Vintage, 1966.
240 MICHAEL W. APPLE

Que será do currículo?

Esses aspectos possuem importantes implicações para repen­


sar algumas de nossas observações ideológicas como especialistas em
currículo, pesquisadores e educadores, além das sugestões para
análises que discutimos no início deste capítulo. Para levá-las a
sério, nosso movimento deveria afastar-se da estrutura adm inistra­
tiva e “pré-científica” , fundada nas tradições de desempenho e so­
ciabilização que agora orientam a maioria dos trabalhos da área, e
voltar-se para um a estrutura política e ética. Em bora certamente
exista um a necessidade de conhecimento técnico na área — afinal os
especialistas em currículo são exortados a auxiliar no projeto e
criação de equipamentos concretos baseados em nossas diversas
visões educacionais —, em geral um a perspectiva técnica e científica
fornece os problemas, e outras considerações como as analisadas
nesta obra são reflexões posteriores, se são de algum modo levadas
em consideração. Uma relação mais apropriada exigiria que a
“ciência” educacional e a competência técnica fossem asseguradas
firmemente num a estrutura que continuamente procurasse ser auto­
crítica e colocasse no centro de suas deliberações tanto a responsa­
bilidade ética e social quanto a procura por um conjunto de insti­
tuições econômicas e culturais que torne assim possível essa respon­
sabilidade coletiva.
Habermas amplia essas idéias e suas implicações para a re­
construção da pesquisa e da prática do currículo. Mantém que as
instituições de controle e burocratizadas de sociedades como a nossa
exigem cada vez mais conhecimento científico e técnico. A comuni­
dade científica, por exemplo, cria racionalidades e técnicas novas
que possibilitam o controle e dominação de indivíduos e grupos por
forças econômicas e ideológicas. Entretanto, embora essas comuni­
dades produzam dados que sustentam as marcas específicas e meca­
nismos institucionalizados de reprodução e controle, também se en­
contram num a posição estratégica cada vez mais centralizada. Em
virtude das contradições estruturais nas universidades e em virtude
de as normas sociais básicas que idealmente orientam as diversas
comunidades “científicas” e “intelectuais” fundamentarem-se for­
temente num a base de comunicação franca e honesta,18 existe

(18) Cf. Norman Storer. The Social System o f Science. New York, Holt, Rine­
hart & Winston, 1966.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 241

um potencial nesses grupos, assim como nos movimentos operários,


das mulheres e outros pelo reconhecimento do controle e dominação
desnecessários que existem em muitas das instituições da sociedade.
Além disso, o reconhecimento mesmo de um a pequena parcela da
comunidade de estudiosos e práticos da educação das perspectivas
pré-científicas que dominam suas ações, racionalidade, linguagem e
pesquisas, teria o efeito construtivo de iluminar o modo como as
formas educacionais e outras de pesquisa e reforma social perdem o
significado ético, econômico e político de seu trabalho.19 Em outras
palavras, o desenvolvimento de um a perspectiva crítica na comuni­
dade educacional pode “contribuir para a criação de programas
alternativos de pesquisa e desenvolvimento” que desafiam as supo­
sições fundadas no senso comum em que se baseia a área.
Exatamente tão importante, dessa form a:20

Pode-se criar um conhecimento que se relacione com as necessidades


das pessoas que estão tentando construir a comunidade social, com­
bater a manipulação cultural, facilitar os movimentos de descentra­
lização e em geral contribuir para a atualização das necessidades
humanas que de outro modo são ignoradas. Reorientando a comuni­
dade científica, ou pelo menos parte significativa dela, [as perspec­
tivas críticas] podem se tomar uma força material para a mudança;
contrapondo-se ao impulso corrente da ciência em direção da forma­
ção e implementação da política estatal.

Esses argumentos implicam que os modelos de defesa da pes­


quisa e prática são criticamente necessários se deve ser alcançado
algum progresso substancial.
Aqui se deve, porém, encarar a realidade. Para muitos, a
própria idéia de se reconquistar algum controle real sobre as insti­
tuições sociais e o desenvolvimento pessoal é abstrata e “ sem sen­
tido” . Em geral, a hegemonia existe de fato e muitos vêem as
instituições econômicas, sociais e educacionais como basicamente
autogestivas, com pouca necessidade de sua participação e de que se
manifestem e se coloquem contra os meios e fins dessas mesmas
instituições. Ainda que seja muito evidente a desintegração de as­

(19) Schroyer. The Critique o f Domination. New York, George Bra/.iller,


1973,p. 165-6.
(20) Ibid., p. 172.
242 MICHAEL W. APPLE

pectos da vida familiar, das escolas, tTabalho, saúde, etc. (embora a


centralização do controle desses aspectos de nossa vida colètiva
esteja se tornando mais encoberta pela retórica liberal e pluralista),
as categorias básicas da lógica industrial tornaram-se tão parte do
senso comum, que muitas pessoas deixaram mesmo de ver a neces­
sidade de emancipação, a não ser em termos de um sentido anômico
que perpassa alguns segmentos da população. Isto torna cada vez
mais essencial, por exemplo, o desenvolvimento de um a comunidade
crítica do currículo, de vez que dela pode se originar um a parte da
crítica sistemática das categorias e práticas básicas que povêm das
instituições problemáticas e dos agentes que as ocupam, bem como
ajudam a produzi-las. Isto é, umas das condições fundamentais de
emancipação é a capacidade de “ver” o funcionamento real de
instituições em toda a sua complexidade positiva e negativa, para
esclarecer as contradições das regularidades vigentes e, finalmente,
ajudar outros (e deixá-los nos ajudar) a “ lem brar” as possibilidades
de espontaneidade, opção e modelos de controle mais igualitários.21
Isto significa que os especialistas em currículo devem tomar
um a posição de defesa quanto a um a série de fronts críticos, tanto
dentro quanto fora da educação. Entre as posições “ internas” mais
importantes, se encontraria a de defesa dos direitos estudantis (e dos
direitos democráticos de professores, grupos oprimidos, e outros).
De vez que o currículo enquanto área tem como um de seus inte­
resses primordiais a tarefa de criar acesso ao conhecimento e à
tradição, especialmente àquelas áreas que têm sido vítimas da tradi­
ção seletiva, a questão do direito de o estudante ter livre acesso à
informação política e culturalmente honesta e à expressão pública
com base nisto não pode ser separada da nossa própria procura de
contornos educativos justos.22
Não somente um modelo de defesa e crítica deveria nos guiar
nas questões de direitos econômicos, legais e culturais de estu­
dantes, professores e grupos oprimidos, mas há um a profusão de
outras questões no uso cada vez maior de modelos terapêuticos em
educação, modelos que servem como desculpa para modificar a

(21) Schroyer, op. cit., p. 248. Ver tambim Hinton, op. cit., e Joshua S.
Horn. Away With All Pests. New York, Monthly Review Press, 1969.
(22) Michael W. Apple. "Justice as a Curriculum Concern”. Multicultural
Education. Carl Grant (ed.). Washington, Association for Supervision and Curri­
culum Development, 1977, p. 14-28.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 24.1

criança em lugar de tornar a estrutura sbcial e intelectual da escola


cada vez mais auto-responsável.
Tome-se em consideração, por exemplo, o rápido crescimento
atual de um a linguagem de “enfoque” por parte dos educadores. A
modificação de comportamento ou um a abordagem de objetivos
“ comportamentais” pode novamente oferecer alguns “ tratam entos"
especificáveis para produzir alguns “ resultados” ou efeitos especi
ficáveis. Descontando-se o fato de que as supostas relações de causa
e efeito entre tratam ento e resultado são, psicológica e logicamente,
difíceis de estabelecer, existem implicações éticas e especialmente
legais com relação às visões de onde provêm categorias, rótulos e
procedimentos clínicos e terapêuticos que precisam ser postos em
destaque e que podem fornecer meios táticos para desafiar muitas
das práticas comuns em instituições educacionais.
Vários juristas tom aram a posição de que, antes de serem
adotados programas terapêuticos de qualquer tipo, há alguns crité­
rios que precisam ser satisfeitos. Primeiro, precisamos constatar que
o motivo que se acha por trás deles é yerdadeiramente terapêutico, e
que é improvável que seja pervertido em apenas um mecanismo de
controle social. Como vimos, no entanto, boa parte do trabalho com
currículo no passado, no entanto, funcionou exatamente dessa
forma. Isto vale especialmente quanto à ideologia de controle na
linha de avaliação e verificação,23 embora a mesma coisa pudesse
ser dita a respeito de muitas práticas educacionais que continuamos
a empregar, os tipos de instituições que projetamos e as formas de
interação que as dominam. Esse questionamento deve ser visto não
apenas com relação ao passado e ao presente, mas também em
termos de futuro. Nenhum program a amplo de avaliação e recu
peração, de remediação, melhoria e “ apoio” , deveria receber en­
dosso institucional com base em que os práticos exigem bem mais
flexibilidade nos métodos que podem usar para serem mais eficazes,
sem ao mesmo tempo m ostrar claramente que não excede o que é
necessário para alcançar seus objetivos (se de fato os objetivos e
meios são ética, política e educacionalmente justos).
Segundo, o program a deve demonstrar, antes de sua imple
mentação, que é capaz de realizar seus objetivos. Sem isso, “o

(23) Clarence Karier. “ Ideology and Evaluation” . Educational Evaluation


Analysis and Responsability. Michael W. Apple, Michael J. Subkoviak e Henry S
Lufler, Jr. (orgs.). Berkeley, McCutchan, 1974, p. 279-320.
244 MICHAEL W. APPLE

program a pode se tornar uma intervenção na vida e nas liberdades


das pessoas sem nenhum a finalidade aceitável. O indivíduo terá sido
sacrificado, e a sociedade nada terá conquistado” . Terceiro, e talvez
o mais importante para esta minha análise, quaisquer efeitos cola­
terais indesejáveis, quaisquer consequências latentes dessa interfe­
rência na vida de um indivíduo que possam ser antecipadamente
vistos devem ser conhecidos de antemão e adequadamente p o n ­
derados ,24 Como demonstrei aqui, são de fato profundas algumas
das contradições e das conseqüências éticas e políticas latentes de
nosso próprio trabalho.
Os educadores têm muito a aprender com o fato de que
técnicas de controle social e de comportamento novas e notavel­
mente crescentes parecem criar um ímpeto que as faz serem genera­
lizadas além de sua situação imediata. Portanto, qualquer uso que
se proponha fazer delas deve ser examinado muito pormenoriza­
damente e deve no mínimo incorporar salvaguardas de procedimento
para estudantes e os pais que impeçam o abuso dos programas e que
garantam que são compatíveis com um a sociedade (supostamente)
diversa e pluralista.25
Essas versões e salvaguardas legais são apenas um passo, no
entanto, e de fato representam um a abordagem lim itada do pro­
blema do controle e dos usos éticos de nossas práticas e visões
fundadas no senso comum, embora possam ser importantes, como
observei, para estim ular a ação concreta e para a educação política.
Um segundo passo é examinar e formular criticamente questões
sérias a respeito da própria base desses programas e processos e seu
papel na criação da hegemonia. Como um exemplo cotidiano, tome-
se em consideração, por exemplo, o desenvolvimento de um modelo
terapêutico quanto a valores, materiais e técnicas de esclarecimento
encontrados em Estudos Sociais. São exemplos da transformação
contínua de interesses de classe manifestos na linguagem científica e
liberal de apoio neutro, exemplos do poder da escolarização de
ampliar seu caráter racionalizador até as tendências mais específicas
e pessoais de estudantes, de modo que estes possam ser mais bem
controlados? São indicativas da necessidade de um a sociedade do­
minada por interesses de controle, acumulação de capital, raciona-

(24) Nicholas N. Kittrie. The Right to Be Different: Deviance and Enforced


Therapy. Baltimore, John Hopkins, 1971, p. 336.
(25) Ibid. , p. 339.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 245

lidade instrumental e confiabilidade para “formar” indivíduos que


se sentem integrados em instituições que têm pouco significado
pessoal? São o equivalente, como desconfio, do aumento do uso de
procedimentos de Relações Humanas no local do trabalho para
aumentar o controle da mão-de-obra operária e adm inistrativa?26
Embora não sejam facilmente respondidas, estas questões devem ser
examinadas se os especialistas em currículo e outros educadores
devem se conscientizar das funções ideológicas latentes de seu tra ­
balho.
Deveria ficar claro, portanto, que parte da tarefa de estabe­
lecer uma base mais firme para a área do currículo e a educação em
geral está em seus práticos distanciarem-se daqueles que detêm o
poder econômico e político e os meios de acesso a eles, hoje muito
limitados. Com isso, não quero dizer que os especialistas em currí­
culo não deveriam se em penhar em discussão e análise política e
econômica. O caso é bem o contrário. Os membros da área precisam
afastar-se de sua posição de aceitação total da ideologia e das
instituições que prevalecem em sociedades industriais como a nossa.
Precisam se filiar a grupos culturais, políticos e econômicos que
estejam trabalhando conscientemente para modificar os programas
institucionais que impõem limites à vida e às esperanças de muitas
pessoas nesta sociedade. Evidentemente, isto envolve um a forma
difícil de questionamento. Contudo, a menos que olhemos para
outras formas de ação e reflexão, como as criadas a partir das
tradições a que me referi, tradições que possam nos capacitar a
levantar temas mais im portantes e a nos empenharmos em ação
coletiva efetiva, estaremos longe de sermos honestos para com nós
mesmos. Conseqüentemente, luto aqui por um a redefinição de nos­
sas situações, um a redefinição que reconheça, não o ideal ideológico
do intelectual descompromissado, mas, sim, por um a redefinição
que leve a sério o envolvimento apaixonado que Gramsci exigiu em
seu conceito do intelectual orgânico que participa ativamente da
luta contra a hegemonia.27
É preciso que se enfrente com muita franqueza, acredito,
ainda um conjunto final de questões. Podemos, como educadores,

(26) Harry Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York, Monthly
Review Press, 1975.
(27) Car! Boggs. Gramsci’s Marxism. London, Pluto Press, 1976, em especial
o Capítulo V. Isto nào é apenas um ideal teórico. Podem-se encontrar em Cuba
modelòs desse papel sobre os quais desejamos refletir.
246 MICHAEL W. APPLE

adm itir a probabilidade de que a confiabilidade não sobreviverá, de


que muitas de nossas respostas e de nossas ações serão contingentes
e ambíguas? Com isto em mente, como podemos nos comprometer
com a ação? Parte da resposta a isso está na percepção de que nosso
próprio comprometimento com a racionalidade em seu sentido mais
amplo exige que comecemos a dialética da compreensão crítica que
fará parte de nossa práxis política. Ainda uma outra parte da
resposta é esclarecida pelas minhas discussões neste livro. Até nossa
atividade “ neutra” pode não ser assim tão neutra. Nosso trabalho já
serve a interesses ideológicos. Não há escolha, a não ser estar com­
promissado.
primeiros vôos
um encontro com ensaístas
que fazem da teoria
uma prática inteligente.

Assembléia Constituinte
a legitimidade recuperada
Raymundo Faoro

Uma Introdução â História


Ciro Flamarion Cardoso

Alienação e Capitalismo
Laymert Garcia dos Santos

Conservadorismo Romântico
origem do totalitarismo
CONSERVADORISMO
ROMANTICO
Roberto Romano
origem do *.**?< l
totalitarismo —K
roberto romano

Sob a aparência de uma


análise de pensamentos presos
ao século XIX, o raciocínio é
encaminhado para uma
reinterpretação do aqui e do
agora, sugerindo uma singular
leitura do fenômeno totalitário.
Fundamentos da Escola
do Trabalho
Pistrak

Instrumento capaz der conscientizar o


homem da luta contra uma
realidade opressora, a Escola do
Trabalho nasce sob as luzes do
método dialético. Segundo Pistrak,
cabe à escola a preparação de
trabalhadores completos; daí a
necessidade de ela fornecer ãs
crianças uma formação básica de
cunho técnico e social.

Desregulagens -
Educação, Planejamento e Tecnologia
como Ferramenta Social
Laymert Garcia
dos Santos

Esse trabalho é uma análise crítica


do Projeto SACI/EXERN que, no final
da década de 60 e primeira metade E0UCACÃ0. P LA N E JA M E N T O (
IECNÛ18EIA COMO FERRAMENTA SOCIAL
da seguinte, se propunha a
revolucionar a escola primária l AYMERT GA RC IA DOS S A N T O S

brasileira graças à utilização


planejada e sistemática de
tecnologia avançada (satélite
educativa, televisão, computadores).
Uma discussão teórica sobre o papel
da técnica nas sociedades
caDitalistas encerra o livro.

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