Você está na página 1de 14

f t I I fc

EDUCPÇAO E M ^ÇA O

Sonia Kramer
A organização
curricular constitui um
dos maiores desafios
(organizadora)
Professora universitária. Pesquisadora nas áreas de educação
pré-escolar, linguagem e alfabetização, formação de professores.

colaboração:
da escola brasileira. Ana Beatriz Carvalho Pereira
Como elaborar
propostas pedagógicas Maria Luiza M agalhães Bastos Oswald
que levem em conta a Regina de Assis
grande diversidade das
nossas populações
infantis e, ao mesmo
tempo, garantam o
desenvolvimento pleno
da criança e o seu
acesso ao
conhecimento?
O livro Com a
COM A PRE-ESCOLA
pré-escola nas mãos
apresenta uma das
possíveis respostas
para essa instigante
NAS MÃOS
questão. Trata-se de Uma alternativa curricular para a educação infantil
uma proposta
curricular que tem
como objetivo um
trabalho pedagógico
eficiente, em especial
com crianças entre 4 e
6 anos. Mais do que um
texto puramente teórico
ou simples manual de
atividades, este livro é o \ r .
resultado de uma
prática de longos anos FABEL LIO TECA
das autoras em defesa v ^ %
Pr«fS d t uieliu üe Ò ouíü B t u f a p>
Responsabilidade editorial
Fernando Paixão
Preparação dos originais
Denise Azevedo de Faria
Colaboração pedagógica
Márcia de Oliveira Torcatto
Edição de arte
Milton Takeda
Divina Rocha Corte
Coordenação de composição
(Produção/Paginação em vídeo)
Neide Hiromi Toyota
Alice Yuriko Someda
MM)*#» apa
Mm Fiíia. fü;éj de M pM ic( sar Pereira
f ABr t A nossos filhos e filhas,
Registro n2 üata
a todas as crianças com quem trabalhamos,

1311 - 06-/U p o r nos ensinarem que — mais do que conservar


o novo — é preciso renovar o velho, a cada dia...
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Bartira Gráfica e Editora Ltda.

EDITORA AFILIADA

14a EDIÇÃO
9a impressão

ISBN 978 85 08 03517-5

2007
Todos os direitos reservados
pela Editora Ática.
Av. Otaviano Alves de Lima, 4400
CEP 02909-900
São Paulo, SP
Tel.: (11) 3990-2100
Fax: (11)3990-1784
internet: www.atica.com.br
www.aticaeducacional.com.br
16
CAPÍTULO 1
dita normas — é uma síntese provisória do trabalho escolar, que
como tal deve ser atualizado, transformado, refeito.
O segundo aspecto, estreitamente relacionado ao anterior,
é o de que é preciso compreender o currículo como guia que Fundamentos teóricos
apóia e complementa, mas jamais substitui o trabalho criati­
vo, professores e alunos. Assim, o currículo não pode ser visto
como um conhecimento pré-concebido que define conteúdos e
da proposta
estratégias metodológicas meramente executados por professores
e alunos. A prática pedagógica, entendida como prática social
viva e ativa, confirma, nega, acrescenta e reduz aspectos e te­
mas ao currículo, que é, dessa forma, instrumento constante­
mente avaliado.
Para isso, no entanto, se coloca como crucial explicitar
um terceiro aspecto: o currículo sintetiza a orientação teórico-
metodológica da proposta, mas não exclui a necessidade de aper­
feiçoamento contínuo e atualização pedagógica dos professo­ T T oda proposta pedagógica deve ser sempre orientada por pres­
res. A fim de que os professores e a equipe como um todo pos­ supostos teóricos que explicitam as concepções de criança, de
sam (re)elaborar e (re)definir o currículo — bem como a sua educação e de sociedade. Com a finalidade de definir tais pres­
prática cotidiana —, é essencial que tenham acesso aos conhe­ supostos, recorremos inicialmente à história, à sociologia, à an­
cimentos que vêm sendo produzidos. Dessa forma, lhes será pos­ tropologia e à psicologia, por considerar que essas áreas do co­
sível não apenas reproduzir mas fundamentalmente renovar, nhecimento são capazes de fornecer uma fundamentação teó­
produzir o seu conhecimento coletivamente, avançando na re­ rica sólida, a partir da qual a proposta pode ser delineada. Ex­
flexão e na atuação pedagógica. plicitamos, em seguida, as principais teorias e tendências peda­
Talvez não fosse necessário dizer, mas toda essa ação está gógicas que têm informado a prática da educação de crianças
condicionada a condições de trabalho e salariais dignas, e a re­ de 0 até 6 anos, definindo com base nelas nosso posicionamen­
cursos materiais básicos para apoiar a prática docente. Não se to e nossas opções.
trata, pois, de apenas captar o “ espírito” desta proposta, mas
de garantir requisitos fundamentais para torná-la concreta.
Enfim, cabe acrescentar que muitos dos aspectos aqui des­ BASES TEÓRICAS
critos são válidos também para a faixa de 0 a 3 anos, desde que
feitas as devidas adequações e consideradas as especificidades, Situando a educação de crianças de 4 a 6
principalmente no que se refere ao processo de socialização. Ca­ anos no Brasil — Contribuições da visão
be deixar claro, além disso, que o critério “ idade” é visto aqui histórica
com a flexibilidade que de fato caracteriza as crianças. Assim,
a idade deve ser um dos referenciais considerados na composi­ Recorrendo aos estudos históricos da educação, consta­
ção das turmaç, mas não o único. Nesse sentido, também, não tamos que, no contexto brasileiro, apenas nos últimos cinqüenta
apresentamos no currículo situações ou atividades específicas anos é que a educação passou a ser encarada como dever do
por faixa etária, na medida em que essa adaptação é função Estado e direito de todos os cidadãos, situando-se, nesse aspecto
do planejamento que, por sua vez, é feito a partir do contexto em especial, a educação elementar de 4 anos de duração (a an­
específico de cada turma. tiga escola primária). A partir de 1971, com a Lei 5692, a edu­
18 19

cação básica foi prolongada de 4 para 8 anos de duração, pas­ Definindo o papel da escola —
sando o ensino de 1? grau — dirigido às crianças dos 7 aos 14 Contribuições da sociologia
anos — a ser obrigatório em todo o estado nacional, apesar de Há uma estreita relação entre educação e sociedade. A par­
existirem hoje, ainda, cerca de sete milhões de crianças, um terço tir de uma análise crítica dos estudos e das discussões correntes
da população na faixa dos 7 aos 14 anos, fora da escola. A baixa na sociologia, é possível definir o papel que atribuímos à esco­
qualidade do ensino, aliada à falta de vagas nas escolas em algu­ la na sociedade brasileira, como concebemos as crianças e os
mas regiões do País são as maiores responsáveis por esse fato. adultos que com elas trabalham, e de que forma situamos nos­
A repetência e a evasão são uma constante na escola brasileira, sa própria proposta pedagógica.
e a obrigatoriedade dos 7 aos 14 anos, se bem que estabelecida Entendemos que a escola não tem o poder de mudar a so­
em lei, não é, ainda, realidade para a maioria da população. ciedade, mas, simultaneamente, ela não tem o mero papel de
Se considerarmos, por outro lado, a história e a evolução conservar mecanicamente essa sociedade. A escola de 1? grau
do atendimento às crianças de 0 a 6 anos, o quadro é ainda muito e também a escola para crianças até 6 anos têm a função de
mais grave. Até muito recentemente, esse atendimento era vis­ contribuir, junto com as demais instâncias da vida social, para
to como tendo caráter apenas médico e assistencial, e as espar­ as transformações necessárias no sentido de tornar a sociedade
sas iniciativas públicas estavam (e estão) imbuídas dessas tôni­ brasileira mais democrática.
cas. É só a partir da década de 70 que a importância da educa­ Cabe dizer, ainda, que não atribuímos à educação de crian­
ção da criança pequena é reconhecida e as políticas governa­ ças de 0 a 6 anos o papel de evitar, por antecipação, os proble­
mentais começam a, incipientemente, ampliar o atendimento, mas da escola de 1? grau. Diferentemente dessa visão compen­
em especial das crianças de 4 a 6 anos. No entanto, essa educa­ satória — que consideramos equivocada e discriminatória —
ção não está assegurada pela legislação, o que, evidentemente, e diferentemente, também, daqueles que não consideram a pré-
dificulta a expansão com qualidade da educação para este ní­ escola importante, temos consciência dos seus limites e das suas
vel. Hoje, então, apenas 10% das 25 milhões de crianças brasi­ possibilidades reais.
leiras de 0 a 6 anos (das quais cerca de 16% são crianças de Por isso, reconhecemos a função pedagógica do trabalho
4 a 6 anos) recebem algum tipo de atendimento, incluindo-se com crianças de 0 a 6 anos, capaz de favorecer o desenvolvi­
aqui dados da rede privada e das iniciativas de órgãos de assis­ mento infantil e a aquisição de conhecimentos, e consideramos
tência social. A nova Carta Constitucional reconhece o dever como extremamente relevantes as contribuições que pode con­
do Estado de oferecer creches e pré-escolas para todas as crianças ferir à escola de 1? grau.
de 0 a 6 anos. No entanto, a fim de que esse reconhecimento A fim de que essa função se efetive na prática, o trabalho
se transforme em realidade, fazendo com que a educação pré- pedagógico precisa se orientar por uma visão das crianças como
escolar se torne verdadeiramente pública, é necessário que ha­ seres sociais, indivíduos que vivem em sociedade, cidadãs e cida­
ja legislação e recursos específicos, estabelecidos não só pela dãos. Isso exige que levemos em consideração suas diferentes ca­
nova Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional, mas tam­ racterísticas, não só em termos de histórias de vida ou de região
bém pelas Constituições Estaduais. geográfica, mas também de classe social, etnia e sexo. Reconhe­
No atual momento histórico é, portanto, fundamental que cer as crianças como seres sociais que são implica em não igno­
se amplie a oferta de educação para crianças de 0 a 6 anos, de rar as diferenças. Os conflitos — que podem emergir — não de­
modo a garantir, a todas, o direito de acesso e permanência. vem ser encobertos, mas, por outro lado, não podem ser refor­
Evidentemente, o trabalho realizado no interior dessa escola deve çados: precisam ser explicitados e trabalhados com as crianças
ter a qualidade necessária para que possa com efetividade be­ a fim de que sua inserção social no grupo seja construtiva, e para
neficiar as crianças, aspecto que podemos melhor aprofundar que cada uma seja valorizada e possa desenvolver sua autono­
a partir das contribuições provenientes da sociologia, da psico­ mia, identidade e espírito de cooperação e solidariedade com as
logia e da antropologia. demais.
20
21

Compreendendo o processo de do mundo físico. É no decorrer das atividades que rea­


desenvolvimento infantil — lizam que as crianças incorporam dados e relações,
Contribuições da psicologia e é enfrentando desafios e trocando informações umas
com as outras e com os adultos que elas desenvolvem
Os estudos provenientes da psicologia têm dado contribui­ seu pensamento.
ções bastante relevantes que nos permitem conhecer o desen­
3) Do ponto de vista lingüístico, coloca-se como essen­
volvimento infantil nas diferentes áreas (sensório-motora, sócio- cial o desenvolvimento das diferentes formas de repre­
afetiva, simbólica e cognitiva) e nos permitem, também, com­ sentação verbal. Reconhecemos aqui a linguagem co­
preender de que forma as crianças constroem o seu conheci­ mo a forma básica, não apenas no que diz respeito à
mento. Essas informações são especialmente importantes, pois expressão individual, mas ainda como sendo funda­
delas derivam subsídios fundamentais para a prática pedagógi­ mental no processo de socialização.
ca nos diferentes níveis da escolaridade, na medida em que po­ A expressão e a comunicação infantis, manifestadas
dem orientar os professores sobre o que as crianças são capa­ através das conversas, histórias, desenhos, música, li­
zes de descobrir e aprender a cada momento, e sobre como vros, álbuns etc., são, então, fundamentais para am­
aprendem. pliar sua capacidade de representação, fornecendo,
Assim é que da mesma forma que o mundo social atua ainda, uma base sólida, significativa e contextualiza-
sobre as crianças (e sobre todos nós) de maneira dinâmica, da para o seu processo de construção da linguagem
contraditória e ativa, também o organismo tem um dinamis­ escrita.
mo próprio que vai favorecendo sua interação ativa com o meio 4) Do ponto de vista da psicomotricidade, entendemos
exterior. Isso quer dizer que as crianças participam da cons­ que as crianças precisam expandir seus movimentos,
trução de seu conhecimento como sujeitos ativos, fazendo uso explorando seu corpo e o espaço físico, de forma a te­
dos esquemas mentais próprios a cada etapa de seu desenvol­ rem um crescimento sadio.
vimento. Aqui é necessário ressaltar que não valorizamos a exe­
cução mecânica do exercício motor pelo simples exer­
Nesse sentido, e a fim de favorecer o pleno desenvolvi
cício: é através da realização das atividades cotidia­
mento psicológico infantil, alguns aspectos merecem destaque
nas, e em função de objetivos determinados (como, por
por serem cruciais para nossa proposta:
exemplo, construir um boneco, realizar um jogo, de­
senhar uma história, fazer bolos de areia e água etc.),
1) Do ponto de vista sócio-afetivo, enfatizamos a impor­
que a motricidade é desenvolvida.
tância de que a criança tenha uma auto-imagem posi­
tiva. percebendo-se, cada qual, na sua identidade pró­ Todos esses aspectos estão presentes simultaneamente na
pria e sendo valorizada nas suas possibilidades de açao
e crescimento à medida que desenvolve seu processo atividade infantil, que é global e indivisível. Por isso, no inte­
de socialização e interage com o grupo. Além disso, rior dessa proposta pedagógica está a preocupação de ofere­
é necessário trabalhar junto às crianças para que acei­ cermos às crianças um ambiente que propicie a cada uma —
tem e convivam construtivamente com as diferenças e ao grupo como um todo — a manifestação e ampliação de
existentes no grupo, seja em relação à etnia, classe seus interesses e conhecimentos. As atividades e situações pro­
social ou sexo. postas têm, portanto, o objetivo último de favorecer a explo­
2) Dd ponto de vista cognitivo, destacamos a necessida ração, a descoberta e a construção de noções, ou seja, o desen­
de de levar sempre em consideração o fato de que a volvimento e o maior conhecimento do mundo físico e social
criança conhece e constrói as noções e os concei­ (da língua, da matemática, das ciências naturais e das ciências
tos à medida que age. observa e relaciona os objetos sociais), eixos básicos da função pedagógica da pré-escola.
22

Considerando o contexto social e cola ou pré-escola para crianças das classes médias” . E isso por­
cultural em que a criança está inserida — que insistimos no critério único de qualidade como requisito
Contribuições da antropologia para uma educação democrática, pois a diferença deve ser con­
siderada para que se possam alcançar os mesmos objetivos in­
Se os estudos históricos nos ajudam a situar a proposta
dependente da origem sócio-econômica ou cultural das crianças.
pedagógica no contexto político mais amplo; se os estudos so­
ciológicos orientam nossa definição sobre o papel que atribuí­ Esses pressupostos teóricos estabelecem as diretrizes do tra­
mos à escola e quanto aos conhecimentos a que deve dar aces­ balho com crianças de 4 a 6 anos, e dão os fundamentos a par­
so; se, ainda, as pesquisas de cunho psicológico nos fornecem tir dos quais se pode optar por uma dada tendência pedagógi­
subsídios valiosos para planejar e desenvolver nosso currículo, ca, privilegiar determinados procedimentos e estratégias meto­
os estudos antropológicos exigem que levemos em conta o con­ dológicas e, também, selecionar noções e conteúdos básicos das
texto de vida mais imediato das crianças e as próprias caracte­ diferentes áreas do conhecimento. Entendemos que oferecem
rísticas específicas dos professores e da escola como instituição. uma base sólida para um trabalho que se pretenda de qualida­
Isso significa reconhecer que as crianças são diferentes e de, mas reconhecemos que esse trabalho tem diferentes formas
têm especificidades, não só por pertencerem a classes diversas e possibilidades de concretização. Nesse sentido, não há padrões
ou por estarem em momentos diversos em termos do desenvol­ ou requisitos únicos para a implementação deste currículo, que
vimento psicológico. Também os hábitos, costumes e valores pode, portanto, ser desenvolvido em circunstâncias diversas, des­
presentes na sua família e na localidade mais próxima interfe­ de que realizadas as devidas adaptações.
rem na sua percepção do mundo e na sua inserção. E, ainda,
também, os hábitos, valores e costumes dos profissionais que
com elas convivem no contexto escolar (professores, serventes, DAS TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS
supervisores etc.) precisam ser considerados e discutidos. DA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR
Dessa forma, as relações estabelecidas entre os profissio­ À NOSSA PROPOSTA
nais da escola, desses com as crianças, com as famílias e com
a comunidade, precisam ser norteadas por essa visão real da Sistematizar as diferentes tendências pedagógicas é tarefa
heterogeneidade — rica em contradições — que caracteriza a nada simples, principalmente se entendemos que a realidade é
sociedade e as escolas em geral, e cada creche ou pré-escola em muito mais rica, dinâmica e contraditória do que as tipologias
particular. Essa diversidade nos coloca o desafio de buscar as ou classificações que dela fazemos. Isso quer dizer que, enquanto
alternativas (em termos de atitudes e estratégias) necessárias para prática social, a prática pedagógica é muito mais complexa do
atender as crianças — e cada criança —, compreendendo-as a que o rótulo que, porventura, nela colocamos. Além disso, a
partir das suas experiências e condições concretas de vida. maioria dos professores e de seus trabalhos não se encaixa fa­
E, evidentemente, dessa postura decorre a valorização que cilmente em um dos tipos, exatamente porque a prática peda­
deve ser dada à estreita relação com as famílias, não só para gógica é contraditória e está sempre em movimento.
conhecê-las melhor, mas para que possam conhecer a proposta Por outro lado, nenhuma prática é neutra: ao contrário,
pedagógica e ajudar a construí-la na prática, facilitando assim ela está sempre referenciada em alguns princípios (os nossos se
um real diálogo entre escola e família, o que possibilita um con­ encontram no item anterior) e se volta a certos objetivos, mes­
texto educacional no qual as contradições e dificuldades pos­ mo que não formulados explicitamente. É nesse sentido — per­
sam ser enfrentadas em benefício das crianças. cebendo os limites de uma classificação, e, ao mesmo tempo,
Mas esse reconhecimento da diversidade cultural e social o sentido político e social de toda prática pedagógica — que
das crianças não pode levar a aceitar discriminações do tipo “ es­ identificamos as tendências predominantes hoje, no Brasil, em
cola ou pré-escola para crianças das classes populares” e “ es­ programas educacionais dirigidos a crianças menores de 6 anos:
24 25

1) a tendência romântica, que concebe a pré-escola como ças menores de 7 anos. Ela representa, na verdade, uma descon­
um "jardim de infância” , onde a criança é “ sementinha” sideração quanto à especificidade dessa educação e uma espécie
ou “ plantinha” que brota e a professora a "jardineira” ; de “ prolongamento para baixo” ou antecipação da perspectiva
2) a tendência cognitiva, jde base psicogenética, que en­ mais tradicional da educação de 1? grau. Baseada em treinamen­
fatiza a construção do pensamento infantil no desen­ tos, a “ preparação” visaria, assim, a “ aceleração” (das crianças
volvimento da inteligência e na autonomia; das classes médias) ou a “ compensação de carências” (das crian­
3) a tendência crítica, que vê a pré-escola como lugar de ças das classes populares). Tal forma de encarar a função da pré-
trabalho coletivo, reconhece no professor e nas crian­ escola pode ser encontrada tanto em muitas propostas “ român­
ças sua condição de cidadãos, e atribui à educação ticas” quanto em algumas cognitivas, principalmente quando as
o papel de contribuir para a transformação social. crianças se aproximam dos 6 anos de idade. Por não levarem em
consideração os determinantes sociológicos e antropológicos do
Procedemos à análise de cada tendência da seguinte for­ processo educacional, e por terem uma concepção da criança ape­
ma: em primeiro lugar, apresentamos os pressupostos que lhe nas como “ futuro adulto” é que tais estratégias se voltam ape­
estão subjacentes; em seguida, descrevemos suas diretrizes prá­ nas à preparação. Na bibliografia apresentada ao final, há várias
ticas; ao final, trazemos alguns exemplos do cenário brasileiro referências de trabalhos que aprofundam essa questão (Kramer,
que são por ela informadas. 1982; Kramer e Abramovay, 1986; Kramer e Souza, 1988).
De posse dessa análise e coerentemente com o referencial
teórico apresentado, procuramos, em seguida, apontar as tendên­ A tendência romântica: A pré-escola é um
cias pedagógicas que fornecem os subsídios e instrumentos que jardim, as crianças são as flores ou sementes,
consideramos adequados para empreender uma educação volta­ a professora é a jardineira — A educação deve
da à cidadania, meta primordial de nossa proposta. Explicitamos,
favorecer o desenvolvimento natural
então, onde se situa nossa proposta: reconhecemos as contribui­
ções de três abordagens, e em seguida identificamo-nos com a ten­ Essa tendência se identifica com o próprio surgimento da
dência crítica e priorizamos os aspectos de caráter social e cultural. educação pré-escolar. Nasce no século XVIII, num contexto em
Finalmente, vale esclarecer que não estamos comparando que os princípios do liberalismo, no plano filosófico, as pro­
aqui o método Montessori com a teoria de Piaget ou os centros fundas modificações na organização da sociedade, no plano so­
de interesse de Decroly com as oficinas Freinet. Seria grave er­ cial, e, ainda, as progressivas descobertas na área do desenvol­
ro teórico submeter a tal tipo de análise produções de estatutos vimento infantil geram intensos questionamentos à chamada es­
científicos tão diversos. A educação se alimenta de várias ciên­ cola tradicional, no plano educacional.
cias, norteada por um eixo político e movida pela história. As­ Tais questionamentos lançam os fundamentos da escola
sim sendo, várias são as fontes de influências às teorias educa­ nova, movimento que irá se aprofundar nos séculos XIX e XX.
cionais e as tendências pedagógicas nelas fundamentadas. O que Várias metodologias têm origem nesse movimento, tendo al­
buscamos fazer aqui é apenas analisar, sob o prisma da orga­ gumas delas exercido forte influência no ensino brasileiro, em
nização curricular, as diferentes tendências pedagógicas que im­ particular na pré-escola.
pregnam programas ou propostas direcionadas para crianças Como princípios básicos da escola nova destacam-se: a va­
de até 6 anos. E falar claro da nossa proposta! lorização dos interesses e necessidades da criança; a defesa da
O leitor pode se surpreender por não encontrar aqui, co­ idéia do desenvolvimento natural; a ênfase no caráter lúdico
mo tendência, uma situação bastante comum nas pré-escolas das atividades infantis; a crítica à escola tradicional, porque os
brasileiras — a de preparar as crianças para a 1? série. A “ pre­ objetivos desta estão calcados na aquisição de conteúdos; e a
paração da prontidão” , como é chamada, não se constitui, en­ conseqüente prioridade dada pelos escolanovistas ao processo
tretanto, em uma tendência pedagógica da educação de crian­ de aprendizagem.
26 27

O currículo que deriva de tais princípios tem sempre co­ (origem do estudo das crianças naturais), o da associação no tempo
mo centro as atividades. Desde a sua origem, na Europa, com e no espaço (da qual derivam a história e a geografia) e a expres­
Froebel e os primeiros jardins de infância, passando por De­ são (em que se trabalha o grafismo e a linguagem). Para Decroly,
e p ly e sua proposta de renovação do ensino e organização das “ a sala de aula está em toda parte” , e o tempo de duração de
atividades escolares em “ centros de interesses” , até Montesso- cada centro de interesse deve ser flexível, orientado de acordo com
ri e sua preocupação com uma “ pedagogia científica” e um “ mé­ os interesses, o desenvolvimento e a curiosidade infantis. Nesta
todo pedagógico” capazes de orientar eficientemente a ação es­ corrente pode-se analisar criticamente, em primeiro lugar, que
colar, o fundamental para a Escola Nova é a atividade e o seu as necessidades básicas apontadas por Decroly são as dos adul­
caráter de jogo. tos (e de determinados adultos), e não as das crianças. Em se­
Algumas diferenças podem ser constatadas no interior dessa gundo lugar, o objetivo do trabalho escolar continua sendo a aqui­
tendência pedagógica, que entende romanticamente a pré-escola sição de conhecimentos predeterminados, pois os “ centros de in­
como jardim de infância e as crianças como plantinhas ou se- teresse” , na verdade, apenas reorganizam os conhecimentos em
mentinhas, situando-se concepções de Froebel, Decroly e Mon­ geral distribuídos nas matérias escolares, apesar de proporem ati­
tessori. Assim é que Froebel (1782-1852), por exemplo, defen­ vidades que caminhem do “ empírico” ao abstrato.
dia a idéia da evolução natural da criança e enfatizava a impor­ Já Montessori (1870-1952) sofre influências de duas pers­
tância do simbolismo infantil. Considerava que o desenvolvimen­ pectivas: de um lado, ela é marcada pela psicologia experimen­
to verdadeiro provém de atividades espontâneas e construtivas, tal da qual deriva sua preocupação com a criação de uma “ pe­
primordiais, segundo ele, para “ integrar o crescimento dos po­ dagogia científica” ; de outro lado, é influenciada pela filoso­
deres físico, mental e moral” . Sua proposta pode ser caracteri­ fia oriental, responsável por sua “ visão cósmica” e pela ênfase
zada como um “ currículo por atividades” , onde o caráter lúdi­ dada por seu método à introspecção. Dentre os princípios filo­
co é o determinante da aprendizagem da criança. Brinquedos can­ sóficos que baseiam o método, pode-se citar: o ritmo próprio,
tados, historias, artes plásticas, desenho, recorte e colagem, cons­ a construção da personalidade através do trabalho, a liberda­
trução, observação da natureza e horticultura são as atividades de, a ordem (considerada o elemento integrador da personali­
fundamentais nos Kindergartens, onde os recursos pedagógicos dade), o respeito e a normalização (autodisciplina).
estão organizados em: “ prendas” (brinquedos, jogos de cons­
Destes princípios derivam as diretrizes metodológicas de
trução), “ ocupações” (recorte, colagem, dobradura) e “ atividades
Montessori, que estão calcadas: na importância da escola ati­
maternais” (música, dança, embalos). Pode-se criticar, nesse en­ va; na visão de que a criança “ absorve” o meio; na noção de
foque, a desconsideração dos aspectos sociais, a concepção po­ “ silêncio” e autocontrole (para Montessori uma conquista); na
sitivista de que as atividades levam espontaneamente ao conhe­ progressão (inicialmente o controle de si, em seguida o contro­
cimento e, ainda, a visão linear do processo educacional. le das coisas, enfim, o respeito pelos outros); na modificação
Decroly (1871-1932), por sua vez, destacava o caráter global e adaptação do mobiliário às crianças; e na utilização de mate­
da atividade infantil e a função de globalização do ensino. Co­ riais específicos que visam a promover a aprendizagem nas di­
mo pressuposto básico postulava que a necessidade gera o in­ ferentes áreas (sensorial, vida prática, linguagem, matemática
teresse, verdadeiro móvel em direção ao conhecimento. As ne­ etc.). Na concepção do método Montessori, esses materiais são
cessidades capitais do homem na sua troca com o meio são, se­ autocorretivos, graduados, isolam as dificuldades (“ uma tare­
gundo Decroly: 1) a alimentação; 2) a defesa contra intempé­ fa de cada vez” ) e devem ser explorados segundo a “ lição de
ries; 3) a luta contra perigos e inimigos; 4) o trabalho em so­ três tempos” (informação; reconhecimento; fixação do voca­
ciedade, descanso e diversão. Desse pressuposto deriva sua pro­ bulário). Vários são os questionamentos que podem ser levan­
posta pedagógica de organizar a escola em “ centros de interes­ tados a este enfoque. Criado originalmente para crianças ex­
se , onde a criança passa por três momentos: o da observação cepcionais e aplicado, mais tarde, a crianças “ normais” , o
28 29

método Montessori — diferentemente das propostas de Froebel epistemólogo, Piaget (1896-1980) investiga o processo de cons­
e de Decroly — fragmenta o conhecimento, já que as atividades trução do conhecimento e realiza, ao longo de sua vida, inú­
são calcadas fundamentalmente em materiais didáticos específi­ meras pesquisas sobre o desenvolvimento psicogenético, cen­
cos para cada finalidade. Tais materiais são descontextualiza- trando seus estudos, principalmente nos últimos anos de sua
dos e criados artificialmente, ao invés de se usar objetos e situa­ vida, no pensamento lógico-matemático. Produtor de uma vas­
ções reais, e oferecem, ainda, o risco de mecanização da ativi­
dade infantil. Por outro lado, o “ silêncio” e a “ autodisciplina” tíssima obra, Piaget utiliza, nas suas investigações, o “ méto­
representam, de certa forma, estratégias camufladas de autori­ do clínico” que permite o conhecimento de como a criança
tarismo do adulto sobre a criança, além de ser estabelecida uma pensa e de como constrói as noções sobre o mundo físico e social.
relação normativa da escola com as famílias, uma vez que se acre­ Para melhor situar o trabalho de Piaget e as várias pro­
dita que a “ pedagogia científica deve influenciar o meio” . postas pedagógicas delineadas a partir de suas contribuições,
Assim, embora proponham alternativas curriculares dife­ cabe mencionar alguns pressupostos básicos de sua teoria, em
rentes, as três propostas são românticas: partindo de uma vi­ especial o interacionismo, a idéia de construtivismo seqüencial
são de criança como sementinha, de pré-escola como “ jardim ” e os fatores que, segundo ele, interferem no desenvolvimento.
e de professora como “ jardineira” , deixam de considerar os Para Piaget, o desenvolvimento resulta de combinações
aspectos sociais e culturais que interferem tanto nas crianças, entre aquilo que o organismo traz e as circunstâncias ofereci­
quanto nas professoras, como, ainda, na própria pré-escola.
das pelo meio: o eixo central, portanto, é a interação organis-
No Brasil, essa concepção de pré-escola como “ jardim de mo/meio. O interacionismo pretende, assim, superar, de um
infância” foi inaugurada com o movimento da Escola Nova
nas décadas de 20 e 30 deste século, sendo até hoje muito di­ lado, as concepções inatistas e, de outro lado, as teorias com-
fundida, seja na rede pública, seja na particular. Cabe regis­ portamentalistas. Essa interação se dá através de dois proces­
trar, nesse sentido, a atuação de Heloísa Marinho, que, informa­ sos simultâneos: a organização interna e a adaptação ao meio,
da pelo escolanovismo e influenciada especialmente pelas idéias funções exercidas pelo organismo ao longo de toda a vida. A
de Froebel, tem desenvolvido, desde 1930, uma série de estu­ adaptação — definida por Piaget como o próprio desenvolvi­
dos e trabalhos em torno do “ currículo por atividades” e mento da inteligência — ocorre através da assimilação e aco­
do método natural de leitura por ela criado. A abordagem Mon­ modação. Os esquemas de assimilação vão se modificando,
tessori, por sua vez, teve sua expansão principalmente devi­ progressivamente, configurando os estágios de desenvolvi­
do à atuação dos educadores vinculados à Organização Brasi­ mento.
leira de Atividades Pedagógicas e à Associação Brasileira de Edu­
cação Montessoriana. Apesar de reconhecer a grande contri­ Os estágios evoluem, segundo a teoria de Piaget, como uma
buição dada por estes educadores em defesa da educação pré- espiral, de maneira que cada estágio engloba o anterior e o am­
escolar, é preciso perceber seus limites, em especial por não le­ plia. Piaget não define idades rígidas para os estágios, mas con­
varem em consideração a heterogeneidade social e o papel po­ sidera que se apresentam em uma seqüência constante (cons­
lítico que a pré-escola desempenha no contexto mais amplo da trutivismo seqüencial), a saber: sensório-motor, simbólico (ou
educação e da sociedade brasileira. pré-operacional), operatório concreto e operatório abstrato (ou
lógico-formal). Considera, ainda, que tal processo de desenvol­
A tendência cognitiva: A criança é sujeito que vimento é influenciado pelos seguintes fatores: maturação (cres­
pensa, e a pré-escoia o lugar de tornar as cimento biológico dos órgãos); exercitação (funcionamento dos
crianças inteligentes — A educação deve esquemas e órgãos que implica na formação de hábitos), apren­
favorecer o desenvolvimento cognitivo dizagem social (aquisição de valores, linguagem, costumes e pa­
drões culturais e sociais) e equilibração (processo de auto-
Essa segunda tendência tem em Jean Piaget, e em seus dis­ regulação interna do organismo, que se constitui na busca su­
cípulos, a mais importante de suas fontes inspiradoras. Como cessiva de reequilíbrio após cada desequilíbrio sofrido)..
30 31

Com base em tais pressupostos, a educação na visão pia- 4) A organização é adquirida através da atividade e não
getiana deve possibilitar à criança o desenvolvimento amplo e o contrário. É fazendo a atividade que a criança se or­
dinâmico desde o período sensório-motor até o operatório abs­ ganiza.
trato. A escola deve, assim, levar em consideração os esque­ 5) O professor é desafiador da criança: ele cria “dificul­
mas de assimilação da criança (partir deles), favorecendo a rea­ dades” e “problemas”. Assim, a pré-escola deixa de
lização de atividades desafiadoras que provoquem desequilíbrio ser vista como passatempo, e passa a ser um espaço
(“ conflitos cognitivos’’) e reequilibrações sucessivas, promo­ criativo, que permite a diversificação e ampliação das
vendo a descoberta e a construção do conhecimento. Nessa cons­ experiências infantis, valorizando a iniciativa, curiosi­
trução, as concepções infantis (ou hipóteses) combinam-se às dade e inventividade da criança e promovendo a sua
informações provenientes do meio, na medida em que o conhe­ autonomia.
cimento não é concebido apenas como espontaneamente des­ 6) Na pré-escola é essencial haver um clima de expec­
coberto pela criança, nem como transmitido mecanicamente pelo tativas positivas em relação às crianças, de forma a
meio exterior ou pelo adulto, mas como resultado dessa intera­ encorajá-las a ter confiança nas suas próprias possi­
ção onde o sujeito é sempre ativo. bilidades de experimentar, descobrir, expressar-se, ul­
Assim, os principais objetivos da educação consistem na trapassar seus medos, ter iniciativa etc.
formação de homens “ criativos, inventivos e descobridores’’, 7) No currículo da pré-escola informado pela teoria de Pia­
na formação de pessoas críticas e ativas e, fundamentalmente, get as diferentes áreas do conhecimento (linguagem,
na construção da autonomia. A interdisciplinaridade é con­ matemática, ciências naturais e sociais) são inte­
siderada central, ao contrário da fragmentação dos conteú­ gradas. O eixo central desse currículo são as ativi­
dos existentes nos currículos da pedagogia tradicional e racio- dades.
nalista.
Diversas críticas podem ser levantadas tanto à teoria de
Algumas implicações da teoria de Piaget para a prática da
Piaget quanto às implicações pedagógicas dela decorrentes. Em
pré-escola merecem ser destacadas, partindo-se do princípio de
relação à teoria, pode-se apontar o reducionismo da epistemo-
que Piaget não propõe um método de ensino, mas, ao contrá­
rio, elabora uma teoria do conhecimento e desenvolve muitas logia genética, que identifica o desenvolvimento do homem com
investigações cujos resultados são utilizados por psicólogos e o desenvolvimento da inteligência e, dessa forma, prioriza o pen­
pedagogos. Nesse sentido, suas pesquisas recebem, freqüente- samento lógico-matemático (ocidental), desconsiderando outras
mente, interpretações diversas, que se concretizam em propos­ “ lógicas” construídas em outros contextos sócio-culturais. Pode-
tas didáticas também diversas. Há, no entanto, alguns princí­ se questionar, também, o caráter universal de seus achados, na
pios básicos que, em geral, orientam a prática pedagógica de medida em que a teoria não leva em consideração as interfe­
uma pré-escola fundamentada na teoria de Piaget, a saber: rências de classe social, cultura e sexo, e destacar, ainda, a pre­
ponderância dos processos cognitivos sobre os sócio-afetivos
1) Tudo começa pela ação. As crianças conhecem os ob­ na determinação do desenvolvimento infantil.
jetos, usando-os (um esquema é aplicado a vários obje­
tos e vários esquemas são aplicados ao mesmo objeto).
Em relação às implicações pedagógicas da teoria de Pia­
get, pode-se mencionar a ênfase dada aos aspectos cognitivos
2) Toda atividade na pré-escola deve ser representada
(semiotizada), permitindo que a criança manifeste seu em detrimento dos domínios social, afetivo e lingüístico. São
simbolismo. passíveis também de críticas as propostas curriculares “ piage-
3) A criança se desenvolve no contato e na interação com tianas” , onde as atividades lúdicas são o centro, e não a crian­
outras crianças: a pré-escola deve sempre promover ça histórica e socialmente situada, com suas atividades reais e
a realização de atividades em grupo. significativas em função de seu contexto sociocultural de origem.
32 33

Finalmente, pode-se apontar os riscos de um autoritarismo A tendência crítica: A pré-escola é lugar de


“ cientificamente” fundamentado, onde o conhecimento dos es­ trabalho, a criança e o professor são cidadãos,
tágios de desenvolvimento infantil é tomado como critério úni­ sujeitos ativos, cooperativos e responsáveis —
co para a ação do educador, minimizando-se os fatores sociais A educação deve favorecer a transformação
e políticos. Nesse sentido, considerar o desenvolvimento da in­
do contexto social.
teligência como prioridade do trabalho pedagógico traria os ris­
cos de uma pedagogia elitista, centrada em propostas nortea­ A discussão sobre a possibilidade de uma educação pré-
das por uma teoria “ científica” e implementadas por educa­ escolar crítica é muito recente no Brasil. Uma das propostas
dores supostamente neutros. Esses questionamentos não visam, pedagógicas que mais tem trazido contribuições a essa discus­
em hipótese alguma, diminuir as valiosas contribuições da teo­ são é a de Celestin Freinet (1896-1966). Influenciado por Rous-
ria de Piaget, mas apenas relativizá-las. seau, Pestalozzi, Ferrire, crítico da escola tradicional e das es­
colas novas, Freinet foi criador, na França, do movimento da
No Brasil os trabalhos de Piaget foram difundidos princi­
escola moderna, que atinge atualmente professores dos vários
palmente na década de 70. Várias foram as propostas curricu­
graus (da pré-escola à universidade), em vários países. Seu ob­
lares implementadas pelos sistemas públicos de ensino (como, jetivo básico era desenvolver uma escola popular.
por exemplo, as “ Novas metodologias para o ensino de 1?
grau” , lançado pela Secretaria de Educação do Estado do Rio No que diz respeito à sua visão do homem e do mundo, pode-
de Janeiro, em 1976). Houve, também, propostas piagetianas se mencionar a desconfiança de Freinet quanto à “ teoria” (ou
adotadas pelo sistema público, mas produzidas por entidades o discurso retórico vazio, desvinculado da prática) e por isso seus
textos apresentam estilo literário, incluindo muitas das situações
privadas (como o programa Alfa, elaborado pela Fundação Car­
concretas por ele vividas enquanto professor. Considera que a lei
los Chagas, de São Paulo, em 1977, sob a coordenação de Ana
da vida é o “ tatear experimental” , transformando-se as experiên­
Maria Poppovic, e comprada por várias Secretarias de Educa­
cias bem-sucedidas em “ regras de vida” . Para ele, a personali­
ção, principalmente das regiões Norte e Nordeste do país), além
dade se constrói no confronto dialético com o mundo e os ou­
de programas curriculares elaborados por escolas particulares tros homens, que ora se apresentam como recursos, ora como
de menor abrangência, como, por exemplo, a proposta do Cen­ barreiras. Na sua concepção, a sociedade é plena de contradições
tro Educacional e Experimental Jean Piaget, no Rio de Janei­ que refletem os interesses antagônicos das classes sociais nela exis­
ro. Especificamente em relação à pré-escola, cabe mencionar tentes, penetrando tais contradições em todos os aspectos da vi­
o “ Programa de Educação Pré-Escolar” (PROEPRE — Cam­ da social, inclusive na escola. Além disso, entende que a relação
pinas) adotado por alguns sistemas estaduais e municipais de direta do homem com o mundo físico e social é feita pelo traba­
ensino. Todos esses projetos, e muitos outros inspirados na teo­ lho — sua atividade coletiva — e que “liberdade” não é cada
ria de Piaget, contêm pressupostos teóricos e orientações me­ um fazer o que quer, mas sim o que decidimos em conjunto.
todológicas bastante diversificadas, refletindo diferentes pos­
No que diz respeito à sua visão de educação, é preciso des­
turas políticas e concepções educacionais. tacar as críticas que dirige à escola tradicional, “ inimiga do ta­
Finalmente, é preciso registrar os trabalhos de Emília Fer­ tear experimental” , fechada, contrária à criatividade, à desco­
reiro, pesquisadora argentina cuja obra pode ser considerada berta, ao interesse e ao prazer infantil. Nesse sentido, Freinet
como continuadora dos estudos de Piaget na área da constru­ denuncia as práticas, os manuais e os prédios escolares como
ção da linguagem escrita, tema praticamente por ele não pes­ os produtores de “ doenças” escolares graves, tais como as dis-
quisado. Voltada à realidade latino-americana e seus proble­ lexias, anorexia escolar etc. Mas critica também as propostas
mas, Ferreiro tem conferido contribuições extremamente rele­ da Escola Nova, em particular Decroly e Montessori, questio­
vantes à questão da alfabetização e à compreensão do proces­ nando seus métodos por suporem materiais, local e condições
so de aprendizagem do sistema de língua escrita. especiais para a realização do trabalho pedagógico. Para Freinet,
34 35

as mudanças profundas na educação deveriam ser feitas pela A proposta pedagógica de Freinet centra-se em técnicas,
base — pelos próprios professores. dentre as quais pode-se citar: as aulas-passeio; o desenho livre
O movimento pedagógico por ele fundado pode ser carac­ e o texto livre; a correspondência interescolar; o jornal (mural
terizado por sua dimensão social, demonstrada através da de­ e impresso); o livro da vida (diário individual e coletivo); o di­
fesa de uma escola centrada na criança, vista não como indiví­ cionário dos pequenos; o caderno-circular para os professores
duo isolado, mas fazendo parte de uma comunidade “ a que ela etc. Tais técnicas visam a favorecer o desenvolvimento dos mé­
serve e que a serve” , e que possui direitos e deveres, dentre os todos naturais da linguagem (desenho, escrita, gramática), da
quais o direito ao erro. A ênfase maior é dada ao trabalho: as matemática, das ciências naturais e das ciências sociais<.
atividades manuais são consideradas tão importantes quanto Assim, compreende que a aquisição do conhecimento e
as intelectuais, e a disciplina e a autoridade são fruto do traba­ fundamental, mas deve ser garantida de forma significativa e
lho organizado. Esta escola dinâmica é elemento ativo de mu­ prazeirosa. Para tanto, a organização pedagógica das classes
dança social para a edificação de uma sociedade mais humana, Freinet supõe: oficinas de trabalhos manuais e intelectuais; pro­
e é também popular, pois se direciona às crianças do povo, pa­ jetos e contratos de trabalho; fichários (de diferentes áreas e
ra fazer com que não se sintam discriminadas por pertencerem com diversas finalidades) e a cooperativa escolar.
às classes populares. Considera que a disponibilidade de materiais e espaço fí
Freinet constrói uma pedagogia, não cria um método co­ sico bem como a organização da sala e da escola são cruciais
para a realização das atividades nas oficinas. Finalmente, a ava­
mo caminho fechado, mas técnicas construídas lentamente com
liação é entendida em três níveis: individual, cooperativa e fei­
base na experimentação e documentação, que fornecem à criança
ta pelo professor.
instrumentos para aprofundar o seu conhecimento e desenvol­
ver a sua ação. A título de comentários gerais, pode-se dizer que há pou­
co conhecimento e muita incompreensão no Brasil quanto à pe
Considerando ã atividade básica do homem como sendo dagogia Freinet, em especial sua proposta de educação pelo tra
o trabalho, questiona os deveres escolares (repetitivos e enfa­ balho. Criticado como tradicional pelos educadores escolano
donhos) opostos aos jogos (atividades lúdicas, recreio etc.) que vistas e como escolanovista pelos educadores tradicionais, per­
visam, em geral, a dar uma válvula de escape à opressão sofri­ seguido pelos nazistas como revolucionário e criticado pelos co­
da no trabalho. Aponta como essa dualidade presente na esco­ munistas por não ter se filiado ao Partido Comunista Francês,
la reproduz a dicotomia trabalho/prazer gerada pela socieda­ é provavelmente um dos pedagogos contemporâneos que mais
de capitalista industrial. Propõe o trabalho-jogo como ativida­ contribuições oferece àqueles que estão preocupados com a cons­
de fundamental da escola dinâmica popular. trução de uma escola ativa e dinâmica e, simultaneamente, con
“ O desejo de conhecer mais e melhor nasceria de uma si­ textualizada do ponto de vista social e cultural. Sua pedagogia
tuação de trabalho concreta e problematizadora. O trabalho de apresenta,’obviamente, lacunas — em termos de nossa realida­
que se trata aí não se limita ao manual, pois o trabalho é um de atual — que precisam ser ultrapassadas, dentre as quais pode-
todo, como o homem é um todo. Embora adaptado à criança, se destacar, por um lado, sua visão talvez por demais otimista
o trabalho deve ser uma atividade verdadeira, e não um traba­ quanto ao poder transformador da escola. Por outro lado, a
lho para brincar, assim como a organização escolar não deve dimensão social é identificada por Freinet aos fatores de classe
ser uma caricatura da sociedade.” social ou geográfico-culturais, estando ausentes os aspectos re­
ferentes à discriminação de sexo e de cor, problemas efetivos
Freinet destaca a extrema importância da participação e para a sociedade brasileira e o movimento social atual. Do ponto
integração entre famílias/comunidade e escola, e defende o pon­ de vista do método natural de leitura, pode-se questionar a pro­
to de vista de que “ se se respeita a palavra da criança, necessa­ posta de o professor ser o “ escriba” da turma, aspecto que as
riamente há mudança” . investigações mais recentes da psicolingüística permitem modi-
36 37

ficar. Finalmente, falta na sua pedagogia uma explicitação mais cio deste capítulo, nossa meta básica é implementar uma pré-
articulada, sob o ponto de vista psicológico, do processo de de­ escola de qualidade, que reconheça e valorize as diferenças exis­
senvolvimento das crianças. tentes entre as crianças e, dessa forma, beneficie a todas no que
No Brasil, não são muitos os trabalhos baseados em Frei- diz respeito ao seu desenvolvimento e à construção dos seus co­
net. Conhecido apenas muito recentemente, ele tem influencia­ nhecimentos.
do algumas escolas e educadores, entre os quais registramos: Ma­ Para que esse objetivo maior seja concretizado, definimos
ria Inês Cavaliere Cabral, ao nível da escola secundária e do en­ as seguintes metas educacionais: a construção da autonomia e da
sino da língua francesa; Regina Yolanda Werneck, com sua ex­ cooperação, o enfrentamento e a solução de problemas, a res­
periência principalmente na área da literatura infantil; além de ponsabilidade, a criatividade, a formação do autoconceito está­
Rute Joffily, mais especificamente voltada para a pré-escola na vel e positivo, a comunicação e a expressão em todas as formas,
área rural de Paulínia (SP), e Madalena Freire, que, fortemente particularmente ao nível da linguagem. É em função dessas me­
marcada por Freinet, vem trabalhando numa linha psicocultu- tas que o currículo é pensado e a prática pedagógica desenvolvida.
ral, com a qual nos identificamos, e que nos parece mais se apro­ Assim, não estamos interessados em apenas formar crian­
ximar das necessidades e anseios de nossas populações infantis. ças que sejam “ inteligentes” e saibam resolver problemas; mas,
Dos caminhos percorridos, das lições aprendidas, das crí­ ao mesmo tempo, nossa atuação não se dirige, tão-somente,
ticas levantadas, enfim, da história construída, como fica deli­ ao acúmulo repetitivo e mecânico dos conteúdos escolares por
neada nossa proposta? parte das crianças.
Reconhecemos a importância que teve, no seu momento Na nossa concepção, o desenvolvimento infantil pleno e
histórico, a concepção de “ jardim de infância” e consideramos, a aquisição de conhecimentos acontecem simultaneamente, se
ainda, inúmeras das contribuições que nos conferem a teoria caminhamos no sentido de construir a autonomia, a coopera­
de Piaget. Porém, nossos pressupostos mais se aproximam da ção e a atuação crítica e criativa.
pedagogia de Freinet, embora a avancemos em determinados Assumindo as crianças como indivíduos que pertencem a
aspectos, em particular naqueles referentes ao desenvolvimen­ grupos sociais, entendemos que a pré-escola que lhes oferece­
to infantil. No que diz respeito, por exemplo, à polêmica jo- mos deve necessariamente contribuir para sua inserção crítica
go/trabalho, consideramos que o que a criança faz com inten­ e criativa na sociedade. Para tanto, é essencial que possam ad­
cionalidade (dada por ela própria ou pela professora) na esco­ quirir os conhecimentos exigidos no 1? grau de forma dinâmi­
la é trabalho, que nem por isso deixa de ter um aspecto lúdico ca e viva, participando desse processo que, afinal, é o processo
(como deseja Freinet). Além disso, há momentos variados da de construção de sua cidadania.
atividade da criança na escola em que o gozo e o prazer são O currículo da pré-escola é, então, elaborado a partir desse
os móveis da atividade lúdica, e o jogo (espontâneo ou dirigi­ referencial, levando em conta as características específicas das
do) é só ludicidade mesmo, isso significa, então, que há traba­ crianças e do momento em que vivem (seu desenvolvimento psi­
lho (prazeroso) e jogo na escola, tendo ambos aspectos distintos. cológico), as interferências do meio que as circundam (sua in­
Nossa proposta pode ser caracterizada como de tendên­ serção social e cultural) e os conhecimentos das diferentes áreas,
cia crítica com fundamentação psicocultural, abordagem que capazes de permitir a articulação da pré-escola com a escola de
só recentemente começa a ser desenvolvida no Brasil em proje­ 1? grau.
tos como,,por exemplo, a “ Escola da Vila” , de São Paulo, e Entendemos, ainda, que mais importante do que adotar
“ Criança e Meio Ambiente” , em Campinas, São Paulo. uma metodologia pré-elaborada é construir, na prática peda­
Privilegiamos os fatores sociais e culturais, entendendo- gógica, aquela metodologia apropriada às necessidades e con­
os como os mais relevantes para o processo educativo. Coeren­ dições existentes e aos objetivos formulados. Nesse sentido, par­
tes, então, com os fundamentos teóricos apresentados no iní- timos de alguns princípios metodológicos, que são:
38
CAPÍTULO 2
— tomar a realidade das crianças como ponto de parti­
da para o trabalho, reconhecendo sua diversidade;
— observar as ações infantis e as interações entre as
crianças, valorizando essas atividades;
— confiar nas possibilidades que todas as crianças têm
Falando sobre
de se desenvolver e aprender, promovendo a constru­
ção de sua auto-imagem positiva;
— propor atividades com sentido, reais e desafiadoras
as crianças
para as crianças, que sejam, pois, simultaneamente
significativas e prazerosas, incentivando sempre a des­
coberta, a criatividade e a criticidade;
— favorecer a ampliação do processo de construção dos
conhecimentos, valorizando o acesso aos conheci­
mentos do mundo físico e social;
— enfatizar a participação e a ajuda mútua, possibilitan­
do a construção da autonomia e da cooperação.
C o m o mostramos no capítulo 1, entendemos que há deter­
O currículo aqui apresentado é uma das possíveis alterna­ minados parâmetros psicológicos que orientam o desenvolvi­
tivas para a concretização desses princípios. Os capítulos apre­ mento de todas as crianças. Sabemos, por outro lado, que a
sentados a seguir procuram descrever a implementação e ava­ situação sociocultural e as condições econômicas em que vivem
liação desse currículo na prática, partindo de “ quem são nos­ as crianças, além do sexo e da etnia, exercem uma forte influên­
sas crianças” e como constroem conhecimentos, marco crucial cia sobre elas e sobre os conhecimentos que constroem. Mas
para o trabalho pedagógico. “ como se dá essa influência” , “ em que direção ela atua” , e
“ de que maneiras os fatores sociais e culturais interferem no
desenvolvimento infantil” constituem-se hoje em um campo
aberto à pesquisa. Muitos aspectos relativos à complexa inter­
seção da antropologia e da lingüística com a psicologia encon­
tram-se, ainda, sem resposta e oferecem uma gama de indaga­
ções à investigação científica no campo do desenvolvimento hu­
mano, da socialização e da aprendizagem.
Em que pese a fragilidade das pesquisas nessa área, sabe­
mos, no entanto, que é crucial o contexto de vida das crianças
com quem trabalhamos para o processo de construção de um
currículo. Entendemos também que uma compreensão mais
aprofundada de quem são as crianças e de como constroem co­
nhecimentos é obtida com a realização de cada trabalho e com
o desenvolvimento de pesquisas relacionadas às crianças e aos
fatores sociais e culturais que as influenciam na construção de
seus conhecimentos.
No sentido de explicitar a grande diversidade sociocultu­
ral existente na escola e na pré-escola, apresentamos — a título

Você também pode gostar