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SOCIORRETÓRICO
Resumo
Este artigo apresenta, a partir da abordagem de Castelló (2010), algumas reflexões sobre os
desafios no ensino-aprendizagem da escrita de gêneros textuais comuns na esfera acadêmica.
De forma específica, a discussão é direcionada para o resumo do artigo acadêmico (abstract),
gênero bastante comum nos cursos de graduação. Procura-se, nesta investigação, responder à
seguinte questão: Quais movimentos retóricos compõem o resumo do artigo acadêmico? O
corpus desta pesquisa, que se caracteriza como qualitativa, constitui-se de 5 resumos, cujas
análises se fundamentam no modelo apresentado por Motta-Roth e Hendges (1996), autoras
que adaptam para o resumo do artigo acadêmico o modelo CARS (Creating A Research
Space) proposto por Swales (1990). Esses pesquisadores apresentam trabalhos que têm como
base a abordagem sociorretórica do estudo dos gêneros. Em suas investigações, Swales (1990)
e Motta-Roth (1996) privilegiam os movimentos retóricos dos gêneros acadêmicos que
analisam. Trata-se, portanto, de uma abordagem que vai além dos aspectos formais do texto
para dar lugar a uma análise que se volta para os propósitos comunicativos dos gêneros
estudados. Outros autores também compõem a discussão a que nos propomos neste artigo:
Marcuschi (2008); Bazerman (2011); Bakhtin (2003); Fiorin (2008), entre outros.
Percebemos, nos resumos analisados, uma oscilação dos movimentos retóricos do modelo
proposto de Motta-Roth (1996), o que nos faz concluir que não há obrigatoriedade da
presença de todos eles nos resumos de artigos acadêmicos. As reflexões a respeito dos
movimentos retóricos e de sua funcionalidade dentro do texto podem, a nosso ver, contribuir
com os graduandos no que diz respeito à obtenção de uma escrita mais eficiente desse gênero
acadêmico.
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Mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), doutorando em Língua
Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor do Curso de Letras e
Pedagogia das Faculdades Integradas Santa Cruz (FARESC). E-mail: valterzotto@uol.com.br
ISSN 2176-1396
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Introdução
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Julgamos importante esclarecer bem a qual resumo estamos nos referindo para que não permaneçam dúvidas
para o leitor, já que outros tipos de resumo podem ser solicitados pelo professor, como um resumo de um
capítulo de livro, de um texto trabalhado em sala, etc.
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Castelló (2010) enfatiza que, ao lermos textos acadêmicos de autores que admiramos,
podemos nos perguntar como eles conseguem escrever com facilidade e correção. Podemos
ter a sensação de que eles produzem textos claros escrevendo-os uma única vez. Tal sensação
é equivocada, reforça Castelló (2010), pois as investigações a respeito do processo de escrita
deixam claro que um bom texto não é fruto de uma única versão nem o resultado de um
processo simples e tranquilo. O texto acadêmico, destaca a autora, “incorpora ou deveria
incorporar as vozes de outros textos anteriores e se elabora como resposta tanto a eles como a
outros que se supõe que aparecerão posteriormente sobre o mesmo tópico” (CASTELLÓ,
2010, p. 49).
Castelló (2010) nos faz refletir sobre o fato de que, ao escrevermos academicamente,
passamos de leitor a autor do texto, e essa inversão de papéis pode nos trazer dificuldades, tal
como registra a autora:
Devemos trocar, pois, nossa posição de leitores a autores de textos que deverão estar
em condições de ser considerados pela comunidade científica à qual se dirigem e
dialogar com os textos científicos já produzidos pelos membros desta comunidade.
Esta troca de postura pode não resultar fácil e dificulta muitas vezes o processo de
composição que, de repente, se converte em obscuro, difícil de manejar e em fonte
de ansiedade (CASTELLÓ, 2010, p. 50).
No que diz respeito à escrita acadêmica, o primeiro aspecto que deve ficar claro aos
graduandos é justamente a mudança de seu papel: de leitores, eles passarão a autores de
textos, o que os fará obrigatoriamente sair de uma posição mais cômoda para uma posição em
que não apenas lemos o que outros escreveram, mas produzimos textos para outros estudantes
e pesquisadores lerem.
Essa passagem de leitor a produtor de texto, no contexto universitário, gera muita
ansiedade nos graduandos. É clara a falta de preparo dos discentes no que diz respeito à
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escrita dos textos que lhes solicitamos. É nítida também a insatisfação dos professores com os
resultados obtidos.
Bazerman (2011) afirma que gênero permanece como um termo importante nas artes e
na crítica artística. Segundo o autor, a palavra foi trazida, inicialmente, para a língua inglesa
para referenciar “um tipo de pintura de cenas rústicas, favorecidas pela academia francesa,
para depois se lançar no âmbito da literatura e de outras artes” (BAZERMAN, 2011, p. 24).
Bazerman (2011) acrescenta que, embora o termo gênero seja, nos estudos atuais, largamente
utilizado para a identificação das especificidades de diversos tipos de criações nas mais
diversas esferas criativas, o termo ainda traz consigo “o estigma de uma superficialidade
formulaica e de um limitado repertório de expressões estilísticas e organizacionais”
(BAZERMAN, 2011, p. 25). Isso se pode notar, segundo o autor, se nos atentarmos para o
fato de que as produções artísticas consideradas como pertencentes a um determinado gênero,
com frequência, têm sua qualidade e seu valor artístico, de certa forma, diminuídos, tendo em
vista o surgimento de outras obras mais ricas e criativas, por terem transcendido as limitações
do gênero.
Marcuschi (2008) nos adverte de que seria uma ingenuidade histórica pensar que foi
nas últimas décadas do século XX que se iniciou o estudo dos gêneros textuais, uma vez que
ele já ocorre há vinte e cinco séculos, se considerarmos que Platão iniciou os estudos
sistemáticos dos gêneros. Marcuschi (2008) ressalta que o que encontramos hoje é uma nova
visão do mesmo tema. Informa-nos o autor que a palavra gênero, na tradição ocidental, foi
“especialmente ligada aos gêneros literários, cuja análise se inicia com Platão para se firmar
com Aristóteles, passando por Horácio e Quintiliano, pela Idade Média, o Renascimento e a
Modernidade, até os primórdios do século XX. Atualmente a expressão gênero já não se
vincula apenas à literatura” (MARCUSCHI, 2008, p. 147).
A seguir, apresentamos uma definição de gênero textual, acompanhada de alguns
exemplos. Optamos, neste artigo, por registrar a definição proposta por Marcuschi (2008).
Além da definição, alguns exemplos dados por esse autor são aqui retomados.
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Para Marcuschi (2008), gênero textual refere-se aos textos materializados em situações
comunicativas recorrentes. Marcuschi (2008, p. 155) complementa:
Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições
funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração
de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. [...] os gêneros são entidades
empíricas em situações enunciativas e se expressam em designações diversas,
constituindo um princípio listagens abertas. Alguns exemplos de gêneros textuais
seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete,
reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística,
horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de
restaurante, instruções de uso, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada,
conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador,
aulas virtuais e assim por diante.
Bakhtin (2003) postula que todos os diversos campos da atividade humana estão
ligados ao uso da linguagem, que se efetua na forma de enunciados orais e escritos, os quais,
por sua vez, são multiformes, concretos e únicos. O autor destaca que tais enunciados
refletem as condições específicas e as finalidades de cada campo, por meio de três elementos,
quais sejam: o conteúdo temático, o estilo da linguagem e a estrutura composicional.
Fiorin (2008) registra que esses três aspectos: o conteúdo temático, o estilo e a
organização composicional são responsáveis pela construção do todo que constitui o
enunciado, o qual é marcado pela especificidade de uma esfera de ação.
Sobre o conteúdo temático, Fiorin (2008) esclarece que não se trata do assunto
específico do texto, mas de um domínio de sentido de que se ocupa o gênero. Assim,
exemplifica Fiorin (2008), as cartas de amor apresentam o conteúdo temático das relações
amorosas; as aulas privilegiam o ensino de um programa de curso, e as sentenças apresentam
como conteúdo temático uma decisão judicial. Quanto à construção composicional, Fiorin
(2008) destaca que se trata do modo de organizar o texto, de estruturá-lo. O autor insiste no
exemplo da carta, gênero que necessita de uma ancoragem no que diz respeito ao tempo, ao
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espaço e a uma relação de interlocução, para que os dêiticos utilizados por quem escreve
sejam compreendidos. É por essa razão que as cartas devem apresentar a indicação do local, a
data em que foi escrita, a identificação de quem escreve e para quem se escreve. Quanto ao
estilo, Fiorin (2008) registra que se trata de uma seleção de meios linguísticos: certos meios
lexicais, fraseológicos e gramaticais utilizados tendo em vista a imagem que se tem do
interlocutor e de como se presume sua compreensão responsiva ativa do enunciado. Fiorin
(2008, p. 62-63) exemplifica:
Há, assim, um estilo oficial, que usa formas respeitosas, como nos requerimentos,
discursos parlamentares, etc.; um estilo objetivo-neutro, em que há uma
identificação entre o locutor e seu interlocutor, como nas exposições científicas, em
que se usa um jargão marcado por uma “objetividade” e uma “neutralidade”; um
estilo familiar, em que se vê o interlocutor fora do âmbito das hierarquias e das
convenções sociais, como nas brincadeiras com os amigos, marcadas por uma
atitude pessoal e uma formalidade, com relação à linguagem: um estilo íntimo, em
que há uma espécie de fusão entre os parceiros da comunicação, como nas cartas de
amor, de onde emerge todo um modo de tratamento do domínio daquilo que é mais
privado.
Com relação à definição de gêneros, Bakhtin (2003) registra que: “cada enunciado
particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2003, p. 262, grifo do autor).
Fiorin (2008), ao se referir especificamente a esse conceito proposto por Bakhtin,
registra que o termo relativamente deve ser destacado, ou seja, é preciso levar em conta a
historicidade dos gêneros, isto é, sua mudança, o que, por sua vez, implica não haver
nenhuma normatividade nesse conceito. O vocábulo indica ainda uma imprecisão das
características e das fronteiras dos gêneros. É o caso, como exemplifica Fiorin (2008) (2008),
de uma notícia de jornal do início do século XX e uma de um jornal de hoje, as quais são
radicalmente diferentes. Os gêneros, estão, portanto, em constante mudança.
Bakhtin (2003) destaca a importância da distinção entre os gêneros discursivos
primários (simples) e os secundários (complexos). A réplica do diálogo cotidiano e as cartas
são exemplos de gêneros primários, pois se constroem na comunicação discursiva imediata.
Tais gêneros integram os gêneros discursivos secundários, que são predominantemente
escritos e surgidos em contextos culturais mais complexos, por exemplo, o romance, as
pesquisas científicas, o drama, os grandes gêneros publiscísticos, entre outros. Um diálogo ou
uma carta, como destaca Bakhtin (2003), podem compor um romance, mas manterão o
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Assumimos, nesta investigação, que a análise de gêneros textuais deve considerar não
apenas os aspectos formais que o constituem, mas diversos outros aspectos, especialmente o
uso que as pessoas fazem dos gêneros a partir das intenções comunicativas que elas têm. Os
gêneros, a nosso ver, textualizam as nossas intenções e têm o poder de concretizá-las.
Concebemos, portanto, os gêneros textuais como construtos dinâmicos, como formas de ação.
Foi com base nesses princípios que elegemos para a fundamentação teórica desta
investigação a abordagem de autores que constroem suas reflexões sustentadas pela
concepção sociorretórica dos gêneros. Para este artigo, com vistas à análise de nosso corpus,
privilegiamos a abordagem de Swales (1990) e de Motta-Roth (1996).
Motta-Roth e Hendges (1996) deixam claro que cada movimento pode incluir vários
passos, elementos mais específicos que se combinam para construir a informação de um
movimento. As autoras definem o movimento como:
[...] um bloco de texto que pode se estender por mais de uma sentença, que realiza
uma função comunicativa específica e que, juntamente com outros movimentos,
constitui a totalidade da estrutura informacional que deve estar presente no texto
para que esse possa ser reconhecido como um exemplar de um dado gênero do
discurso (MOTTA-ROTH; HENDGES, 1996, p. 60).
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As autoras iniciam o resumo acadêmico com uma pergunta indireta: “[...] como
palavras polissêmicas e homônimas são acessadas e qual o papel do contexto durante a etapa
de acesso”. Entendemos que essa pergunta pode ser vista como o problema da pesquisa que
corresponde também ao objetivo da investigação. Há também uma sub-função (Sub-função
2A) que aparece pela 1ª vez nos cinco resumos acadêmicos analisados, o que nos leva a crer
que tal função não seja obrigatória na elaboração do abstract.
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Considerações finais
As análises que fizemos neste capítulo, bem como as constantes dos anexos, ampliam
a compreensão a respeito do conteúdo esperado na elaboração do gênero resumo acadêmico.
É importante notar que algumas partes, como os MOVIMENTOS 1 (SITUAR A
PESQUISA); 4 (SUMARIZAR OS RESULTADOS); e 5 DISCUTIR A PESQUISA), não
aparecem em todos os abstracts, o que nos leva a formular a hipótese de que, devido à
oscilação de sua presença, não sejam obrigatórios. O mesmo não acontece com os
MOVIMENTOS 2 (APRESENTAR A PESQUISA) e 3 (DESCREVER A
METODOLOGIA), que sempre estão presentes.
Outro ponto a ser destacado é que a ordem dos movimentos não é rígida. Eles podem
estar “diluídos” no resumo, o que implica a repetição de alguns movimentos, em que um
complementa o outro.
As análises que fizemos aqui podem, a nosso ver, contribuir para o ensino desse
gênero nos cursos de graduação. Vale destacar as considerações de Schneuwly e Dolz (2004),
autores que argumentam que toda inserção de um gênero na escola está relacionada a
objetivos específicos de aprendizagem, quais sejam os de conhecer melhor o gênero para
melhor interpretá-lo e apreciá-lo e para melhor produzi-lo, seja na escola ou fora dela. É
preciso levar em conta que o gênero sofre um desdobramento e passa a ser um gênero a
aprender, embora ainda permaneça um gênero para comunicar.
Vale ressaltar que as preocupações de Schneuwly e Dolz (2004), embora se refiram ao
sistema de ensino francês, mais especificamente ao ensino básico, podem, certamente, ser
extensivas ao ensino superior brasileiro. É sabido que o gênero resumo é solicitado em larga
escala por professores de diversas disciplinas em muitos cursos superiores; há, contudo, uma
grande necessidade de proporcionar aos graduandos experiências de aprendizado mais
significativas para que eles possam transitar com mais eficácia no que se refere à escrita de
resumos acadêmicos. Nesse sentido, o estudo do gênero resumo acadêmico em uma
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perspectiva sociorretórica se constitui em um caminho para um ensino mais eficaz no que diz
respeito à escrita desse gênero.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MILLER, C. R. Gênero como ação social. Tradução de Judith Hoffnagel. In: DIONÍSIO, A.
P.; HOFFNAGEL, J. (Orgs.). Gênero textual, agência e tecnologia. Recife: Editora
Universitária da UFPE, p. 21-41, 2012. (Texto original: Genre as social action. Quarterly
Journal of Speech, p. 151-167, may, 1984).
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares - das práticas de linguagem aos objetos de
ensino. In: ROJO, R. & CORDEIRO, G. S. (Orgs.). Gêneros orais e escritos na escola.
Campinas, SP: Mercados das Letras, 2004.
______. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge
University Press, 1990.