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Contardo Caligaris Cartas A Um Jovem Terapeuta
Contardo Caligaris Cartas A Um Jovem Terapeuta
Contardo Calligaris
Copídesque
Shirley
Revisão Gráfica
Edna Cavalcanti
Roberta Borgas
Fotos de capa
Luciana Cattani e Gabriel Boieras
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
04 05 06 07
SUMÁRIO
1. Vocação profissional 1
2. Quatro bilhetes 19
3. O primeiro paciente 31
4. Amores terapêuticos 41
5. Formação 53
6. Curar ou não curar 67
7. O que fazer para ter mais pacientes? 81
8. Questões práticas 103
9. Conflitos inúteis 125
10. Infância e atualidade, causas internas e causas externas 133
11. Que mais? 145
da festa, a campainha não parava de
tocar. Nós, crianças, tínhamos a
função e o privilégio de abrir os
pacotes, deixando cuidadosamen-
3
1
VOCAÇÃO PROFISSIONAL
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Caro amigo,
Você me perguntou: “O que faço, se
me apaixono por uma paciente?”. E
lhe respondi laconicamente: “Será
que é uma questão urgente?”. Você
replicou: “Desde o começo de minha
formação, pratico (só de vez em A psicanálise deu a essa paixão um
quando, não se preocupe) um nome específico:
devaneio em que curo amor de transferência. O termo
milagrosamente uma moça sugere que o afeto, por mais que seja
emudecida por sua loucura e, lógico, genuíno, sincero e, às vezes, brutal,
nos amamos para sempre”. Depois teria sido “transferido”, transplantado.
disso, decidi levar sua pergunta a Ele se endereçaria ao terapeuta por
sério. procuração, enquanto seu verdadeiro
Talvez você se lembre de que, na alvo estaria alhures, na vida ou na
minha primeira carta, falei um pouco lembrança do paciente.
da admiração, do respeito e, em Você já deve ter ouvido mil vezes: o
geral, dos sentimentos que amor de transferência, grande ou
destinamos às pessoas a quem pequeno, é a mola da cura.
pedimos algum tipo de cura para Primeiro, ele possibilita que a cura
nossos males. continue apesar dos trancos e dos
Comentei que era bom que fosse barrancos. Segundo, ele permite ao
assim, pois esses afetos facilitam o paciente viver ou reviver, na relação
trabalho do terapeuta. E acrescentei com o terapeuta, a gama de afetos e
que isso é especialmente verdadeiro paixões que são ou foram também
no caso da psicoterapia, com a dominantes em sua vida; essa nova
vivência, aliás, é a ocasião de terapeuta e seja qual for o sexo do
modificar os rumos e o desfecho dos paciente, incluindo os casos em que
padrões afetivos que, geralmente, esse sexo é o mesmo.
assolam uma vida, repetindo-se até o Um argumento que é usado
enjôo. Terceiro, ele pode, às vezes, tradicionalmente para justificar essa
ser o argumento de uma chantagem interdição é o seguinte: o afeto que
benéfica: o paciente pode largar seu uma paciente pode sentir por seu
sofrimento por amor ao terapeuta, terapeuta é fruto de uma espécie de
para lhe oferecer um sucesso, para qüiproquó. O terapeuta não é quem a
ganhar seu sorriso, para fazê-lo feliz. paciente imagina. A situação leva a
Esse terceiro caso apresenta alguns paciente a supor que seu terapeuta
inconvenientes óbvios: o paciente detenha o segredo ou algum segredo
que melhorar por amor a seu de sua vida e que, graças a esse
terapeuta nunca se afastará dele, saber, ele poderá entendê-la,
pois parar de amar seria para ele transformá-la e fazê-la feliz. Ou seja,
largara razão pela qual se curou, ou a paciente idealiza o terapeuta, e
seja, voltar a sofrer como antes ou quem idealiza acaba se apaixonando.
mais ainda. Conclusão: o apaixonamento da
Você deve também ter ouvido mil paciente é um equívoco. E não é bom
vezes que um/uma terapeuta não construir uma relação amorosa e
pode e não deve aproveitar-se do sexual sobre um equívoco. Se
amor do paciente e terapeuta se juntarem, a
coisa, mais cedo ou mais tarde,
produzirá, no mínimo, uma decepção
44 e, freqüentemente, uma catástrofe
emocional, pois a decepção virá de
um lugar que pode ter sido idealizado
além da conta.
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mostrado perfeitamente satisfeitas.
São cacos difíceis de serem
recolados. A decepção amorosa da cessária para deixar passar a
paciente é violenta: afinal, ela foi ocasião. Mas, convenhamos, se esse
enganada por um objeto de amor ao tipo de encontro é tão raro, é difícil
qual atribuía poderes e saberes acreditar que possa repetir—se em
quase mágicos. série... Como diz o provérbio, errar é
O pior desserviço desses desastres é humano, perseverar é diabólico. Ou
que, de fato, eles impedem que as seja, pode acontecer uma vez numa
vítimas encontrem a ajuda da qual vida. A partir de duas, a série é
precisam. Freqüentemente, ao tentar suficiente para provar que o terapeuta
uma nova terapia, elas não param de está precisando de terapia.
esperar que se engate uma nova Abç.
relação erótica (pois lhes foi BILHETE 1
ensinado, por assim dizer, que a cura Caro amigo, recebi sua notinha um
virá de um amor correspondido com pouco irônica. Sua observação é
seu terapeuta). Outra eventualidade é correta. Embora eu tenha
que elas nunca mais consigam especificado que os amores
estabelecer a confiança necessária terapêuticos acontecem tanto com
para que um novo tratamento se terapeutas homens como com
torne possível. terapeutas mulheres, é verdade que,
3) Existe uma terceira possibilidade em minha carta, para simplificar (foi o
para os amores terapêuticos. É que eu disse), usei o masculino para
possível que se apaixone porsua “o” terapeuta e o feminino para “a”
paciente um terapeuta que não queira paciente. Não foi por acaso, você tem
apenas gozar de seu poder e que não razão. Provavelmente, esses
seja aflito pela síndrome de fazer a desastres acontecem mais entre
“mamma” feliz. E é terapeutas homens e pacientes
possível que uma paciente se mulheres do que entre terapeutas
apaixone por seu terapeuta mulheres e pacientes homens. Mas
sem acreditarque ele seja o remédio não é, como você sugere, porque os
a todos os seus males. homens “são sempre mais
Afinal, não é impensável que dois assanhados”. A razão é outra:
sujeitos, que tenham algumas boas muitos homens, diferentemente das
razões de gostarem um do outro, se mulheres, acreditam terem sido, ao
encontrem num consultório. Todos nascer, a única e inigualável razão da
sabemos que um verdadeiro encontro satisfação de suas mães. É isso que
é muito raro, e é compreensível que explica que os terapeutas sejam mais
um terapeuta não faça prova da propensos a se oferecer a suas
abnegação profissional ne- pacientes como panacéias amorosas.
50 51
terapeuta, mas não disse nada dos
caminhos pelos quais ele deveria
formar—se.
Por exemplo, você me pergunta, que
faculdade você
recomendaria cursar? Medicina e
psiquiatria ou psicologia
BILHETE 2 clínica?
Agora você quer que eu lhe diga, Na verdade, tanto faz, porque nem o
caso se apaixone por uma paciente, psiquiatra nem o psicólogo clínico se
como você saberá se a coisa se formam para serem psicoterapeutas.
enquadra no caso dois ou no caso Se você quer ser psicoterapeuta, o
três. Ou seja, como saberá se está se essencial de sua formação
rendendo à raridade de um encontro acontecerá depois da faculdade ou,
amoroso excepcional ou se é apenas quem sabe, durante seus estudos. De
o começo de uma série (que qualquer forma, se dará fora da
demonstraria que, na verdade, você academia.
se enganou um pouco de profissão). E há, por isso, uma razão
Pois é, salvo esperar para ver se a intransponível: uma peça- chave da
coisa se repete, o único que poderia formação de um psicoterapeuta é o
dizer seria seu analista. É por isso, tratamento ao qual ele mesmo se
aliás, que é sempre bom que um submete. E essa cura não pode ser
terapeuta, de vez em quando, volte a uma demonstração pedagógica
ser paciente... abstrata, não pode ser limitada a um
Enfim, na dúvida, abstenha-se. fazer de conta durante o qual se
transmitiria uma técnica. Ao contrário,
52 espera-se que, nesta experiência, o
futuro terapeuta se depare com a
complexidade de suas motivações,
sintomas e fantasias conscientes e
inconscientes. Pois, para o terapeuta,
5 não há melhor intro- dução à
variedade do sofrimento humano do
FORMAÇÃOA que a descoberta de que, em algum
canto de seus pensamentos, ele pode
encontrar palavras, lembranças,
razões, visões e pen-
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doutores em medicina. Com isso, os
psicólogos e demais terapeutas não-
médicos estariam sob tutela, ou seja,
pagariam para os médicos xidade em liberdade. A perda, a meu
supervisões obrigatórias, O governo ver, seria maior do que o ganho.
achou a proposta boa, examinou a
questão e chegou à seguinte Alguém me lembrará que vários
conclusão: nem médicos psiquiatras institutos e formação psicanalítica
nem psicólogos recebem uma não são doutrinários; ao contrário,
formação acadêmica que possa ser eles cultivam a pluralidade.
considerada suficiente para exercer a Concordo, e são os institutos que
psicoterapia sem constituir perigo prefiro. Mas a liberdade da qual falo
para a saúde mental do cidadão. A vai além disso. Por exemplo, acho
dita formação é administrada por que um pouco de formação em
instituições privadas de várias terapia cognitiva ou sistêmica seria
orientações. Portanto, foi constituído útil para um psicoterapeuta
um conselho das instituições motivacional. A grande maioria de
estabelecidas e reconhecidas, e esse meus colegas psicanalistas achará
conselho decide quem é habilitado ao que essa afirmação é um disparate.
exercício da psicoterapia. Alguns, se eu fosse membro de sua
O governo italiano agiu de maneira instituição, levariam o caso ao comitê
certa. Contudo, minha preferência é central para que tomasse
para a situação que vige hoje no providências. Parênteses: não é
Brasil e na maioria dos países, em disparate nenhum; de fato, como
que a prática da psicoterapia não é aquela personagem de Molière que
regulamentada. Claro, para quem falava em prosa e não sabia, até um
procura um psicoterapeuta, seria psicanalista purista age como
simpático que um carimbo oficial terapeuta cognitivo várias vezes por
garantisse que o terapeuta foi dia, só que não sabe.
formado por uma instituição
reconhecida. O problema é que isso Mas voltemos ao essencial desta
implicaria que cada terapeuta se carta.
formasse inteiramente numa única
instituição, da qual seria membro Imagino que, nesta altura, você
carimbado. Sumiriam na ilegalidade, observe: se a formação acontece
portanto, os numerosos terapeutas e depois da faculdade, em instituições
analistas, digamos assim, privadas, por que deveríamos
independentes, sem carteirinha de escolher ou privilegiar a formação
um partido só. acadêmica em psiquiatria ou
Formações unívocas, ligadas à psicologia? Se eu quiser me tornar
doutrina de uma instituição só, psicoterapeuta e estiver ainda na
ganhariam em rigor, mas perderiam hora do vestibular, por que não
em comple- escolheria qualquer faculdade que,
quem sabe, me interesse mais? Sei
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lá, filosofia, direito, história ou ou de psiquiatria.
matemática? As que são invocadas mais
freqüentemente são também as
59 menos importantes. Concernem a
experiências e
saberes que poderão fazer falta na
sua formação de psicoterapeuta, mas
que ambos, experiências e saberes,
poderão ser encontrados de outro
jeito.
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De fato, quase todas as instituições
privadas que formam psicoterapeutas
aceitam candidatos que não são nem
psicólogos nem psiquiatras.
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Cara amiga,
Você vai ter dificuldade em acreditar,
mas é assim: um bom número de
meus colegas psicanalistas achará
estranho que, nestas cartas, eu fale
Se o terapeuta estiver com pressa de
agir, acreditará que a queixa
apresentada (com a explicação que a
acompanha) diz mesmo o essencial
do que atormenta o paciente. E
tentará imediatamente combater o
sintoma ou ajudar na solução do
dilema. Claro, escutava com calma a
exposição dos dilemas e de suas
razões, mas me guardava da pressa.
@@ Neste caso, quase sempre, o
À força de perguntas, encorajava-os
sintoma e o dilema apenas se
a voltar no tempo. Não era fácil, pois
deslocarão, migrarão alhures, pois o
a reação imediata era de impaciência:
sofrimento psíquico é como a
“Tudo bem, vou falar daquela viagem
massinha de modelar de nossa
ao Canadá quando era criança, tudo
infância; você não a quer num
isso é bem bonito e interessante, mas
determinado quartinho da casa de
eu devo decidir agora, você
boneca, empurra com força,
entende?”.
consegue deslocá-la, mas ela não
Ora, quase sem exceções, o dilema
sumiu, apenas se insinuou pelas
do momento, por mais imperativo e
frestas e reaparece no quarto ao
efetivo que fosse, era o herdeiro de
lado.
conflitos mais antigos, que, quase
Um exemplo. Nos últimos anos,
sempre, tinham sido ilusoriamente
atendi pacientes brasileiros que
resolvidos pela própria saída do
viviam em Nova York. Muitos vinham
Brasil. Era a necessidade de realizar
me ver com um problema “só”:
um desejo fracassado dos pais
queriam decidir se voltariam para
(impressionante quantas crianças
casa ou ficariam nos Estados Unidos.
nascidas ou concebidas durante o
Chegavam com verdadeiras listas de
doutorado do pai ou da mãe nos
argumentos contrapostos que
Estados Unidos se perguntam um dia
acabavam num empate que os
por que diabo acabaram emigrando).
imobilizava. Também estavam com
Era a necessidade de repetir o gesto
pressa: renovo o visto ou não
mítico do ancestral que foi embora de
renovo? E o contrato de aluguel, que
algum país europeu para o
acaba daqui a seis meses?
Brasil(maneira de reivindicar para si a
Era grande a tentação de tomá-los ao
suprema autoridade simbólica da
pé da letra e, ajudá-los a decidir,
família, mas a que preço?). Eram as
pesando de novo os argumentos,
mil faces do eterno conflito de
acrescentando outros que, quem
qualquer adolescente tardio, dividido
sabe, eles não tivessem contemplado
entre o desejo paterno de que ele dê
e, sobretudo, jogando na balança o
prova de sua autonomia e o desejo
peso de um conselho que, justo ou
(também paterno) de que ele fique
errado, teria a vantagem de tirá-los
perto de casa, no abraço quente dos
de uma hesitação excruciante.
seus. Havia filhas que precisavam
demonstrar coragem e autonomias
70 muito “machas”, para competir com
os irmãos; caçulas que sonhavam em
ser o o estado em que um sujeito se
permite realizar suas potencialidades,
71 ou seja, o
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nha uma política de encaminhamento
para os jovens analistas (só nos rentes etc.), é preciso, no mínimo,
últimos anos, foi instituído um comitê que as pessoas saibam que você
responsável para receber os pedidos existe.
de análise e terapia que chegavam
diretamente à instituição; esse Entretanto, no contexto daqueles
pequeno comitê encaminhava os anos, a resposta assumia um sentido
pedidos a membros da instituição, um pouco diferente.
mas segundo os critérios escolhidos
pelos analistas que compunham o Lembra-se da última carta? Pois é, na
comitê, não segundo uma política época, contribuir ao exercício e à
formal). Pensava também que talvez doutrina da psicanálise parecia mais
essa ausência de política de importante do que curar pacientes.
encaminhamento fosse proposital, Isso fazia com que, para cada um, a
uma espécie de seleção social, uma relação com os colegas da École,
última prova depois da formação; com os outros analistas, fosse mais
afinal, ser psicanalista é um ofício relevante do que a relação com a
liberal, e uma certa capacidade social cidade e, em geral, com o resto da
de inspirar confiança e receber sociedade.
demandas poderia ser considerada
como um requisito de qualquer Conseqüência disso: todo o mundo
profissão liberal. Essa idéia, embora parecia convencido de que, assim
nada explícita, ressurgia, na vida da como as batatas vêm da terra, os
instituição, na hora de os membros pacientes só vêm de outros analistas
serem designados com o título de e terapeutas mais abastados.
“analista membro”. Não havia Portanto, fazer-se conhecer não
candidatura para isso; o que contava, significava ganhar a confiança de
de fato, quem está na primeira linha de
era ter durado ao menos dez anos na embate com o sofrimento cotidiano (o
prática clínica, daro, sem fazer padre da igreja, o quiroprático, o
estragos. médico de família ou mesmo os
Enfim, coloquei a pergunta, e Simatos vizinhos do prédio); significava impor
me respondeu: respeito aos colegas da instituição.
“Faites-vous connaTtre”, faça-se Na mesma linha, mostrar que a gente
conhecer. Era uma resposta de bom era digno de confiança não
senso; sobretudo se você começa a significava dar provas práticas da
trabalhar capacidade de ajudar pacientes,
numa cidade que não é sua de significava dar prova de uma
origem (na qual talvez você tivesse “excelência” teórica que
uma rede de amigos, colegas desde “impressionaria” os colegas.
o primário, pa-
84 Quem seguisse o conselho que eu
acabava de receber e quisesse “se
fazer conhecer” não pensava, por
exemplo, em uma disciplina, e sim como esforços
para conquistar um espaço mais
85 ensolarado na hierarquia (imaginária
ou real) da instituição. Eram como a
roupa da semana da moda de São
Paulo ou do Rio:
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BILHETE
Você observa que, às vezes, lendo
textos psicanalíticos dos anos 70 e 80
Seu primeiro compromisso não é com (hoje a coisa tende a melhorar), não é
“a psicanálise” ou “a psicoterapia”, simples fazer a diferença entre uma
nem com Freud, Melanie Klein, Lacan contribuição valiosa e um exercício
ou qualquer outro chefe de escola, de autopromoção; o estilo pode ser o
nem com a instituição na qual você mesmo: inutilmente torto,
se formou. propositalmente incompreensível.
Seu primeiro compromisso é com as Como não confundir?
pessoas que confiam em você e Não sei. A verdade é que a
trazem para seu consultório uma obscuridade desses textos me afasta
queixa que pede para ser escutada e, por razões propriamente clínicas.
Os textos psicanalíticos obscuros são eles exigiram de mim, é bom que o
geralmente concebidos para produzir texto prometa um conteúdo de
e alimentar amores de transferência. riqueza equivalente (o que é raro). Se
Funciona assim: se você não entende não for o caso, passo adiante.
bulhufas, é que meu texto diz coisas Fora isso, há momentos em que um
que você não quer saber; deve tratar sólido senso de humor pode ser
de coisas que têm tudo a ver com salutar para evitar as armadilhas
você. Portanto, quanto menos você transferenciais da obscuridade.
entende, tanto mais você pode e No ano passado, em Boston, Estados
deve me idealizar e me amar como Unidos, fui escutar, com um amigo e
detentor de uma verdade sua que colega americano, um professor
você desconhece e que eu conheço. universitário inglês que proferia uma
Numa terapia ou numa análise, conferência supostamente de teoria
espera-se que, um dia, a idealização psicanalítica de inspiração francesa.
do terapeuta acabe. Espera-se No fim de uma incompreensível
também que o terapeuta queira que sucessão de afirmações sem
isso aconteça. referência empírica, destacando as
No caso dos textos obscuros, parece palavras para marcar a extrema
que seus autores preferem manter os dramaticidade da questão conclusiva
leitores e admiradores boquiabertos de
para sempre. Pois escrevem não
para transmitir o que sabem (a 100
revelação liquidaria a idealização
cega), mas para serem idealizados.
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Para começar, há pacientes que não
agüentam a idéia de falar sem ver a
cara de quem escuta e há pacientes
que,
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SETTING
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algum. Um paciente deitado há tempo
pode decidir um dia que há algo que
ele quer dizer olho no olho.
4) Pode acontecer que manter e
impor o setting prescrito por sua
Na contramão dessa exigência, situa- formação se torne, um dia, para você,
se o cansaço produzido por uma uma espécie de condição, do tipo: se
série de sessões face a face. Nem esta paciente não deitar no divã, não
todos os analistas ou terapeutas haverá análise possível. Essa rigidez
agüentam passar o dia expostos a surge, em geral, com um ou outro
uma sucessão de olhares paciente específico. Bom, se isso
escrutadores, que, inevitavelmente, acontecer, considere a possibilidade
tentam ler ou adivinhar, na cara do de que você esteja transformando
terapeuta, um sinal de aprovação e sua poltrona numa fortificação militar
simpatia ou, então, de rechaço e e então pergunte-se por quê.
ironia. ENTREVISTAS PRELIMINARES
Enfim, nesta matéria, quatro Você quer saber quais são as
conselhos: perguntas que coloco e me coloco
1) Aja de maneira que sua escolha durante os primeiros encontros com
não seja forçada. Nenhum paciente um paciente. Isso, é claro, além das
gostaria de perceber que seu que ajudam o paciente a contar sua
terapeuta, no consultório, obedece a história e suas dores e nos ajudam a
formas estabelecidas, sem construir e construir um primeiro esboço do
propor seu próprio espaço. problema.
2) Lembre-se de que, em última De fato há, sim, duas perguntas, que
instância, o setting não é condição sempre surgem.
nem garantia de nada. Uma análise 1) A primeira coloco para mim
ou uma terapia acontecem pelas mesmo, na hora de concluir, no fim
palavras trocadas e pelas relações das primeiras entrevistas. Pergunto-
que elas organizam, não pelas me se, neste caso, eu poderia ser de
disposições dos traseiros dos algum auxílio.
interessados. Durante a ditadura Não há quadros patológicos que eu
militar, na Argentina, mais de um recuse apriori, e há poucos casos em
analista se dispunha a encontrar seus que encontro o limite do que agüento
pacientes na clandestinidade, no
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mesmo e consegue pedi-lo (a si Na verdade, hoje, acho que a
mesmo, ao terapeuta e à vida), quer psicoterapia e a análise talvez sejam
seja porque achou novos caminhos, mais próximas de um terceiro
talvez menos penosos, de organizar modelo, o de muitas terapias do
sua fuga do que ele quer. corpo. A cada vez, a postura é
De qualquer forma, a mudança da corrigida, a coluna estalada, os
resposta me orienta. músculos relaxados, mas um
A DURAÇÃO DA SESSÃO resultado que não seja apenas um
Você me pergunta qual é a duração alívio temporário pede uma série
de uma sessão. Mal posso lhe dizer indefinida de repetições. Do ponto de
quanto dura, mais ou menos, uma vista do tempo, é um modelo
sessão comigo. intermediário: a cada vez, leva um
Numa época, parecia-me que a tempo variável (que depende dos
duração das sessões fosse uma músculos e ossos interessados, de
questão crucial, da qual dependiam o quanto o paciente agüenta naquele
alcance e o sentido da cura. dia etc.).
De fato, a maneira de medir o tempo Mas não estou mais disposto a fazer
da sessão revela modelos desta questão o cavalo de uma
terapêuticos diferentes. batalha teórica. Conheço pessoas
A sessão com tempo fixo, 45 ou 50 que parecem ter-se beneficiado
minutos batidos por algum relógio, bastante de uma terapia e outras
supõe um modelo radiológico, um para quem a experiência,
pouco como se a cura dependesse aparentemente, foi sem
do número de horas de exposição do conseqüência: a duração das
paciente ao terapeuta. sessões não parece ter sido um fator
A sessão com tempo variável supõe decisivo no sucesso ou insucesso
um modelo mais próximo da prática das curas.
médica ou cirúrgica. Se você está Minha formação foi, como já lhe
deitado numa cama de operação disse, na École Freudienne de Paris,
enquanto lhe retiram o apêndice a escola de Lacan; as sessões
inflamado, você quer que a coisa leve variáveis e breves eram um dogma
o tempo (ao qual, aliás, nem todo o mundo
necessário e, se, por sorte, a obedecia, a começar pelo meu
intervenção for rápida, você não analista).
despertará da anestesia para Durante anos, trabalhei com sessões
protestar, acusando o cirurgião de breves das quais apreciava a tensão
não dedicar mais tempo à sua e o sentimento de urgência, que
barriga. matavam a preguiça da escuta e
excluíam rapidamente o papo furado.
118 Nos Estados Unidos, pratiquei
sessões de aproximadamente 50 Outro detalhe: acontece que me
minutos, conformando-me ao padrão atrase, não só porque às vezes uma
exigido sessão pode durar muito mais do que
o previsto, mas sobretudo porque
119 (como anuncio a meus pacientes)
tento ser disponível numa urgência.
Se um pacien-
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